Direitos consulares do preso estrangeiro: confronto ou paralelismo da jurisprudência internacional e brasileira?

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Descrição do Produto

112 Brasília

Volume 17

Número 112

Jun./Set. 2015

Presidenta da República Dilma Vana Rousseff Ministro–Chefe da Casa Civil da Presidência da República Aloizio Mercadante Oliva Subchefe para Assuntos Jurídicos da Casa Civil e Presidente do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Jorge Rodrigo Araújo Messias Coordenadora Substituta do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Fernanda Rodrigues Saldanha de Azevedo

Revista Jurídica da Presidência / Presidência da República Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – Vol. 1, n. 1, maio de 1999. Brasília: Centro de Estudos Jurídicos da Presidência, 1999–. Quadrimestral Título anterior: Revista Jurídica Virtual Mensal: 1999 a 2005; bimestral: 2005 a 2008. ISSN (até fevereiro de 2011): 1808–2807 ISSN (a partir de março de 2011): 2236–3645 1. Direito. Brasil. Presidência da República, Centro de Estudos Jurídicos da Presidência. CDD 341 CDU 342(81) Centro de Estudos Jurídicos da Presidência Praça dos Três Poderes, Palácio do Planalto Anexo II superior – Sala 204 A CEP 70.150–900 – Brasília/DF Telefone: (61)3411–2937 E–mail: [email protected] http://www.presidencia.gov.br/revistajuridica

© Centro de Estudos Jurídicos da Presidência – 2015

Revista Jurídica da Presidência É uma publicação quadrimestral do Centro de Estudos Jurídicos da Presidência voltada à divulgação de artigos científicos inéditos, resultantes de pesquisas e estudos independentes sobre a atuação do Poder Público em todas as áreas do Direito, com o objetivo de fornecer subsídios para reflexões sobre a legislação nacional e as políticas públicas desenvolvidas na esfera federal.

Equipe Técnica Supervisão

Conselho Editorial

Cleunice Matos Rehem

Claudia Lima Marques

Coordenação de Editoração Fernanda Rodrigues Saldanha de Azevedo

Claudia Rosane Roesler Fredie Souza Didier Junior Gilmar Ferreira Mendes

Gestão de Artigos

João Maurício Leitão Adeodato

Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva

Joaquim Shiraishi Neto

Projeto Gráfico e Capa Bárbara Gomes de Lima Moreira

José Claudio Monteiro de Brito Filho Luis Roberto Barroso Maira Rocha Machado

Diagramação

Misabel de Abreu Machado Derzi

Bárbara Gomes de Lima Moreira

Vera Karam Chueiri

Revisão Geral

Apropriate articles are abstracted/indexed in:

Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva

BBD – Bibliografia Brasileira de Direito

Revisão de Idiomas Mariana Figueiredo Cordeiro da Silva Fotografia da Capa Painel de Athos Bulcão, 1967 Palácio do Itamaraty Fotógrafo André Villaron

LATINDEX – Sistema Regional de Información en Linea para Revistas Científicas de América Latina, el Caribe, España y Portugal ULRICH’S WEB – Global Serials Directory

Colaboradores da Edição 112 Pareceristas Adriana Pereira Campos - Universidade Federal do Espírito Santo Adriano De Bortoli - Universidade de Brasília Alexandre Araújo Costa - Universidade de Brasília Alexandre Kehrig Veronese Aguiar - Universidade de Brasília Alexandre Walmott Borges - Universidade Federal de Uberlândia Alvaro Luis de Araujo Sales Ciarlini - Centro Universitário de Brasília Ana Gabriela Mendes Braga - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Ana Lúcia Figueiró - Centro Universitário de Brasília André Parmo Folloni - Pontifícia Universidade Católica do Paraná Antônio Augusto Brandão de Aras - Universidade de Brasília Cândido Francisco Duarte dos Santos e Silva - Universidade Federal Fluminense Carla Appollinario de Castro - Universidade Federal Fluminense Carlos Bolonha - Universidade Federal do Rio de Janeiro Carlos Victor Muzzi Filho - Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura Christine Oliveira Peter da Silva - Centro Universitário de Brasília Danielle Anne Pamplona - Pontifícia Universidade Católica do Paraná Eder Fernandes Monica - Universidade Federal Fluminense Edinilson Donisete Machado - Universidade Estadual do Norte do Paraná Eduardo Martins de Lima - Fundação Mineira de Educação e Cultura Elcio Trujillo - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Eliane Cristina Pinto Moreira - Universidade Federal do Pará Fabiano André de Souza Mendonça - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Fábio Ulhôa Coelho - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Felipe Braga Albuquerque - Universidade Federal do Ceará Fernando de Brito Alves - Universidade Estadual do Norte do Paraná Fernando Horta Tavares - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Flávia Danielle Santiago Lima - Universidade Católica de Pernambuco Flávio Quinaud Pedron - Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura Hélio Silvio Ourém Campos - Universidade Católica de Pernambuco Henrique Smidt Simon - Centro Universitário de Brasília Ilzver de Matos Oliveira - Universidade Tiradentes

Ingrid Zanella Andrade Campos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte Jane Felipe Beltrão - Universidade Federal do Pará João Maurício Leitão Adeodato - Universidade Federal de Pernambuco José Heder Benatti - Universidade Federal do Pará Júlio Aguiar de Oliveira - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Leandro Novais e Silva - Universidade Federal de Minas Gerais Leonardo Macedo Poli - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Leonardo Netto Parentoni - Universidade Federal de Minas Gerais Liziane Paixão Silva Oliveira - Universidade Tiradentes Luís Carlos Balbino Gambogi - Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura Marcellus Polastri Lima - Universidade Federal do Espírito Santo Márcia Carla Pereira Ribeiro - Pontifícia Universidade Católica do Paraná Margareth Vetis Zaganelli - Universidade Federal do Espírito Santo Marilia Montenegro Pessoa de Mello - Universidade Católica de Pernambuco Pablo Malheiros da Cunha Frota - Centro Universitário de Brasília Paulo Burnier da Silveira - Universidade de Brasília Paulo Roberto Colombo Arnoldi - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” Raquel Tiveron - Centro Universitário de Brasília Regina Célia Martinez - Faculdades Metropolitanas Unidas Regnoberto Marques de Melo Júnior - Universidade Federal do Ceará Rodrigo Almeida Magalhães - Universidade Federal de Minas Gerais Sérgio Henriques Zandona Freitas - Universidade Fundação Mineira de Educação e Cultura Teresa Celina de Arruda Alvim Wambier - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Valmir César Pozzetti - Universidade do Estado do Amazonas Vanessa Oliveira Batista Berner - Universidade Federal do Rio de Janeiro Vitor Salino de Moura Eça - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Yvete Flavio da Costa - Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

Demais colabores da Edição 112 Brunna Rebecca Magalhães Martins da Silva Cidamar dos Santos Menezes Flávio José Roman Giovana de Paula Rodrigues Renata Cristina do Nascimento Antão

Autor Convidado Fábio Ulhoa Coelho BRASIL – São Paulo/SP Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professor Titular de Direito Comercial na mesma Instituição.

Autores Aldo Pacheco Ferreira

Danielle Maria Espezim dos Santos

Doutor e Mestre em Engenharia Biomédica

BRASIL – Florianópolis/SC

pela Universidade Federal do Rio de Janeiro

Doutoranda e Mestre em Direito pela Uni-

(UFRJ). Pesquisador da Escola Nacional de

versidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fun-

Líder do Grupo de Pesquisa Novos Direitos e

dação Oswaldo Cruz (Fiocruz).

Sociedade (Unisul). Professora na Universi-

E-mail: [email protected]

dade do Sul de Santa Catarina (Unisul) e na Escola Superior da Magistratura do Estado

Carlos Alexandre Corrêa Leite

de Santa Catarina (Esmesc).

BRASIL – Natal/ RN

E-mail: [email protected]

Mestrando e Graduado em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Fabrício Germano Alves Graduado em Engenharia Aeronáutica pelo

BRASIL – Natal/RN

Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA).

Doutor em Sociedad Democrática, Estado

E-mail: [email protected]

y Derecho pela Universidad del País Vasco / Euskal Herriko Unibertsitatea (UPV/EHU

Carolina Schabbach Oliveira

– Espanha). Mestre em Direito pela UniMestranda na Faculdade de Direito da Univer- versidade Federal do Rio Grande do Norte sidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). (UFRN). Graduado em Direito pela UniverAdvogada do Banco Nacional de Desenvolvi-

sidade Potiguar (UNP). Professor de Direito

mento Econômico e Social (BNDES).

das Relações de Consumo na Universidade

E-mail: [email protected]

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). E-mail: [email protected]

Germano Bezerra Cardoso

Jeison Batista de Almeida

BRASIL – Brasília/DF

BRASIL – Cáceres/MT

Mestrando em Direito e Políticas Públi-

Mestre em Direitos Humanos pela Universida-

cas pelo Programa de Pós-Graduação do

de do Minho – Portugal. Erasmus no Máster de

Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Estudios Internacionales na Universidade de

Graduado em Direito pela Universidade de

Santiago de Compostela – Espanha. Graduado

Fortaleza (UNIFOR).

em Direito pela Universidade do Estado de

E-mail: [email protected]

Mato Grosso (UNEMAT). Professor na Universidade do Estado de Mato Grosso (UNEMAT).

Gustavo Ferreira Ribeiro

E-mail: [email protected]

BRASIL – Brasília/DF Doutor em Direito Internacional pela Maurer

Joseliane Sonagli

School Of Law (Indiana University – EUA)

BRASIL – Curitiba/PR

com Bolsa do Programa Capes/Fulbright.

Mestranda em Direito pela Pontifícia Univer-

Mestre em Direito pela Universidade Federal

sidade Católica do Paraná (PUCPR). Profes-

de Santa Catarina (UFSC). Bacharel em

sora de Direito Empresarial na Universidade

Direito pela Universidade Federal de Minas

do Vale do Itajaí (UNIVALI). Advogada.

Gerais (UFMG). Professor do Programa de

E-mail: [email protected]

Mestrado e Doutorado do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB).

Josiane Rose Petry Veronese

E-mail: [email protected]

BRASIL – Florianópolis/SC Doutora e Mestre em Direito pela Univer-

Hugo Jesus Soares

sidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

BRASIL – Curitiba/PR

Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídi-

Mestrando em Direito pela Pontifícia Universi-

cos e Sociais da Criança e do Adolescente

dade Católica do Paraná (PUCPR). Advogado.

– Nejusca da Universidade Federal de Santa

E-mail: [email protected]

Catarina (UFSC). Professora Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) na Graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito. E-mail: [email protected]

Leonardo da Silva Sant´Anna

Yanko Marcius de Alencar Xavier

Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacio-

BRASIL – Natal/ RN

nal de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da

Pós-Doutor pelo Instituto de Direito In-

Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Professor

ternacional Privado e Direito Comparado

Adjunto da Faculdade de Direito da Universi-

da Universität Osnabrück na Alemanha.

dade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

Mestre e Doutor em Direito pela Universi-

E-mail: [email protected]

tät Osnabrück na Alemanha. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba

Melissa Volpato Curi

(UFPB). Professor Titular da Universidade

BRASIL - Brasília/DF

Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Pós-Doutoranda pelo Centro de Desenvol-

E-mail: [email protected]

vimento Sustentável da Universidade de Brasília (CDS/UnB) com bolsa Capes. Doutora em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Mestre em Geociência pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Graduada em Direito pela Universidade Mackenzie. E-mail: [email protected]

Sumário Editorial ________________________________________________________________ 231 Autor Convidado ____________________________________________________

1

235

O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privado Fábio Ulhoa Coelho ______________________________________________________ 237

Artigos _________________________________________________________________ 257

2

Código de Defesa do Consumidor aplicado aos fundos de investimento: deveres e responsabilidade do administrador Carlos Alexandre Corrêa Leite - Yanko Marcius de Alencar Xavier Fabrício Germano Alves __________________________________________________ 259

3

Análise econômica do direito, políticas públicas e consequências Germano Bezerra Cardoso ________________________________________________ 293

4

Licença compulsória e a parceria de desenvolvimento produtivo: assegurando o direito à saúde no Brasil Carolina Schabbach Oliveira - Leonardo da Silva Sant´Anna Aldo Pacheco Ferreira ___________________________________________________ 315

5

Direito dos povos indígenas: das teorias antropológicas evolucionistas à formação do Estado-Nação Melissa Volpato Curi _____________________________________________________ 341

6

Cotas raciais para ingresso no ensino superior: a missão da universidade na transformação cultural Joseliane Sonagli - Hugo Jesus Soares __________________________________ 365

7

Responsabilização estatutária e os avanços do penalismo Josiane Rose Petry Veronese - Danielle Maria Espezim dos Santos _______ 393

8

Direitos consulares do preso estrangeiro: confronto ou paralelismo da jurisprudência internacional e brasileira? Gustavo Ferreira Ribeiro - Jeison Batista de Almeida _____________________ 413

Normas de submissão _____________________________________________ 439

Editorial Cara leitora, caro leitor, A apresentação desta 112a edição da Revista Jurídica da Presidência vem acompanhada de uma importante notícia: a Comissão Qualis – composta por professores designados pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes/MEC) –, ao avaliar recentemente esta revista, a reclassificou para o extrato A2, junto com grandes periódicos acadêmicos brasileiros. Em breve, esse resultado estará divulgado na Plataforma Sucupira e no Sistema WebQualis, mantidos pela Capes, motivo de comemoração por todos que participam da elaboração da Revista, além de prova inconteste do mérito da equipe de autores, dirigentes e técnicos, elevando-se o compromisso pela qualidade sempre crescente. Neste número, temos como autor convidado o Professor Doutor Fábio Ulhoa Coelho, professor titular de Direito Comercial na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. O artigo “O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privado” trata de tema bastante atual. Em síntese, o autor aborda a questão da fragilidade jurídica na proteção de investimento privado no Brasil, apresentando como estratégia de aumento dessa segurança um novo Código Comercial, como importante instrumento para fortalecer o simbolismo associado à noção de Código. Em seguida, Carlos Alexandre Corrêa Leite, Yanko Marcius de Alencar Xavier e Fabrício Germano Alves apresentam o artigo “Código de Defesa do Consumidor aplicado aos fundos de investimento: deveres e responsabilidade do administrador”, que propõe uma interessante reflexão sobre a possibilidade da incidência das normas de defesa do consumidor na relação entre o quotista e o administrador de fundos de investimento, traçando os contornos dos deveres e da responsabilidade do administrador do fundo de investimento perante o quotista. No texto “Análise Econômica do Direito, políticas públicas e consequências”, Germano Bezerra Cardoso elucida tanto os benefícios da aplicação do método proposto pela vertente Análise Econômica do Direito ao descrever e compreender as normas jurídicas e as políticas públicas – conferindo, assim, maior racionalidade à prática forense – quanto as possíveis limitações que seriam impostas à análise jurídica caso fosse restringida a um viés estritamente econômico, sobretudo quando se tratar de políticas públicas, que envolvem discussões morais a respeito da redistribuição de recursos escassos.

No artigo “Licença compulsória e a parceria de desenvolvimento produtivo: assegurando o direito à saúde no Brasil”, Leonardo da Silva Sant’Anna, Carolina Schabbach Oliveira e Aldo Pacheco Ferreira Santos Costa, por sua vez, exploram o tema do instituto da Licença Compulsória de patentes e o da Parceria de Desenvolvimento Produtivo, focado na Política Nacional de Medicamentos. Destaca o marco legal associado à execução dessa Política, demonstrando que esses institutos são essenciais à manutenção do equilíbrio entre o direito ao acesso ao medicamento e do direito de exploração da patente. Já Melissa Volpato Curi, analisa a construção ideológica do pensamento ocidental a respeito dos indígenas e de seus direitos, baseados no respeito à alteridade destes, com influência nas teorias antropológicas evolucionistas e pela proposta de controle territorial para a formação do Estado nacional. Contextualiza que o respeito à diversidade cultural assegurada pela atual Constituição Federal depende de um reconhecimento por parte do Estado de que cada sociedade possui a sua forma própria de organização social e de instituição de regras. Apresenta pesquisa baseada em referências bibliográficas, evidenciando valores etnocêntricos instituídos ao longo da história, no texto “Direito dos povos indígenas: das teorias antropológicas evolucionistas à formação do Estado-Nação”. A presente edição ainda abre espaço para o debate envolvendo o tema “Cotas raciais para ingresso no ensino superior: a missão da universidade na transformação cultural”, em que os autores Joseliane Sonagli e Hugo Jesus Soares, discorrem sobre diferentes linhas doutrinárias com o objetivo de defender a legitimidade do programa, a partir da missão da universidade em promover a integração e transformação cultural, contraponto os argumentos críticos à luz do princípio da proporcionalidade. As autoras Josiane Rose Petry Veronese e Danielle Maria Espezim dos Santos trazem um panorama sobre a responsabilização dos adolescentes diante da prática de atos antissociais no Brasil, afirmando a existência de corrente doutrinária de direito penal juvenil no Brasil, inviabilizando a prática pedagógica de apuração do ato infracional e das medidas socioeducativas no tema “Responsabilização estatutária e os avanços do penalismo”. Por fim, o texto sobre “Direitos consulares do preso estrangeiro: confronto ou paralelismo da jurisprudência internacional e brasileira?”, escrito por Gustavo Ferreira Ribeiro e Jeison Batista de Almeida, em que apresentam um estudo balizado das normas sobre à assistência consular do preso estrangeiro, frente a Convenção de Viena sobre relações consulares, no âmbito das cortes superiores brasileiras, delineando a existência de confronto ou paralelismo entre as interpretações nacionais e internacionais.

A publicação da edição 112a é, mais uma vez, resultado da colaboração e dedicação de nossas parceiras e parceiros: pareceristas ad hoc – professoras e professores vinculados às instituições de ensino superior com as quais mantemos acordos de cooperação técnica – e membros do Conselho Editorial, bem como a equipe da Subchefia para Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República, aos quais expressamos nossos agradecimentos. Às autoras e aos autores desta edição, agradecemos e reconhecemos a importância das produções para ampliar, aprofundar e distribuir o conhecimento de temas jurídicos relevantes. Ótima leitura!

Autor

Convidado

1

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O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privado FÁBIO ULHOA COELHO Livre-docente, Doutor e Mestre em Direito (PUC-SP). Professor titular de Direito Comercial (PUC-SP).

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Fragilidades na proteção jurídica do investimento privado no Brasil 3 Estratégias para a melhoria da proteção jurídica do investimento privado no Brasil 4 A força simbólica dos Códigos 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: A principal fragilidade da proteção jurídica do investimento privado – PJIP no Brasil é a insegurança jurídica. No debate sobre estratégias para o aumento da segurança jurídica, a ideologia conta. Um novo Código Comercial será instrumento importante para auxiliar a implementação destas estratégias, em razão do forte simbolismo associado à noção de Código. PALAVRAS-CHAVE: Proteção jurídica do investimento privado Código Comercial Direito comercial brasileiro Simbolismo dos Códigos.

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O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privado

The Commercial Code Project and the protection of private investment CONTENTS: 1 Introduction 2 Weaknesses of the legal protection of private investment in Brazil 3 Strategies for the improvement of the legal protection of the private investment in Brazil 4 The symbolical strength of the Legal Codes 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: Legal uncertainty has been the most relevant weakness in the legal protection of private investment in Brazil. Ideology matters when we discuss strategies related to legal certainty improvement. As an instrument with strong symbolism, a new Commercial Code will help the implementation of those strategies. KEYWORDS: Legal protection of private investment Commercial Code Brazilian commercial law Symbolism of the Codes.

El proyecto de Codigo Comercial y la protección jurídica de inversión privada CONTENIDO: 1 Introducción 2 Debilidades en la Protección jurídica de inversión privada en Brasil 3 Estrategias para la mejora de la Protección jurídica de inversión privada en Brasil 4 La fuerza simbólica de los Codigos 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: La principal debilidad de la protección jurídica de inversión privada en Brasil es la inseguridad jurídica. En el debate sobre estrategias para el aumento de la seguridad jurídica, la ideología tiene cuenta. Un nuevo Codigo Comercial será herramienta considerable para ayudar la implementación de esas estrategias, en razón del fuerte simbolismo asociado a la noción de Codigo. PALABRAS-CLAVE: Protección jurídica de la inversión privada Codigo Comercial Derecho comercial brasileño Simbolismo de los Codigos.

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1 Introdução Na economia globalizada, as fronteiras nacionais deixam de representar limites intransponíveis ou mesmo obstáculos significativos à circulação de capitais. O empresário tem o mundo todo para investir e, por isso, os países passam a competir pelos investimentos de modo mais acentuado. Um dos instrumentos mais importantes nessa competição é a proteção jurídica do investimento privado – PJIP. Naturalmente, os países com elevada PJIP assumem a dianteira na competição pelos investidores globais, deixando para trás os de baixa PJIP. O grau de PJIP é avaliado pelos investidores não apenas em função das normas e princípios vigentes na ordem positivada, mas principalmente levando em conta a maneira como eles são interpretados e aplicados. Se as leis de determinado país preveem a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas, mas os juízes invariavelmente a desconsideram sem critério, os investidores globais não avaliarão que, ali, o investimento conta com a proteção daquele importantíssimo meio de segregação de risco. Desde logo, é necessário que sejam afastadas duas simplificações equivocadas. De um lado, a de que oferecer elevado grau de PJIP seria condição necessária para qualquer atração de investimento porque ninguém se interessaria em aportar capital em jurisdições onde não estivesse muito bem protegido. De outro, a de que o grau de PJIP é tema de interesse exclusivo dos empresários, sendo irrelevante para consumidores e trabalhadores. Por mais paradoxal que pareça, há investidores que buscam países que avaliam como oferecendo baixa PJIP; e, ademais, os principais interessados no aumento da PJIP em qualquer país são seus consumidores e trabalhadores, e não os empresários. Para afastar a primeira simplificação, é preciso inicialmente distinguir dois tipos de investidores de acordo com a propensão para os riscos. Num extremo, os conservadores, que se dedicam a atividades econômicas de pouco ou médio risco; no oposto, os arrojados, que buscam as de elevado risco. Em razão da milenar equação, que associa diretamente os níveis de risco aos de retorno, os conservadores se contentam com pequenas ou mesmo pequeníssimas margens de perspectiva de lucro, enquanto os arrojados não se satisfazem senão com margens extraordinárias. Há mais investidores conservadores do que arrojados. E não é necessário contá-los mundo afora para chegar a essa conclusão: investidores arrojados conseguem obter alto retorno somente porque estão em minoria e enfrentam menor concorrência ao explorarem negócios mais arriscados. É uma singela aplicação da lei da oferta e procura. Revista Jurídica da Presidência

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O Projeto de Código Comercial e a proteção jurídica do investimento privado

A identificação do grau de PJIP é uma das avaliações do risco de investir num certo país. Se concluir que determinada jurisdição oferece baixo grau de PJIP, o investidor conservador tenderá a descartá-la como alternativa para o seu investimento porque não está interessado em grandes riscos. Essa jurisdição, contudo, tende a atrair o interesse de investidores arrojados, em busca exatamente de negócios expostos a riscos maiores. Claro, hipotético país sem nenhuma PJIP não atrairia nem o mais arrojado investidor. Isso não quer dizer, contudo, que a atração de investimentos seja possível apenas a partir de certo grau elevado de PJIP. Baixa proteção ao investimento, em razão da inevitável acentuação dos riscos, por vezes é exatamente o que o investidor (arrojado) procura. Em outros termos, o grau de PJIP é fator de modulação do investimento. Quanto menor o grau de proteção oferecido por um país, mais investidores arrojados se interessarão por investir nele; e quanto maior, mais investidores conservadores serão atraídos. Em decorrência disso, os preços dos produtos e serviços praticados num país de baixa PJIP tendem a ser maiores que os praticados no de elevada PJIP. Ocorre dessa maneira porque, nos países de baixa PJIP, há a predominância de investidores arrojados em busca de robustas margens que possam lhes assegurar perspectivas de expressivo retorno. Na verdade, a modulação do investimento ocasionada pelo grau de PJIP não apenas seleciona, por assim dizer, o perfil dos empresários, mas chega a alterá-lo. Também os conservadores passam a buscar retornos maiores, porque precisam preservar suas margens no ambiente negocial de maior risco. A relação indireta entre grau de PJIP e preços introduz-nos na segunda simplificação a ser afastada. Consumidores são diretamente afetados quando a economia é regida por princípios e normas jurídicas que protegem precariamente o investimento privado. Os produtos e serviços oferecidos ao mercado terão preços impactados pelo risco associado à baixa PJIP assumido pelos empresários. Quanto mais elevado for o grau de PJIP, menores serão os preços e, assim, estarão mais bem atendidos os interesses dos consumidores. Os trabalhadores também são afetados porque num ambiente de negócios propício apenas à minoria dos investidores (os arrojados), há naturalmente menos empresas e, consequentemente, menos postos de trabalho. Pouca competição por mão-de-obra e talentos comprime salários. A globalização transforma o grau de PJIP em assunto de interesse primordial dos consumidores e trabalhadores, e não dos empresários. Os horizontes destes são amplos, tendo o mundo todo como alternativa para o investimento. Se o país

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em que reside oferece PJIP que não o atende, investirá em outro com facilidade. Igual cenário, de facilmente buscar outras jurisdições para consumir ou trabalhar, não se encontra ao alcance de consumidores e trabalhadores no estágio atual de globalização econômica. Este artigo tem o objetivo de discutir as relações entre o Projeto de Código Comercial1 e a PJIP no Brasil. Em seu item 2, ele trata das fragilidades da PJIP no Brasil e, em seu item 3, discute estratégias de melhoria. Examina então, no item 4, o simbolismo associado ao Projeto de Código Comercial que o torna um privilegiado instrumento dessas estratégias. Por fim, na conclusão, fala dos adversários e dos inimigos do Projeto de Código Comercial.

2 Fragilidades na proteção jurídica do investimento privado no Brasil O Brasil não é, em geral, visto como ambiente altamente propício aos negócios. Um dos indicadores que confirma essa percepção é o Doing Business índice calculado pelo Banco Mundial. De acordo com esse índice, em 2015, o Brasil ocupa o 120o lugar, dentre 189 economias avaliadas, no quesito facilidade para fazer negócio2. Pode parecer instigante que o País, embora seja uma das principais economias do mundo3, não ocupe boa posição em ranking de atração de investimentos. Considerando-se, porém, aqueles dois perfis de empresários, referidos anteriormente, encontra-se uma hipótese de explicação congruente para as distintas posições da economia brasileira. Afinal, o mesmo ambiente será avaliado como propício ou não aos negócios, conforme seja o investidor mais conservador ou mais arrojado. Quando a metodologia do ranking reflete a avaliação de investidores pesquisados, é provável que o resultado seja uma classificação relacionando diretamente o ambiente de negócios aos graus de PJIP. Afinal, como visto, há mais investidores conservadores do que arrojados. Investidores arrojados já estabelecidos no Brasil provavelmente consideraram 1 O Projeto de Código Comercial tramita na Câmara, por meio do PL no 1.572/11, de autoria do Deputado Vicente Cândido, e no Senado, por meio do PLS no 487/13, de autoria do Senador Renan Calheiros. Sobre as razões da simultaneidade da tramitação nas duas casas, vide: COELHO; LIMA; GUEDES, 2015, p. 19. 2  Vide: GRUPO BANCO MUNDIAL, 2015. 3  P  ode-se classificar o Brasil como uma das principais economias porque, seguramente, encontra-se entre as dez de maior PIB. E, se considerarmos o PIB per capita, o Brasil ocupa posição de 61a economia mundial (2013), hipótese em que se reduz, mas não se elimina o descompasso em relação à 120a colocação no quesito facilidade para fazer negócios do Doing Business. Revista Jurídica da Presidência

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oportuno investir aqui a despeito do baixo grau de PJIP, ou mesmo por causa dele. O que se apresenta temerário aos olhos de investidores conservadores certamente não intimida ou desanima os investidores arrojados. Aliás, não se pode desconsiderar sequer a hipótese de ser exatamente o baixo grau de PJIP o ingrediente a lhes despertar o apetite. Apontar, assim, fragilidades na PJIP do Brasil e considerá-las uma das razões da sua classificação ruim nos rankings de atração de investimentos significa aceitar a premissa da plena identificação entre a elevação do grau de proteção do investimento e o atendimento aos interesses de consumidores e trabalhadores brasileiros. É, enfim, concordar com a assertiva de que o Brasil deve procurar elevar o grau de PJIP para que os investimentos aqui realizados sejam modulados mais como conservadores do que como arrojados e para que isso acabe, com o tempo, atraindo mais negócios, aumentando a competição na economia e barateando produtos e serviços. Em outros termos, ser uma economia mais atraente aos investidores arrojados do que aos conservadores não é do interesse nacional. No que diz respeito à PJIP afeta ao direito comercial, várias fragilidades podem ser apontadas, sugerindo ter o Brasil baixo grau de proteção4. Destaco duas como as mais significativas: de um lado, a relativização da autonomia patrimonial das sociedades limitadas e da limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações sociais; de outro, o enfraquecimento das obrigações derivadas de contratos empresariais. A efetividade dos mecanismos de segregação de riscos é essencial para a organização da economia. A autonomia patrimonial das sociedades limitadas e limitação da responsabilidade dos sócios é um dos mais importantes desses mecanismos (ao lado de institutos como a especialização de patrimônio e de contratos como hedge, trust e project finance). Desde o último quarto do século passado, esse mecanismo tem sido progressivamente relativizado. Atualmente, a autonomia patrimonial das sociedades limitadas e a limitação da responsabilidade dos sócios (meios intimamente entrelaçados) são juridicamente eficazes quanto às obrigações sociais regidas pelo direito civil e comercial, mas praticamente inoperantes quanto às obrigações regidas pelos demais ramos (tributário, trabalhista,

4  É certo não existir, ainda, nenhum índice de mensuração da PJIP, embora já se discuta um possível critério para computá-lo. O critério sugerido baseia-se na percepção de profissionais do direito acerca da efetividade dos meios de segregação de riscos. (COELHO, 2014b). Revista Jurídica da Presidência

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ambiental, etc.5). A relativização decorreu de lamentáveis distorções na teoria da desconsideração da personalidade jurídica (que apenas nos últimos anos tem sido mais bem compreendida e aplicada pela Justiça civil); distorções que chegaram a comprometer, em alguns casos, até mesmo a autonomia patrimonial de sociedades do tipo anônima. Ultimamente, em discussões judiciais sobre a admissibilidade de litisconsórcio no requerimento de recuperação judicial e da união de planos de recuperação judicial de recuperandas do mesmo grupo econômico, a autonomia patrimonial está experimentando mais uma fase de grande desprestígio. A seu turno, a fragilidade da PJIP no Brasil representada pelo enfraquecimento das obrigações contratuais deriva de outras tantas distorções, sendo a mais grave delas a exorbitante aplicação do Código de Defesa do Consumidor a contratos empresariais. Os magistrados brasileiros, em sua grande maioria, têm unicamente a experiência de consumidor no trato de questões econômicas. Raros são aqueles que advogaram para empresas antes de se tornarem juízes; e mais raros ainda os que haviam sido empresários antes de ingressarem na magistratura. Somando-se a isso a carência de estudos adequados de direito comercial na formação profissional da maioria dos bacharéis e o invencível volume de trabalho sob a responsabilidade dos juízes, o resultado é a disseminação de decisões judiciais em que as obrigações fundadas em contratos empresariais estão enfraquecidas6. Essas e as demais fragilidades da PJIP no Brasil podem ser sintetizadas na noção geral de insegurança jurídica, aqui entendida como imprevisibilidade das decisões judiciais. Não há dúvidas, claro, quanto à impossibilidade de antecipação absoluta das decisões judiciais, devendo os jurisdicionados necessariamente conviver com certa margem de imprevisibilidade. Tolera-se, por assim dizer, uma imprevisibilidade previsível, e os empresários, no mundo todo, rapidamente aprendem a internalizá-la. Em outros termos, não afeta a segurança jurídica a circunstância de, em alguns casos, na percepção dos empresários e da maioria dos profissionais do direito, a sentença judicial não parecer compatível com os dizeres da lei em vigor. A insegurança jurídica passa a existir quando é extrapolada essa tolerável margem de previsível imprevisibilidade. 5  “O princípio da autonomia patrimonial tem [...] sua aplicação limitada, atualmente, às obrigações da sociedade empresária perante outros empresários. Se o credor é empregado, consumidor ou o Estado, o princípio não tem sido prestigiado pela lei ou pelo Judiciário” (COELHO, 2005, p. 268). No mesmo sentido, vide: SALAMA, 2014, p. 401 et seq. 6  Mais ainda, decisões judiciais sobre contratos empresariais mediante aplicação do Código de Defesa do Consumidor acabam por distorcer a equação básica da concorrência ao retirar um pouco do ganho do empresário que tomou a decisão acertada para dar ao que errou (COELHO, 2012, p. 35-37). Revista Jurídica da Presidência

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Em termos bastante gerais, portanto, pode-se afirmar que a significativa fragilidade da PJIP no Brasil se traduz na insegurança jurídica. É ultrapassada em demasia a margem tolerável de imprevisibilidade previsível. Isso significa, para os empresários que investem no país, a necessidade de se praticar uma taxa para o risco associado à insegurança jurídica. Os preços são, assim, impactados pela possibilidade (bastante real) de autonomias patrimoniais e outros mecanismos de segregação de risco serem indiscriminadamente desconsiderados, contratos empresariais revistos, reinterpretados, invalidados ou perderem eficácia, etc. Quando um empresário isolado precisa se precaver do eventual resultado incerto de determinado processo judicial, ele nem sempre consegue acrescer ao preço de seus produtos ou serviços uma taxa associada ao risco de perda decorrente deste evento porque suas opções estão premidas pela concorrência; isto é, ele não pode ir muito além do preço de mercado. Mas quando todos os empresários estão igualmente expostos ao mesmo risco de insegurança jurídica, os preços dos produtos e serviços tendem a embutir uma taxa que o previna, generalizadamente praticada. Mais uma vez, são os consumidores a arcarem com as repercussões econômicas da insegurança jurídica que ronda a PJIP no Brasil.

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Estratégias para a melhoria da proteção jurídica do investimento privado no Brasil O diagnóstico acima, apontando na insegurança jurídica o cerne da fragilidade da PJIP no Brasil, provavelmente conta com a aceitação generalizada de quantos se debrucem sobre a questão. No tocante às estratégias para sua superação, porém, igual consenso está longe de se vislumbrar. Variam, portanto, as opiniões acerca de como enfrentar as fragilidades da PJIP brasileira e de como dotá-la de maior segurança jurídica7. De minha parte, vejo como estratégia fundamental a busca por transformações na ideologia, entendida esta expressão em seu sentido funcional de hierarquização 7  E é de opiniões que se trata. Convenha-se, por mais que os reconhecidos esforços da jurimetria brasileira tenham proporcionado avanços consistentes na reunião e no tratamento de dados para orientar as políticas públicas, ainda estamos muito distantes de contarmos com o resultado de suficientes pesquisas empíricas aptas a indicarem a melhor estratégia para aumento da segurança jurídica. Quer dizer, já há estudos jurimétricos que permitem razoável grau de certeza quanto à estratégia adequada para enfrentar assuntos pontuais – por exemplo, a dissolução da sociedade limitada, em que aproveitam os estudos de Marcelo Guedes Nunes em sua tese de doutorado na PUC-SP (NUNES, 2012); mas, o plano geral estratégico infelizmente ainda não se consegue traçar assentado apenas em pesquisas empíricas. Revista Jurídica da Presidência

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dos valores8. Que ela seja algo relevante na discussão sobre estratégias para o aumento da previsibilidade das decisões judiciais, percebe-se na forma como o casamento entre pessoas do mesmo sexo passou a ser admitido no direito brasileiro. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a Constituição Federal dá à união entre pessoas do mesmo sexo a mesma proteção liberada à união entre pessoas de sexos diferentes. Como a mesma Constituição Federal (BRASIL, 1988) determina que a lei facilitará a conversão das uniões em casamentos (art. 226, § 3o), é decorrência necessária da decisão do STF a juridicidade do matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. E esta juridicidade foi, então, reconhecida por inúmeras outras decisões judiciais em todo o país e considerada no ato do Conselho Nacional de Justiça, de 2013, que proibiu aos cartórios negarem tramitação às habilitações apenas em virtude da identidade de sexo dos nubentes. Mas, em 1988, quando editada a Constituição, estava largamente assentado no direito brasileiro que casamento entre pessoas do mesmo sexo era ato jurídico inexistente9. Como o direito positivo não se alterou entre 1988 e 2011 (art. 226, § 3o), a radical mudança na classificação jurídica do casamento entre pessoas do mesmo sexo somente se pode atribuir a transformações, ocorrida no período, na ideologia disseminada na sociedade brasileira10. A maior previsibilidade das decisões judiciais e o aumento da segurança jurídica relativamente às normas de PJIP encerram-se, então, numa questão de como transformar a ideologia cultivada pela sociedade brasileira (e pela comunidade jurídica em particular) acerca da importância de se proteger o investimento privado. Em outros termos, a autonomia patrimonial das sociedades limitadas tende a ser indiscriminadamente desconsiderada na Justiça do Trabalho porque o valor associado à efetividade da condenação em favor dos reclamantes tem sido considerado superior ao associado à proteção jurídica do investimento privado. Porém, à medida que se dissemine a concepção de que a elevação do grau de PJIP atende, na economia globalizada, primordialmente aos consumidores e trabalhadores e é relativamente indiferente aos empresários, esta hierarquização tende a se inverter. 8 

O  conceito funcional de ideologia foi construído por Tércio Sampaio Ferraz Jr.: “Ideologia é termo equívoco, significando, ora falsa consciência, ora tomada de posição (filosófica, política, pessoal, etc.). Em nossa concepção, funcionalizamos o conceito. Admitimo-lo como conceito axiológico, isto é, a linguagem ideológica é também valorativa. Só que enquanto os valores em geral constituem prisma, critério de avaliação de ações, a valoração ideológica tem por objeto imediato os próprios valores” (FERRAZ JR., 1986, p. 155). Vide também: FERRAZ JR., 1973, p. 150 e FERRAZ JR., 1980, P. 187-188.

9 

Por todos, Caio Mário da Silva Pereira (PEREIRA, 1976, p. 560).

10  Vide: COELHO, 2014a, p. 15-24. Revista Jurídica da Presidência

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O valor associado à proteção jurídica do investimento privado passará a ser paulatinamente reputado superior ao associado à efetividade da condenação em favor dos reclamantes, em atenção aos interesses gerais; assentar-se-á que entre os interesses individuais dos reclamantes e o geral dos consumidores e trabalhadores, o destes últimos deve prevalecer. A consequência lógica dessa inversão na hierarquização dos valores (na ideologia) será o maior respeito pelo instrumento de segregação de risco viabilizado pela autonomia patrimonial das sociedades limitadas. Com a nova hierarquização, voltará a fazer sentido a limitação da responsabilidade dos sócios pelas obrigações trabalhistas da sociedade. Para aumentar a previsibilidade em torno das normas de PJIP, a estratégia aqui considerada pressupõe a disseminação na sociedade brasileira e na comunidade jurídica de certos conceitos, noções, ideias, concepções etc. Somente após vasta introjeção dos correspondentes valores, as decisões judiciais começarão a reproduzi-los. Dois principais instrumentos podem ser considerados na implementação desta estratégia. O primeiro, que cabe chamar de acadêmico, consiste na produção de teses, dissertações, artigos, livros, bem como a realização de seminários, congressos, palestras e outros eventos nos quais se demonstre a impossibilidade de se dissociar, atualmente, a adequada proteção do investimento do atendimento aos interesses gerais de consumidores e trabalhadores brasileiros. É reconhecidamente um instrumento de pouca e demorada eficácia. O segundo, que se pode chamar de institucional, consiste na alteração do direito positivo em vigor. A depender da orientação geral da mudança legislativa, a introjeção dos valores que induzirá ao aumento da previsibilidade das decisões judiciais e da segurança jurídica corresponderá a processo social muito mais rápido e eficiente. O direito positivo, se adequadamente reestruturado, pode ser o veículo poderoso de mudanças na ideologia. A maior e mais célere eficácia da via institucional, quando comparada à acadêmica, é decorrência da pouca sofisticação da formação do profissional do direito no Brasil. Advogados, juízes e promotores têm sido formados, há décadas, a partir da noção (estreita) de que seu objeto de estudo e labor são exclusivamente os princípios e normas vigentes no ordenamento jurídico nacional. Eles se habituaram a conhecer apenas o que é positivado. Por isso, mesmo se hipoteticamente todos os livros de doutrina ensinassem fundamentadamente que o investimento privado deve ser objeto de proteção jurídica adequada para que o Brasil consiga competir no cenário global por investimentos e mercados, esse conceito passaria simplesmente

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despercebido da grande maioria dos nossos profissionais do direito. Mas se uma norma de direito positivo estatuir que o investimento privado é protegido no interesse geral11, o conceito terá que ser prontamente assimilado. Mais que isso, por ser expressão da lei, os doutrinadores passarão a refletir sobre eles, buscando exemplos, criando cenários de aplicação, sopesando os fundamentos, associando-os aos princípios constitucionais etc.; por ser norma positivada, os professores vão necessariamente atentar ao conceito em suas aulas de graduação e pós-graduação; acerca dele versarão questões dos exames da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB e dos concursos públicos (incluindo os de provimento de cargos de magistrados e promotores de justiça). Para encerrar este item, cabe ponderar que, se o diagnóstico consensualmente espraiado entre os comercialistas brasileiros é o de se concentrarem as fragilidades da PJIP na insegurança jurídica (imprevisibilidade das decisões judiciais além do tolerável), então a questão é enforcement. Ora, argumentam alguns, se o direito positivo já contempla as normas adequadas e o problema está apenas na não aplicação ou imperfeita aplicação delas, alterar o direito positivo não resolveria o problema. A observação seria procedente se a alteração nas leis fosse perseguida como um fim em si mesmo, e não como instrumento da estratégia geral focada em mudanças na ideologia. Para que esta estratégia alcance seus objetivos e a via institucional possa auxiliá-la nisso, é indispensável que a alteração legislativa seja simbolicamente impactante. Daí a necessidade de um novo Código Comercial.

