Direitos, Conflitos e Poder - A Qualidade Democrática em Angola e Moçambique

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UNIVERSIDADE CÂNDIDO MENDES INSTITUTO UNIVERSITÁRIO DE PESQUISAS DO RIO DE JANEIRO

VINICIUS ROSA RIBEIRO

DIREITOS, CONFLITOS E PODER: A QUALIDADE DEMOCRÁTICA EM ANGOLA E MOÇAMBIQUE

Rio de Janeiro 2014

VINICIUS ROSA RIBEIRO

DIREITOS, CONFLITOS E PODER: A QUALIDADE DEMOCRÁTICA EM ANGOLA E MOÇAMBIQUE

Monografia apresentada ao Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro como parte do requisito do Curso de Pós-Graduação Lato Sensu em Relações Internacionais, para a obtenção do título de Especialista em Relações Interacionais.

Orientador: Prof. Dr. Monteiro Velasco Júnior

Rio de Janeiro 2014

Paulo

Afonso

Dedico este trabalho à minha mãe, Stella, e sua incontável bondade e gentileza para comigo e à Fernanda Gomes, minha companheira de tantas aventuras, que mais uma vez mostrou sua incansável generosidade, respeito e paciência ao longo da elaboração deste trabalho.

AGRADECIMENTOS

Aos Deuses e a todos os amigos que, direta ou indiretamente, contribuíram para aplacar minhas tensões, ansiedades, dispersões e curiosidades ao mergulhar neste percurso.

RESUMO RIBEIRO, Vinicius Rosa. Direitos, conflitos e poder: a qualidade democrática em Angola e Moçambique. 2014. 69 p. Monografia (Especialização em Relações Internacionais). Instituto Universitário de Pesquisas do Estado do Rio de Janeiro. Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, RJ.

O presente trabalho visa analisar a construção do processo democrático em países recém-saídos de conflitos civis. Os objetos desta análise constituem-se nos países Angola e Moçambique, ao qual serão avaliados a partir dos métodos de política comparada. Através do eixo teórico da qualidade da democracia em regimes de transição democrática, serão analisados em quais modelos de democracia tais Estados vem se estabelecendo e, por consequência, sob quais dinâmicas suas populações vem conquistando direitos. Palavras-chave: Transição pós-conflito; Angola; Moçambique; Política comparada; Qualidade da democracia; Democratização;

LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 5.1: Total de Exportação de Petróleo de Angola para os Estados Unidos .........................................................................................

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Gráfico 5.2: Quantidade de mortes por conflito armado ........................

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Gráfico 5.3: Percentual do PIB destinado às despesas militares ............

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ACA - Associação Cívica Angolana AAD - Acção Angolana para o Desenvolvimento AGP – Acordo Geral de Paz CIVICUS – Aliança Mundial para a Participação Cidadã CNE - Comissão Nacional de Eleições EUA – Estados Unidos da América FESA - Fundação Eduardo Santos FNLA - Frente Nacional de Libertação de Angola FRELIMO – Frente de Libertação de Moçambique MFA - Movimento das Forças Armadas MONUA – Missão de Observação das Nações Unidas em Angola MPLA – Movimento Popular de Libertação de Angola ODM – Organizações Democráticas de Massa OMM - Organização da Mulher Moçambicana ONU – Organização das Nações Unidas ONUMOZ – Operação das Nações Unidas em Moçambique OSC – Organizações de Sociedade Civil PARPA - Plano de Ação para Redução da Pobreza Absoluta PRE - Programa de Reabilitação Econômica RENAMO – Resistência Nacional de Moçambique SCG – Sociedade Civil Global SCA – Sociedade Civil Angolana SCM – Sociedade Civil Moçambicana UNAVEM III – Missão das Nações Unidas de Verificação em Angola UNITA – União Nacional pela Independência Total de Angola UPA - União das Populações de Angola URSS – União das Repúblicas Socialistas Soviéticas

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .........................................................................................

1

CAPÍTULO 1 - A QUALIDADE DA DEMOCRACIA COMO MÉTODO 1.1. Elementos de maturação de um regime democrático ................................

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CAPÍTULO 2 - DEMOCRACIA E CONFLITO: A SOCIEDADE CIVIL EM MOÇAMBIQUE .................................................................... 2.1. Sociedade Civil Global X Sociedade Civil Moçambicana: Uma comparação possível? ................................................................................ 2.2. Histórico de conflitos em Moçambique................................................... 2.3. Sociedade civil em movimento ............................................................. 2.4. Sociedade civil em ebulição ................................................................. 2.5. Democracia cadente ou conflito candente? ............................................ CAPÍTULO 3 - ENTRE O CONFLITO E A ESPERANÇA: ATORES EM CONSTRUÇÃO EM ANGOLA ...................................... 3.1. Independência e Primeira República .................................................... 3.1.1. Discursos de Hostilidade..................................................................... 3.1.2. MFA e o “25 de abril” como um aceno de mudanças........................... 3.1.3. Aurora e crepúsculo em Angola: Transição e conflito ......................... 3.1.4. Sombras do exterior: a ideologização dos movimentos de libertação... 3.2. Conflito e recomeço na Segunda República ......................................... 3.3. A Sociedade Civil Angolana e o dilema da participação......................... 3.4. Novos rumos para a Sociedade Civil? .................................................. CAPÍTULO 4 - ENTRE PERSPECTIVAS: ANGOLA E MOÇAMBIQUE SOB A QUALIDADE DEMOCRÁTICA................................................. 4.1. Métodos de Política Comparada em Angola e Moçambique: Uma combinação possível? ......................................................................... 4.2. Os conflitos civis como elo ................................................................... 4.2.1. A ascensão patrocinada: a Guerra Fria como elemento de influência 4.2.2. A dependência de recursos internacionais............................................ 4.2.3. A cultura política como elemento de análise........................................ 4.3. Comparando fatores das transições democráticas.................................... 4.3.1. Elementos de Participação e Representação......................................... REFERÊNCIAS .......................................................................................

12 12 14 17 22 23

26 27 28 30 32 34 37 40 44

49 49 51 52 54 56 59 60 67

INTRODUÇÃO

A democracia, ao longo do século XX, tornou-se o regime de maior expressão contemporânea. Ao buscarmos analisar o campo deste fenômeno, nos deparamos com os dilemas de compreensão do seu surgimento em determinadas realidades políticas. A primeira delas vem da certeza da grande diversidade de modelos que comportam este tipo de regime. Pelo fato desta forma de governo estar diretamente ligada à construção de espaços de participação e a apropriação de parte da cultura política que compete a cada um dos países nela inseridos, a democracia acaba abarcando uma gama de particularidades, sem desconsiderar os principais elementos que as configuram como componente de um regime de participação coletiva. No entanto, ainda que alguns dos processos similares aos dos modelos de natureza democrática passem a tomar formas em uma transição de regimes outrora autoritários, não significa que a democracia assumirá o papel de regime substituto (de forma automática a queda do anterior), tampouco de que irá adquirir o seu caráter pleno. E é nesta lacuna existente no fortalecimento das instituições que passam a coexistir novos modelos de representação e de governabilidade. O surgimento da qualidade da democracia como conceito pretende analisar esta diferenciação, corporificada nas gradações destes processos de transição. Estas escalas de mudança, que resultam em modelos altamente distintos da democracia considerada clássica, acabam sendo analisados conforme sua progressão em campos institucionais significativos para a existência e legitimidade de um determinado poder constituído. Este uso do termo, sustentado por Moisés (2011) e por outros autores, como Przeworsky (2006) garante um eixo de análise das etapas de transição a partir do fortalecimento de suas costuras institucionais. E neste universo que compreende a violência como componente definidor para o alcance de poder, é necessário que analisemos as raízes que deram efetiva substância a perpetuação dos conflitos e seu devido espaço para a construção dos regimes democráticos como um modelo a ser seguido. Inseridos na discussão de realidades em um processo embrionário de transição democrática, países como Angola e Moçambique serão os eixos condutores da análise deste trabalho, que buscará identificar os modelos nos quais a democracia em ambos os países vem se constituindo. Como um contraponto 1

ao debate teórico sobre a qualidade da democracia, buscaremos compreender em que medida determinados elementos representam a progressão do regime a uma etapa de maturidade institucional, fortalecendo o alcance de direitos à sociedade. A produção acadêmica utilizada para compor o eixo teórico deste trabalho é dividida de acordo com a pluralidade de temas envolvidos nas questões que se seguem. No primeiro capítulo o conceito de qualidade da democracia é abordado a partir dos embates teóricos de sua formação, acompanhados das discussões recentes que possibilitaram identificar elementos de sustentação do regime. Os intelectuais norteadores deste capítulo são Robert Dahl e José Álvaro Moisés. Nos segundo e terceiro capítulos serão abordadas as particularidades históricas e conceituais dos conflitos civis que atingiram Moçambique e Angola, respectivamente. Para compor o eixo teórico, serão abordados autores destes países com publicações sobre o assunto em questão. Por fim, o quarto e último capítulo versará sobre a política comparada como método de análise sobre Angola e em Moçambique, seguida das discussões em torno dos elementos que os distinguem e que os assemelha em relação ao percurso da garantia de direitos e da maturidade de seus regimes democráticos.

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1.

A QUALIDADE DA DEMOCRACIA COMO MÉTODO Para analisarmos o estágio de amadurecimento das democracias em Estados

como Angola ou Moçambique, é importante que avaliemos as questões que possibilitaram o alcance destas nações a este tipo de regime. Em ambos os casos, temos como elemento central a eclosão de conflitos civis que influenciaram completamente o processo de transição democrático, impossibilitando que grupos sociais alcancem espaços de participação e trazendo – ainda que de forma indireta – uma perpetuação dos mecanismos aplicados pelos regimes autoritários a que sucederam. Para aprofundarmos a análise sobre quais etapas a qualidade da democracia vem sendo estabelecida em Angola e em Moçambique, trataremos neste capítulo sobre a discussão teórica de dois aspectos essenciais a este entendimento: a da base empírica da formação do processo de transição democrática e dos fatores que possibilitam a análise da qualidade da democracia. As teorias de transição democrática tornaram-se, ao longo da década de 90, num dos grandes temas encabeçados pelas ciências sociais no Brasil e na América Latina. Com isso, sua produção teórica e contribuição de métodos de análise ao debate foram introduzidas como forma de entendimento aos passos seguidos durante a interação entre os atores que compõem esta etapa de mudança, sejam eles democráticos ou autoritários. A temática da transição democrática, ao avançar sobre as demais regiões do mundo, transformou a democratização no fenômeno político mais impactante do século XX. Com isso, a emergência de maiores demandas por direitos ao longo deste século assumiu novas proporções, afetando diretamente o modo em que as pessoas administram politicamente os desafios da sociedade em países de regime de natureza autoritária. Autores como Samuel Huntington (1994, apud MOISÉS, 2011) defendem como perspectiva teórica a existência de três grandes movimentos no decurso da história contemporânea que possibilitaram a queda do autoritarismo e, em consequência, abriram caminhos em direção ao regime democrático. Esses fenômenos, caracterizados como "ondas democráticas", ocorreram em três momentos ao longo da história: a primeira onda tem sua origem a partir da revolução inglesa (mesmo sem demarcar de forma clara uma mudança de estrutura), sendo mais perceptível a partir das revoluções americana e francesa. 3

A segunda onda é caracterizada após a II Guerra Mundial, onde percebe-se um movimento de expansão do regime democrático a partir de alguns dos Estados que protagonizaram papéis importantes no conflito. Ao longo dos anos 70, é percebido o surgimento de uma terceira onda democrática como um novo elemento de participação, tendo como cenário os países em processo de descolonização. Moisés (2011) salienta que, apesar do desmantelamento da URSS provocar o surgimento de novos Estados de viés democrático, a perspectiva teórica encabeçada por Huntington não considera a formação dos Estados nacionais como um aspecto de continuidade da terceira onda democrática. Mas sob quais dinâmicas podemos caracterizar a natureza do fenômeno democrático? O surgimento da teoria das transições democráticas possibilitou um novo fôlego a tentativa de compreensão desta dinâmica perante a ação de atores em posições antagônicas no processo de abertura de países que abandonaram seus regimes autoritários. Para tanto, Moisés (2011) menciona a contribuição teórica de Dho Chull Shin (2006) para as ideias da transição democrática. Sua perspectiva avança no entendimento da necessidade da existência de um Estado “formal” no processo de transição, com suficiente autoridade e requisitos para a sustentação da mudança de regime e para a geração de políticas públicas adequadas a conjuntura na qual a sociedade em questão está sendo conduzida. Mesmo em países de democracia consolidada, com ciclos regulares de eleições com capacidade de competição eleitoral e liberdade para a criação de partidos de linhas e posições diversas, é percebida a insuficiente afirmação do primado da lei, onde a “força” do cumprimento da lei tem peso e medida diferentes para determinados grupos, em detrimento de outros. Este caso também se reflete em circunstâncias da aplicação dos direitos civis, onde democracias com maior grau de amadurecimento podem apresentar uma fragilidade na igualdade de condições. A expansão da democracia, ainda que assuma particularidades locais em cada um dos Estados aos quais se estabeleceu, ainda apresenta paradoxos como esses. Esta questão, consensuada por Moisés (2011) e por Shin (2006), traz a discussão da necessidade da força de atores em espaços de participação com a devida legitimação por parte do Estado, afinal, instituições “sozinhas”, sem a contribuição de outros atores sociais, não possibilitam que o construto democrático funcione enquanto sistema político.

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Esta questão é aprofundada por Robert Dahl (2001). Segundo o autor, para que a democracia funcione, é necessário que haja espaço institucional e de participação para que a oposição se expresse e possa se constituir como uma alternativa de poder. Seu eixo teórico também caracteriza os conceitos de contestação e participação como elementos-chave para a maturidade de um regime democrático pleno. O fundamento do conceito de contestação relaciona-se com a garantia de condições da oposição ter espaço para contestar o poder. Para Moisés (2011), isso ocorre quando o Estado possibilita mecanismos de eleições livres e ordenadas por um poder exógeno ao processo eleitoral e com o espaço aberto a competição. O autor estabelece um nexo teórico entre os dois conceitos de Dahl, utilizando em seu argumento que não há possibilidade da contestação do poder em um espaço político sem as condições básicas à participação, que envolve a inclusão de todos os adultos na comunidade política e a possibilidade de votar e de ser votado (como processo de ampliação do sufrágio). Segundo Dahl (2001), para que tais conceitos sejam constituídos de forma plena, depende em grande parte que os membros da comunidade política tenham acesso à informação alternativa, ou seja, conteúdo de instituições livres de influência do poder central. Para o autor, as fontes de informação alternativa surgem como mais uma oportunidade para que se contribua para a compreensão do ambiente político como um via complementar de informações acerca do sistema. Esta questão relaciona-se com a necessidade de que os membros da comunidade política compreendam lucidamente quais as implicações das ações tomadas pelo governo e que afetam as suas vidas. O conceito de autogoverno é considerado por Dahl (2012) um dos fundamentos de maior relevância na caracterização do regime democrático. Este conceito envolve, em certo sentido, pressupostos para que os representados passem a definir, sob algum grau, um controle sobre a agenda política na qual suas vidas estejam sendo influenciadas. Entre esses está o direito ao autogoverno pelo processo democrático. Este não é um direito trivial, mas sim um direito tão fundamental que os autores da Declaração de Independência dos Estados Unidos o chamaram de inalienável. Tampouco o direito ao autogoverno é um direito a um "processo meramente formal", pois o processo democrático não é “meramente processo" nem "rneramente formal". O processo democrático não é "rneramente processo" porque é também um tipo importante de justiça distributiva, uma vez que ajuda a determinar a distribuição dos recursos cruciais do poder e da autoridade e, dessa forma; influencia a distribuição de todos os outros recursos cruciais. O direito ao processo democrático não é "meramente formal" porque, para que esse direito exista, também devem existir todos os recursos e instituições necessários a ele. Na medida em que esses estiverem ausentes, o próprio processo democrático não existe (DAHL, 2012, p.276277).

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O processo democrático mencionado pelo autor ocupa o lugar institucional necessário ao funcionamento coeso da estrutura do regime democrático. Este substantivo canal de roboração da democracia é o princípio da representação.

1.1

ELEMENTOS DE MATURAÇÃO DE UM REGIME DEMOCRÁTICO Como considerar um estado legitimamente democrático? E quais elementos são

norteadores para a sua eventual maturidade? Estas indagações ainda caminham pelas mais diversas correntes teóricas sobre a qualidade da democracia acompanhadas da controvérsia. Inseridos neste certame, encontramos uma diversidade de elementos fundamentais para o estabelecimento e maturidade do regime democrático, que serão debatidos nesta etapa do trabalho através dos embates teóricos que trouxeram efervescência a esta linha de pesquisa. Para autores como Robert Dahl (2001), a orientação metodológica para a definição da qualidade do regime é medida através das bases que o sustentam, ou seja, de quais elementos são, de fato, importantes para a construção das etapas da transição democrática. É através destes “parâmetros” considerados pelo autor que a democracia mantém o seu esteio, garante-se em direção a solidez de seus processos e sustenta a legitimidade de seus atos, promovendo a confiança da sociedade em suas instituições. Neste sentido, o autor observa o emblema da igualdade política como premissa fundamental ao estabelecimento do regime democrático. A partir da inserção deste tipo de igualdade como condição sine qua non para a formação da democracia, o regime adquire uma posição de garantidor de direitos mais amplos, visto que a igualdade assume um protagonismo em questões como o direito a vida, a liberdade, a felicidade e, sobretudo, no direito ao voto (e em seu relativo peso no processo eleitoral). Para que este modelo de igualdade se estabeleça em determinado campo da esfera pública, é necessário que se mantenham alguns critérios que possibilitem a exigência de que todos os membros de uma comunidade política estejam igualmente capacitados a participar das decisões que envolvem suas vidas, sejam elas de forma direta ou indireta. E, com base nesta diretiva, Dahl elencou cinco critérios que correspondem aos elementos que precedem a igualdade politica, possibilitando-a no campo dos espaços de participação, objeto basilar do processo democrático. Tais elementos são: a existência de funcionários eleitos pela população aos cargos a que 6

serão representados, a realização de eleições livres, consideradas “limpas” e frequentes, a liberdade de expressão como elemento de crítica, a diversidade de fontes de informação, a autonomia para as associações e uma cidadania inclusiva. É através deste espectro de governabilidade orientado pelo conceito da igualdade política, que o Estado democrático busca a edificação de suas instituições. Esta visão, sustentada por Dahl, serve como perspectiva teórica singularmente importante ao buscarmos identificar o estágio de amadurecimento de determinada democracia. Apesar da contribuição de Robert Dahl aos debates em torno do processo democrático, analisar o estabelecimento de um regime em processo de transição é dar passos em direção a um nebuloso caminho. Mesmo com o surgimento de novas discussões teóricas acerca desta transformação política, ao entendermos o processo de mudança como um elemento de natureza essencialmente política, sujeitamos nossas perspectivas analíticas e metodológicas ao campo da controvérsia, dada a suscetibilidade a questões sociais e históricas que podem não se apresentarem como resposta aos questionamentos levantados por este trabalho. Em resumo, ainda que existam certas proposições teóricas que conceituem o processo de maturidade na transição democrática, não podemos definir estas teorias como algo definitivo para a interpretação dos casos que abordaremos futuramente neste trabalho. Falar da presença ou da ausência de uma estratégia clara de construção da democracia durante a transição remete, pelo menos, para dois aspectos essenciais: por um lado, trata-se de reconhecer a diversidade de concepções e de modelos democráticos que comparecem e que procuram influenciar a transição e a consolidação democrática; por outro, trata-se de verificar se os setores que precisamente se identificam como portadores da proposta democrática são efetivamente capazes de definir e de implementar uma estratégia adequada às condições históricas de cada sociedade concreta para construir a democracia (MOISÉS; ALBUQUERQUE, 1989, p.13-14).

