Direito e intercâmbio social - Hipóteses sobre a forma e a função do direito à luz do desenho histórico-estrutural de Kojin Karatani

July 22, 2017 | Autor: Joelton Nascimento | Categoria: Direito, Marxismo, Kōjin Karatani, Crítica Do Valor
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[-] www.sinaldemenos.org Ano 7, n°11, vol. 2, 2015

2

[-] Sumário # 11 vol. 2 EDITORIAL

4

PAULO ARANTES

9

Entrevista com Marcos Barreira e Maurílio Lima Botelho

ARTIGOS SOBRE O LI MITE ABSOLUTO DO CAPITAL

48

Especulações acerca de uma hipótese teórica Daniel Feldmann A POTÊNCIA DO ABSTRATO

70

Resenha com questões para o livro de Moishe Postone Cláudio R. Duarte A DEMOCRACIA E O SONO DA HISTÓRIA

123

Fragmentos Raphael F. Alvarenga DIREITO E INTERCÂMBIO SOCIAL

142

Hipóteses sobre a forma e a função do direito à luz do desenho histórico-estrutural de Kojin Karatani Joelton Nascimento ISAAK RUBIN E GYÖRGY LUKÁCS As origens da “leitura crítica” de Marx na década de 1920 Marcos Barreira

169

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O RENASCIMENTO MILAGROSO DE ANTONIO GRAMSCI

3 214

Robert Bösch FAVELIZAÇÃO MUNDIAL

248

O colapso urbano da sociedade capitalista Maurilio Lima Botelho CIBERATIVISMO, O PARADIGMA DO ANTIPODER E

271

AS FISSURAS DO CAPITALISMO A revolução em tempos de internet Sílvia Ramos Bezerra PÓS-NATUREZA

286

Pilhagem ecológica e os monstros do capital André Villar Gomez O CAPITALISMO E A MALDIÇÃO DA

297

EFICIÊNCIA ENERGÉTICA John Bellamy Foster, Brett Clark e Richard York A TRANSIÇÃO SOLAR COMO POSSÍVEL-IMPOSSÍVEL

312

Daniel Cunha O DINHEIRO COMO CORAÇÃO DAS TREVAS

328

Nota sobre o último livro de Robert Kurz Daniel Cunha O QUE FALTA? Francisco C.

332

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DIREITO E INTERCÂMBIO SOCIAL Hipóteses sobre a forma e a função do direito à luz do desenho histórico-estrutural de Kojin Karatani Joelton Nascimento

Nó Borromeano Introdução

Como toda grande obra anticapitalista, A Estrutura da História Mundial 1 de Kojin Karatani 2 se descortina dialeticamente a partir de elementos simples, que se tornam complexos à medida que se avança no desenvolvimento dos argumentos

1

2

KARATANI, Kojin. The Structure of World History. From modes of production to modes of exchange. Tradução: Michael Bourdaghs. Durnhan/London: Duke University Press, 2014. (a partir daqui citado como TSWH, seguido do número da página; todas as citações são trad uções minhas, JN). Karatani é um filósofo e crítico literário japonês que se tornou conhecido internacionalmente por suas contribuições na filosofia e na teoria social por conta de suas obras traduzidas para o inglês: The Origins of Modern Japanese Literature (1993), Architecture as Metaphor (1 995), Transcritique (2005) e History and Repetition (2011 ).

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centrais. O objetivo de Karatani é traçar um “desenho estrutural”3 da história do sistema mundial partindo de um princípio: o de que muita luz seria lançada nesta estrutura se pudéssemos vê-la a partir do conceito de modos de intercâmbio. Como o autor adverte no Prefácio do autor à tradução inglesa, o marxismo ossificou uma visão segundo a qual a estrutura da história mundial deveria ser vista pelo ângulo da produção, isto é, de quem são os possuidores ou proprietários dos meios com que se produz. Esta visão gerou a dicotomia entre a “base econômica”, relacionada à realidade “produtiva” e as “superestruturas” jurídicas, políticas e culturais vindas de outras realidades que se apoiariam naquela “base”4 . Esta visão ossificada tende a ver o estado e a nação como “superestruturas” e a acreditar que uma vez superada a apropriação privada dos meios de produção, estas “superestruturas” definhariam e desapareceriam espontaneamente. A realidade histórica, como sabemos, traiu impiedosamente esta visão “arquitetural” do marxismo.

Algumas

concepções

teóricas

buscaram

contrapor

esta

visão

diametralmente: tentando conceber a “autonomia” destas superestruturas. Ao fazê-lo, contudo, terminavam por se afastar da apreensão conceitual da sociedade capitalista e de suas estruturas próprias, gerando apenas apreensões “regionais” da realidade social: no direito, na sociologia, na ciência política, na psicanálise. O resultado final é que tanto o “produtivismo” teórico quanto suas tentativas de recuperação em geral perderam a capacidade de compreensão da totalidade, da perspectiva sistemática de compreensão, na qual as estruturas políticas, jurídicas, religiosas e filosóficas são inter -relacionadas sistematicamente 5 . Com isso também se perde a perspectiva e as possibilidades de superar tal sistema totalizador, mesmo quando este dá sinais inegáveis de profundo desgaste e esgotamento crítico. Para reconstruir sistematicamente tais inter-relações é preciso retomar a crítica da economia política, mas não aquela que se satisfaz com a concepção da produção e de 3 4

5

Merece nota a precisão com que Karatani, autor de Architecture as Metaphor, utiliza a palav ra “estrutura” aqui. Embora Karatani não o diga, os marx istas tradicionais em geral costumam se apoiar na Introdução da Contribuição à Crítica da Economia Política (1 859) de Marx, que de um resumo da ativ idade intelectual marx iana até ali passou a ser uma chav e tanto para sua ativ idade anterior como posterior, em u m estranho episódio onde um resumo se transformou na própria conclusão. Para uma recente crítica marx ista deste “produtiv ismo” tosco Cf. BANAJI, Jairus. Theory as History. Essays ond modes of production and exploitation. Chicago: Hay market Books, 2010, p. 4 e ss.

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seus modos. A intenção de Karatani é retomar a estrutura da história mundial pela perspectiva do intercâmbio social, pois para ele esta história não se resume apenas aos modos de produção 6 . Segundo o filósofo japonês há quatro fundamentais modos de intercâmbio social: o “modo de intercâmbio A”, que consiste na dádiva e na reciprocidade 7 , o “modo de intercâmbio B” que consiste na pilhagem e na redistribuição, o “modo de intercâmbio C” que se define pela troca mercantil e o “modo de intercâmbio D” que se caracteriza como trocas que retornam ao modo de intercâmbio A, entretanto, superando-o por intermédio da superação da dominação gerada pela predominância dos modos de intercâmbio B e C8 . Segundo Karatani, em toda formação social encontramos estes quatro modos de intercâmbio social 9 . Estes quatro modos formam a “matriz” de intercâmbio de toda e qualquer formação social 1 0 . Outrossim, em cada formação social um destes modos é o dominante e este fato repercute em toda a estruturação de cada uma destas formações. Fizemos a seguir uma representação da matriz dos intercâmbios sociais segundo Karatani:

“Por estas razões nós devemos abandonar a crença de que o modo de produção é igual a base econômica” TSWH, p. 4. Ficamos devendo ao leitor da Sinal de Menos uma análise que coloque em um mesmo plano crítico o desenho histórico -estrutural de Karatani e a concepção da Nov a Crítica do V alor de “história das relações de fetiche” (que encontramos em A história como aporia e em Dinheiro sem V alor, de Robert Kurz, por exemplo). 7 Há uma v asta literatura sobre a dádiv a e a reciprocidade partindo das descobertas de Marcel Mauss. Em português eu destacaria as seguintes, como uma introdução ao tema: CAILLÉ, Alain. Antropologia do Dom. O terceiro paradigma. Tradução: Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 2002; GODELIER, Maurice. Enigma do Dom. Tradução Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Civ ilização Brasileira, 2001 ; e MARTINS, Paulo Henrique (org.). A Dádiva entre os Modernos. Discussão sobre os fundamentos e as regras do social. Petrópolis: Vozes, 2002. 8 Uma formação social onde predomina o modo de intercâ mbio D poderia ser chamada de comunista, socialista, comunista-conselhista, associativ ista, autogestionária etc., para Karatani o nome pouco importa, entretanto uma vez que há diversos significados ligados a estas nomenclaturas ele prefere chamar tal formação social de formação “X”. 9 “...formações sociais reais consistem em complex as combinações destes modos de intercâmbio” TSWH, p. 7 . 1 0 Neste sentido, poderíamos definir a proposta de Karatani como uma tentativa de levar adiantes algumas teses de A Grande Transformação (1944) de Karl Polanyi, entretanto, em uma linha teórica fundada na crítica marxiana da forma valor. 6

