DIREITO, NATUREZA E CULTURA (Parte 2)

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DIREITO, NATUREZA E CULTURA (Parte 1)


Atahualpa Fernandez(


"La biología susurra muy profundo
dentro de nosotros". David Barash



O debate natureza versus cultura é um dos debates eternos no qual nos
enredamos repetidamente em todas as discusões sobre qualquer conduta
humana. Como seres intencionais, qualquer ação – quer dizer, qualquer
movimento, qualquer pensamento ou qualquer sentimento ou emoção que tenham
propósitos intencionais – responde a uma forma específica de como a seleção
natural modelou nosso cérebro dotando-lhe de uma vantagem adaptativa. Os
objetivos de nossas ações se alcançam por meio de estratégias estritamente
vinculadas à natureza humana, sem prejuízo – claro está – de admitir amplas
variações resultantes da inserção no entorno sociocultural em que se vive.
Por um lado, a gente de diferentes culturas varia muito em sua
conduta, crenças e práticas, desde estratégias de subsistência, forma de
cuidar aos filhos, alimentação, decoração corporal, preferências
religiosas, etc. Mas, por outro lado, há muitas coisas que são comuns ou
universais, como o matrimônio, palavras para designar a familiares, as
expressões corporais das emoções, etc. Pensem, por exemplo, nestas
culturas que não existem:
- não existem culturas em que as mulheres façam a guerra para roubar
homens à tribo vizinha;
- não existem culturas em que a faixa mais violenta da população sejam
as mulheres maiores de 50 anos (em todas são os homens jovens);
- não existem culturas em que os homens se sintam mais atraídos por
mulheres de 60 anos que por mulheres jovens de 20;
- não existem culturas onde a gente prefira as imitações aos originais
e pague milhões pelas cópias e nada pelos originais;
- não existem culturas em que a gente tempere com fezes a comida para
melhorar seu sabor e onde não lhes interesse o sal e o açúcar;
- não existem culturas em que os seres humanos não participem (ou ao
menos intentem) em planificar e dirigir suas próprias vidas, fazendo e
respondendo perguntas "acerca de lo que es bueno y cómo debería uno vivir";
- não existem culturas onde se deixe morrer aos filhos próprios e se
dediquem os recursos e o tempo a filhos de outras pessoas;
- não existem culturas onde as normas sociais digam que há que tratar
mal aos amigos e fazer-lhes sofrer;
- não existem culturas onde as pessoas não "fofoquem", não mintam, não
julguem[1] moralmente e não lhes importe em absoluto o que fazem os
demais, etc.... etc.
O que estas culturas que somente existem na imaginação nos ensinam é
que por debaixo das variações culturais existe uma psicologia evolucionada
humana desenhada para produzir diferentes tipos de conduta segundo as
circunstâncias ambientais, e que não a podemos saltar. A cultura poderá
introduzir variação, mas não é todo-poderosa e tem umas limitações. A gente
pode variar em seu bronzeado segundo o sol ao que esteja exposto em seu
ambiente, mas o bronzeado se deve a um mecanismo biológico adaptativo de
proteção que está desenhado para responder à luz do sol com melanina. (P.
Malo)
Daí que um estudo da conduta humana completo deve ser capaz de
explicar tanto as variações como os traços universais que observamos
nela[2]. O conteúdo específico e a organização de cada cultura é um produto
de uns mecanismos psicológicos evolucionados e dos ambientes específicos
aos que está exposto um grupo humano – fenômeno ao que Leda Comides e John
Tooby denominam de "cultura evocada", para referir-se ao fato de que as
condições sociais e econômicas são uns inputs ambientais para uma
psicologia evolucionada muito rica e que, dessa maneira, evocam diferentes
repertórios de condutas, forjando-se assim diferentes culturas. Isto
implica que a partir da ideia de "cultura evocada", útil para entender
algumas das formas de variação cultural, é possível inferir que a cultura
influi tanto no sentido de acentuar como de rebaixar as tendências mais
profundamente enraizadas na natureza humana[3].