As discussões ao redor da consolidação democrática, com o passar do tempo, assumiram novas perspectivas, novos olhares, novos rumos. As preocupações teóricas acerca da transição democrática passaram a ser substituídas por outras questões ligadas a sustentação do regime. A partir destes novos cenários, a disputa pelo poder entre contendores deixa de ocupar o papel central para que a formação de novos atores possa assumir um maior interesse da comunidade acadêmica. Estes novos personagens (de plurais perspectivas, campos de atuação e interesses) trouxeram a tona a importância de atores que trabalham como interlocutores da sociedade frente ao exercício da transição entre regimes. Com isso, sua atuação passa a representar, também, uma ressignificação 7

da ocupação do espaço público, trazendo ao seu lado novas formas de fortalecimento da igualdade política, abordada por Dahl (2001). Este processo coincidiu com a aparição na arena pública internacional de novos discursos políticos das agências multilaterais de desenvolvimento, da ONU e de suas agências e de algumas das maiores fundações privadas que apoiam ONGS em nível mundial. Trata-se da revalorização do papel da sociedade civil na construção da democracia e da governabilidade (DAGNINO et alii., 2006, p. 14).

O processo de construção do regime democrático, a partir desta releitura teórica, passa a dimensionar as forças em disputa de poder em outras arenas, possibilitando que a composição da sociedade civil seja entendida também por seu caráter heterogêneo, com uma grande variedade de perspectivas e de formas de atuação. É nesta direção mais recente que autores como Dagnino (2006) e Avritzer (2002) posicionam a discussão teórica sobre os caminhos da transição democrática. Suas perspectivas seguem como um contraponto as teorias propostas por autores como O’Donnell e Przeworski (1989), que concentraram suas análises na compreensão dos desenhos institucionais, dos pactos e dos equilíbrios políticos entre forças autoritárias e democráticas (O’DONNELL apud DAGNINO, 2006). Dagnino (2006) e Avritzer (2002) estabelecem uma crítica a corrente teórica que nutriu-se destas perspectivas ao afirmarem que, ao considerarem a representação política como objetivo final do processo democrático, tais teorias acabaram por não considerarem da melhor maneira o surgimento de novos espaços públicos de representação e de novos atores, com agendas de interlocução que possam coadunar com as necessidades da sociedade. Como Avritzer (2002: 100-102) demonstrou, a teoria da transição se limitou a interpretar a mobilização social como resposta à queda do custo de oportunidade da ação derivada da liberalização política. Uma vez alcançada a democracia representativa, a sociedade civil ativada deixa seu espaço de ação para a sociedade política, a qual assume as causas e os interesses da sociedade civil e monopoliza as funções da representação legítima. (...) Ao conceber a democracia como mero exercício de representação política (eleitoralmente autorizada) no campo do Estado, se reproduz uma separação conceitual entre a sociedade civil e a sociedade política que impede a análise das continuidades entre elas e, portanto, o entendimento da democratização como um processo que se origina na sociedade mesma e a transforma (DAGNINO, 2006, p. 18).

Esta busca por uma ressignificação aos processos de transição democrática possibilitou um novo exercício de reflexão quanto ao papel da sociedade civil enquanto agente histórico. Este novo posicionamento do papel de ator social trouxe a mesa de 8

debates uma maior necessidade de entendimento acerca da importância dos variados grupos que compunham a sociedade civil nas etapas de consolidação do modelo democrático. Como uma possível consequência destas análises, a emergência do pensar em uma nova proposição que envolva a ocupação dos espaços público e político - sendo parte do amadurecimento do espectro democrático - passou a fazer parte dos debates contemporâneos. Para Dagnino (2006), esta apropriação de novos atores junto ao cenário político relaciona-se com a tentativa de se avançar em perspectivas de novas formas de participação social, abrangendo um caráter mais próximo as discussões que norteiam a realidade latino-americana de compreensão do papel do espaço público como um importante agente em função das democracias participativas. Ainda que a sociedade civil, organizada através de seus espaços de atuação, represente um dos aspectos de avaliação do nível de maturidade de um determinado regime, há outras sustentações que balizam o equilíbrio destes atores da democracia. Mesmo com os mais variados debates promovidos por vertentes teóricas distintas ao longo dos últimos vinte anos, é notória a permanência de alguns dos elementos que compõem um tipo de eixo condutor às etapas de participação. E, como tal, é necessário que se retome algumas das perspectivas de Dahl (2002) e Przeworski (2010) ao estruturarmos como premissas ao modelo de democracia amadurecida fatores como Igualdade, Representação, Participação e Liberdade. A igualdade política neste contexto é relacionada à dimensão da cidadania política, onde a Lei tem por regra a garantia de igualdade de medidas na aplicação do voto e seu direito aplicado a todos os membros adultos da comunidade política. A partir desta questão, entendemos o sufrágio como a razão-fim deste elo de formação do processo eleitoral, tendo como implicação a existência de eleições regulares, livres, abertas, competitivas e significativas. Este pressuposto funciona, concomitantemente e de forma subsequente, ao critério de Representação. Este segundo critério é evidenciado através do espaço simbólico que nos remete ao direito político, mais particularmente expresso no direito de escolha da sociedade sobre seus governantes, que contribuirão para as decisões que interferem em suas vidas. O elemento de representação exerce um papel significativo à unidade do processo democrático a partir do momento em que sua existência permite que a sociedade tenha voz efetiva através de seus representados. Moisés (2011) caracteriza que o elemento de 9

representação passa a assumir sua devida simetria a partir do momento em que há um cenário livre o suficiente para que os partidos políticos disputem o poder. E, para que esta garantia ocorra, é necessário que se imponha uma série de exigências para que a competição se dê em condições de igualdade perante os candidatos à representação. O elemento de Participação determina que os governados tenham a oportunidade de contribuir – com a crítica ou com o entendimento – nas decisões que influenciarão suas vidas. Isso ocorre através da interação entre a sociedade e seus representantes, identificados pela escolha através do pleito ou pela capacidade de interlocução com os atores Estatais, sejam eles membros da comunidade política ou participantes da sociedade civil. Esta diversidade entre os atores envolvidos na garantia de políticas públicas que atendam as demandas legítimas da sociedade foi introduzida no decurso do diálogo crítico que envolve a amplitude deste elemento de poder. Ao tratarmos a participação como razão empírica para a existência da representação e, por consequência, da manutenção de uma democracia, passamos a entender que o ciclo democrático atravessa o dilema da participação como meio para resguardar e produzir direitos. Esta hipótese consiste no entendimento de que os canais de participação existem como mediadores das necessidades e dos interesses da sociedade e que a ela, num certo sentido, estão condicionados. Dada esta conjugação de atores, situados entre as arenas de mobilização e reivindicação, o elemento de participação acaba por possibilitar a extensão de debates em torno do alcance de melhores condições de vida. Por fim, temos a Liberdade como livre expressão da cidadania. Com ela temos o estabelecimento de garantias de expressão, de liberdade de reunião e de participação, que se constituem, como finalidade, na prerrogativa de reivindicação à expansão dos direitos de cidadania. É a partir desta tradição teórica, que determina o conceito de qualidade política como um elemento indispensável à consolidação democrática, que entendemos a devida importância de seu papel para que se reconheça a ampliação de outras (e novas) dimensões da cidadania. Em linhas gerais, é possível perceber que, através do nível adequado de maturidade de um espaço democrático, teremos fortes indícios de oportunidade e garantias de conquista e manutenção de direitos. Como consequência, teremos uma conjuntura favorável ao surgimento de novos meios de empoderamento do cidadão, para que estes possam intervir sobre as decisões do poder constituído que 10

interferem em suas vidas e, de certa forma, definir os rumos sobre os resultados destas decisões.

11

2.

DEMOCRACIA

E

CONFLITO:

A

SOCIEDADE

CIVIL

EM

MOÇAMBIQUE O conceito de Sociedade civil possui diversas singularidades, balizadas por grandes teóricos sob diferentes – e, por vezes, antagônicas – matizes ao longo da História. No atual mundo multipolarizado, a definição do papel estabelecido pela Sociedade civil passou a assumir contornos e discussões conceituais diferentes das levantadas anteriormente – até então mais vinculadas a posições teóricas e contextualizações históricas (RAMOS, 2005, p.13). Este interesse por um novo enquadramento do papel e da relevância da Sociedade civil está diretamente ligado aos impactos da globalização. Foi através deste fenômeno que atores estatais assumiram novos lugares no cenário global, redefinindo suas posições de poder e, consequentemente, postulando novas questões para alem do ambiente da política doméstica. Tal desterritorialização trouxe a reboque o surgimento de problemas que superaram a esfera dos Estados e de suas soberanias para assumirem um caráter global. Dentro deste contexto de formação de novas identidades para as Sociedades Civis no processo de globalização, serão trazidas algumas das questões que compõem o processo de estabelecimento da Sociedade Civil em Moçambique, face o desafio da transição para um modelo democrático. Neste capítulo, pretendo investigar a contribuição da Sociedade Civil Moçambicana durante o processo de transição para a democracia, buscando identificar o espaço de influência conquistado por esta sociedade enquanto ator político de mediação e mobilização. Se o jogo democrático adotado por Moçambique impunha como regra a necessidade de pluralidade ideológica e, a partir desta, a existência da luta política, como a Sociedade Civil estabeleceu o seu espaço como ator não-estatal?

2.1.

SOCIEDADE

CIVIL

GLOBAL

X

SOCIEDADE

CIVIL

MOÇAMBICANA: UMA COMPARAÇÃO POSSÍVEL? Frente a estas novas questões globais, vemos o surgir de graves impli/cações sociais, advindas das crescentes relações desiguais entre Estado e sociedade, impulsionadas pela globalização econômica. Em consonância com as projeções dos Estados no cenário internacional, algumas organizações da sociedade civil começam a 12

assumir o protagonismo na defesa de determinados campos de atuação, tais como Meio ambiente (Greenpeace) e Direitos humanos (Anistia Internacional), alcançando um caráter transnacional. Num cenário composto pela culminância e crescimento de problemas de ordem global, onde conceitos como democracia e cidadania são relegados a um segundo plano por atores estatais como consequência de uma fragilização da noção de território, a atuação de organizações transnacionais na salvaguarda destes valores fortalece a construção de uma Sociedade Civil Global (SCG), relacionada com a garantia de melhorias sociais, aliada a interlocução entre Sociedade e Estado sob o âmbito internacional. A ascensão de forças sociais no plano global constitui um tipo novo e diferente de política. A ideia de “política cívica mundial” (Wapner, 1996) significa que, enraizado nas atividades de associações civis transnacionais, se encontra um entendimento de que os Estados não detêm o monopólio dos instrumentos que governam os negócios humanos e que, ao contrário, existem formas não-estatais de governança que podem ser usadas para efetuar mudanças em larga escala (VIEIRA, 2001,p .30).

Vieira (2001) analisa que o conceito contemporâneo de Sociedade Civil Global é um elemento-chave para a ressignificação das Relações Internacionais, que já não podem mais ser explicadas em termos de relações entre estados e mercados, dado que a visão estado-cêntrica foi superada a partir do surgimento de atores não-estatais que alcançaram um status de relevância e poder equivalente aos de estados-nacionais. Diferentemente dos modelos de Sociedade Civil Global que, impulsionadas pelos efeitos da globalização alcançaram uma relativa “transnacionalidade” afim de contribuir com atores nacionais seguindo uma via da área Internacional para a Doméstica, a Sociedade Civil Moçambicana (SCM) percorreu o sentido inverso, recorrendo ao apoio internacional para defrontar-se com as questões domésticas. Outro aspecto que as difere é que, no caso de Moçambique, as estruturas de mobilização e interlocução são executadas por atores sociais de matizes diferentes das caracterizadas no escopo da Sociedade Civil Global. Para analisarmos as características da sociedade civil de Moçambique, é necessário que percorramos as origens das relações sociais nas quais esta sociedade foi estabelecida. Historicamente, a estrutura na qual esta sociedade foi construída transitou entre as esferas privada e pública ao longo do tempo devido à manutenção das estruturas sociais baseadas no parentesco e no interconhecimento como norma de funcionamento social, tanto individual quanto coletivo (SANTOS, 1994, apud 13

VAN EYS, 2002). Tais grupos corporificam as pequenas organizações comunitárias de base, responsáveis por uma significativa parcela de grupos de atuação que compõem esta Sociedade Civil. Por serem, majoritariamente, emergentes de uma vontade popular espontânea, tem uma ampla capilaridade em regiões isoladas de Moçambique. A saída deste tipo de estrutura social da esfera privada para a pública deu-se a partir da criação das OSC por grupos familiares. Outros dos grupos que fazem parte desta OSC’s são as mais variadas associações, seguidas pala contribuição de Organizações Internacionais. 2.2.

HISTÓRICO DE CONFLITOS EM MOÇAMBIQUE Para elencar as questões que necessariamente tiveram relação com os conflitos

em Moçambique, é importante que seja resgatada parte de sua história nos últimos séculos. Oriundos de povos dispersos da etnia Banto, a população moçambicana adquiriu perfis culturais distintos em seus territórios, tais como nas regiões sul e central do país, que vinham de estruturas patriarcais, enquanto que, em regiões próximas ao Norte, a estrutura socio-parental permaneceu baseada na figura da mulher como liderança local. A influência dos colonizadores portugueses e dos comerciantes árabes contribuiu ainda mais para este intrincado e plural contexto étnico. A partir de 1890 começou o processo de ocupação do exército português. O centro e norte do país foram divididos entre empresas concessionárias enquanto que o sul permaneceu, na sua maioria, sob o domínio directo do estado português: Moçambique era governado como província de Portugal (TOLLENAERE, 2006, p.8)

No século XX temos um aumento da formação de grupos nacionalistas por toda a África como reflexo das mobilizações entre metrópoles e colônias durante a II Guerra Mundial1, o que possibilitou mudanças importantes no estatuto político de regiões até então colonizadas, principalmente a partir dos anos 60, com o acirramento dos conflitos pró-independência. Para o estado português – último a reconhecer a independência de seus territórios colonizados – ceder a pressão internacional pró-descolonização era perder espaço de influência, seja ele militar (a maior parte de seu exército de 142 mil homens encontrava-se na África), geopolítico, de recursos e de matéria-prima, ressignificando seu poderio e exercício deste poder num cenário internacional em plena bipolarização provocada pela Guerra Fria. Em Moçambique, o processo de 1

1 A II Guerra Mundial teve relevante papel na (re)tomada de consciência dos povos colonizados, ocorrida no momento em que tais povos são chamados a participar da guerra em defesa de suas respectivas metrópoles, obtendo, como recompensa, garantias de autonomia ou de independência, nem sempre respeitadas. (CARDOSO, 1973 apud LINHARES, 2008, p.45).

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independência teve como ator essencial a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), união de grupos nacionalistas criada em 1962 e grande arregimentadora do conflito em favor do fim da exploração colonial, que durou 10 anos (1964 a 1974). Logo após a queda do regime ditatorial português, em 1974, com a Revolução dos Cravos, Moçambique conquistou sua independência com a atuação da Frelimo, que negociou a desvinculação do poder colonial, ocorrida em 1975. António (2010) sustenta que, ao autoproclamar-se “força dirigente do Estado e da Sociedade” (art. 3.º da Constituição de 1975) por ocasião da independência, a Frelimo converteu-se numa instituição política hegemônica, tanto em relação ao controle indiretamente exercido sobre a sociedade civil como às próprias esferas institucionais em que a sociedade se alicerça. A partir de sua desvinculação com Portugal, o governo da Frelimo assume novas e complexas questões, como consolidar-se enquanto nação de forma identitária, política e econômica, interagindo com as plurais composições religiosas e étnicas de seu território. Estes fatores, aliados a questões de caráter internacional que serão abordados em seguida, acabam por provocar o acirramento dos conflitos ao longo da década de 70 até o início dos anos 90, gerando cicatrizes e uma tensão social ainda refletida no cotidiano da população, ainda grandemente marginalizada, apesar das constantes iniciativas de equalização social. Tollenaere (2006) caracteriza duas questões como causas externas que, preponderantemente, potencializaram o conflito pós-independência: a Guerra Fria e a desestabilização da África do Sul e da anterior Rodésia do Sul. Nos anos seguintes à independência, a Frelimo tenta implementar as suas políticas marxistas-leninistas suscitando descontentamentos significativos entre os moçambicanos, especialmente nas áreas rurais. Exemplos de tais políticas são a criação de campos de reeducação, a imposição do patriarcado nas regras familiares, a concentração de produção em fazendas do estado e a ilegitimização oficial de autoridades tradicionais e religiosas. Estas tentativas genuínas para criar uma sociedade moderna geraram descontentamento interno e, eventualmente, resistências. (TOLLENAERE, 2006, p.9)

A bipolarização ideológica e econômica existente durante a Guerra Fria conduziu posições dos governos africanos em processo de descolonização. A Frelimo, desde a sua fundação enquanto grupo, por ter corporificado o sistema político de natureza coletivista adotado nos países socialistas do Leste Europeu, manteve-se isolada dos demais processos de independência de países africanos (OSÓRIO, 2002). As práticas de governo adotadas pela Frelimo acabaram por causar inconvenientes aos países vizinhos, pertencentes a regimes minoritários brancos. Como parte da sistemática 15

da Frelimo, Moçambique concede apoio e asilo político aos guerrilheiros pró-Zimbabue na Rodésia do Sul. A retaliação do país vizinho acontece com o investimento, organização e treinamento de ex-soldados moçambicanos contrários a política da Frelimo. Esta capacitação, patrocinada pela Rodésia do Sul e, posteriormente, pela África do Sul, possibilitou a criação da Resistência Nacional de Moçambique (Renamo). Esta força de guerrilha tinha como estratégia a violenta desarticulação de ações governamentais em favor da população, tais como a destruição de hospitais e prédios públicos, bem como a prática de sequestros. Ainda que as ações da Renamo provocassem a instabilidade na segurança pública e, indiretamente, dificultasse as ações de governo, a organização possuía legitimidade da população em determinadas regiões por estimular o reposicionamento do papel das autoridades tradicionais e religiosas, combatido pela Frelimo. Ao longo do tempo, a guerrilha atendeu a parte da população como forma de expressão de demandas e conflitos sociais2, tomando as dimensões de uma guerra civil. Durante o período de 1984 a 1986 os conflitos entre o exército – comandado pela Frelimo – e a Renamo se acirram, trazendo uma grande quantidade de vítimas a região.