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Modo de intercâmbio B: pilhage m e

Modo de intercâmbio A: reciprocidade

redistribuição (dominação e proteção)

(Dádiva e contra-dádiva)

Modo de intercâmbio C: troca mercantil

reciprocidade para alé m do status (B) e das

(dinheiro e mercadoria)

As

Modo de intercâmbio D: retorno da

comunidades

humanas

classes (C)

arcaicas

costumavam

manter

intercâmbios

intercomunitários sobretudo pelo modo de intercâmbio A, como vemos tão magistralmente nos estudos de Marcel Mauss em Ensaio sobre a dádiva (1924)1 1 , embora nelas também possamos encontrar os outros modos de intercâmbio. Quando tais comunidades passam a praticar a pilhagem sistemática de outras comunidades, o modo de intercâmbio B passa a se tornar mais e mais importante pois ele é capaz de centralizar e reorganizar distributivamente os produtos da pilhagem. A troca mercantil, que existe desde o mais recuado dos tempos, assume então, a cada dia a partir daí, maior peso na estrutura histórica, culminando em sua emergência como dominante, na ascensão do capitalismo. Apenas a superação da dominância do modo de intercâmbio C pode levar à ruptura com aquilo que Karatani chama de nó borromeano de nosso tempo, o complexo capital-estado-nação e suas inter-relações sistemáticas. Nas hipóteses a seguir eu busco extrair do desenho do filósofo japonês elementos para caracterizar uma importante “zona” do nó borromeano capital-estadonação: o direito. Não é difícil encontrar regras em toda e qualquer sociedade humana; também não é difícil perceber em toda e qualquer sociedade humana que é com base nestas regras que as pendências nascidas nestas sociedades tentam ser

debeladas;

comportamentos são regulados por regras, a vida social é organizada segundo normas socialmente aceitas. O acervo etnográfico de todas as sociedades conhecidas está aí para dar testemunho disso. Mas como reconheceu o antropólogo Louis Assier -Andrieu a 11

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiv a. IN Sociologia e Antropologia. Tradução: Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify , 2003.

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“questão se complica se, da própria categoria do direito, faz-se um objeto da reflexão”1 2 . Em havendo uma diferenciação social onde uma ordem de regras, ritos e de coercibilidade se separam do corpo social, voltando-se para ele em sua externalidade – isto é, que haja direito – não o podemos atribuir a algo natural ou a uma constante transcultural. Partimos aqui da afirmação bastante fértil, e a nosso juízo correta, do jurista russo Evgeny Pachukanis, para quem “a gênese da forma jurídica está por se encontrar nas relações de troca” 1 3 , e além disso “o princípio da subjetividade jurídica e os esquemas nele contidos, que para a jurisprudência burguesa surgem como esquemas a priori da vontade humana, derivam necessariamente e absolutamente das condições da economia mercantil e monetária” 1 4 . Dito na perspectiva aberta por Karatani: a forma jurídica está indissociavelmente ligada ao modo de intercâmbio C.

1. As origens do estado: a ascensão do modo de intercâmbio B

As concepções correntes sobre a origem do estado, sobretudo entre arqueólogos, cientistas políticos e antropólogos se dividem entre aquelas que se chamam “pristinas” e as “competitivas”. As concepções pristinas tentam encontrar um estado primevo, originário, enquanto que as concepções competitivas encontram nas relações de disputa entre formações com características de estado alguns dos traços fundamentais deste. As concepções pristinas ainda não encontraram um “estado originário” empírico e podem apenas especular sobre este suposto estado original; as concepções competitivas, por sua vez, partem de diversos exemplos empíricos, mas apenas quando renunciam à tentativa de buscar o estado originário 1 5 . A razão para a superioridade, em termos empíricos, das concepções competitivas é que o estado nunca emergiu de dentro para fora das formações tribais, mas sempre a partir de relações e impasses que provinham, ASSIER-ANDRIEU, Louis. O direito nas sociedades humanas. Tradução: Maria Ermantina Galv ão. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 89. 1 3 PASUKANIS, Evgeny. A Teoria Geral do Direito e o Marxismo . Tradução Paulo Bessa. Rio de Janeiro: Renovar, 1 988, p. 8. A partir daqui refere nciada como TGDM, seguido do número da página. 1 4TGDM, p. 6. 1 5 Cf. FUKUYAMA, Francis. Origins of Political Order. (From prehuman times to the French revolution). New York: Farrar, Straus and Giroux, 2011, p. 81. 12

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ao mesmo tempo, de dentro para fora e de fora para dentro das formações tribais e clânicas. As formações pré-estatais são fundadas no modo de intercâmbio A, que se encontra sempre baseado na dádiva e na reciprocidade. Apenas quando circunstâncias externas a essas formações as premem é que vemos a ascensão de formações com características estatais. Nas palavras de Karatani:

A mudança de uma condição pré-estatal para o estado não pode ser entendida se limitarmos nossas considerações ao interior de uma única comunidade. Por exemplo, alguns veem o estado como um poder público independente cujo propósito é resolver os conflitos de classe que surgem no interior de uma comunidade. Em outra visão, é o órgão (meios) pelo qual as classes dominantes controlam as classes dominadas. Marx e Engels propuseram as duas visões. Ambas as visões enxergam o estado como algo que emerge por intermédio de desenvolvimentos internos a uma mesma comunidade. Mas o estado não poderia ter surgido do desenvolvimento de uma mesma comunidade: uma comunidade fundada no princípio da reciprocidade é capaz de resolver qualquer contradição surgida em seu interior por intermédio da dádiva e da redistribuição. Além disso, em casos de estados-chefaturas [chiefdom states] encontramos hierarquias e relações de vassalagem baseadas em clientelismo (relações patrão-cliente), mas estas são relações fundamentalmente de equidade (reciprocidade) e por isso são incapazes de se transformar no tipo de relações hierárquicas e de vassalagem que caracterizam os estados burocráticos. Um soberano possuindo autoridade absoluta jamais poderia nascer deste tipo de situação1 6.

Isto nos leva a pensar, em seguida, que se não foi por uma “necessidade interna” que certos tipos de comunidades (tribos, clãs, chefaturas) se transformaram em estados, isto se deu certamente por causas externas. Assim, alguns propuseram a conquista como um fator de emergência do estado. Engels chegou a aventar essa possibilidade a respeito do domínio romano sobre as tribos germânicas, “Mas a conquista não leva imediatamente ao surgimento do estado. Em muitos casos, a conquista não leva a nada mais do que atos isolados de pilhagem” 1 7 . Se não é devido a razões externas e também não é devido a razões apenas internas, como se originaram os estados arcaicos?

1 6TSWH, 1 7 TSWH,

p. 69. p. 7 0.