4 A força simbólica dos Códigos O Projeto de Código Comercial – Projeto – é um instrumento institucional da estratégia de alteração na ideologia (valorização dos valores), para a assimilação generalizada na comunidade jurídica dos valores associados à PJIP, visando aumentar a previsibilidade das decisões judiciais e a segurança jurídica. Não é um fim em si

11  Conforme disposto no art. 5o, III, do PL no 1.572/11: “decorre do princípio da liberdade de iniciativa o reconhecimento por este Código da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica liberada ao investimento privado feito com vistas ao fornecimento de produtos e serviços, na criação, consolidação ou ampliação de mercados consumidores e desenvolvimento econômico do país” (BRASIL, 2011); e no art. 6o, III, do PLS no 487/13: “decorre do princípio da liberdade de iniciativa empresarial o reconhecimento da importância, para toda a sociedade, da proteção jurídica assegurada ao investimento privado feito com vistas ao fornecimento de produtos e serviços, na criação, consolidação ou ampliação de mercados consumidores, na inovação e no desenvolvimento econômico do país” (BRASIL, 2013). Revista Jurídica da Presidência

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mesmo; e gera suficiente impacto simbólico para que a alteração legislativa possa garantir maior enforcement às normas positivadas. A natureza instrumental do Projeto suscita questão referente à atualidade da codificação de alguns campos jurídicos como meio pertinente de positivação. Tem sentido, no início do século XXI, despender toda a energia demandada pela elaboração e aplicação de documentos portentosos como são os Códigos? Para bem encaminhar a discussão, é necessário, desde logo, reconhecer sua relativa desimportância para a operacionalidade do direito. Normas são normas, estejam contextualizadas em codificações ou em leis não codificadas. Uma interpretação apressada acerca de conclusões expressamente focadas em outros direitos universaliza-as e prenuncia o desaparecimento das codificações12. Mas o que se pode certamente reconhecer é o descompasso entre as demandas da complexa economia dos nossos tempos e o modelo oitocentista de Código, criação do iluminismo francês, com pretensões de plena sistematicidade lógica, perenidade e completude. Esse modelo de codificação representa, na verdade, o viés jurídico do ambicioso projeto epistemológico de transformação das humanidades em ciências humanas a que se dedicou o pensamento europeu ao longo do século XIX. Presumiuse ser possível conhecer e mudar a sociedade com a mesma certeza científica obtida pela física, química e biologia relativamente à natureza. O Código oitocentista é um documento pretensamente lógico-sistemático, completo e destinado à perenidade, com o qual se buscavam disciplinar as relações sociais com absoluto rigor. Mas este projeto – de que são expressões (com abordagens radicalmente distintas, claro) tanto o positivismo comteano como o marxismo – fracassou ao longo do século XX. Não conhecemos tudo, não controlamos tudo, não podemos tudo. Mesmo que sobreviva ainda em alguns redutos menos sofisticados do conhecimento do humano (em especial, o do direito) certa ânsia de afirmar-se como ciência, não se aceita mais a ideia de submeter-se a convivência social a controle científico, de que uma codificação de modelo oitocentista pudesse ser o instrumento, como vislumbrado pelo racionalismo iluminista. O Código contemporâneo não cumpre mais a função de conferir congruência lógica e sistematicidade à regulação jurídica; ele simplesmente coordena regulações próximas a partir de princípios comuns. Não consegue exaurir a disciplina jurídica 12  N  atalino Irti, examinando especificamente o direito italiano, descreveu um processo a que chamou de descodificação. Refere-se ao fato de o Código Civil ter perdido para a Constituição a vocação de documento fundamental da ordem jurídica (1999). Para uma discussão sobre a impertinência da generalização das conclusões de Irti para além do direito italiano, vide COELHO, 2012, p. 60-62. Revista Jurídica da Presidência

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dos vastos campos de relações a disciplinar, em vista da crescente complexidade destas; mas, seleciona porções desses campos e delega muitas delas à legislação dita esparsa. Não se apresenta como regulação definitiva a pressupor uma sociedade imutável; ao contrário, a vigência do Código contemporâneo não deve ultrapassar meio século e ele se abre a constantes revisões e aperfeiçoamentos. O Código Civil de 2002 é inegável exemplo desse modelo de codificação. Não cumpre o requisito do rigor lógico (por exemplo, no livro direito de empresas disciplina também sociedades simples, isso é, não empresárias), mas coordena a disciplina das relações privadas a partir de núcleos valorativos comuns13; não busca a completude, por considerar que temas como exame de DNA no reconhecimento de filiação, paternidade sócio-afetiva, contrato eletrônico e outros não seriam passíveis de codificação, por não poder esta abranger contínuas inovações sociais14; e não busca a perpetuidade, tendo sido alterado por leis e medidas provisórias 28 vezes entre a entrada em vigor em julho de 2015 (além de uma alteração em decorrência de ação direta de inconstitucionalidade), o que significa a média de pouco mais de uma alteração a cada semestre. São dois modelos muito distintos o oitocentista e o contemporâneo. Mas, entre o código lógico-sistemático, completo e perene imaginado pelo iluminismo, e o código coordenador, parcial e temporário da atualidade, ressalta uma característica comum, que diz respeito à própria essência deste meio de positivação jurídica: o extraordinário valor simbólico. O Code Civil simbolizou, na origem, a superação das concepções feudais pela visão burguesa de organização da sociedade, vitoriosa na Revolução Francesa; o Bürgerliches Gesetzbuch foi o símbolo da identidade alemã, na formação tardia do estado nacional; o Codice Civile, ao agrupar no mesmo livro empresa e trabalho, deu voz a um dos difusos postulados do fascismo: a harmonização das classes sociais em contraposição à marxista luta de classes15. No Brasil, a Constituição Imperial (1824) tinha pressa na edição do Código Civil e do Código Criminal (o art. 179, XVII, determinava que fossem organizados o quanto antes), pelo seu caráter simbólico na afirmação de uma nova nação independente. E, quando a Constituição de 1988 programou, também com pressa, a edição de um Código de Defesa do Consumidor (ADCT, art. 48), carregou com forte simbolismo a questão consumerista. Uma simples lei de proteção aos consumidores não pareceu suficiente ao constituinte. 13  Refiro-me aos três princípios fundamentais indicados por Miguel Reale: eticidade, socialidade e operabilidade (2005, p. 37-44). 14  Miguel Reale, op. cit., p. 195-198. 15  Vide: COELHO, 2012, p. 61. Revista Jurídica da Presidência

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Curioso registrar que, em razão de manobra parlamentar para evitar nova postergação de sua votação, a Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990, não tramitou, no final do processo legislativo, como projeto de código; portanto, não deveria ser tecnicamente chamada de código16,17. Ela, contudo, é largamente conhecida e referida como tal na comunidade jurídica e mesmo na sociedade brasileira. A elevação da lei de proteção ao consumidor à categoria de Código simboliza o reconhecimento da importância de se conceder aos consumidores uma adequada proteção. Não à toa, aliás, alguns descontentes com a mudança legislativa tentaram reduzir o Código de Defesa do Consumidor – CDC à Lei de Defesa do Consumidor, com o objetivo de interpretar restritamente o âmbito de sua incidência18. A Lei no 8.078/90, juridicamente falando, não é um Código; mas pouco importa, já que simbolicamente o é. Perceba-se ser em tudo indiferente, para o direito, se determinada norma legal está numa codificação ou apartado dela, quando se aprecia 16  A história é contada por Ada Pellegrini Grinover e Antonio Herman de Vasconcellos e Benjamin, que a viveram: “a dissimulação daquilo que era código em lei foi meramente cosmética e circunstancial. É que, na tramitação do Código, o lobby dos empresários, notadamente o da construção civil, dos consórcios e dos supermercados, prevendo sua derrota nos plenários das duas Casas, buscou, através de uma manobra procedimental, impedir a votação do texto ainda naquela legislatura, sob o argumento de que, por se tratar de Código, necessário era respeitar um iter legislativo extremamente formal, o que, naquele caso, não tinha sido observado. A artimanha foi superada rapidamente com o contra-argumento de que aquilo que a Constituição chamava de Código assim não o era. E, dessa forma, o Código foi votado com outra qualidade transformando-se na Lei no 8.078, de 11 de setembro de 1990. Mas, repita-se, não obstante a nova denominação, estamos, verdadeiramente, diante de um Código, seja pelo mandamento constitucional, seja pelo seu caráter sistemático. Tanto isso é certo que o Congresso Nacional sequer se deu ao trabalho de extirpar do corpo legal as menções ao vocábulo Código (arts. 1o, 7o, 28, 37, 44, 51 etc.)” (GRINOVER; BENJAMIN, 1991, p. 10). 17  A ementa da Lei no 8.078/90, que não menciona a expressão Código, é: “dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências”. Em geral, as ementas dos Códigos são redigidas na fórmula geral “institui o Código x”, como no caso da Lei no  10.406/02 (Código Civil) e da Lei no  9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro); ou mesmo simplesmente “Código x”, como na Lei no 556/1850 (Código Comercial) ou na Lei no 13.105/15 (Código de Processo Civil). Caso à parte é o do Código Tributário Nacional, cuja ementa também não menciona a expressão. Deve-se isto às intrincadas considerações em torno do conceito de “normas gerais” expresso, na Constituição vigente, no art. 146, III. Propôs-se até mesmo que a denominação mais adequada da Lei no 5.172/66 seria “Código das Normas Gerais de Direito Tributário” (SOUZA; ATALIBA; CARVALHO, 1975, p. 12-31, em especial p. 16). 18  Geraldo Vidigal, Consultor Geral da FEBRABAN, sustentava não ser o CDC aplicável aos bancos. A referência a serviços de “natureza bancária, financeira, de crédito e securitária”, contida no art. 3o, § 2o, seria, na interpretação tentada, restrita ao crédito concedido aos consumidores pelos próprios fornecedores de bens ou outros serviços. Um dos instrumentos desta fracassada e logo descartada estratégia foi um opúsculo publicado pelo Instituto Brasileiro de Ciência Bancária, reunindo pareceres de juristas sustentando a tese. Este opúsculo foi chamado de Lei de Defesa do Consumidor (VIDIGAL, 1991) e nele nenhum dos pareceristas chama a Lei no 8.078/90 de Código. Revista Jurídica da Presidência

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sua vigência, constitucionalidade, eficácia, interpretação e aplicação – atributos, em tudo, idênticos nas duas hipóteses. Mesmo no caso de alteração da norma, os regimentos internos das duas casas congressuais não estabelecem nenhuma tramitação específica para a mudança de dispositivos inseridos em Código. É de patente ignorância o argumento de que a codificação de uma matéria importaria seu engessamento, em razão de alegada maior dificuldade para introduzir mudanças, aperfeiçoamentos ou atualizações na ordem positivada; pura e simples ignorância. Sendo relativa a importância jurídica de abrigar certa disposição legal num Código, a discussão sobre a pertinência da codificação, ou não, de determinada matéria devese ambientar no campo em que ela é decididamente relevante, isto é, no do simbólico (ou, em se preferindo, cultural). Reunir certa disciplina num Código ou espalhá-la em várias leis não demanda decisão técnica-jurídica, mas exclusivamente política. Projeto de um Código Comercial é preferível a vários projetos de leis esparsos por criar as condições extrajurídicas demandadas pelo combate às fragilidades da PJIP no Brasil. Ao se cuidar da PJIP num Código específico, chama-se a atenção da sociedade em geral e da comunidade jurídica em particular para a sua importância. A certas leis dá-se nome (Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei Orgânica da Magistratura Nacional, Consolidação das Leis do Trabalho, Código Penal etc.), além de número, com este exclusivo objetivo de realçar a relevância do respectivo objeto. Leis esparsas sobre PJIP, embora possam cumprir rigorosamente as mesmas funções jurídicas de um Código, não têm minimamente a força simbólica deste; não causam o impacto reclamado para garantir o enforcement das normas de PJIP, ampliar a previsibilidade das decisões judiciais, aumentar a segurança jurídica e melhorar, com isto, o ambiente de negócios no Brasil. Por seu especial e notável simbolismo, o moderno Código Comercial veiculado pelo Projeto serve de instrumento muito mais eficiente que leis esparsas, na estratégia de busca de inversão na hierarquia de valores (mudança na ideologia) em proveito dos associados à PJIP. Note-se que a Lei no  8.078/90, simbolicamente promovida a Código de Defesa do Consumidor, provocou, ao seu tempo, alteração na hierarquia de valores nutridos pelos brasileiros. Ao positivar o “reconhecimento da vulnerabilidade dos consumidores” (art. 4o,  I), entre os princípios regentes da matéria, ela facilitou e acelerou a assimilação desse conceito e introjeção do valor correspondente no seio da

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comunidade jurídica. Houve resistências no início19, mas o enunciado desse princípio não podia mais escapar aos estudos jurídicos e à aplicação do direito, exatamente por ser um comando normativo, uma disposição legal. Todos os desdobramentos do reconhecimento da vulnerabilidade, na proteção dos consumidores, eram aspectos da lei positivada a serem considerados, examinados, aprofundados, respeitados e cumpridos. A vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo não era mais apenas resultado de elucubrações doutrinárias, cujo alcance sempre é mais modesto do que de uma disposição de lei. A opção pela codificação comercial como melhor estratégia para rápida e facilmente se disseminarem certos conceitos na comunidade jurídica brasileira alicerça-se, portanto, no significativo precedente do Código de Defesa do Consumidor. Não será uma invenção ou novidade do Projeto fundada exclusivamente em ponderações abstratas, circunscritas à teoria acadêmica. A estratégia se nutre na frutífera experiência brasileira de opção por um Código na disciplina dos direitos dos consumidores e o reconhecido sucesso na disseminação de conceitos e valores que sustentam a sua defesa.

5 Conclusão A oposição a qualquer projeto de lei pode partir de adversários ou de inimigos, dois tipos de oponentes com motivações bem distintas. Adversários não têm seus interesses ameaçados pelo projeto, mas os inimigos sim. Exceto as de pouca relevância, toda lei nova prejudica os interesses de alguém. É inevitável. Leis sempre estabelecem um balanceamento entre os interesses envolvidos na matéria regulada, atendendo mais a uns que a outros. Proposta de

19  Um dos primeiros comentadores do art. 4o do CDC, Toshio Mukai, assim se manifestou acerca do dispositivo (transcrevo o comentário integral): “é prevista neste artigo a implementação de uma Política Nacional de Relações de Consumo, sendo seus objetivos: atendimento das necessidades dos consumidores, respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção dos seus interesses econômicos, a melhoria de sua qualidade de vida e a transparência e harmonia das relações de consumo. Para tal, a norma contempla oito princípios a serem atendidos; elenco extenso, de intenções, sem nenhuma sanção para o descumprimento pelo Poder Público. Na realidade, trata-se de norma programática e sem nenhuma cogência, costume que se apossou dos nossos legisladores (o de normatizarem intenções, desejos e palavreados pomposos, mas destituídos de qualquer significado prático) desde a época do autoritarismo e que continua a se manifestar (infelizmente) em diversas legislações, em especial no nível federal. O que, na realidade, convém sublinhar é que norma sem sanção, embora norma, é ineficaz. Portanto, não há que se perder tempo com essa disposição, posto que a norma não tem eficácia e consequência prática” (OLIVEIRA, 1991, p. 11-12, grifos nossos). Revista Jurídica da Presidência

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alteração legislativa cria, assim, a perspectiva de mudanças nesse balanceamento. Os que terão seus interesses menos atendidos serão prejudicados, enquanto beneficiarse-ão os que terão seus interesses mais bem atendidos. Na democracia, a lei nova é boa apenas se beneficia pessoas em quantidade superior à das que prejudica. O Projeto de Código Comercial tem, naturalmente, adversários e inimigos. Os adversários questionam a pertinência de um novo Código Comercial, por considerarem que: (a) a legislação empresarial vigente não reclama aperfeiçoamentos; (b) os aperfeiçoamentos na legislação empresarial devem ser feitos mediante alteração do livro II da Parte Especial do Código Civil; ou (c) os aperfeiçoamentos na legislação empresarial devem ser feitos por meio de leis esparsas. Têm visões diferentes da do projetista relativamente à maneira mais apropriada de o direito brasileiro dispor sobre a matéria empresarial. Não passa despercebido, porém, que os adversários pelas razões b e c nada têm feito para tornar efetiva a alternativa que defendem. Mesmo tendo se iniciado o debate em 2011, com a apresentação do Projeto na Câmara dos Deputados, não se divulgou nenhuma minuta, rascunho ou esboço de projeto de lei alterando o Código Civil ou dos vários projetos de leis esparsas – omissão que põe em dúvida se esses adversários realmente acreditam na crítica que fazem. De qualquer modo, porque não têm nenhum interesse em jogo, apenas opinião diferente, os adversários podem até mesmo se convencer, ao longo do debate em torno do Projeto, acerca da pertinência de um novo Código Comercial para ampliar a PJIP no Brasil. E os inimigos? Quem tem os interesses ameaçados pelo Projeto? Por mais paradoxal que possa parecer, à primeira vista, a melhoria do ambiente de negócios no país não interessa a todos os empresários. E não interessa porque ela acarretaria em aumento na concorrência. Convém aqui distinguir entre empresários competitivos e não competitivos; ou, mais propriamente, entre sociedades empresárias competitivas e não competitivas. Por força de características de personalidade, as pessoas são mais ou menos afetas à competição. Alguns se gratificam muito ao concorrerem, enquanto outros preferem se poupar de enfrentar concorrentes. E, de algum modo, as sociedades empresárias acabam refletindo os traços de personalidade de seu controlador e administradores. Pois bem, são as sociedades empresárias não competitivas, em geral monopolistas ou oligopolistas, que temem o novo Código Comercial e os impactos positivos que ajudará a produzir na economia brasileira. São as inimigas do Projeto que serão prejudicadas com a melhoria da PJIP. Não lhes interessa aumento na concorrência porque um ambiente mais competitivo forçará inevitavelmente a redução de preços e margens.

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Quem já se estabeleceu no Brasil, conquistou sua fatia de mercado e está, a despeito de todas as dificuldades, conseguindo obter lucros, pode não querer enfrentar o acirramento da competição. De modo geral, eles arcaram com o custo Brasil e podem considerar natural resistirem à vinda de concorrentes que, em ambiente de negócios melhorado, não precisarão incorrer no mesmo custo. Não interessa aos empresários (e sociedades empresárias) não competitivos estabelecidos no Brasil reforma trabalhista, racionalização tributária e ampliação da PJIP que melhorem o ambiente de negócios. A atração de novos investimentos e o aumento da concorrência é do interesse imediato dos consumidores e trabalhadores, mas não atende aos de certos empresários estabelecidos no Brasil. Obviamente, porém, entre os interesses dos empresários não competitivos (que serão prejudicados com a aprovação do Projeto de Código Comercial) e os dos consumidores e trabalhadores brasileiros, e, também, os dos demais empresários estabelecidos no Brasil, ninguém duvida de que devem prevalecer os destes últimos.

6 Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2015. ______. Constituição Política do Império do Brazil, de 25 de março de 1824. Liv. 4o de Leis, Alvarás e Cartas Imperiaes, fls. 17. Rio de Janeiro, 1824. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2015. ______. Senado Federal. Projeto de Lei do Senado no 487/2013. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2015. ______. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei no 1572/2011. Disponível em: . Acesso em: 11 set. 2015. COELHO, Fábio Ulhoa. As Teorias da desconsideração. In: TÔRRES, Heleno Taveira; QUEIROZ, Mary Elbe (Coord.). Desconsideração da Personalidade Jurídica em Matéria Tributária. São Paulo: Quartier Latin, 2005. ______. Ideologia e segurança jurídica. Revista de Direito Empresarial, Belo Horizonte, ano 11, v. 1, 2014a.

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Código de Defesa do Consumidor aplicado aos fundos de investimento: deveres e responsabilidade do administrador CARLOS ALEXANDRE CORRÊA LEITE Mestrando e graduado em Direito (UFRN). Graduado em Engenharia Aeronáutica (ITA).

YANKO MARCIUS DE ALENCAR XAVIER Professor Titula (UFRN). Pós-Doutor pelo Instituto de Direito Internacional Privado e Direito Comparado Universität Osnabrück – Alemanha). Doutor e Mestre em Direito (Universität Osnabrück – Alemanha). Graduado em Direito (UFPB).

FABRÍCIO GERMANO ALVES Professor de Direito das Relações de Consumo (UFRN). Doutor em Sociedad Democrática, Estado y Derecho (Universidad del País Vasco / Euskal Herriko Unibertsitatea – Espanha). Mestre em Direito (UFRN). Graduado em Direito (UNP). Artigo recebido em 11/02/2015 e aprovado em 02/09/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Fundos de investimento 3 Inserção dos fundos de investimento no Sistema Financeiro Nacional e regulação administrativa 4 Aplicabilidade do regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento 5 Contorno dos deveres e da responsabilidade do administrador-fornecedor no CDC 6 Conclusão 7 Referências.

RESUMO: Este artigo analisa a possibilidade de incidência das normas de proteção ao consumidor sobre a relação entre o quotista e o administrador de fundos de investimento. No primeiro momento, é apresentado um breve histórico dos fundos. No segundo, são tratados aspectos de regulação administrativa do Sistema Financeiro Nacional. No terceiro, é analisada a relação entre quotista e administrador na esfera administrativa. No quarto, considerando a possibilidade de aplicação do Código de Defesa do Consumidor a esta relação, passa-se a reconhecer a existência do diálogo entre as fontes normativas do Sistema Financeiro e do Código de Defesa do Consumidor, bem como a possibilidade de aplicação do regime consumerista à relação jurídica em estudo. Após ser demonstrada a incidência das normas de Defesa do Consumidor, o artigo tem o objetivo de traçar os contornos dos deveres e da responsabilidade do administrador do fundo de investimento perante o quotista, quais sejam: dever de probidade e de informação e responsabilidade subjetiva do administrador. PALAVRAS-CHAVE: Consumidor Fundos de investimento Administrador Deveres Responsabilidade. Revista Jurídica da Presidência

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Brazilian consumer protection code applied to investment trusts: duties and responsibility of the trustee CONTENTS: 1 Introduction 2 Investment trusts 3 Investment trusts placement inside the Brazilian Financial System and administrative regulation 4 Appliance of consumer protection rules to the investment trusts 5 Duties and responsibility of the trustee under the Brazilian consumer protection system 6 Conclusion 7 References.

ABSTRACT: This paper analyzes the possibility of application of the Brazilian consumer protection laws on the investment trusts and discusses the relationship between settlor and trustee. At first, the text covers historic and federal administrative regulations aspects to place investment trusts inside the Brazilian Financial System. Then the relationship between settlor and trustee in Brazilian investment trusts is discussed in order to evaluate the possibility of applying consumer protection acts. Afterwards, the existence of dialogue between the normative sources of financial standards and consumer protection is recognized. The incidence of Brazilian consumer protection system is also demonstrated. The text aims to outline the duties and responsibility of the trustee under the rules of the Brazilian consumer protection system: duty of loyalty, duty of information and subjective responsibility of the trustee. KEYWORDS: Consumer Investment trust Trustee Duties Responsibility.

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Code Brésilien de la Consommation appliqué aux fonds d’investissement: Obligations et responsabilité du gestionnaire. SOMMAIRE: 1 Introduction 2 Fonds d’investissement 3 Position des fonds d’investissement à l’intérieur du Système Financier Brésilien et la réglementation administrative 4 Application du Code Brésilien de la Consommation aux fonds d’investissement 5 Obligations et responsabilité du gestionnaire en raison du Système Brésilien de protection des consommateurs 6 Conclusion 7 Références.

RÉSUMÉ: Cet article présente une analyse des fonds d´investissement sous les normes brésiliennes. L’incidence du Système Brésilien de protection des consommateurs à la relation entre le porteur et le gestionnaire est évaluée. Le texte couvre aspects historiques et le règlement administratif fédéral pour placer les fonds d’investissement à l’intérieur du Système Financier Brésilien. La relation entre le porteur et le gestionnaire dans les fonds brésiliens est mise en examen pour évaluer la possibilité d’application du Code de la Consommation. L’ existence du dialogue entre les normes financières et de protection des consommateurs est reconnue. L´incidence du Code Brésilien de la Consommation est également démontrée. Le texte propose de délimiter les obligations et la responsabilité du gestionnaire en raison des règles du Système Brésilien de protection des consommateurs: obligation de loyauté, obligation d’information et la responsabilité subjective du gestionnaire. MOTS-CLÉS: Consommateur Fonds d´investissement Gestionnaire Obligations Responsabilité.

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1 Introdução

A

indústria brasileira de fundos de investimento apresentou, ao final do mês de janeiro, patrimônio líquido próximo a R$2,7 trilhões no mercado doméstico (ANBIMA, 2015). Nesta data, havia 14.512 fundos ativos no mercado, administrados por 105 instituições distintas. Do patrimônio líquido total, aproximadamente 15,3% correspondia à participação do varejo. O expressivo volume de recursos movimentados, aliado à crescente participação de pessoas físicas como investidores, aponta para a inegável relevância social dos fundos de investimento como meio de formação de poupança bruta para a população brasileira. Esse contexto motivou a análise jurídica dos fundos e o estudo da aplicação das normas do regime jurídico instituído pelo Código de Defesa do Consumidor – CDC, Lei Federal no 8.078, de 11 de setembro de 1990, à relação entre o quotista e o administrador. Para tanto, o presente artigo inicia-se com uma breve explicação sobre o que seja fundo de investimento, caracterizando-o no contexto brasileiro conforme suas peculiaridades. Passa-se, então, à compreensão da inserção dos fundos de investimento no Sistema Financeiro Nacional, compreendendo a regulação administrativa envolvida no processo para, em seguida, tratar da aplicabilidade do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento. A partir do exposto, busca-se delinear, com fundamento nos princípios e regras do CDC, o que se chamou de contornos das responsabilidades do administrador, quais sejam o dever de probidade e o dever de informação, além, da responsabilidade do administrador. O presente estudo conclui-se, enfim, com a caracterização dos referidos deveres e responsabilidades.

2 Fundos de investimento Os fundos de investimento correspondem a um modo organizado de captação de recursos para a realização de investimentos de forma coletiva. Dentre os fatores que explicam a popularização destes, pode-se citar: a) a possibilidade de acesso a modalidades de aplicação que não estariam disponíveis se o investidor operasse individualmente; b) o acesso à gestão profissional da carteira, com redução da assimetria de informações, sem que o investidor tenha de dominar em profundidade os aspectos técnicos do mercado; c) a possibilidade de diversificação da carteira de investimentos, com gerenciamento de riscos e aumento da rentabilidade; e d) a diluição dos custos de administração entre todos os participantes.

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No mercado brasileiro, os fundos operam como instrumentos de iniciação de pequenos investidores ao mercado. No aspecto estrutural do mercado financeiro, os fundos possibilitam uma base de captação mais ampla e, com isso, ampliam a robustez do sistema. Considerando a finalidade da ordem econômica e financeira, prevista constitucionalmente, os investimentos se traduzem no financiamento das atividades produtivas que sustentam e dinamizam a economia.

2.1 Histórico A criação dos primeiros fundos de investimento ocorreu no século XVIII na Holanda (GOETZMANN; ROUWENHORST, 2005, p. 249-250)1. A capital holandesa já apresentava, à época, mercado financeiro bastante organizado para negociação de contratos, havendo mais de 100 diferentes ativos de diversas companhias e governos estrangeiros disponíveis para troca. Nos países de tradição anglo-saxônica, o surgimento dos fundos de investimento foi marcado pela fundação do fundo Foreign and Colonial Government Trust2 em Londres, no ano de 1868 (GOETZMANN; ROUWENHORST, op. cit., p. 264). No mercado britânico os fundos passaram a ser conhecidos como Investment Trusts (FINK, 2011, p. 8)3. O modelo de negócio foi introduzido nos Estados Unidos na década de 1890. Os trusts receberam, em território americano, a denominação de Investment Companies (ASHTON, 1963, p. 9)4. Em 1924, na cidade de Boston, foi formado o Massachussetts Investors Trust, cuja principal inovação foi a de permitir a contínua emissão e recompra de quotas a preços proporcionais àqueles dos ativos presentes na carteira (FINK, op. cit.,

1 Apontam os autores que foram duas as principais inovações que diferenciaram o fundo mútuo das modalidades anteriores de investimento: a) securitização; e b) substituição de títulos. 2 Fundo de investimento no exterior e no governo colonial. 3 Os trusts emitiam valores mobiliários ao público e utilizavam as receitas obtidas para adquirir e gerir carteira de ativos. Não possuíam empregados. A gestão era executada por outra organização, chamada de companhia de gestão ou agente fiscal. A vantagem deste arranjo era permitir que um único agente fiscal administrasse vários fundos, reduzindo assim os custos financeiros e de gestão de cada um destes. 4 As Investment Companies consistem em uma reunião de capitais ou meios financeiros de diversas pessoas em unidade econômica. Essa união é gerida por uma empresa que se propõe a aplicar racionalmente os recursos no mercado mobiliário com os objetivos de diminuição de riscos e de obtenção de rendimentos satisfatórios. Revista Jurídica da Presidência

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p. 13)5. Mesmo com a crise financeira de 1929, a indústria dos fundos de investimento continuou a se desenvolver nos Estados Unidos, ampliando o total de ativos. O diploma legal que regula a matéria na ordem jurídica norte-americana é o Investment Company Act of 1940 (U.S. SECURITIES AND EXCHANGE COMISSION, 1940). O cerne da questão das Investment Companies6 no direito americano, independente da forma jurídica de estruturação adotada, reside no fato de que os ativos do fundo pertencem a uma pessoa jurídica determinada que exerce a titularidade sobre esse patrimônio. No caso das formas contratuais, os investidores, chamados de settlors, são proprietários de quotas ou frações ideais de determinado capital total investido. Além destes, há a figura do administrador, ou trustee, que é responsável pela gestão dos recursos e é também proprietário do trust. O sucesso das Investment Companies permitiu a difusão do modelo para outros países, inclusive para o Brasil (BARRETO FILHO, 1956, p. 86). No caso brasileiro, os primeiros registros de organização de fundos de investimento datam da década de 1940, principalmente após o impulso dado pela regulação do mercado norteamericano (ASHTON, op. cit., p. 14). Coube ao Decreto-Lei no 7.583, de 25 de maio de 1945, influenciado pelo texto legal estrangeiro, o primeiro esforço de regulação dos fundos de investimento no direito pátrio. Entretanto, não foram numerosas as sociedades de investimento com atuação no mercado brasileiro nas décadas de 1940 e de 1950. Como tentativa de superar as dificuldades de investimento nas sociedades7, foi adotada a solução do fundo em condomínio. O primeiro fundo dessa natureza a operar no mercado brasileiro foi o Fundo Crescinco, constituído em 1957 e administrado pela subsidiária brasileira da International Basic Economic Corporation – IBEC, sediada em território norte-americano. Inspirado num modelo de incorporação imobiliária, o fundo em condomínio: a) garantia a separação patrimonial entre a administradora e os investidores; b) 5 Os fundos desse tipo aberto mantiveram as vantagens de diversificação e de gestão profissional existentes nos trusts e, pela possibilidade de resgate diário das quotas, evitaram os defeitos daquela modalidade, mais suscetível à especulação sobre o valor dos títulos emitidos. 6  Companhias de investimento. 7 A utilização de uma sociedade de investimento por ações para a atuação no mercado mobiliário foi objeto de crítica de diversos autores. Estes apontaram especialmente a rigidez dos requisitos jurídicos desta forma societária no direito da época e as dificuldades de emissão de novas ações como os principais empecilhos ao desenvolvimento do mercado de capitais brasileiro naquele período. Como exemplos dessas críticas, vide: LADD; WRIGHT, 1965; BARRETO FILHO, op. cit., p. 114; ASHTON, op. cit., p. 112. Revista Jurídica da Presidência

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podia ser enquadrado num regime fiscal mais favorável (LADD, op. cit., p. 88-89); e c) permitia aos investidores procedimentos mais simples e rápidos para emissões, reembolsos ou resgate de títulos. Convém ressaltar, entretanto, que não há completa similaridade entre as Investment Companies do Direito norte-americano e os fundos de investimento brasileiros (ASHTON, op. cit., p.63)8. A característica de que o administrador é também proprietário do fundo, presente no modelo anglo-saxão, não existe no mercado nacional, pois os recursos dos investidores destacados para o fundo não constituem o patrimônio da sociedade que os administra (STUBER, 1989, p. 103). A transferência fiduciária não ocorre (WALD, 1999). O Ministério da Fazenda, em 1959, com o objetivo de regular os fundos em condomínio, editou a portaria no 309. Ela permitiu às sociedades de crédito, financiamento e investimentos a constituição dessa modalidade de fundo. Como consequência da situação mais favorável, começou a ocorrer a popularização dos fundos em condomínio e a modificação do panorama do mercado de capitais na passagem para a década de 1960. Em 1970, o Banco Central do Brasil – BACEN regulamentou os fundos de investimento com a edição da Resolução no 145 (BACEN, 1970). A disciplina normativa tratou os fundos como parte integrante do Sistema Financeiro Nacional – SFN e representou o marco regulatório da conformação jurídica atual destes. A segurança jurídica trazida pela norma do BACEN favoreceu o desenvolvimento do mercado nas décadas de 1970 e 1980. Ao longo dos anos, a regulação dos fundos de investimento foi sendo feita pela edição de instrumentos infralegais pelo BACEN e, posteriormente, pela Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Com a edição da instrução normativa – IN no 409 da CVM, em 2004, esta passou a supervisionar todos os tipos de fundos de investimento no mercado de capitais brasileiro. Nas últimas duas décadas, observou-se notável florescimento do mercado financeiro nacional. Acompanhando esse desenvolvimento, os fundos de investimento passaram a receber volumes cada vez maiores de recursos e se transformaram em uma das principais ferramentas de formação de poupança para a sociedade brasileira.

8 O autor criticou a noção de condomínio e apontou que os fundos brasileiros representam no máximo a “expectativa de um condomínio por ocasião da liquidação do fundo”. O fundo é representado como propriedade ou potencial propriedade de todos os investidores. Revista Jurídica da Presidência

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2.2 Natureza jurídica dos fundos de investimento no direito brasileiro A Instrução Normativa no 555 da CVM, cuja entrada em vigor no segundo semestre de 2015 prevê a revogação da IN no 409 da CVM, traz em seu art. 3o o conceito legal de fundo de investimento como sendo “uma comunhão de recursos, constituída sob a forma de condomínio, destinado à aplicação em ativos financeiros” (CVM, 2014). O ordenamento pátrio adotou natureza jurídica condominial. Com efeito, diversos instrumentos normativos editados pela CVM conceituam os fundos de investimentos como condomínios9. O domínio do patrimônio é conjunto, mas a administração e a gestão dos bens são delegadas a administradores profissionais, que, diferentemente do modelo anglo-saxão, não são proprietários. A natureza jurídica do fundo de investimento permanece questão controversa em função das características e da extensão da comunhão de bens nele contida (WALD, 1990)10. Para o enfrentamento do tema, é necessário observar, em primeiro lugar, que se mostra inviável a caracterização dos fundos de investimento na moldura do condomínio, especificada no art.1.314 da Lei Federal no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, Código Civil Brasileiro. Há limitações com relação ao exercício do direito de propriedade nos fundos de investimento. Em resumo, o quotista do fundo não pode: a) requerer a dissolução do fundo ou a divisão dos bens; b) utilizar livremente os ativos do fundo; e c) influenciar na administração do patrimônio comum. Os artigos 13 e 78 da IN CVM no 55511 trazem exemplos dessas limitações. O primeiro porque limita a possibilidade de cessão ou transferência de quotas nos fundos abertos. Já o segundo, confere à administração do fundo tanto o uso dos recursos que compõem o fundo quanto a possibilidade de contratar em nome do fundo. Além destes, o art. 1112 da mesma Instrução Normativa, ao estabelecer que “as quotas do fundo correspondem a frações ideais de seu patrimônio, e serão escriturais 9 

Vide os seguintes documentos elaborados pela CVM: IN no 141/1991, art. 1o; IN no 153/1991, art. 1o; IN no 186/1992, art. 1o; IN no 209/1994, art. 1o; IN no 278/1998, art. 1o; IN no 279/1998. art. 1o; IN no 356/2001, art. 1o; IN no 359/2002, art. 2o; IN no 391/2003; IN no 398/2003, art. 3o; e IN no 409/2004, art. 2o.

10 O autor conceitua o fundo de investimento como um patrimônio com destinação específica. Os recursos nele contidos abrangem elementos ativos e passivos vinculados a um certo regime, que os une, mediante a afetação dos bens a determinadas finalidades. Para Wald, essa afetação é o que justifica a adoção de um regime jurídico próprio. 11 Os artigos 13 e 78 da IN CVM no 555 equivalem, respectivamente, aos artigos 12 e 56 da IN CVM no 409. 12 Equivalente ao art. 10 da Instrução Normativa CVM no 409. Revista Jurídica da Presidência

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e nominativas”, posiciona os investidores como titulares de valores mobiliários correspondentes a tais frações ideais e não aos ativos que compõem o patrimônio do fundo, excluindo dessa maneira a propriedade direta sobre esses ativos. Outra oposição relevante entre o regime de condomínio do Código Civil e o regime dos fundos de investimento é o que trata da possibilidade de o condômino se eximir do pagamento das despesas e dívidas do condomínio ao renunciar à sua fração ideal13. No caso dos fundos de investimento, tal situação não é possível. O art. 15 da IN CVM no 555 prevê, inclusive, que os quotistas respondem por eventual patrimônio líquido negativo do fundo14. Diante da dificuldade de caracterização, alguns autores defendem a existência de um regime de condomínio especial para os fundos de investimento. Gaggini (2001, p. 53) é um dos defensores desse posicionamento, assim como Eizirik. Outra parte dos autores atribui ao fundo de investimento a natureza jurídica de sociedade, uma vez que as características desta seriam mais próximas da ontologia dos fundos de investimento15. Esse posicionamento se aproxima de uma compreensão dos fundos que é mais próxima da noção das Investment Companies presentes no direito norte-americano. Nesse caso, permanece a crítica de que os fundos de investimento não possuem personalidade jurídica própria, embora possam assumir obrigações e direitos em nome próprio. Outra crítica aponta que os fundos de investimento apresentam uma feição contratual e não societária, uma vez que não há entre os investidores relação interpessoal associativa – a affectio (EIZIRIK, op. cit., p. 79)16. É de se reconhecer, então, que os fundos de investimento, no caso da ordem jurídica vigente no país, apresentam natureza condominial. Não na forma prescrita pelo Código Civil Brasileiro, mas como forma especial de condomínio limitada pelas normas legais e infralegais que disciplinam a questão.