A violência promovida pelo exército moçambicano e por guerrilheiros da

Renamo acaba por alastrar-se para toda a extensão do país. Neste período, o falecimento do presidente moçambicano Samora Machel abre caminho aos passos iniciais para os diálogos de paz, após Joaquim Chissano assumir a presidência sob o discurso de fortalecer o diálogo entre o povo de Moçambique. O ponto culminante para a transição do conflito para a paz ocorre com um evento em escala global: o fim da Guerra Fria com o desmantelamento da União Soviética (URSS) em 1989. Tomando por fim a polarização e o patrocínio soviético a conflitos de paísessatélites em desenvolvimento, a Frelimo formaliza sua desvinculação do modelo marxista-leninista como base ideológica. Outro dos fatores que contribuíram significativamente para o processo de paz está ligado a uma questão regional: o desmantelamento do sistema de apartheid e a

2

Parte significativa das comunidades rurais apoiava as ações da Renamo como resposta a insatisfação do processo de intervenção do Estado, liderado pela Frelimo, simbolizado pelas aldeias comunais.

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construção da democracia na África do Sul, outrora apoiador dos guerrilheiros da Renamo. Com a fragilização do governo sul-africano e da União Soviética, as partes em conflito perdem seus grandes apoiadores, abrindo caminhos para a atuação da Igreja Católica como interlocutora no processo de paz em Moçambique. Através da articulação movida entre a Igreja, o governo (Frelimo) e Renamo, a agenda para as negociações de paz foi acordada a partir de seis tópicos a serem debatidos, sendo definidos como: lei dos partidos políticos, sistema eleitoral, assuntos militares, garantias para a Renamo, o cessar-fogo e uma conferência de apoiadores. Após anos de discussões envolvendo as partes dissonantes do conflito, o Acordo Geral de Paz (AGP) é assinado em Roma em 1992, instaurando o começo de um novo ciclo na história de Moçambique. Este acordo, assinado por lideranças da Frelimo e Renamo, representou mais do que o compromisso para uma agenda nacional e democrática. Ele garantiu que a produção de elementos de representação tivessem voz e oportunidade numa sociedade com dificuldades das mais diversas ordens, sendo muitas delas relacionadas as expensas do conflito. A criação do AGP possibilitou o estabelecimento da ONUMOZ, operação especial da ONU com a missão de garantir viabilidade técnica e estratégica para a implementação do acordo em Moçambique. A partir deste processo de construção e estabilização democrática, foi possível realizar as primeiras eleições multipartidárias dois anos depois, em 1994, garantindo ampla participação do eleitorado moçambicano e trazendo um resultado tecnicamente satisfatório segundo observadores internacionais convidados para contribuir com a fiscalização do processo eleitoral (TOLLENAERE, 2006, p.10). 2.3.

SOCIEDADE CIVIL EM MOVIMENTO Segundo Osório (2002), as alterações no movimento político introduzidas em

1994, fortalecidas a partir da realização da primeira eleição multipartidária, criaram novos campos de intervenção pública, permitindo a produção de novas formas de acesso e ocupação do espaço político. Este movimento – catalizado pelas negociações de paz e pelo AGP de Roma – culminou na ampliação da participação política através de atores nacionais e internacionais. Esta perspectiva diverge da proposta por Francisco (2007) no qual credita este alargamento da esfera política a dois movimentos distintos e iniciados

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pela Frelimo no período do conflito armado. O primeiro deles ocorre com a criação das Organizações Democráticas de Massa (ODMs)3. Contudo, rapidamente as ODMs mostraram-se incapazes de manter a sua capacidade de mobilização e organização (...). Possivelmente contribuiu grandemente para tal o facto delas terem sido parte do sistema de governação centralizado, onde a iniciativa local e as necessidades das comunidades de base não encontraram a devida resposta (EYES, 2002, apud FRANCISCO, 2007. p. 6)

O segundo movimento político que proporcionou uma ampliação do espaço político foi a implementação do Programa de Reabilitação Econômica (PRE), ocorrida em 1987. O declínio económico, que começou no início da década de 1980, (...) conduziu ao estado de emergência. Não se pensou noutra saída para o país se não solicitar a sua admissão formal ao BM (Banco mundial) e FMI (Fundo monetário internacional), o que veio a acontecer em 1984. Para tal e de acordo com as práticas correntes destas instituições, Moçambique teve que adoptar um pacote de medidas económicas, mais conhecido pela designação “PRE” (VAN EYS, 2002. p. 3),

Este programa, que fez parte da revisão político-ideológica ocorrida com a Frelimo ao final da década de 80, iniciou a gradual abertura econômica do país ao mercado global, saindo do eixo comercial exclusivo com a URSS. Esta iniciativa garantiu condições para o estabelecimento de Organizações Não-Governamentais estrangeiras em Moçambique, o que estimulou o crescimento do associativismo regional. Ambas as perspectivas, situadas em períodos diferentes de uma mesma conjuntura histórica, tratam da aproximação de organizações transnacionais que acabaram por fomentar o desenvolvimento da sociedade civil e de sua interação com o governo. Osório (2002) e Francisco (2007) também citam o efeito simbólico da nova constituição de 1990, que introduziu o multipartidarismo em Moçambique. Ambos os autores dão o crédito pela emergência da nova constituição às discussões em torno do projeto de paz estimulado pela Igreja Católica e por outros movimentos da Sociedade civil – nacional e internacional. Esta constituição rompe com o sistema monopartidário, garantindo pela primeira vez em Moçambique o direito as liberdades individuais e de associação sem o vínculo com o Estado existente com as ODMs (FRANCISCO, 2007).

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As Organizações Democráticas de Massa (ODMs) fizeram parte da formalização do associativismo em Moçambique. Sua criação, promovida pela Frelimo, fez parte de um conjunto de ações com o intuito de promover a igualdade revolucionária como legitimadora da nova ordem social instituída no processo de independência. O estabelecimento das ODMs também contribui, indiretamente, como elemento de rompimento com a estrutura existente no período colonial, onde o associativismo era severamente reprimido.

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A sociedade civil moçambicana, enquanto arena pública de sociabilidade e convergência em ações coletivas possibilitou em seu universo de atuação pós-conflito armado o debate e a contribuição de um ideal participativo e inclusivo às camadas sociais que não faziam parte representativa do jogo político e das questões deste jogo. Com a reconfiguração da dinâmica social promovida pelo AGP, novos atores políticos ingressaram na esfera pública de influência, estabelecendo novas pontes de interação entre o Estado e a sociedade e de legitimação de demandas até então desprezadas pelo impacto e esforço promovido durante a guerra civil. A partir dos anos 90, com o fim dos conflitos, Moçambique recebeu investimentos estrangeiros expressivos – em materiais, financeiros, humanos e intelectuais – para a instauração efetiva do processo de paz. Como etapa crucial, parte destes recursos foi destinada a construção de mecanismos de aplicação dos princípios democráticos, tais como a construção do processo eleitoral e do estímulo à participação cidadã. Para o Estado moçambicano, estimular uma sociedade civil crescente e ciosa por melhorias sociais ia alem de uma demanda represada de desenvolvimento local, pois também atendia as exigências de credores e financiadores internacionais, assumindo maior ganho político ao mostrar-se como um aliado das agendas hegemônicas na África.

Partindo desta nova conjuntura, as organizações não-estatais passaram a

assumir um novo protagonismo em grande parte das esferas políticas e sociais de Moçambique, traduzindo-se no fluxo de trabalho encabeçado por Grupos Internacionais, representados pelos grandes financiadores do processo de paz, seguido do Estado como agente legitimador das ações e da própria Sociedade civil como instrumento de ação e mobilização. Estas mesmas redes de associativismo acabam por fomentar o empoderamento dos cidadãos, seja na aplicação de projetos patrocinados por financiadores internacionais, seja pela coordenação de ações do governo moçambicano. Francisco (2007) caracteriza que a abertura do processo de democratização conduziu as atividades das ONGs à recuperação do ‘tecido humano’ e a construção de infraestruturas sociais básicas nas zonas rurais destruídas pelo conflito. Esta nova configuração possibilitou a aplicação plena das primeiras eleições 4, ocorridas em 1994. 4

O recenseamento da população e a organização das etapas eleitorais foram estabelecidos no AGP (Acordo Geral de Paz), assinado em Roma por membros da Frelimo e Renamo. Para o cumprimento efetivo do acordo, o governo de Moçambique contou com o apoio da missão de paz ONUMOZ, de

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A partir deste estreitamento na relação entre o Estado moçambicano e ONGs das mais diversas origens, temos o surgimento de iniciativas nacionais que proporcionaram o desenvolvimento da noção de Sociedade civil enquanto segmento. Apesar da heterogeneidade dos grupos que atuam diretamente na interlocução da Sociedade civil com o Estado e de sua embrionária construção identitária enquanto voz de representação, a relação entre os atores estatais e não-estatais tem fornecido projetos de alcance nacional, tais como a Campanha Terra, a Agenda 2025 e o Observatório da Pobreza. A Campanha Terra foi um movimento criado em 1997 cujo objetivo visava a discussão de uma nova Lei de Terras, em substituição a lei de 1979, que estimulava a produção e arrendamento de grande parte das terras produtivas para o Estado e uso das terras comunais. A iniciativa, que uniu o governo, cerca de 200 ONGs nacionais e estrangeiras, grupos religiosos, acadêmicos e a população em geral, possibilitou a oportunidade de distribuição de terras e, como consequência, estimulou a economia rural até então em declínio (NEGRÃO, 2003, apud FRANCISCO, 2007. p.7). As organizações de Sociedade civil contribuíram significativamente para a criação e o fortalecimento do movimento, atuando sob duas frentes em momentos distintos: como articuladora de questões no debate em favor da Lei de Terras e, após a sanção da Lei, como disseminadora dos direitos e procedimentos contidos nela. A Sociedade civil também mantém-se ativamente na Agenda 2025. Idealizado pelo governo em 1998, o projeto tem como finalidade preconizar metas e ações entre o Estado e a sociedade que visem o desenvolvimento da região em longo prazo. Sua distinção entre os demais projetos realizados em Moçambique vem da contribuição do Estado como agente interlocutor dos processos de mobilização, participação e consenso, ancorados a Estratégia Nacional de Desenvolvimento, diretamente vinculada aos indicadores econômicos e sociais que nortearão esta visão de futuro debatida entre os participantes de todas as esferas do projeto. A Agenda 2025 estabelece que, a partir do amadurecimento das instituições do Estado e da própria Sociedade civil ao longo do andamento das etapas a serem orquestradas, Moçambique disporá de mecanismos de governança eficazes, aliados a ganhos sociais e econômicos em todas as suas esferas. investidores estrangeiros e, essencialmente, da contribuição da Sociedade civil. A eleição teve grande adesão do povo de Moçambique e ocorreu com o acompanhamento de observadores internacionais, que legitimaram o resultado e o processo eleitoral como um todo.

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O Observatório da Pobreza, por sua vez, constitui-se como uma plataforma de participação cujo propósito é estimular o diálogo entre cidadãos e atores governamentais. Através deste canal de interlocução, organizações de Sociedade civil podem identificar a evolução das percepções de pobreza nos âmbitos regional e nacional dentre os cidadãos de Moçambique. O programa prevê que, com a participação da população – estimulada pelo Governo e Sociedade civil – será possível acompanhar diretamente o impacto das ações e projetos de redução da pobreza e medir a distribuição de renda em suas áreas de influência através dos relatórios publicados pelo “G20” 5 (G20, 2004, p. 6). O Observatório da Pobreza é uma das ramificações do Plano de Ação para Redução da Pobreza Absoluta (PARPA), que se caracteriza como um programa de planejamento público governamental que visa a erradicação da pobreza extrema no país. Os referidos programas de governo – que adotaram como prioridades o estabelecimento de uma política social forjada em uma divisão mais equitativa de renda e a construção de processos de participação cidadã e governança – surgiram, inicialmente, dada a necessidade da reconstrução social, política e econômica de Moçambique após a guerra civil que levou a fragmentação da estrutura estatal. Porém, tais iniciativas também surgiram como resposta a iniciativa HIPC (Iniciativa para Alívio da Dívida dos Países Pobres Muito Endividados)6, que fornecia espaço para a negociação de dívidas de países pobres, exigindo como contrapartida um programa nacional de governo orientado a redução da pobreza. A partir das ações propostas pela PARPA, Agenda 2025 e Observatório da Pobreza, o Governo de Moçambique negocia o cancelamento de dívidas externas bilaterais que existiam de países credores, tais como Inglaterra e Portugal7, possibilitando uma maior circulação de investimentos em favor do desenvolvimento da região.

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O G20 é um grupo composto por 60 membros (20 deles pertencentes a Sociedade civil, outros 20 do Governo e mais 20 membros da Comunidade Internacional) cuja finalidade é acompanhar, estimular e aferir os progressos dos indicadores do Observatório da Pobreza em escala nacional e em cada uma das províncias vinculadas ao projeto. A partir da proposta de Desenvolvimento estipulada regional e temporalmente, cabe a este grupo a documentação destes indicadores econômicos e sociais para divulgação pública. 6

O HIPC foi um esquema desenvolvido pelo FMI e pelo Banco Mundial em 1996 cuja finalidade era a negociação para a redução da dívida externa bilateral e/ou multilateral de países pobres com alto grau de endividamento que apresentem programas de governo voltados ao desenvolvimento. 7

A dívida pública de Moçambique com Portugal, estimada em US$ 393 milhões, foi cancelada em julho de 2008, enquanto a dívida britânica, de US$ 150 milhões, teve seu fim em janeiro de 2005.

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2.4.

SOCIEDADE CIVIL EM EBULIÇÃO Esta mesma Sociedade civil moçambicana que demonstra-se crescente, atuante e

essencial no processo de desenvolvimento e de redemocratização, ainda reserva muitas fragilidades em sua estrutura. Tais instabilidades são colocadas em xeque ao observarmos que, apesar dos avanços no combate a pobreza e em relativos ganhos sociais e políticos, a sociedade civil Moçambicana ainda não encontrou um “eixo condutor” que a defina em termos de organização, de força mobilizadora e de inclusão social. Com estes e outros desafios que serão listados a seguir, Moçambique continua a ser palco de potenciais perturbações de ordem social e política, que impactam severamente na agenda de desenvolvimento estabelecida em parceria tanto pelo Governo como por organizações que fazem parte desse mesmo substrato social. Ainda que grande parte dos atores não-estatais que corporificam a sociedade civil tenham surgido a partir do processo de democratização dos anos 90, é percebida uma grande fragilidade institucional por parte expressiva deste grupo na atualidade, manifestada através da elevada dependência financeira das Organizações de Sociedade Civil perante seus financiadores internacionais e da ainda embrionária estrutura administrativa que contribui com parte considerável do trabalho de campo destas organizações. Francisco (2010) retrata que o investimento feito em 2008 por financiadores internacionais em OSCs chegou a 72% do total de recursos destas instituições8, seguido por 25% de doações de empresas e famílias e 3% do total em recursos cedidos pelo governo. A relação de dependência financeira das OSC também é sustentada por Homerín (2005) ao tratar do perfil comumente generalista de atuação de determinadas OSCs: Sem uma base financeira estável, as OSC dificilmente têm capacidade para implementar programas técnicos ou de longo prazo. Um bom número de OSCs exerce, pois, atividades mais generalizadas, intervindo à medida das prioridades dos doadores e muitas vezes com um fraco grau de tecnicidade (HOMERÍN, 2005, p. 5)

A falta de autonomia das OSCs na geração de seus recursos, alem de concentrar a escolha das regiões e áreas de atuação em grupos de financiadores internacionais, acabava por limitar uma possível especialização das agendas e das atividades destes. O reflexo deste tipo de ‘hierarquização’ do processo de escolha do método e do campo de 8

Tais dados foram obtidos no levantamento feito pelo Fórum de ONGs LINK, considerado o agrupamento de OSCs mais representativo de Moçambique.

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trabalho incide sobre 2 questões: a carência de uma mão de obra necessariamente qualificada para o emprego do trabalho de campo nas OSCs e a menor concentração e atuação destas instituições em determinadas províncias, em especial, localizadas em regiões rurais. A qualificação da mão de obra atuante na sociedade civil é ainda mais fragilizada no desempenho das comunidades de base. Tais grupos, ainda que tenham uma quantidade de membros e abrangência superior as de organizações internacionais, não possuem a preparação técnica necessária para a gestão e acompanhamento de projetos de impacto social. A escassez de um tipo de mão de obra técnica acaba por produzir uma migração destes recursos especializados para as organizações internacionais, cujos salários tornam-se mais atraentes para estes profissionais (HOMERÍN, 2005).

Tendo em vista a concentração das sedes de organizações

financiadoras na capital de Moçambique (Maputo), percebe-se uma grande concentração de projetos voltados à região sul do país, em detrimento de outras regiões também imersas em problemas sociais e instabilidades políticas e econômicas. Ainda que as províncias mais afastadas da capital recebam menores investimentos públicos ou de atores internacionais, há iniciativas que visam a modernização da economia agrária em áreas como Nacala e Nampula, frutos do projeto de cooperação tripartida 9 denominado “ProSavana”.

2.5.

DEMOCRACIA CADENTE OU CONFLITO CANDENTE?

Ainda que o governo e a sociedade Civil venham contribuindo para o fortalecimento dos processos de participação pública e de construção da democracia, Moçambique ainda encontra-se na transição para uma sociedade efetivamente democrática. Esta gradação a um processo inclusivo e de amplamente democrático ocorre devido ao histórico de eleições após a assinatura do AGP, em 1992. As eleições multipartidárias de 1994 contaram com uma ampla participação popular e um massivo apoio da ONU, sendo considerada internacionalmente como uma ação bem sucedida. As tensões com o processo eleitoral passaram a ocorrer a partir das eleições locais de 9

O programa “ProSavana” é uma parceria entre o Ministério da Agricultura de Moçambique(MINAG), a Agência Japonesa de Cooperação Internacional (JICA) e a Agência Brasileira de Cooperação (ABC) cuja proposta é melhorar as condições de vida da população no Corredor de Nacala através de um desenvolvimento agrícola regional sustentável e inclusivo. Maiores informações em https://www.prosavana.gov.mz/

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1998, cujo partido de oposição (Renamo) levantou a suspeita de manipulação eleitoral, firmando um boicote junto de partidos políticos minoritários. As eleições posteriores (1999, 2000 e 2003) foram novamente marcadas por violentos incidentes e descrédito no processo eleitoral, com baixa participação nas urnas (TOLLENAERE, 2006, p. 15). Desde as primeiras eleições locais, o direito ao voto é decidido pelo governante local, cabendo a sua escolha a aplicação do direito ao sufrágio universal ou o uso da medida de provincialização 10, cuja oportunidade do exercício do voto fica restrito a um quarto da população da província. Ao analisarmos o surgimento da democracia moçambicana como um fato catalisador para o ingresso de novos atores sociais no debate político – até então polarizado entre os grupos Frelimo e Renamo – percebemos que, tanto a sociedade civil quanto o governo de Moçambique não adquiriram mecanismos para inserção destes novos cidadãos. Tomamos como exemplo a inclusão social das mulheres neste novo cenário. Em relação à luta das mulheres pelo acesso aos direitos, os partidos a desclassificam ou a transformam em capital em relação com as agências internacionais ou com as elites urbanas. Assim, a participação política das mulheres inscreve-se, aparentemente, em um contexto frágil do ponto de vista da cultura democrática (OSÓRIO, 2002, p.446).