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...esta antinomia pode ser resolvida quando nós vemos que a origem do estado jaz em um tipo de intercâmbio mantido entre comunidades dominadas e dominantes. Este intercâmbio toma a forma do lado conquistador oferecendo proteção ao derrotado em pagamento pela sua subserviência, assim como redistribuição em pagamento pelo tributo oferecido. Quando isto acontece, a realidade da conquista é recalcada por ambas as partes.1 8

Mesmo quando é o caso de um chefe ou líder de um clã se tornar o soberano, isto se dá em caso de constante estado bélico, por exemplo, quando uma certa comunidade é constantemente acossada por possíveis invasores e conquistadores. “Por conseguinte, mesmo quando uma comunidade parece ter se transformado a si mesma em um estado desde dentro, relações externas com outros estados sempre formarão o plano de fundo” 1 9 . Quando os estados emergem por intermédio da competição e para competirem entre si há uma profunda transformação nas comunidades afetadas por esta emergência. Do lado das comunidades dominantes, há uma forte centralização do poder. Os diversos poderes intermediários são gradativamente sobrepujados e uma hierarquia cada vez mais ordenada aparece; os poderes da vingança privada são mais e mais limitados 2 0 , o soberano centraliza poderes e é por intermédio destes poderes que os intercâmbios sociais se dão – isto é, os modos de intercâmbio A, C e D ficam submetidos ao modo de intercâmbio B. Do lado das comunidades vencidas, por seu turno, há uma reorganização destas e a transformação delas em comunidades agrárias, como se a comunidade agrária fosse uma “extensão” da organização tribal/clânica. “Por esta razão”, escreve Karatani, “Marx viu o “modo asiático de produção” e a comunidade agrária como o primeiro modo a se desenvolver das sociedades primitivas (sociedade de clãs); ele então tentou usar isto para explica o estado asiático”. Karatani cita então a seguinte passagem de O Capital:

O organismo produtivo simples dessas comunidades autossuficientes, que se reproduzem constantemente da mesma forma e, se forem 1 8TSWH,

p. 7 0. p. 7 0. 20 Veremos nov amente este aspecto quando mais adiante tratarmos das origens do direito. 1 9TSWH,

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destruídas acidentalmente, são de novo reconstruídas no mesmo lugar, com o mesmo nome, oferece a chave para o segredo da imutabilidade de sociedades asiáticas que contrastam de maneira tão impressionante com a constante dissolução e reconstrução dos Estados asiáticos e com as incessantes mudanças de dinastias. A estrutura dos elementos econômicos fundamentais da sociedade não é atingida pelas tormentas desencadeadas no céu político21 .

Para o filósofo japonês, o modo como Marx expõe a relação entre o intercâmbio social e as formas do estado aqui podem levar a equívocos: “O modo comunitário asiático apareceu apenas depois do estabelecimento do estado asiático despótico e não o inverso” 2 2 . Marx aqui, como adverte Karatani, parece equiparar “economia” a produção, e neste ensejo, deixa de perceber o sentido mais concreto da relação entre o estado despótico asiático e suas formas de intercâmbio social. O processo de formação destes estados ditos “asiáticos”, que observamos na Mesopotâmia, Índia, China, Egito, etc., torna visível historicamente o estado na qualidade de realização da predominância do modo de intercâmbio B. O produtivismo exacerbado pode confundir-nos do fato de que não se pode dizer dos estados despóticos asiáticos que estes sejam apenas um “sistema escravocrata”. A distinção entre estes e as cidades-estado na Antiguidade clássica – em especial as da Grécia e de Roma – são marcantes e demandam também uma explicação 2 3 : nestas outras formações sociais persistia o modo de intercâmbio A de maneira relativamente bem acentuada, o que não permitia a centralização do poder que vemos nos estados asiáticos 2 4 . Do ponto de vista dos modos de intercâmbio, portanto, as cidades-estado gregas e romanas não estavam por ventura mais “adiantadas” do que Egito, China ou Mesopotâmia, mas sim mais “atrasadas”. Se ambas as formações sociais mantinham a prática da escravidão, esta exercia um papel muito distinto em cada uma delas:

Sob o estado asiático, as massas não eram nem cruelmente abusadas Karatani cita apenas um trecho da passagem do parágrafo que aqui cito inteiro para melhor compreensão, Cf. MARX, Karl. O Capital. Tradução: Regis Barbosa e Flav io R. Kothe. São Paulo: Abril Cultural, 1996, p. 47 2-47 3. 22TSWH, p. 7 4. 23 Como bem diz Karatani, “Estes problemas não podem ser explanados por intermédio dos modos de produção” TSWH, p. 21 . 24TSWH, p. 7 8. 21

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nem negligenciadas – quando muito, elas eram cuidadosamente salvaguardadas. Por exemplo, como notou John Maynard Keynes, a construção das pirâmides foi levada adiante como uma medida para lidar com o desemprego como uma política de estado para gerar demanda efetiva25. Neste sentido, o estado despótico (sistema despótico patrimonial) era um tipo de estado de bem-estar social.26

Em suma, “nós deveríamos considerar o estado despótico que emergiu na Ásia não simplesmente como um estágio primitivo mas antes como uma entidade que aperfeiçoou (em termos formais) o estado supranacional (isto é, o império)” 2 7 e que seria retomado apenas mais tarde no Império Romano.

2- Origens do direito: o latente modo de intercâmbio C

Como já frisamos, em toda formação social os diferentes modos de intercâmbio coexistem em “complexas combinações”. As primeiras normas jurídicas com generalidade de destinatário vieram juntas com as formações socia is que aqui se denominam de “estados despóticos asiáticos”, como já tivemos uma oportunidade de notar 2 8 . O princípio da “Lei de Talião”, ao contrário do pode parecer à primeira vista, é o oposto da vingança privada. Ao contrário da reciprocidade, a Lei de T alião estabelece uma autoridade, um terceiro em relação às partes em litígio, que se encarregará de executar a norma de restituição justa das penas em relação às ofensas. As normas, seu entendimento e sua aplicação ficavam a cargo da burocracia patrimonial do déspota, e eram um dos princípios da centralização de seu poder, além da religião, da língua e do A passagem que Karatani faz referência aqui parece ser a seguinte: “O antigo Egito tinha a dupla vantagem, que sem dúvida ex plica a sua fabulosa riqueza, de possuir duas espécies de ativ idades: a construção de pirâmides e a extração de metais preciosos, cujos frutos, pelo fato de não servirem às necessidades do homem pelo seu consumo, não se av iltavam por serem abundantes” KEY NES, John May nard. A Teoria Geral do Emprego, do Juro e da Moeda. Tradução: Mário R. da Cruz. São Paulo: Atlas, 1 982, p. 112. Marx também falav a na função dos déspotas asiáticos de “prover as obras públicas” em MARX, Karl. A dominação britânica na Índia. Apud SOFRI, Gianni. O modo de produção asiático. História de uma controvérsia marxista.Tradução: Nice Rissone. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1 977 , p. 28. 26TSWH, p. 7 6. 27 TSWH, p. 7 8. 28 Cf. NASCIMENTO, Joelton. História e metafísica da forma jurídica. IN Avesso do Capital. Ensaios sobre o direito e a crítica da economia política. São Paulo: PerSe, 2012, p. 66 e ss. 25

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território. Babilônia, Assíria, China, Egito, Índia, etc. Em todas estas formações sociais uma organização burocrática manejou certos dispositivos normativos rudimentares com certa generalidade formal de destinatário e de conteúdo. No mesmo sentido, estas formações sociais mantiveram redes de trocas mercantis, algumas vezes de pronunciada importância;

entretanto,

estas

eram

rigidamente

controladas

pelo

déspota

patrimonial 2 9 . Aquilo que afirmou Pachukanis, nos anos 2o do século XX ainda permanece correto: nas sociedades antigas “só com grande dificuldade se consegue extrair o direito dentre a massa de fenômenos sociais de caráter normativo” 3 0 e no caso dos estados asiáticos, esta massa se totaliza a partir do princípio do modo de intercâmbio B, na figura do déspota patrimonialista 3 1 . Assim como fica latente nestas formações sociais o modo de intercâmbio C, isto é, a troca mercantil, também a forma jurídica como tal, que o mesmo Pachukanis afirmou como ligada essencialmente àquela, permanece submissa e latente. Qual é o grande problema do “produtivismo” a este respeito? A nosso juízo, o maior problema é dar primazia às técnicas de produção como chaves de explicação para o estado, mas não das formas do estado como explicação para as técnicas de produção. Isto leva adiante a equivocada tese de que a nação e o estado são “superestruturas” da base econômica, e que esta em geral se toma apenas como sendo a produção. Esta tendência aparece no debate suscitado pela caracterização de Karl Wittfogel sobre estas formações como “sociedades hidráulicas” 3 2 . Alguns criticaram a relação estabelecida por Wittfogel entre o despotismo patrimonial asiático e as obras de irrigação complexas em larga escala exigidas para a edificação destas formações sociais; alguns exemplos, como A este respeito é importante lembrar que hav ia uma lei sumeriana que p roibia com a morte o comércio sem autorização do déspota. Cf. NASCIMENTO, Joelton. História e Metafísica da forma jurídica, p. 77 . 30 TGDM, p. 23 31 Tomemos como exemplo o caso da China. Como nos ensinou Roberto Mangabeira Unger, “... não se deve permitir que as analogias obscureçam o fato de que o processo chinês foi muito mais implacável que o do Ocidente; permaneceu relativamente isento dos tipos de limitações jurídicas que tiveram papel tão importante na conformação do governo ocidental. Não hav ia distinções claras entre ordenações administrativas e preceitos legais; não hav ia a separação entre uma profissão jurídica definida e as equipes de governantes; nenhuma forma peculiar de discurso jurídico se destacav a de outros tipos de argumento moral ou político” UNGER, Roberto Mangabeira. O direito nas sociedades modernas. Contribuição à Crítica da Teoria Social. Tradução: Roberto Raposo. Rio de Janeiro: Civ ilização Brasileira, 197 9, p. 110. 32 WITTFOGEL, Karl. Oriental Despotism – A comparative study of total po wer. New Haven/London: Yale University Press, 1 963.