Pois bem, esta dupla ação natureza-cultura produziu, durante o largo
curso de nosso processo evolutivo, algumas estratégias e mecanismos
desenhados com a "intenção" de que servissem para resolver determinados
problemas adaptativos a eles associados. Se o propósito se alcança,
assumimos e dizemos que tais mecanismos têm valor (que são bons) e, como
tal, que são capazes de ir acumulando "tradições" que, não obstante em
processo contínuo de renovação (da evolução acumulativa e renovada da
cultura pelo efeito "ratchet", de que nos fala M. Tomasello), se transmitem
de geração em geração mediante atuações individuais de pessoas influídas
por este triplo conjunto de elementos procedentes da natureza, da cultura e
da história, tanto recente como remota, da humanidade.
Ante um panorama assim, de diversidade temporal e cultural tão ampla
(embora limitada), a hipótese de que todos os humanos sem exceção
significativa tendem a valorar como "boa" uma mesma coisa levaria a afirmar
que não pode ser porque nos tenhamos posto todos de acordo sobre sua
"bondade". Tal valor compartido se assentaria na psicologia natural da
espécie humana ao dar uma solução efetiva aos problemas adaptativos do
momento.
Existem, à parte das variações, universais assim, já sejam positivos
ou negativos?
Todos os humanos parecem valorar, por exemplo, a cooperação
intragrupal, mas desconfiam ao mesmo tempo da cooperação intergrupal quando
é proposta desde fora. Valoramos a coesão de grupo, as relações de
parentesco, a submissão ou obediência a um líder, a capacidade de ascender
na hierarquia social, a conduta altruísta, a proteção à infância e o
aprendizado dos mais pequenos, as alianças estratégicas, a amizade, o sexo,
o alvoroço moderado, as relações de intercâmbio, o risco controlado;
valoramos a sinceridade, mas também a reciprocidade e a segurança, e
abominamos o engano e a injustiça – ao menos quando nos afeta pessoalmente.
Por que é assim cabe ser explicado somente de uma forma: porque a evolução
por seleção natural produziu uma mente humana com os parâmetros necessários
para comportar-se desse modo típico de nossa espécie.
Na verdade, parece razoável admitir que nossas valorações são, em boa
medida, o resultado de dois domínios em permanente estado de interação: i)
um conjunto de determinações genéticas e neurobiológicas que nos estimulam
a manter atitudes morais, a avaliar e preferir, e que pertence ao genoma
comum de nossa espécie; e ii) um conjunto de valores morais do grupo que é
uma construção cultural, de tal forma que dita construção (e transmissão)
dos valores tem lugar de maneira histórica em cada sociedade e em cada
época. Desta interação resulta um universo de preferências que não é livre
de tomar qualquer caminho. Nossas valorações são dirigidas e estão
condicionadas a grandes traços pela tendência inata a determinadas
condutas, que pode considerar-se a verdadeira fonte dos valores humanos.[4]


A seleção natural desenhou e modelou nosso cérebro com o resultado de
que nos importam mais umas coisas e menos outras (um sistema de "saliências
inatas" e "culturais" que funciona como mecanismo de filtragem de um mundo
repleto de informação e que determinam também nossa maneira de perceber a
realidade compartida atendendo mais facilmente a certos estímulos ou a
outros). Dito de outro modo, os limites observados na diversidade dos
enunciados éticos e normativos são os reflexos da estrutura e funcionamento
de nossa arquitetura cognitiva. Como seres neuronais, as características
biológicas de nosso cérebro estabelecem o espaço das normas de conduta que
nos são possíveis aprender e seguir. [5]
Este princípio, defendido na chamada "segunda sociobiologia", segue
de perto outras propostas anteriores ao estilo da de Waddington das
paisagens epigenéticas (C. J. Lumsden; E. O. Wilson). Significa que, se bem
as soluções culturais são contingentes e têm caráter histórico, se movem
dentro de uns limites estreitos de possibilidades marcadas pela natureza
humana. Todos tendemos a valorar certas coisas em detrimento de outras e os
valores assegurados por meio de nossas normas de conduta descrevem (em
grande medida) nossas atitudes morais naturais: valoramos aquilo que admite
a margem de nossa limitada capacidade para aprender a valorá-lo.