A ausência de medidas claras e substanciais de inserção das mulheres como detentoras de direitos e indivíduos com representatividade acaba por desencadear um novo processo de desigualdade na democracia recém-implantada. O reflexo deste distanciamento de direitos entre gêneros acaba por provocar o esvaziamento do espaço político de representação e acirrar conflitos já latentes desde a independência de Moçambique. A sociedade civil, por sua vez, vem contribuindo com a garantia de direitos através de OSCs como a Organização da Mulher Moçambicana (OMM), que luta pelo empoderamento da mulher de forma emancipatória. A participação feminina nos espaços políticos vem crescendo ao longo do tempo, com o aumento da ocupação feminina, que chega a representar 27% dos parlamentares. Em linhas gerais, a Sociedade Civil Moçambicana ainda vive um processo de definição de sua própria identidade enquanto esfera de interlocução, negociação e 10

A provincialização restringe a eleição direta a somente um quarto da população. Os demais três quartos ficam subordinados a um sistema administrativo centralizado por órgãos e dirigentes locais nomeados (FRANCISCO, 2010, p.74-75).

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implementação de políticas públicas. Durante o período de independência e guerra civil, o cenário do país desfavorecia o surgimento de atores não-estatais e atuantes, mesmo com a existência das ODMs. Por mais que a mediação com o Estado esteja alcançando avanços através de programas como a Agenda 2025 e o PARPA, as OSCs possuem grandes desafios que as inibe em atuação e, consequentemente, em melhorias para a população, tais como a significativa dependência de financiadores estrangeiros (que mantém a existência de grande parte das organizações), a carência de organização e a capacitação da mão de obra atuante nestes grupos. Tendo em vista as fragilidades institucionais de seus processos de trabalho, grande parte desta Sociedade Civil mantém-se sem coesão em seus projetos e descredibilizadas perante atores estatais e as populações supostamente representadas por elas. Muitas das raízes da fragilidade destes grupos e, por sua vez, da instituição democrática Moçambicana tem relação com a disputa pelo controle do Estado e com o fim do conflito. Ainda que hoje as duas partes outrora beligerantes no conflito armado disputem seu espaço no campo político como partidos de representação, sua lógica de poder ainda pauta o cenário atual, inviabilizando a ação democrática e seus avanços de forma plena. Estas fragilidades do debate político, altamente arraigada às dificuldades de reconciliação com o passado, tornam-se determinantes no discurso que fomenta tensões refundadoras, fragmenta avanços sociais, paralisa a vida partidária e interrompe vidas.

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3.

ENTRE O CONFLITO E A ESPERANÇA: ATORES EM CONSTRUÇÃO

EM ANGOLA No ano de 2002, a guerra civil em Angola teve seu fim, trazendo um rastro de destruição que foi alem das estatísticas oficiais. A perpetuação deste conflito, surgida nos derradeiros meses de uma Angola até então colonial, levou às expensas um Estado em formação, fragilizando uma economia potencialmente crescente e rompendo o processo de transição democrática no período de pós-independência. O objetivo deste capítulo é revisitar as questões históricas levantadas pela literatura especializada sobre o conflito armado, buscando estabelecer relações sobre o papel da sociedade civil angolana para o alcance de novos canais de participação. Esta análise ocorrerá, distintamente, a partir da contextualização da conjuntura histórica, descrita nas partes 1 e 2 deste capítulo, seguida da caracterização desta sociedade civil, bem como seus dilemas. A primeira abordagem histórica versará sobre os embates ocorridos nos momentos pré-independência até o fim da considerada Primeira República, em 1991. A partir deste eixo temporal, serão analisados os fatores que culminaram no surgimento e fortalecimento dos atores essenciais à discussão da história recente de Angola: os movimentos aliados de libertação que, posteriormente, assumiram posições hostis entre si visando o controle do Estado. O segundo recorte temporal tratará do período posterior aos Acordos de Bicesse11 até o fim das hostilidades, promovido após novo Acordo de Paz, assinado em 2002. Este período foi deflagrado pelo acirramento dos conflitos, alcançando fortemente setores econômicos-chave do país, como a indústria petrolífera e de mineração. A análise deste recorte temporal tem como objetivo a tentativa de exploração dos elementos de sustentação do conflito, bem como estabelecer conexões com a formação dos espaços de sociabilidade e intervenção nesta 2ª etapa de democratização. Por fim, a participação da sociedade civil, enquanto arena de participação, é trazida ao debate com o objetivo de estabelecer análises sobre as formas nas quais este 11

Acordo de cessar-fogo assinado em 1991 por José Eduardo dos Santos, presidente de Angola, e Jonas Savimbi, líder da então milícia UNITA. Tais acordos também previam a realização das primeiras eleições livres e democráticas no país. “Texto do Acordo de Paz em Bicesse”. Os Acordos de Paz em Bicesse. Ulster: International Conflict Research – INCORE: 1991. Disponível em http://www.incore.ulst.ac.uk /services/cds/agreements/pdf/ang1.pdf. Acesso em 7 de junho de 2014.

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importante ator alcança, gradualmente, espaços de intervenção em uma Angola fragilizada pelos conflitos civis. Através do resgate deste histórico processo de luta por uma posição relevante de interlocução entre o Estado e a sociedade, é possível que sejam avaliadas outras das etapas cruciais para o estabelecimento de uma transição democrática consistente e inclusiva, assunto central deste trabalho.

3.1

INDEPENDÊNCIA E PRIMEIRA REPÚBLICA O território de Angola, pertencente ao império português por muitos séculos,

tornou se província ultramarina em 1951 sob o discurso da garantia de direitos e da harmonia entre os diversos grupos nativos e seus colonizadores, o que garantiria a população colonizada maiores oportunidades de trabalho e acesso a melhores condições sociais. Esta retórica era ligada ao padrão de colonialismo de povoamento predominante na África do século XX, que manteve a população angolana subjugada a rigorosas políticas em relação ao controle da terra e do trabalho, sem estabelecer ganhos significativos a sua mão de obra (PEIXOTO, 2010, pp. 2). O modelo de colonialismo de povoamento implementado do pós-Segunda Guerra Mundial ao início dos anos 1970 nos dois maiores territórios ocupados pelos portugueses em África, nomeadamente Angola e Moçambique, exaltava a constituição de sociedades multirraciais através de uma contundente penetração européia que abrangesse todo o território colonial e todas as suas atividades econômicas. Para tanto, advogava a promoção de um povoamento em larga escala fortemente financiado pelo Estado, diretamente, com programas de colonização dirigida, e indiretamente, através do apoio à colonização livre e ao desenvolvimento econômico das colônias (PEIXOTO, 2010, pp. 2).

As reformas promovidas por Portugal seguiam um caminho inverso ao das demais potências colonialistas, que já vinham fomentando em suas agendas as etapas de descolonização. Para o governo português, o avanço nos investimentos representava um aceno de permanência no poder em suas colônias, dado que o desenvolvimento econômico poderia minimizar possíveis ecos de independência entre os nativos e, por conseguinte, dinamizar o processo de exploração das matérias-prima, expandindo a indústria local e ampliando os lucros da metrópole. Segundo Peixoto (2009), ao passo em que as reformas ocorriam, novos grupos nacionalistas angolanos surgiam com reivindicações de liberdade e de oposição as reformas de Portugal. Os seus discursos carregavam o descontentamento com as mudanças propostas pela metrópole, seja pela

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falta de identificação com as aspirações dos angolanos, seja pelo reconhecimento das reformas como um novo processo de exploração excessiva da mão de obra nativa. Este descontentamento popular tinha como motivador a ausência de diálogo entre a metrópole e a sociedade nativa, somada ao descompasso social que perpetuava abismos – de direitos e oportunidades – ao povo colonizado. Esta relação assimétrica era percebida através do sistema jurídico, que compunha estruturas diferentes entre os brancos e não-brancos, assegurando ainda mais a manutenção do status quo e a garantia de privilégios a partir de uma premissa racial e eurocêntrica. Com isso, o distanciamento entre o discurso português de uma nova sociedade multi-racial e a prática segregacionista vivenciada pelos angolanos assume novos contornos, dando forma aos movimentos anti-colonialistas que protagonizaram a luta armada em prol da independência. Tais movimentos de libertação tiveram como principais representantes o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), que assumiria o governo do país após a independência, a União das Populações de Angola (UPA), que se tornou em seguida a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) e a União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA). Ambos os grupos, que deram início a luta armada entre 1961-66, foram essenciais para a independência do país, ocorrida após o fim da ditadura salazarista em Portugal, em 1974. Ainda que compactuassem da mesma expressão de libertação contra o colonialismo português, tais movimentos já apresentavam hostilidades entre si e conflitos internos, que contribuíram para a formação de outras composições de guerrilha 12. Tais conflitos não se estenderam somente no terreno da propaganda e dos apoios internacionais, mas, sobretudo, com enfrentamentos armados, resultando em mortes em ambos os lados (BITTENCOURT, 2012, p. 238). 3.1.1. DISCURSOS DE HOSTILIDADE Um dos pontos necessários a serem discutidos ao pensarmos nos conflitos entre os dois principais movimentos de libertação é o que os distingue entre si. Por possuírem um objetivo comum (a independência do país) ligado as mesmas táticas de atuação (luta

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Um dos exemplos de dissidências entre os movimentos é o caso da UNITA, que foi originada por quadros anteriormente pertencentes ao movimento FNLA, sendo comandada por Jonas Savimbi.

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armada), o nosso ponto de partida é através retórica da divergência, ou seja, da análise de quais foram os discursos adotados por ambos os grupos como forma de recrutamento e legitimação enquanto movimento. Bittencourt (2012) considera que ambos os grupos faziam uso de discursos voltados para determinadas etnias como elemento de diferenciação entre si. Este tipo de acusação, feita mutuamente entre o MPLA, o UPA/FNLA e, em seguida, pela UNITA, acabou por fortalecer o entendimento da distinção étnica como o fator preponderante para o distanciamento dos grupos e o acirramento dos conflitos na fase de pré-independência. Os argumentos de ordem étnica e racial, presentes nas acusações e nos discursos elaborados pelos movimentos de libertação, produziram uma visão limitada no tocante às filiações e aos objetivos dos diferentes grupos angolanos envolvidos na luta anticolonial (...). Tanto o MPLA como a UPA acusavam-se mutuamente, levantando argumentos de caráter étnico e racial sobre as respectivas organizações. Para o MPLA, a UPA privilegiava a filiação dos bakongos, grupo etno-linguístico situado no Norte de Angola, enquanto para essa o MPLA abrigava não só indivíduos de origem kimbundu, grupo etno-linguístico do Centro-Norte de Angola, como também e acima de tudo, mestiços (BITTENCOURT, 2011, pp. 238).

A discussão promovida pelo autor também perpassa pela análise da apropriação de outros elementos que também contribuíram para o surgimento de dissidências e de conflituosidades. Ainda que a diferença entre etnias esteja significativamente associada a uma questão territorial e, por vezes, de classes sociais em Angola, há outros fatores de relevância que também traduzem-se em elementos de diferenciação, exclusão e, por vezes, em conflito entre partidários dos movimentos e/ou grupos com objetivos em comum. Estes fatores, em Angola, também podem estar ligados a influência de atores internacionais, religiosos ou até mesmo por uma estratégia política desenhada por suas lideranças. Em linhas gerais, o surgimento de discursos acusatórios entre e dentro dos movimentos tinham como emblema principal a segregação étnica e/ou social dentre grupos. Apesar disso, não podemos desconsiderar que há outros elementos que acirravam as tensões, fragilizando as atuações dos movimentos em determinadas circunstâncias e que não estavam contidos explicitamente na retórica oficial das lideranças. Um destes fatores é o da disputa política interna dos movimentos que influenciava distintamente as estratégias de atuação da luta armada. Ainda que esteja à margem das motivações claramente expostas na narrativa – por vezes difamatória – dos

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movimentos, elementos como estes fortalecem o peso da cultura política em conjunturas complexas como a da história recente de Angola.

3.1.2. MFA E O “25 DE ABRIL” COMO UM ACENO DE MUDANÇAS O ano era 1974. Ele já começara inflamado pelos gritos de liberdade anunciados em abril, quando a ditadura em Portugal chegou ao fim através de um golpe de Estado, fato este marcado pela denominada Revolução dos Cravos. Para os territórios africanos de colonização portuguesa, este grito de libertação da metrópole representou um aceno positivo de mudanças, um novo sopro de esperança após inúmeros conflitos ocorridos pela sua independência. Com o novo regime português iniciado em 1974, a transição democrática em Angola assume contornos mais claros, a partir do estabelecimento de uma agenda política que defina as etapas necessárias para a independência efetiva, fato este que ocorreu em seguida, no ano de 1975, com a chegada de uma delegação do Movimento das Forças Armadas (MFA) 13 para a condução das negociações. Com o processo de descolonização da África ocorrendo em pleno vigor, surge como questão a emergência de uma representação que atenda as novas demandas destas populações colonizadas e que dê continuidade a agenda de transição democrática em cada um dos territórios. Em Angola, este relativo espaço de poder até então preenchido pela metrópole passa a ser disputado violentamente pelas mesmas forças que contribuíram para a luta anti-colonialista, promovendo instabilidades entre atores sociais com objetivos até então convergentes. Segundo Peixoto (2009, p.141), com o surgimento de novas liberdades políticas como as de associação e opinião, Angola vive uma eclosão de agrupamentos políticos cuja finalidade tem relação com o acordo a ser realizado para a transição. Para conquistar um espaço junto a mesa de negociação, tais grupos buscaram ampliar suas base e representações políticas, a fim de mostrarem-se como interlocutores essenciais para o diálogo de descolonização. Apesar do esforço destes pequenos grupos, os

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O Movimento das Forças Armadas (MFA) trata-se do grupo militar responsável pela mobilização que culminou no golpe de Estado ocorrido em 25 de abril de 1974, dando fim ao Estado Novo Português (VARELA, 2012, p. 404).

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intermediadores internacionais – a OUA14, a Comissão de Descolonização da Organização das Nações Unidas (ONU) e a delegação do MFA – voltaram suas atenções aos movimentos de maior atuação nos campos da política e da luta armada, como o MPLA, o FNLA e a UNITA. As análises dos autores Peixoto (2009) e Correia (1985) são convergentes ao abordarem a influência dos grupos minoritários para a formação de um novo clima de instabilidade social, o que desestabilizaria qualquer negociação em direção ao cessar-fogo, considerado o ponto culminante para o início das discussões que envolveriam o processo de transição. Correia (1985) corrobora, através de duas questões, aspectos que influenciaram o processo de descolonização em Angola e que trazem maior consistência ao entendimento das dificuldades para o estabelecimento de uma agenda comum de negociação entre os grupos beligerantes. O autor trata como primeira questão o atraso de Portugal para mobilizar forças rumo a descolonização. Como o país ampliou esforços para seguir em direção oposta as demais metrópoles europeias, os colonos portugueses assistiram a uma onda de descolonização em países vizinhos, aumentando o descontentamento e o acirramento de conflitos. Ao dar início ao processo de descolonização, sob pressão internacional, Portugal já havia perdido a iniciativa e a capacidade de definir as regras do jogo (CORREIA, 1985, p.7). A segunda questão traz a tona um problema fomentado ao longo do tempo: a intransigência ao diálogo entre metrópole e colônia. A recusa do governo português em mediar alternativas e de garantir direitos à população angolana durante o período colonial foi a razão preponderante para a criação dos movimentos pró-independência e para a perpetuação dos conflitos, pois ainda que a metrópole assumisse um discurso de igualdade e de multi-racialidade, suas ações conduziam continuamente a manutenção de privilégios de uma elite branca e estrangeira, potencializando assimetrias históricas. Apesar da contribuição de uma agenda mais pragmática, o cessar-fogo não chegou a avançar etapas consistentes até junho de 1974, data em que foi conquistado o acordo entre o MFA e a UNITA. Ainda que o MPLA tenha sido o último dos movimentos a aceitar o acordo de cessar-fogo proposto pelos portugueses, sua projeção 14

A Organização da Unidade Africana (OUA) consiste num grupo criado em 1963 por Estados Africanos independentes cujo objetivo é a promoção da unidade no continente e a integridade regional. Em seu ano de fundação criou o “Comité de Libertação”, para colaborar com os processos de descolonização o continente.

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política era considerada superior as dos demais pelos observadores internacionais. Apesar desta vantagem estratégica frente aos seus oponentes na luta pelo poder, para alcançar o protagonismo desejado era necessário sublimar as dissidências internas que fragilizavam o movimento e fortalecer a sua unidade enquanto grupo. A legitimação da liderança de Agostinho Neto veio com a assinatura do cessar-fogo, que o consolidou como líder do MPLA frente os intermediadores da transição, enfraquecendo o poder das facções dissidentes, que disputaram a liderança do movimento durante todo o ano de 1974.

3.1.3. AURORA E CREPÚSCULO EM ANGOLA: TRANSIÇÃO E CONFLITO Após a assinatura do cessar-fogo pelos três principais movimentos de libertação, caberia ao MFA negociar a divisão de funções de um governo transitório entre as partes e, por conseguinte, estabelecer as etapas de transição para uma governabilidade plena no futuro. Para tanto, seria necessário fortalecer o arranjo político em torno da negociação e do diálogo entre os três movimentos que, apesar da serem signatários do cessar-fogo, sustentavam uma inconciliável relação repleta de acusações mútuas (PEIXOTO, 2009, p.154). Este arrefecimento das tensões possibilitou a realização de duas conferências envolvendo Portugal e os movimentos de libertação, cujos frutos foram os Acordos de Mombaça e Alvor. A conferência de Mombaça, no Quênia, teve como finalidade o estreitamento das relações entre os movimentos MPLA, o FNLA e a UNITA, que passariam a compor, de forma conjunta, as dinâmicas de Estado ao fim da transição de poder. Este acordo, de fato, abriu precedentes para a construção do Acordo de Alvor, assinado em Portugal dias depois, em janeiro de 1975. Sua premissa era alicerçar as etapas do governo transitório até a efetiva independência de Angola, cuja data foi estabelecida para o dia 11 de novembro de 1975. Como pontos cruciais no Acordo15, temos a delimitação da estrutura de governo, que congregou membros dos três movimentos a assumirem os ministérios do governo de transição, a formação de um colegiado

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Conforme Acordo de Alvor, disponível em http://www1.ci.uc.pt/cd25a/wikka.php?wakka=descon21. Acesso em 24 de Julho de 2014.