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os da Rússia e da Mongólia desafiam esta relação. Isto nos mostra que esta precisa ser melhor pensada, e matizada. A tese de Karatani é a seguinte:

A civilização realizada pelas sociedades hidráulicas não era apenas caracterizada por tecnologias para dominar a natureza; mais do que isso, consistia em tecnologias para governar pessoas – nomeadamente, os aparatos de estado, exércitos permanentes, sistemas burocráticos, linguagem escrita e redes de comunicação. Consequentemente, esta civilização poderia ser transmitida até mesmo para regiões que não possuíam agricultura de irrigação, por exemplo, povos nômades como os mongóis. Tecnologias para governar pessoas precederam as tecnologias para governar a natureza33.

Como parte do aparato do estado, as regras jurídicas rudimentares do despotismo asiático eram tecnologias para governar pessoas e parte do arsenal patrimonial do déspota.

3- A ascensão do dinheiro: a lenta e acidentada emergência do modo de intercâmbio C

Na história das formações sociais e de suas relações sistemáticas – no que Karatani chama de “sistema-mundo” na esteira de Wallerstein e outros teóricos – até a entrada da modernidade, observamos distintas formas de relações entre os modos de intercâmbio, entretanto, com a dominância do modo de intercâmbio B. A moeda cunhada surgiu na Jônia, colônia grega da Ásia Menor em torno de 630 a. C 3 4 . Este surgimento acompanha o espraiamento de uma intensa atividade de comércio mediado por propriedade privada tal qual não havia sido permitido no despotismo asiático 3 5 . Com o surgimento da moeda cunhada ocorre uma mudança

33TSWH,

p. 7 9. Para um estudo mais detalhado sobre a origem da cunhagem da moeda na Grécia , Cf. DAVIES, Gly n. The History of Money. From Ancient Times to present day. Cardiff: Univ ersity of Yale Press, 2002, p. 61 e ss., que também fala nesta cunhagem entre 640 e 630 a. C. 35Segundo o que concluímos em NASCIMENTO, Joelton. op. cit., p. 77 -7 8. 34

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profunda no modo como a troca mercantil interferiu no metabolismo social 3 6 . Com a emergência do dinheiro, o modo de intercâmbio C produz um novo modo de se acumular riqueza e poder. Muito embora o dinheiro e as trocas mercantis tenham introduzido este novo modo de subordinação, não mais pelo medo e pela força bruta, mas pelo mútuo acordo mediado pela forma

do valor, este

surgiu no seio de

formações

sociais

predominantemente estatais, fundadas no modo de intercâmbio B, isto é, na pilhagem e na redistribuição. Uma “simbiose” que ainda veremos em ação mesmo quando a modernidade inaugurar a predominância do modo de intercâmbio C, a saber, quando do capital-estado: “... como a troca mercantil requer a existência do estado, assim também a perpetuação do estado requer a existência do dinheiro” 3 7 . Em toda a Antiguidade, a moeda utilizada nas trocas internas não era a mesma que se utilizava em trocas externas, com comunidades exteriores. A primeira exceção a esta regra geral foi a Grécia: ali as trocas mercantis deitaram raízes mais profundas na estrutura societal. Ao contrário dos estados asiáticos, a Grécia, porque nã o tinha uma estrutura burocrática e uma ordem centralizada capaz de regular os preços e as redes de troca mercantil em seu território, deixou tais regulações a cargo dos mercados que então emergiam3 8 . O resultado foram severos danos sociais. O exemplo de Anselm Jappe a este respeito é esclarecedor: As considerações de Karatani se encaix am adequadamente no quadro traçado por Anselm Jappe, senão vejamos: “É impossível datar o nascimento da mercadoria: uma produção especializada, destinada à troca, é algo que existe já, a título excepcional, em certas sociedades pré -históricas. Ex istia um comércio florescente nas primeiras grandes civilizações (Próx imo Oriente, Egipto, China) e utilizavam-se aí formas de dinheiro – ouro, gado, conchas – enquanto mediação entre as mercadorias. Nas cidades podiam também encontrar-se artesãos produzindo directamente para a 'ex portação'. Mas tudo isso não passava de uma troca mais sofisticada no interior de uma sociedade essencialmente agrícola baseada no trabalho serv il e organizada por um Estado despótico. O preço das mercadorias não dependia do seu valor trabalho, mas sim da sua raridade e da dificuldade em fazê -las chegar ao seu destino. Numa tal situação, não pode falar-se nem em mercados nem em concorrência. Ocorreu uma grande transformação deste estado de coisas com o aparecimento da primeira moeda cunhada. Este acontecimento fundamental pode datar -se e localizar-se com bastante precisão: teve lugar por volta do ano 630 a. C. nas cidades gregas da Jónia, na Ásia Menor. Com a moeda cunhada tornav a -se possível a passagem àquilo a que Marx chama a 'terceira determinação' do dinheiro: esta determinação alcança -se quando a separação entre a venda e a compra permite acumular dinheiro e fazer desta acumulação o verdadeiro objectivo das operações comerciais (que é aquilo que efectivamente se trata nestas circunstâncias). Sob esta forma, o dinheiro deu um grande impulso à troca de mercadori as” JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercadoria – Por uma nova crítica do valor. Tradução: José Miranda Justo. Lisboa: Antígona, 2006, p. 1 83-1 84. (2º grifo nosso) 37 TSWH, p. 83. Voltaremos a este ponto. 38TSWH, p. 101. 36

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O primeiro caso bem conhecido desse aparecimento da “mão invisível” produziu-se na Ática, no início do século VI a. C.: tendo sucedido que a exploração do olival se tornara mais rentável do que a produção de trigo, a cultura das oliveiras cresceu ao ponto de pôr em risco a existência dos pequenos camponeses. A partir deste momento, o metabolismo com a natureza passava a depender visivelmente da sua metamorfose formal em valor. E contudo, nenhuma instituição da comunidade havia tomado tal decisão. A decisão apresentava-se como resultado da preponderância do dinheiro, ganho com a exportação do azeite, sobre a produção destinada ao consumo local, que produzia menos “valor”. É sabido que a grave tensão social daí resultante conduziu a que em Atenas se estabelecesse um “compromisso de classes”, introduzido por Sólon, e que permitiu que a cidade pudesse progredir no caminho do valor tornandose o exemplo mais completo de uma sociedade baseada na mercadoria antes do Renascimento (dentro dos limites que referimos e – não o esqueçamos – numa cidade com cerca de cinquenta mil habitantes).39

Karatani observa estes mesmos danos do seguinte modo:

A penetração da economia de mercado danificou a sociedade civil (a comunidade dominante) das cidades-estado gregas. Este desenvolvimento exacerbou disparidades econômicas e levaram à generalização de contratos de servidão entre os cidadãos. Esta não foi uma crise para a comunidade da pólis: também significou uma crise militar de vida e morte pelo estado naquelas pólis que se apoiavam em um serviço militar universal no qual todos deveriam prover suas próprias armas. As pólis gregas tentaram diversos tipos de políticas para se opor a isto. Um extremo foi representado por Esparta, que baniu o comércio e buscava uma economia de auto-suficiência. Isto se tornou possível pela conquista de outra tribo (Messênia) e a conversão de seu povo em servos camponeses (hilotas), mas isto, por sua vez, tornou inevitável a ascensão de uma ordem militarista, constantemente em guarda contra possíveis revoltas escravas. O outro extremo foi representado por Atenas. Ela não rejeitou a economia de mercado, mas ao invés disso perseguiu medidas para resolver os conflitos de classe que surgiram entre os cidadãos: a democracia.40

Isto tudo nos mostra, segundo Karatani, que a solução dada pelos atenienses foi

39 40

JAPPE, Anselm. As Aventuras da Mercado ria, p. 1 85. TSWH, p. 102.