Em contra do estabelecido pelo modelo do Homo oeconomicus, o que nos
incita a comportar-nos moral e juridicamente não é o cálculo deliberado que
duvida entre as possibilidades de obter certo beneficio ao incumprir uma
norma estabelecida e o risco que se corre ao ser descobertos e castigados
por nosso ato. Tampouco funcionamos mediante uma adesão consciente a normas
racionalmente analisadas e aceitadas. Entram em jogo mais bem certas
intuições ou sentimentos morais, e o fazem de um modo sub-reptício,
espontâneo, sem dar-nos apenas conta dele: empatia, remordimento, vergonha,
humildade, sentido de honra, prestígio, compaixão, companheirismo, etc[6].
Mais que uma simples coleção de preferências e convenções utilitárias
ou arbitrárias impostas às pessoas pela sociedade, tais intuições se
assentam em predisposições inatas de nossa arquitetura cognitiva para o
aprendizado e manipulação de determinadas capacidades sociais inerentes à
biologia do cérebro, capacidades que foram aparecendo ao longo da evolução
de nossos antepassados hominídeos para evitar ou prevenir os inevitáveis
conflitos de interesses que surgem da vida em grupo. São estes traços, que
poderíamos chamar tendências mais que características, o que melhor pode
ilustrar as origens e a atualidade do comportamento moral e jurídico do
homem.
De fato, se os homens se juntam e vivem em sociedade é porque somente
por esse modo podem sobreviver. Desenvolveram-se por tal via valores
sociais específicos: o sentimento de pertença e lealdade para com o grupo e
os seus membros, o respeito pela vida e propriedade alheias, o altruísmo, a
trapaça, a empatia, o sentido da reputação, o respeito recíproco, a
antecipação das consequências das ações... Trata-se de práticas que
aparecem de maneira necessária no transcurso de uma vida compartilhada
dando mais tarde lugar aos conceitos de justiça, de moral, de direito, de
dever, de responsabilidade, de liberdade, de dignidade, de igualdade, de
fraternidade, de culpa, de segurança e de traição, entre tantos outros.




























DIREITO, NATUREZA E CULTURA (Parte 2)


Atahualpa Fernandez(


"La cultura es el modo humano de
satisfacer las exigencias biológicas". Salvador
Giner




Em que pese ao fato de que a tendência para a separação entre o
material e o espiritual tem levado a que se absolutizem alguns desses
valores – desligando-os de suas origens e das razões específicas que os
geraram e apresentando-os como entidades transcendentes que ultrapassam os
próprios seres humanos –, a ética e o direito somente adquirem uma base
segura quando se vinculam à nossa arquitetura cognitiva altamente
diferenciada, plástica e especializada, quero dizer, a partir da natureza
humana unificada e fundamentada na herança genética e desenvolvida em um
entorno cultural. O sentido do direito e da justiça não é o oposto da
natureza humana, senão que forma uma parte integrada da mesma. Poderia
dizer-se, pois, que os códigos e enunciados normativos da espécie humana
como um todo – dos valores éticos aos direitos humanos – são uma
consequência peculiar de nossa própria humanidade, e que esta, a sua vez,
constitui o fundamento de toda a unidade cultural. (H. Maturana)
O projeto axiológico e normativo de uma comunidade ética nada mais é
que um artefato cultural manufaturado e utilizado para possibilitar a
sobrevivência, o êxito reprodutivo e a vida em grupo dos indivíduos. Serve
para expressar (e frequentemente, para controlar e/ou manipular) nossas
intuições e nossas emoções morais, traduzindo e compondo em fórmulas sócio-
adaptativas de ordenada convivência a instintiva e mesmo compartida
aspiração de justiça que nos move no curso da história evolutiva e cultural
própria de nossa espécie. Daí que as normas jurídicas, como geradoras de
expectativas seguras, proíbam, obriguem ou permitam determinadas condutas,
fomentem certos tipos de vínculos sociais relacionais em detrimento de
outros, regulem a liberdade, a responsabilidade e a igualdade, e reprimam –
em determinadas circunstâncias – a agressão e a violência.