13  Conforme disposto no art. 1316 da Lei Federal no 10.406: “Pode o condômino eximir-se do pagamento das despesas e dívidas, renunciando à parte ideal” (BRASIL, 2002). 14 O art. 15 da IN CVM no 555 equivale ao art. 13 da IN CVM no 409. 15 Como exemplo dessa corrente, são citados: FREITAS, 2005; FRANÇA, 2006, p. 11-39; CORRÊALIMA; PIMENTA, apud WALD; GONÇALVES; CASTRO (Coord.); FREITAS; CARVALHO (Org.). 2011 e CARVALHO, 2012. 16 O autor argumenta que a relação dos investidores do fundo entre si é irrelevante para a constituição e funcionamento deste, uma vez que, ao aderirem, a vinculação ocorre com o administrador, que presta diretamente a cada um deles os serviços de administração e de gestão de seus recursos. Revista Jurídica da Presidência

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3 Inserção dos fundos de investimento no Sistema Financeiro Nacional e regulação administrativa

Os fundos de investimento, como parte do mercado financeiro, integram o Sistema Financeiro Nacional – SFN, estabelecido no art. 192 da Constituição da República de 1988. Este é parte integrante da Ordem Econômica prevista no art. 170 do mesmo texto. A norma constitucional, além de atribuir ao Estado a função de agente normativo e regulador da atividade econômica (BRASIL, 1988)17, previu a regulação do SFN através de leis complementares. Assim, a legislação anteriormente vigente sobre a constituição, organização e funcionamento do sistema financeiro foi recepcionada como lei complementar, conforme entendimento do Supremo Tribunal Federal – STF (BRASIL, 1993). A estrutura normativa do SFN é dada pelas seguintes leis federais: a) lei no 4.595, de 31 de dezembro de 1964, que instituiu o Conselho Monetário Nacional – CMN e o Banco Central do Brasil – BACEN; b) lei no 4.728, de 14 de julho de 1965, que disciplinou o mercado de capitais; e c) lei no 6.385, de 7 de dezembro de 1976, que regulou o mercado de valores mobiliários e criou a Comissão de Valores Mobiliários – CVM. A capacidade normativa dos reguladores estatais é concorrente na estrutura do SFN. Ao CMN compete a expedição de diretrizes gerais, na forma de Resoluções, para a disciplina da constituição, funcionamento e fiscalização das instituições integrantes do SFN (BRASIL, 1964, art. 4o). O BACEN18 e a CVM atuam de modo a dar efetividade às diretrizes gerais do CMN e a cumprir suas atribuições específicas. Cada uma destas organizações dispõe de poder normativo e fiscalizatório dentro do seu escopo de atuação. 17 O caput do art. 174 da Constituição da República de 1988, prevê: “Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado” (BRASIL, 1988). 18  A capacidade normativa do BACEN é exercida através de Resoluções, Circulares e Cartas-circulares. Estas regulam, entre outros aspectos: a) requisitos de constituição, de valores mínimos de capital e de funcionamento das instituições financeiras que operam no mercado; b) autorização para o funcionamento; e c) fiscalização das atividades das instituições. Assim, as organizações que a operam no mercado de fundos de investimento ficam sujeitas à regulação do BACEN para os aspectos por ele regulados. Com efeito, as normas do BACEN relativas à operação de ativos não mobiliários são cogentes aos fundos de investimento. Além disso, são aplicáveis aos administradores de fundos de investimentos as Resoluções do BACEN no 2.099/94, que trata dos requisitos de constituição e operação das instituições financeiras, e no 2.624/99, que regula a constituição e o financiamento dos bancos de investimento. Revista Jurídica da Presidência

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A CVM exerce o poder normativo através de Instruções e Deliberações, que visam regular, controlar, fiscalizar e desenvolver o mercado brasileiro de valores mobiliários (BRASIL, 1976, art. 8o). No caso dos fundos de investimento, as quotas se constituem em valores mobiliários conforme a previsão expressa dos incisos V e IX do art. 2o da lei no 6.385/7619. Dessa maneira, fica estabelecida a submissão do funcionamento dos fundos de investimento à regulação da CVM. De fato, as Instruções da CVM no 409, publicada em 2004, e no 555, aprovada em dezembro de 2014, regulam a constituição, a administração, o funcionamento e a divulgação de informações dos fundos de investimento. As quotas do fundo correspondem às frações ideais de seu patrimônio. Conferem iguais direitos e obrigações aos quotistas. O valor da quota é resultante da divisão do valor do patrimônio líquido pelo número de cotas do fundo, apurados, ambos, no encerramento do dia (CVM, 2014, art. 11; CVM, 2004, art. 10). A constituição do fundo é feita por deliberação de um administrador a quem incumbe aprovar, no mesmo ato, o seu regulamento (CVM, 2014, art. 6o; CVM, 2004, art. 3o, caput). Podem ser administradores de fundo de investimento as pessoas jurídicas autorizadas pela CVM para o exercício profissional de administração de carteira (CVM, 2014, art. 2o, I; CVM, 2004, art. 3o, parágrafo único). A administração do fundo compreende o conjunto de serviços relacionados direta ou indiretamente ao funcionamento e à manutenção do fundo, que podem ser prestados pelo próprio administrador ou por terceiros por ele contratados (CVM, 2014, art. 78; CVM, 2004, art. 56). O administrador pode contratar, em nome do fundo, com terceiros devidamente habilitados e autorizados, os seguintes serviços: a) a gestão da carteira do fundo; b) consultoria de investimentos; c) atividades de tesouraria, de controle e processamento dos títulos e valores mobiliários; d) distribuição de cotas; e) escrituração da emissão e resgate de cotas; f) custódia de títulos e valores mobiliários e demais ativos financeiros; g) classificação de risco por agência especializada; e h) formador de mercado. O administrador tem poderes para praticar todos os atos necessários ao funcionamento do fundo de investimento, sendo responsável pela constituição do fundo e pela prestação de informações à CVM (CVM, 2014, art. 80; CVM, 2004, art. 58). 19 Lei Federal no 6.385/76, Art. 2o “São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: [...] V – as cotas de fundos de investimento em valores mobiliários ou de clubes de investimento em quaisquer ativos; [...] IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”. (BRASIL, 1976). Revista Jurídica da Presidência

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Nos casos de contratação de terceiros, nas hipóteses de gestão de carteira, atividades de tesouraria ou escrituração, o contrato deve conter cláusula que estipule a responsabilidade solidária entre o administrador do fundo e os terceiros contratados (CVM, 2014, art. 79, §2o; CVM, 2004, art. 57, §2o). O funcionamento do fundo depende do prévio registro na CVM, que, por sua vez, é condicionado ao envio de documentação do administrador à autarquia (CVM, 2014, art. 7o; CVM, 2004, art. 7o). A documentação exigida inclui o regulamento e o prospecto do fundo, salvo no caso dos fundos destinados a investidores qualificados, nos quais é necessário somente o regulamento. O regulamento e o prospecto são os documentos que contêm todas as informações relevantes para o investidor relativas à política de investimento do fundo e aos riscos envolvidos (CVM, 2004, art. 37, art. 41)20 e devem estar à disposição dos investidores potenciais durante o período de distribuição. Devem conter, também, entre outros aspectos, informações sobre: a) metas e objetivos de gestão do fundo, bem como seu público alvo; b) política de investimento e faixas de alocação de ativos, discriminando o processo de análise e seleção destes; c) relação dos prestadores de serviços do fundo; d) especificação, de forma clara, das taxas e demais despesas do fundo; e) apresentação detalhada do administrador e do gestor; f) condições de compra de quotas do fundo, compreendendo limites mínimos e máximos de investimento, bem como valores mínimos para movimentação e permanência no fundo; g) condições de resgate de quotas e, se for o caso, prazo de carência; h) identificação dos riscos assumidos pelo fundo; i) informação sobre a política de administração dos riscos assumidos pelo fundo, inclusive quanto aos métodos utilizados para gerenciamento destes riscos; e j) informação sobre a tributação aplicável ao fundo e a seus quotistas, contemplando a política a ser adotada pelo administrador quanto ao tratamento tributário perseguido (CVM, 2004, art. 40, art. 41)21.

3.1 A relação entre quotista e administrador na esfera administrativa O quotista e o administrador do fundo ocupam os polos da relação jurídica originada pela aquisição e registro das quotas do fundo. O liame, materializado no negócio jurídico de gestão do patrimônio do quotista pelo administrador, apoiase numa relação de confiança que se estabelece entre ambos. Da relação jurídica, 20  Sem correspondência na Instrução Normativa no 555/2014. 21  Sem correspondência na Instrução Normativa no 555/2014. Revista Jurídica da Presidência

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impõem-se às partes os deveres de probidade e lealdade decorrentes do princípio da boa-fé objetiva, sendo vedadas condutas que o ofendam. O contrato de fundo de investimento pode ser entendido como um contrato com objeto definido, mas cercado de obrigações e deveres correlatos, como o de regras nas áreas bancária e financeira. Centra-se na recepção, na conservação e na aplicação do numerário, para a devolução em data e ocasião definidas pelo interessado, observadas as condições estabelecidas. A gestão da verba, enquanto em poder do administrador, é elemento básico do ajuste, podendo ser objeto de obrigação própria em contrato que a preveja (BITTAR, 2008, p. 163). No que tange ao quotista, o domínio da quota confere ao titular o direito de participação no fundo e de acesso aos frutos do investimento (PERRICONE, 2001, p. 86)22. Por outro lado, o quotista fica obrigado a: a) declarar que está ciente dos riscos associados ao investimento; e b) responder por eventual patrimônio líquido negativo do fundo, sem prejuízo da responsabilidade do administrador e do gestor, se houver, em caso de inobservância da política de investimento ou dos limites de concentração previstos no regulamento e na IN CVM no 555 (CVM, 2014, art. 15; CVM, 2004, art. 13). Ao administrador são reconhecidos os direitos de: a) não ter o seu próprio patrimônio atacado em caso de resultado negativo do fundo; b) ser remunerado pelo serviço que prestar (taxa de administração); e c) exigir dos quotistas o cumprimento de suas obrigações. Além dos direitos, reciprocamente, constituem-se, entre outros, os deveres de: a) diligenciar para que sejam mantidos os registros obrigatórios do fundo; b) elaborar e divulgar as informações aos quotistas e à CVM; c) custear as despesas com propaganda do fundo, inclusive com a elaboração do prospecto; d) manter serviço de atendimento ao quotista, responsável pelo esclarecimento de dúvidas e pelo recebimento de reclamações; e) observar as disposições constantes do regulamento e do prospecto; f) cumprir as deliberações da assembleia geral; e g) fiscalizar os serviços prestados por terceiros contratados pelo fundo (CVM, 2014, art. 90; CVM, 2004, art. 65).

22 A autora conceitua a quota como um título representativo de uma fração ideal do patrimônio de um fundo de investimento. De acordo com o conceito, a quota é ofertada ao público e confere ao seu titular: a) o direito de participação no fundo; b) o direito de auferir os rendimentos que advierem da valorização dos ativos integrantes da carteira do fundo e/ou da política de investimento adotada pelo administrador; c) o direito de efetuar resgates, novas aplicações, eventuais transferências das quotas nos termos regulamentares; e d) o ônus de arcar com eventuais prejuízos que forem apurados pelo fundo. Revista Jurídica da Presidência

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Na relação jurídica, quotista e administrador dividem os riscos associados ao fundo de investimento. Deve-se notar que o equilíbrio contratual se assenta nessa divisão. A dinâmica do fundo envolve uma álea natural. A busca de maior rentabilidade das carteiras tem correlação com o aumento dos riscos assumidos. Os contratos de fundo de investimento são caracterizados como contratos de risco, aleatórios e sujeitos às incertezas da fortuna (MONTEIRO, 2007, p. 67). Para efeito de análise, o risco pode ser decomposto, no caso dos fundos de investimento, em: a) risco de mercado, associado à flutuação dos valores dos ativos no mercado; b) risco de liquidez, relativo à impossibilidade de liquidação de ativos da carteira na data desejada; c) risco de crédito, que envolve o inadimplemento das obrigações assumidas em relação aos ativos constituintes da carteira; d) risco de operação, relacionado à gestão do fundo; e e) risco legal, associado a infrações da ordem jurídica na operação do fundo ou dos ativos componentes da carteira. Ao adquirir a quota do fundo, a interpretação da norma contida no texto do art. 15 da IN CVM no 555 indica que o investidor assume a responsabilidade pelos riscos de mercado, liquidez e crédito. Ao administrador cabe a responsabilidade sobre os riscos legais e de operação. Cada uma das partes assume os riscos dentro dos limites que caracterizam a boa-fé objetiva. A ofensa a esse princípio rompe a álea natural do contrato e penaliza a parte ofensora a suportar integralmente o risco do negócio23.

4 Aplicabilidade do regime jurídico do Código de Defesa do Consumidor aos fundos de investimento

Conforme visto anteriormente, ao disciplinar os fundos de investimento, os reguladores estatais buscaram tutelar administrativamente a higidez do SFN nos aspectos atinentes ao funcionamento e à operação do mercado. Os direitos e as obrigações impostas aos quotistas e aos administradores revestem-se de interesse público na medida que a preservação do SFN visa, de modo mediato, à garantia da própria ordem econômica prevista no art. 170 do texto constitucional. Este mesmo artigo, em seu inciso V, fundamenta outro aspecto de tutela das relações sociais: a proteção ao consumidor. A finalidade do preceito não é a manutenção do mercado para si próprio, mas a busca de valorização da pessoa humana e a perseguição de justiça social através de preceitos de livre iniciativa e livre concorrência. Para além da abordagem de proteção da ordem econômica, o texto do art. 5o, 23 Nesse sentido, vide a posição do Superior Tribunal de Justiça (BRASIL, 2011). Revista Jurídica da Presidência

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inciso XXXII, insculpiu a proteção ao consumidor no rol dos direitos e garantias fundamentais, comprometendo o Estado com atuação efetiva para a concretização da norma que se reveste de caráter de ordem pública e de interesse social. Foi esse mandamento constitucional de proteção, combinado com o comando do art. 48 do ADCT/CF88, que fundamentou a promulgação do Código de Defesa do Consumidor. A necessidade de tutela ao consumidor ganhou bastante relevo com o desenvolvimento da chamada sociedade de consumo. Conforme a lição de GRINOVER et. al. (2001, p. 6), esta é caracterizada por: a) oferta crescente de produtos e serviços; b) domínio do crédito e do marketing; c) dificuldades no acesso dos consumidores à justiça; e d) fortalecimento dos fornecedores e produtores em detrimento do consumidor. Nesse contexto de ampliação do desequilíbrio entre as partes da relação de consumo, os consumidores passaram a assumir posições cada vez mais vulneráveis, tanto em termos técnicos quanto econômicos. O CDC define um microssistema coerente, homogêneo e autônomo, que regula as relações de consumo como meio para obter a proteção ao consumidor prevista no texto constitucional e fornece as balizas interpretativas para as questões a elas afetas. Tal microssistema não é hermético e se comunica com outros aspectos da ordem jurídica para que o conjunto do ordenamento seja coerente e harmônico. Trata-se, portanto, de buscar uma interpretação sistemática e de máxima efetividade normativa. Representou o CDC a opção por um modelo de intervenção do Estado no domínio socioeconômico através da elaboração de normas jurídicas de consumo, ao reconhecer que a autorregulação dos mercados não seria suficiente para trazer a concretização do mandamento constitucional, fundado na busca de igualdade de oportunidades e na igualdade de tratamento entre os indivíduos. O núcleo da questão sobre a atração do regime do CDC à relação jurídica é a verificação de existência de um vínculo de consumo entre as partes. Esse vínculo se caracteriza pela presença de um consumidor em um dos polos da relação e de um fornecedor no polo oposto. O objeto da relação entre ambos é o fornecimento de um produto ou serviço. A noção de consumidor extraída a partir do texto legal aponta para a necessidade de interpretação restritiva da expressão destinatário final, trazida no art. 2o da Lei Federal no 8.078/90. Deve-se considerar como final tão somente o destinatário fático e econômico do bem ou serviço (DONATO, 1993, p. 90-91; MARQUES, 2002, p. 145-146). Exclui-se da proteção do CDC a figura do consumo intermediário, aquele cujo produto retorna para as cadeias de produção e distribuição (COELHO, 1994, p. 45). A jurisprudência do STJ, entretanto, reconhece a possibilidade

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de abrandamento do rigor desse critério finalista e a consequente aplicação do CDC à sociedade empresária nas situações em que fique evidenciada a vulnerabilidade técnica, jurídica ou econômica desta frente ao fornecedor (BRASIL, 2005). Ao analisar a situação específica dos fundos de investimento, observa-se que o fundo de investimento, de acordo com o §2o do art. 3o enquadra-se no suporte fático previsto para serviço, uma vez que corresponde a atividade de natureza financeira oferecida ao mercado. De modo semelhante, o organizador do fundo de investimento, ao se sujeitar ao regime administrativo das normas emitidas tanto pelo BACEN quanto pela CVM e oferecer as quotas ao mercado, atua como fornecedor desse serviço específico, nos termos do caput do art. 3o do diploma legal. A caracterização do quotista do fundo de investimento como consumidor, nos termos do caput do art. 2o, depende da verificação de que este se utiliza do serviço como destinatário final e da sua vulnerabilidade no caso concreto.

4.1 O posicionamento doutrinário e jurisprudencial a respeito da incidência do regime consumerista aos fundos de investimento

Inicialmente, cumpre salientar que a literatura especializada sobre mercado financeiro e investimentos não convergiu em torno da questão de atribuição de caráter de consumo para a relação entre quotista e administrador do fundo24. Diversas são as objeções à incidência do CDC nessa relação jurídica. A primeira delas se refere, em termos econômicos, à oposição entre consumo e poupança. A realização de investimento por parte do quotista corresponde à formação de poupança. Esta estaria fora do escopo do CDC, que se ocuparia somente das relações econômicas relacionadas ao mercado de consumo, deixando de fora o mercado produtivo. Considera-se como consumo, nesse caso, a utilização imediata de bens e serviços para a satisfação das necessidades humanas. Como ilustração desse posicionamento, são citados Eizirik, Wald e Bulgarelli. Essa formulação, entretanto, comete um equívoco ao buscar a delimitação jurídica da relação de consumo com base apenas em conceitos da economia. Com efeito, o alcance da relação de consumo prevista no CDC não está limitado ao conceito econômico de mercado produtivo ou de mercado de consumo. A norma incide sobre relações existentes em qualquer um desses mercados, desde que caracterizado um consumidor como destinatário final do produto ou serviço oferecido ao mercado pelo fornecedor. 24 Como exemplos de autores que negam o caráter de consumo à relação do quotista como o administrador dos fundos de investimentos são citados: EIZIRIK, 2005; WALD, 1997; e BULGARELLI, 1998. Revista Jurídica da Presidência

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A segunda objeção à incidência das normas consumeristas na relação entre quotistas e administrador no fundo de investimento parte da doutrina que enxerga nos fundos a existência de um ente societário25. Para Carvalho, a norma do CDC não é plenamente aplicável porque a relação entre o quotista e o administrador seria de natureza intrassocietária, devendo ser regida pelos institutos do Direito Empresarial. Com relação a essa objeção, cumpre ressaltar que o direito positivo coloca a natureza dos fundos de investimento como condominial e não societária. Além disso, o administrador na regulação administrativa é tomado como prestador de serviços, externo ao condomínio, e não como integrante do suposto ente societário. A terceira objeção diz respeito à suposta exclusividade do regime jurídico administrativo para a regulação dos fundos de investimento e valores mobiliários. Segundo Eizirik (Op. cit., p. 547)26, defensor dessa ideia, a existência de uma instância regulatória no campo administrativo excluiria a incidência das normas consumeristas, pois o ente administrativo, em função de sua especialidade, possuiria o monopólio da competência para o tratamento das questões relativas à matéria. Contudo, a simples existência de um ente administrativo para a regulação dos valores mobiliários não é idônea a excluir a incidência das normas de Direito do Consumidor. Há de se perquirir quais os objetivos e a natureza dessa regulação administrativa. Conforme posicionamento anteriormente explicitado, é reconhecido que a regulação estatal visa à tutela da higidez do SFN, mormente quanto ao funcionamento e à operação do mercado. Trata-se da manutenção do SFN como condição para a garantia da ordem econômica insculpida no art. 170 do texto constitucional. Já a fundamentação do regime de Direito do Consumidor se refere a aspecto constitucional distinto, embora conexo com o assunto. O CDC resguarda o respeito a um direito fundamental de proteção ao consumidor, cujo conteúdo não se faz presente no escopo de atuação da CVM. Essa, ao oferecer serviço de proteção ao investidor ou estabelecer procedimento sancionador, o faz com objetivo de assegurar a saúde institucional do SFN. 25  Como exemplo são citados: FREITAS, 2005 e CARVALHO, 2012. 26 O autor posiciona-se no sentido de que, a CVM, verificando qualquer infração às normas legais e regulamentares que disciplinam o mercado, pode instaurar procedimento administrativo sancionador, visando à aplicação de penalidades administrativas. Aduz também que a CVM mantém, em caráter permanente, um serviço de proteção a todos os investidores em valores mobiliários, de reconhecida especialização. Conclui que: a) aquele que adquire quotas de um fundo de investimento financeiro é considerado investidor do mercado de valores mobiliários e não consumidor; e b) o mercado de valores mobiliários é submetido à regulamentação e fiscalização da CVM, agência reguladora que dispõe de amplos poderes para proteger os investidores. Revista Jurídica da Presidência

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Ademais, entende-se que essa noção de aplicação exclusiva de um único regime jurídico em detrimento de outro com delimitação e alcance distintos corresponde à interpretação não sistemática do ordenamento jurídico. Ao sacrificar o princípio constitucional de defesa do consumidor e privilegiar a organização do SFN, estaria o intérprete constitucional a desconsiderar a normatividade do primeiro princípio constitucional. Assim, haveria violação do princípio da máxima efetividade ou da interpretação efetiva, em cujo conteúdo se estabelece vedação à hermenêutica que retire ou diminua a força normativa das normas constitucionais (MIRANDA, 1983, p. 229). O CDC possui capacidade para atingir toda e qualquer relação jurídica que possa ser caracterizada como de consumo e que esteja também regrada por outra norma jurídica infraconstitucional. Isso porque se trata de Lei Principiológica, caracterizada como aquela que ingressa no sistema jurídico, fazendo um corte horizontal e alcançando as demais prescrições do ordenamento (NUNES, op. cit., p. 110). Assim, o que deve ser perseguido é a integração sistemática das normas, uma vez que as cores do regime do CDC aderem sobre o substrato normativo emanado pelos integrantes do SFN. O que se observa é a ocorrência do fenômeno caracterizado por Marques (2002, p. 45) como “diálogo sistemático de complementariedade e subsidiariedade das fontes” administrativa e civil. Os textos normativos dos reguladores estatais do SFN complementam o regramento civil dos fundos de investimento no que se refere à relação entre o quotista e o administrador. O bem jurídico a ser tutelado na esfera civil é a proteção ao quotista-consumidor em face do administrador-fornecedor. A controvérsia a respeito da aplicação do CDC nas instituições, produtos e serviços financeiros atingiu os Tribunais, que enfrentaram a questão. O STF, ao julgar o mérito da ADI 2.591, proposta pelo Conselho Nacional do Sistema Financeiro – CONSIF contra a incidência do CDC nas relações bancárias, refutou a tese de que o regime normativo próprio do SFN excluiria a possibilidade de incidência do CDC (BRASIL, 2006)27. Na ocasião, o pleno do STF concluiu pela possibilidade de incidência do CDC nas instituições bancárias. De modo semelhante, o STJ já havia sumulado o entendimento de que as instituições financeiras se sujeitam ao regime do CDC (BRASIL, 2004), argumentando que: a) o §2o do art. 3o do CDC traz previsão expressa de que as prestações de

27 Prevaleceu a tese de que a atribuição normativa do SFN se restringe aos aspectos de organização e funcionamento do sistema financeiro, não sendo aplicável à defesa do consumidor, que se sujeita ao regime do CDC. Revista Jurídica da Presidência

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natureza bancária, financeira e creditícia são consideradas serviços; b) as relações contratuais verificadas no negócio bancário permitem práticas que podem contrariar os princípios do CDC, fazendo que o cliente esteja protegido pelo disposto no art. 29, que estende o conceito de consumidor a todos os que estão sujeitos às práticas nele contidas; c) o afastamento do CDC das atividades bancárias deixaria os clientes desamparados; d) a aplicação do CDC às atividades bancárias dotaria os poupadores de instrumentos de proteção de aplicação de cunho social; e e) a não aplicação do CDC às relações bancárias poderia resultar na possibilidade de excessos por parte das instituições financeiras (BRASIL, 2002). Dessa maneira, a jurisprudência dos Tribunais Superiores convergiu no sentido de que é possível a aplicação do CDC aos serviços bancários. Analogamente, é possível a conclusão pela incidência da norma na relação entre quotista e administrador. Nunes (loc. cit.) possui entendimento na mesma direção. Ressalta-se a necessidade de verificação dos pressupostos da relação de consumo como: a) o consumidor caracterizado na forma de destinatário final; e b) a verificação da vulnerabilidade in concreto do consumidor. Nesse sentido, decidiu o STJ (BRASIL, 2005) ao consagrar o critério finalista para interpretação do conceito de consumidor. A decisão reconheceu que a relação jurídica qualificada por ser de consumo não se caracteriza pela presença de pessoa física ou jurídica em seus polos, mas pela presença de uma parte vulnerável de um lado – consumidor – e de um fornecedor de outro. Se da análise da hipótese concreta decorrer vulnerabilidade entre o consumidor e o fornecedor, deve-se, de acordo com o julgamento, aplicar o CDC na busca do equilíbrio entre as partes. A caracterização da vulnerabilidade no caso dos fundos de investimento deve levar em conta os aspectos fáticos, técnicos e econômicos. No caso concreto, a verificação de vulnerabilidade não deve se restringir ao aspecto puramente econômico. Devem ser avaliados simultaneamente o grau de conhecimento do quotista-consumidor em relação ao mercado no qual pretende investir e a prestação de informações suficientes para que este possa tomar sua decisão de investimento, assumindo sua parcela nos riscos do empreendimento. Uma vez verificada a relação de consumo entre ambos, aplicam-se a esse liame todos os princípios de proteção ao consumidor (BRASIL, 1990, art. 4o). Dentre aqueles que apresentam mais evidente possibilidade de concretização, sem excluir os demais, listam-se: a) princípio da informação, que garante ao quotista-consumidor o direito de obter informações sobre o fundo; b) princípio da isonomia, que resguarda o tratamento igual ao investidor, ainda que de pequeno porte; c) princípio da eficiência,

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que proporciona ao consumidor a manutenção de serviço adequado; e d) princípio da publicidade, que condiciona a exposição do investidor a comunicações e propostas verdadeiras. Outro aspecto relevante da incidência do regime do CDC aos fundos de investimento consiste na atribuição ao quotista-consumidor do direito básico de facilitação da defesa de seus direitos. A incidência do art. 6o, inciso VIII, do CDC permite a inversão do ônus da prova, a favor do quotista, no processo civil, quando, a critério do juiz, for verossímil a alegação ou quando for ele hipossuficiente.

5 Contorno dos deveres e da responsabilidade do administrador-fornecedor no CDC Após a exposição pela aplicabilidade do CDC à relação entre quotista e administrador do fundo de investimento e com fundamento nos princípios e regras do CDC, busca-se delinear o contorno das responsabilidades a que este se sujeita, além daquelas anteriormente apresentadas quando foram discutidos os requisitos jurídicos no campo da regulação administrativa.

5.1 Dever de probidade e seus reflexos O dever de probidade, resultante do princípio da boa-fé objetiva, apresenta-se como dever fundamental das partes do negócio jurídico. O respeito e a necessidade de conduta escorreita se espraiam em todos os aspectos da relação jurídica, condicionando todas as condutas do administrador. Do cotejo dos deveres contidos na regulação da CVM com o regime do CDC, observamos que, em nome da harmonia entre ambos, tais deveres passam a integrar o conteúdo material do dever de probidade do administrador no CDC. Impendem ao administrador, entre outros, os deveres de: a) diligenciar para que sejam mantidos os registros obrigatórios do fundo; b) elaborar e divulgar as informações aos quotistas e à CVM; c) manter serviço de atendimento ao quotista, responsável pelo esclarecimento de dúvidas e pelo recebimento de reclamações; d) observar as disposições constantes do regulamento e do prospecto; e) cumprir as deliberações da assembleia geral; e f) fiscalizar os serviços prestados por terceiros contratados pelo fundo (CVM, 2014, art. 90; CVM, 2004, art. 65). Além destes, a conduta proba do administrador especificada no texto do art. 92 da Instrução CVM no 55528 é também aplicável ao regime do CDC. Assim, o administrador e o gestor estão obrigados a: a) exercer suas atividades buscando sempre as melhores condições para o fundo, empregando o cuidado e a diligência 28 Equivalente ao Art. 65-A da Instrução Normativa CVM no 409. Revista Jurídica da Presidência

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que todo homem ativo e probo costuma dispensar a seus próprios negócios; b) exercer, ou diligenciar para que sejam exercidos, todos os direitos decorrentes do patrimônio e das atividades do fundo; e c) empregar, na defesa dos direitos do cotista, a diligência exigida, praticando todos os atos necessários para assegurálos. Ademais, administrador e gestor, com exceção da remuneração recebida, devem transferir ao fundo qualquer benefício ou vantagem que possam alcançar em decorrência de sua condição. Uma das implicações mais relevantes do dever de probidade ocorre na vedação à gestão temerária dos recursos do fundo. O administrador se obriga de acordo com o conteúdo material do dever a atuar nos limites do regulamento, não devendo expor os investidores a riscos mais elevados do que aquele que estes contrataram (BRASIL, 2011)29. Outro aspecto decorrente do dever de probidade é a vedação às práticas abusivas contra o consumidor, tais como as previstas nos incisos IV, V, VIII, X e XIII do art.39 do CDC30. Além disso, é vedado ao administrador a utilização de cláusulas abusivas nos contratos, conforme os arts. 51 e 54 do CDC.

5.2 Dever de informação Administrador e investidores encontram-se em situação de desequilíbrio porquanto estes, normalmente não têm controle direto sobre os ativos da carteira, delegando àqueles sua gestão. Além disso, há investidores leigos no funcionamento especializado do mercado financeiro. Ao não dominar os conhecimentos atinentes ao mercado e aos ativos negociados, ficam estes à mercê das decisões dos 29 O julgamento corrobora o entendimento exposto ao considerar que o princípio da boa-fé e seus deveres anexos devem ser aplicados na proteção do investidor-consumidor que utiliza os serviços de fornecedores de serviços bancários. Existe a exigência de prestação ao consumidor de informações adequadas, suficientes e específicas sobre o serviço que está sendo prestado. Reconhece o julgado que a mera presunção de conhecimento ou anuência do consumidor não está inserida na álea natural do contrato e não é fundamento para desonerar o administrador da obrigação de ressarcir ao quotista-investidor os valores aplicados. Deve restar demonstrada a autorização expressa deste quanto à finalidade pretendida, ônus que cabe ao administrador. 30 De acordo com o disposto na Lei Federal no 8.078/90, art. 39 – “É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas abusivas [...] IV – prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista sua idade, saúde, conhecimento ou condição social, para impingir-lhe seus produtos ou serviços; V – exigir do consumidor vantagem manifestamente excessiva; [...] VIII – colocar, no mercado de consumo, qualquer produto ou serviço em desacordo com as normas expedidas pelos órgãos oficiais competentes; [...] X – elevar sem justa causa o preço de produtos ou serviços; [...] XIII – aplicar fórmula ou índice de reajuste diverso do legal ou contratualmente estabelecido” (BRASIL, 1990). Revista Jurídica da Presidência

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profissionais. Essa hipossuficiência técnica coloca o quotista-consumidor do fundo de investimento em uma situação de vulnerabilidade que frequentemente o leva a adotar uma postura de confiança e concordância com as ações praticadas pelo administrador. O dever de informar do administrador ganha relevância diante deste contexto de: a) desequilíbrio na relação quotista-administrador; b) riscos inerentes ao investimento; e c) impossibilidade de responsabilização dos administradores pela totalidade dos riscos associados à atividade. Confere maior grau de equilíbrio entre o profissional e o quotista, o acesso deste às informações acerca, entre outras coisas: a) das características do fundo e dos ativos utilizados para o investimento; b) dos riscos de mercado, crédito e liquidez associados aos valores mobiliários; c) das possíveis consequências desses investimentos; d) dos custos decorrentes das operações; e e) das formas e prazos de resgate do capital investido. De posse de informações claras, precisas e completas acerca dos eventuais riscos decorrentes do investimento proposto pelo fundo, o quotista pode, com maior propriedade, consentir ou não sua adesão a este. Há, contudo, de se questionar qual o conteúdo do dever de informar do administrador. A primeira observação a ser feita reside no fato de que o dever de informar corresponde, no polo oposto da relação jurídica, ao direito do quotistaconsumidor de acessar a informação. Esse direito se respalda no princípio da transparência, segundo o qual “não basta ao empresário abster-se de falsear a verdade, deve ele transmitir ao consumidor em potencial todas as informações indispensáveis à decisão de consumir ou não o fornecimento” (COELHO, 1996). Ele dá um passo para além do dever de probidade que é ínsito à relação jurídica, e cria, à parte, um dever de prestação de informação. O fulcro desse princípio é possibilitar uma aproximação e uma relação contratual mais sincera e menos danosa entre consumidor e fornecedor (MARQUES, 2002, p. 594-595)31. De fato, o texto legal do inciso III do art. 6o do CDC garante ao consumidor, como direito básico, o acesso à “informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e preço, bem como sobre os riscos que apresentem”(BRASIL, 1990). Marques (loc. cit.) e Nunes (loc. cit.) preceituam que o dever de informar abrange todos os aspectos relevantes na formação do consentimento, destacando os riscos,

31 Transparência para a autora significa informação clara e correta sobre o produto a ser vendido, sobre o contrato a ser firmado, significa lealdade e respeito nas relações entre fornecedor e consumidor, mesmo na fase pré-contratual. Revista Jurídica da Presidência

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as chances de êxito e os potenciais efeitos colaterais. O administrador do fundo de investimento se compromete a prestar todas as informações necessárias ao quotista-consumidor desde antes da aquisição das quotas. Sujeita-se ao regime da oferta, vinculando-se a ela e obrigando-se a fornecer informações corretas, claras, precisas e ostensivas, conforme dispositivo trazido pelos art. 30 e 31 do CDC. Além disso, vincula-se o administrador ao conteúdo do regulamento e do prospecto do fundo, que deve ser claro e inequívoco. Esse deve ser plenamente compreendido pelo investidor-consumidor antes da vinculação ao fundo, sendo aplicáveis ao contrato as disposições gerais trazidas nos arts. 46 a 50 (conhecimento prévio das condições do negócio, interpretação das cláusulas de modo mais favorável ao consumidor, vinculação do fornecedor aos ajustes pré-contratuais, garantia contratual complementar à legal) e 52 (custos associados ao serviço) do CDC. Importa também ressaltar que o fornecimento de todas as informações necessárias ao investidor elide a responsabilidade do administrador, que somente responderá por danos eventualmente causados com dolo ou culpa. Todavia, a não prestação adequada das informações devidas ensejará a responsabilização civil do administrador, independentemente de culpa, uma vez que ele  não é responsável somente pela gestão da carteira, mas também pela prestação de informações e de todos os elementos relativos ao fundo32.

5.3 Responsabilidade do administrador O desenvolvimento histórico e a evolução jurídica dos fundos de investimento conduziram ao posicionamento de que o administrador exerce atividade como fornecedor de serviços aos quotistas (BRASIL, 2006). Assim, como corolário deste reconhecimento, exige-se que o administrador seja diligente ao exercer seu ofício, sob pena de responsabilização tanto no campo administrativo, conforme as normas produzidas pela CVM, quanto no campo do Direito Civil. Na qualidade de prestador de serviços, o vinculo estabelecido com os investidores é de natureza contratual. Assim, a responsabilidade civil do administrador, em linhas gerais, decorre do inadimplemento de cláusulas livremente pactuadas, ou seja, do descumprimento de

32 A Terceira Turma acompanhou por unanimidade o voto da Rel. Min. Nancy Andrighi. Ela observou que, não obstante fosse imprevisível evento que resultasse em prejuízo do investidor, “se observada pelas instituições financeiras, na gestão dos fundos, a conduta proba imposta pela legislação consumerista, em especial a atenção ao dever de informação e transparência, os prejuízos suportados pelo recorrido poderiam ser amenizados” (BRASIL, 2011a). Revista Jurídica da Presidência

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uma obrigação contratual. Observa-se, contudo, a possibilidade de responsabilidade extracontratual quando a atuação do administrador ocorre com defeito na formação do acordo de vontades, pelo fato de o quotista estar inconsciente ou desinformado das condições ou riscos do negócio. A gestão de ativos mobiliários envolve, por sua natureza, riscos, ainda que não haja má prestação do serviço pelo profissional. Os riscos de mercado, liquidez e de crédito são parte integrante da ontologia dos fundos de investimento. De fato, a álea associada à variação das cotações dos ativos desta natureza foge, muitas vezes, do controle do administrador, podendo resultar em prejuízos aos investidores, mesmo com todo o zelo e diligência deste na condução dos negócios. Esses elementos, no caso dos fundos de investimento, condicionam a interpretação da norma contida no art. 14 do CDC, que trata da delimitação do defeito e do fato do serviço. O administrador deve sempre agir com diligência e prudência. Deve-se observar também, por força do princípio da boa-fé objetiva e contratual, que são obrigações implícitas do administrador, conforme discutido anteriormente, os deveres de: a) instruir o quotista sobre os riscos do negócio e as precauções a serem tomadas; b) cuidar para que haja um consentimento livre e consciente mediante as informações prestadas de maneira clara; e c) abster-se de abusar ou desviar os poderes que lhes foram conferidos pelo contrato, não devendo nem podendo praticar quaisquer atos que exorbitem os limites e as características dos valores mobiliários previstos no prospecto. De modo similar ao dos demais profissionais liberais, tais como advogados e médicos, os administradores possuem uma responsabilidade contratual de meio, pois a prestação principal do administrador é a gestão dos ativos do fundo, obrigando-se a tratá-los corretamente com o objetivo de aumentar o seu valor monetário, e não o resultado incerto pela própria natureza dos riscos envolvidos no investimento. Diz-se que a obrigação é de meio quando o devedor não se obriga a conseguir um resultado, mas a empregar todos os meios adequados (esforço constante, técnica, diligência, profissionalismo, destreza e cuidado) e necessários que estejam sob o seu alcance e domínio para consegui-lo. Assim, caso o sujeito passivo de uma obrigação de meio aja com a diligência necessária nos meios, mas não alcance os resultados, não será considerado inadimplente. A contratação, nestes casos, se dá em virtude da própria atividade exercida (STOCCO, 1999, p. 287). Na questão da responsabilidade do administrador por fatos do serviço, o CDC,

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em seu art. 1433, estabelece como regra geral a responsabilidade objetiva do fornecedor. No caso dos fundos de investimento, é inaplicável essa modalidade de responsabilidade. Isso porque o contrato de administração implica na divisão dos riscos da atividade, conforme discutido anteriormente. A eventual ocorrência de prejuízo ao investidor não pode ser creditada ao administrador em todas as situações, como preconizado na responsabilidade objetiva. Como visto, o investidor assume a parcela correspondente aos riscos de mercado, de liquidez e de crédito. A apuração de resultados negativos devido a algum destes fatores não é idônea a caracterizar o vício na prestação do serviço. Nesse caso, há de se argumentar tão somente a concretização desfavorável ao consumidor de situação cuja possibilidade ele tinha conhecimento e tinha se comprometido a suportar. É imprescindível a constatação de culpa ou dolo do administrador em virtude da natureza contratual da responsabilidade. Assim, não se aplicam, senão subsidiariamente e, em caráter complementar, os dispositivos dos arts. 186 e 927, parágrafo único, do Código Civil Brasileiro, em virtude de sua responsabilização ser incompatível com a teoria do risco adotada nesse último dispositivo. Em consonância com o entendimento acima apresentado, a quarta turma do STJ decidiu, por unanimidade, que não é possível falar em fato do serviço em caso de resultado negativo do fundo de investimento e que o gestor de negócios não assume “obrigação de resultado, vinculando-se a lucro certo, mas obrigação de meio, de bem gerir o investimento, visando à tentativa de máxima obtenção de lucro” (BRASIL, 2012). No mesmo sentido, Perricone (op. cit., p. 91-96) aduz que das regulamentações baixadas pela CVM e pelo BACEN não há qualquer menção à responsabilidade objetiva dos administradores de fundos de investimento. Pelo contrário, verifica-se que tais normas tendem a indicar como parâmetro de responsabilidade, o elemento culpa (negligência, imprudência ou imperícia) ou dolo. Dessa forma, conclui que esta é subjetiva. A autora se refere à esfera administrativa e existe, neste caso, a possibilidade de influências recíprocas no diálogo entre as fontes (MARQUES, 2004, p. 46). Em linha com o entendimento aqui discutido, Schonblum (2009, p. 352) comenta que as instituições financeiras têm uma obrigação de meio, no que se refere ao investimento, e de resultado, no que concerne às 33 Lei Federal no 8.078/90, art. 14 – “O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos relativos à prestação dos serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos. [...] § 4o A responsabilidade pessoal dos profissionais liberais será apurada mediante a verificação de culpa” (BRASIL, 1990). Revista Jurídica da Presidência

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informações prestadas ao investidor. No mesmo sentido, opina Dotta (2005). Com relação aos administradores de fundos de investimento, os normativos expedidos tanto pelo BACEN como pela CVM, ao definirem os deveres e responsabilidades, estabelecem apenas a responsabilidade subjetiva, fundada em dolo ou culpa. A limitação desta também pode ser encontrada na combinação do art. 13 da Instrução CVM no 409 em combinação com os Incisos X e XI do art. 40 do mesmo texto. O próprio texto normativo das Instruções CVM no 409 e no 555 impede que o administrador assuma compromisso de resultado (CVM, 2014, art. 89, V; CVM, 2004, art. 64, V). Assim, diante do exposto e por se tratar de questão de coerência normativa do ordenamento, entende-se que ao administrador de fundo de investimento deve ser aplicado o disposto no §4o do art. 14 do CDC, reconhecendo a responsabilidade subjetiva, por se tratar da atuação de profissional liberal.

6 Conclusão Os fundos de investimento se apresentam sob a forma condominial no ordenamento pátrio e não existe no Brasil autêntica sociedade de investimento nos moldes do Direito norte-americano. Entretanto, as normas relativas ao condomínio, contidas no Código Civil de 2002, não são suficientes para explicar e regular adequadamente a relação entre quotistas e administrador. Foi reconhecida, então, a ocorrência de um regime especial de condomínio, com regras próprias e distintas do modelo da Codificação Civil. A relação entre o quotista e o administrador do fundo de investimento consiste num feixe complexo de direitos e deveres. Dentro dessa complexidade, coexistem deveres e responsabilidades do administrador do fundo de investimento que se referem à garantia de proteção ao investidor-consumidor e à garantia de higidez do próprio sistema financeiro. A distinção entre a teleologia de tais deveres e responsabilidades não os torna excludentes. Ao contrário, reconhece a possibilidade de coexistência e harmonia sistemática entre as normas de regulação administrativa do SFN e do microssistema de Defesa do Consumidor. Reconhece também a existência do diálogo entre ambas as fontes normativas e que essa é a interpretação tendente a maximizar a efetividade dos preceitos constitucionais em jogo. Da possibilidade de aplicação do regime consumerista, é possível a discussão a respeito dos contornos dos deveres do administrador do fundo de investimento. O dever de probidade do administrador, fundado na boa-fé objetiva, foi delineado, em larga medida, com a integração das prescrições administrativas de Revista Jurídica da Presidência

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conduta proba. Além disso, foi observado que esse dever condiciona o administrador aos limites do regulamento do fundo, vedando a assunção de riscos adicionais à carteira. O dever de informação foi caracterizado como corolário do princípio da transparência. Num cenário de riscos elevados pela própria natureza do empreendimento, verificou-se a importância do dever de informação como meio para possibilitar escolhas conscientes dos quotistas e para a manutenção dos riscos em níveis aceitáveis. Os fundos de investimentos possuem características especiais com relação à repartição dos riscos do negócio. Tal partilha faz que o quotista aceite a transferência dos riscos de mercado, liquidez e crédito em troca da possibilidade de obtenção de maiores ganhos. A natureza dessa divisão afeta a interpretação das normas relativas aos defeitos e aos fatos do serviço. Observou-se a impossibilidade de atribuição ao administrador de toda a álea associada à operação do fundo. Assim, surgiu a conclusão de que a responsabilidade deste se dá, no campo contratual, de modo subjetivo, ao passo que, em caso de descumprimento dos deveres de probidade e de informação, sujeita-se o administrador à responsabilidade extracontratual e objetiva.