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presidencial composto por uma liderança de cada movimento e a criação da Comissão de Defesa Nacional16. O Acordo de Alvor foi celebrado em Portugal e Angola como uma nova etapa de prosperidade e, a reboque, tornou-se um elemento de ganho político aos que dele fizeram parte. Ao governo português, o Acordo de Alvor representaria mais do que a transição segura de uma ex-colônia, pois o fortaleceria enquanto Estado perante a comunidade internacional em um período em que Portugal necessitava da legitimação de seu governo – vindo de um golpe militar recente. Tais ganhos políticos também são convertidos em projeção para as lideranças dos movimentos de libertação. Enquanto Holden Roberto (líder do FLNA) voltava suas atenções para a região de Kinshasa, Jonas Savimbi, (líder da UNITA), mobilizou um grande programa de visitas a regiões de Angola, já sob clima de campanha eleitoral (PEIXOTO, 2009, p.157-158). Este elemento de concertação provocado pelo Acordo de Alvor também serviu como ganho político ao líder do MPLA, Agostinho Neto, que buscou reforçar sua liderança entre os países africanos recém-descolonizados. Na mesma velocidade em que os movimentos buscavam angariar novos adeptos, reforçavam seu efetivo com armamento, retomando o acirramento das relações em meio a transição política. O conflito civil teve rápido alcance após o Acordo de Alvor. Contrariamente ao disposto na conferência, as reuniões realizadas pelo colegiado tornaram-se palco da perpetuação de disputas e de acusações entre os movimentos. A Comissão de Defesa Nacional, que tinha como missão integrar as variadas forças militares, perdera sua finalidade após os movimentos partirem em direção oposta ao Acordo, recrutando exmilitares para as composições de seus efetivos. Em meio ao aumento da disputa de poder entre os movimentos beligerantes, Portugal vivenciou a perda de sua força – militar e política – em Angola, fruto do desinteresse das forças militares portuguesas em atuar em um conflito que já não os pertencia e devido a efervescência política em que o país europeu passou a vivenciar durante o ano de 1975.

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Esta comissão detinha a responsabilidade da integração dentre os três grupos advindos da luta armada com as forças armadas portuguesas. Esta necessidade de incorporação das forças militares dos movimentos de libertação ao exército de Angola surgiu como resposta a duas questões importantes no contexto de descolonização: o estabelecimento da paz e da ordem pública neste período de instabilidade política e a necessidade de reposição das forças militares portuguesas, que retornariam ao seu país de origem tão logo a transição fosse concluída.

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A partir do momento em que as forças de intermediação perdem o controle da transição de poder, a escalada de violência assume novas proporções, eliminando possibilidades de retorno ao diálogo entre as partes. Para os movimentos de libertação, seus papéis são redefinidos a partir desta relativa “vacância de poder”, que abre um espaço concreto de alcance de poder. Esta oportunidade os conduz a utilização de estratégias para a ocupação do espaço político através da mobilização e/ou conflito. Em um terreno em que a violência assume um papel de centralidade como método de avanço na conquista de poder, quem detém a maior força de combate, dá as cartas em nome do Estado. Com este interesse tornando-se a centro das atenções dos movimentos de libertação, o conflito civil teve início.

3.1.4 SOMBRAS DO EXTERIOR: A IDEOLOGIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS DE LIBERTAÇÃO Durante o início dos conflitos civis, em 1975, o mundo vivia as tensões da Guerra Fria, com disputas entre os dois Estados hegemônicos, EUA e URSS. Para estas potências, a onda de descolonizações ocorridas na África era considerada um terreno fértil para a influência da ideologia inimiga, o que poderia representar uma ameaça geopolítica aos interesses de ambos. Como parte das estratégias de expansão ideológica de ambos os Estados, milícias armadas começam a receber apoio – financeiro e tático – em grande parte dos países em transição de poder, aliados das potências hegemônicas. Em Angola, os EUA apoiaram secretamente a FNLA e a UNITA, juntamente com a África do Sul, enquanto que a URSS apoiava o MPLA através de Cuba. Para as duas potências, o país representava um território importante geográfica e economicamente, por sua costa voltada ao oceano Atlântico e por suas riquezas naturais, alem de representar um ator de relevância regional. A partir do apoio das potências hegemônicas, o conflito assume novas características, sem abolir o seu principal objetivo, o domínio do poder institucional. Ainda que a arena política tenha seu papel redefinido com apoios de forte cunho ideológico e que o conflito tenha ultrapassado o campo da diplomacia a partir deles, questões como as composições étnica e geográfica foram elementos essenciais para a conquista do poder do movimento MPLA, ocorrida após a proclamação de independência, em 11 de novembro, por Agostinho Neto. 34

O MPLA tinha como área de maior atuação a região de Luanda, local em que o governo de transição havia se estabelecido. Este ponto, somado a projeção internacional alcançada por Agostinho Neto após o Acordo de Alvor, foram cruciais para a instituição e legitimação da “República Popular de Angola” na comunidade internacional. No mesmo período, os movimentos UNITA e FNLA proclamam, em conjunto, a “República Democrática de Angola”, que teve uma duração tão breve quanto a frágil aliança dos dois movimentos (PEIXOTO, 2009, p. 170). O MPLA somente conseguiu perpetuar-se durante sua proclamação graças ao apoio de militares cubanos, visto que suas reservas militares eram as mais frágeis dentre os movimentos de libertação. A esta altura, os portugueses já haviam retornado em massa ao seu país, deixando uma precária estrutura de administração pública e uma evasão expressiva 17 de mão-de-obra especializada, tais como médicos e engenheiros. Ao longo do tempo, o governo de Angola, presidido pelo MPLA, manteve grande parte de seus investimentos voltados ao esforço de guerra, como forma de combater a ameaça dos movimentos FNLA e UNITA, que disputavam o poder através das armas. Ao formalizar um acordo com o governo do Zaire para a retirada de tropas zairenses de Angola em 1978, Agostinho Neto conseguiu conter as forças do FNLA no conflito, que não alcançaram novamente força bélica e política a ponto de assumir um protagonismo em sua atuação. Em contrapartida, Cavazzini (2012) pondera que, ao refrear definitivamente os avanços do FNLA, o MPLA provocou o empoderamento da UNITA, que ampliou seu patrocínio norte-americano e, por conseguinte, sua projeção internacional. Como consequência do fortalecimento da UNITA, a violência intensificou-se, provocando o crescimento de ataques terroristas e do uso de minas terrestres. Ao final da década de 1980, o saldo dos conflitos não indicava um grande vencedor. Para o governo e para a UNITA, o esforço de guerra encontrava-se escasso desde a batalha de Cuito Cuanavale (CROKER, 1992 apud TIBÚRCIO, 2009) entre 1987-88. Mesmo com o apoio de Cuba e dos EUA, uma solução militar não apresentava vias de alcance, dado o esfacelamento dos recursos. Tanto para a URSS quanto para os

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Segundo Peixoto (2009), neste momento Angola vive o fenômeno dos “caixotes”, onde a população branca, somada a uma classe média negra, produz uma forte onda de imigração para países como a África do Sul, Brasil e Portugal, levando todos os seus bens, de essenciais a triviais, em grandes caixas de madeira. Grandes atividades econômicas foram paralisadas, seja pela evasão ou pelo esforço de guerra.

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EUA, uma solução negociada seria a melhor forma de se romper um imbróglio regional estimulado por questões externas, o que facilitaria a estas potências voltarem suas atenções as regiões estratégicas mais tensas, como o Afeganistão (no caso da URSS) ou a Nicarágua (no caso dos EUA). Durante todo o período do conflito inúmeros acordos de paz foram postos à mesa de negociação, porém, sem serem implementados por conta das hostilidades existentes e alimentadas pela oposição ideológica. Com o desmantelamento da União Soviética em 1989, todas as condições necessárias ao diálogo são colocadas a prova como um aceno ao fim dos conflitos, pois, o fim da Guerra Fria representava mais do que o término do embate ideológico entre o governo e a UNITA. Este momento histórico representava a ponte ideal para a que a transição democrática pudesse, de forma concreta, dar os seus passos. Em 1991 são realizados os Acordos de Bicesse, resultado de incansáveis negociações entre o Governo de Angola e a UNITA, tendo Portugal como mediador e os governos dos EUA e da Rússia como observadores. Suas determinações previam o cessar-fogo entre as partes, a formação de novos partidos – abrindo precedentes a construção de uma democracia multipartidária – e a interrupção do abastecimento bélico para ambas as partes em conflito, outrora feita pelos EUA e Rússia. Como parte crucial do Acordo, é definido um prazo para a realização das primeiras eleições livres no país, que ocorreram em setembro de 1992. A grande expectativa criada pela UNITA, recém-convertida a partido político em disputa nas eleições de 1992, foi estimulada pelo resultado dos pleitos ocorridos nas ex-colônias portuguesas de São Tomé e Príncipe e Cabo Verde no ano anterior, que deram vitória aos partidos de oposição ao governo. Contudo, como parte do jogo eleitoral, a surpresa veio com o resultado final do pleito, dando a conquista ao MPLA – agora alçado a categoria de partido – que já comandava o governo. Cavazzini (2012) elenca como principais razões para a derrota nas urnas dois pontos cruciais, que estão relacionados a retórica utilizada pela UNITA ao longo do processo eleitoral: enquanto o MPLA carregava a bandeira multi-racial e inclusiva como meio de reforçar a noção de identidade a este Estado em formação, a UNITA contrastava-se em um outro extremo, apropriando-se cada vez mais de um discurso rumo a uma posição étnica e racial mais forte. O segundo fator do campo da retórica foi 36

o reflexo dos discursos de Jonas Savimbi, líder do partido e candidato a presidência pela UNITA, que assumiu a autoria de diversos ataques terroristas em Angola com a justificativa de buscar a “salvação” e a “libertação” do povo angolano oprimido. O autor indica a possibilidade do argumento radical de Savimbi e da UNITA terem um reflexo negativo nas urnas, trazendo os votos de indecisos que não tinham identificação com o partido de oposição ao MPLA. Ainda que a ONU e observadores internacionais tenham considerado as eleições livres e de ampla participação, a UNITA recusou-se a aceitar o resultado do pleito em primeiro turno18, mesmo havendo possibilidade de chegar ao poder no turno eleitoral seguinte. É a partir deste momento que o cessar-fogo é rompido e tem início uma nova etapa de conflitos em Angola. Mesmo com novos passos realizados em caminho a uma consolidação democrática, o país assume uma nova jornada de sangue, agora livre das cercas ideológicas que restringiam os movimentos de acordo com as orientações de potências estrangeiras. O conflito assume novos contornos, mas a lógica que impera ainda é a mesma: a busca pelo poder político através da força.

3.2.

CONFLITO E RECOMEÇO NA SEGUNDA REPÚBLICA Após a recusa em reconhecer o resultado das eleições de 1992, a UNITA passa a

adotar a questão étnica como justificação para a retomada dos conflitos. Ao fomentar em seus discursos a prevalência étnica do MPLA a um grupo minoritário, a UNITA passa a reconfigurar seu espaço político, fortalecendo sua base de atuação no centro-sul do país, área composta majoritariamente pela etnia Ovimbundu. Mesmo com a lacuna deixada pelo enfraquecimento do então partido FNLA, a UNITA não conquistou significativas adesões de membros de partidos menores, tampouco soube capitanear expressivamente outros grupos étnicos sob o seu discurso anti-MPLA. Com o fim do financiamento de países em disputa ideológica, o sustento do aparato de guerra, tanto do governo angolano, quanto da UNITA teve uma nova fonte:

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O MPLA havia sido o grande vencedor nas eleições para a Assembleia Nacional, com a maioria absoluta na composição das cadeiras. Porém, este resultado não se repetiu nas eleições presidenciais, onde José Eduardo dos Santos (líder do MPLA desde a morte de Agostinho Neto em 1979) conquistou 49% dos votos, contra 40% de Jonas Savimbi, da UNITA. Para maiores detalhes das estatísticas das eleições de 1992, ver http://www.cne.ao/estatistica1992.cfm.

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as riquezas de seu próprio solo, tendo o petróleo e o diamante o papel de fiadores das expensas do conflito. Sob a perspectiva da economia governamental, temos a extração de petróleo como atividade produtiva de maior interesse do governo, sendo a responsável pelo contínuo abastecimento do aparato de guerra. A predominância dos interesses da Defesa Nacional representava grande importância nos investimentos de governo, a ponto de ascender a sua fatia de participação no PIB do país ao longo do conflito, chegando a máxima de 17,5% em 199319. Do lado oposto no conflito, a UNITA beneficiou-se de seu posicionamento na região do centro de Angola, compostas de zonas de mineração. Sua força de combate manteve-se, ao longo dos dez últimos anos de guerra civil, dependente do financiamento produzido a partir da ampla exploração de diamantes. Com o Acordo de Bicesse (1991) a produção aumentou bastante, em boa parte devido à produção e comercialização ilegal, e nem o regresso ao conflito após a vitória do MPLA nas eleições de 1992 afetou a hegemonia da UNITA no controle dos diamantes (CAVAZZINI, 2012, p. 17).

A partir desta relativa hegemonia na produção e exportação mundial de diamantes, a UNITA pôde patrocinar ações terroristas, fazendo largo uso de minas terrestres, artefato este que produziu um legado de dor e sangue em Angola. Como uma alternativa ao diálogo, a ONU promove um novo ciclo de negociações, que culminaram no Protocolo de Lusaka, firmado em 1994 pelo governo angolano e a UNITA. Seu objetivo era resgatar pontos já existentes nos acordos de Bicesse, trazendo complementos que favoreçam a construção de espaços para a disputa política amplamente democrática, abolindo o combate como via alternativa a conquista de poder estatal. Sob este acordo, vemos o estabelecimento de um novo cessar-fogo e a formação de um novo governo de Reconciliação, com o apoio de ambos os grupos em disputa e a supervisão de uma das Missões de Paz das Nações Unidas (TIBÚRCIO, 2009, p.69). O Acordo de Lusaka, surgido em meio ao clima de incertezas que imperava no país, teve grande dificuldade para conquistar avanços ao processo de paz, mesmo intercedendo esforços de negociação por parte das diversas ações da ONU, que

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Para maiores detalhes, ver em http://data.worldbank.org/country/angola/portuguese. Acesso em 01 de agosto de 2014.

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mobilizou recursos através das missões de mediação, como a UNAVEM III 20, ou pelas missões de observação, como a MONUA21. De fato, os esforços das Nações Unidas, ainda que necessários e garantidores de avanços para o fim da sustentação financeira do conflito, não chegaram a promover os impactos necessários para o fortalecimento dos processos de paz até o período de 1998 a 2002, data em que a UNITA passa a perder espaço no tráfico de diamantes e, por consequência, força bélica. A altura dos acontecimentos após os Acordos de Lusaka, as Nações Unidas já tinham pleno entendimento de que a construção efetiva dos processos de paz estava inteiramente ligada aos interesses e a disposição dos dois principais atores e de sua rede de sustentação. Isso foi percebido, inclusive, com a mudança dos objetivos das missões ao longo do tempo 22. Ainda que sua postura direta de intermediação entre as partes, somada as inúmeras sanções realizadas à UNITA tenham exigido muitos esforços da Organização, suas medidas não tiveram retorno significativo, dadas as alianças sigilosas de Savimbi com países da região, que eram beneficiados com o retorno do tráfico ilegal de diamantes promovido pela UNITA. Foi durante o período de sanções, especificamente de 1994 a 1998, que as vendas líquidas de diamantes provenientes de áreas ocupadas pela UNITA se aproximaram de USD2 bilhões segundo estimativas. Membros da UNITA continuaram a viajar sem maiores dificuldades, sobretudo pelo continente africano e continuaram a defender o esforço de guerra com representantes extra-oficiais (PAULO, 2004 apud TIBÚRCIO, 2012, p.81).

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A Terceira Missão de Verificação das Nações Unidas em Angola (UNAVEM III), criada através de resolução do Conselho de Segurança da ONU, teve como objetivo a intermediação e assistência entre o Governo de Angola e a UNITA em favor da restauração da Paz, com base no Acordo de Lusaka, assinado em 1994. Sua duração foi de agosto de 1995 até julho de 1997. Para maiores informações, ver http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/unavem3.htm. Acesso em 31 de maio de 2014. 21

A Missão de Observação das Nações Unidas em Angola (MONUA), também foi estabelecida como resolução do Conselho de Segurança da ONU, porém, com o papel de Observadora dos avanços a ocorrer no país. Também foi responsável pela retirada dos “Capacetes azuis”, membros das Nações Unidas oriundos de outras missões de paz. Para maiores detalhes, ver TIBÚRCIO, 2012, p. 76 e http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/past/monua/monua.htm. Acesso em 01 de julho de 2014. 22

Esta questão é ponderada por Tibúrcio (2012) ao retratar a própria mudança no foco de atuação das Missões de Paz da ONU ao longo da segunda república angolana. Para o autor, as Nações Unidas mobilizaram um aparato superior – em efetivos militar e estratégico – durante as primeiras missões de paz como forma de contribuir à transição para a Paz, monitorando e auxiliando nas etapas cruciais para o desenvolvimento de passos importantes, como na retirada de tropas cubanas em 1988 ou nas primeiras eleições livres de 1992 (UNAVEM I e II, respectivamente). Com a ampliação dos enfrentamentos, as missões passaram a atuar com novos posicionamentos de intervenção, prestando mais funções de mediação entre as partes em conflito (UNAVEM III) e, ao longo do tempo, passou a adotar a posição de observadora dos eventos em Angola a partir de 1997 (com a MONUA).

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Apesar dos portentosos recursos originários do comércio ilegal de diamantes financiarem largamente o aparato de guerra da UNITA, sua capacidade de confrontamento com o governo entrou em declínio entre os anos de 1998 a 2002. As razões desta fragilidade são de ordem econômica e política. Com o aumento das sanções da ONU à UNITA, a rede logística que mantinha o tráfico de diamantes foi abalada, escasseando gradualmente a arrecadação do partido para a manutenção do conflito. Por conseguinte, a estrutura política, já desgastada pelo périplo de conflitos por Angola, é rompida com a formação de uma dissidência (auto-denominada UNITA-Renovada), que foi reconhecida pelo governo como interlocutora legítima para o processo de paz (MEIJER, 2004, p.83). Em 2002, Jonas Savimbi, membro-fundador e presidente da UNITA, é morto. Com o fim de seu líder histórico, o já combalido partido, sob a presidência de Lukamba Gato, assina o Memorando de Entendimento de Luena, documento complementar ao protocolo de Lusaka que prevê a desmilitarização das tropas da UNITA e sua integração as Forças Armadas Angolanas. É seguido um novo momento em Angola, onde as etapas de democratização começam a estabelecer suas bases de forma consistente, ampliando os espaços de atuação institucional e trazendo oportunidades de participação e empoderamento do cidadão.