Parece inegável aceitar o fato de que somos o resultado de dois
processos diferentes, cuja confluência, se podemos dizê-lo assim, nos
constitui como humanos: um processo biológico de hominização (a soma de
mutações, recombinações e seleção natural pelo qual o Homo sapiens se
distingue progressivamente das espécies de que descende) e um processo
histórico de humanização (pelo qual se somam outros fatores diferentes aos
puramente biológicos: regras, moral, linguagem, cultura, civilização...).
Embora estes dois processos sejam com frequência contrapostos como
distintos e inclusive antagônicos, é muito provável que a tradução da
oposição clássica nature-nurture proceda de um equívoco: o de que as
construções culturais históricas e os acontecimentos de evolução biológica
são processos independentes entre si. Uma negação interessante deste
suposto isolamento entre natureza e cultura, sustentada pela segunda
sociobiologia, propõe o aparecimento tanto da natureza humana como das
expressões culturais dos valores de coesão do grupo por meio de um modelo
coevolutivo e coordenado de evolução entre os genes e a ambiente[7].
Sobre este tema - e aqui abro um breve parêntesis -, o que é
verdadeiramente único na evolução humana, por contraposição, ponhamos o
caso, à evolução do chipanzé ou do lobo, é que uma parte considerável do
ambiente que a modelou foi cultural: a mente e o cérebro humanos não são
somente um produto combinado de uma mescla complicadíssima de genes e de
neurônios, senão também de experiências, valores, aprendizagens e
influências procedentes de nossa igualmente complicada e complexa vida
sócio-cultural. Enquanto os animais estão rigidamente controlados por sua
biologia, a conduta humana está amplamente condicionada pela cultura, um
amplo sistema autônomo de representações, símbolos e valores que, além de
crescer e variar segundo o "substrato" genético que tomam como referente
para atuar (por exemplo, do comportamento e dos códigos morais), encontra
constrições cognitivas fortes e significativas no que se refere à sua
percepção, armazenamento e transmissão discriminatória por parte do ser
humano.
Isto porque, embora capazes de sobre passar as limitações biológicas
em muitos aspectos e de servir como eficaz instrumento de ampliação,
restrição ou manipulação de nossas intuições e emoções morais, as
representações culturais, como dito antes, não podem, contudo, variar
arbitrariamente e sem limites: não são indefinidas, senão diversas até
certo ponto. Por dizê-lo de alguma maneira mais simples: as eleições que
efetuamos, as decisões que tomamos e tudo mais que dizemos ou fazemos são
um produto ou um resultado com bastante articulação funcional, um conjunto
de estímulos socioculturais que circulam por um sofisticado sistema de
elaboração biológica.
A cultura e a moralidade humana não são e nem podem ser infinitamente
flexíveis. O que nós não desenhamos de forma caprichosa são as ferramentas
da cultura e da moralidade, nem as necessidades básicas e os desejos que
criam a substância com a que atuam. As tendências naturais não podem ser
equiparáveis às características culturais e aos imperativos morais, mas sim
que desempenham uma função quando tomamos decisões e nos comportamos
moralmente. Ainda que a cultura e algumas regras morais reforcem as
predisposições típicas de uma espécie e outras as reprimam, nenhuma as
passa por alto ou as ignora.
Como explica Frans de Waal – para quem o processo evolutivo nos
proporcionou a habilidade e os requisitos para desenvolver uma moralidade,
assim como um conjunto de necessidades e de desejos básicos que a
moralidade deve ter em conta –, em lugar de considerar a moralidade como
uma invenção radicalmente nova, o mais sensato é vê-la como uma extensão
natural de antigas tendências sociais, como parte integrada do lote da
natureza humana que se desenvolve através de nossas interações sociais. Uma
opinião compatível com o marco da ética evolucionista, cujo princípio
fundamental é que o sentido da moral não é antitético da natureza humana,
senão que forma uma parte integrada da mesma.