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Análise econômica do direito, políticas públicas e consequências GERMANO BEZERRA CARDOSO Mestrando em Direito e Políticas Públicas pelo Programa de Pós-Graduação do Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Graduado em Direito pela Universidade de Fortaleza (UNIFOR). Artigo recebido em 29/04/2015 e aprovado em 28/08/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A análise consequencialista do direito: a busca pela eficiência 3 A utilização da teoria econômica do bem-estar para a análise positiva e normativa das políticas públicas: o problema na mensuração do grau de eficiência 4 A influência do raciocínio econômico 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: A despeito de sua ampla disseminação nos Estados Unidos, no Brasil o estudo interdisciplinar do direito sob o enfoque das teorias econômicas é considerada recente. O objetivo deste artigo é apontar alguns aspectos importantes com que o direito pode e beneficiar da proposta metodológica da Análise Econômica do Direito – AED ao se descrever e compreender as normas jurídicas e as políticas públicas a partir dos instrumentos teóricos e empíricos fornecidos pela teoria econômica, em especial a microeconomia e a teoria da economia do bem-estar, com o objetivo de conferir mais racionalidade ao discurso jurídico. A partir da análise de dois precedentes do Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato e da regulamentação do serviço público de telefonia móvel pré-pago realizada pela Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel, destacar-se-á a necessidade de se avaliar as consequências na interpretação e aplicação do direito. Procura-se apontar, também, as possíveis limitações de se restringir a análise jurídica a um viés estritamente econômico, sobretudo em matéria de políticas públicas, que envolve discussões morais a respeito da redistribuição de recursos escassos. A ideia de conferir um maior diálogo entre o direito e a economia, tendo como suporte a proposta metodológica da AED, poderá contribuir sobremaneira para uma melhor compreensão, interpretação e aplicação das regras jurídicas. PALAVRAS-CHAVES: Análise Econômica do Direito Políticas Públicas Consequências. Revista Jurídica da Presidência

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Law and economics, public policy and consequences CONTENTS: 1 Introduction 2 The consequentialist analysis of law: the pursuit of efficiency 3 The use of economics of welfare for positive and normative analysis of public policies: the problem in measuring the degree of efficiency 4 The influence of economic reasoning 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: Despite its wide dissemination in the United States, the interdisciplinary study of law from the standpoint of economic theories is considered recent in Brazil. The purpose of this article is to point out some important aspects on which the law can benefit from the methodological proposal of Economic Analysis of Law to describe and understand the laws and public policies based on the theoretical and empirical tools provided by economic theory, especially the theory of microeconomics and economics of welfare, in order to bring more rationality to the legal discourse. From the analysis of two precedents set by the Brazilian Superior Court of Justice on the application of the theory of substantial performance of the contract and regulation of the public service of prepaid mobile phone held by the Brazilian Agency of Telecommunications – Anatel, the text highlights the needs to assess the consequences in the interpretation and application of the law. It intends also to point out the possible limitations to restrict the legal analysis to a strictly economic bias, especially on the public policy matter, which involves moral discussions concerning the redistribution of scarce resources. The idea of ​​granting a wider dialogue between the right and the economy, supported by the methodological proposal of Economic Analysis of Law, may contribute for a better understanding, interpretation and application of legal rules. KEYWORDS: Law and economics Public policy Consequences.

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El análisis económica del derecho, la política pública y las consecuencias CONTENIDO: 1 Introducción 2 El análisis consecuencialista de la ley: la búsqueda de la eficiencia 3 El uso de la teoría económica del bienestar para el análisis positivo y normativo de las políticas públicas: el problema en la medición del grado de eficiencia 4 La influencia del razonamiento económico 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: A pesar de la amplia difusión en los Estados Unidos, el estudio interdisciplinario Brasil de la ley desde la perspectiva de las teorías económicas se considera reciente. El propósito de este artículo es señalar algunos aspectos importantes que el derecho puede beneficiarse de la propuesta metodológica del Análisis Económico del Derecho (AED), para describir y comprender las leyes y políticas públicas basadas en las herramientas teóricas y empíricas proporcionadas por teoría económica, especialmente la teoría de la microeconomía y la economía del bienestar, con el fin de traer más racionalidad al discurso jurídico. Del análisis de los dos anteriores Alto Tribunal de Justicia sobre la aplicación de la teoría del “debido cumplimiento sustancial del contrato” y la regulación de los servicios públicos de telefonía móvil de prepago en poder de Anatel, pondrá de relieve la necesidad de evaluar las consecuencias en la interpretación y aplicación de la ley. Se busca señalar también las posibles limitaciones para restringir el análisis jurídico a un sesgo estrictamente económico, especialmente en las políticas públicas, lo que implica discusiones morales sobre la redistribución de los recursos escasos. La idea de dar un mayor diálogo entre el derecho y la economía, con el apoyo de la propuesta metodológica de AED, puede contribuir en gran medida a una mejor comprensión, interpretación y aplicación de las normas jurídicas. PALABRAS CLAVE: Análisis económico del derecho Política pública Consecuencias.

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1 Introdução

O

objetivo do presente artigo é apontar alguns aspectos importantes que o direito pode utilizar da proposta metodológica da Análise Econômica do Direito – AED. Isso é, tentar descrever e compreender as normas jurídicas e as políticas públicas a partir dos instrumentos teóricos e empíricos fornecidos pela teoria econômica, em especial a microeconomia e a teoria da economia do bem-estar, com o objetivo de conferir mais racionalidade ao discurso jurídico. Diante de um cenário em que há significativa influência no pensamento jurídico nacional da primazia da aplicação dos princípios jurídicos em detrimento das regras, que pode gerar mais incerteza do que previsibilidade na aplicação das normas jurídicas e na resolução de problemas práticos1, a análise interdisciplinar pode se mostrar bastante útil para auxiliar o direito no seu papel profícuo de interpretar e aplicar as normas jurídicas de forma mais racional, avaliando as consequências de suas decisões no mundo real2. Sob outra perspectiva, questiona-se o fato de se restringir a análise de problemas jurídicos complexos sob a perspectiva econômica, cujas consequências estejam voltadas para a eficiência e uma maior satisfação do bem-estar dos agentes por meio 1  Conforme crítica levantada por SUNDFELD (2012, p. 80): “mas o que interessa destacar aqui não é tanto esse problema, que é bem conhecido, e sim que o uso retórico de princípios muitos vagos vem sendo um elemento facilitador e legitimador da superficialidade e do voluntarismo. E porque facilitador e legitimador? Porque belos princípios ninguém tem coragem de refutar, e muita gente se sente autorizada a tirar conclusões bem concretas apenas recitando fórmulas meio poéticas (aliás, de preferências muitas delas – como se enfileirar princípios, todos muitos vagos, aumentasse a força da conclusão). A verdade é que motivações e discussões que ficam nesse plano de generalidades são insuficientes para conclusões concretas. A razão é óbvia: nesse plano, quase todo mundo tem alguma razão no que diz”. 2  “A primeira e maior dessas dificuldades é o limite que se impõe – do ponto de vista prático – à investigação empírica do agente que aplica e interpreta o direito em cada caso concreto. Com efeito, o que boa parte da literatura que trata o direito como forma de implementação de políticas públicas ignora é que a composição de qualquer lide no bojo de um processo, administrativo ou judicial, impõe limites à extensão da inquirição no campo dos fatos. E são inúmeros os exemplos. O juiz que decide determinar ao Estado que custeie o tratamento de um paciente nem sempre (para desespero dos economistas) leva em consideração de onde vêm os recursos para fazer frente ao tratamento. O juiz que concede uma concordata suspensiva não sabe o impacto na situação financeira dos credores da moratória concedida como favor legal ao devedor. O tribunal que limita o reajuste de preços em determinada carteira de seguros-saúde nem sempre sabe o que ocorrerá com os segurados de outras carteiras, como resultado de sua decisão. E mesmo que o juiz ou o operador do direito tenham acesso a todas essas informações, nem sempre eles podem considerar fatores relacionados a terceiros na decisão que tomam no âmbito da lide composta por autor e réu” (GOLDBERG, 2007, p. 71). Revista Jurídica da Presidência

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das utilidades geradas. Ademais, a proposta de neutralidade para avaliação do grau de eficiência, focando apenas na análise das decisões que produzam o menor custobenefício em função da utilidade gerada para cada agente econômico, pode resultar em problemas na análise e realização de políticas públicas que inevitavelmente envolvem questões morais relacionadas à redistribuição de bens escassos perante a sociedade. Dessa forma, para os limites do presente trabalho, procuraremos apontar alguns aspectos importantes sobre a interação do direito com a economia a partir da análise de dois precedentes firmados pelo Superior Tribunal de Justiça sobre a aplicabilidade da denominada teoria do adimplemento substancial do contrato e sobre a regulamentação do serviço público de telefonia móvel pré-pago, ressaltando as consequências destas decisões na estrutura de incentivos dos agentes econômicos. Um maior diálogo entre o direito e economia, tendo como suporte a proposta metodológica da AED, poderá, portanto, contribuir para uma melhor compreensão, interpretação e aplicação das regras jurídicas.

2 A análise consequencialista do direito: a busca pela eficiência Segundo Faralli (2006, p. 36-37), a AED possui raízes no realismo jurídico3 que, com inspiração nas teorias utilitaristas de Bentham e Mill4, “propõe uma teoria jurídica que combina uma ética normativa liberal, uma filosofia pragmática e um método de análise econômica”. Nesse sentido, a abordagem econômica do direito compartilha o “princípio da máxima liberdade”, segundo o qual não cabe ao “Estado punir ou reprimir os comportamentos que não causem danos a terceiros”, assumindo uma “postura intrumentalista” de priorizar “a análise das possíveis soluções com base nas consequências previsíveis”, sem a necessidade de utilizar “noções 3  A teoria do realismo jurídico, desenvolvida nos Estados Unidos e nos países escandinavos, expressava uma “reação cética perante as normas jurídicas”. Esta escola jurídica representou “uma reação ao formalismo perante as normas e os conceitos jurídicos”, que influenciou o direito continental europeu, em que se atribuía aos sistemas codificados e às normas que os constituem, “uma série de propriedades formais que nem sempre eles têm: precisão, univocidade, coerência, completude etc.”. O ideal de certeza na interpretação jurídica e do legislador racional é posta em cheque pelos realistas, em razão do caráter subjetivo na interpretação da linguagem, que é imprecisa. Assim, para os realistas, “é preciso trazer o direito para a realidade concreta e construir uma ciência do direito que descreva a realidade com proposições verificáveis em termos empíricos”; ou seja, enxergar o direito a partir do que é decidido pelos tribunais (NINO, 2010, p. 51-53). 4 Goldberg (2007, p. 50) ressalta, todavia, que parte dos autores adeptos da AED tem rejeitado a influência do movimento aos postulados da filosofia e economia utilitaristas. Revista Jurídica da Presidência

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metafísicas e abstratas” para resolver problemas jurídicos. A partir da utilização de importantes instrumentos jurídicos extraídos da microeconomia é possível propor soluções seguras que possam promover a eficiente alocação de riquezas ao menor custo possível5. Por entender a insuficiência dos modelos positivistas, jusnaturalistas e dos denominados pós-positivistas ou neoconstitucionalistas, em propor decisões jurídicas racionais para descrever a realidade e resolver problemas práticos, e em razão de o direito não possuir uma teoria sobre o comportamento, a AED se mostra bastante útil à realidade jurídica, segundo Gico Jr. (2010, p. 8), ao propor “um instrumental teórico maduro que auxilia a compreensão dos fatos sociais e, principalmente, como os agentes sociais responderão a potenciais alterações em suas estruturas de incentivos”. A análise consequencialista do direito para a AED tem por objetivo alcançar soluções eficientes na interpretação do direito, de modo que a aplicação das regras jurídicas esteja voltada para a máxima satisfação ou bem-estar (utilidade) dos agentes ou indivíduos, gerando o menor custo na alocação de riquezas. Assinala Goldberg (2007, p. 51) que a abordagem do direito sob a perspectiva econômica, “a forma de captar o incremento de satisfação ou bem-estar dos indivíduos, se dá a partir do

5 De um modo geral, podemos afirmar que a proposta metodológica da Análise Econômica do Direito consiste na utilização dos instrumentos analíticos e empíricos da economia, sobretudo os postulados da microeconomia e da economia do bem-estar social, para compreender e descrever o fenômeno jurídico (descritivo ou positivo) sobre o comportamento humano e o reflexo da norma sobre a estrutura de incentivos de pessoas e grupos. No sentido prescritivo (normativo), a AED fornece também elementos para o aperfeiçoamento do direito e das políticas públicas, “ao assinalar as consequências involuntárias ou indesejáveis das leis vigentes ou dos projetos de lei e propor reformas práticas” (POSNER, 2010, p. 8); ou seja, a “AED normativa nos auxiliará escolher entre as alternativas possíveis a mais eficiente” (GICO JR., 2010, p. 21) para o aprimoramento das normas jurídicas. Os aspectos metodológicos da AED se baseiam em alguns pressupostos extraídos da economia: 1) os recursos da sociedade são escassos; 2) toda escolha pressupõe um custo (trade off) ou custo de oportunidade; 3) A conduta dos agentes econômicos é racional maximizadora, envolvendo ponderação de custos e benefícios na hora de tomar decisões que propicie mais bem-estar; 4) por conseguinte, pessoas respondem a incentivos (todo o direito é construído sobre a premissa implícita de que as pessoas responderão a incentivos); 5) mercado: contextos sociais onde a interação entre agentes é livre para realizar trocas por meio de barganhas; 6) equilíbrio; 7) Eficiência a partir da teoria do ótimo de Pareto: significa que “não existe nenhuma outra alocação de recursos tal que eu consiga melhorar a situação de alguém sem piorar a situação de outrem” (GICO JR., 2010, p. 22/23). Revista Jurídica da Presidência

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sistema de preços”6. Nessa perspectiva, a teoria dos custos da transação, desenvolvida por Ronald Coase, constitui, por um exemplo, um dos grandes legados da AED, cujo Teorema representa uma importante ferramenta analítica para análise da eficiência na alocação de recursos escassos por meio de transações entre os indivíduos7. Os direitos são vistos, portanto, na sua feição instrumental, voltados para a obtenção de uma solução eficiente a partir de uma visão neutra no que tange aos valores morais e aos critérios de justiça. A abordagem da análise econômica propõe oferecer “um ponto de vista imparcial sobre temas jurídicos politicamente controversos”, propondo uma solução que favoreça apenas a eficiência (POSNER, 2010, p. 11). Em outras palavras, o direito é “visto como instrumento que auxiliará os mercados, facilitando suas operações, no sentido de produzir resultados mais eficientes nas transações”, cabendo ao jurista sempre se questionar, na resolução dos casos concretos, “qual o resultado que o livre mercado produziria” (RIEFFEL, 2006, p. 12), gerando o menor custo de transação. Como assinalam Cooter e Ulen (2010, p. 33), ao invés de ver tradicionalmente “o direito apenas em seu papel de provedor de justiça”, a abordagem econômica do direito permitirá ao jurista “ver as leis como incentivos para mudar o comportamento – isto é, como preços implícitos – e como instrumentos para atingir objetivos de políticas públicas (eficiência e distribuição)”. Vale destacar que os referidos autores rejeitam a ideia na análise das políticas públicas e do direito privado sob o aspecto de sua função redistributiva, entendendo ser mais adequado avaliá-las apenas sob a perspectiva da eficiência, na medida que a adoção de soluções eficientes propiciam,

6  “Isto é, são computados todos os bens intangíveis e intangíveis aos quais os indivíduos dão valor, qualquer valor, traduzido em unidades monetárias. Imaginemos que os indivíduo A possui uma coleção de canetas que acredita valer R$ 1.000,00. De outra parte, o indivíduo B crê que a coleção vale R$ 1.100,00. Quando A decide vender sua coleção de canetas para B por R$ 1.000,00, a sociedade experimenta um incremento de bem-estar. Esse incremento de bem-estar é não-pecuniário, e representa o ganho interior de B ao adquirir o conjunto de bens por preço inferior ao que estava disposto a pagar. Economistas denominam o ‘preço que B estava disposto a pagar’ preço de reserva, e o ganho realizado excedente” GOLDBERG (2007, p. 51). 7 Segundo Posner (2010, p. 18), o Teorema de Coase “propõe ao direito (concebido como um método de distribuição eficiente de recursos) duas tarefas intimamente relacionadas. A primeira delas consiste em minimizar os custos de transação – por exemplo, através da definição clara dos direitos da propriedade e de sua concessão às pessoas que provavelmente os valorizarão ao máximo (a fim de minimizar a ocorrência de situações em que a confecção de contratos em torno da atribuição inicial de direitos implique custos elevados). A segunda tarefa insere-se num contexto em que os custos de transação são proibitivos e consiste na tentativa de produzir o esquema de alocação de recursos que teria existido se os custos de transação fossem nulos, pois este é o esquema de alocação suficiente”. Revista Jurídica da Presidência

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por via de consequência, arranjos redistributivos8. Assim, a abordagem consequencialista para a AED consiste em descrever e explicar o fenômeno jurídico sob a perspectiva instrumental para que as soluções apresentadas estejam voltadas para a busca da eficiência econômica por meio de uma análise de custo e benefício, não sendo importante avaliar questões éticas e morais que possivelmente estejam relacionados aos problemas jurídicos. A obtenção da eficiência econômica propiciará soluções mais úteis socialmente, na medida que “é melhor atingir qualquer política dado a um custo menor do que a um custo mais alto” (COOTER; ULEN, 2010, p. 26).

3 A utilização da teoria econômica do bem-estar para a análise positiva e normativa das políticas públicas: o problema na mensuração do grau de eficiência

O segmento da teoria microeconômica que “explora a forma como as decisões de muitos indivíduos e empresas interagem e afetam o bem-estar dos indivíduos como grupo” é denominada de economia do bem-estar, cuja discussão a respeito tem se apresentado mais de cunho filosófico do que outros temas da teoria econômica, em que “se levantam as grandes questões sobre as políticas públicas”, destacam Cooter e Ulen (2010, p. 60). Nesse sentido, as discussões a respeito da realização de políticas públicas acabam envolvendo questões morais relativas às diversas teorias de justiça (especialmente no que diz respeito aos conceitos de justiça distributiva e redistributiva), e o modelo de alocação de riquezas em um mundo imperfeito, cujos recursos são escassos (GOLDBERG, 2007). A noção de política pública está ligada ao modelo de intervenção do Estado. As diversas técnicas de intervenção podem ser utilizadas ao mesmo tempo, convivendo simultaneamente os modos de ação do Estado liberal e do Estado-Providência, 8  C omo assinalam os autores na sua obra Direito & Economia: “este livro rejeita a abordagem redistributiva do direito privado. Perseguir objetivos redistributivos constitui um uso excepcional do direito privado que circunstâncias especiais poderão justificar, mas esse não deveria ser o uso comum do direito privado. A razão é a seguinte: como o restante da população, os economistas geralmente concordam a respeito dos meios redistributivos. Evitando o desperdício, a redistribuição eficiente beneficia todo mundo em comparação com a redistribuição ineficiente. Dessa forma, a redistribuição eficiente também aumenta o apoio à redistribuição [...] Muitos economistas creem que a tributação progressiva e programas de assistência social – o ‘sistema de tributação’ e ‘transferência’, como geralmente é chamado – pode atingir objetivos de redistribuição em estados modernos de maneira mais eficiente do que aquilo que pode ser feito modificando ou rearranjando direitos jurídicos de privados. Há diversas razões pelas quais rearranjar direitos jurídicos privados se assemelha a dar o sorvete a um corredor lento” (COOTER; ULEN, 2010, p. 31). Revista Jurídica da Presidência

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variando apenas o grau de incidência em razão das finalidades do programa de ação governamental (BUCCI, 2006)9. Como revela Castro (2012, p. 207-208), o surgimento da AED no âmbito da Escola de Chicago foi, de certa forma, uma reação ao aumento das políticas redistributivas ocorridas nos Estados Unidos a partir da década 1960, bem como uma crítica à expansão, sobretudo nas faculdades de direito, “de ideias favoráveis a uma articulação mais efetiva das ‘formas’ jurídicas com os interesses de grupos sociais percebidos como discriminados economicamente desfavorecidos”. O autor destaca, ainda, que Coase, um dos grandes influenciadores do law and economics, desenvolveu e sedimentou sua teoria dos custos de transação a partir de uma análise crítica da teoria de economia de bem-estar proposta por Arthur Cecil Pigou. Como destacado, os postulados da teoria econômica moderna têm como inspiração a teoria filosófica utilitarista, em que a condição de eficiência e bemestar – ou welfarismo, na expressão de Sen (2012) –, é avaliada em função da utilidade (felicidade ou satisfação) em que cada agente econômico visa maximizar algo em seu interesse. Portanto, o critério normativo de eficiência está atrelado ao ideal de maximização do bem-estar, cuja aferição ética é feita a partir da utilidade individual, considerando a condição de agente racional na busca da satisfação do seu autointeresse. Normalmente, as análises de custos e benefícios das políticas públicas no campo da teoria econômica são baseadas em critérios de eficiência extraídos do Teorema de Pareto (Ótimo de Pareto) e do Teorema Kaldor-Hicks (ou Melhoria Potencial de Pareto). O critério de eficiência proposto por Pareto foi uma tentativa de resolver o problema do utilitarismo clássico, que almejava uma solução que simplesmente procurasse a máxima satisfação de um maior número de pessoas. Por entender não ser possível realizar comparações interpessoais de bem-estar e utilidade, o critério de eficiência deve ser avaliado de forma individualizada entre os sujeitos. O Ótimo 9 O estudo do conceito de políticas públicas para o direito consiste em conceber a importância de interação entre as esferas política e jurídica, reconhecendo e tornando públicos os processos dessa comunicação no âmbito da estrutura burocrática do poder estatal, “seja atribuindo-se ao direito critérios de qualificação jurídica das decisões políticas, seja adotando-se uma postura crescentemente substantiva e, portanto, mais informadas por elementos da política” (BUCCI, 2010, p. 242-244). A política aqui abordada não se resume à noção de política partidária, mas também em seu sentido amplo, quer dizer, “como atividade de conhecimento e organização do poder”. Assim, a medida institucional adotada para a consecução da política pública deve conjugar os aspectos técnicos de uma gestão eficiente e os aspectos políticos. “O problema jurídico-administrativo do Brasil, embora tenha elementos gerenciais, não é exclusivamente de gestão; é primordialmente um problema político”. Revista Jurídica da Presidência

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de Pareto consiste na ideia de que só sejam recomendáveis as mudanças em que ao menos uma pessoa fique em uma situação melhor e nenhuma fique em situação pior. Contudo, esse critério pode gerar problemas na aplicação prática. Se considerarmos, por exemplo, questões relacionadas às políticas públicas de larga escala, que atingem milhares de interessados, torna-se bastante complicado ocorrer situações em que não haja pessoas que fiquem numa situação pior do que a que se encontravam antes (RIEFFEL, 2006). Ademais, como destaca Sen (2012, p. 52), a aplicação do critério de Pareto às políticas públicas encontrará dificuldades para obter a situação ótima devido aos problemas relacionados à assimetria de informações, na medida que “as informações requeridas para calcular a distribuição inicial necessária de dotações serem rigorosas e muito difíceis de obter, e os indivíduos podem não ter incentivo para revelá-las”. Já o critério de Kaldor-Hicks, uma tentativa de melhorar o modelo proposto por Pareto, prevê que as políticas públicas acarretam mudanças que geram tanto ganhadores como perdedores, mas propõe que haja um ganho maior aos ganhadores que um perda maior para os perdedores. Assim, “uma decisão eficiente no sentido Kaldor-Hicks deve incentivar o bem-estar dos ganhadores em um montante tal que permita, ainda que em tese, compensar a perda de bem-estar dos prejudicados” (GOLDBERG, 2007, p. 52). De qualquer forma, ambos os critérios de eficiência (Pareto e Kaldor-Hicks) têm suas deficiências, tanto no aspecto teórico quanto no aspecto prático, justamente em razão das questões filosóficas e morais (justiça distributiva e igualdade) que envolvem a avaliação das políticas públicas (COOTER; ULEN, 2010, p. 65). Destaca Goldberg (2007, p. 53-54) que o critério de Kaldor-Hicks tem sido mais utilizado pela AED do que o critério de Pareto para a avaliação do grau de eficiência das políticas públicas. No entanto, o aspecto instrumental do critério de eficiência econômica o tem afastado das discussões morais ao relacionar o grau de eficiência a uma análise de custo-benefício: “qualquer que seja a política adotada e os objetivos perseguidos, há sempre uma forma eficiente – que desperdiça menos recursos – de fazê-lo”10.

10  “Além de uma teoria útil do comportamento, a economia fornece um padrão normativo útil para avaliar o direito e as políticas públicas. As leis não são apenas argumentos arcanos, técnicos; elas são instrumentos sociais importantes. Para conhecer os efeitos das leis sobre esses objetivos, os juízes e outros legisladores precisam ter um método para avaliar os efeitos das leis sobre valores sociais importantes. A eficiência sempre é relevante para a definição de políticas já que é melhor atingir qualquer política dada a um custo menor do que a um custo mais alto. As autoridades públicas nunca defendem o desperdício de dinheiro” (COOTER; ULEN, 2010, p. 26). Revista Jurídica da Presidência

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O critério de aferição do bem-estar em função da soma de utilidades (ranking pela soma) para avaliar o grau de satisfação da política adotada, “tem limitações óbvias” na avaliação de Sen (2012, p. 61-62), em razão de ser bastante complicado “julgar o bem-estar de uma pessoa exclusivamente pela métrica da felicidade ou satisfação de desejos”, sobretudo no contexto de “comparações interpessoais de bem-estar, pois o grau de felicidade reflete o que uma pessoa pode esperar e como o ‘trato’ social se afigura em comparação com essa expectativa”. Com efeito, é bem provável que um indivíduo que levou uma vida cheia de privações e sem oportunidades “pode conformar-se mais facilmente com as privações de que outras que foram criadas em circunstâncias mais afortunadas e abastadas”. Dessa forma, “a métrica da felicidade pode, portanto, distorcer o grau de privação, de um modo específico e tendencioso”. Como podemos observar, as críticas apresentadas à teoria econômica, base de sustentação da AED, acabam se voltando para as questões éticas e morais relacionadas à prática de determinado ramo do saber e ao papel do Estado na intervenção econômica para a promoção do bem-estar de seus cidadãos e a realização de políticas públicas. Conforme assinala Sen (2000, p. 74), a abordagem avaliatória das políticas públicas pode ser feita e caracterizada a partir de suas bases informacionais, ou seja, “as informações que são necessárias para formar juízos usando essa abordagem e – não menos importante – as informações que são excluídas de um papel avaliatório direto nessa abordagem”, em que é possível verificar a essência da teoria de justiça que está por detrás dessas bases informacionais. Nesse sentido, para que possamos compreender a importância e eventuais limites da proposta interdisciplinar da AED para a análise descritiva e normativa das políticas públicas, é importante tentarmos compreender em qual contexto e visão de mundo estão inseridos os seus juseconomistas para que possamos extrair aspectos úteis para a formação de um juízo avaliatório sobre as políticas públicas.

4 A influência do raciocínio econômico De acordo com Lopes (2004), embora o direito e a economia tenham suas raízes da aplicação do raciocínio prático, ambas procuram descrever e analisar a ação humana sob perspectivas diferentes, ou seja, a partir dos seus tipo-ideais. O tipoideal da economia procura enxergar a racionalidade humana a partir da análise dos custos e da eficiência para a avaliação das ações empreendidas, constituindo a base de seu juízo avaliatório; ao passo que o tipo-ideal do raciocínio jurídico é realizado Revista Jurídica da Presidência

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sob a perspectiva da legalidade. Embora reconheça que o juízo avaliatório no direito não possa se basear apenas sob a ótica dos custos e da eficiência11, o autor ressalta a influência do raciocínio econômico na produção legislativa e nas decisões judiciais. Assim, na realidade do direito, o “raciocínio de custo-benefício, ou pela eficiência, é bem mais comum do que à primeira vista se poderia admitir”. É certo que se analisam os fundamentos das decisões judiciais quando enfrentam questões complexas relacionadas à economia (regulação econômica, contratos etc.). Normalmente os tribunais têm utilizado critérios mais intuitivos do que argumentos econômicos propriamente ditos. Nessa perspectiva, a utilização dos métodos de avaliação econômica proposta pela AED poderia contribuir para conferir mais racionalidade e previsibilidade às decisões judiciais, no sentido de enxergar “como determinados conceitos irão se relacionar como o raciocínio jurídico” (RIEFFEL, 2006, p. 104). Para os limites do presente trabalho, será abordada a questão da aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato e o caso da regulamentação da Agência Nacional de Telecomunicações – Anatel sobre o serviço de telefonia móvel pré-pago, cujas matérias já possuem precedentes do Superior Tribunal de Justiça – STJ. O objetivo é apenas destacar alguns aspectos da argumentação utilizada pelo STJ quando da apreciação prática de matérias complexas relacionadas às políticas públicas (contratos e regulação econômica), e a forma como a utilização de determinados conceitos econômicos poderiam ser úteis para a uma melhor compreensão dessas questões jurídicas.

4.1 A teoria do adimplemento substancial do contrato No julgamento do Recurso Especial no 1.200.105/AM (BRASIL, 2012), em que se discutia a legitimidade do ajuizamento de uma ação de reintegração de posse pela instituição financeira de arrendamento mercantil em desfavor do promissário/ devedor, com o objetivo de reaver cento e trinta e cinco caminhões, o promissário 11  “ No campo do direito a crítica e avaliação podem ser feitas em termos de eficiência ou custo. No campo do direito a crítica dá-se pela legalidade. Isto quer dizer que a eficiência não pode ser o critério primeiro ou último de uma decisão jurídica, ela não dá sentido a uma questão jurídica. Pode ser que seja mais eficiente abandonar parte da população à própria sorte, eliminar sujeitos não desejados, impedir o acesso de etnias a certos lugares e assim por diante. Mas à pergunta sobre a obrigatoriedade ou não de tais ações não se pode responder com o critério de custo. Em certas circunstâncias o custo não pode ser a razão (ou sentido) da ação. Algumas coisas simplesmente não se fazem” (LOPES, 2004). Revista Jurídica da Presidência

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tinha pagado trinta parcelas de um total de trinta e seis parcelas convencionadas. O STJ rejeitou a pretensão do promitente/credor de reaver os bens arrendados, considerando a “teoria do adimplemento substancial do contrato”, que “visa impedir o uso desequilibrado do direito de resolução por parte do credor, preterindo desfazimentos desnecessários em prol da preservação da avença”, considerando os princípios elementares do Direito Civil, quais sejam, a função social do contrato e a boafé objetiva. De acordo com os fundamentos do voto do Ministro Relator do acórdão: Na sua função de controle – a boa-fé objetiva -, limita o exercício dos direitos subjetivos, estabelecendo para o credor, ao exercer o seu direito, o dever de ater-se aos limites traçados pela boa-fé, sob pena de uma atuação antijurídica (art. 187, CC). Evita-se, assim, o abuso de direito em todas as fases da relação jurídica obrigacional, orientando a sua exigibilidade (pretensão) ou o seu exercício coativo (ação). Desenvolveram-se fórmulas, sintetizadas em brocardos latinos, que indicam tratamentos típicos de exercícios inadmissíveis de direitos subjetivos, como a supressio (o nãoexercício de um direito durante longo tempo poderá ensejar a sua extinção), a tuo quoque (aquele que infringiu uma regra de conduta não pode postular que se recrimine em outrem o mesmo comportamento) e a venire contra factum proprium (exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento anterior do exercente). Uma das expressões do princípio da boa-fé objetiva na sua função de controle é a teoria do adimplemento substancial, que pode ser aplicada quando o adimplemento da obrigação pelo devedor é tão próximo do resultado final, que a resolução do contrato mostrar-se-ia uma demasia. [...] tendo ocorrido um adimplemento parcial da dívida muito próximo do resultado final, e daí a expressão “adimplemento substancial”, limita-se esse direito do credor, pois a resolução direta do contrato mostrar-se-ia um exagero, uma iniquidade. Naturalmente, fica preservado o direito de crédito, limitando-se apenas a forma como pode ser exigido pelo credor, que não pode escolher diretamente o modo mais gravoso para o devedor, que é a resolução do contrato. Poderá o credor optar pela exigência do seu crédito (ações de cumprimento da obrigação) ou postular o pagamento de uma indenização (perdas e danos), mas não a extinção do contrato. (BRASIL, 2012).

A questão que se coloca consiste em perquirir se a solução adotada pelo STJ na aplicação da denominada teoria do adimplemento substancial do contrato mostrase eficiente sob a perspectiva da teoria econômica, quando houver uma quebra de expectativa nas condições pactuadas no contrato. Destaque-se que o caso analisado pelo Tribunal não se tratava de uma relação jurídica de consumo, a exigir, por exemplo, Revista Jurídica da Presidência

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uma postura mais intervencionista do Judiciário (dirigismo contratual), mas de um contrato firmado entre dois particulares teoricamente em condições paritárias de negociação para a aquisição de uma quantia de centro e trinta e cinco caminhões. Com efeito, assinalam Cooter e Ulen (2010, p. 249-250) que nas hipóteses de omissão contratual sobre a aplicação de determinado remédio jurídico, o Tribunal deverá fornecê-lo na forma de indenização ou ordenar o cumprimento específico da promessa contratual. É importante levar em consideração que os “remédios jurídicos alternativos criam incentivos diferentes para as partes de um contrato”, de modo a influenciar “o investimento no cumprimento do contrato e na confiança nele”. Com efeito, a utilização do remédio jurídico (indenização por quebra de expectativa ou cumprimento específico da obrigação) afeta o poder de barganha para alcançar uma renegociação de forma mais eficiente sem precisar da intervenção do poder Judiciário. Partindo do pressuposto que o contrato de leasing já previa a possibilidade do ajuizamento da ação de reintegração de posse como remédio jurídico para recuperar a posse direta dos referidos caminhões em caso de inadimplemento do promissário/ devedor, observa-se que o STJ adotou um remédio alternativo àquele convencionado livremente entre as partes. Os remédios jurídicos alternativos envolvem, tradicionalmente: a) a indenização por quebra de expectativa (indenização – lucros cessantes); b) a indenização por quebra de confiança e por custo de oportunidade (indenização negativa – danos emergentes); e c) restituição ou a devolução do bem prometido. A decisão adotada pelo STJ com base apenas em um critério de justiça (boafé objetiva, por exemplo), sem levar em consideração a estrutura de incentivos dos agentes econômicos envolvidos no negócio jurídico, poderá resultar impactos nos contratos futuros de leasing, tornando-o mais dispendioso aos interessados devido aos custos internalizados pelo promitente/credor, seja na questão de se obter um critério objetivo para se definir o sentido de adimplemento substancial, seja em relação aos aspectos para a propositura de uma ação de conhecimento de natureza indenizatória, cujo procedimento é bem mais demorado que o da ação de reintegração de posse. Além disso, há o custo para se calcular qual seria a indenização ideal para ressarcir todos os prejuízos sofridos pelo promitente. A análise dos remédios jurídicos sob a perspectiva econômica tem a finalidade de modelar os efeitos do descumprimento ou cumprimento sobre o comportamento dos agentes econômicos, que podem ser vários. Cooter e Ulen (op. cit., p. 264-269) apontam três aspectos: a) a decisão do promitente de descumprir ou cumprir; b) o investimento do promitente no cumprimento; e c) o investimento do promissário

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na confiança da promessa. A utilização do remédio jurídico (indenização por quebra de expectativa ou cumprimento específico da obrigação) afeta o poder de barganha para alcançar uma renegociação de forma mais eficiente sem precisar da intervenção do poder Judiciário. Com efeito, sob a perspectiva do Teorema de Coase “a eficiência econômica exige que se aloquem recursos para o uso que é valorizado ao máximo”, sendo certo que “os remédios jurídicos fixados pelo tribunal só diferem no tocante à eficiência quando os custos transacionais são positivos”. Nessa situação, “mais eficiente remédio jurídico determinado pelo tribunal minimiza os custos transacionais do encaminhamento do bem para o uso que o valorize o máximo”. A percepção que podemos ter acerca da solução adotada pelo STJ é de que se utilizou da teoria da boa-fé objetiva sem levar em consideração as consequências práticas acerca dos impactos sobre o segmento econômico de leasing e a influência sobre a estrutura de incentivos dos agentes econômicos. Afinal, qual o critério utilizado para definir que o adimplemento da obrigação pelo devedor é tão próximo do resultado final? Sob a perspectiva da teoria econômica pode-se até concluir que o resultado adotado foi eficiente do ponto de vista econômico, pois, em tese, deixou os bens arrendados na posse daquele que mais valoriza o bem, no caso, o promissário devedor, podendo gerar mais benefícios sociais ao exercer sua atividade produtiva de transporte. Contudo, existe a dificuldade em se calcular o critério perfeito da indenização por quebra de expectativa, devido aos custos para o ajuizamento da ação indenizatória, o lucro que o promissário está auferindo em utilizar o bem sem pagar as prestações etc. Ademais, como os agentes econômicos irão se comportar diante desse precedente nas futuras relações contratuais de leasing? No caso retratado, portanto, o STJ se ateve apenas a questões estritamente jurídicas e promoveu a redistribuição de direitos, desconsiderando aspectos importantes relacionados à estrutura de incentivos dos agentes econômicos envolvidos, bem como as possíveis consequências que o precedente irá refletir no mercado em que o negócio jurídico está inserido. Nesse sentido, a AED serviria como um instrumental teórico e empírico relevante para conferir mais consistência e racionalidade à aplicação da teoria do adimplemento substancial às relações contratuais.

4.2 A regulamentação do serviço público de telefonia móvel pré-pago Ao apreciar a insurgência do Ministério Público Federal, veiculada em sede de ação civil pública, sobre os critérios técnicos utilizados pela Agência Nacional de Revista Jurídica da Presidência

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Telecomunicações para o serviço de telefonia móvel pré-pago12, o STJ adotou uma interpretação mais favorável ao regulamento editado pela Anatel, entendendo que “é da exclusiva competência das agências reguladoras estabelecer as estruturas tarifárias que melhor se ajustem aos serviços de telefonia oferecidos pelas empresas concessionárias”. O Ministro Relator ressaltou a impossibilidade de o Judiciário adentrar no mérito do ato regulatório para apreciar os critérios técnicos utilizados, “sob pena de criar embaraços que podem comprometer a qualidade dos serviços e, até mesmo, inviabilizar a sua prestação” (BRASIL, 2008). Um fato importante que podemos destacar na argumentação utilizada pelo STJ nos julgamentos relacionados à regulamentação do serviço de telefonia móvel pré-pago, foram as justificativas de cunho mais pragmáticas do que teóricas em que se prestigiou aspectos de ordem técnica na avaliação da política pública de regulação do serviço público de telefonia móvel pré-paga, agindo o Tribunal com deferência à interpretação técnica realizada pela Anatel, sob o risco de causar prejuízos imensuráveis ao bom funcionamento do serviço público, ao setor regulado e ao próprio usuário. Com efeito, na tramitação do Pedido de Suspensão de Liminar e de Sentença no 1.818/DF, interposto pela Anatel em face do acórdão proferido pelo Tribunal Regional Federal da 1a Região no julgamento da apelação Cível no 2005.39.00.004354-0/ PA13, que concedeu a tutela antecipada para reativar todos os créditos dos usuários do serviço público, cujo prazo de utilização já tinha expirado, o Presidente do STJ deferiu a liminar para suspender os efeitos do acórdão, acatando a argumentação técnica levantada pela agência no sentido de que a alteração das regras do serviço de telefonia móvel pré-pago causaria sérios prejuízos ao próprio consumidor final 12 A impugnação do Ministério Público estava relacionada ao item 4.6 (e subitens 4.6.1 e 4.6.1.1) da Norma 03/98 da Anatel, posteriormente substituída pela Resolução no 316/02, que fixa o prazo de validade para a fruição, pelo usuário, dos créditos da telefonia móvel pré-paga frente à competência estabelecida na Lei no 9.472 de 16 de julho de 1997. 13  O  Tribunal Regional Federal da 1a Região deu provimento ao recurso do Ministério Público Federal para o fim de anular a regulamentação da Anatel, que fixem “a perda dos créditos adquiridos após a expiração de determinado lapso temporal ou condicionem a continuidade do serviço à aquisição de novos créditos, constantes dos contratos celebrados entre os usuários do serviço de telefonia móvel celular, na modalidade pré-pago” (BRASIL, 2013). A justificativa apresentada pelo Tribunal para anular a regulamentação da Agência reguladora baseou-se nos direitos individuais do consumidor/ usuário do serviço público de não terem os seus créditos confiscados pelas operadoras de telefonia celular, por entender se tratar de condições abusivas impostas pela fornecedora do serviço com respaldo em ato normativo da agência, desconsiderando possíveis consequências na alteração da regulamentação questionada. Revista Jurídica da Presidência

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(estimado em 212 milhões de usuários), na medida em que tornaria o serviço mais dispendioso14: Sem adentrar no mérito, da questão principal, não se pode deixar de destacar que a r. decisão impugnada altera aspectos técnicos específicos da área de atuação da Agência que, certamente, foram previstos para proteger com maior eficácia a integridade das relações atinentes à prestação dos serviços de telefonia, bem como salvaguardar os direitos dos consumidores e dos prestadores do serviço. Ressalte-se que na área técnica das telecomunicações, especialmente em um país de dimensões continentais como o nosso, com as especificidades geográficas aqui existentes, a atuação administrativa na área regulatória deve ser pautada por rigorosos critérios técnicos e científicos definidores de regras claras atinentes às exigências qualitativas do serviço a ser executado, mas também deve balizar, de forma confiável, a política remuneratória dos prestadores do serviço regulado. Nesse aspecto, é preciso considerar que qualquer alteração não prevista no sistema normativo do setor de telefonia resultará no desequilíbrio técnico-financeiro da atividade, a evidenciar, sob esse aspecto, a concreta ocorrência de lesão à ordem administrativa e à economia pública, apta a autorizar o deferimento da presente medida. (BRASIL, 2013).