3.3.

A SOCIEDADE CIVIL ANGOLANA E O DILEMA DA PARTICIPAÇÃO O primeiro desafio ao tratarmos da Sociedade Civil Angolana (SCA) é

definirmos o conceito ao qual ela pode ser enquadrada. Faço esta referência devido a miríade de definições cunhadas para este termo, que podem enviesar a compreensão desta sociedade que é, por si só, tão complexa. Tendo em vista esta diversidade, seguiremos como premissa a abordagem proposta por Pestana (2004, pg.5), que, ao analisar as dinâmicas que norteiam os conceitos de sociedade civil, considerou a lógica da participação como elemento indissociável em quaisquer dos movimentos que caracterizem a sociedade civil. Aliados a esta questão, os desafios ao entendimento do que congrega esta ideia de sociedade civil angolana estão representados sobre os objetivos que norteiam as intervenções, suas formas de organização e da constituição dos grupos sociais que a compõem.

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Ainda não há como conjeturar quando esta Sociedade Civil assumirá um caráter transnacional através das organizações que a compõem, pois, como grande parte dos países vizinhos, sua área de influência está orientada a partir das demandas internas de seu país. Aliado a este fator, nota-se a dependência de capital internacional como meio de sustentação para as suas ações. Podemos considerar que a chegada da SCA ao espaço a que hoje ela representa foi a partir dos Acordos de Bicesse, que trouxeram ao país o direito a livre associação, juntamente ao multipartidarismo. Ao garantir legalmente o espaço ao associativismo, o Governo de Angola abriu o precedente para o surgimento de associações de participação popular, até então relegadas a um pequeno espaço de representação. Entretanto, o surgimento desta oportunidade não simbolizou, de fato, que a Sociedade Civil Angolana alcançou um papel de interlocução entre o governo e a população em geral, pois o Estado ainda não a inseriu como um ator de participação no desenvolvimento de políticas públicas. Ainda que os acordos de 1991 tenham possibilitado o surgimento de novos atores de representação, a história do associativismo em Angola é anterior a formação dos movimentos que trouxeram sua independência. Segundo Pestana (2004), o processo de amadurecimento da Sociedade Civil – mesmo que tenha sido descontínuo e nãolinear – teve suas origens situadas nas associações culturais e nos movimentos cooperativistas e mutualistas em meados do século XIX. Outro dos símbolos de sustentação da Sociedade Civil Angolana em sua história fora a imprensa, também no século XIX. Autores como Freudenthal (1988 apud PAIN; REIS, 2006) e Gonçalves (2004) sustentam em suas análises a participação da imprensa como ator significativo na ainda colonizada Angola. Esta imprensa, formada pela elite colonial, reproduzia críticas à administração colonial, reivindicando direitos e advogando causas em favor de um país com maior autonomia perante a metrópole. Tais resistências, ainda que tenham servido, em grande medida, como instrumento a uma elite letrada com raízes na metrópole, não resistiram às pressões do regime colonial: órgãos de imprensa foram fechados e lideranças consuetudinárias perderam espaço e poder em seus territórios (GONÇALVES, 2004, p12). Durante a efervescência provocada nos idos da década de 1960, os movimentos de libertação tornaram-se os principais defensores da salvaguarda dos direitos 41

angolanos. Estas reivindicações, estimuladas pelas recentes descolonizações de territórios africanos, tiveram como ‘embriões’ os grupos formados por estudantes africanos lotados em universidades portuguesas, que contribuíram fortemente para a difusão de conceitos de igualdade social. A partir desta mobilização, a luta política assume novas características, conduzidas pelos esforços de movimentos como o MPLA e a UPA. A historiografia recente sobre a Sociedade Civil no período de pósindependência angolana tem versado suas análises nas questões que influenciaram o limitado surgimento de atores de representação social. Uma das possíveis respostas está relacionada à ampliação da guerra como fator limitador do espaço político. Esta avaliação, sustentada por autores como Pestana (2004) e Abreu (2006), traz a lógica de que, a medida que os conflitos fragilizavam a estrutura de governo, o espaço institucional acabara sendo preenchido por outro poder, de igual prática belicista e de natureza totalitária. Com isso, os espaços de participação permaneciam contidos, face a repressão do Estado. A prática autoritária assumida ao longo do período pós-colonial é considerada por estes autores como parte do legado do regime colonial perpetuado ao longo do tempo pelos que sucederam o espaço de poder. É a partir do uso de um mecanismo repressivo que o espaço político limitou-se a interação dos membros do MPLA que compunham a base de governo, rompendo alcances de participação coletiva. A configuração do espaço público foi comandada pelo Estado desde a época colonial. Desta maneira, os severos limites impostos à participação de atores não-estatais impediram a construção social de uma cultura do diálogo e ignoraram a contribuição de mecanismos promotores de coesão social, particularmente de normas sociais complementares à racionalidade do Estado e do mercado (ELSTER, 1989 apud ABREU, 2006).

Pain e Reis (2006) consideram que, mesmo em um ambiente pouco aberto a contribuição de atores não-estatais, é necessário que se resgate a existência de grupos com o seu espaço próprio de autonomia – e legitimidade consentida pelo governo – , tais como as organizações de massas criadas pelo MPLA. Ainda que estes canais de posicionamento coletivo intercedessem em favor de determinadas demandas sociais, os traumas e impactos causados ao longo dos anos em razão de uma cultura da violência potencializaram medo e retraimento na população, impedindo a ocupação do espaço público de participação, interrompendo anseios e silenciando vozes.

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A transição ao multipartidarismo no iniciar da segunda república trouxe a reboque o surgimento de leis23 que possibilitaram a (re)formação de novos campos de intervenção pública. Através deles, forças sociais até então sujeitas a clandestinidade passaram a obter o direito legal de existirem e de intercederem em questões perante o governo. Entretanto, tais organizações, mesmo que agora legítimas perante o Estado, não alcançaram a plena atividade por não obterem espaço para a negociação de políticas públicas juntamente com o governo. O cenário de guerra tornou-se a justificativa para conter a participação da sociedade civil no processo político. Com isso, o Estado pôde manter um clima institucional de pouca permeabilidade à manifestação de visões e anseios da diversidade de culturas que integram Angola (ABREU, 2006, p.42). A retomada dos conflitos em 1998 proporcionou uma reconfiguração nas práticas de intervenção da sociedade civil. Diante do avanço da violência e do distanciamento do Estado como contendores da participação destes atores não-estatais, diversas organizações nacionais e internacionais aliam-se em torno do discurso da Paz. O “Movimento Angolano pela Paz” sintonizava as ambições das organizações que nele o compunham naquele momento. Movimentos comunitários, associações culturais e profissionais, organizações estrangeiras, locais e grupos religiosos solicitaram publicamente que o governo e a UNITA agissem juridicamente, e dentro do quadro institucional, em defesa dos direitos humanos dos cidadãos comuns (COMERFORD, 2005, apud PAIN e REIS, 2006). A partir desta mobilização, vemos a produção em larga escala de manifestos em direção às negociações de paz. O fim dos conflitos, formalizado após o Entendimento de Luena, ainda que tenha rompido um ciclo de violência e estabelecido novos passos para a maturação da democracia, não simbolizou uma redefinição nas relações entre a sociedade civil e o governo angolano, que a manteve distante das discussões em torno da reconciliação e das etapas de Paz. Em contrapartida, como forma de ampliar o espaço de expressão e

23

As leis 15/91 (que define o surgimento de partidos políticos independentes), 16/91(que versa sobre os direitos de reunião e de manifestações pacíficas), 23/91 (sobre o direito de greve) e 25/91 (trata do direito a liberdade de imprensa) foram negociadas em torno da elaboração sobre os Acordos de Bicesse. Para maiores informações, ver ABREU, 2006, p.40.

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participação, diversas organizações promoveram campanhas em torno da temática da paz, ramificando-se em temas como participação política e questões econômicas 24. A sociedade civil angolana, enquanto arena pública de participação e interlocução, congrega uma diversidade de atores das mais variadas matizes, tão complexa quanto a pluralidade cultural que faz parte da identidade angolana. Entidades como as igrejas angolanas, ONGs nacionais e internacionais, a imprensa, associações e organizações cívicas definiram seus campos de atuação em torno de três eixos: a luta pela Paz, pelas liberdades fundamentais e pelo desenvolvimento do país. As igrejas exerceram forte influência nas mobilizações que antecederam o Movimento Angolano pela Paz através do Comitê Inter-Eclesial para a Paz em Angola (COIEPA), que conseguiu congregar grupos cristãos de diferentes correntes, como o CICA, AEA e a CEAST25. Mesmo sem conquistar grandes avanços no aprofundamento do diálogo para a paz, o COIEPA desempenhou um importante papel no diálogo com a comunidade internacional (COMERFORD In: MEIJER (org), 2004). De igual maneira, as organizações e associações possibilitaram a extensão do espaço político em regiões isoladas, ampliando o debate acerca de participação e desenvolvimento através do trabalho de atores como a Associação Cívica Angolana (ACA) e a Acção Angolana para o Desenvolvimento (AAD). Ainda que a sociedade civil angolana, em linhas gerais, oriente suas ações em interesses comuns com autonomia em relação aos poderes públicos, instituições como a Fundação Eduardo Santos (FESA), fundada em homenagem ao Presidente da República, acabam por representar a sistematização do uso da máquina pública em detrimento de interesses privados, segundo questão analisada por Pain e Reis (2006). 3.4

NOVOS RUMOS PARA A SOCIEDADE CIVIL? Os caminhos para a sustentação do ambiente de paz em Angola perpassam,

invariavelmente, pela contribuição de sua sociedade civil. A trajetória do país ao longo 24

A participação política foi o tema principal da “Semana Social Nacional”, promovida em novembro de 2003 pelas ONGs CEAST e Mosaiko, enquanto que o perdão da dívida externa norteou os debates do evento “Jubileu 2000”, que também discutiu temas como a promoção de direitos sociais em Angola. Para mais informações, ver COMERFORD, Michael. Vozes Alternativas: o movimento angolano pela paz. In: MEIJER (org.), 2004. 25

Os grupos religiosos denominam-se Conselho das Igrejas Cristãs de Angola (CICA), Aliança Evangélica Angolana (AEA) e Conferência Episcopal de Angola e São Tomé (CEAST). Tais grupos construíram através da COIEPA um fórum ecumênico de diálogo em busca da Paz.

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de vinte e sete anos de intensos confrontos civis trouxe para seu povo o trauma provocado pela violência que, somado ao legado de opressão do período colonial, impossibilitou avanços em direção à garantia de direitos. Análises de Meijer (2004) trouxeram luz a relação entre o impacto do fim do conflito pela via militar e o descrédito, por parte do governo, das iniciativas de interlocução da sociedade civil: Como terminar uma guerra por meios militares consolida o poder do partido vitorioso, o processo democrático, que depende do diálogo, da negociação, do respeito por outros pontos de vista e de eventuais compromissos parece ter sido marginalizado como forma preferencial de resolução de conflitos, não apenas na esfera política, mas em termos mais gerais. A força e a violência parecem levar a melhor. Isto pode marginalizar ainda mais os grupos que na sociedade se encontram menos aptos para utilizar estes meios, tais como mulheres, mas também todos os cidadãos que não têm armas em geral. Os hábitos da força e do poder prevalecentes sobre a justiça e os direitos, e as abordagens tipo ‘quem vence, vence tudo’ não são eficazmente defrontados, apesar dos esforços de alguns dirigentes religiosos e de outros atores da sociedade civil (MEIJER, 2004, p.9).

É a partir deste turbulento e, por vezes, repressivo cenário que a sociedade civil em Angola deu novos passos em direção ao seu estabelecimento e, por conseguinte, a busca de seu reconhecimento e legitimidade. É na procura da recomposição do espaço público, sob controle hegemónico do partido único (se nos permitem esta contradição de termos) que a “nova” sociedade civil vai progressivamente afirmar-se, primeiramente, através dos movimentos no espaço cultural, e, depois, ao apropriar-se de franjas da esfera pública/política, absolutamente controladas pelo partido-Estado, instituindoas como um espaço de liberdade e de crítica à autoridade estatal (PESTANA, 2004, p.38).

O surgimento de novas organizações, possibilitado oficialmente após os Acordos de Bicesse, emerge com o aparecimento de outros canais de representação visando a ocupação do espaço público. O empoderamento desta arena de debate e participação pública trouxe a sociedade civil elementos de legitimidade que a reforcem enquanto promotoras do diálogo em torno da temática da paz. Por outro lado, esta mesma sociedade civil que mobiliza esforços em questões importantes para a comunidade angolana ainda encontra dificuldades para estabelecer uma interlocução entre o governo e a sociedade. Este tipo de interdição, ainda que não esteja claramente exposta por parte do governo, impossibilita a contribuição de atores da sociedade civil na discussão de políticas públicas. Este tipo de distanciamento do governo com os atores da sociedade civil é perpetuado nas práticas relacionadas com o espaço democrático em Angola. Como 45

exemplo, Abreu (2006) sustenta que, embora se considere que as leis atuais sejam baseadas em ambientes de consulta entre o Estado e a sociedade, projetos de grande importância como o Regulamento das Associações, a Lei de Terras, a Lei do Investimento Estrangeiro e a própria Constituição do país demonstram que as instituições governamentais permanecem pouco abertas ao debate de ideias e a incorporação das visões e expectativas de atores não-estatais. A excessiva concentração de poderes político e administrativo na cúpula do Estado desdobra-se também no espectro do processo eleitoral. As eleições parlamentares de 2008, mesmo após terem sido criticadas por organizações da sociedade civil e por observadores internacionais 26, não resultaram em sanções ao MPLA, grande vencedor do pleito e denunciado pelos grupos acima citados. O posicionamento do governo não foi diferente nas eleições parlamentares de 2012, que também sagraram a vitória ao MPLA, que conquistaram 71,84% dos votos válidos 27. O posicionamento do governo perante a necessidade do envolvimento da sociedade civil como agente de interlocução com a população ainda não tem representado avanços significativos. No estudo desenvolvido pela ONG internacional CIVICUS28 em 2014, é percebida a predominância do capital estrangeiro como forma de sustentação de grande parcela das organizações de sociedade civil em Angola. Este ciclo de dependência, ainda que possibilite a atuação destas entidades, corre o risco de interferir nas agendas programáticas de intervenção destes, que por vezes deverão seguir as orientações de seus financiadores, não necessariamente alinhados acerca da diversidade cultural que os territórios de Angola possuem. Ao analisarmos a liberdade de expressão como um elemento característico do espaço público e um fator indispensável à transição democrática, é possível identificar a fragilidade do processo político angolano. Como forma de coibir possíveis 26

As eleições de 2008 foram criticadas por observadores nacionais e internacionais por causa do domínio do MPLA nos meios de comunicação do governo e pela falta de liberdade de imprensa. Para maiores informações, ver . Acesso em 31 jul 2014. 27

Para maiores estatísticas acerca das eleições em Angola, ver . Acesso em 09 mar 2013. 28

A organização CIVICUS – The World Alliance for Citizen Participation publica a cada dois anos o relatório “State of Civil Society”, com a análise de ações que fortaleceram a participação democrática por todo o mundo. Para maiores detalhes, ver: .

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manifestações de descontentamento da sociedade, o governo manteve suas forças policiais a disposição da violência. Esta questão pode ser contextualizada a partir dos efeitos da Primavera Árabe 29 de 2011, onde o governo mobilizou o seu aparato policial a agir com truculência como forma de conter descontentamentos. A prática de contenção de detratores do governo também tornou-se comum ao regime do MPLA. Com isso, o presidente José Eduardo dos Santos, através das prisões de seus desafetos políticos30, pôde mobilizar esforços da máquina pública a fim de dissuadir ativistas, fragilizando o espaço destinado a participação da sociedade civil. Em linhas gerais, podemos afirmar que a estruturação dos espaços públicos de representação em Angola segue em ascensão, porém, de forma limitada. O partido MPLA, que compõe o governo angolano desde a sua independência, vem construindo o espaço institucional sem, necessariamente, promover um diálogo efetivo e consistente com a sociedade civil. Somado a esta questão, a falta de transparência na aplicação do dinheiro público reforça o desconforto vivido por parte da sociedade angolana. Nesse sentido, ainda que a sociedade civil angolana venha concentrando suas ações na promoção de direitos e, fundamentalmente, na ampliação de seu espaço de participação, é essencial que o governo estabeleça uma nova política que integre este importante ator social ao debate em torno de suas políticas públicas. Alem do desafio de alcançar um espaço de representação junto ao governo, cabe a sociedade civil estabelecer, de forma programática e alinhada com os diversos atores existentes, uma agenda comum que sustente políticas distintas para as diversas culturas étnicas presentes nos territórios angolanos, por vezes invisibilizadas na tipificação moderna de Nação. Com o estreitamento deste processo de diálogo entre a sociedade e o Estado, as etapas que coexistem e corporificam o processo democrático passam a assumir novos

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Série de manifestações promovidas pelo descontentamento político das populações em regiões do norte da África e do Oriente Médio. Tais manifestações, ocorridas sistematicamente dia a dia, trouxeram mudanças significativas no âmbito da participação e da política. Em casos como o do Egito e da Tunísia, as manifestações representaram a queda de seus ditadores. 30

Prisões arbitrárias, sob a justificação de calúnia, produzem prisões de ativistas contrários a política do MPLA. Dentre eles, cito Nito Alves, preso em 2013 por calúnia ao ter impresso slogans contra o presidente em camisas; e o ativista Rafael Marques, intelectual preso por calúnia após ter escrito livro sobre a tortura no processo de mineração angolano. Para maiores detalhes, ver: < http://www.dw.de/nitoalves-come%C3%A7a-a-ser-julgado-em-angola/a-17722767> e . Acesso em 02 ago 2014.

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contornos, possibilitando, de forma consistente, o fortalecimento das instituições e o desenvolvimento de Angola de forma plena.

48

4.

ENTRE

PERSPECTIVAS:

ANGOLA E

MOÇAMBIQUE SOB

A

QUALIDADE DEMOCRÁTICA A discussão recente sobre os dilemas na caracterização dos regimes em transição democrática, abordados nos capítulos anteriores, nos retoma a necessidade de entendimento dos papéis de diversos atores compreendidos nestas etapas de estabelecimento de um novo poder. Ao discutirmos as formas de categorização dos avanços nestes tipos de democracia, não podemos deixar de estabelecer os marcos inerentes a construção de processos sólidos em direção a um modelo congruente de representação e de participação. Neste trabalho, ao buscarmos uma análise comparativa entre os países de Moçambique e Angola, traçamos como eixo de comparação parâmetros que possam balizar o estágio de maturação em ambos os territórios.