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diferente do despotismo asiático. Este último estava fundado na coleta e na centralização de tributos, enquanto que a Atenas precisou reforçar ainda mais a prática da escravidão para “liberar” os cidadãos para a coisa pública e para a atividade militar. Se as formações sociais mediterrâneas eram mais “atrasadas” do ponto de vista da organização do estado (não possuíam, por exemplo, a classe de burocratas e a centralização estatal do despotismo asiático), possuíam mais elaborados dispositivos jurídicos. Como explicar isso? A nosso juízo, tanto por razões do “governo das pessoas” quanto das razões advindas do “governo da natureza”, o modo de intercâmbio B, ainda que tenha permanecido dominante, tornou-se menos atuante e o modo de intercâmbio C ascendeu em importância 4 1 na Antiguidade clássica. A riqueza não mais se concentrava patrimonialmente em um déspota, mas em uma classe de proprietários de riqueza também monetária. O dinheiro inaugura, então a ascensão de um outro poder, o poder gerado pelo modo de intercâmbio C.

4- O direito greco-romano: rumo ao império-mundo

41

Karatani tenta captar a complex idade destas circunstâncias ao se perguntar: por que a moeda cunhada surgiu precisamente na Jônia, uma colônia grega e não em Atenas? “As novas comunidades que os colonos estabeleceram neste pro cesso permaneceram indendentes dos clãs e das pólis anteriores. Ev entualmente, os colonos estabeleceram v árias centenas de colônias desta maneira. Suas colônias não eram, todavia, inteiramente únicas; elas compartilhavam muito em comum com as sociedades de clãs, tais como as descritas por Lewis Henry Morgan nos seguintes termos: 'Quando uma v ila se torna superpopulosa numericamente, uma colônia é aberta acima ou abaixo no mesmo fluxo e começa uma nova vila. Repetida em interv alos de tempo longos tais v ilas apareceriam, uma independente em relação à outra em um corpo auto -governáv el; contudo unidas em uma liga ou confederação para mútua proteção'. Similarmente, ainda que elas tenham continuado em luta entre si, as pólis gregas formav am uma ampla confederação, simbolizada pelos Jogos Olímpicos. V isto deste modo, parece que as distintas qualidades da Grécia podem ser explicadas como resultados de resquícios v indos da sociedade de clãs. Mas nós também temos que ter em mente que os colonos das pólis não eram simples extensão das prévias sociedades de clãs: eles emergiram de uma rejeição a estas. Em geral, as pólis eram estabelecidas por intermédio de pactos firmados livremente por escolhas indiv iduais. Os princípios destas pólis, de acordo com isto, eram distintos dos daquelas que emergiram como ex tensão da comunidade de clãs, como Atenas e Esparta; nós encontramos estes princípios estabelecidos em Mileto e nas outras cidades da Jônia, tanto quanto nas cidades que floresceram enquanto os jônios buscavam colonizações posteriores. Se estas pólis pareciam lembrar a sociedade de clãs, isto não se deve à persistência da forma anterior nestas, mas antes no 'retorno' dela em uma dimensão superior.” TSWH, p. 112 -113. Ora, embora Karatani não o diga nomeadamente, a democracia grega se explica como uma emergência – temporária e limitada – do modo de intercâmbio D.

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As primeiras tentativas de codificar e sistematizar, ainda que rudimentarmente, um corpo de leis na Grécia antiga que conhecemos foi em 650 a.C. 4 2 com Zaleuco de Locros; uma tentativa semelhante de codificação aparece na Catânia em 630 a. C., e a seguir as tentativas bastante conhecidas de Sólon e Drácon 4 3 . As abordagens mais usuais e evolucionistas dos dispos itivos jurídicos gregos – realizadas sobretudo por juristas – acentuam as características privatistas, fundadas em clãs e chefaturas, e inerentemente instáveis das instituições e ritos sociais, que passam a dar lugar s instituições mais centralizadas, organizadas e cívicas; uma ordem racional que organiza o caos da vingança e da luta armada de todos contra todos. Estudos mais recentes, entretanto, já colocaram estas abordagens em cheque. Em primeiro lugar, e de acordo com o desenho histórico-estrutural de Karatani, as disputas fundadas no modo de intercâmbio A, isto é, na dádiva e na reciprocidade, não são “instáveis” ou mesmo “arbitrárias” como pensam os juristas em geral, mas sim orientadas pela reciprocidade e, por conseguinte, baseadas na vingança privada, de um lado, e na dádiva, por outro. Um importante estudo de David Cohen já nos mostrou o reducionismo destas abordagens que ele chama de “evolucionistas” e “funcionalistas” 4 4 . Há alguns escritos que cumprem a tarefa de fornecer um bom panorama das realizações dos gregos, e em especial dos atenienses, no campo dos dispositivos e processos jurídicos 4 5 . Aqui colocamos outra questão: por que os romanos, depois dos gregos, desenvolveram dispositivos e materiais jurídicos tão mais avançados que todas as formações sociais até então? Por que o direito romano se desenvolveu tão mais do que em toda a Grécia? 4 6 Como escreve John Gilissen: “Enfim Roma, na época da República e sobretudo do Império, fez a síntese de tudo o que os outros nos tinha trazido”. Para este historiador do direito “como os egípcios, os romanos realizaram, nos primeiros séculos de nossa era, um sistema jurídico que atingiu um nível inigualável até 42Lembremos:

isto foi apenas dez anos antes do início da cunhagem de moedas. SOUZA, Raquel de. O direito grego antigo. IN WOLKMER, Antonio Carlos. Fundamentos de História do Direito. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey , 2006. 44COHEN, Dav id. Law, V iolence and Community in Classical Athens. Cambridge: Cambridge University Press, 2006. 45 Cf. neste sentido, por exemplo, SOUZA, Raquel de. O direito grego antigo. op. cit. e GILI SSEN, John. Introdução Histórica ao Direito . Tradução: Antonio M. e Manoel M. Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. 46Abordamos esta questão com mais dedicação em NASCIMENTO, Joelton. op. cit. p. 83 e ss, e consideramos que nossa análise ali se coaduna com a que Karatani propõe, em linhas gerais. 43

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então. Muito mais que os mesopotâmios, eles tiveram de formular as regras de seu direito e redigiram vastos livros de direito”. Enfim “os romanos criaram uma ciência do direito; o que os jurisconsultos romanos dos séculos II e III de nossa era escreveram, serve ainda hoje de base a uma importante parte de nosso sistema jurídico” 4 7 . Do ponto de vista dos modos de intercâmbio, dizemos que como Roma não foi capaz de resolver os dilaceramentos sociais causados pelo poder corrosivo do dinheiro e do mercado incipiente internamente, circunscrevendo o espaço interno da cidadania política e da resolução “isegórica” (Arendt) dos conflitos, como o fez as pólis gregas, buscando nas conquistas externas um possível modo de resolução. Diz-nos Karatani

Na Grécia, o direito à cidadania era estritamente limitado: a cidadania era negada até para estrangeiros residentes cujas famílias tinham vivido ali por gerações e para os gregos que viviam nas colônias. Além disso, bem poucos escravos eram libertos. Como resultado deste tipo de laço comunitário excludente, a pólis grega não tinha mecanismos para anexar ou absorver outras comunidades. Em contraste, Roma, com sua postura flexível em relação às comunidades externas, estava apta a edificar um império mundial. É importante notar que o Império Romano foi formado por intermédio da expansão da pólis e não apenas da conquista militar. Roma primeiro garantiu cidadania às pólis do arquipélago italiano e a seguir continua a garantir cidadania aos líderes das regiões que eram conquistadas. Roma empregou uma estratégia de dividir-paraconquistar que criou disparidades no tratamento das terras conquistadas, lançando fora, assim, a possibilidade de surgimento de alianças e resistência entre estas.48

O império romano, portanto, fortaleceu ainda mais uma predominância do modo de intercâmbio B, em detrimento dos elementos do modo de intercâmbio A que permaneciam expressivamente atuantes na formação social grega. Quando em uma formação social se assiste à intensificação do modo de intercâmbio C vemos emergir dispositivos de tipo jurídico, seja sob a predominância do modo de intercâmbio B (Império Romano) seja sob a predominância do próprio modo de intercâmbio C (capitalismo). O que explica a distinção entre os dispositivos jurídicos gregos e os romanos é que dentre estes últimos o modo de intercâmbio A perdeu sua força. Segundo 47

GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 52. p. 120.