Nessa situação fica evidente a preocupação de ordem econômica do STJ com as consequências de se adotar uma solução diversa da regulamentação utilizada pela Anatel para o serviço público de telefonia pré-pago, que repercutiria no equilíbrio financeiro dos contratos firmados com as operadoras de telefonia, prejudicando, por conseguinte, o usuário de baixa renda, parcela significativa beneficiária deste tipo de serviço. Embora não se tenha utilizado de forma explícita de conceitos técnicos extraídos da economia (regulação econômica) para avaliar o grau de eficiência da política pública adotada pela Anatel para regulamentação do serviço público de telefonia móvel pré-pago, é indubitável que o tribunal agiu com autocontenção, devido à capacidade técnica do órgão regulador, preocupando-se com as consequências econômicas que uma decisão contrária à regulação do serviço público poderia acarretar ao setor regulado e aos próprios usuários.

14 Segundo o argumento apresentado pela Anatel: “... a modificação dos critérios de manutenção das linhas pré-pagas fará com que as operadoras sejam obrigadas a manter ativas todas as linhas de celulares, mesmo daqueles telefones que não estejam mais em uso. Esse aumento do número de linhas ativas terá reflexo no custo final da operação dos serviços de telefonia móvel, ante a necessidade de novos equipamentos e inovações tecnológicas que possibilitem a absorção dos novos números aliadas à manutenção das linhas ‘fantasmas’ no mercado”. (BRASIL, 2013). Revista Jurídica da Presidência

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5 Conclusão O objetivo deste trabalho foi de destacar de forma breve os fundamentos e a ideologia que influenciaram o movimento da Análise Econômica do Direito que, devido a sua significativa influência no direito norte-americano, vem recentemente ganhando adeptos na academia jurídica nacional. A proposta interdisciplinar de abordagem econômica do direito vem a calhar com a necessidade de abrir o direito para os fatos e a realidade que o circunda, cuja dogmática jurídica tradicional não vem atendendo de forma satisfatória, sobretudo em questões de altas complexidades técnicas, sociais e políticas, como o que ocorre na análise de políticas públicas. De acordo com Castro (2012, p. 14), as teorias e os conceitos abstratos, amplamente utilizados na teoria do direito, têm se mostrado “completamente inadequados ou insuficientes como apoios intelectuais capazes de conduzir à superação de conflitos práticos” para os quais o direito tem que enfrentar e apresentar soluções possíveis15. Ademais, diante um movimento de exaltação na aplicação dos princípios jurídicos na realidade forense, cujas críticas têm sido feitas em razão de causar mais incertezas do que segurança e previsibilidade às decisões jurídicas, a proposta de conferir mais racionalidade ao discurso jurídico, por meio da utilização do instrumental teórico e empírico da economia, pode-se mostrar bastante útil para

15 No mesmo sentido, assinala Nino (2010, p. 400) que “a descrição que a dogmática jurídica faz do direito não constitui, em geral, uma reprodução fiel de seu objeto de estudo, visto que não costuma evidenciar com clareza as diferentes alternativas que podem ser apresentadas na interpretação das normas jurídicas (tendendo-se a apresentar uma delas como a única interpretação possível) e se apresenta como parte do sistema jurídico que descreve certos princípios, distinções conceituais, teorias etc., que são, na realidade, o produto da elaboração da própria dogmática. Por outro lado, a tarefa de reconstrução do sistema também é insatisfatória, já que, ao não ser apresentada como tal, mas como descrição do que está implícito no sistema positivo, os princípios valorativos em que se baseiam as soluções originais propostas pela dogmática não são articulados. Isso determina, em primeiro lugar, que não haja uma discussão exaustiva e aberta sobre a justificação desses princípios, e, em segundo lugar, que não haja uma tentativa séria de formular um sistema coerente dos princípios que estão por trás das soluções propostas pela dogmática para reconstruir o sistema”. Revista Jurídica da Presidência

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avaliar o direito e as políticas públicas16. Nesse aspecto, a partir da descrição dos precedentes do STJ sobre a aplicação da teoria do adimplemento substancial do contrato às operações de leasing e da regulamentação realizada pela Anatel a respeito do serviço público de telefonia móvel pré-pago, evidenciam que uma melhor utilização do conhecimento econômico proposto pela AED contribuiria sobremaneira no sentido de conferir maior racionalidade e coerência ao argumento jurídico exercido pelos tribunais. Todavia, é preciso ter cautela na utilização do direito apenas como um meio de se atingir a eficiência econômica, visando alcançar soluções que gerem o menor custo-benefício, sobretudo em matéria de políticas públicas – que envolve critérios redistributivos. Como assinala Gico Jr.: Convém alertar aqui também para os perigos da aplicação do método econômico para toda e qualquer questão. Há searas mais claramente afeitas a esse tipo de método e outras menos, bem como consequências indesejáveis do imperialismo da economia. Todavia, esse alerta será mais produtivo após uma avaliação cuidadosa e livre de preconceitos da Análise Econômica do Direito e sua proposta. (2010, p. 30).

Portanto, um maior diálogo entre os raciocínios jurídico e econômico, reconhecendo as limitações destes ramos do conhecimento para a descrição da realidade, poderá contribuir sobremaneira para uma melhor compreensão, interpretação e aplicação das regras jurídicas17.

16  “Elaborar e enunciar com clareza e precisão a regra que, a partir dos princípios, entendem dever ser utilizada em juízo para resolver os casos concretos, do mesmo modo que o regulador faz regulamentos, com suas especificações, antes de sair tomando atitudes caso a caso. Estudar com profundidade a realidade em que vão mexer, entender as características e razões da regulação anterior, identificar as alternativas regulatórias existentes, antever os possíveis custos e os impactos, positivos e negativos, em todos os seus aspectos, da nova regulação judicial que se cogita instituir, comparar as características da regulação existente e da cogitada. Tudo isso tem de aparecer na motivação da decisão judicial. Em suma, é preciso que o Judiciário, transformado em regulador, comporte-se como tal, com todos os ônus que isso envolve. De contrário teremos decisões puramente arbitrárias, construídas de modo voluntarista, gerando uma jurisprudência capaz de flutuar ao saber das intuições e dos azares – em resumo: pura feitiçaria” (SUNDFELD, 2012, p. 84). 17 “O raciocínio jurídico e a boa dogmática jurídica não são surdos aos saberes alheios e se dão conta de que vários objetos constituídos por outras disciplinas são a matéria prima sobre a qual decidem. Embora decidindo segundo regras, o jurista sabe que o objeto de sua decisão, o caso sobre o qual ele quer aplicar as regras, não são regras mesmas, mas as relações entre pessoas e estas são explicadas e constituídas por muitos saberes que não apenas o direito” (LOPES, 2004).

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6 Referências BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 1.200.105/AM. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 2012. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2014. ______. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial no 806.304/RS. Relator: Ministro Luiz Fux. Diário de Justiça Eletrônico. Brasília, 2008. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2014. ______. Superior Tribunal de Justiça. Suspensão de Liminar e de Sentença no 1.818/DF, Relator: Ministro Felix Fischer. Diário de Justiça Eletrônico, 2013. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2014. BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito Administrativo e Políticas Públicas. São Paulo: Saraiva, 2006. CASTRO, Marcos Faro. Formas jurídicas e mudança social: interação entre o direito, a filosofia, a política e economia. São Paulo: Saraiva, 2012. COOTER, Robert; ULEN, Thomas. Direito & Economia. 5. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010. FARALLI, Carla. A filosofia contemporânea do direito: temas e desafios. São Paulo: Martins Fontes, 2006. GICO JR, Ivo T. Metodologia e Epistemologia da Análise Econômica do Direito. Economic analysis of law Review, v. 1, n. 1, p. 7-33, jan.-jun./2010. Brasília: Universa. GOLDBERG, Daniel. O controle das políticas públicas pelo judiciário: welfarismo em um mundo imperfeito. In: SALGADO, Lucia Helena; DA MOTTA, Ronaldo Seroa. Regulação e concorrência no Brasil: Governança, Incentivos e Eficiência. Rio de Janeiro: Ipea, 2007. LOPES, José Reinaldo de Lima. Raciocínio jurídico e economia. Revista de Direito Público da Economia – RDPE, Belo Horizonte, n. 8, ano 2, out./dez. 2004. disponível em: . Acesso em: 17 fev. 2014. POSNER, Richard. As fronteiras do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010. NINO, Carlos Santiago. Introdução à análise do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

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RIEFFEL, Luiz Reimer Rodrigues. Um mundo refeito: o consequencialismo na análise econômica do direito de Richard Posner. 2006. 130 f. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2006. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. ______. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. São Paulo: Malheiros, 2012.

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Licença compulsória e a parceria de desenvolvimento produtivo: assegurando o direito à saúde no Brasil CAROLINA SCHABBACH OLIVEIRA Mestranda na Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogada do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

LEONARDO DA SILVA SANT´ANNA Doutor em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Professor Adjunto da Faculdade de Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

ALDO PACHECO FERREIRA Doutor e Mestre em Engenharia Biomédica pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisador da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (ENSP) da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Artigo recebido em 05/04/2015 e aprovado em 11/09/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Política pública de acesso a medicamentos e de incentivo à inovação 3 Acesso ao medicamento e proteção do direito de propriedade intelectual 4 Conceito e normatização da licença compulsória 5 Parceria de desenvolvimento produtivo 6 Conclusão 7 Referências

RESUMO: O direito à saúde é direito fundamental assegurado na Constituição, tal como o direito do titular da patente de explorar o seu objeto. O equilíbrio entre tais direitos é vital para a promoção do acesso universal e igualitário aos serviços de saúde, em especial o acesso a medicamentos. Este trabalho estuda os institutos da licença compulsória de patentes e da parceria de desenvolvimento produtivo quanto aos aspectos gerais da Política Nacional de Medicamento. Após a análise desses aspectos, entre os quais se destaca o estudo do marco legal associado à execução dessa Política, a conclusão que será demonstrada é a de que esses institutos, apesar de possuírem função individualizada dentro da Política Nacional de Medicamento, são complementares entre si e caracterizam-se como essenciais à manutenção do equilíbrio entre o direito ao acesso ao medicamento e o direito de exploração da patente. PALAVRAS CHAVE: Patentes Parceria de Desenvolvimento Produtivo Direito à Saúde.

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Compulsory licensing and partnership productive development: ensuring the right to health in Brazil CONTENTS: 1 Introduction 2 Public policy regarding the access to medicines and the incentive to innovation 3 Access to medicines and protection of intellectual property right 4 Concept and standardization of compulsory license 5 Productive Development Partnership 6 Conclusion 7 References.

ABSTRACT: The right to health and the right of the patent owner to exploit its object are fundamental rights guaranteed on the Brazilian Constitution. The balance between these rights is vital for the promotion of universal and equal access to health services, in particular the access to medicines. This paper studies how compulsory license and the productive development partnership are treated on National Drug Policy. After analyzing compulsory license and productive development partnership institutes, it was demonstrated that each of those institutes has its function on the system but both institutes are complementary and work together and help to maintain the balance between the right to access to medication and the right to exploit the patent. KEYWORDS: Patent Productive Development Partnership Right to Health.

Licencia obligatoria y la asociación de desarrollo productivo: garantizando el derecho a la salud en Brasil CONTENIDO: 1 Introducción 2 Política pública de acceso a medicinas y el fomento a la innovación 3 Acceso a medicina y protección del derecho de propiedad intelectual 4 Concepto y normatización de la Licencia Obligatoria 5 Sociedad de desarrollo productivo 6 Conclusión 7 Referencia.

RESUMEN: El derecho a la salud es un derecho fundamental seguro en la Constitución, tal cual el derecho del titular de la patente de explorar su objeto. El equilibrio entre eses derechos es vital a la promoción del acceso universal e igualitario a los servicios de salud, especialmente el acceso a medicinas. El presente trabajo estudia el instituto de la Licencia Obligatoria de patentes y de la Sociedad de Desarrollo Productivo, cuanto a los aspectos generales de la Política Nacional de Medicinas. Después de las análisis de eses aspectos, entre los cuales destacase el estudio del marco legal asociado a la ejecución de esa Política, la conclusión que será demostrada es a la de eses institutos, a pesar de detentar función individualizada dentro de la Política Nacional de Medicina, son complementares entre si y se caracterizan como esenciales a la manutención del equilibrio entre el derecho a medicina y el derecho de explorar la patente. PALABRAS-CLAVE: Patentes Sociedad de desarrollo productivo Derecho a la salud. Revista Jurídica da Presidência

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1 Introdução

A

Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 – CRFB estabeleceu a busca pelo acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação da saúde como dever de todos os cidadãos e do Estado. O fornecimento de medicamentos é apenas uma das formas previstas para garantir esse acesso e será objeto de análise deste artigo, tendo em vista a necessidade de um corte epistemológico. Acreditamos que a Política Nacional de Promoção à Saúde somente será apta a permitir o desenvolvimento se as ações nela existentes também proporcionarem a melhoria nos fatores externos condicionantes do estado de saúde dos indivíduos. Em relação à política de acesso aos medicamentos, bastante relevância exerce a forma de proteção legal conferida ao resultado da atividade inventiva, o que inclui o tratamento regulatório referente ao abuso do direito à exploração da patente, bem como os institutos que estimulam a incorporação de inovação tecnológica à indústria nacional. A Licença Compulsória é um dos instrumentos utilizados para o combate ao abuso no exercício do direito à exploração da patente e, por isso, será objeto de análise deste artigo, em que serão estudadas com ênfase as hipóteses de sua concessão no combate à fixação de preços de medicamentos em limites muito superiores aos custos e ao retorno do investimento, bem como na hipótese de sua concessão por interesse público. Também será submetida à análise, a Parceria de Desenvolvimento Produtivo – PDP, por mostrar-se complementar à Licença Compulsória como instrumento de mitigação dos efeitos nocivos da incidência do mecanismo de proteção do direito do inventor por meio da patente, bem como por caracterizar-se como indutor ao desenvolvimento tecnológico através do estímulo à transferência da tecnologia por meio da parceria público privada. Os institutos acima mencionados, por permitirem o exercício regular do direito à exploração da patente, mostram-se fundamentais para manutenção do equilíbrio do mercado de produtos essenciais à população, como os medicamentos, o que se pretende comprovar, ao longo deste artigo, como hipótese. O marco teórico, além dos normativos regulatórios relativos à política de promoção à saúde, no tocante ao acesso a medicamentos, e de incentivo à inovação, será a obra de Amartya Sen, para quem o desenvolvimento econômico pleno não se baseia unicamente na proteção da liberdade de mercado. Revista Jurídica da Presidência

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Para o desenvolvimento de nosso marco teórico e comprovação da hipótese apresentada, será necessário analisar aspectos gerais da política de acesso ao medicamento e ao desenvolvimento tecnológico, e, ainda, verificar o arcabouço normativo relativo à Licença Compulsória, em âmbito internacional, principalmente o tratamento conferido ao instituto na Convenção da União de Paris – CUP, e no Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – TRIPS1; e no âmbito interno, em especial a normatização contida na Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, bem como à Parceria de Desenvolvimento Produtivo. Durante a análise do marco regulatório acima mencionado, verificaremos os efeitos da aplicação de ambos os institutos, principalmente no tocante ao reequilíbrio entre o direito de proteção da atividade inventiva, por meio da patente, e o direito de acesso ao medicamento, para então concluirmos que a Licença Compulsória e a Parceria de Desenvolvimento Produtivo são importantes institutos previstos na execução da Política Nacional de Medicamento na garantia desse equilíbrio.

2 Política pública de acesso a medicamentos e de incentivo a inovação A Constituição, nos artigos 196 e 200, incisos I e V, estabelece como dever de todos assegurar o acesso universal e igualitário da população às ações e serviços de saúde. A forma de assegurar o acesso igualitário inclui, como fator necessário à sua efetivação, a produção de medicamentos e outros insumos e o estímulo ao desenvolvimento científico e tecnológico, conforme a política de incentivo à

1  O  Acordo TRIPS foi fruto da rodada de negociação da OMC iniciada em 20/09/1986 no Uruguai, sendo aceito após intensos debates e oposição das delegações de países em desenvolvimento, lideradas por Brasil e Índia. O Acordo traz padrões mínimos de proteção administrativa e judicial da propriedade intelectual com o objetivo de harmonizar o direito do titular da patente com a necessidade de difusão e facilitação do conhecimento e da transferência de tecnologia. O nome TRIPS vem da denominação em Inglês, qual seja: Agreement on Trade Relates Aspects of Intellectual Property Rights. Revista Jurídica da Presidência

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inovação (artigo 218, §§ 2o e 4o da CRFB)2. Como diretrizes constitucionais importantes à Política de Inovação destacam-se o dever do Estado de promover e incentivar o desenvolvimento científico, a pesquisa e a capacitação tecnológica voltados à solução dos problemas do sistema produtivo nacional e aptos a viabilizar o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País. Em termos macroeconômicos, atualmente, o Plano Brasil Maior é a política industrial, tecnológica e de comércio exterior do governo federal (BRASIL, 2011, p. 1) que se organiza por meio de ações transversais direcionadas ao aumento da eficiência produtiva da economia como um todo (horizontal), em que se inserem o investimento e a inovação, e de ações setoriais direcionadas a setores produtivos específicos (verticais)3. As prioridades setoriais escolhidas foram as áreas de semicondutores, software, fármacos e bens de capital. Percebe-se, portanto, que o setor de fármacos sempre foi uma prioridade para a Política Industrial do país, principalmente quando associado à política de inovação. Na área da Saúde, a Constituição atribuiu competência para legislar sobre proteção e defesa da saúde concorrentemente à União, aos Estados e aos Municípios. No que tange ao aspecto administrativo, que se refere, por exemplo, como nos ensina Luiz Roberto Barroso (2007, p. 20), à possibilidade de formular e executar 2  C  onstituição da República Federativa do Brasil. “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação; e Art. 200. Ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: I - controlar e fiscalizar procedimentos, produtos e substâncias de interesse para a saúde e participar da produção de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos, hemoderivados e outros insumos; V - incrementar, em sua área de atuação, o desenvolvimento científico e tecnológico e a inovação. [...] Art. 218. O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. § 2o A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional; [...]§ 4o A lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao País, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos e que pratiquem sistemas de remuneração que assegurem ao empregado, desvinculada do salário, participação nos ganhos econômicos resultantes da produtividade de seu trabalho.” (BRASIL, 1988), 3  O Plano Brasil Maior, regulamentado por meio das Medidas Provisórias no 540, de 02 de agosto de 2011, e no 563, de 03 de abril de 2012, visa aperfeiçoar os avanços obtidos com a Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior – PITCE (2003-2007) e com a Política de Desenvolvimento Produtivo – PDP (2008-2010). Revista Jurídica da Presidência

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políticas públicas de saúde, a competência é comum a todos os entes que compõem a federação brasileira, como inclusive destaca a Portaria no 3.916, de 30 de outubro de 1998, que estabeleceu a Política Nacional de Medicamentos. No tocante à política de acesso ao medicamento, o art. 6o, inciso VI, da Lei no 8.080, de 19 de setembro de 19904, também chamada de Lei do Sistema Único de Saúde – SUS, evidencia a sua importância ao prever como atribuição do SUS a formulação da política de medicamentos. Evidenciando a ligação entre a promoção da saúde por meio de acesso ao medicamento e a inovação tecnológica, destacamos trecho do artigo de Carlos Ari Sundfeld e Rodrigo Pagani, in verbis: os desafios da formulação e concretização da política de medicamentos têm sido proporcionais à sua importância – isto é, enormes. Tem sido um desafio permanente promover o acesso universal e igualitário a medicamentos de qualidade, mas a preços razoáveis. E isso tem tudo a ver com a questão das inovações tecnológicas. (2013, p. 102).

Nessa relação entre o acesso ao medicamento e a inovação tecnológica, mostrase peça chave o Sistema de Patentes, cada vez mais necessário ao crescimento da indústria farmacêutica (BRÉGER, 2011, p. 143-144), por isso qualquer interferência nesse sistema, com medidas de intervenção estatal nesse direito de propriedade, pode ter reflexos indesejáveis, principalmente no tocante aos investimentos em produção de novos medicamentos em território nacional. O principal desafio que se impõe é exatamente encontrar a equação para manutenção do equilíbrio entre o acesso igualitário e universal aos medicamentos e a necessidade de proteção ao investidores e, por consequência, a manutenção contínua de estímulo ao desenvolvimento tecnológico. O ordenamento jurídico brasileiro prevê como principal instrumento de estímulo a inovação, a previsão de possibilidade de concessão de patente ao inventor como forma de explorar o produto de sua invenção. Contudo, caso se configure o abuso desse direito ou se identifiquem questões de relevante interesse público, esse direito poderá ser restringido. Antes de estudar as restrições, mostra-se fundamental conhecer melhor a relação entre o direito ao acesso ao medicamento e o Sistema de Patentes. 4 “Art. 6o Estão incluídas ainda no campo de atuação do Sistema Único de Saúde (SUS): (…) VI - a formulação da política de medicamentos, equipamentos, imunobiológicos e outros insumos de interesse para a saúde e a participação na sua produção” (BRASIL, 1990). Revista Jurídica da Presidência

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3 Acesso ao Medicamento e Propriedade Intelectual. A CRFB, em seu artigo 5o, XXIX5, confere aos titulares de invenção privilégio temporário para a sua utilização, exigindo, para tanto, que o exercício do direito obedeça o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país, isto é, sua função social. Apesar das grandes controvérsias existentes, o ordenamento jurídico brasileiro adotou a patente como a principal forma de proteção às invenções industriais6. A sua função econômica, tendo em vista caracterizar-se como direito de propriedade intelectual, é estimular a produção de invenções para que possa ser alcançado o desenvolvimento econômico, ou, como leciona Cláudio Barbosa (2009, p. 53), possibilitar a manutenção de um fluxo de criação e circulação da informação, criando-se um valor econômico e social. Isso porque, como nos lembra André Luiz Menegatti (2013, p. 20-21), em razão da não-rivalidade (o uso por uma pessoa não impede a utilização por terceiros) e da não exclusividade (não é simples impedir a utilização) dos bens incorpóreos (conhecimento sobre a atividade inventiva), caso não existisse a proteção legal por meio da patente seria impossível ao inventor recuperar mais do que o custo de distribuição da informação, já que aqueles que não arcaram com os custos de produção (free-riders) aceitariam explorar a informação a preços mais baixos, que em último caso poderiam ser iguais ao custo que tiveram com a distribuição da informação. Assim, potenciais inventores, sem perspectiva de recuperar seus custos, deixariam de realizar a atividade inventiva e a informação, essencial à produção de conhecimento, deixaria de ser pública. No caso do setor farmacêutico, nos lembra Thomas Bréger (2011, p. 143-144) que, a partir de 1975, este teve que lidar com a diminuição do ritmo de inovações e, por isso, estabelecer uma forma de manter seu crescimento e diversificação econômica. Assim, o direito de propriedade intelectual consubstanciado na patente 5  “ Art. 5o - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos basileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXIX - a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País” (BRASIL, 1988). 6  N  esse sentido é claro o artigo 2o da Lei no 9.279, no inciso I, ao dispor que a proteção dos direitos à propriedade industrial efetua-se mediante a “concessão de patentes de invenção e de modelo de utilidade”. (BRASIL, 1996). Revista Jurídica da Presidência

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ganhou força como solução para aumentar o tempo de proteção de suas invenções diante de suas concorrentes, em qualquer lugar em que comercializadas, o que a caracterizou como elemento fundamental à indústria farmacêutica, tanto para assegurar uma cobertura aos riscos industriais como para combater a concorrência dos genéricos. Isso porque quem tem a prerrogativa exclusiva de introduzir um produto patenteado no mercado, o medicamento, é o titular da patente ou o seu licenciado. Contudo, no tocante ao direito à saúde, apesar de estimular a produção de novos medicamentos que servirão para melhoria das condições de vida da população, a patente, por vezes, caso exista abuso no exercício de sua exploração, permitirá que o laboratório fixe o preço do medicamento em níveis extremamente elevados, exatamente em virtude do monopólio sobre a produção do medicamento, e, nesse sentido, poderia provocar a exclusão econômica dos doentes dos países em desenvolvimento no mercado internacional, que não teriam como pagar pelos medicamentos, o que deve ser coibido pelo Estado, pois, como dito, este tem o dever de promover o acesso à saúde de forma igualitária. Ademais, a atuação do Estado no fomento à produção de medicamentos direcionados ao tratamento de patologias que afligem populações mais pobres, também denominadas pela Organização Mundial de Saúde como doenças negligenciadas7 deve ser estimulada intensamente, assim como as atividades que diminuam a dependência tecnológica do país, principalmente porque a Constituição ao classificar o direito à saúde como direito fundamental, buscou garantir, inclusive, que a atividade de produção de medicamentos, parte essencial de acesso a saúde, pudesse alcançar além da eficiência econômica a concretização dos valores sociais contidos na Constituição. Do exposto, percebe-se que para manter o equilíbrio entre o direito à saúde e o direito de propriedade intelectual consubstanciado na patente do medicamento, devem ser seguidas as seguintes premissas: evitar qualquer comportamento que afaste o exercício do direito de exploração da patente de sua função econômica, incentivar a inovação; coibir comportamentos que se desviem dos valores e preferências sociais assegurados na Constituição, no caso da área da saúde, o seu livre acesso; e fomentar aqueles comportamentos que busquem a concretização desses valores e preferências. 7  S  egundo consta em notícia do site da Fiocruz, as doenças negligenciadas são aquelas causadas por agentes infecciosos ou parasitas e são consideradas endêmicas em populações de baixa renda; que incapacitam ou matam milhões de pessoas e representam uma necessidade importante que permanece não atendida. (FIOCRUZ, 2015). Revista Jurídica da Presidência

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O grande desafio, portanto, é fazer com que os diferentes agentes econômicos tomem decisões maximizadoras do bem-estar social, atuando onde a mão invisível, na visão de Adam Smith, não é capaz de atuar8 e, igualmente, como lembra Amartya Sen (2010, p. 150), promovam o desenvolvimento pleno, voltado simultaneamente para eficiência e para equidade9. Caso as premissas apontadas sejam obedecidas na utilização dos institutos objeto deste artigo, a Licença Compulsória e a Parceria de Desenvolvimento Produtivo, além da ajuda a manutenção do equilíbrio supramencionado, também estarão possibilitando, ainda que minimamente, o desenvolvimento econômico na visão de Amartya Sen. 8  P  ara entender um pouco sobre a visão de Adam Smith, vale trazer as palavras de Gregory Mankiw, para quem o economista Adam Smith, em seu livro “A riqueza das nações – uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações”, publicado em 1776, fez a mais famosa observação de toda a economia: “as famílias e empresas, ao interagirem em mercados, atuam como se fossem guiadas por uma ‘mão invisível’ que as leva a resultados de mercados desejáveis”. O autor explica que a visão de Adam Smith era de que os preços se ajustam para direcionar a oferta e a demanda, de modo a alcançar resultados que, em muitos casos, maximizam o bem- estar da sociedade como um todo, para Adam Smith quando o governo impede que os preços se ajustem de forma natural à oferta e à demanda, impede que a mão invisível coordene as decisões de famílias e empresas que compõe a economia, para ele os indivíduos tomarão melhores decisões se puderem agir por conta própria. Ademais, explica, que para Adam Smith, um dos motivos por que precisa-se do governo é o fato de a atuação da mão invisível depender, muitas vezes, da atuação do governo na garantia do cumprimento das regras e na manutenção das instituições principais da economia, como o direito de propriedade (MANKIW, 2014, p. 220). 9 Como lembra Roberta Marques (2013, p. 322-323), existem outros institutos, além da licença compulsória, que objetivam reequilibrar os conflitos aparentes entre o direito de acesso ao medicamento e o direito à exploração da patente sobre esse produto. Sào exemplos de tais institutos, a importação paralela (um medicamento é importado de um país para outro, sem o consentimento de quem o introduziu legalmente no mercado do país exportador; sendo o exportador alguém que adquiriu legalmente o produto no mercado original do medicamento) e a incidência, para resolução de conflitos sobre a violação do direito de propriedade intelectual, do princípio da exaustão (por meio do qual considera-se que uma vez colocado o bem intelectual no comércio pelo legítimo titular do direito, ou por alguém por ele autorizado, exaurem-se os direitos de controle da circulação do bem por quem o introduziu no mercado). A utilização desses institutos deve ser prioritária em relação à incidência da Licença Compulsória, por ser essa intervenção mais drástica na propriedade. Tais institutos possibilitam o acesso ao medicamento quando há um conflito com o titular da patente do medicamento, por isso são considerados importantes no reequilíbrio do mercado. Para o autor deve-se prestar atenção simultaneamente na eficiência e na equidade, considerar os diferentes aspectos da avaliação da justiça social. O autor com uma abordagem mais ampla e inclusiva do mercado, afirma que o desenvolvimento só faz sentido se aumentar a liberdade das pessoas, caracteriza-se como um processo de expansão das liberdades substantivas interligadas. Essas liberdades instrumentais seriam: (i) a liberdade política; (ii) as facilidades econômicas; (iii) as oportunidades sociais; (iv) a garantia de transparência; e (v) a segurança protetora. Para entender melhor essa relação entre mercado e promoção do desenvolvimento social recomenda-se a leitura do Capítulo 5, “Mercados, Estado e Oportunidade Sociais”, do livro citado (SEN; 2010, p. 150-192). Revista Jurídica da Presidência

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4 Conceito e normatização da Licença Compulsória A Licença Compulsória, segundo Roberta Marques (2013, p. 321), pode ser definida como “a permissão de industrialização e comercialização de um produto patenteado, sem o consentimento do titular do monopólio”. Para a autora, embora não implique a transferência da titularidade da patente para o Estado ou para outra entidade publica, a Licença Compulsória seria um instrumento de intervenção Estatal no monopólio de uma patente, o que deve ser excepcionalíssimo10. O primeiro tratado internacional a disciplinar o tema foi a Convenção da União de Paris – CUP, que deixou claro que a Licença Compulsória é medida preventiva dos abusos do direito exclusivo conferido pela patente. Podemos citar como exemplos de hipóteses de abuso desse direito, para o referido tratado: (i) falta de uso; (ii) recusa de concessão de licença voluntária com preço razoável; (iii) uso inadequado; e (iv) preço aviltante do produto. Em relação a caracterização do abuso por não uso, deve-se considerar o tempo de produção e, no caso do medicamento, o tempo de autorização de sua produção. Apesar destas e outras diretrizes da CUP, o seu artigo 5o conferia ampla liberdade aos legisladores pátrios para regulamentar o instituto internamente11. Apesar da normatização da CUP, podemos citar, com base na obra de Roberta Marques, importantes falhas na sistemática trazida, quais sejam: (i) dentro da noção de abuso do titular da patente havia uma pluralidade de situações que não estavam expressamente apontadas, como a violação ao direito da concorrência e a recusa daquele que detinha a titularidade da patente em outorgar licenças quando não

10  Como lembra Roberta Marques (2013, p. 322-323), existem outros institutos, além da licença compulsória, que objetivam reequilibrar os conflitos aparentes entre o direito de acesso ao medicamento e o direito à exploração da patente de determinado medicamento, tais como a importação paralela (um medicamento é importado de um país para outro, sem o consentimento do titular da patente do medicamento, que o introduziu legalmente no mercado do país exportador) e o princípio da exaustão (por meio do qual considera-se que uma vez colocado o bem intelectual no comércio pelo legítimo titular do direito, ou por alguém por ele autorizado, exaurem-se os seus direitos de controle sobre aquele bem). A utilização desses institutos deve ser prioritária em relação à incidência da Licença Compulsória, por ser essa intervenção mais drástica na propriedade. Tais institutos possibilitam o acesso ao medicamento quando há um conflito com o titular da patente do medicamento, por isso são considerados importantes no reequilíbrio do mercado. 11  A  rt. 5o – [...[ 2) Cada um dos países da União terá, porém, a faculdade de adotar providências legislativas prevendo a concessão de licenças obrigatórias para prevenir os abusos que poderiam resultar do exercício do direito exclusivo conferido pela patente, como, por exemplo, a falta de exploração”. (CUP, 2014).

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atendessem adequadamente o mercado de exportação; e (ii) impossibilidade de concessão de Licença Compulsória em razão de um interesse público, ainda que não restasse caracterizado o abuso do direito. Em virtude dessa incompletude, o Acordo TRIPS, em inglês, Agreement on TradeRelated Aspects of Intellectual Property Rights12, trouxe importantes parâmetros para a matéria de abuso do direito de exploração da patente. O TRIPS não é uma lei uniforme, isto é, aquela que cria “um quadro normativo que se projete sobre os particulares e cuja realidade operacional possam estes, a todo momento, reclamar do poder público” (REZEK, 1984, apud BARBOSA, 2006, p. 8) e de aplicação imediata internamente, mas sim um conteúdo mínimo de normas relativas ao direito de propriedade intelectual que devem ser cumpridas pelos Estados membros da OMC e incorporadas ao direito interno. Assim, manteve-se, pelo menos na teoria, margem de normatização aos países para regulação do instituto da Licença Compulsória. Por isso, inclusive, serão abordados somente aspectos gerais relativos à normatização internacional, pois os requisitos de aplicação do instituto da Licença Compulsória serão examinados à luz dos normativos internos. O TRIPS prevê dentre as principais formas de Licença Compulsória, as concedidas nas seguintes hipóteses: (i) interesse público, prevendo expressamente como possíveis áreas de sua incidência as de saúde e nutrição pública; (ii) abuso de direito à exploração da patente; e (iii) abuso de poder econômico. Como nos lembra Denis Barbosa (2006, p. 6), no caso de licença compulsória concedida como forma de coibir o abuso de poder econômico, não caberá aplicação de todos os condicionantes previstos no TRIPS, pois o Estado tem o poder-dever de combater práticas anticompetitivas13. No tocante à obrigatoriedade de internalização da norma do TRIPS, vale ressaltar que a definição em concreto da margem de normatização, representou, na prática, o motivo de inúmeros questionamentos sobre a legislação interna regulamentadora da Licença Compulsória, principalmente nos Tribunais dos países 12 Acordo sobre Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio – ADPIC (tradução nossa). 13  P  ara um estudo mais detalhado de todos os requisitos internacionais para concessão da licença compulsória no âmbito do acordo TRIPS recomendamos a leitura dos artigos 30 e 31, que trazem condicionantes para o uso da patente sem autorização do titular. Assim como de seu artigo 8, que estabelece a possibilidade de os países que aderirem ao Acordo TRIPS possam internamente disciplinar a licença compulsória por interesse público. Revista Jurídica da Presidência

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em desenvolvimento. Vale destacar, a título exemplificativo, o caso do governo Sul-Africano retratado por Bréger. O autor destacou que em 1997, o governo Sul-Africano emitiu o Decreto de Controle de Medicamentos e Substâncias Correlatas, para combater a epidemia de AIDS, em que se permitiu que as autoridades recorressem a importações paralelas e expedissem licenças obrigatórias a fim de garantir o acesso a medicamentos genéricos menos caros. Esse decreto gerou questionamentos judiciais da Associação da Indústria Farmacêutica da África do Sul e de 39 multinacionais, o que acarretou na suspensão da nova lei por um longo tempo (BRÉGER, 2011). Ressalta-se que embora tenha existido essa suspensão, ao final, a lei foi declarada constitucional, pois os Ministros entenderam que as cláusulas do TRIPS deveriam ser interpretadas evolutivamente, à luz do objeto e da finalidade do Acordo, reduzir distorções e remover obstáculos ao livre comércio internacional, mas sem olvidar os objetivos de políticas públicas nacionais de desenvolvimento. Com receio de virem a ser punidos, diversos países em desenvolvimento resolveram realizar rodada de negociação na OMC para discussão da extensão do conteúdo dessas limitações no tocante à matéria de Saúde Pública, inclusive foi nessa Conferência que países africanos solicitaram esclarecimento sobre a Licença Compulsória com vista à aquisição de medicamentos genéricos no combate à Aids. A resposta a esse questionamento fundamental tentou ser obtida por meio da Declaração Ministerial sobre o Acordo TRIPS e a Saúde Pública. Nesse documento, ficou convencionado que o Acordo TRIPS não podia nem devia impedir que os Estados contratantes adotassem medidas com o objetivo de promover a Saúde Pública. Nesse sentido vale destacar trecho do item 5.1 da Declaração, que trata da liberdade dos Estados-membros na emissão de Licença Compulsória: Cada Membro tem o direito de conceder licenças compulsórias, bem como liberdade para determinar as bases em que tais licenças são concedidas. Cada Membro tem o direito de determinar o que constitui emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência, subentendendo-se que crises de saúde pública, inclusive relacionadas com o HIV/AIDS, com tuberculose, malária e outras epidemias, são passíveis de constituir emergência nacional ou circunstâncias de extrema urgência.(CUP, 2014).

No que se refere aos medicamentos genéricos, existiu uma polêmica de saber como países que não possuem capacidade para industrializar os produtos farmacêuticos poderiam obter medicamentos genéricos com a aplicação do instituto Revista Jurídica da Presidência

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da Licença Compulsória, sem ferir a letra “f” do artigo 31 do Acordo TRIPS (“esse uso será autorizado predominantemente para suprir o mercado interno do Membro que autorizou”). Ficou acordado que os Estados signatários do Acordo que não tinham condições de fabricar os medicamentos, ficariam autorizados a importar genéricos mais baratos fabricados ao amparo das Licenças Compulsórias de outros Estados contratantes. Como visto acima, a utilização do instituto de Licença Compulsória gera bastante controvérsias, por isso esse mecanismo é bastante contestado, principalmente em virtude da ineficácia diante dos Acordos bilaterais, utilizados pelos países industrializados, notadamente o que foi denominado de G7 farmacêutico, para manter seu domínio sobre os países menos desenvolvidos e estabelecer ampliação dos direitos patentários14. No entanto, não é adequado culpar esses países e criar uma situação de afastamento do capital privado, o que pioraria o desenvolvimento da economia dos países em desenvolvimento, por isso os condicionantes trazidos no Acordo TRIPS, devem servir de parâmetro para limitação da aplicação do instituto, e vistos como “a set of conditions that aim at protecting the private rights”, (CARVALHO, 2002, p. 238) ou, em uma tradução livre, como condições que visam à proteção dos direitos 14  C  omo nos lembra Brérger (2001, p. 156), esses acordos bilaterais, denominados de dispositivo TRIPS plus, conferem possibilidade de pressão externa para a instituição de proteção às descobertas farmacêuticas mais estrita do que aquelas dos acordos multilaterais. No Brasil muitos doutrinadores entendem que o instituto da patente pipeline, previsto nos artigos 230 e 231 da LPI, por meio do qual foram aceitos depósitos de patentes em campos tecnológicos não reconhecidos anteriormente, entre os quais o farmacêutico, sem a necessidade de respeito ao requisito da novidade, desde que existisse pedido de depósito de patente em outro país; seria uma espécie de dispositivo TRIPS plus, já que conferiu maior proteção à patente do que o próprio Acordo TRIPS. Muitos criticam o referido instiuto, inclusive o Procurador Geral da República impetrou Ação Direta de Inconstitucionalidade alegando que a patente pipeline viola diversos dispositivos constitucionais (ADI no 4.234). No sentido de identificar que a não utilização pelo Brasil de cláusulas criadas no TRIPS em benefício dos países em desenvolvimento, trouxe prejuízos, destacamos trecho da obra de Lia Hasenclever et al. (2010, p. 169): “A entrada em vigor da nova lei de propriedade industrial (Lei no 9.279/96) a partir de 1997 interrompeu de forma prematura esse processo de produção local [produção de medicamentos] ao não se valer do uso da prerrogativa do período de transição previsto no acordo TRIPS e também incluir a possibilidade do instituto da patente pipeline. Dentre os 19 ARVs fornecidos pelo Ministério da Saúde, oito não são protegidos por patentes e por isso são produzidos por laboratórios nacionais e públicos. Os demais são patenteados ou sujeitos à proteção patentária no Brasil [...]. Dentre estes, estão alguns que foram protegidos por meio do instituto da patente pipeline [...] Conincidentemente, a maioria dos medicamentos protegidos pelo instituto da patente pipeline foi alvo de problemas relacionados ao acesso, das mais diversas naturezas, em especial porque o governo ficou limitado à possibilidade de compra dos produtos de apenas uma empresa ofertante para cada um deles, a empresa detentora da patente”. Revista Jurídica da Presidência

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privados dos titulares da patente. Isso é fundamental ao equilíbrio tão almejado entre o direito à exploração da patente e o direito ao livre acesso ao medicamento. Nesse ponto destaca-se, por exemplo, a letra “a”, do artigo 31, que exige que o licenciado deve estar habilitado a produzir o medicamento, pois só assim será atingida a demanda que originou o licenciamento compulsório. A letra “b” do mesmo artigo também traz importantes parâmetros de aplicação, tais como necessidade de tentativa de negociação de licença voluntária, excetuado os casos de produção para atendimento de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou, ainda, no caso de uso público não comercial. Por meio disso, evita-se que o direito privado fruto de um investimento legítimo seja atingido por razões que não seja o pleno atendimento do interesse público. Já a letra “c”, deixa claro que a licença compulsória somente existirá enquanto a necessidade permanecer e naquele território específico 15. Também merece menção o fato da Licença Compulsória ser não exclusiva, inclusive para não impedir aquele que detém a tecnologia de utilizá-la. Já no que se refere à remuneração, defende Nuno Carvalho (2002, p. 247) que deve ser exatamente o montante atual ou potencial do que o licenciado pode extrair do mercado. A Licença Compulsória, para o Acordo TRIPS, em que apenas alguns dispositivos foram aqui redigidos, nada mais é do que uma restrição ao monopólio do titular da patente, que é obrigado a licenciar o invento patenteado, o qual será explorado por um terceiro, mas recebe uma compensação financeira em razão disso, conhecida como royalties (SILVA, 2008, p. 4340). Como visto, existe muita contestação em relação ao instituto do licenciamento 15  Dispõe assim o art. 31 do TRIPS: “Outro Uso sem Autorização do Titular – Quando a legislação de um Membro permite outro uso do objeto da patente sem a autorização de seu titular, inclusive o uso pelo Governo ou por terceiros autorizados pelo governo, as seguintes disposições serão respeitadas: a) a autorização desse uso será considerada com base no seu mérito individual; b) esse uso só poderá ser permitido se o usuário proposto tiver previamente buscado obter autorização do titular, em termos e condições comerciais razoáveis, e que esses esforços não tenham sido bem sucedidos num prazo razoável. Essa condição pode ser dispensada por um Membro em caso de emergência nacional ou outras circunstâncias de extrema urgência ou em casos de uso público não-comercial. No caso de uso público não-comercial, quando o Governo ou o contratante sabe ou tem base demonstrável para saber, sem proceder a uma busca, que uma patente vigente é ou será usada pelo ou para o Governo, o titular será prontamente informado; c) o alcance e a duração desse uso será restrito ao objetivo para o qual foi autorizado e, no caso de tecnologia de semicondutores, será apenas para uso público não-comercial ou para remediar um procedimento determinado como sendo anticompetitivo ou desleal após um processo administrativo ou judicial; d) esse uso será não-exclusivo.” (OMC, 1994),.