4.1.

MÉTODOS

DE

POLÍTICA

COMPARADA

EM

ANGOLA

E

MOÇAMBIQUE: UMA COMBINAÇÃO POSSÍVEL? Como realizar análises comparativas em perspectivas sociais, culturais e econômicas tão diversificadas e complexas? Combinar análises sobre política comparada requer a plena consciência de envolver-se em riscos. Tais perigos estão dispostos no método ao qual se constitui a estrutura teórica de determinada análise e sob quais fatores serão os norteadores da pesquisa empreendida. Neste sentido, o método adotado para a formulação de análises dos casos de Moçambique e de Angola é o método comparativo, conceito este discutido largamente desde o século XIX. A origem do método comparativo descende da contribuição de John Stuart Mill, com o Sistema de Lógica Dedutiva e Indutiva, de 1843. Sua obra propõe regras que determinem o entendimento do raciocínio lógico e dedutivo. Através dele são aprofundadas questões ligadas ao método de produção do conhecimento. Ao tratar do método de pesquisa experimental, Mill definiu duas formas básicas, divididas em métodos da concordância e da diferença. O primeiro deles parte do pressuposto que, se uma circunstância pode ser eliminada sem alterar o fenômeno, ela não tem relação causal (GONZALEZ, 2007, p.2). Como sustentação a aplicação deste método, o autor discorre que os casos em análise devem concordar em um ponto, mas discordar em

49

todos os demais. Em contrapartida, o método da diferença propõe o inverso: o uso de casos similares, em exceção ao fenômeno a ser analisado, existente em um deles. O método de pesquisa, enquanto elemento balizador da técnica empírica, também foi discutido largamente por teóricos clássicos como Durkheim e Weber, que buscaram analisar as formas de entendimento do processo de construção do conhecimento, deixando contribuições significativas à prática do método comparativo, simbolizada através do método das variações concomitantes31 e o uso de tipos ideais, como conceitos gerais. O método comparativo também foi debatido amplamente por acadêmicos ao longo do século XX. Autores como Smelser, Lijphart, Sartori, Holt e Turner (1968; 1971; 1994; 1972 apud GONZALEZ, 2008, p.4-6) defendem divisões e perspectivas diferentes para os métodos de análise inseridos na abordagem das ciências sociais. As suas distinções no campo teórico estão associadas ao tratamento disposto aos dados e a extensão das variáveis durante o processo de análise, contribuindo com a ampliação dos campos de atuação e de métodos que tragam novas perspectivas empíricas à produção científica. Dada a impossibilidade de que apliquemos o método experimental em ciências sociais (construindo fenômenos desta natureza em laboratórios), o método comparativo surge como modelo tangível e mais amplo às questões de ordem prática da análise de determinados fenômenos sociais. Através deste método, é possível que nexos de compreensão sejam estabelecidos de forma interdependente, sem que a singularidade dos eventos prejudique a visão dos fenômenos sociais por ele estudados. Para tanto, é necessário utilizarmos as diferentes dimensões dos elementos que constituem este eixo de confrontamento de visões, assim como as questões política, econômica, cultural e valorativa. A política comparada, ao ser utilizada como um instrumento metodológico em favor da análise, possibilitou que este trabalho fosse construído combinando as questões de países tão plurais como Moçambique e Angola. Para que esta combinação seja 31

Tendo em vista a grande complexidade em identificar fenômenos sociais convergentes, tanto em semelhanças ou diferenças, que o método das variações concomitantes foi criado. Ele possibilita que a análise entre perspectivas seja adotada comparativamente, sem a necessidade de um número extenso de casos para a sua utilização (GONZALEZ, 2008, p.3). Ele foi introduzido por Durkheim na obra O suicídio, em 1897.

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exposta, trataremos a seguir dos fatores que as igualam e que as distinguem, enquanto territórios.

4.2.

OS CONFLITOS CIVIS COMO ELO A escolha destes atores como modelos à comparação teve como ponto

preponderante as suas conquistas recentes, ao decurso dos séculos XX e XXI, de suplantação de sangrentos conflitos civis. Em ambos os casos, seus embates surgiram no período de pós-independência, originários de um longo e tardio processo de descolonização na África. Inserido como um personagem central nas histórias de Angola e de Moçambique, Portugal constitui-se como um elo de ligação das trajetórias de ambos os países, seja pela sua exploração e repressão enquanto colonizador ou pelas tentativas (férteis ou inférteis) de intermediação das negociações de paz entre contendores da guerra civil. Estes conflitos, em ambas as situações, foram encabeçados por milícias locais que se articulavam – ora coletiva, ora individualmente – em favor da independência de seu povo contra o domínio português. Com as independências, o processo democrático foi considerado como uma alternativa ao regime instalado por Portugal32, abrindo espaços a uma busca pela ocupação deste vácuo de poder institucional por parte dos atores envolvidos nos conflitos independentistas. Os esforços por um processo de transição consistente são colocados em segundo plano e a palavra de ordem torna-se a busca pelo poder. Por ele e através dele, milícias entram em choque com grupos de oposição, deflagrando conflitos civis que provocaram a morte de milhões de pessoas e o afastamento dos diálogos de paz e de liberdade. São nestes cenários de parcas oportunidades ao diálogo que a democracia busca se estabelecer enquanto regime.

32

Segundo Przeworsky (2010), o regime democrático não é estabelecido como uma via “automática”, surgida ao crepúsculo de um regime autoritário. No caso dos países africanos analisados neste trabalho, a alternativa democrática surge como um espectro da influência exercida pelos atores transnacionais e internacionais envolvidos na negociação de independência, tanto em Angola, quanto em Moçambique.

51

4.2.1 A ASCENSÃO PATROCINADA: A GUERRA FRIA COMO ELEMENTO DE INFLUÊNCIA A chegada ao poder pela Frelimo em Moçambique e pelo MPLA em Angola no ano de 1975, ainda que representasse uma chance de estabelecimento e sustentação aos Estados recém-libertados, acabou por refrear a oportunidade de se garantir que estes agentes promovessem uma transição democrática pacífica. O cenário internacional, com tensões surgidas em pleno contexto de Guerra Fria, tornou-se um elemento-chave para a escalada dos conflitos, trazendo o embate ideológico para a corporificação dos quadros em luta. A influência da Guerra Fria entre os contendores de Angola e Moçambique ocorreu muito alem do campo ideológico. Em ambos os países africanos, o financiamento dos Estados Unidos e da União Soviética tornou-se a principal fonte de manutenção dos conflitos, servindo como um meio para a compra de armamentos aos governos e às milícias adversárias. Este escoamento de recursos existiu desde a independência de ambos, em 1975, até o desmantelamento da União Soviética, em 1989. Cabe ressaltar que, ainda que o posicionamento ideológico do período tenha sido um ponto de convergência nas retóricas de ambos os lados dos conflitos, os interesses que moviam as estruturas das milícias e, por sua vez, dos governos, tinham como objetivo principal a perpetuação e/ou expansão de seus ciclos de poder. Estes conflitos, de um modo geral, oriundos de períodos de transição póscoloniais, pós-Guerra Fria ou ambos, permitiram que tensões dormentes e/ou reprimidas eclodissem no vácuo de poder no contexto das transições. Deste modo, o produto da luta de diferentes grupos internos que ambicionavam ocupar novos espaços vacantes, pôde ser verificado no fato de que a totalidade dos conflitos africanos pós-independência, exceto aqueles no Chifre da África, entre Etiópia e Eritréia, foram internos até o presente. (...) o conflito já possuía raízes e motivações próprias e apenas se utilizou dos recursos e interesses transnacionais para se sustentar (TIBÚRCIO, 2009, p.29).

O fim deste patrocínio internacional, considerado como um fator determinante para a perpetuação dos conflitos durante o período de 1975 ao início da década de 90, não encerrou a escalada da violência em ambos os países, mas resultou em passos substanciais para o diálogo de paz.

52

Em Moçambique, o esfacelamento de recursos para a prática da guerra rompeu com a possibilidade de extensão do diálogo e da formação de novos espaços de representação, culminando do Acordo Geral de Paz, assinado pelos atuais partidos Frelimo atuais e RENAMO em 1992. Para Angola, o fim dos recursos obtidos durante o contexto de Guerra Fria não refreou os embates, pois, os grupos adversários - governo e milícias locais (protagonizadas pela UNITA) - substituíram este fornecimento através da exploração dos abundantes recursos naturais do país. Situados em regiões estratégicas, as milícias fortaleceram seu espaço de influência com a exploração e tráfico ilegal de diamantes, enquanto que o governo (controlado pelo MPLA) sustentou suas ações com os recursos da exploração de petróleo. Ainda que o rompimento dos financiamentos tenha gerado uma relativa substituição nas fontes de recursos, esta nova etapa possibilitou uma breve, porém simbólica abertura ao estabelecimento do diálogo e da sustentação democrática, através do Acordo de Bicesse, firmado em 1991. Esta combinação, mesmo que não tenha sido implementada de fato, serviu para a construção de etapas mais significativas nos acordos que o sucederam, como o Acordo de Lusaka e o Memorando de Luena. É importante que seja destacado o reposicionamento dos Estados Unidos ao longo do percurso dos conflitos em Angola e Moçambique. Nos dois casos, o governo norte-americano financiou 33 as milícias locais de maior potencial bélico (FNLA/UNITA e Renamo) contra os governos liderados pelo MPLA e pela Frelimo, de orientação ideológica socialista. Com o desmantelamento da União Soviética e a assunção dos Estados Unidos à posição de ator hegemônico, sua atuação é redefinida. E esta guinada da atuação política externa norte-americana é percebida através dos campos militar e econômico, principalmente em Angola. No campo militar, temos um fortalecimento no combate ao tráfico ilegal de diamantes de Angola, considerado a maior fonte de recursos para a milícia local UNITA. No campo econômico, nota-se o crescimento da importação de petróleo do país africano pelos Estados Unidos após este reposicionamento, conforme análise de Tibúrcio (2009, p. 139). Ao compararmos o fim

33

O financiamento das ações de milícias durante o período de 1975 a 1989 em Angola e Moçambique foi capitaneado por diversos países, não sendo apenas uma ação orquestrada pelos Estados Unidos. Outro dos atores que acenaram apoio às milícias foi a África do Sul durante o regime do apartheid.

53

da primeira república (1990) com os anos seguintes aos acordos de Paz (2005), é percebida uma elevação de até 93% na quantidade de barris/dia 34. Gráfico 5.1: Total de Exportação de Petróleo de Angola para os Estados Unidos (milhares de barris por dia)

Fonte: U.S. Energy Information Administration(EIA). apud TIBURCIO, 2009, p.139.

A injeção de capital norte-americano em Moçambique após o Acordo de Paz teve uma influência um pouco diferente. Sua atuação vem sendo exercida na consolidação de projetos de desenvolvimento, assim como a “Estratégia de Assistência do Governo dos Estados Unidos a Moçambique 35”, desenvolvido em uma parceria entre governos, aliado aos recentes e iniciais investimentos em energia – em especial, de gás natural.

4.2.2 A DEPENDÊNCIA DE RECURSOS INTERNACIONAIS Ao analisarmos os dados acerca da influência da economia para as conjunturas dos conflitos em Angola e Moçambique, percebemos a forte relação de dependência do capital externo ao flagelo da guerra. Este elemento garantidor de sustentação dos 34

Disponível em . Acesso em 31 Ago 2014. 35

O programa de assistência entre os governos dos Estados Unidos e de Moçambique visa promover o desenvolvimento no país africano, sustentando etapas do processo democrático e fortalecendo uma aliança estratégica e geopolítica. Para maiores detalhes, ver .

54

contendores em conflito perpetuou-se por longos 14 anos (1975 a 1989) e provocou um saldo de mortes de aproximadamente 340 mil indivíduos36. O término deste ciclo de financiamento serviu como oportunidade ao diálogo de paz, principalmente, em Moçambique, que buscou redimensionar as relações com os espaços de participação, constituindo um espaço parlamentar aos grupos de oposição, como a Renamo. Gráfico 5.2: Quantidade de mortes por conflito armado

Fonte: ARMED CONFLICTS DATABASE. Disponível em http://www.prio.org/Data/Armed-Conflict/. Acesso em 07 ago 2014.

Este tipo de influência também existiu em Angola, ainda que sob diferentes formas. Como os grupos em disputa utilizaram largamente dos recursos naturais de seu território, a diminuição do financiamento bélico ocorreu, de fato, somente quando o tráfico ilegal de diamantes passou a ser combatido por forças internacionais, encabeçadas pelos Estados Unidos, a partir do acirramento dos conflitos de 1998. Envolvidos na escalada da violência – e na busca pela manutenção do poder – os governos de Angola e de Moçambique investiram recursos de forma maciça no aparato da guerra, inviabilizando o aperfeiçoamento de processos-chave para o desenvolvimento e amadurecimento de suas precoces democracias. Atualmente, ambos os países buscam restabelecer suas economias através de seus recursos naturais, entretanto, com apresentam um grande déficit de mão-de-obra qualificada.

36

A estimativa proposta pelo Peace Research Institute Oslo (PRIO) conduz a um volume de 346.996 mortos oriundos de conflitos civis nas regiões de Angola e Moçambique. Entretanto, existem outras estimativas que indicam quantidades superiores ao considerarem as mortes provocadas por fatores direta ou indiretamente ligados aos confrontos, como as migrações forçadas e a fome, podendo chegar a mais de um milhão de mortos.

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Gráfico 5.3: Percentual do PIB destinado às despesas militares

Fonte: Banco Mundial. Disponíveis em e . Acessados em 13 jul 2014.

4.2.3 A CULTURA POLÍTICA COMO ELEMENTO DE ANÁLISE Ao analisarmos fenômenos em ciências sociais, assim como a transição democrática em Angola e a Moçambique, nos deparamos com questões-chave que, invariavelmente, acabam por influenciar a compreensão e a identificação de determinadas perspectivas conjunturais, como a lenta transição democrática em ambos os países. Dentre esta matéria, podemos elencar como pontos de relevância (direta ou indireta) à análise de política comparada a cultura política. Mesmo que possuam influências de proporções distintas entre os atores envolvidos na comparação, em ambos os cenários é percebido o espaço deste personagem ao surgimento e continuidade do processo democrático. Este elemento, inserido diretamente como uma das questões ligadas a velocidade do processo de transição democrática, é conceituado por Moisés (2011) como uma das etapas valorativas que se somam ao conceito de qualidade da democracia. A cultura política, como prática, serve como uma das etapas primárias para analisarmos a diversidade de modelos democráticos e o que as distingue entre si. Seu significado como conceito, segundo Kuschnir e Carneiro (1999) representa o conjunto de atitudes, crenças e sentimentos que dão ordem e significado a um processo político, pondo em evidência as regras e pressupostos nos quais se baseia o comportamento de seus atores. Em consonância a esta tipologia de comportamento social, segue-se uma conjunção de fatores relacionados às tradições, anseios e Histórias que, de forma geral, podem conduzir às formas distintas de mobilização e de participação social. Para os criadores 56

do termo, Almond e Verba (1963 apud KUSCHNIR e CARNEIRO, 1999), a cultura política representa a expressão do sistema político de uma determinada sociedade nas percepções, sentimentos e avaliações da sua população. Moisés (2011) cita a perspectiva teórica de Inglehart (1990 apud MOISÉS, 2011) que, mesmo reconhecendo os elementos de racionalidade da ação política, ressalta que não há razões para examinarmos a construção das etapas da democracia e de suas variações descontextualizando a dimensão existente na própria cultura política. Para o autor, as teorias da escolha racional exploraram as ações dentre economia e política, mas frequentemente passaram ao largo dos fenômenos existentes nas tradições históricas e culturais. Como exemplo, Moisés (2011) cita os modelos de democracia delegativa 37 analisados pelo cientista Guillermo O’Donnell (1991, apud MOISES, 2011), considerado um dos grandes responsáveis por olhar o contexto de transição a partir das elites estratégicas. Por mais que o autor aborde que as condições de ordem institucional ilustram parte expressiva do processo de escolhas a um modelo delegativo, sua perspectiva é criticada por Moisés por não reconhecer a cultura política como um ator de condução ao processo de escolha desta relação de representação, descaracterizando o poder simbólico existente na subjetividade das tradições culturais e que interferem – direta ou indiretamente – no campo político. Ao tratarmos da cultura política em cenários tão férteis como os de países como Angola e Moçambique, incorremos no risco de não mencionar algum elemento de diferenciação que possa, socialmente, sustentar a prática política. A História, enquanto instrumento vivo de compreensão das sociedades, poderá fornecer ao longo do tempo novos elementos que construam um maior entendimento acerca das relações que se constituíram e que resultaram nas ações políticas constroem um povo. Com a abordagem sobre Angola e de Moçambique, igualmente, podemos mencionar um elemento que perpassa as histórias de ambos os países e que contribui notadamente com o comportamento de seus cidadãos: o flagelo da violência. Ao 37

A Democracia Delegativa é considerada como um modelo de regime democrático onde a população com direito a voto delega poderes aos seus representantes sobre qualquer circunstância, diminuindo o efeito e a mobilidade dos espaços de participação popular, dada a concentração de poderes em um governante. Esta tipologia é analisada por O’Donnell (1991, apud MOISES, 2011) a partir das democracias recém-instaladas em países como Brasil, Argentina, Peru, Equador e Bolívia.

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configurarmos o espectro da brutalidade como um ingrediente para a formação de determinada cultura política, resgatamos o passado de opressão e exploração advindos de séculos de colonização européia. Esta progressão da violência, frequente e historicamente perpetuada pela escravidão e, logo após, por uma relativa cidadania 38, gerou fortes traumas psicológicos nas populações de Angola e de Moçambique. O surgimento de grupos em favor da independência, ainda que represente uma tentativa de rompimento da opressão, era composta por pequenos grupos, não alcançando a participação maciça da população. Tais grupos contribuíram com a independência de Angola e de Moçambique, entretanto, as lutas em torno de seus respectivos projetos de poder iniciaram um novo ciclo de opressão e violência contra a população. A configuração e o surgimento de canais de participação apresentam similaridades entre os dois países analisados. Em Moçambique, o surgimento das ODMs (Organizações Democráticas de Massa) em meio ao conflito civil possibilitou um canal de formação e participação ao associativismo no país, ainda que de forma embrionária, dado o aparelhamento de sua estrutura por parte do governo. Francisco (2007) avalia que este surgimento, somado a abertura econômica gradual, representou o alargamento da esfera política através de seus cidadãos, mesmo que ainda não estejam significativamente representados. Como um contraponto a esta teoria, Osório (2002) considera que a abertura destas formas de representação somente acontece com o surgimento das eleições multipartidárias, iniciadas em 1994. Em Angola, as Organizações Democráticas de Massa também surgiram durante o conflito civil e, de igual maneira, seguiam as orientações do governo. Um dos episódios mais marcantes da história da guerra civil em Angola é o do Fracionismo, ocorrido em maio de 1977. Este movimento, encabeçado pelo membro do comitê central do MPLA Nito Alves, exigia a renúncia de Agostinho Neto da presidência e um aprofundamento ideológico com a União Soviética. Com o apoio de tropas cubanas, Agostinho Neto impede a tentativa de golpe de estado e reprime radicalmente seus membros. Calcula-se que duas mil pessoas foram assassinadas no incidente por tropas leais ao governo (TIBÚRCIO 2009, p. 137). A brutal resposta ao movimento fracionista

38

A Cidadania relativa destacada no texto refere-se ao espaço proposto por Portugal aos cidadãos de Angola e de Moçambique. Ainda que livres da escravidão que lhes era imposta no passado, permaneciam sob o rígido controle de sua metrópole e como vítimas de um processo coercitivo de desigualdade que reservava direitos apenas aos colonos residentes.