48TSWH,

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Karatani:

Neste sentido, o Império Romano exercia um governo sobre múltiplos povos por meio do império da lei, o que amiúde se diz representar a maior diferença em relação ao Primeiro Império Persa. Todavia, na realidade o Império Romano aperfeiçoou a forma do estado tributário (litúrgico) que era comum nos impérios asiáticos. A economia-mundo que foi aberta pela Grécia foi cancelada no último período do Império Romano.49

Quando Pachukanis afirma que “a gênese da forma jurídica está por ser encontrada nas relações de troca” 5 0 ele não faz mais do que formular a compreensão de Marx a este respeito; e esta compreensão aparece de modo cristalino quando Marx responde à questão que colocamos acima sobre o direito romano, nos Grundrisse (18571858):

Por isso, no direito romano o servus é corretamente determinado como aquele que não pode adquirir nada para si pela troca (ver Institut51). Por essa razão, é igualmente claro que esse direito, embora corresponda a uma situação social na qual a troca não estava de modo algum desenvolvida, pôde, entretanto, na medida em que estava desenvolvido em determinado círculo, desenvolver as determinações da pessoa jurídica, precisamente as do indivíduo da troca, e antecipar, assim, o direito da propriedade industrial (em suas determinações fundamentais); mas, sobretudo, teve de se impor como o direito da sociedade burguesa nascente perante a Idade Média. Mas seu próprio desenvolvimento coincide completamente com a dissolução da comunidade romana.52

Na Contribuição à Crítica da Economia Política (1859) ele volta ao tema:

49TSWH,

p. 120. p. 8. 51 É importante repassar a nota da tradução brasileira: “Marx refere -se aqui presumivelmente às seguintes passagens do Corpus iuris civilis [Corpo de direito civ il]: Institutas, I, 8, 1 : “quodcumque per servum adquiritur, id domino adquiritur” [sempre o que é adquirido por um escravo é adquirido para seu senhor]. Ibidem, II, 9, 3: Ipse enim servus, qui in potestae alterius est, nihil suum habere potest” [Pois o próprio escravo, que está em poder de um outro, não pode possuir propriedade]”, Cf. a nota seguinte. 52MARX, Karl. Grundrisse. Tradução: Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011, 1 881 89. 50 TGDM,

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...dado o desenvolvimento das diversas fases da circulação simples na Antigüidade, pelo menos entre os homens livres, está explicado por que razão em Roma – e especialmente na Roma Imperial, cuja história é precisamente a da dissolução da comunidade antiga – foram desenvolvidas as determinações da pessoa jurídica, sujeito do processo de troca; assim se explica que o direito da sociedade burguesa aí tenha sido elaborado nas suas determinações essenciais e que tenha sido necessário, sobretudo em relação à Idade Média, defendê-lo como direito da sociedade industrial em formação.53

O direito romano se desenvolve fortemente na última fase do Império, quando os laços comunitários e tradicionais se evanesciam. Este foi auge e o máximo de realizações no “campo jurídico” que uma formação social foi capaz de realizar estando sob a predominância do modo de intercâmbio B.

5- A realização histórica da ideia54 de direito: a dominância do modo de intercâmbio C

Como sabemos, o desenvolvimento das

trocas mercantis está ligado

indissociavelmente à própria forma do dinheiro. Sendo assim, é esclarecedor ler o que escreveu o historiador Jacques Le Goff sobre o papel desempenhado pelo dinheiro na Idade Média. Segundo Le Goff:

A Idade Média, quando se trata de dinheiro, representa na longa duração da história uma fase de regressão. O dinheiro, nela, é menos importante, está menos presente do que no Império Romano, e sobretudo muito menos importante do que viria a ser a partir do século XVI, e particularmente do XVIII. Se o dinheiro é uma realidade com a qual a sociedade deve contar mais e mais e que começa a ter aspectos que assumirá na época moderna, os homens da Idade Média, sem exclusão dos comerciantes, dos clérigos e dos teólogos, jamais tiveram uma concepção clara e unificada do sentido que damos hoje a esse termo.55 MARX, Karl. Contribuição à Crítica da Economia Política. 2.ª ed. Tradução: Maria Helena Barreiro Alves. São Paulo: Martins Fontes, 1 981, p. 281 -282. 54 “Ideia” aqui tem o mesmo que encontramos na filosofia do direito de Hegel: o conceito mais a s ua realização. 55 LE GOFF, Jacques. A Idade Média e o Dinheiro. Tradução: Marcos de Castro. Rio de Janeiro: Civ ilização Brasileira, 2014, p. 10.

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Não há, segundo Le Goff, sequer uma palavra na Idade Média para designar o dinheiro tal como o entendemos hoje: “o dinheiro não é personagem de primeiro plano na época medieval, nem do ponto de vista econômico, nem do ponto de vista político, nem do ponto de vista psicológico e ético” 5 6 . Segundo ele, isto se aplica em especial ao longo período que vai do século IV, época de Constantino até o século XII, época de São Francisco de Assis, quando o dinheiro volta a fazer seu lento retorno à cena na Europa 5 7 . Neste sentido, não deve surpreender o fato de que esta fase da Idade Média não tenha assistido a abrangentes codificações legais. Também do ponto de vista do “direito” 5 8 , do século IV ao XII houve uma profunda regressão. John Gilissen nota que nesse período encontramos uma miríade de formas de regulação na Europa, que ele listou da seguinte forma: 1) direito muçulmano, no sudoeste; 2) direito bizantino, no sudeste, que conservava alguns traços do direito romano; 3) alguns resquícios do direito romano, que ainda sobreviveram em certas regiões entre os século VI e VIII; 4) direitos germânicos de povos nômades, que depois foram sedentarizados, dentre os quais os Visigodos, os Francos, os Lombardos, os Saxões, os Anglos, os Normandos, etc. 5) direitos eslavos e celtas, no leste; 6) direito do Império Carolíngio, entre os séculos VI e IX e 7) o direito canônico. 5 9 Entretanto, não havia nenhuma sistematização ou desenvolvimentos

dos

documentos

e

os

costumes,

que

constantemente

se

entrecruzavam e se opunham. O historiador do direito privado Van Caenegem lamenta a regressão que esta miríade de regulações representou em face do direito romano imperial, com certa melancolia:

O desaparecimento do Estado romano e a influência crescente dos povos germânicos foram decisivos para evolução do direito romano. A velha ordem jurídica romana não desaparecera inteiramente, mas, com o declínio das instituições da Antiguidade, perdera sua posição de supremacia. As principais mudanças foram as seguintes: sob o império, LE GOFF, Jacques. O Idade Média e o Dinheiro , p. 9. LE GOFF, Jacques. op. cit., p. 11 . 58 Dizemos “direito” entre aspas pois aqui não se trata de um ponto de v ista propriamente jurídico antes da modernidade capitalista. Isto posto e sabido, é um modo de dizer que não causa prejuízo. 59 GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito, p. 129-130. 56

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toda população estava sujeita ao direito romano, mas só agora os romani, descendentes das velhas populações nativas, estavam sujeitas a ele. As tribos germânicas conservaram seu próprio direito consuetudinário. Neste período, o direito romano tornou-se cada vez mais distante de seu modelo clássico, devido ao desaparecimento dos principais componentes da antiga cultura jurídica, ou seja: a tradição das grandes escolas de direito, o saber dos juristas, a legislação imperial e a jurisprudência. Além disso, o Ocidente não permanecia mais em contato com o Oriente grego, que em sua época contribuíra muito para o desenvolvimento do direito clássico romano. A essas circunstâncias, devemos acrescentar o empobrecimento intelectual do mundo ocidental. O direito romano estava reduzido a um direito consuetudinário provinciano, o “direito romano vulgar”, que prevalecia na Itália e no Sul da França. O direito vulgar era usado em certa medida nas compilações rudimentares feitas, sob as ordens dos reis germânicos, em benefício de seus súditos romanos. As compilações de Justiniano foram o legado mais importante do direito romano. Mas a obra legislativa de Justiniano não entrara em vigor no Ocidente. E permaneceu desconhecida durante os primeiros séculos da Idade Média, devido ao isolamento do Ocidente e ao fracasso de Justiniano em reconquistar os territórios invadidos pelos germânicos.60