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compulsório, mas ainda que sua aplicação seja insuficiente, em virtude da dificuldade burocrática de sua aplicação, este é hoje o instrumento internacional que permite o combate ao abuso de direito ou de poder econômico que ocorra por meio do exercício do direito de patente, e, por isso, deve ser bem compreendido e aplicado, razão pela qual passamos a estudar seus requisitos e regras de aplicação no âmbito interno.

4.1 Regulamentação Interna A Lei no 9.279, de 14 de maio de 1996, também denominada de Lei de Propriedade Intelectual – LPI, estabelece, em conformidade com o TRIPS, as seguintes hipóteses de concessão de Licença Compulsória: (i) exercício abusivo dos direitos decorrentes da patente; (ii) prática de abuso de poder econômico por meio da patente; (iii) não exploração local do objeto da patente; (iv) comercialização insatisfatória; (v) dependência de patentes; e (vi) emergência nacional ou interesse público. Nesse trabalho serão estudadas as hipóteses de Licença Compulsória concedidas por abuso de direito, mais especificamente em virtude da cobrança de preços exorbitantes nos medicamentos e ainda concedida por interesse público, intimamente ligadas à garantia do direito à saúde.

4.1.1 Licença Compulsória por Abuso de Direito O abuso do direito ocorre quando alguém exerce o direito além dos limites legais ou diversamente de sua finalidade. Como nos lembra Gustavo Tepedino et al. (2004, p. 341), a categoria de abuso de direito surgiu para reprimir atos que violavam o espírito da lei, embora aparentemente fossem lícitos. O Código Civil atual, em seu art. 187, institucionalizou o abuso de direito, afirmando que “também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercêlo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes” (BRASIL, 2002). Para interpretarmos de forma

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correta o instituto devemos ter como diretriz o princípio da boa-fé objetiva16. Muito antes da vigência desse Código, a LPI já previa a possibilidade da concessão de Licença Compulsória em virtude do abuso do Direito, mas como a lei não traz uma definição legal para o que se caracteriza como abuso de direito, e tendo em vista que existe no país apenas um caso de Licença Compulsória, o caso do remédio Evafirez, concedida por interesse público, os parâmetros para buscar a caracterização do abuso no caso em concreto devem ser buscados na análise dos casos internacionais. Podemos citar como práticas já consideradas abusivas internacionalmente: a fixação de royalties excessivos para o licenciamento da patente; a subordinação do licenciamento da patente à aquisição de outros bens ou ao licenciamento de outra patente; a recusa ou obstaculização do acesso às fontes de insumo; a imposição de preço para a venda do produto; a interrupção ou redução em grande escala da produção do bem; e a imposição do mercado para a venda do produto (MITTELBACH, 2001, p. 5). Outro parâmetro será a própria boa-fé objetiva, isto é: verificando o que se espera da patente, sua principal finalidade, devemos verificar se o comportamento do titular dessa patente ao explorá-la é compatível com que objetivamente se espera dele, sob pena de configuração do abuso de direito. Como já visto anteriormente, a primeira finalidade da patente é a natureza de retribuição do inventor ou Agente Investidor que nos dizeres de Denis Barbosa (2006, p. 10), seria o fim mediato; a outra finalidade, fim imediato, seria a interesse social e o desenvolvimento tecnológico do país. Assim, a exploração da patente será adequada se garantir essas duas finalidades. O licenciamento por abuso de direito é concedido por decisão do INPI e para que a intervenção estatal não seja desproporcional existem requisitos que devem ser cumpridos, tais como a exigência de que quem solicita o licenciamento esteja apto a produzir o produto; ficando vedado o sublicenciamento. Importante requisito é o que a licença concedida será não exclusiva, pois isso estimula a produção do 16  Nesse sentido, o STJ já declarou ter se configurado abuso de direito por parte da entidade bancária a rescisão unilateral de contrato de conta-corrente sem justificativa. E no julgamento afirmou que deve-se aplicar o princípio da boa-fé objetiva como diretriz para configuração do abuso de direito, como pode-se extrair de trecho do voto do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, no RESP 1.277.762: “Mesmo analisando sob a ótica do direito contratual, tem-se configurado o abuso de direito pela rescisão unilateral no caso, haja vista que a liberdade contratual, segundo o Código Civil vigente, deve ser exercida em razão e nos limites da função social do contrato, respeitando-se os ditames éticos da boa-fé objetiva”. (BRASIL, 2013). Revista Jurídica da Presidência

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medicamento e a concorrência. Outro requisito, é o de que será necessária a tentativa de negociação prévia com o detentor da patente, o que muitas vezes é criticado, em virtude do poder de barganha das grandes transnacionais. Além disso, será fixada uma remuneração ao titular do direito de patente, como forma de mitigar a suspensão temporária de seu direito. No caso dos medicamentos, o preço excessivo de produtos pode ser um grande obstáculo à concretização do direito fundamental à saúde, por isso, caracterizado o abuso do direito, por meio do procedimento previsto na LPI, a Licença Compulsória deve ser concedida, principalmente quando esses medicamentos estiverem entre aqueles considerados essenciais para a Política Nacional de Medicamentos. Vale ressaltar que entendemos que a concessão de Licença Compulsória no tocante a medicamentos não incluídos nessa lista deve ser ainda mais restritiva, já que a inclusão na lista indica uma essencialidade grande, necessária para promover a suspensão de direitos do titular da patente. Em relação a essa espécie de Licença Compulsória pelo alto preço de medicamentos, alguns poderiam dizer que, com a criação da Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos pela Lei no 10.742, de 06 de outubro de 2003, teria se impossibilitado a aplicação do instituto, uma vez que o órgão controlaria a fixação do preço. No entanto, os parâmetros legais estipulados somente permitem um controle sobre o reajuste, e não uma fixação total do preço. Logo, em casos extremos, continuaria importante a possibilidade de aplicação do instituto face à caracterização do abuso de direito, já que continua sendo possível a fixação de preços exorbitantes de medicamentos. Além da questão relacionada à fixação de preço exorbitante do próprio medicamento, outra hipótese de caracterização de abuso seria a fixação de preços demasiadamente desproporcionais para concessão da licença, visto que isso, na prática, pode caracterizar-se como um impedimento ao desenvolvimento tecnológico e ao acesso aos medicamentos a população de baixa-renda. Nesse último caso, assim como no caso de fixação de preços exorbitantes dos medicamentos, a restrição ocorre porque influenciaria no preço do medicamento, podendo impedir, inclusive, a sua compra pelo Poder Público, que possui recursos escassos. A restrição ao desenvolvimento tecnológico ocorreria porque como a informação possui características especiais, já que para gerar conhecimento é necessário um prévio conhecimento; se a licença é extremamente cara, a informação contida na

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patente não terá sua utilização maximizada e, com isso, as novas descobertas ficariam prejudicadas, o que certamente impactaria no desenvolvimento tecnológico. Por fim, vale destacar que aqueles que são contra a concessão de Licença Compulsória por abuso de direito, alegam que uma intervenção drástica no direito de propriedade do titular da patente e a insegurança jurídica pela possibilidade de incidência do instituto, poderia gerar o desestímulo à inovação e a negação do melhor tratamento disponível no mercado internacional aos nacionais dos países em desenvolvimento, já que as empresas passariam a não investir nos territórios desses países e por isso o acesso aos medicamentos ficaria prejudicado. Contudo, como destaca Daniela Vanila Nakalski Benetti em sua tese de Doutorado, a realidade é que a concessão da Licença Compulsória tem estimulado a concorrência, e não retraído o desenvolvimento. É o que se extrai do seguinte trecho da citada tese: Os laboratórios farmacêuticos temem a licença compulsória, por considerarem prejudicial à inovação, por isso desejam total proteção via patente. No entanto, pesquisas recentes demonstram que as empresas se sentem mais motivadas a competir no mercado quando sofrem uma licença compulsória. Por exemplo, no Canadá de 1969 a 1983 a maioria dos pedidos de licença compulsória foi concedida e isto não afetou de forma significativa à inovação no pais, atribuído, em grande parte, pela relativa insignificância do mercado interno perante o mercado global de produtos farmacêuticos. (2008, p. 240).

Percebe-se, portanto, que o instituto da Licença Compulsória, além de reequilibrar o mercado, garantido concorrência e uma baixa de preços, o que possibilitaria o desenvolvimento econômico, na visão de Amartya Sen, por promover a liberdade de oportunidades aos indivíduos de baixa renda de usufruir dos medicamentos essenciais a sua saúde, também não fere a liberdade de mercado e o desenvolvimento tecnológico, até mesmo porque o titular da patente além de continuar explorando a patente da qual detém titularidade, também receberá uma indenização pela imposição de restrição ao seu direito. Ademais, com a maior concorrência no mercado, as indústrias investirão em outras estratégias de inovação para superarem as suas concorrentes.

4.1.2 Licença Compulsória por Emergência Nacional ou Interesse Público A Licença Compulsória por interesse público é a que mais suscita controvérsias, principalmente em virtude de ser interesse público um conceito indeterminado, bem

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como porque ela pode ser concedida de ofício pela Administração Pública. Na LPI, a sua regulamentação encontra-se no art. 71, que foi regulamentado pelo Decreto no 3.201, de 6 de outubro 1999, com redação alterada pelo Decreto no 4.830, de 04 de setembro de 200317. Cabe ao Ministro do Estado, com a atribuição para atuar na área afeta à matéria, declarar a situação de emergência ou de interesse público. Se constatado que o titular da patente não pode atender as necessidades descritas, poderá ser concedida a Licença Compulsória de ofício pelo Ministro, por ato a ser publicado no Diário Oficial. A licença concedida será não exclusiva e o ato de concessão estabelecerá o prazo de vigência da licença e a remuneração do titular, que deverá levar em conta as circunstâncias econômicas e mercadológicas relevantes, o preço de produtos similares e o valor econômico da autorização. Nesses casos, a licença será sempre concedida para uso público e não comercial. A exploração da licença pode ser feita diretamente pelo poder público, por terceiros devidamente contratados ou conveniados. Em relação a esses terceiros, o contrato poderá ocorrer por meio do instituto da Parceria de Desenvolvimento Produtivo, por isso esse instituto pode ser complementar ao instituto da Licença Compulsória. Como pode ser extraído das exposições acima, percebe-se que essa hipótese de licença caracteriza-se como exercício de domínio estatal eminente sobre o direito de propriedade. A maior dificuldade de aplicação desse instituto, contudo, está nos conceitos jurídicos indeterminados emergência nacional e interesse público. A lei esclarece um pouco a matéria, afirmando entender-se por emergência nacional o iminente perigo público, ainda que apenas em parte do território nacional; e por interesse público, os fatos relacionados, dentre outros, à saúde pública, à nutrição, à defesa do meio ambiente, bem como aqueles de primordial importância para o desenvolvimento tecnológico ou socioeconômico do País. Mostrando que esse instrumento é eficaz e útil, podemos citar no Brasil, o caso do medicamento Efavirenz. Após uma intensa negociação com o laboratório Merck Sharp & Dohme, titular da patente, o Presidente da República editou o Decreto no 6.108, de 4 de maio de 2007, concedendo o licenciamento compulsório, por interesse público de patentes referentes ao Efavirenz, para fins de uso público não comercial, pois a Lei no 9.313, de 13de novembro de 1996 tornou obrigatória a distribuição 17  “Art. 71. - Nos casos de emergência nacional ou interesse público, declarados em ato do Poder Executivo Federal, desde que o titular da patente ou seu licenciado não atenda a essa necessidade, poderá ser concedida, de ofício, licença compulsória, temporária e não exclusiva, para a exploração da patente, sem prejuízo dos direitos do respectivo titular” (BRASIL, 1996). Revista Jurídica da Presidência

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de medicamentos antirretrovirais pelo SUS, em virtude da forte epidemia de Aids. No entanto, as autoridades sustentavam que o alto custo do medicamento estaria ameaçando a sustentabilidade do Programa Nacional de Combate às Doenças Sexualmente Transmissíveis. Segundo dados de Juana Kweitel e Renata Reis: o sucesso da politica de distribuição universal pode ser demonstrado em números: entre 1997 e 2004, a mortalidade foi reduzida em 40% e a morbidade em 70%; e a redução das internações hospitalares e do tempo médio de internação hospitalar foi de 80%, o que foi avaliado numa economia da ordem de US$ 2,3 bilhões com gastos hospitalares. Destaca-se ainda a redução significativa dos preços dos medicamentos ARVs com o incremento da produção local. (2007, p. 155).

Observa-se que a remuneração concedida ao laboratório foi considerada correta em relação aos padrões internacionais, motivo pelo qual apesar da objeção do laboratório, não houve irregularidade por parte do Brasil (VIEIRA, 2011). Assim, percebe-se que, nesse caso, a concessão de Licença Compulsória mostrou-se fundamental para proporcionar o acesso universal e igualitário à saúde, sem que houvesse interdição ilegítima no direito de propriedade. É de se notar, então, que apesar de não se mostrar perfeito, esse instituto quando corretamente implementado é um importante instrumento de concretização de direitos fundamentais e de desenvolvimento da tecnologia nacional, proporcionando o desenvolvimento econômico pleno, na visão de Amartya Sen.

5 Parceria de Desenvolvimento Produtivo Como forma complementar ao instituto da Licença Compulsória, com intuito de promover a inovação e o desenvolvimento tecnológico e, em especial na área da saúde garantir o acesso universal e igualitário aos medicamentos foi previsto no ordenamento jurídico o instituto da Parceria de Desenvolvimento Produtivo – PDP. A Licença Compulsória, apesar de sua utilidade, não é suficiente para suprir a necessidade de acesso ao medicamento, pois sua concessão na maioria das vezes não garante a transferência tecnológica e como mecanismo de concretização do interesse público configura-se invasivo, pois por meio dele o Estado atua com seu poder de império para limitar, ainda que legitimamente, o exercício do direito de exploração da patente. Por isso, é necessário o fomento de institutos que promovam à produção nacional de medicamentos, ao possibilitar a incorporação da tecnologia

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por empresas nacionais. Na linha de que o fomento à produção nacional deve ser prioridade na área da saúde, vale transcrever trecho da obra de Daniela Benetti: A questão que necessita ser debatida é saber de que forma o governo a partir de seu código específico de comunicação política (governantes e governados) pretende direcionar as políticas públicas sanitárias. Ele pode optar somente pela negociação dos preços dos medicamentos com os respectivos fabricantes para se adequar à realidade orçamentária brasileira (via licença voluntária) ou pode adotar práticas políticas direcionadas a autonomização e potencialização nacional para a produção de medicamentos. A licença compulsória dos antirretrovirais na perspectiva do governo brasileiro deve ser utilizada naqueles medicamentos que mais impactam o orçamento do Ministério da Saúde. Todavia, se os Estados em desenvolvimento, como o Brasil, não se potencializarem e se tornarem autônomos na produção de medicamentos essenciais, vão continuar na dependência da indústria farmacêutica estrangeira, pois a mutação viral é muito rápida fazendo determinado medicamento existente não atenda às necessidades da doença. (2008, p. 251).

Assim, o desenvolvimento de laboratórios nacionais, por meio de parcerias público privadas deve ser fomentado, para que seja possível a celebração de acordo de cooperação técnica para a transferência de tecnologia. Em 2002, por exemplo, o governo brasileiro iniciou negociações para a produção nacional de princípios ativos e antirretrovirais, como forma de possibilitar a exploração complementar já concedida pela Licença Compulsória. Nessa linha de atuação, dentro do Plano Brasil Maior, com a intenção de fortalecer a indústria nacional carboquímica e de medicamentos, o Ministério da Saúde lançou as PDP, por meio da Portaria no 837, de 18 de abril de 2012. Como define a portaria, as PDP são parcerias realizadas entre instituições públicas e entidades privadas com vistas ao acesso de tecnologias prioritárias, à redução da vulnerabilidade do SUS a longo prazo e à racionalização e redução de preços de produtos estratégicos para a saúde, com o comprometimento de internalizar e desenvolver novas tecnologias estratégicas e de valor agregado elevado. Segundo notícia publicada em 26 de setembro de 2014 no site da Presidência da República, o Ministério da Saúde contava, naquela data, com 104 PDP, envolvendo 19

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laboratórios públicos e 57 privados, gerando uma economia de R$ 4,1 bilhão por ano18. Essas parcerias ocorrem da seguinte forma: durante o período de transferência de tecnologia pelo parceiro público (produção do medicamento em grande escala), quem abastece o SUS é o parceiro privado, após o laboratório nacional produzirá o medicamento a preço mais acessível. Essas parcerias, em virtude de sua complexidade, por envolverem transferência de tecnologia, são também regulamentadas pela Lei de Inovação e, em regra, não são precedidas de licitação. Essa dispensabilidade de licitações tem causado alguns questionamentos, o que não merece guarita, conforme já defendido, dentre outros, por Sundfeld (2013, p. 101). A complexidade e especificidades dessas operações fazem com que a Lei de Licitações não seja de aplicação adequada ao caso, mesmo no tocante a etapa de aquisição temporária de medicamentos, pois a transferência de tecnologia somente pode ocorrer com parceiros específicos, na maioria dos casos. Contudo, a fiscalização no resultado dessas parcerias é de fundamental importância, principalmente no tocante à eficiência da transferência da tecnologia, pois, caso contrário, a finalidade da parceria poderá ser desvirtuada. Para melhor delimitar essas parcerias, então, recentemente, foi editada pelo Ministro de Estado da Saúde a Portaria no 2.531, de 12 de novembro de 2014, considerada um novo marco regulatório para o instituto. A nova Portaria detalha de forma mais elaborada o procedimento de estabelecimento de parcerias, com requisitos mais objetivos, o que garante maior segurança jurídica na aplicação do instituto e possibilita um controle maior das atividades. Percebe-se então, que a iniciativa de promover a integração entre os setores públicos e privados mostra-se louvável, já que a relação de parceria é vista como forma de estimular a cooperação, atitude comportamental mais eficiente, como já defendido por Robert Axelrod (2014, p. 157-177); bem como por possibilitar o acesso a medicamentos e o investimento em doenças negligenciadas, que normalmente não seriam objeto de investimento pelo capital provado, em virtude de sua baixa lucratividade. Assim, a PDP pode ser vista como um importante instituto do equilíbrio entre o direito à exploração da patente e o direito à saúde, principalmente ao permitir o diálogo entre o titular da patente e as entidades nacionais.

18  A  notícia pode ser encontrada através do link . Acesso em 5 set. 2015. Revista Jurídica da Presidência

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6 Conclusão Ao longo do trabalho podemos verificar que o dever constitucional do Estado de proporcionar o acesso universal e igualitário à saúde apresenta inúmeros desafios, dos quais se destaca o de equilibrar o direito dos grandes investidores em inovação em explorar a patente de medicamentos, sem deixar que o acesso à saúde seja garantido de forma igualitária; objetivo que, como pode ser observado, é essencial para o desenvolvimento econômico pleno, na visão de Amartya Sen. Como visto, o direito à exploração da patente só merece a proteção do ordenamento jurídico se respeitada a função econômica e social, consistente na justa remuneração do investidor e na promoção do desenvolvimento tecnológico e do interesse social. Essas questões tornam-se mais delicadas por caracterizar-se o direito à saúde como direito fundamental, um dos seus aspectos é o acesso universal e igualitário, o que faz com que a relação entre o direito de exploração do resultado da atividade inventiva na área da saúde por vezes afete valores sociais, como o direito ao acesso aos medicamentos. A Licença Compulsória objetiva atuar quando não cumpridos os objetivos de proteção do interesse social e de novas tecnologias, mas também não deve ser aplicado de forma irrestrita, vez que a exploração da patente é de vital importância para garantir o investimento legítimo do Agente Inovador, fundamental para ao desenvolvimento tecnológico. Contudo, como observamos, tanto no caso da sua concessão por abuso de direito, como no caso de interesse público, os condicionantes da Lei já possibilitam que o investidor seja devidamente remunerado pela supressão da exclusividade na exploração da atividade inventiva; e a sua concessão é importante para impor competividade ao mercado de produção de medicamentos, o que é de extrema importância para garantia do acesso ao medicamento de forma igualitária, funcionando, portanto, esse instituto, como peça de reequilíbrio da relação existente entre direito à exploração da patente e de acesso à medicamentos. Assim como a Licença Compulsória, a aplicação do instituto da Parceria de Desenvolvimento Produtivo, ao permitir a comunhão de esforços entre o setor público e o privado, com intuito de fomentar a produção nacional de medicamentos e incorporação de novas tecnologias, deve ser estimulada, desde que executada com regras objetivas e transparentes. Somente com estímulo à produção nacional de medicamentos, o Brasil conseguirá alcançar a sua independência tecnológica, mas isso só é possível com instrumentos que sejam aptos a proporcionar a real Revista Jurídica da Presidência

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transferência de tecnologia, o que é facilitado na parceria público-privada produzida na PDP. Apesar da relrevância dos referidos institutos, somente a prática e a conscientização das autoridades da importância da influência do Sistema de Patentes no mercado de acesso ao medicamentos, poderá garantir a sua efetiva utilização na garantia do equilíbrio entre o direito à exploração da patente e o direito de acesso a medicamentos. Contudo, o uso desses institutos, por proporcionarem a intervenção estatal na propriedade, devem ser aplicados em casos extremamente relevantes, como a questão das grandes epidemias e das doenças negligenciadas. Concluímos, então, entendendo que tanto a Licença Compulsória como a Parceria de Desenvolvimento Produtivo mostram-se necessárias no nosso ordenamento e a sua eficácia depende, unicamente, daqueles que os operacionalizam, bem como que nem o direito de patente pode ser ignorado, pois isso seria uma perda lastimável para economia de qualquer país, e também para a própria coletividade, nem podem ser ignorados os anseios da coletividade por um amplo acesso à saúde. O que se deve sempre ter como estratégia é a manuteão do equilíbrio do sistema, o que é um enorme e constante desafio.

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Direito dos povos indígenas: das teorias antropológicas evolucionistas à formação do Estado-Nação MELISSA VOLPATO CURI Pós-Doutoranda (CDS/UnB) com bolsa Capes. Doutora em Antropologia (PUCSP). Mestre em Geociência (Unicamp). Graduada em Direito (Universidade Mackenzie). Artigo recebido em 24/08/2014 e aprovado em 16/03/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A formação do pensamento jurídico ocidental sobre os direitos indígenas 3 A formação do Estado Nacional e o direito monista 4 Conclusão 5 Referências.

RESUMO: O artigo tem como objetivo analisar a construção ideológica do pensamento ocidental a respeito dos indígenas e de seus direitos para que seja possível construir valores baseados no respeito à alteridade dos povos indígenas. Influenciado pelas teorias antropológicas evolucionistas e pela proposta de controle territorial para formação do Estado nacional, o direito ocidental desconsiderou os direitos próprios dos povos indígenas e instituiu um modelo de normas generalizado e descontextualizado da realidade desses inúmeros povos que vivem no país. A partir dessa análise, a pesquisa, baseada em referências bibliográficas, propõe-se a evidenciar os valores etnocêntricos instituídos ao longo da história, que serviram, dentre outros, para orientar a relação do Estado e da sociedade envolvente com os povos originários. Nesse contexto, pode-se afirmar que o respeito à diversidade cultural assegurada pela atual Constituição Federal depende de um reconhecimento por parte do Estado de que cada sociedade possui a sua forma própria de organização social e de instituição de regras. PALAVRAS-CHAVE: Direitos Indígenas Teorias Evolucionistas Monismo Jurídico Pluralismo Jurídico.

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Indigenous law: from the evolutionary theories to the formation of the State CONTENTS: 1 Introduction 2 The formation of the western legal thought about indigenous rights 3 The formation of national State and legal monism 4 Conclusion 5 References.

ABSTRACT: The article analyzes the ideological construction of western thought about the indigenous peoples and their rights, and intends to build values ​​based on respect for the otherness of indigenous peoples. Influenced by evolutionary anthropological theories and by the proposal of territorial control for formation of the national state, the western law disregarded the rights of indigenous peoples and established a model of generalized and decontextualized rules about the reality of those traditional peoples who inhabit the country. From this analysis, the research, which is based on references, proposes to highlight the ethnocentric values established throughout history, which served, among others, to guide the relationship between the State and the surrounding society with the native peoples. In this context, it can be said that respect for cultural diversity provided by the Federal Constitution depends on a recognition by the state that each society has its own social organization structure and rules of the institution. KEYWORDS: Indigenous Rights Evolutionist theories Legal Monism Legal Pluralism.

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Derecho de los pueblos indígenas: de la teoría de la evolución a la formación de lo Estado-nación CONTENIDO: 1 Introducción 2 La formación del pensamiento jurídico occidental sobre los derechos indígenas 3 La formación del Estado Nacional y el monismo jurídico 4 Conclusión 5 Referencias.

RESUMEN: El artículo tiene como objetivo analizar la construcción ideológica del pensamiento occidental acerca de los pueblos indígenas y sus derechos, por lo que se puede construir valores basados ​​en el respeto a la alteridad de los pueblos indígenas. Influenciado por las teorías antropológicas evolutivos y propuesta de control territorial para la formación del Estado nacional, la ley occidental no tuvo en cuenta los derechos de los propios pueblos indígenas y estableció un modelo de reglas generalizadas y descontextualizadas sobre la realidad de diversos pueblos que viven en el país. A partir de este análisis, la investigación, basada en referencias, tiene la intención de mostrar los valores etnocéntricos establecidos a lo largo de la historia, que sirvieron, entre otras, para guiar la relación entre el Estado y la sociedad que lo rodea con los pueblos nativos. En este contexto, se puede decir que el respeto de la diversidad cultural prevista por la Constitución Federal depende de un reconocimiento por parte del Estado que cada sociedad tiene su propia forma de organización social y las normas de la institución. PALABRAS CLAVE: Derechos Indígenas Teorías Evolucionistas Monismo Jurídico Pluralismo Jurídico.

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1 Introdução

S

egundo a Fundação Nacional do Índio – Funai, com base em dados de 2009, vivem hoje no Brasil 565.335 indígenas, distribuídos em 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Esse dado populacional considera apenas os indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além desses, existem entre 100 e 190 mil vivendo fora de terras indígenas. Para o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE (2010), a população indígena vivendo nas áreas indígenas e em contextos urbanos está estimada em 818 mil habitantes. Além dos números já registrados, existem também os grupos que estão requerendo junto à Funai o reconhecimento da sua condição de indígenas e a estimativa de aproximadamente 69 grupos que ainda não estabeleceram nenhuma forma de contato com a sociedade dominante (FUNAI, 2013). Embora a população indígena tenha aumentado nos últimos cinquenta anos, vale ressaltar que, diferente de outros países sul-americanos, como Peru, Bolívia e Equador, cuja população indígena é muito numerosa, no Brasil registra-se a menor população indígena das Américas (RAMOS, 2004). De modo geral, as ideias que permeiam o imaginário brasileiro em relação aos povos indígenas estão fundadas em concepções preconceituosas e etnocêntricas. Como ensina Ramos (2004), o índio bom é aquele índio remoto, que como primeiro habitante do país teria se esforçado para fertilizar o que hoje chamamos de nação brasileira. Desde o período colonial até os dias atuais, também constam nesse imaginário posicionamentos ambivalentes em relação aos povos indígenas. De um lado, a ideia de que os índios representam tudo o que o país deve se orgulhar, como natureza exuberante, ingenuidade, afabilidade e vivacidade, de outro, a postura de que os indígenas impedem o país de alcançar o seu pleno desenvolvimento político, social e econômico (RAMOS, 2004). A falta de dimensão sobre a representação indígena no território nacional se expressa também pela forma homogênea como são tratados pelo Estado. Apesar de os órgãos oficiais relatarem números que expressam a diversidade desses povos, não há um tratamento jurídico específico que atenda à diversidade de cada grupo. Computam-se mais de duzentas sociedades indígenas, que falam cerca de 180

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línguas diferentes (FUNAI, 2013)1, ou seja, há uma diversidade cultural enorme entre os próprios povos indígenas. Cada etnia possui a sua própria estrutura linguística, seu modo de vida e seu sistema jurídico para organizar sua sociedade. Há também diversidade em relação ao contato desses povos com a sociedade envolvente – desde aqueles que nunca tiveram nenhuma forma de contato, até os que mantêm intensas relações. A sociedade nacional, com seu ordenamento jurídico de Estado – único, homogêneo, escrito – não alcança as inúmeras sociedades indígenas existentes no país. Essas, com seus direitos específicos e independentes uns dos outros, estão fundamentadas em seus próprios costumes, em bases não escritas e que assumem uma lógica jurídica completamente diferente da ocidental. Diante do contraponto, o Direito estatal brasileiro se coloca de forma autoritária, paternalista e generalista frente às diversidades étnicas. Não só desconsidera o direito indígena propriamente dito como uma forma legítima de juridicidade, como não reconhece as diferenças dos sistemas jurídicos existentes em cada uma dessas etnias. A relação impositiva do Estado para com os povos indígenas resulta numa ausência de comunicação e coloca em questão a legitimidade e a eficácia das normas jurídicas desses diferentes direitos. O Estado não legitima de fato os direitos indígenas, limitando-se a criar um Direito para os povos indígenas. Para o Estado, o alcance e a eficácia das normas jurídicas das sociedades indígenas estão limitados: 1) ao espaço territorial que uma sociedade indígena ocupa; 2) aos componentes da sociedade indígena considerada e, excepcionalmente, aos sujeitos de outras sociedades que ingressam no seu espaço de jurisdição; e 3) ao espaço jurídico delimitado e reconhecido pelo Direito estatal como passível de jurisdição própria da sociedade indígena (BARBOSA, 2001). Já para os povos indígenas, o reconhecimento do direito estatal ocorre quando esse sistema imposto tem alguma ressonância com o que a sociedade reconhece por Direito. Quando não há esse reconhecimento por parte da sociedade indígena, o ordenamento jurídico da sociedade dominante se torna ilegítimo, visto que não houve participação da sociedade na elaboração e execução desse Direito. O que será legítimo para cada povo indígena será o seu próprio Direito, ou seja, os códigos internos que regem seus sistemas político, econômico e social.

1 Segundo a Funai (2009), há 500 anos, cerca de 1.300 línguas indígenas eram faladas em território nacional. Revista Jurídica da Presidência

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O conflito se estabelece não pela existência de um pluralismo jurídico, mas pelo intercruzamento de valores diversos. Em maior ou menor grau, os direitos indígenas entram em contato com o direito estatal e o ponto de tensão se estabelece pela incomunicabilidade. Questões de direitos de propriedade, direitos de família, práticas tradicionais etc. são constantemente evidenciadas sem uma análise ampliada da realidade, ou seja, sem uma abertura para outras possibilidades e compreensões diferentes daquelas já impostas e preconizadas pela sociedade ocidental. A construção do pensamento jurídico predominante em relação aos povos indígenas advém do histórico processo de desenvolvimento científico na sociedade ocidental. As teorias biológicas e antropológicas sobre o evolucionismo penetraram em diversas áreas dos saberes e foram usadas, nas mais diversas vezes, para legitimar interesses econômicos de países que pretendiam subjugar outras culturas. O Direito ocidental, ao fundar-se no evolucionismo unilinear, tende a considerar, ainda hoje, as sociedades humanas como um conjunto coerente, unitário, submetido a leis de transformações globais e genéricas, que regeriam todas as sociedades em fases idênticas no seu conteúdo e em sua sucessão (ROULAND, 1990). Para que seja possível fazer uma análise histórica da construção dos valores ocidentais a respeito dos povos indígenas, o artigo tem como objetivo demonstrar como as teorias antropológicas evolucionistas, que tratavam os povos originários como povos inferiores ou primitivos na escala de evolução do desenvolvimento da humanidade, e como a formação do Estado nacional influenciaram na relação do Estado com os povos indígenas e, consequentemente, na criação de normas relacionadas a essa parcela da população. A metodologia utilizada foi a pesquisa teórica, baseada em levantamento bibliográfico realizado em livros e periódicos e em pesquisas realizadas em sites especializados. Vale ressaltar que o presente estudo faz parte da pesquisa de Doutorado da autora que, com o objetivo de ampliar as análises sobre os direitos dos povos indígenas, transitou entre duas áreas do conhecimento: a Antropologia e o Direito, que já se apresentam, atualmente, consolidados como uma nova disciplina, a Antropologia Jurídica. Essa, que tem muito a contribuir com a análise de contextualização das normas e com a proposta de defesa da diversidade cultural por meio do reconhecimento do pluralismo jurídico, pode ser um caminho para a construção de novos valores e de um outro olhar sobre as comunidades indígenas.

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2 A formação do pensamento jurídico ocidental sobre os direitos indígenas O ordenamento jurídico brasileiro foi formulado e sustentado com base na perspectiva ocidental sobre a noção de Direito. Privilegia-se uma única forma de valorizar a cultura e, por esse prisma, determina-se o que é o Direito e como as sociedades devem se portar diante desses conceitos. Apesar das transformações das ciências antropológicas e sociológicas a respeito das noções de cultura e sociedade, o Direito ocidental, diante do seu formalismo, mantém conceitos ultrapassados e insiste em fragmentar o conhecimento para garantir sua pretensa consistência sobre o certo e o errado. Como ensina Rouland (1990), os juristas das sociedades ocidentais, graças à sua formação baseada na interpretação quase exclusiva do sistema jurídico dessas sociedades, acabam trabalhando unicamente com o seu próprio sistema jurídico, ignorando, na maioria das vezes, as distinções dos diferentes ordenamentos legais, levando-os a confundir o Direito com o seu Direito. Para compreendermos a formação do pensamento jurídico ocidental em relação aos direitos indígenas, precisamos analisar as teorias antropológicas formadas há pouco mais de um século e suas influências sobre a ciência do Direito. Faz-se necessário verificar as correntes doutrinárias das quais os juristas ocidentais se apropriaram e porque não acompanharam as inovações trazidas pela antropologia social e cultural. A antropologia pode ser entendida como um estudo sistemático de culturas diferentes da do pesquisador e, embora seja uma disciplina muito antiga, como ciência, surgiu há pouco mais de um século (SHIRLEY, 1987). Seu desenvolvimento ocorreu como um subproduto do expansionismo da Europa imperial do século XIX. Os países imperialistas, querendo expandir suas fronteiras políticas e econômicas, buscaram conhecer os costumes dos povos que seriam subjugados para melhor elaborar suas estratégias de dominação. Muitos estudos antropológicos da época foram realizados abertamente a serviço do governo imperial. Quanto mais conhecimento sobre esses povos, mais chances teriam de controlá-los e de aproveitar as riquezas dessas terras (ROULAND, 1990). Nesse período, portanto, como ressalta Villas Bôas Filho (2007), a antropologia, além de ser considerada valioso instrumento para legitimar a expansão imperialista no âmbito das próprias potências europeias, servia como ferramenta de consolidação da dominação imperial nos contextos coloniais. O Estado-Nação operava como uma máquina de produção de outros, Revista Jurídica da Presidência

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considerando o africano, o ameríndio e o oriental como o contraponto negativo da identidade europeia. “O sujeito colonizado surge, no imaginário europeu, como uma espécie de amálgama indefinido composto de tudo aquilo que, em geral, se opõe à civilização” (VILLAS BÔAS FILHO, 2007, p. 336). Nesse contexto, a teoria evolucionista serviu perfeitamente aos ideais imperialistas, pois justificava o avanço da fronteira dos países dominadores como uma salvação para os povos que seriam por eles dominados. Ou seja, o ocidente civilizado supostamente tiraria esses povos do atraso e do primitivismo cultural em que viviam. Segundo Rouland (1990), o evolucionismo nasceu no século XVIII e esteve, num primeiro momento, impregnado do mito do bom selvagem, que colocava os primitivos como testemunhas do paraíso perdido e como imagem do que teriam sido os ocidentais em tempos passados. A partir do século XIX, com a segunda grande fase das colonizações ocidentais, os conceitos evolucionistas se tornaram mais endurecidos, criando-se assim a ideia de que a colonização seria um bem aos povos denominados primitivos, pois os ajudaria a sair de sua lentidão evolutiva. Podemos identificar duas espécies de evolucionismo: o evolucionismo unilinear e o evolucionismo multilinear. O primeiro defendia que todas as sociedades passariam pelos mesmos estágios de desenvolvimento, enquanto o segundo, reconhecendo a complexidade e o tempo próprio de evolução de cada sociedade, defendia que o processo evolutivo não estava restrito a seguir etapas previamente estabelecidas. Para os cientistas que se baseavam no evolucionismo unilinear, as sociedades tradicionais viviam em um estado atrasado do desenvolvimento da humanidade. Seria como se estivessem ainda na infância das sociedades ditas civilizadas. Para essas sociedades atrasadas, a evolução só ocorreria quando houvesse uma passagem progressiva de um estado de homogeneidade para heterogeneidade, ou seja, quando seus sistemas institucionais se tornassem mais complexos. O evolucionismo, nessa perspectiva, definia estágios de desenvolvimento pelos quais deveriam passar todas as sociedades. Para alguns autores, os períodos eram definidos em três grandes etapas: selvageria, barbárie e civilização. Outros introduziram as sequências: selvageria, submissão e liberdade; caçadores, criadores, agricultores, ou ainda, animistas, politeístas, monoteístas. Morgan, na introdução de seu livro Ancient Society, apresenta vigorosamente a tese evolucionista nos termos de selvageria-barbárie-civilização: Como é incontestável que partes da família humana viveram em estado de selvageria, outras em estado de barbárie e, outras ainda num estado de

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349 civilização, é igualmente incontestável que estas três condições distintas estão ligadas umas às outras por uma sequência de progresso natural e necessária. Além disso, as condições pelas quais todo progresso se realiza, e a passagem comprovada de vários ramos da família humana por duas ou mais dessas condições, tornam provável que esta sequência tenha sido historicamente verdadeira para toda a família, até o estado atingido respectivamente por cada um dos seus ramos. (MORGAN, 1996, p. 7).