Mas voltando à segunda sociobiologia, ir mais além do modelo teórico
sustentado com um forte aparato matemático por Lumsden e Wilson não é
fácil. Como se poderia comprovar o efeito empírico da presença de relações
sociais na fertilidade de um grupo de Australopithecus, por exemplo? Mas,
ainda que se trate de uma hipótese especulativa, tem sentido o guião
evolutivo de uns seres que, a partir de pequenas bandas de entre 70 e 150
caçadores-coletores alocados na savana e cuja sobrevivência dependia de
forma inevitável e estrita da manutenção da coesão social, chegaram a
multiplicar-se e concentrar-se progressivamente: primeiro em pequenas
cidades e, mais tarde, em grandes nações até tender a transformar-se em
uma "sociedade global". É este, de fato, salvando as distâncias, o mesmo
esquema que conduziu ao grande ideal de "cidadania universal" próprio dos
ilustrados Kant e Goethe - que por certo, dito seja de passagem, dista em
muito do filisteu processo de "globalização" neoliberal de nossa
época.
Em qualquer caso, o fenômeno vem acompanhado de um aumento acelerado
tanto do conhecimento como da complexidade dos vínculos e das estruturas
sociais – em particular no que diz respeito aos sistemas de informação e de
comunicação entre os membros de nossa espécie –, coisa que permite uma
interação muito mais intensa, ampla e rápida dentro dos grupos sociais e,
em igual medida, exige um incremento substancial das normas integradoras da
ação comum. Afinal, como já esclarecido anteriormente, o progressivo
aumento da complexidade do intercâmbio recíproco exigiu (e continua
exigindo) uma estratégia adaptativa baseada em uma capacidade para predizer
as condutas cada vez mais sofisticadas, isto é, em uma consistente
padronização das ações e das consequências do complicado atuar humano.
Assim chegamos às leis humanas, essa ferramenta cultural e
institucional "cega", virtualmente neutra e com potencial capacidade
vinculante para predizer e regular o comportamento humano, qualquer que
seja sua natureza ou grau de imperatividade. Parece razoável supor que,
igual que sucede agora, em todas as sociedades humanas existiram de
contínuo normas para o exercício de direitos (ainda que estes fossem em
ocasiões muito precários) por parte dos membros do grupo. Normas capazes de
sentar as regras de convivência com relação ao poder, a distribuição e o
uso da propriedade, a estrutura da família ou de alguma outra entidade
comunitária, a distribuição do trabalho e a regulação das trocas em geral.
Normas que, destinadas a resolver determinados problemas adaptativos,
plasmam no entorno coletivo e historicamente condicionado nossa
capacidade e necessidade inatas de predizer o comportamento dos demais, de
controlá-lo e de justificar mutuamente nossas ações.
E tal como parece haver ocorrido com a própria evolução biológica, o
processo de evolução das normas não teve (e não tem) lugar de maneira
linear, senão por meio de ensaios e erros. Os humanos se caracterizam por
ensaiar distintas soluções normativas e adotar as que lhes parece mais
eficaz em um determinado momento, até que seja possível substituí-las por
outras que se revelam mais adaptadas aos seus propósitos evolutivos. Na
medida em que a flexibilidade da conduta humana e a diversidade das
representações culturais são, ainda que limitadas, amplas e, por outro
lado, dado que as alterações culturais se podem transmitir com grande
rapidez e eficácia, o processo da evolução normativa se encontra sujeito a
profundos sobressaltos e equívocos e, às vezes (inclusive), a retrocessos
significativos. É esta, talvez, a melhor explicação evolucionista das
chamadas "leis injustas".
Sendo assim, a denominada ordem jurídica emana da própria natureza
humana (de sua faculdade de antecipar as consequências das ações, de fazer
juízos de valor e de eleger entre linhas de ação alternativas) e não é algo
que tenha sido imposto à condição humana pela cultura. Nossas manifestações
culturais não são coleções casuais de hábitos arbitrários: são expressões
canalizadas de nossos instintos, ou seja, de nossas intuições e emoções
morais[8]. Por essa razão, os mesmos temas despontam em todas as culturas:
família, ritual, troca, amor, hierarquia, amizade, propriedade, ciúmes,
inveja, lealdade grupal e superstição. Por essa razão, apesar das
diferenças superficiais de língua e costumes, as culturas estrangeiras têm
sentido imediatamente ao nível mais profundo dos motivos, das emoções, dos
hábitos e dos instintos sociais. E instintos, em uma espécie como a
humana, não são programas ontogenéticos imutáveis: são predisposições para
aprender e atuar. Com efeito, acreditar que os seres humanos têm instintos
não é uma ideia mais determinista do que acreditar que são produtos da
educação (M. Ridley)[9].