Ele também lamenta a inexistência de uma burocracia judiciária e uma separação de profissionais técnico-jurídicos:

Durante os primeiros séculos da Idade Média, a legislação teve uma importância apenas secundária. A ciência jurídica como tal não existia: não há qualquer sinal de tratados de direito ou de ensino profissional de direito. As coleções de capitulares, que às vezes são encontradas nos próprios manuscritos como textos de leis nacionais, eram escritas para uso de praticantes e não se destinavam à exposição doutrinária através de comentários ou manuais. Alguns rudimentos do pensamento romano eram conhecidos atavés de textos como a lex Romana Visigothorum ou as Etymologiae de Isidoro de Sevilha, uma pequena enciclopédia que destilava o conhecimento da Antiguidade. Mas esses vestígios isolados da antiga cultura jurídica não eram nem estudados, nem analisados. Seja como for, as escolas de direito ou os advogados capazes de realizar um trabalho dessa natureza tinham desaparecido.61

Karatani lembra muitíssimo bem que as trocas mercantis fazem parte das modalidades de intercâmbio social desde priscas eras da humanidade sobre a Terra. VAN CAENEGEM, R. C. Introdução Histórica ao Direito Privado. Tradução: Carlos Eduardo Lima Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 24 -25 61 VAN CAENEGEM, R. C. Introdução Histórica ao Direito Privado , p. 33-34.

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Entretanto, ele também nota que o capital industrial significou um “evento que marcou uma nova época [epocal event] na história mundial” 6 2 que deu às trocas mercantis uma centralidade e um papel estruturador sem nenhum precedente. Foi Marx, segundo Karatani, o primeiro a se dar conta do alcance teórico-crítico desta ruptura de época. Foi Marx quem compreendeu pela primeira vez que é o valor, compreendido na clivagem entre produção e circulação por intermédio das trocas mercantis e do trabalho assalariado, a essência do capitalismo moderno e das transformações históricas que decorriam disto. Senão vejamos. No chamado “capital comercial” o lucro é obtido através da compra por um preço baixo e a venda por um preço alto. Isto só é possív el pois nesses casos, em geral, trata-se de sistemas distintos de valor, em geral espacialmente distantes um do outro, advindos de um comércio de longa distância. O capital industrial, por seu turno, não mais obtém mais-valor do comércio de longa distância e de sistemas de valor separados espacialmente; ao invés disso ele obtém mais-valor por intermédio da distinção sistemática de valor oriunda da clivagem entre circulação e produção. E desse modo:

A afirmação de que o capital industrial obtém seu lucro do processo de produção enquanto que o capital comercial o obtém da circulação é simplesmente equivocado. (...) Como deve ter ficado claro agora, é impossível esclarecer a diferença entre o capital comercial e o industrial se olharmos apenas para o processo da circulação ou da produção63.

Karatani nos mostra que Marx criticou tanto o mercantilismo, que enfatizava o processo de circulação ao tentar entender como ocorre o processo que culminava no lucro, quanto, por outro lado, criticou a economia política clássica e sua ênfase na produção. Ele tira então daí a sua fórmula paradoxal enunciada no primeiro livro de O Capital de que o capital origina-se ao mesmo tempo na circulação e fora dela 6 4 . Este aparente paradoxo só pode ser resolvido quando inserimos na equação uma mercadoria peculiar, única: a força de trabalho. “Diferente do capital comercial, que simplesmente compra e vende mercadorias, o capital industrial viabiliza fábricas, 62

TSWH, p. 1 82. TSWH, p. 1 84-1 85. 64 MARX, Karl. O Capital. op. cit., p. 284. 63

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compra matérias-primas, emprega trabalhadores, e depois vende as mercadorias produzidas” 6 5 . Com isso, o capital industrial, em face das peculiaridades da compra e do uso da força de trabalho, produz uma clivagem sistemática de valor entre a circulação e a produção. Ou, mais detalhadamente:

A emergência do proletariado industrial é simultaneamente a emergência do consumidor que compra as mercadorias necessárias para a vida cotidiana. Esta é a diferença mais importante entre o proletariado industrial, o escravo e o servo. Em uma economia industrial capitalista o consumo dos trabalhadores não pode ser separado do processo de acumulação de capital: é o modo que a força de trabalho é produzida e reproduzida. (...) Neste sentido, o capital industrial acumula por intermédio da margem (mais-valor) gerada quando o capital industrial obtém a cooperação dos trabalhadores pagando-os salários e depois vendendo-os de volta as mercadorias que eles produziram. Graças à existência desta mercadoria única, o mais-valor é produzido para o capital industrial simultaneamente na produção e na circulação. Esta é a solução para a dificuldade que Marx expressou como “hic Rhodus, hic salta!” [aqui está Rodes, salta aqui!]. A natureza epocal do capital industrial jaz em seu estabelecimento de um sistema aparentemente autopoiético no qual as mercadorias produzidas pela mercadoria força de trabalho são então compradas por trabalhadores a fim de reproduzir sua própria força de trabalho. Isto é o que tornou possível a penetração ao redor do globo do princípio do modo de intercâmbio de mercadorias C.66

É nesse sentido, ainda, que Karatani bem estabelece a mercadorização da força do trabalho como “primária” 6 7 ; sem a mercadorização da força de trabalho não há a generalização da troca mercantil. É o trabalho como mercadoria que estabelece a especificidade categorial-social do capitalismo e – dizemos nós – da forma jurídica em seu bojo 6 8 . Um dos maiores méritos da obra recente de Márcio Bilharinho Naves sobre a questão do direito em Marx foi ter compreendido, mais seguramente, o que torna a TSWH, p. 1 86. TSWH, p. 1 88. 67 Primária em relação à mercadorização da terra e do dinheiro, TSWH, p. 200. 68 Para um desenvolv imento deste argumento cf. NASCIMENTO, Joelton. Crítica do valor e crítica do direito. São Paulo: PerSe, 2014, especialmente o capítulo 3. 65

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forma jurídica algo que se realiza plena e efetivamente apenas no capitalismo. Trata-se, segundo ele, de um problema que ele considera o “ponto cego da crítica teórica marxista do direito” 6 9 . Em consonância com a exposição de Karatani que fizemos acima, Naves conclui que:

Procurando avançar nessa terra incógnita podemos afirmar, então, que o que é o específico do direito, seu elemento irredutível, é a equivalência subjetiva como forma abstrata e universal do indivíduo autônomo quando o trabalho é realmente subsumido ao capital. 70

Dito de outro modo:

Descobrimos que o direito é essa forma social específica ao identificarmos nele o elemento irredutível que o distingue de todas as outras formas sociais: a existência de uma subjetividade autônoma na relação de equivalência como resultado de um processo de abstração do trabalho exclusivamente gestado quando o capital subsume realmente o trabalho.71

Fica bem claro, pois, que o direito enquanto forma se apresenta como decalque da clivagem distintiva entre os sistemas de valor compostos pela circulação e pela produção capitalistas. Esta clivagem, por sua vez, só se realiza plenamente na história com a emergência do trabalho abstrato e, a nosso ver, da abstração-trabalho.