Como relata Mercier (1974), anos antes de Morgan, outro teórico do evolucionismo, Edward Tylor, em seu livro Primitive Culture, dizia que uma das tarefas dos antropólogos era estabelecer, grosso modo, uma escala de civilização. Para tanto, as nações europeias eram colocadas no ápice das séries sociais e noutro as tribos selvagens, dispondo as demais sociedades humanas entre os dois limites. Dizia ainda que as instituições humanas eram estratificadas e que se sucediam em séries substancialmente uniformes por todo o globo, independentemente de diferenças de raça, cultura e linguagem. Nesse sentido, a natureza humana semelhante modelava as diferenças, atuando por meio das condições sucessivamente mutáveis da vida selvagem, bárbara e civilizada. Tylor procurou também enfocar o descompasso entre configurações culturais avançadas e atrasadas presentes em uma mesma sociedade. Dentro de uma linha de continuidade do processo civilizatório, referidas configurações culturais se apresentavam como sobrevivências, ou seja, como conteúdos antigos de cultura que estão em um estágio temporal avançado em relação à sua origem. Os resquícios deixados eram as provas de que uma dada sociedade teria evoluído de uma condição cultural mais antiga para outra mais recente (TYLOR, 1871 apud CASTRO, 2005). Seguindo a mesma perspectiva de Morgan e Tylor, James Frazer fez um estudo das sociedades humanas, com base em uma análise temporal comparada. Frazer buscou uma relação de causalidade entre estágios passados da vida humana e estágios presentes, entre os primórdios e os dias atuais. Assim como Morgan, definia o primeiro estágio da humanidade como o da selvageria (FRAZER, 1908 apud CASTRO, 2005). Outro teórico que retrata esse período, segundo Mercier (1974), é Gustav Klemm. Para este autor as fases de desenvolvimento das sociedades humanas dividiam-se em: selvageria, submissão e liberdade. Entre a primeira e a segunda fase as diferenças são de ordem técnica e econômica – depois da colheita, segue-se a domesticação de animais e a agricultura. Na ordem social, depois da horda, surge a tribo, reconhecendo a autoridade de chefes de caráter sacerdotal. Na segunda fase surge a escrita, mas somente na terceira fase é que o homem poderá explorar as

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aquisições obtidas nas fases anteriores, pois a expansão da sua capacidade inventiva dar-se-á com a secularização da autoridade. Como ensina Rouland (1990), no campo jurídico, o evolucionismo, de modo geral, promoveu a separação do Direito da Moral, transferindo progressivamente a origem do grupo social (costume) para o Estado (lei) e substituindo a vingança pela pena. A primeira forma de sanção (vingança) era considerada o modo primitivo de punição, pois as partes resolviam seus conflitos por conta própria. A evolução desse estado seria a pena, a sanção considerada civilizada, pois aqui apareceria um aparelho especializado, a mediação de um terceiro (juiz, mediador, conciliador, árbitro), que estaria investido de poder para representar a sociedade. Se fizermos um recorte dessas teorias para a realidade do sistema jurídico brasileiro, perceberemos claramente a influência que recebemos desses conceitos. A ideia que advém desde o período colonial sobre os povos indígenas é da existência de povos bárbaros (silvícolas), considerados inferiores moral e socialmente. Sociedades na infância, denominadas relativamente incapazes e que, portanto, precisariam da tutela jurisdicional. À medida que fossem assimilados pela sociedade envolvente, esses povos atingiriam a maioridade, tornando-se, assim, civilizados. O Estatuto do Índio, criado em 19732, demonstra bem essa perspectiva da legislação – a promoção da integração progressiva dos povos indígenas na sociedade civilizada, supondo ser esse o caminho natural dos acontecimentos: o desenvolvimento de uma sociedade em estágio primitivo para o estágio de civilidade. Uma das principais críticas metodológicas que se faz ao evolucionismo unilinear é a escassa realização de pesquisa de campo por parte dos seus estudiosos. Essas teorias foram formuladas sobretudo com base em dados de informantes (relatos de viajantes, missionários, funcionários coloniais etc.), que refletiam, provavelmente, muito mais os preconceitos do observador do que a realidade dos povos tradicionais (ROULAND, 1990). No fim do século XIX, Franz-Boas (1858-1942) denuncia os antropólogos de gabinete e as lacunas de seus trabalhos. Boas se opõe ao universalismo evolucionista e defende que a diversidade entre as sociedades é maior que suas similitudes. A necessidade da realização de pesquisas de campo também foi defendida por outros 2 Vale ressaltar que com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que reconhece aos indígenas sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições (art. 231), a perspectiva integracionista, pelo menos no campo formal, está superada. Os dispositivos do Estatuto do Índio (Lei no 6.001, de 19 de dezembro de 1973) que ainda permanecem vigentes são aqueles que não contrariam os preceitos constitucionais. Revista Jurídica da Presidência

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antropólogos conhecidos, como Bronislaw Malinowski e Radcliffe-Brown. Para eles, a pesquisa empírica era o modo mais seguro e próximo da realidade para relatar um povo e sua cultura. Pode-se dizer que os questionamentos mais usuais dirigidos aos evolucionistas do século XIX são: a característica de serem altamente etnocêntricos, visto que presumiam que a sua civilização, nas palavras de Kaplan (1975), representava o maior empreendimento da humanidade, e o fato de fundamentarem suas teorias em reconstruções lógicas baseadas em dados questionáveis. No entanto, segundo Kaplan (1975), faz-se necessário considerar o momento histórico em que esses teóricos estavam inseridos e a ideia de que as explicações evolucionistas estavam mais preocupadas com a história do homem do que com o desenvolvimento de sociedades e culturas específicas. Os evolucionistas do século XIX se esforçavam para estabelecer um estudo naturalista dos fenômenos culturais, ou seja, buscavam explicações racionais e não mais religiosas para a origem e desenvolvimento do homem. E, nesse aspecto, pode-se dizer que foram vitoriosos. Para Kaplan (1975), esses estudiosos não mantinham visões unilaterais simplistas do desenvolvimento cultural, como foram acusados por pesquisadores posteriores. Concorda com o fato de que em algumas de suas colocações é possível interpretar que todas as sociedades têm que passar pelos mesmos estágios de desenvolvimento. No entanto, ressalta que é possível encontrar amplas evidências em seus trabalhos de que não eram determinados por pressuposto tão ingênuo da teoria evolucionista unilinear. Relata que esses teóricos estavam bem conscientes da difusão cultural e da forma pela qual esse processo habilitou a sociedade a saltar certas fases de desenvolvimento. Com o avanço das pesquisas antropológicas, as teorias do evolucionismo unilinear, aos poucos, foram se enfraquecendo. Dentro do campo das ciências humanas, somente o Direito é que insistiu em manter muitos de seus preceitos. Nesse contexto, sobretudo entre os norte-americanos, surge uma outra denominação: o neoevolucionismo, uma teoria que absorveu as críticas feitas ao evolucionismo unilinear e passou a introduzir conceitos de multilinearidade. O evolucionismo multilinear também acredita no processo evolutivo das mudanças culturais das sociedades, mas que este se daria de forma mais flexível e com maior complexidade. Cada sociedade mudaria ao seu próprio ritmo, fazendo evoluir os diversos elementos de seu sistema cultural, inclusive o próprio Direito, em graus e ritmos diversos (BARBOSA, 2001).

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Por meio das formulações do evolucionismo multilinear, é possível compreender a defesa de Kaplan (1975) aos propósitos evolucionistas. Nessa outra perspectiva, não havia de fato a rigidez do evolucionismo unilinear, pois foram introduzidos elementos múltiplos para o processo evolutivo, possibilitando uma sociedade saltar certas fases de desenvolvimento. Alguns juristas adotaram essa linha de pensamento, considerando, de modo geral, que existe uma transição do simples para o complexo. No entanto, diferente do evolucionismo unilinear, esse processo não ocorreria deterministicamente, ou seja, as sociedades não necessariamente passariam por todas as etapas da evolução. Havia também a previsão de que intervalos regressivos poderiam ocorrer. A evolução para essas teorias estava no incremento de normas jurídicas e de procedimentos contenciosos de solução de conflitos. Nessa perspectiva, sociedades como as dos caçadores-coletores, cujas relações se dão, notadamente, de forma direta entre os indivíduos, teriam pouca noção do Direito. O incremento das normas jurídicas começaria com a sedentarização, acelerado com a invenção da escrita. Sociedades sedentárias e com escrita seriam mais divididas, mais heterogêneas, com maior demografia, com normas jurídicas mais explícitas e mais abundantes, cuja interpretação passa a ser de competência de especialistas, e as sanções passam a ser aplicadas por representantes da sociedade, o que corresponde ao aparecimento do direito público (ROULAND, 1990). Considerando as referidas propostas evolucionistas, não poderíamos deixar de citar a perspectiva de Darcy Ribeiro sobre o tema. Em sua obra O Processo Civilizatório: Etapas da Evolução Sociocultural, Ribeiro (2005), utilizando os esquemas conceituais apresentados por autores clássicos do evolucionismo, apresenta uma revisão crítica a essas teorias a fim de propor um novo esquema acerca do desenvolvimento humano. Como bem ressalta Betty J. Meggers, no prólogo à edição norte-americana, Darcy Ribeiro, como cidadão do chamado Terceiro Mundo, apresenta um estudo sobre a evolução cultural por outro prisma, percebendo nuances que os antropólogos norte-americanos não teriam condições de perceber. Embora corroborando com a escola evolucionista da antropologia, o autor rompe com a postura eurocêntrica que teria projetado a sociedade europeia como etapa final do processo evolutivo humano, ou seja, como modelo de civilização (RIBEIRO, 2005, p. 22). Para Ribeiro (2005), as sociedades podem ser analisadas por meio de um encadeamento de sucessivas etapas evolutivas, identificadas pelo desenvolvimento acumulado de suas potencialidades produtivas. Nesse sentido, a evolução

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sociocultural seria conceituada: como o movimento histórico de mudança dos modos de ser e de viver dos grupos humanos, desencadeado pelo impacto de sucessivas revoluções tecnológicas (agrícola, industrial etc.) sobre sociedades concretas, tendentes a conduzi-las à transição de uma etapa evolutiva a outra, ou de uma a outra formação sociocultural. (RIBEIRO, 2005, p.51).

Darcy Ribeiro defendia que esse movimento, na maior parte das vezes, não se apresentava de forma ascendente e nem ritmado por condições objetivas. Em suas palavras: Só em condições excepcionais as sociedades têm oportunidade de experimentar processos evolutivos contínuos puramente ascendentes que a conduzam a viver sucessivamente diversas etapas da evolução. Via de regra, são interrompidos por várias causas conducentes à estagnação e à regressão cultural ou a desenvolvimentos cíclicos de ascensão e decadência (RIBEIRO, 2005, p.56).

Próximo a uma perspectiva multilinear da evolução sociocultural, ressalta que as sociedades humanas devem compreender as suas formações socioculturais como processos evolutivos que se aceleram ou se retardam, que vão e vêm, segundo as particularidades históricas de cada povo. Ao problematizar a história da humanidade em seus tempos passados, busca explicar o presente e contribuir com a projeção do futuro da civilização humana.

2.1 Do simples ao complexo A ideia comumente admitida pelos juristas em relação às instituições familiares é que a evolução conduziu as sociedades humanas da família extensa (composta de todos os descendentes de um ancestral comum, unidas pelo parentesco de sangue, dentro dos limites fixados pelo Direito) à família nuclear (limitada aos cônjuges e seus filhos). Para Lévi-Strauss (1986), esses pesquisadores evolucionistas partiam do pressuposto de que suas sociedades eram as mais complexas e as mais evoluídas e por isso viam as instituições dos povos chamados primitivos à imagem daquelas que poderiam ter existido em períodos anteriores da história da humanidade. Considerando a família moderna assentada no casamento monogâmico, os povos primitivos, vivendo em uma escala evolutiva inferior, não poderiam ter tido senão instituições de características exatamente opostas. O que se percebe é que para justificar as hipóteses de barbáries desses povos, os evolucionistas, grosso modo, Revista Jurídica da Presidência

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distorciam os fatos. Pretensos estados arcaicos, como a promiscuidade primitiva e o casamento de grupo foram inferidos para legitimar suas teorias. O que se pode afirmar das relações familiares é que a família nuclear representa um fenômeno universal. Embora tenha papéis diferenciados em cada sociedade e possa se apresentar de múltiplas formas, é inegável a grande importância que representa para todas as sociedades humanas. Segundo Lévi-Strauss (1986), existem características que estão presentes em todas as sociedades. São elas: 1) a origem da família com o casamento; 2) a proibição do incesto; 3) a distinção feita por praticamente todas as sociedades entre o casamento e a união de fato, valorizando o primeiro; 4) a função procriativa que, de modo geral, tem o casamento; 5) a constituição da família pelo marido, a mulher e os filhos menores, agregando eventualmente outros parentes; e 6) as ligações jurídicas, econômicas, afetivas e sexuais que se estabelecem entre os membros da família. Outro ponto questionável das interpretações evolucionistas é a estipulação da passagem do status para o contrato, ou seja, da forma primitiva vinculadora do indivíduo, a qual definiria seus direitos e obrigações à forma civilizada. Os povos indígenas, portanto, estabeleceriam seus compromissos por meio da imobilidade do status, ao passo que as sociedades ocidentais, consideradas civilizadas, utilizariam a mobilidade do contrato. O que se constata atualmente por meio de outro enfoque, é que o status e o contrato dizem respeito apenas à escolha de um projeto social, podendo coexistir em uma mesma sociedade, e variam conforme a necessidade e as prioridades de cada sociedade. Na sociedade ocidental, por exemplo, privilegia-se, antes do grupo, o indivíduo e, para que isso prevaleça, o contrato se mostra como a melhor forma de se estabelecer uma relação de compromisso entre as partes. Não há na sociedade ocidental a figura do direito coletivo como nas sociedades indígenas, pois somente o indivíduo é reconhecido como sujeito de direito. No entanto, apesar das diferenças, nada impede que em uma sociedade tradicional o contrato seja o instrumento utilizado (ROULAND, 1990). Em relação à propriedade, os evolucionistas teorizavam que existiria primeiro a propriedade coletiva do clã, seguida pela familiar e, por último, a propriedade individual. O fato de ser coletivo retiraria as características determinadas pelo direito moderno de propriedade como, por exemplo, a possibilidade de alienação desse imóvel (ROULAND, 1990). Mais uma vez os paradigmas evolucionistas devem ser criticados. Da mesma

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forma como mencionamos sobre o contrato e o status, não há como afirmar que essas espécies de propriedade estão ordenadas em escalas evolutivas, uma vez que podem coexistir em diversas sociedades. A própria inalienabilidade da propriedade tradicional não pode ser vista como absoluta, já que se torna vedada somente para fora do grupo. O que se constata é que a diferença se estabelece não propriamente pelas espécies de propriedade, coletiva ou individual, mas sobretudo pela existência da figura do sujeito coletivo nas comunidades indígenas. Os direitos do sujeito coletivo não são considerados pela sociedade envolvente, visto que esta, fundamentada em um sistema econômico capitalista, baseia-se em princípios individualistas de livre iniciativa. Nesse sentido, não havendo a correspondência dessa espécie de sujeito de direitos no ordenamento positivo, etnocentricamente, o Direito ocidental o trata como inferior. Por outro lado, em relação à propriedade coletiva e individual, percebe-se entre muitos povos indígenas a existência concomitante de ambas as espécies de propriedade. Outro ponto da teoria evolucionista que os juristas compartilham é a ideia sobre vingança e pena. A vingança, usual nas sociedades tradicionais, é descrita como uma reação imediata a uma infração. Uma espécie de agressividade não contida que dizimava as famílias em vendetas intermináveis, prejudicando assim a ordem social. Por outro lado, a pena, utilizada nas sociedades modernas, é considerada como uma reação do corpo social inteiro contra o autor da infração. Aplicada pela autoridade estatal de forma comedida e personalizada, teria efeito regulador e benéfico para a sociedade (ROULAND, 1990). A suposta transição da vingança à pena representaria o triunfo da civilização sobre a barbárie. Contradizendo as ideias evolucionistas, os dados etnográficos atuais demonstram que a vingança é exercida pelas sociedades tradicionais em momentos e lugares limitados e não com violência desmedida e nem com um procedimento desordenado. Ademais, como ensina Lévi-Strauss (1986), da mesma forma como os institutos anteriores, não há como dizer que a vingança e as penas públicas se sucedem cronologicamente, pois o que se constata é que em muitas sociedades elas existiram simultaneamente. A aplicação de uma ou de outra depende da gravidade da infração e das relações dos indivíduos e dos grupos envolvidos. Para cada situação, uma forma de solucionar o conflito. Um dos exemplos mencionados por Rouland (2003, p. 103) em relação à coexistência da vingança com forma moderna de vida política e social, é a punição do adultério pelo direito penal romano. Durante quatro séculos – todo o período

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republicano-, o Estado romano regulamentou a vingança. A pena aplicada pelo marido traído ao amante culpado poderia ser a flagelação, a mutilação de partes da face, como orelha e nariz, a castração, a enucleação e até a sodomização. Faz-se necessário ainda considerar que a ausência do Estado não tem como corolário a violência desregrada e a desordem social, sendo que a recíproca também é verdadeira, ou seja, a presença do Estado não garante sociedades pacíficas e ordenadas. O estudo das sociedades tradicionais demonstra que estas, sem a presença do Estado, encontraram mecanismos próprios para regular vingança e violência. O Estado, com base no aumento da dominação estatal sobre a vida privada, pode, por exemplo, dar origem a regimes autoritários ou ditatoriais que, por excelência, sustentam-se pela violência repressora. As guerras entre Estados, que resultam em milhares de mortos, são também reflexos da violência no interior da estrutura estatal. Outras teorias antropológicas surgiram após as formulações evolucionistas, o que levou, de certa forma, a uma suposta superação dessa visão etnocêntrica. Por outro lado, percebe-se que muitos antropólogos modernos, críticos do evolucionismo, tratam, embora com outra roupagem, as sociedades diferenciadas pela mesma ótica. Em lugar de utilizar os termos sociedades primitivas e sociedades civilizadas, passaram a se referir às primeiras como subdesenvolvidas ou em desenvolvimento e às últimas como sociedades desenvolvidas.

3 A formação do Estado Nacional e o direito monista Além das influências das teorias antropológicas sobre a formação do Direito ocidental, sua estrutura foi fundamentada pela criação dos Estados nacionais. Os aspectos políticos, sociais e econômicos de uma Europa do século XIV romperam com o modelo feudalista da época para dar lugar ao absolutismo, no qual a figura do Estado garantiria o poder do soberano por meio de leis rígidas e centralizadoras. Classicamente, o Estado pode ser definido como um ente invisível formado por três elementos: povo, território e governo. Para alguns teóricos, sua existência se dá pelo suposto contrato social firmado por todos os integrantes da sociedade que passa a representar. Empossado do seu poder, impõe o controle social e a regulação da forma de vida da população (DANTAS, 2001). Thomas Hobbes é o principal representante dessa teoria, definindo o Estado como um ente todo poderoso que dominaria os cidadãos. Na visão hobbesiana, a natureza humana é concebida como imutável em seu egoísmo, na sua ambição, competitividade e imoralidade, o que levaria a um estado permanente de guerra. Revista Jurídica da Presidência

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Nesse contexto, seria preciso instituir um poder forte e absoluto capaz de controlar os homens pelo medo do castigo e da repressão. Esse poder, emanado de um pacto social entre os cidadãos, constitui a essência do Estado, capaz de garantir a paz e a segurança a todos (HOBBES, 2008)3. Como ensina Dantas (2001), as bases do Estado foram arquitetadas no âmbito da Europa ocidental seiscentista, cujo contexto sociopolítico marcado pelo absolutismo feudalista e por profundas desigualdades sociais, econômicas e jurídicas exigia a instituição de um ente superior que transcendesse os indivíduos e precedesse aos cidadãos. Desse modo, o surgimento do Estado Moderno, centrado, unitário, coincidente com uma nação, institucionalmente organizado em poderes tripartites limitados pela Constituição, deixa para trás os estatutos das desigualdades, assentando seus fundamentos nos princípios da igualdade – formal -4, liberdade e propriedade privada. Acompanhando os Estados modernos surge então, entre o final do século XVI e início do século XVII, na Europa, a concepção do Direito monista, ou seja, do pensamento jurídico unitário, centralizador e indiferente a qualquer pluralidade existente. De certa forma, pode-se dizer que a formação do Estado e do modelo jurídico moderno foi uma ação reflexa e interdependente. Um dando causa e sendo a consequência do outro. O Estado moderno deu origem ao Direito monista, e aquele foi sustentado por este (WOLKMER, 2001). Wolkmer ressalta que é a íntima conexão entre a suprema racionalização do poder soberano e a positividade formal do Direito que conduz à coesa e predominante doutrina do monismo jurídico. “Tal concepção atribui ao Estado Moderno o monopólio exclusivo da produção das normas jurídicas, ou seja, o Estado é o único agente legitimado capaz de criar legalidade para enquadrar as formas de relações sociais que vão se impondo” (WOLKMER, 2001, p. 46). Nesse contexto, dentre os fatores que serviram de pressupostos básicos para a formação desse Direito, estão: a mudança do modo de produção feudal para

3 Considerando as características do Estado idealizado por Hobbes, este ficou conhecido como Estado Leviatã, em referência ao título do seu livro que imortalizou essas ideias. Leviatã é um monstro da mitologia fenícia, com aparência de crocodilo, que reina pelo terror. 4 Faz-se necessário ressaltar que apenas a dimensão formal do princípio da igualdade se concretizou com a criação do Estado Moderno. A efetivação da sua outra dimensão (dimensão material) é algo bem mais recente, sendo que em muitas partes do mundo ocidental, ainda hoje, não se efetivou. No Brasil, a luta pelo respeito aos direitos indígenas já consagrados no plano formal pode ser apontada como uma forma de concretização do princípio da igualdade na sua dimensão material. Revista Jurídica da Presidência

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o capitalista, o que resultou nas relações de trabalho e no desenvolvimento do mercado; a ascensão da burguesia, classe social que era dona dos meios de produção; e a formação de um Estado forte, absolutista, soberano e centralizador do poder, que passou a ser coincidente com a ideia de nação (DANTAS, 2001). Como um dos idealizadores do Estado absolutista, Thomas Hobbes é identificado também por autores como Bobbio (2005) e Reale (1984) como o principal teórico do monismo jurídico. No mesmo sentido, ressalta Wolkmer (2001): Ora, enquanto Maquiavel distinguiu a política da moral e da religião, Hobbes põe a política acima da moral, redefinindo o exercício da autoridade através do princípio do absolutismo. Pode-se afirmar que Hobbes não só é um dos fundadores do moderno Estado absolutista, como, sobretudo, o principal teórico da formação do monismo jurídico ocidental, ou seja, um dos primeiros a identificar o Direito com o Direito do soberano e, igualmente, o Direito Estatal com o Direito Legislativo. (WOLKMER, 2001, p. 50).

Com a Revolução Francesa (1789-1799), o monismo jurídico passou a ganhar novos contornos. O Direito Estatal deixou de ser reflexo da vontade exclusiva do soberano e passou a se tornar produto das novas condições comerciais propostas pela crescente produção industrial e consolidação do liberalismo econômico. A partir desse momento, consolida-se a ideia de Estado-Nação como categoria histórico-política da moderna burguesia capitalista. A Nação soberana se torna o verdadeiro sujeito de Direito. As novas legislações passam por um processo de sistematização racional, que solidifica o reducionismo de todo o Direito à lei estatal, no qual se instala o pleno domínio do positivismo jurídico5. O positivismo jurídico se instala, então, como a principal doutrina jurídica contemporânea. Questionando a corrente jusnaturalista, que busca na natureza o conteúdo para postular a existência do Direito, a ideologia positivista explica o Direito por sua própria materialidade coercitiva e punitiva. A partir dos novos ideais, o monismo jurídico passa por uma sistematização dogmática, que reduz o Direito Estatal ao Direito Positivo. “Consagra-se a exegese de que todo o Direito não só é Direito enquanto produção do Estado, mas, sobretudo, de que somente o Direito Positivo é verdadeiramente Direito” (WOLKMER, 2001, p. 55). Acompanhando a passagem do capitalismo industrial para um capitalismo monopolista, sustentado por oligopólios e corporações transnacionais, bem como a 5 Wolkmer (2001) ressalta que, no fim do século XIX, o monismo jurídico foi notoriamente representado no continente europeu pelo positivismo histórico de Rudolf von Jhering e pela tradição do Common Law, no qual se apresenta o utilitarismo positivista de John Austin. Revista Jurídica da Presidência

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expansão da intervenção estatal nos meios de produção, o monismo jurídico passa a assumir, ao fim do século XIX e metade do século XX, uma postura legalista com pretensões rígidas de cientificidade. Como ensina Wolkmer (2001), esse período é representado em especial pela concepção de Hans Kelsen que, em sua Teoria Pura do Direito, propõe uma ciência jurídica com objetivos epistemológicos de neutralidade e objetividade6. Na concepção kelseniana, a entidade jurídica estatal se apresenta constituída por uma estrutura única, na qual inúmeros ordenamentos se subordinam a uma hierarquia de graus sucessivos, que vão desde o ordenamento internacional até o Estado, às entidades autárquicas, às pessoas jurídicas públicas, às fundações etc. Constitui-se na dinâmica jurídica, que estabelece relações hierárquicas entre as normas (pirâmide de Kelsen ou normativa), e prevê a criação de novas normas, compatíveis com as precedentes e as formas de transformação de uma ordem jurídica (KELSEN, 2000). Para Kelsen, o Estado é o próprio Direito Positivo, caracterizando-se, portanto, como uma organização de caráter político-jurídico que visa não só a manutenção e coesão, mas também regulamentar o uso da força com base em uma ordem coercitiva munida de sanção especificamente jurídica (DANTAS, 2001). Wolkmer (2001) identifica, ainda, que a partir das décadas de 1960 e 70, o monismo jurídico passou por outro período de transição, relacionado com as novas necessidades de reordenação do capital e com o enfraquecimento produtivo do Estado do Bem-Estar Social (Welfare State). É uma fase marcada pelo esgotamento do paradigma da legalidade que sustentou a modernidade burguês-capitalista por mais de três séculos. Embora os princípios e objetivos propostos para sedimentar o sistema epistemológico ocidental, formados entre os séculos XVII e XVIII, e predominantes nos séculos XIX e XX, não mais respondam de forma eficaz às novas demandas sociais, políticas e econômicas, Wolkmer (2001, p. 59) ressalta que “a variante estatal normativista resiste a qualquer tentativa de perder sua hegemonia, persistindo, dogmaticamente, na rígida estrutura lógico-formal de múltiplas formas institucionalizadas”. De qualquer forma, apesar de tentar manter a máscara de cientificidade, eficácia 6 Kelsen tinha como proposta criar uma ciência jurídica que não emitisse qualquer juízo de valor sobre as normas válidas, ou seja, que se abstivesse de julgar as normas que buscava descrever com base em critérios de justiça. Nesse sentido, separou o Direito da moral, da justiça e das demais ciências. A pureza adjetivada a sua teoria do Direito advém dessa perspectiva, que reconhece como objeto de estudo apenas as normas jurídicas, apresentando, portanto, considerações estritamente jurídicas. Revista Jurídica da Presidência

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e segurança, a funcionalidade prática do dogmatismo jurídico tem-se mostrado cada vez mais inoperante, o que deixa evidente a crise instalada no interior desse modelo de legalidade.

3.1 Estados nacionais latino-americanos Seguindo os mesmos passos do modelo europeu, no início do século XIX surgem os Estados Nacionais Latino-Americanos. Segundo Souza Filho (1998), ainda que formado por uma pluralidade de culturas, o Estado nesses países perpetuou a ideia de um direito único, com propostas de acabar com os privilégios e gerar sociedades iguais, mesmo que para isso tivesse que reprimir de forma violenta as diferenças culturais existentes. Nesse contexto, os sistemas culturais dos povos indígenas se tornavam invisíveis aos olhos de um Estado em formação, que buscava uma suposta homogeneidade para se solidificar. Para esses outros só haveria uma única alternativa, a civilização (DANTAS, 2001). A formação dos Estados Latino-Americanos, portanto, concretizou-se por meio de uma política integracionista em relação aos diferentes grupos étnicos existentes em seus territórios. No Brasil, por exemplo, especificamente em relação aos povos indígenas, essa proposta somente foi superada no século XX, com advento da Constituição Federal de 1988. Diante dessa prática integracionista, os povos indígenas tiveram dificuldade em manter seu modo de vida tradicional, visto que a proposta era integrá-los de forma individualizada, o que desconstituía sua organização social e seus usos e costumes coletivos. Souza Filho (2010, p. 79) ensina que em outros países as políticas adotadas em relação aos povos originários foram outras. O colonialismo na África e na Ásia, por exemplo, deu um tratamento diferenciado aos povos locais, “mantendo as colônias sob políticas de apartheid, tanto mais violentas quanto maior fosse a resistência do povo”. A integração, nesses casos, dar-se-ia somente de forma excepcional. Embora não menos violenta e repressora que a política integracionista, nesses países a organização social dos povos originários teve melhores perspectivas de ser preservada. A nova sociedade tirou dos indígenas tudo o que eles tinham, especialmente a sua identidade, para lhes oferecer uma integração que nem mesmo os brancos pobres, embebidos pela cultura burguesa logram conseguir. Os colonialistas roubaram o ouro, a madeira, a vida dos indígenas, dizendo que queriam purificar sua alma; os Estados burgueses exigiram sua alma, não para

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361 entregar a um deus, mas para igualá-la à de todos os pobres e, então, despojados de vontade, apropriar-se de seus bens (SOUZA FILHO, 1998, p. 64).

O que se constata é que o processo de colonização não permitiu a criação de um modelo jurídico próprio nos países latino-americanos, mas instituiu um transplante do burocratizado e excludente modelo jurídico europeu, sem ocorrer a necessária adaptação à realidade sociocultural de cada país. A formação do Estado Nacional brasileiro teve início com a transferência da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808, e se consolidou com o advento da República, em 1889. O que talvez tenha diferenciado um pouco do modelo europeu imposto para a construção do Estado Nacional foi a definição de nacionalidade. Como ensina Magnoli (1997), essa definição no País foi marcada por características especiais, pois, no Brasil, não foi a sociedade que emergiu como traço definidor da nacionalidade, mas o território. Desde o Tratado de Tordesilhas, celebrado entre Portugal e Espanha em 1494, que tinha como finalidade dividir o domínio do território nacional entre as coroas espanhola e portuguesa, aos projetos contemporâneos denominados de desenvolvimento e segurança nacional, como o Calha Norte7, a construção da Transamazônica8 e o Polonoroeste9, a afirmação do Estado se materializava na ocupação territorial. Projetos de nacionalidade, que embora distanciados na história, carregam a mesma proposta – a ocupação do território para garantir a soberania do Estado Nacional e a supressão das desigualdades étnicas que pudessem ferir o controle estatal. Davis e Menget (1981) relatam sobre a ideologia nacionalista de integração e desenvolvimento que permeou a política de grandes líderes brasileiros. Os argumentos de convencimento da população se sustentavam na ideia de que o povoamento do interior do país garantiria a defesa da nação contra a invasão de estrangeiros e colocaria fim ao desequilíbrio econômico e demográfico por meio da redistribuição da população. Economicamente, haveria o aproveitamento da 7 O Projeto Calha Norte surgiu em 1985 durante o Governo Sarney. Concebido com o propósito de proteger uma faixa do território nacional situada ao Norte da calha do rio Solimões e do rio Amazonas. 8 No início da década de 1970 foi inaugurada a rodovia que ligaria as regiões nordeste e norte do país. De leste a oeste, chegaria na fronteira com o Peru, garantindo uma saída aos produtos brasileiros pelo Oceano Pacífico. 9 O Programa Integrado de Desenvolvimento do Noroeste do Brasil, executado durante a década de 1980, tinha como principal objetivo promover a ocupação demográfica da região noroeste do Brasil, contribuindo para a integração nacional. Abrangeu a área de influência da BR-364, entre Cuiabá-MT e Porto Velho-RO. Revista Jurídica da Presidência

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grande quantidade de recursos existentes no vasto e inexplorado interior do Brasil, promovendo a independência política e econômica da nação. Os povos indígenas, nesse ínterim, além de empecilho ao desenvolvimento do país, eram vistos como uma ameaça ao Estado unitário, homogêneo e controlador. Portanto, o processo de construção da identidade nacional não reconheceu a diversidade cultural, mas negou esse fato e privou os povos indígenas dos direitos originários sobre as suas terras. Com essa proposta de garantir o controle sobre o território, o Estado institui uma suposta unidade linguística e homogeneidade cultural. O português foi instituído como língua oficial a partir da exclusão de aproximadamente 180 línguas indígenas, além de outros idiomas, como o japonês, o italiano e o alemão, falados de forma oficial no país, bem como dos inúmeros outros dialetos que são falados Brasil afora (RAMOS, 2004). Em relação à homogeneidade cultural como garantia do território, criou-se o mito, que alimenta ainda hoje o imaginário nacional, de que o brasileiro seria resultado da feliz mistura de três raças: indígena, negra e europeia – representada majoritariamente pelo povo português. Sobre esse mito, Ramos (2004) ressalta que sua criação não teve como proposta afirmar o multiculturalismo existente no país, mas exaltar o vigor genético dos brancos, por meio da subjugação das outras duas raças num processo de mestiçagem, que fundamentava, na verdade, a ideologia do branqueamento. Ao contrário do modelo do multiculturalismo, o povo brasileiro seria então um amálgama de raças branqueadas com um sabor nacional único e uniforme. Ao invés do padrão de diferenças separadas, mas iguais, teríamos aqui um desenho nacional para misturados desiguais. (RAMOS, 2004, p.7).

4 Conclusão A apropriação pelo direito ocidental das teorias antropológicas evolucionistas instituiu a antiga e ainda atual ideia dicotômica de civilização e barbárie. Considerando que a sociedade ocidental seria o ápice da evolução, a representação máxima da civilidade, todos os outros povos, dentre eles as sociedades indígenas, seriam os bárbaros, que supostamente estariam em estágios inferiores de evolução sociocultural. Referida inferioridade dos povos indígenas, que dentre suas características está a tradição oral, levou o direito ocidental a considerar as regras indígenas como inferiores ao direito escrito e codificado. Normas costumeiras que não estavam atreladas à figura do Estado e que, supostamente, promoveriam menos certezas jurídicas. Embora as teorias evolucionistas estejam ultrapassadas, ainda hoje, de modo

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geral, o pensamento ocidental se baseia na ideia de que as sociedades indígenas seriam primitivas. O Estado, respaldado por regras unitárias, ainda desconsidera, na prática, os direitos próprios dos povos indígenas e tenta instituir suas regras para todas as sociedades que vivem no território nacional. Apesar de a Constituição Federal de 1988 reconhecer os direitos dos povos indígenas de viverem segundo seus usos, costumes e tradições e assegurar o respeito à diversidade cultural, os direitos próprios dos povos indígenas são reconhecidos com limitações por outros instrumentos jurídicos que também preconizam a defesa dos direitos indígenas. Como exemplo, pode-se citar a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário, que assegura os direitos consuetudinários dos povos indígenas, desde que esses direitos não venham ferir os direitos humanos internacionalmente reconhecidos. Considerando que referidos direitos humanos são baseados nos valores das sociedades ocidentais, constata-se a perpetuação da crença de que essas sociedades seriam mais evoluídas e civilizadas. Nesse contexto, entende-se que o reconhecimento legítimo dos direitos indígenas depende de uma mudança de valores por parte da sociedade ocidental e de uma abertura sincera para reconhecer o outro na plenitude de suas diferenças. Somente superando a ideia etnocêntrica de civilização e barbárie é que poderemos de fato assegurar a diversidade cultural e o pluralismo jurídico dentro de um mesmo espaço territorial. Nesse caminho, a pretensa superioridade ocidental seria substituída pelo pluralismo cultural e pela riqueza da troca de saberes.

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Cotas raciais para ingresso no ensino superior: a missão da universidade na transformação cultural JOSELIANE SONAGLI Mestranda em Direito (PUC/PR). Professora de Direito Empresarial (UNIVALI). Advogada.

HUGO JESUS SOARES Mestre em Direito (PUC/PR). Advogado. Artigo recebido em 24/02/2015 e aprovado em 24/06/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 Do surgimento à consolidação da política de cotas raciais 3 Aspectos favoráveis às cotas raciais: a tutela da dignidade humana e da igualdade de oportunidades 4 Os argumentos críticos contra a política de cotas raciais 5 O papel da universidade na transformação cultural 6 Cotas raciais e o princípio da proporcionalidade: a necessária transformação social para consolidação da cultura antirracista 7 Conclusão 8 Referências.

RESUMO: Ao apreciar a questão da validade das cotas raciais para ingresso no ensino superior, o Supremo Tribunal Federal destacou o papel integrador da universidade ao exigir a adoção de medidas que possam estimular o contato com a diversidade cultural e racial, e promover, em consequência, a almejada redução da marginalização racial. Este ponto, entretanto, não tem sido sopesado pelos críticos do sistema de cotas. Neste artigo, discorre-se sobre a origem do programa de cotas raciais no ensino superior e as diferentes linhas doutrinárias que debatem sobre o tema, com o objetivo de defender a legitimidade do programa a partir da missão da universidade em promover a integração e transformação cultural, fazendo-se, ao final, um contraponto com os argumentos críticos, à luz do princípio da proporcionalidade. PALAVRAS-CHAVES: Políticas públicas Direitos fundamentais Cotas raciais Missão da universidade Princípio da proporcionalidade.

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Racial quotas in higher education: university mission to the cultural transformation CONTENTS: 1 Introduction 2 The history and the consolidation of racial quotas 3 Positive factors to racial quotas: the protection of human dignity and equal opportunities 4 The critical arguments against the policy of racial quotas 5 The role of the university in the cultural transformation 6 Racial quotas and the principle of proportionality: the necessary social transformation to consolidate the anti-racist culture 7 Conclusion 8 References.

ABSTRACT: When considering the validity of racial quotas for access to higher education, the Brazilian Supreme Court emphasized the integrative role of the university demanding the adoption of measures which encourage contact with the cultural and racial diversity, and promote, as a result, the desired reduction of racial marginalization. This point, however, has not been weighed by critics of the quota system. In this article, we discusses about the origin of the racial quota program in higher education and the different doctrinal that debate on the issue, in order to defend the legitimacy program from the University mission to promote integration and cultural transformation, making, at the end, a counterpoint to the critical arguments in the light of the principle of proportionality. KEYWORDS: Public politics Fundamental rights mission The principle of proportionality.

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Cuotas raciales para admisión en la educación superior: la misión de la universidad en la transformación cultural CONTENIDO: 1 Introducción 2 Desde del surgimiento hasta la consolidación de la política de cuotas raciales 3 Aspectos favorables a las cuotas raciales 4 Los argumentos críticos a la política de cuotas raciales 5 El papel de la universidad en la transformación cultural 6 Cuotas raciales y el principio de la proporcionalidad: la necesaria transformación social para consolidación de la cultura antiracista 7 Conclusión 8 Referencias.

RESUMEN: En la apreciación de la cuestión de validad de las cuotas raciales para admisión en la educación superior, el Supremo Tribunal Federal destacó el papel de integración de la universidad, requiriendo la adopción de medidas que estimulen el contacto con la diversidad cultural y racial, y promuevan, en consecuencia, la deseada reducción de marginación racial. Este punto, sin embargo, no ha sido sopesado por los críticos del sistema de cuotas. En este articulo, se discurre, sobre la origen del programa de cuotas raciales en la educación superior e las diferentes líneas doctrinarias que debaten sobre el tema, con el objetivo de defender la legitimidad del programa, partir de la misión de universidad en promover la integración y transformación cultural, haciendo al final, un contrapunto con los argumentos críticos, según el principio de la proporcionalidad. PALABRAS-CLABE: Políticas publicas Derechos fundamentales Cuotas raciales Misión de la universidad Principio de la proporcionalidad.

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1 Introdução

O

programa de cotas raciais para ingresso de negros no ensino superior surgiu como consequência de movimentos sociais de lideranças negras, que almejavam um modo de inserção da comunidade negra à sociedade, por sentirem-se excluídos em decorrência de um processo histórico, que marcou (e ainda marca) a sociedade, por marginalizar pessoas em razão da cor de sua pele. Tais movimentos sustentavam ser dever do Estado desenvolver mecanismos de eliminação das desigualdades sociais, sendo o sistema de cotas um destes mecanismos. Fora chamado de ações afirmativas, ou discriminação positiva tendo em vista que o critério de cor era sim utilizado, mas em favor da sociedade, razão pela qual não poderia ser considerada uma prática racista. Críticos do programa afirmam que as cotas raciais não constituem um instrumento eficaz para combater a desigualdade social e a inclusão de negros, tendo em vista que não alcançam as raízes do problema. É fato notório, porém, que mesmo com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a consolidação da igualdade como direito fundamental de todo ser humano, o preconceito racial ainda é um problema social que impede grande parte dos indivíduos negros de usufruírem de respeito e de uma vida digna, em razão da cor da sua pele. No intuito de contribuir com os debates sobre a legitimidade da política de cotas raciais para ingresso no ensino superior como um instrumento adequado para transformação cultural e superação das desigualdades raciais, desenvolve-se o presente estudo frente ao papel integrador das universidades e sua missão em promover a transformação cultural. Para tanto, faz-se, no item 2, uma contextualização sobre o surgimento do programa de cotas raciais para ingresso no ensino superior, e, nos itens 3 e 4, são abordados os argumentos doutrinários contrários e favoráveis ao tema. No item 5, discorre-se sobre a missão das universidades frente à Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e à Constituição Federal, fazendo-se, ao final, no item 6, um contraponto entre os aspectos positivos e negativos das cotas raciais, a partir de uma reflexão sobre o fim maior do programa de cotas raciais à luz do princípio da proporcionalidade.