Por outro lado, nossos vínculos sociais relacionais são - e resulta
difícil negar - deficientes e nossa capacidade de predição e de antecipação
das consequências das ações dista muito de ser perfeita, mas é em qualquer
caso melhor que nada. Dispomos do direito e, com ele, promovemos em uns
grupos tão complexos como são os humanos aqueles meios necessários para
controlar e predizer as más e as boas ações, para justificar os
comportamentos coletivos e, o que é mais importante, para articular,
combinar e estabelecer limites, com vistas à efetiva proteção do indivíduo,
sobre os vínculos sociais relacionais que entabulamos ao longo de nossa
secular existência.
Sem normas, não haveríamos evolucionado; não ao menos na forma em que o
fizemos. Graças ao universo jurídico, plasmado em último termo em normas e
valores "explícitos", os seres humanos conseguiram na interação própria da
estrutura social um reparto ( ao que caberia chamar, com as cautelas
necessárias acerca do conceito, "consensuado") dos direitos e deveres que
surgem na vida comunitária.

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( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor(Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[1] O ser humano é um ser de juízo a todos os efeitos e em toda
circunstância. A tal ponto que em seus Tópicos Aristóteles escreveu esta
sentença lapidar: "Pues (el humano) que percibe, de una forma o de otra
está ya efectuando un juicio".
[2] Por isso que é um erro frequente perguntar se o ser humano é bom ou mau
por natureza (agressivo ou pacífico, ou, por exemplo, se nossa sexualidade
é monógama ou polígama). Os seres humanos não são essencialmente nem bons
nem maus (agressivos nem pacíficos, nem monógamos nem polígamos). Os
humanos respondem com bondade ou maldade (agressivamente ou
cooperativamente, de forma monógama ou polígama) dependendo de histórias
vitais específicas e dos ambientes em que se encontrem (e isto não é coisa
dos seres humanos exclusivamente, ainda que tenhamos mais variedade, senão
também de outros animais). Somente cérebros que sejam o suficientemente
plásticos, versáteis e capazes de dar diferentes respostas podem ter êxito
em ambientes que são muito cambiantes.
[3] Aqui se coloca o problema de que as intuições e as emoções morais da
gente podem estar irreparavelmente marcadas por seus interesses. Também é
possível, e inclusive não infrequente, que uma diferença de intuições
morais de origem biológica seja ampliada pela elaboração cultural dessas
intuições. Por exemplo, sabemos que os ciúmes sexuais masculinos
(desenvolvidos evolucionariamente como uma estratégia psicológica para
proteger a certeza masculina da paternidade), uma vez manipulados pela
elaboração cultural, podem causar sofrimentos (ou até mesmo a morte) a
muitas mulheres do mundo, amplificada que pode ser até o execrável uma
diferença de intuições morais de origem biológica. Assim, determinadas
hipóteses biológico-evolutivas sobre a filogênese humana e o estudo
etológico do comportamento de nossa espécie coincidem em insistir no
chamado "lado escuro da sexualidade masculina" (M. Wilson & M. Daly). De
acordo com esta tese, o comportamento sexual masculino estaria em boa
medida guiado pelo temor do "cuco": pelo temor à promiscuidade de sua
companheira feminina e a consequente inversão de recursos próprios na
criação de filhos alheios. Daí derivaria umas tendências "proprietaristas"
sobre as mulheres, isto é, umas intuições morais tendentes a considerar a
mulher como uma propriedade. Destas intuições digamos "naturais" – para
seguir com a hipótese – se pode fazer elaborações culturais muito
distintas: desde a "mulher dona de casa" de nossa cultura até a ablação de
clitóris (habitual em certas culturas norte e centro-africanas), passando
pelo chador islâmico e a vendagem e a molduração dos ossos dos pés da
tradição chinesa. Um triunfo (perverso) da cultura sobre a espontaneidade e
a natureza. Nestes tipos de culturas, que amplificam até as abomináveis
disposições de raiz presumivelmente biológicas, parece difícil achar
soluções menos radicais que a posta em marcha pelo governo revolucionário
da China em 1949: varrer sem contemplações toda a tradição cultural (A.