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serviu de instrumento ao governo para silenciar ainda mais vozes dissonantes em seu regime, reforçando a figura do medo como arma de contenção de hostilidades. Tais repressões à criação de ambientes de participação popular, alem de conter o crescimento do número de membros das milícias adversárias, impedia a formação de novas vozes de oposição, possibilitando ainda mais a continuidade no poder, seja para a Frelimo ou para o MPLA. A perpetuação deste espectro de repressão e terror nas populações de Moçambique e Angola serviu, de forma indireta e por um longo prazo, para a inibição de novos canais de participação e de oposição. Mesmo vivenciando um período de relativa paz em ambos os países, a cultura política forjada no passado pela imagem de autoridades opressoras e de canais insípidos de participação ainda mostra-se presente. Esta barreira – herdada dos colonizadores portugueses e continuada pelos governos independentes que os sucederam – vem sendo rompida gradualmente pelos esforços de membros da sociedade civil, que vem alcançando alguns avanços em direção a uma cultura política do diálogo e dos direitos.

4.3

COMPARANDO FATORES DAS TRANSIÇÕES DEMOCRÁTICAS O processo de transição e consolidação democrática, por si só, é repleto de

complexidades e questões que transcendem padrões. Isso pelo fato da pluralidade de anseios e incertezas estar indefinidamente ligada ao processo de transição, influenciando as etapas de construção dos novos espaços de luta e de representação política. A tentativa em estabelecer uma comparação do estágio de maturidade democrática entre atores como Moçambique e Angola nos conduziu a necessidade de análise dos impactos dos conflitos civis vividos em ambos os países. A relevância deste elemento como dificultador das etapas necessárias a transição nos serviu como ponto de partida para as combinações possíveis entre os Estados abordados. A partir deste complexo e intrincado cenário de democracias recém-instituídas, partimos da hipótese de que, em ambos os Estados, apresentam-se modelos democráticos em formação, com reflexos diretos na sustentação de direitos à população e, por consequência, na limitação dos espaços necessários à participação de seus cidadãos. Ao seguirmos com o pressuposto de que os impactos provocados durante os conflitos civis impediram a construção de uma estratégia clara de transição, nos cabe a 59

busca pela identificação dos modelos democráticos aos quais as realidades angolana e moçambicana estão constituindo-se como regime. A forma nas quais identificaremos o alcance e o estágio de maturidade democrática será através da comparação entre as dinâmicas que sustentam a aplicação do exercício da cidadania. A qualidade da democracia, enquanto conceito, abrange também outros parâmetros, conferidos também como instrumentos de equilíbrio e amparo ao regime. Autores como O’Donnell (1991, apud MOISÉS, 2011) caracterizam a relevância do fortalecimento das instituições do regime em transição como forma de trazer estabilidade ao Estado e, como consequência, avançar em estágios maturidade democrática. Dentre estas dinâmicas envolvidas no exercício da cidadania, surgidas no tema da transição e da qualidade democrática, avançaremos com as análises de elementos que corporificam os espaços de participação e representação, desenvolvidos e abordados por Dahl (2001) e Moisés (2011). Inseridos neste debate, versaremos comparativamente sobre questões como a inclusão de membros da comunidade política através do sufrágio e sobre o conceito de espaços de representação, oposição e mediação.

4.3.1 ELEMENTOS DE PARTICIPAÇÃO E REPRESENTAÇÃO Ao abordarmos o sufrágio universal como elemento de representação em países como Angola e Moçambique, necessitamos fazer uma ressalva quanto a relativa “jovialidade” da aplicação do termo: em todo o planeta, a assunção do sufrágio de forma universal e inclusiva 39 foi estabelecida a partir de contestações ocorridas no século XIX, tendo maior expressividade no decorrer do último século. Autores como Moisés (2011) e Dahl (2001) são convergentes ao creditar que o caráter democrático – com acesso e inclusão dos adultos na comunidade política – é um produto do século XX, período este que vivenciou um alargamento do regime por todo o planeta. Neste sentido, a inclusão de todos os adultos na comunidade política e o livre direito de votar

39

Este aspecto de inclusão e garantia ao voto não era assegurado por todos os membros adultos da sociedade. Excluídas deste direito de escolha, as mulheres conquistaram seu direito a representação ao longo do século XX.

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e de ser votado constituem-se como elementos fundamentais ao processo de fortalecimento de democracias em regiões como Angola e Moçambique. Em Moçambique, o processo eleitoral ainda apresenta lacunas que não possibilitaram que a representação seja aplicada de forma plena. Desde o Acordo Geral de Paz, assinado em 1992, foram realizadas sete eleições (1994, 1998, 1999, 2003, 2004, 2009, 2014), sendo elas referentes aos cargos de presidência, do parlamento e das assembleias provinciais. A participação da população, através da inclusão dos adultos na comunidade política é realizada desde as eleições de 1994, havendo espaço significativo à oportunidade de se apresentar candidatura aos cargos em disputa e de participação nas votações em curso, desde que esteja com seus direitos políticos40 em vigor. Outro dos aspectos que favoreceu o alcance e a proporção das eleições em Moçambique foi a criação de uma instituição exógena ao processo eleitoral: a Comissão Nacional de Eleições (CNE). Criada como órgão independente, possui a responsabilidade de conduzir os recenseamentos e organizar as etapas que culminam nas eleições. Apesar das eleições em Moçambique terem promovido experiências favoráveis em termos de organização e de mobilização, como nas eleições de 1994, o país ainda busca uma legitimação de seu processo eleitoral, de modo a garantir a lisura e a confiabilidade plena em seus resultados. Esta desconfiança é manifestada através das críticas a possível partidarização dos órgãos eleitorais, expressas na escolha dos membros do CNE, conforme relatório do Open Society Iniciative for Southern Africa (2009, p.103). Por sua vez, temos as seguidas crises ocorridas em cada uma das eleições presidenciais ocasionadas pela recusa de partidos de oposição (como a Renamo) em aceitar o resultado dos pleitos que, desde 1994, resultam na vitória do partido situacionista (Frelimo). Tais sucessivos questionamentos acerca da lisura do processo eleitoral têm conduzido a uma redução na taxa de participação das últimas eleições, que saiu do patamar de 88% em 1994 para 36% em 200441, rompendo oportunidades de mobilização e participação política.

40

Os cidadãos adultos de Moçambique tem pleno direito ao exercício da capacidade eleitoral ativa ou passiva (votar e/ou ser votado), desde que não possua incapacidade mental ou responda por algum crime (a definir, de acordo com os casos previstos na lei nº 7/2007). 41

Para maiores detalhes, ver BRITO, 2007, p.5.

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O cenário de Angola é tomado por questões diferentes das apresentadas em Moçambique. Esta distinção é exposta a partir das primeiras eleições multipartidárias no país, ocorridas em 1992. Ainda que tenham sido realizados grandes esforços para que as eleições transcorressem adequadamente, o retorno ao conflito – devido a recusa do partido UNITA em aceitar a vitória do MPLA nas urnas – interrompeu etapas substanciais para a democracia. Apenas dezesseis anos depois, em 2008, novas eleições foram realizadas, para o preenchimento das vagas do poder legislativo angolano. Em 2012, as eleições para o legislativo e a presidência garantiram vitória ao MPLA, que conquistou 71,8% do total de votos. O governo de Angola, da mesma forma ocorrida em Moçambique, deu passos significativos à confiabilidade institucional ao criar a Comissão Nacional de Eleições (CNE), que assumiu a preparação das etapas eleitorais, garantindo a legitimação do pleito. Ao tratarmos do alcance e da legalidade do sufrágio, é percebida a existência de oportunidades de alcance. Nas eleições de 1992, identificamos que o recenseamento chegou a 83%42 do esperado, impossibilitando que a comunidade política seja estabelecida de forma plena, com todos os seus representantes. A CNE, da mesma maneira que em Moçambique, torna-se alvo de denúncias sobre o aparelhamento da comissão em favor do MPLA. Estas questões também são refletidas na participação da população nas urnas, onde vemos um aumento considerável na taxa de abstenção (de 12,64% nas eleições de 2008 para 37,23% em 201243). Em ambos os casos, o processo eleitoral ainda persiste nas dores e nas marcas provocadas pelos longos anos de conflitos. Com isso, os contendores em questão – agora inseridos em uma disputa no campo da política, com regras bem definidas – utilizam-se de seus recursos para alcançar novos espaços de poder. Este embate é presenciado a partir dos frequentes questionamentos acerca da lisura dos resultados apresentados nos pleitos. Tais resultados também acabam sendo criticados por observadores internacionais, tal como ocorreu nas eleições de 2008 em Angola, onde foram encontrados indícios de uso dos meios de comunicação oficiais de forma ilícita, aparelhando o uso de tais ferramentas em favor do partido situacionista, o MPLA.

42

Para maiores informações, ver http://www.cne.ao/estatistica1992.cfm.

43

Para maiores informações: http://www.dw.de/resultados-finais-da-cne-confirmam-vit%C3%B3ria-dompla-nas-elei%C3%A7%C3%B5es-em-angola/a-16226955

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O espaço eleitoral alcançou etapas significativas em Angola e em Moçambique, ainda que com algumas ressalvas. Em ambos os países percebemos um espectro de continuidade do período dos conflitos ao compararmos a influência partidária entre os grupos de maior representação. Como um reflexo metafórico do próprio passado, os lados beligerantes no conflito civil ainda mantêm seus discursos de hostilidade e ocupam grande parte da composição partidária do legislativo de seus países. Também inseridos no debate da competição eleitoral, partidos com menor expressividade nas urnas garantem a oportunidade de fazer parte da luta política, desde que conquistem os votos necessários para a ampliação de seus devidos espaços de representação. Mesmo que a etapa de competição eleitoral apresente um nível satisfatório aos olhos do conceito de representação, não percebemos os mesmos avanços na realização de eleições regulares. Comparativamente, ao considerarmos a quantidade de eleições regulares e com sazonalidade frequente como um dos parâmetros de maturidade do processo eleitoral, podemos entender que a realidade moçambicana esteja em nível mais consistente. A análise das etapas de criação de pleitos de forma regularmente frequente em Angola é afetada devido a saída tardia do país da zona de conflito, impossibilitando a comparação quantitativa de eleições. Entretanto, ao avaliarmos as condições de regularidade destes eventos eleitorais desde as etapas de paz, podemos perceber a influência do governo, controlado pelo partido MPLA, no arranjo irregular das eleições ocorridas na primeira década do século XXI. Para analisarmos a aplicação e o conceito de Participação em sua dimensão valorativa, retomo o debate realizado no primeiro capítulo, em que as contribuições intelectuais de Dahl (2001) e Moisés (2011) passam a compôr o eixo teórico, aliado as teorias recentes de autores como Dagnino (2006) e Avritzer (2002). O desenvolvimento da democracia enquanto regime e seu respectivo processo de amadurecimento perpassam pela necessidade do estabelecimento de ambientes favoráveis à participação e que sejam assegurados pelo Estado. Estes espaços de participação podem ser constituídos por dois elementos complementares e necessários à sustentação do regime: a contestação e a cooperação. A contestação é compreendida por Dahl (2001) como a garantia de condições para que os grupos de oposição adquiram espaço para contestar o poder. Estas condições são possibilitadas a partir de alguns mecanismos abordados anteriormente, tais como a

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garantia de eleições livres e administradas por um tipo de órgão desassociado do processo eleitoral e, também na real apropriação de espaços livres a oposição. Ao confrontarmos estes espaços de contestação com os cenários de Angola e de Moçambique, nos deparamos com avanços, sobretudo, nas etapas eleitorais. Através delas, representantes das mais variadas porções ideológicas e sociais tem a garantia e a oportunidade de participar da luta política. Esta abertura de precedente, consubstanciada através do multipartidarismo, foi possibilitada a partir do Acordo Geral de Paz em Moçambique. Em Angola, o multipartidarismo foi implementado ao início da década de 1990, entretanto, sem oportunidade de consolidar-se como prática devido ao flagelo da guerra civil. Com o fim dos conflitos, sua prática foi retomada. O espaço derivado da oportunidade de contestação, mesmo que hoje alcance etapas decisivas à liberdade de opinião e de representação políticas, não assumiu grandes proporções no que se refere à composição do poder legislativo e a alternância do poder executivo nas urnas. Esta questão é evidenciada através dos resultados de todas as eleições realizadas. Em Angola, vemos a perda de representatividade eleitoral de partidos de forte cunho oposicionista ao governo atual, como a UNITA e o FNLA. Por sua vez, em Moçambique, o partido situacionista Frelimo vem alcançando resultados crescentes e inéditos nas eleições parlamentares, diminuindo a expressividade das vagas de partidos de oposição, tal como a Renamo. Este relativo esvaziamento dos grupos de oposição nos espaços de representatividade, ainda que corresponda claramente as regras do jogo eleitoral, onde a quantidade de votos define o espaço a ser dado aos contendores em disputa política, também dialoga com as esferas de participação e cooperação engendradas nas dinâmicas de atuação de outro ator importante em nossa análise: a sociedade civil. Ao trazermos para a discussão dos componentes essenciais para a qualificação de um regime democrático, torna-se indispensável a inserção do papel das Sociedades civis como elementos decisivos aos processos de cooperação e de participação. Por sua vez, a Sociedade Civil é reconhecida pela ampla gama de atuações aos quais é envolvida. Dada esta diversidade de significados, originários tanto por seus variados campos de atuação, quanto pela heterogeneidade em sua composição, utilizamos em nossa análise o entendimento da Sociedade Civil como um ator de mobilização e

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interlocução entre os governos de Angola e Moçambique e as sociedades nas quais suas políticas estão inseridas. Ao compararmos as perspectivas de ocupação do espaço público pela sociedade civil em Angola e em Moçambique, identificamos a existência de um relativo hiato institucional, que interfere de forma substantiva na interlocução desta sociedade civil com o governo, em ambos os países. Esta dificuldade na ocupação do espaço público pela sociedade civil deve-se, em grande medida, ao distanciamento dos governos, pouco abertos ao diálogo através destes canais de participação. A percepção deste relativo distanciamento entre as OSCs e os governos de Angola e de Moçambique é sustentada através da forma com a qual estes governos envolvem-se com este ator. Em Moçambique vemos alguns avanços em relação a construção de um diálogo em torno da elaboração de trabalhos em conjunto, evidenciados através de iniciativas como os programas de governo Agenda 2025 e o PARPA. Entretanto, a ausência de uma política que expresse, interaja e qualifique o lugar da sociedade civil como interlocutora da comunidade moçambicana frente as políticas de governo acaba por reduzir o seu papel e sua capacidade de intervenção, minimizando a o valor deste personagem e sua contribuição para a garantia de direitos. A relação da sociedade civil com o governo de Angola também apresenta grandes obstáculos. O debate entre o ator governamental e a sociedade civil em relação a um espaço efetivo de interlocução não tem recebido as atenções necessárias, inviabilizando que a ocupação do espaço público seja realizada de forma consistente por este histórico ator. A confirmação deste tipo de distanciamento é percebida também através da ausência de membros da sociedade civil angolana na elaboração de políticas públicas. Este suposto esvaziamento do papel da sociedade civil, em ambos os países, acaba por fragilizar e impossibilitar a ocupação do espaço político como um canal de participação. As democracias constituídas em Angola e em Moçambique, ainda que estejam vivenciando um processo de constituição de seus regimes, já apresentam elementos fundamentais a construção de um Estado democrático. Em torno destes elementos, é percebido o esforço promovido por atores estatais e não-estatais para que se alcance o desenvolvimento necessário em favor da promoção de direitos. Entretanto, a cultura da violência e da opressão, estimulada durante o período colonial e perpetuada ao longo 65

dos conflitos civis, ainda é presente no cenário político angolano e moçambicano. Sua expressão não comporta a violência bélica como um aspecto desta continuidade, porém, sua violência foi transportada para a arena política. O desafio em tecer quaisquer análises comparativas entre atores como Angola e Moçambique é complexo, tendo em vista os estágios nos quais os elementos da transição democrática estão enquadrados. Ao compararmos os elementos de sustentação da democracia, embasados no alcance de direitos, vemos que Moçambique possui, sob determinados aspectos, maiores avanços em direção a maturidade democrática. Os elementos que afirmam e dão voz a esta análise estão reforçados na interação – ainda que embrionária – entre o governo do país e a sociedade civil, que vem ocupando novos espaços de participação. Moçambique, mesmo com um estágio relativamente mais avançado no fortalecimento de suas instituições, ainda apresenta grandes lacunas a serem preenchidas na constituição de direitos. Dentre elas, é percebida a necessidade de sustentação de políticas públicas visando a igualdade de gênero em questões de mercado e no preenchimento do quadro de governo. O contexto angolano, mesmo com o fortalecimento de sua economia com base em seus recursos naturais, ainda apresenta grandes oportunidades de dinamização de etapas em direção à consolidação de sua democracia. No campo político, o seu isolamento no diálogo com a sociedade civil acaba por dificultar a transição a uma cultura baseada na formação e garantia de cidadania, fragilizando ainda mais a credibilidade em suas instituições. Por fim, ainda não há uma resposta concreta que nos conduza a definição dos modelos de democracia assumidos por Angola e Moçambique. E, ao avaliar que esta lacuna ainda não foi preenchida, não significa uma questão de reducionismo sobre os avanços de ambos os Estados, dado que seus respectivos processos de transição e estabelecimento de modelos democráticos estão em pleno desenvolvimento. Caracterizar o modelo democrático aos quais tais Estados estão sendo conduzidos seria uma decisão prematura, dadas as transformações decorrentes do processo de transição na última década. Em linhas gerais, o grande adversário destes atores foi a busca pelo poder. E, nesta disputa entre contendores, o maior perdedor tem sido a sociedade, que se vê limtada na garantia de seus direitos e no alcance de melhores condições de vida. 66

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