6- O direito e a nova crítico-prática de transição para além do capitalestado-nação

Como já o dissemos em outro lugar:

NAV ES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões/Dobra Universitário, 201 4, p. 12. 7 0 NAV ES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx, op. cit., p. 68. (g. do a.) 7 1 NAV ES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx, op. cit., p. 101. (g. do a.) 69

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O direito compreende a fração do estado que se autoconstrói e se dirige normativamente aos seus destinatários com generalidade formal. Esta fração do estado, que abarca em si suas dimensões tanto materiais quanto simbólicas, se apresenta de modo distinto do restante da maquinaria estatal, embora indissociável desta. É com o acúmulo de experiências históricas que o estado assume para si a designação, na modernidade, de “estado de direito”.7 2

Sendo assim, se na argumentação de Karatani, tanto o capital quanto o estadonação aparecem interligados inapelavelmente em um “nó” que ele chamou de “borromeano”, o direito se compreende no interior deste nó, constituindo-o e reforçando-o, apertando capital, estado e nação entre si. Karatani bem percebe o papel de força perniciosa que o estatismo exerceu no pensamento socialista. A rigor, o estatismo chegou a um ponto no qual eclipsou a iniciativa socialista de diversas revoluções. Para o autor, entretanto, não há dúvidas quanto à distinção fundamental entre socialismo e estatismo: “Em minha visão, socialismo significa o modo de intercâmbio D. Uma genuína “Liberdade, Igualdade e Fraternidade” só pode ser realizada por intermédio da superação do capital-estadonação” 7 3 . No debate entre Marx e Proudhon, retomado por Karatani, não se tratou ali de uma defesa marxiana do estatismo contra uma crítica proudhoniana do estado – o ainda hoje lembrado debate entre marxismo e anarquismo. Antes, Marx apenas compreendeu que seria precisa enfrentar e superar o poder do estado sem o que seria impossível o enfrentamento econômico tal como Proudhon propunha nessa altura (1846-1848). Entretanto, Proudhon mudou sua concepção e admitiu que seria preciso realizar um enfrentamento no interior das instituições do estado, inclusive concorreu e venceu o direito de ocupar uma das cadeiras do Parlamento em 1848. Os proudhonianos estavam na linha de frente da Comuna de Paris de 1871 e Marx somente post factum apoiou a Comuna.

Bakunin atacou Marx por este advogar o estatismo e a centralização, mas 72 73

NASCIMENTO, Joelton. Crítica do V alor e Crítica do Direito, op. cit., p. 151 . TSWH, p. 235.

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em realidade este não era o caso. Marx acreditava não só que o estado deveria ser abolido como acreditava que o estado poderia ser abolido. Ele pensava que o estado feneceria se as relações econômicas de classe fossem abolidas. Foi por esta razão que ele tendeu para a admissão de uma ditadura do proletariado de curto prazo como uma medida de transição. É certamente verdadeiro que Marx não foi suficientemente vigilante em relação a autonomia do estado. Mas isto não foi por que ele era um defensor do estatismo em contraste com Proudhon; antes, foi porque Marx compartilhava a visão proudhoniana sobre o estado. 7 4

O que diferencia radicalmente a visão marxiana da proudhoniana não é o papel do estado, todavia, mas sim os limites da crítica de Proudhon à formação social capitalista. O marxismo em geral – sobretudo aquele que a Nova Crítica do Valor chamará de marxismo tradicional (Postone) e marxismo do movimento operário (Kurz) – costuma defender que a crítica de Proudhon se restringia à circulação, enquanto que a de Marx atingiu o cerne, isto é, a produção. Karatani mostra oportunamente que esta distinção é por demais superficial, como já vimos. O que é mais importante a se notar nesta altura é que Karatani tenta retomar o vínculo da crítica marxiana da economia política com o associativismo e com o cooperativismo. Penso que a tentativa do pensador japonês é retomar uma dimensão da crítica marxiana que possa ter, ao mesmo tempo, condão tanto econômico quanto político, com todas as dificuldades que isso implica 7 5 . Este vínculo, no nosso juízo, ajuda a construir uma possível crítica do direito consistente e que não recai em unilateralismos e determinismos. Senão vejamos. Para Karatani tanto o sindicalismo quanto o cooperativismo são formas de resistir ao capital. Entretanto, segundo ele, são formas “qualitativamente diferentes”. “Falando de modo simples, os sindicatos são uma forma de luta que tem lugar no interior de uma economia capitalista, enquanto que as cooperativas são movimentos que se movem para lá do sistema capitalista” 7 6 .

TSWH, p. 240. A nosso juízo esta não é apenas “uma” dificuldade da teoria crítica ant icapitalista contemporânea, mas é “a” maior de todas elas, a esse respeito cf. NASCIMENTO, Joelton. Dois rostos ou um vaso. Sinal de Menos, nº10, 2014. Disponível em . 7 6 TSWH, p. 243.

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Marx inicialmente tomou distância crítica da ideia de Proudhon sobre a criação de empreendimentos não-capitalistas e esferas econômicas exteriores à economia capitalista. Mas é importante notar que ele se tornou mais simpático a esta visão na Grã-Bretanha, onde o movimento de resistência no interior da produção capitalista passava por dificuldades: o movimento sindical já havia sido cooptado e se tornara apenas um elo do processo de acumulação capitalista. Tendo abandonado toda possibilidade de abolir a mercadoria força-de-trabalho, o movimento focava apenas em preservar e aumentar o valor da mão-deobra. Em contraste, o movimento cooperativista ainda manifestava intenção de abolir a mercadoria força-de-trabalho e o sistema capitalista.7 7

Evidentemente que Marx também via os limites do cooperativismo. O marxismo em geral, com exceção do titoísmo iugoslavo, segundo Karatani, desprezou, todavia, toda a atenção que Marx deu a este, tendo centrado quase todas suas energias utópicas na “nacionalização” da grande indústria e, portanto, no estatismo centralizador. Desde Engels, as brutais críticas de Marx a Ferdinand Lassale e seu “socialismo estatal”, muito mais severas que as críticas a Proudhon, foram quase que inteiramente ignoradas. A conclusão de Karatani é categórica:

Marx afirma que nós não deveríamos confiar no estado para construir cooperativas; antes, associações de cooperativas deveriam substituir o estado. Ainda que sem regulações jurídicas e outras formas de suporte estatal, cooperativas de produção perderiam inevitavelmente em concorrência com empresas capitalistas. Por conseguinte, concluía Marx, seria necessário ao proletariado tomar o poder do estado .7 8

E continua em outra passagem:

O chamado de Marx para a tomada do poder do estado apenas superficialmente lembra a proposta de Lassalle de manter cooperativas de produção por intermédio do poder do estado. Este último reclama por cooperativas organizada sob o estado, resultando com efeito em propriedade estatal da indústria. Como eu notei, Marx rejeitou essa ideia. O que era preciso não era usar o poder do estado para manter cooperativas mas antes para reorganizar empresas acionárias capitalistas em conjunção com as cooperativas. A afirmação de Marx sobre a necessidade de tomada do poder do estado não por conta da propriedade 77

TSWH, p. 244 p. 246

7 8 TSWH,

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em conjunção com as cooperativas. A afirmação de Marx sobre a necessidade de tomada do poder do estado não por conta da propriedade estatal; foi por conta da abolição da relação entre capital e classes assalariadas por intermédio da emergência de cooperativas.7 9

Karatani percebe também o que diversos outros analistas já notaram: que foi Engels quem deslocou a ênfase marxiana no cooperativismo como fator de superação do estado para a direção da tomada do estado da propriedade estatal como o mais importante fator de transição para o socialismo. E desse

modo, Karatani mostra de

modo formidavelmente

claro a

impossibilidade de se pensar no estado e na propriedade estatal como fator de superação do capital-estado-nação. Ao fazê-lo, como visto, mostra a relação pouco compreendida ainda hoje, entre a forma jurídica, a forma de estado e a abstração-real do trabalho 8 0 . Claro que a propriedade estatal é uma estratégia para a negação da economia capitalista. Mas ela não pode levar à abolição da mercadoria força-de-trabalho (i.e. o trabalho assalariado). A propriedade estatal meramente transforma o trabalhador em um funcionário público – isto é, em um trabalhador assalariado que trabalha para o estado. A nacionalização da agricultura e a introdução de fazendas coletivizadas, ademais, representam uma regressão na direção da comunidade agrária do despotismo asiático. Foi isso o que aconteceu com a União Soviética e com a China. Nacionalização e controle do estado deixaram burocratas estatais com um enorme poder. Na medida em que se busca uma política de propriedade estatal e de controle do estado, não se pode evitar a burocratização – não importa quão cuidadoso ou crítico se tenta ser, não importa quantas revoluções culturais se inicie. 81

A ideia de uma emancipação social da forma capital pela via do direito do estado, portanto, poderíamos concluir da leitura de Karatani, é uma quimera. Parte das junções do nó borromeano, o direito do estado amarra capital-estado-nação, não importa o quão “crítico”, “progressista” ou “proletário” um certo ordenamento jurídico possa se apresentar.

TSWH, p. 249. V ínculo que buscamos recuperar em NASCIMENTO, Joelton. Crítica do V alor e Crítica do Direito. op. cit. 81 TSWH, p. 250. 79 80

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