Domènech).
[4] Isto é importante ter em conta porque as valorações morais e jurídicas
compartidas são as que têm mais probabilidades de êxito. E parece
conveniente aproveitar este fato, na medida do possível, para adequar os
preceitos éticos e normativos a sua sólida realidade se queremos que
funcionem.
[5] Em palavras de Steven Pinker: "A complexidade da mente não se deve à
aprendizagem, senão que o aprendizado se deve à complexidade (modular) da
mente humana".
[6] Quando alguém se revolta contra a injustiça e a crueldade está usando
como fonte um instinto e não avaliando racionalmente a utilidade do
sentimento – menos ainda regurgitando uma convenção da moda. Estamos tão
profundamente imersos em um mar de suposições, intuições e emoções morais
inatas que é preciso muito esforço para imaginar o mundo sem elas. Um mundo
sem a obrigação de retribuir, de fazer negócios com lealdade, e de confiar
nos outros, de indivíduos sem a disposição de colocar-se na pele do outro,
de sentir dor com seu sofrimento e contente com suas alegrias, é
simplesmente inconcebível. Na certeira reflexão de James Q. Wilson: "O que
para mim mais necessitava de explicação não é o fato de algumas pessoas
serem criminosas, mas o fato de a maioria não ser".
( Membro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public
Prosecutor); Doutor(Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/
Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research)
Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu
Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-
civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral
research)/Center for Evolutionary Psychology da University of
California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/
Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-
Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia
Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España; Especialista
Direito Público/UFPa./Brasil; Profesor Colaborador Honorífico (Associate
Professor) e Investigador da Universitat de les Illes Balears, Cognición y
Evolución Humana / Laboratório de Sistemática Humana/ Evocog. Grupo de
Cognición y Evolución humana (Human Evolution and Cognition Group)/Unidad
Asociada al IFISC (CSIC-UIB)/Instituto de Física Interdisciplinar y
Sistemas Complejos/UIB/España.
[7] Nota bene: Não cabe identificar os fatores ambientais com a "educação"
ou a "cultura", como se faz com certa frequência, posto que muitos destes
fatores são desconhecidos, ou bem são simplesmente produtos do azar. Uma
meta-análise recente, publicada em Nature (Polderman et al.), baseada em
2.748 estudos e mais de 17.000 traços humanos, basicamente corrobora o
comentário: os genes explicam a metade da variação, enquanto que as
influências do "ambiente compartido" é escassa. Por outro lado, a variação
genética aditiva é a mais significativa – quer dizer, geralmente há muitos
genes implicados em cada conduta. Em suma: Nenhum traço humano de conduta
está determinado ao 100% pelos genes e nenhum tem um 0% de influência
genética.
[8] E é o cérebro que oferece o cenário deste drama em que se representam
os valores culturais, os juízos morais e as peripécias de nossa existência.
Nele percebemos o mundo através da lente das emoções (de nossas ideias e de
nosso pensamento). Estas são as verdadeiras portadoras de sentido até o
ponto de constituir uma verdadeira linguagem que permite ao sujeito
dialogar não somente com o outro, senão também consigo mesmo. As emoções
constituem, assim, um repertório inato de signos mediante os quais se
estabelece a comunicação entre os indivíduos, o reparto da subjetividade, e
que, em igual medida, permitem atribuir ao outro um estado mental e
compartir com ele uma representação.
[9] Estamos desenhados pela seleção natural para circunstâncias ecológicas
e culturais distintas das atuais e com uma mente dotada de módulos (ricos
em conteúdo) que processam tanto os motivos inatos que conduzem a atos
perversos como os motivos inatos que nos levam a evitá-los. Nossos sistemas
perceptivos evolucionaram para construir modelos adequados ao entorno, para
poder averiguar qual será o passo seguinte. Nosso cérebro está desenhado
para resolver com eficácia as dificuldades que encontramos, eleger,
justificar e tomar decisões.
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