2 Do surgimento à consolidação da política de cotas raciais Desde o início do processo de colonização europeia das terras brasileiras até fins do século XIX, a figura do negro esteve atrelada a de um sujeito sem direito a

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participação social, reduzido à figura do escravo (ALENCASTRO, 2012, p. 01). Mais de 5 milhões de negros foram trazidos da África com o objetivo de servir os senhores de cor branca, de origem europeia, para incrementar o processo de produção e colonização da terra. Esse número é quase 10 vezes o número de escravos destinados aos Estados Unidos, razão pela qual o Brasil é considerado o país que mais abrigou escravos no mundo (ALENCASTRO, 2012, p. 01). A posição privilegiada da América em relação ao caminho de escoamento dos produtos pelo Atlântico conferiu ao povo branco europeu uma vantagem na disputa do comércio mundial que se formava na implantação da ordem capitalista e que – aliada a características mansa e pacífica dos habitantes da África – contribuía para que os negros africanos se sujeitassem à dominação do povo branco (QUIJANO, 2005, p. 238). A consequência desse processo de colonização é a consolidação de uma cultura que marginaliza o negro e o exclui das benesses do desenvolvimento da sociedade. Além das pesquisas realizadas por institutos de coletas de dados, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, que formulam indicadores sociais para refletir as condições de vida dos negros, a exclusão dessa classe é percebida no quotidiano. A figura do negro é pouco presente em instituições de ensino básico e superior privado, bem como em postos de trabalho de maior prestígio e no serviço público. O negro também é pouco visto frequentando os locais de lazer da sociedade de classe média em geral, em especial no Sul do País. Com efeito, a sociedade não vê o negro nos fatos da vida em geral e, como consequência dessa falta de visibilidade, não desenvolve uma formação cultural igualitária. A educação é a base de criação e transformação da cultura, sendo desejável que os ensinamentos ofertados na sala de aula sejam suficientes para moldar a mente humana e a forma de ver os indivíduos com respeito às diferenças. Entretanto, o ser humano, como ser visual e sensitivo, aprende a conviver com aquilo que lhe é apresentado aos sentidos, de modo que os ensinamentos escolares e acadêmicos despidos de uma oportunidade de convivência prática acabam, por vezes, sendo insuficientes para consolidação de uma forma de pensar. Tanto é que, inobstante a Lei Imperial no 3.353 de 13 de maio de 18881 – Lei Áurea seja objeto de estudo no ensino fundamental e médio, sendo notório que a escravidão de negros no Brasil encerrou-se há mais de 120 anos, a cultura popular 1  L  ei Imperial no 3.353/88. Art. 1o: É declarada extincta desde a data desta lei a escravidão no Brazil. (conforme original). Revista Jurídica da Presidência

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ainda não está totalmente lapidada para reconhecer o negro como um ser humano dotado de habilidades, qualidades e dignidades tais quais os indivíduos que não são negros. Estudos elaborados pelo Ipea em 2008 e divulgados em âmbito nacional apontaram melhoras nas condições de vida dos negros. Porém, o preconceito racial é um fato marcante na sociedade. Em 2007, enquanto as aludidas pesquisas eram realizadas, um grupo de estudantes residentes na Casa do Estudante Universitário em Brasília ateou fogo em apartamentos que eram ocupados por estudantes negros (SALLES, 2008, p. 15). Esse fato é apenas um dos exemplos drásticos das formas de discriminação racial que marcam uma sociedade que não vê o negro com o respeito digno de todo ser humano (FERREIRAS; MATTOS, 2007, p. 49). A partir desse episódio a Universidade de Brasília – UnB iniciou um Programa de Combate ao Racismo, no intuito de promover um processo educativo de conscientização e transformação cultural para promoção da igualdade racial (JACCOUD, 2009, p. 174). Ao mesmo tempo, diversas ações afirmativas destinadas a compensar o prejuízo histórico causado à população negra têm sido criados, tais como bônus, bolsas e até mesmo cotas para ingresso em cargos públicos, sendo as cotas para ingresso no ensino superior as políticas mais difundidas. (SILVA, 2009, p. 183). Dentro desse cenário de busca pela minoração das desigualdades raciais, havia sido criado, em 2004, o programa nacional de cotas raciais. Inicialmente estabelecido dentro da Universidade de Brasília com fundamento da autonomia universitária, a medida foi aos poucos acolhida pelas demais instituições federais de ensino superior. Alvo de uma enxurrada de ações judiciais, o programa de cotas foi levado para o Supremo Tribunal Federal – STF por um movimento contrário ao sistema de cotas, que sustentava ser a política uma medida discriminatória, pois ponderava a cor como critério de ingresso na universidade e, ao conferir tratamento desigual para ingresso no ensino superior, feria o princípio da igualdade. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF no 186, que teve por objeto a análise da constitucionalidade dos programas de ações afirmativas de universidades e que prevê um sistema de reserva de vagas baseada em critério étnico-racial, os ministros do STF, em decisão unânime, julgaram a demanda improcedente, reconhecendo a constitucionalidade do programa de cotas com fulcro no princípio da igualdade material e dignidade da pessoa humana, assegurados pela Constituição da República Federativa do Brasil – CRFB como direitos fundamentais,

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e afirmando a necessidade de serem implementadas políticas de eliminação do preconceito racial e respeito ao negro. Restou reconhecido que a reserva de vagas constitui-se uma ação afirmativa a favor da superação do preconceito e que a universidade tem um papel de integrar o jovem à realidade social, de modo que facilitar o ingresso de negros e afrodescendentes no ensino superior é uma medida de realização da missão da universidade (STF, 2014). A partir desse entendimento, e no intuito de difundir a ação afirmativa contra a discriminação racial em todo o país, foi promulgada a Lei no 12.711, de 29 de agosto de 2012, que impôs às instituições federais de ensino superior a reserva de vagas baseada em critérios raciais e econômicos. Inobstante a decisão proferida pelo STF e a promulgação da Lei no 12.711/2012, o tema ainda suscita muitas controvérsias, seja pela classe de estudantes não negros que acaba por não ingressar na Universidade, seja pela incompreensão popular sobre os efeitos transcendentes da medida para o desenvolvimento do Brasil enquanto país democrático.

3 Aspectos favoráveis às cotas raciais: a tutela da dignidade humana e da igualdade de oportunidades

Em 1988, a CRFB consagrou uma nova ordem jurídica no Brasil ao estabelecer a democracia e a dignidade da pessoa humana como seus principais fundamentos. Assegurou, dentre os direitos fundamentais da pessoa humana, o direito à igualdade e à inexistência de discriminação baseada em gênero, religião e cor da pele. A narrativa do constituinte, entretanto, não foi suficiente para consolidar uma transformação cultural na forma de ver o indivíduo de pele escura, que é ainda pouco visto nas classes mais privilegiadas da sociedade. Com efeito, a almejada dignidade humana, fundamento da CRFB, não passa de uma letra fria para grande parte da população negra. Diante dessa realidade incompatível com a ordem constitucional vigente, a política de cotas raciais abriu as portas para os debates públicos a fim de que a sociedade passe a desenvolver mecanismos efetivos de minoração do preconceito contra os negros. O tema, porém, é ainda controvertido. As críticas em torno do programa surgem pela incompreensão do seu fim maior, de oportunizar visibilidade à população negra para que, sendo vista, seja capaz de influenciar a consciência coletiva a ver o negro atribuindo-lhe a mesma dignidade que se atribui a um indivíduo de pele branca. É por tal razão que o primeiro e maior Revista Jurídica da Presidência

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argumento a favor das cotas reside no fundamento da República Federativa do Brasil: a dignidade humana. Nas lições de Sarlet, a dignidade da pessoa humana é uma: qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que [...] venham garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais. (apud TONIAL, 2008, p. 54).

A dignidade é o valor maior que qualquer ser humano almeja para que a sua existência possa ter um mínimo de sentido, para que o indivíduo perceba-se como cidadão do mundo. Trata-se de um aspecto essencial para o desenvolvimento da personalidade não apenas do contexto individual, mas também no aspecto social e comunitário. É, portanto, “um valor jurídico máximo que, juntamente com o direito à vida, embasa os demais direitos humanos, servindo de fim supremo de todo ordenamento jurídico” (TONIAL, 2008, p. 55, grifos no original). Com efeito, a dignidade embasa uma série de direitos, dentre os quais, o direito à igualdade, à liberdade, às integridades física e moral e à solidariedade, que devem ser assegurados pelo Estado para que a cidadania seja uma realidade efetiva a todo o indivíduo. Ao discorrer sobre o princípio da igualdade, Silva (2000, p. 216) reconhece que as desigualdades naturais próprias da espécie humana enriquecem a vida da sociedade e revelam a identidade de um povo. O que se almeja na Constituição, porém, “é a igualdade jurídica que embase a realização de todas as desigualdades humanas e as faça suprimento ético de valores poéticos que o homem possa desenvolver” (SILVA, 2000, p. 216), pois são as desigualdades sociais e econômicas, criadas por convenções do homem sem ponderar a singularidade de cada ser humano, que promovem a exclusão social. E foi no processo de construção social baseada numa cultura de colonização e exploração de negros africanos que a sociedade criou uma diferença de classes entre brancos e negros, e culminou com a consolidação de um modo de ver o negro associado à pobreza e ao demérito de uma vida com os mesmos privilégios que os brancos. Maliska (2008, p. 60) pondera que a própria CRFB reconhece a existência de desigualdades e marginalidade social ao estabelecer como objetivo a busca da igualdade. A igualdade efetiva, entretanto, não se constrói a partir da promoção de Revista Jurídica da Presidência

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medidas igualitárias para todos os cidadãos, pois estas refletem uma igualdade meramente formal. Em pesquisa sobre as ações afirmativas para negros como instrumento da justiça social, Silva (2009, p. 182) destaca: não se combate as desigualdades sociais, sejam elas de classes sociais, de gênero, de raças ou etnias apenas com a retórica e as leis que, embora imprescindíveis, não são suficientes. Daí a necessidade de políticas públicas não apenas macro-sociais ou universalistas, mas também específicas ou focadas. Nestas últimas se enquadram as políticas de ações afirmativas cujas polêmicas dividem a sociedade brasileira.

E nesse propósito, indispensável ponderar as desigualdades sociais existentes para que os instrumentos políticos criados a favor da igualdade possam nivelar as diferenças, equilibrando as diversas classes da sociedade, em prol de uma existência digna a todos. Este é o caminho para a realização da igualdade material. Relevante consignar a diferenciação entre igualdade de condições e igualdade de oportunidades, feita por François Dubet (apud HACHEM, 2014, p. 107), ao discorrer sobre as concepções de justiça social. A igualdade de posições reflete a busca pela igualdade das condições de vida e de trabalho entre os indivíduos integrantes de uma mesma classe, ou seja, que ostentam uma igual oportunidade de vida. A igualdade de oportunidades, por outro lado, visa assegurar que todos os seres humanos usufruam de oportunidades iguais, para poderem desenvolver suas habilidades. É fato que a população negra, por fruto de um passado escravista, foi erigida a uma condição marginalizada, que contribuiu para a consolidação de uma cultura preconceituosa. O negro, com efeito, não teve as mesmas oportunidades que indivíduos de pele clara. Desse modo, a aplicação do princípio da igualdade para eliminar os efeitos da discriminação racial quer promover a igualdade de oportunidades entre brancos e negros para que os indivíduos que carregam sobre suas vidas o fardo de um passado segregacionista possam ser vistos e respeitados e, assim, usufruírem de oportunidades iguais de acesso às classes privilegiadas da população – a iniciar pelo ingresso ao ensino superior. Sendo a igualdade um direito assegurado pela Constituição, em prol da dignidade humana, recai ao Estado o dever de torná-la efetiva. É neste contexto que as ações afirmativas de inclusão racial revelam-se como instrumentos do Estado na execução de um fim. Silva Filho (2008. p. 194-195) explica que as ações afirmativas constituem-se

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em políticas públicas ou privadas, estabelecidas com o fim de dinamizar o conceito histórico de igualdade formal, para tornar efetivo o princípio da igualdade bem como reduzir “os efeitos maléficos da discriminação institucionalizada e dissimulada” (grifos nossos). As políticas de cotas raciais englobam uma série de medidas que tem por fim corrigir uma determinada forma de desigualdade e têm sido adotadas a nível mundial para alcançar a almejada igualdade substancial nos países democráticos, compensando as gritantes diferenças que emergiram entre brancos e negros. Serve, ademais, para que os negros tenham consciência de suas diferenças e possam desenvolver formas de representação social que lhes permita ter visibilidade, a fim de desconstruir a imagem negativa que a história atribuiu a esse povo, e determinando uma elevação na estima social desses indivíduos, para que sejam capazes de reconstruir sua identidade social (CARVALHO, 2011, p. 168). Sobre essa questão, Rocha (2015, p. 115) destaca que a desigualdade racial causa à classe vítima de preconceito uma situação de subordinação que impede a realização individual e compromete as concepções mais elementares da comunidade. A política de cotas raciais encontra amparo também no princípio da antissubordinação, consagrado por condenar as práticas sociais que geram ou fazem perpetuar uma posição subordinada para determinados grupos, tal qual vive a comunidade negra. Por ocasião do julgamento da ADPF 186-2, Lewandowski (2014, p. 30-31) invocou como aspectos a favor das cotas o papel que os estabelecimentos de ensino superior têm de integrar a comunidade, razão pela qual promover a diversidade do corpo discente por meio do programa de cotas raciais, é uma medida condizente com a ordem constitucional. Esse ponto é, porém, pouco explorado. E para que se possa fazer o contraponto final, sugerindo um novo olhar para a política de cotas raciais a partir de seu fim, é oportuno analisar os argumentos utilizados pelos críticos ao sistema de cotas raciais.

4 Os argumentos críticos contra a política de cotas raciais Toda medida implementada com o fim de obter uma transformação em determinado aspecto da sociedade tem, de início, uma rejeição por parte dos membros da sociedade que, de um modo ou de outro, sentem-se afetados, em especial, por aqueles que não tenham compreendido a fundo qual a mudança cultural almejada. Com efeito, assim também ocorreu com a política de cotas raciais. Santos (2009, p. 2) avalia o programa de cotas a partir de uma análise comparada Revista Jurídica da Presidência

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e afirma ser incompatível adotar medidas antirracistas semelhantes às dos Estados Unidos em razão de o problema da exclusão social do negro no Brasil decorrer de uma relação socioeconômica e não da existência notória de diferença de classe entre brancos e negros, tal como ocorre nos Estados Unidos. Lustoza (2009, p. 178) afirma que a história demonstra que a escravidão no Brasil teve como causa o poder econômico dos colonizadores que, ávidos por mão de obra barata, passaram a exportar negros africanos – que se mostraram mais pacíficos do que os índios – para trabalhar como escravos. O autor conclui que o negro não alcançou os melhores estratos sociais porque a maioria é descendente de escravos e herdou a condição financeira deficitária de seus ancestrais. Ambos vislumbram que o problema da etnia negra tem raiz econômica, e não racial, razão pela qual mostra-se imprópria a criação de cotas para solucionar o problema da exclusão social do negro. Para Santos (2009, p. 2) os Estados Unidos eram marcados por uma cultura fortemente segregacionista e racista, que dominava o mercado de trabalho, a educação e o sistema político, a ponto de haver instituições de ensino exclusivas para negros, cujo direito a cargos públicos e empregos em empresas privadas era explicitamente cerceado, diferentemente do que ocorreu no Brasil. Durham (2014, p. 3) entende que a prática do racismo nos EUA era explícita, sendo que o mecanismo de cota buscava inserir direitos iguais. No Brasil, por sua vez, a discriminação se dá mais em virtude da posição social e econômica da pessoa do que em relação a sua cor. Percebe-se que, aos olhos de tais críticos, o problema maior do Brasil está na desigualdade econômica. Todavia, todos os autores afirmam que, embora o Brasil não seja um país marcado por um segregacionismo institucionalizado, comporta em seu território uma classe negra vítima de preconceito que deve ser combatido – não havendo uma proposta efetiva dos autores do modo como esta discriminação racial deve ser eliminada. Para os opositores, as cotas raciais ferem o princípio constitucional da isonomia e do tratamento igualitário para ingresso no ensino superior. Isso porque, à luz do art. 208 da CF, o acesso aos níveis mais elevados de ensino e pesquisa deve ser promovido segundo a capacidade de cada um. Para dar execução a esse dispositivo, foi estabelecido o exame vestibular como mecanismo para aferir a aptidão individual para ingresso no ensino superior baseado, portanto, no mérito individual (caráter meritório) (LUSTOZA, 2009, p. 184). Spalding (apud SILVA FILHO, 2008, p. 204-205) afirmou que o ingresso na

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universidade deve ser feito a partir de um critério único de aferição da capacidade intelectual, tendo em vista que as Universidades são locais destinados ao exercício da pesquisa e extensão, de modo que um estudante que nela ingressa deve demonstrar possuir aptidão intelectual suficiente e indispensável para o exercício da ciência. Esse foi o mesmo argumento utilizado pelos autores na ADPF no 186, que levou a questão das cotas ao STF e que, como visto, não restou acolhido. Durham (2014, p. 3) afirma que o sistema de cotas contraria o espírito universalista da CRFB e da LDB, que vedam distinções por gênero, raça e etnia, pois entende que nesse modelo brancos e negros passam a ter um sistema de competição totalmente diferenciado, não concorrendo entre si. Para a autora, o ingresso de modo facilitado para negros caracteriza sua inaptidão dentro de igualdade de disputa, de modo que o estudante ou profissional que se beneficiou do sistema de cotas raciais será visto com desconfiança a partir de uma presunção de que não tem a mesma habilidade intelectual do que os demais candidatos, reforçando as práticas discriminatórias. Os críticos da política de cotas aduzem também que o sistema oficializa a existência de duas raças distintas, pois exige que o candidato, no ato da inscrição para o vestibular, se declare branco ou negro, contrariando o ideal de estabelecer-se uma nação despida de desigualdade baseada na cor e raça, e ferindo a igualdade constitucional que se almeja alcançar. (DURHAM, 2014, p. 3; SANTOS, 2009, p. 2) Para Lustoza (2009, p. 12) e Durham ( 2014, p. 3) as cotas raciais não resolvem o problema da desigualdade da educação, pois a raiz da exclusão dos negros está nas condições econômicas que inviabilizam o acesso a instituições de qualidade e permanência nos ensinos fundamental e médio. Os estudiosos contrários ao sistema de cotas insurgem-se contra o modelo também pelo fato de que a política não amplia o número de vagas no ensino superior, apenas substitui brancos por negros, continuando a excluir uma classe da população dos bancos acadêmicos. Aduzem, por fim, a injustiça de um sistema que estabelece uma reserva de vagas a partir de um percentual fixo, pois implica em privilégios excessivos a negros de determinadas regiões, que concorrem em menor número a uma quantidade bem maior de vagas quando comparados com a disputa dos brancos entre si. (DURHAM, 2014, p. 04). Os argumentos expostos traduzem os principais aspectos rebatidos pelos opositores às políticas de cotas raciais, que alegam ser uma medida inconstitucional e inadequada para minoração da desigualdade racial. Todavia, o que deve ser sopesado não é apenas a adequação das cotas como

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um mecanismo de acesso igualitário para indivíduos negros ao nível superior, mas principalmente sua eficácia na transformação cultural da forma de se ver o negro como membro integrante da sociedade. É notório que negros sofrem discriminação. E nesse ponto os autores se questionam: de que modo a sociedade pode dar maior visibilidade ao negro, com o objetivo de formar uma nova cultura não discriminatória, se não facilitando o ingresso nas universidades, onde se capacitarão para adentrar nos diversos segmentos da sociedade, atualmente pouco ou nada ocupados pelos negros? Assim, para que se possa fazer uma nova reflexão sobre a finalidade das cotas raciais como um instrumento de transformação cultural, é necessário refletir sobre a missão da universidade na formação do jovem profissional e o seu papel perante a sociedade.

5 O papel da universidade na transformação cultural A educação tem por fim promover o pleno desenvolvimento do indivíduo e prepará-lo para o exercício da cidadania e da qualificação profissional. Para regular as diretrizes e bases do sistema de educação nacional, foi editada a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), com o fim de disciplinar todos os níveis de ensino. No art. 43, a LDB estabelece as finalidades da educação superior, dentre as quais a formação de indivíduos diplomados nas diversas áreas do conhecimento e aptos para inserção profissional, bem como na participação do desenvolvimento da sociedade brasileira. Prevê, ainda, a finalidade de estimular o acadêmico a conhecer os problemas do mundo, em especial os problemas nacionais e regionais, e estabelecer uma relação de reciprocidade com a comunidade. Percebe-se que o ensino superior não tem por fim apenas oferecer qualificação profissional. De acordo com a LDB, o ensino superior tem por fim formar profissionais que possam interagir com a comunidade em que vivem, compreendendo seus problemas e contribuindo com o seu desenvolvimento. Esse espírito não é um ideal isolado previsto na lei brasileira. As universidades são, ou ao menos deveriam ser, centros de excelência na formação da cidadania, motivo pelo qual, ao longo dos tempos, percebe-se em todo o mundo uma modificação gradativa na função da universidade e na compreensão, por toda a sociedade, dessa missão institucional. Berchem (1991, p. 82) destaca que desde os anos 60 até a década de 90 a política universitária de países industrializados era definida por critérios econômicos: Revista Jurídica da Presidência

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a universidade é um centro de formação do profissional qualificado para atender as necessidades do mercado de trabalho e também centro de pesquisa para promoção da economia nacional. Todavia, a formação adequada de um profissional demanda mais do que conhecimento técnico-científico. É necessário oportunizar ao acadêmico o aprimoramento cultural, ou seja “o desenvolvimento das faculdades humanas na confrontação com a natureza, com a vida social, na criação de uma esfera de atividade intelectual fora do trabalho da vida prática” (BERCHEM, 1991, p. 83). Um profissional que não é capaz de compreender a diversidade da sociedade não será capaz de desenvolver as habilidades necessárias para sua qualificação completa. Por tal razão, dentro da finalidade de promover o desenvolvimento profissional, a universidade tem a função de enfocar a relação entre cultura e ciência como parte do processo de formação superior de modo a introduzir aspectos culturais no ensino da ciência (BERCHEM, 1991, p. 83). A universidade, ao distribuir conhecimento, não o faz apenas a seus membros e acadêmicos, mas busca atingir também as comunidades local e regional em que está inserida com o fim de promover o desenvolvimento e a melhoria de seus diversos setores (BERCHEM, 1991, p. 84). O autor defende que para a formação de uma ampla visão de mundo, o estudante deve entrar em contato com ramos distintos do seu. Não basta o contato com disciplinas diversas, “interdisciplinaridade significa, antes de tudo, capacidade de diálogo [...]. É a faculdade de compreender os outros e, por este caminho, dedicar-se à questão em foco” (BERCHEM, 1991, p. 84, grifos nossos). A universidade, portanto, tem uma tarefa particular de se tornar um lugar de diálogos entre culturas, com vista à formação do caráter do cidadão, permitindo que desse contato nasça uma “simpatia, admiração, amor pelo outro diferente de si, não somente na busca de uma alternativa possível para sua própria cultura, mas também numa preocupação de complementaridade fecunda” (BERCHEM, 1991, p. 87). A compreensão dessas diferenças é que permitirá o desenvolvimento de habilidades e ideias de projetos a serem criados para servir a todos os membros da sociedade, contribuindo para uma realidade de vida mais harmônica. Trata-se do desafio do ensino superior do mundo contemporâneo fazer com que o estudante, o futuro profissional, compreenda as diferenças dramáticas que permeiam a sociedade, devendo as universidades implementarem medidas adequadas a essas finalidades, oportunizando um contato constante com a diversidade.

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Sobre o papel das universidades, Wanderley (1999. p. 41) destaca que “o ensino deve balancear as exigências profissionais de caráter pragmático e utilitarista com as exigências de uma formação geral humanista e que propicie valores éticos fundamentais”. Berchem (1991, p. 83) defende que, para que a universidade cumpra sua missão de promoção da diversidade, mister que lhe seja garantidas autonomia e liberdade, para que possa determinar quais os modos de transmissão do conhecimento e critérios de seleção dos seus estudantes que serão condizentes com sua missão. É justamente nessa missão universitária, na formação de um profissional integrado com o mundo em que vive, que as cotas raciais devem ser repensadas. Esse programa permite que todos os estudantes, independentemente da origem étnica ou social, tenham contato com indivíduos negros e desenvolvam uma forma ampla de pensar, compreendendo no seu quotidiano parte da diversidade da sociedade em que vive e que merece ser respeitada. Colossi (2002. p. 268) destaca que as universidades são espécies de instituições sociais, ou seja, são entidades estáveis, criadas com o fim de realizar as expectativas e interesses da sociedade como um todo na busca de uma melhor qualidade de vida do ser humano. Nas palavras do autor: La Universidad, como Institución Social, es un organismo vivo, una entidad estructurada a partir de normas, ideales y valores para atender las expectativas e intereses socio-cultural-político-económicos. Por eso, La Universidade ante de todo es, un concept, un ideal substantivo del hombre personaje principal de la vida humana asociada2. (COLOSSI, 2002. p. 268).

A sociedade passa por diversas mudanças, em especial na troca de valores e na concepção de ver o homem, exigindo que sejam adotados novos paradigmas que consideram o homem o elemento central desse cenário de transformação. As universidades são também afetadas por esse processo de transformação que desperta a necessidade de repensar sua missão dentro da sociedade para incorporar novas concepções (COLOSSI, 2002, p. 268). É necessário que as universidades revejam seus paradigmas para atender melhor aos fins da educação, desenvolvendo a atividade de pesquisa e, com efeito,

2  A Universidade, como Instituição Social, é um organismo vivo, uma entidade estruturada a partir de normas, ideais e valores para atender as expectativas e interesses sócio-cultural-político-econômicos. Por isso, a Universidade é, antes de tudo, um conceito, um ideal substantivo do homem, personagem principal da vida humana associada (traduzido pelos autores). Revista Jurídica da Presidência

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atendendo aos anseios de uma sociedade globalizada (DEMO, 1994, p. 25). Com efeito, para atender às finalidades traçadas pelo art. 43 da LDB, a universidade deve educar o estudante para o desenvolvimento do respeito por todos os membros da comunidade, independentemente de suas concepções de mundo, crença religiosa e origem étnica. Tal saber somente será possível se os estudantes estiverem diariamente em contato com as diferenças que reinam na sociedade brasileira. A política de cotas raciais no Brasil iniciou-se, como visto, por uma ação da UnB, que agiu no gozo da sua autonomia universitária, para oportunizar o acesso ao ensino superior aos jovens negros marginalizados pelo passado e para que tenham condições de ingressar no mercado de trabalho em mesmo nível de competitividade do que os estudantes brancos. Com tal medida, a universidade promove a visibilidade do negro e permite que os demais estudantes tenham em mente o problema social da discriminação racial que ainda reina no país, não obstante passados mais de 120 anos da abolição da escravidão. Ainda que se queira associar a marginalização do negro ao aspecto pecuniário, é fato notório que o preconceito racial existe e deve ser eliminado da sociedade. A universidade, como centro de qualificação técnica e formação de um profissional capaz de interagir com a sociedade, tem o dever de promover medidas tendentes a transformar a cultura geral na formação de uma nova realidade social. As cotas raciais, portanto, vêm a ser instrumento da missão das universidades e da realização das finalidades do ensino superior.

6 Cotas raciais e o princípio da proporcionalidade: a necessária transformação social para consolidação da cultura antidiscriminatória

A construção do ordenamento jurídico é incapaz de acompanhar a velocidade do desenvolvimento da sociedade. A consequência é que a solução de determinados conflitos precedem a grandes embates doutrinários, de onde emergem diversos entendimentos antagônicos. Quando se evidencia o conflito de interesses e a inexistência de uma previsão normativa apta a definir uma questão social, a solução pode advir da invocação dos princípios albergados pelo ordenamento jurídico. Os princípios jurídicos constituem a base da formulação e interpretação do sistema de normas jurídicas; são enunciados lógicos indispensáveis para que se possa compreender de forma ordenada todas as partes que compõem um sistema jurídico positivado. Mello (2008, p. 153) afirma que princípios são mandamentos nucleares de Revista Jurídica da Presidência

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um sistema; são “a disposição fundamental que se irradia sobre diferentes normas compondo-lhes o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência”, promovendo-lhe um sentido harmônico. Anteriormente, o sistema jurídico tinha forte caráter positivista, o que implicava a utilização dos princípios, sobretudo como instrumento de interpretação do Direito. Nas últimas décadas, a construção do ordenamento jurídico pelas normas abstratas não tem sido capaz de solucionar os conflitos sociais emergentes, razão pela qual os princípios jurídicos têm sido cada vez mais utilizados para fundamentar a concessão da tutela jurídica necessária às peculiaridades da vida de cada cidadão. Um dos princípios que tem alcançado grande relevo e aplicabilidade é o princípio da proporcionalidade. De origem alemã, as bases que sustentam tal princípio fazem confrontar o fim e o motivo que justificam uma determinada intervenção estatal com os efeitos que esta intervenção provoca, visando um controle e prevenção de eventuais excessos. (BONAVIDES, 1999, p. 357). O princípio da proporcionalidade é constituído por três elementos-chaves de interpretação: a adequação, a necessidade e a proporcionalidade em sentido estrito. O critério da adequação – ou aptidão – examina se a medida adotada para a realização de determinado interesse público é viável à obtenção do fim almejado. A necessidade – ou menor ingerência – traduz uma indicação de que uma determinada medida somente se legitima quando mostra-se indispensável ao caso e desde que não haja outra ação igualmente efetiva e menos lesiva. O critério da proporcionalidade em sentido estrito impõe que a escolha da medida estatal leve em conta o conjunto de todos os interesses envolvidos, devendo-se contrapor o peso dos bens e direitos na busca de uma medida que ofereça a melhor proporção entre meio e fim. Para Pontes (2000, p. 70) a proporcionalidade em sentido estrito consiste na ideia nuclear do princípio da proporcionalidade, que consolida a análise concreta dos interesses das partes envolvidas no ato jurídico, ao promover a formulação de um juízo de avaliação do peso específico que o mecanismo estatal representa sobre a limitação sofrida pelo indivíduo em função da tutela a outro direito. A técnica da ponderação de interesses não tem por fim afastar a importância do direito que se repele em face do direito que se prestigia. A aplicação do princípio da proporcionalidade é um mecanismo de solução de conflito onde, na análise de uma situação específica, percebe-se que inexiste outro caminho além daquele que irá lesar, em alguma escala, outro direito igualmente protegido pela ordem jurídica (CAMPOS, 2004, p.28).

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Cotas raciais para ingresso no ensino superior: a missão da universidade na transformação cultural

As cotas raciais facilitam o ingresso do negro no ensino superior, com a finalidade de eliminar o preconceito. Seu fundamento constitucional é a dignidade humana, o direito à igualdade e a vedação de qualquer forma de discriminação, e é contestado, entre outros fundamentos, pela alegação de violação do mesmo princípio da igualdade ao prever condições diferenciadas de acesso ao ensino superior. O ensino superior tem por missão, além da qualificação profissional, a formação cultural e a inserção social do jovem universitário. A partir desses aspectos é que deve ser feita a análise da legitimidade do programa de cotas raciais. Confrontando-se os argumentos críticos trazidos no item 2.4 percebe-se que Santos (2009, p. 2) se insurge contra o programa ante a inviabilidade de compararse a discriminação existente no Brasil com aquela existente nos Estados Unidos. Ainda que seja em menor nível, as práticas de discriminação racial no Brasil existem, e os efeitos “são os mais perniciosos possíveis na formação do imaginário no senso comum de toda a população brasileira” (SILVA FILHO, 2008, p. 193). As práticas discriminatórias refletem-se “nas relações sociais onde, inconscientemente, pode atuar, como se constata nas pesquisas estatísticas sobre educação, mercado de trabalho, criminalidade, presença nas artes etc.” (grifos do original), razão pela qual necessitam de um combate emergente. Não é somente o negro que sofre com a exclusão, mas toda a sociedade que deixa de valorizar o potencial existente em indivíduos excluídos pela cor. Desse modo, uma medida social que busca uma transformação cultural em convergência com os fins da educação superior prepondera sobre a circunstância de que em determinado país onde as cotas já foram implementadas a discriminação ocorre em nível superior ao do Brasil. Lustoza (2009, p. 178) e Durham (2014, p. 3) invocam a necessidade de combater a exclusão racial a partir de medidas de nivelação socioeconômica, pois a exclusão do negro não decorre da sua cor, mas do fato de ser pobre e não ter condições de frequentar um ensino básico de qualidade, capaz de concorrer em igualdade com as pessoas de maior renda – em geral brancas. Ocorre que, não obstante a pobreza de maior parte da população negra possa decorrer de fatores socioeconômicos, Ferreiras e Mattos (2007, p. 50-51) mostram que o ciclo de racismo reproduz-se, sendo difícil para negros ascenderem e romperem com os estigmas raciais enraizados na cultura da sociedade. Nascer negro está relacionado a maior probabilidade de ser pobre e a menor escolaridade. Essa situação não pode ser tratada como simples herança da escravidão.

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O racismo é recriado e alimentado a cada dia, e reforça um ciclo cumulativo de desvantagens para a população afro-brasileira (FERREIRA; MATTOS, 2007, p. 52). Essa prática social causa danos de diversas ordens na mente e formação dos afrodescendentes, em especial na construção de uma identidade pessoal própria, sendo necessárias medidas sociais que possam construir uma nova forma de ver o negro. Lustoza (2009, p. 178) e Durham (2014, p. 3) sugerem que a discriminação poderá ser solucionada por meio de um processo de aprimoramento na educação de base da rede pública de maneira a permitir que negros – em sua maioria pobres – frequentem um ensino básico que lhes permita concorrer em igualdade de condições com brancos que, em geral, estudam em melhores cursos preparatórios de ingresso no vestibular. Percebe-se, porém, que o programa de reserva de vagas em nenhum momento contrapõe-se com medidas de aprimoramento da educação básica pública. Ao revés, são mecanismos complementares, em prol de uma educação de qualidade no Brasil. A educação básica de qualidade permitirá que negros sejam mais qualificados e aptos a concorrer no ensino superior. Todavia, não elimina a necessidade imediata de dar-se visibilidade ao negro a partir das gerações atuais – e em especial, das gerações negras que já se passaram, e que não tiveram a oportunidade de estudar em uma escola pública de qualidade. Um estudo elaborado sobre o impacto da Lei no 12.711/12 revela que adoção de ações afirmativas baseadas em classes sociais, sem ponderar o aspecto racial, não se mostram eficazes para promover a integração social, pois acabam mantendo afastados os grupos discriminados pela cor (FERES JÚNIOR et al., 2013, p. 10). Assim, ao contrabalancear esse argumento com a realidade social dos negros, retratada por Ferreiras e Mattos (2007, p. 51-52), e o alcance das cotas raciais na promoção da transformação cultural, conclui-se que deixar de reconhecer a legitimidade do programa de cotas raciais para aguardar-se os efeitos do início do aperfeiçoamento da educação básica e outras medidas de caráter econômico implica em permanecer inerte diante da perpetuação de uma sociedade discriminatória. Desse modo, na ponderação de valores sugerida pelo princípio da proporcionalidade, romper o programa de cotas para aguardar uma nova medida implica em sufocar o direito fundamental da dignidade humana e o direito ao respeito à origem étnica-racial. Quanto à alegada afronta ao princípio da isonomia e do tratamento igualitário para ingresso no ensino superior e à necessidade de adotar um critério que aufira a

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capacidade intelectual do candidato, sob o risco de desqualificar o ensino superior, trata-se de argumento precário diante do atual cenário da educação superior. Isso porque o exame vestibular – assim como demais provas escritas de seleção – nem sempre traduzem a efetiva capacidade intelectual dos candidatos. Fatores de ordem psicológica, emocional, e até mesmo sorte podem interferir no resultado final, sendo notório que ingressam nos quadros acadêmicos pelo sistema tradicional de vestibular alunos com baixo desempenho, muitas vezes incapazes de formular um parágrafo de texto dentro dos padrões mínimos da língua culta (FERREIRA; MATTOS, 2007, p. 59). Ademais, como observa Silva (2009, p. 184), em diversas universidades onde o programa de cotas raciais é utilizado, os estudantes cotistas apresentam resultados equivalentes aos não cotistas, e sujeitam-se aos mesmos critérios de avaliação durante o curso, de modo que as cotas raciais estão longe de contribuírem para a desqualificação do ensino superior. Pesquisas realizadas pelo Instituto Paulo Montenegro – organização social sem fins lucrativos, criada em 2000 com o objetivo de avaliar a qualidade da educação no Brasil – apontam que em 2011 apenas 62% das pessoas que apresentam nível superior de escolaridade são considerados alfabetizados plenos. Ou seja, mais de 30% dos diplomados não são capazes de realizar operações de raciocínio e de analisar de forma crítica uma questão do quotidiano que lhe é posta. A situação apresenta uma realidade ainda pior na análise do ensino médio, em que apenas 35% são considerados capazes de ler e compreender textos longos e realizar operações matemáticas sem dificuldades (IPM, 2012). Tais dados demonstram que a educação no Brasil está em crise de qualidade, mas tal cenário decorre de fatores sociais diversos, como falta de investimento em estrutura, desvio e desperdício de verbas, desvalorização da classe docente, fatores que marcam o cenário de crise da educação superior desde a década de 80 (WANDERLEY, 1999, p. 79). Ademais, o contexto atual da educação é marcado pela influência em massa dos meios de comunicação, com enxurrada de informação e recursos sociais que tiram do acadêmico o foco de atenção nos estudos e na formação. Ou seja, não é o programa de cotas raciais que diminui a qualidade do ensino no País. De maneira oposta, chama a atenção esse outro dilema social que precisa ser superado, sendo que o programa de cotas poderá somar no processo de modificação do ensino no País. No julgamento da ADPF 186, Lewandowski (2014, p. 29) destaca que a política

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de ação afirmativa possibilita a criação de liderança na classe de indivíduos discriminados que, ao serem capazes de lutar pela defesa de seus direitos, podem servir como paradigma de integração e ascensão social. Ao justificar a importância da interação, Lewandowski reproduz as lições de Bauman, que afirma: Quanto mais as pessoas permanecem num ambiente uniforme – na companhia de outras “como elas” com as quais podem ter superficialmente uma “vida social” praticamente sem correrem o risco da incompreensão e sem enfrentarem a perturbadora necessidade de traduzir diferentes universos de significado -, mais é provável que “desaprendam” a arte de negociar significados compartilhado e um modus operandi agradável. (BAUMAN apud LEWANDOWSKI, 2014, p. 29).

A convivência entre indivíduos pertencentes a diferentes classes sociais traz a oportunidade de compreensão maior da realidade que o cerca, e estimula o respeito à diversidade. Formar um corpo discente diversificado possibilita que representantes das minorias e das classes marginalizadas assumam posições de liderança na vida pública e profissional, contribuindo com o propósito cívico da universidade e com a busca do bem comum (SANDEL, 2011, p. 213). Com efeito, o argumento de que as cotas raciais diminuem a qualidade de ensino não encontra respaldo, pois a crise da qualidade do ensino superior remonta a período anterior a qualquer política de cotas raciais, razão pela qual uma medida afirmativa que traz como efeito uma nova forma de ver a sociedade poderá, inclusive, fomentar os debates e movimentos da busca da melhoria de ensino no país. Ao analisar a justiça da política de cotas raciais, Dworkin (2002, p. 368) considera que a capacidade intelectual não pode ser utilizada como único fator para ingresso nas universidades, pois a equidade está em estabelecer critérios que considerem todos os membros da sociedade, tratando-os como iguais e ponderando as diferenças inatas de cada ser a fim de compor um modelo condizente com a missão da universidade. Assim, tendo por dever formar profissionais capazes de interagir com a sociedade e contribuir para o seu desenvolvimento, a universidade não tem por fim formar apenas os mais inteligentes, mas incluir em seu corpo discente indivíduos detentores de determinadas características especiais, necessárias à formação social, o que afasta o direito do candidato reivindicar por um processo de seleção linear, baseado tão somente na aferição da capacidade intelectual (MENESES DOS REIS, 2014, p. 2). Revista Jurídica da Presidência

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Quanto ao argumento de que a inexistência de raças definidas no Brasil torna dificultosa a definição de critérios que atribuam a um indivíduo a qualidade de negro e afrodescendente, diante da ponderação dos valores conflitantes, é certo que uma medida criada com o fim de alcançar uma transformação cultural e conferir dignidade aos negros não pode ser considerada ilegítima diante das dificuldades de sua implementação. Todo o projeto constitui uma idealização em abstrato, e a perfeição de seus efeitos dependerá de ajustes a serem realizados durante a execução, quando as dificuldades reais vierem à tona. Desse modo, se o fim é dar efetividade a um direito fundamental da pessoa humana, e o meio mostra-se adequado, inexistindo outra medida a ser adotada com o mesmo efeito imediato, as dificuldades encontradas ao longo de sua execução devem ser analisadas e aperfeiçoadas, e não utilizadas para justificar a inércia estatal diante da notória discriminação racial. Por fim, desarrazoado também o argumento de que a ação afirmativa de cotas raciais estimula as práticas racistas. O preconceito existe no quotidiano da vida em sociedade que, em regra, delega ao negro as funções menos prestigiadas e, não raras vezes, lhe desfere um olhar desconfiado. Assim como na ciência farmacêutica muitos antídotos são criados a partir de pequenas porções do veneno que se quer combater, também o problema social do racismo exige uma ação discriminatória que se revela positiva diante dos efeitos que busca produzir. É justamente por tal razão que são chamadas discriminações positivas. Para combater o racismo é indispensável levar o aspecto racial em consideração. É necessário trazer aos olhos da sociedade o indivíduo oculto, à margem, para que uma nova visão social seja criada. Para que a dignidade humana seja um direito efetivo a todos, é necessário, em um primeiro momento, tratar de forma especial as classes marginalizadas pelo preconceito racial (BLACKMUM, apud DUARTE, 2007, p. 1). Não se trata de fomentar as práticas raciais, mas justamente combater o racismo que predomina na sociedade brasileira. Afinal, uma Constituição que reconhece que há discriminação e desigualdades na sociedade não pode legitimar leis e políticas públicas que tratam todos os cidadãos de igual forma, mantendo e reproduzindo a situação de desigualdade real. Não efetivar medidas compensatórias tendentes a reduzir as desigualdades representa, na análise de Maliska (2008, p. 64), uma omissão inconstitucional. A legitimidade da política de ações afirmativas baseada na reserva de vagas para negros no ensino superior deve ser analisada, portanto, a partir de seu fim

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maior: promover a transformação cultural na forma de ver o negro. E esse papel é afeto à universidade. “Muito mais do que um local criado para divulgar a cultura universal, produzir ciência e formar profissionais, a universidade é hoje, um instrumento para transformação da sociedade”, como aduz Wanderley (1999, contracapa). Ao garantir o pluralismo de ideias e a liberdade de pensamento, e promover o contato com a diversidade, a universidade cumpre o papel de estimular os debates críticos às instituições e ao sistema político, motivando a busca para as urgentes transformações de cunho social. Desse modo, contrabalanceando-se os argumentos críticos com a finalidade de promover uma transformação cultural e os direitos fundamentais tutelados, concluise que o programa de cotas raciais mostra-se adequado ao fomentar a diversidade e promover a visibilidade do negro e, diante da inexistência de outra medida de igual eficácia, a ação afirmativa adotada a favor da redução da desigualdade racial encontra legitimidade.

7 Conclusão Alvo de um acirrado debate de argumentos doutrinários, a questão das cotas raciais no Brasil busca consolidar uma nova cultura, de modo a transformar a visão geral da forma de ver o negro. A visibilidade que as cotas têm proporcionado aos negros demonstra a importância dos debates para criação de novas medidas, tal qual o programa de reserva de vagas para negros em concurso público, recentemente instituído pela Lei no 12.990, de 9 de junho de 2014. Com tais instrumentos, indivíduos de cor escura passarão a ter oportunidade de adentrar em variados setores da sociedade onde a presença de negros é rara, e proporcionar a todos o contato com a diversidade e, em consequência, conquistar o respeito e a dignidade almejados. Eliminar as políticas de cotas raciais para acesso ao ensino superior representaria um retrocesso social na busca da eliminação do preconceito. Não obstante, as críticas se fazem necessárias. Afinal, são os olhares antagônicos que despertam a busca pelo aprimoramento. Por tal razão, os argumentos críticos devem ser considerados e analisados, não com o fim de frear esse processo, mas com o intuito de continuaremse os debates para o aperfeiçoamento dos mecanismos de inclusão. Toda política pública de promoção social encontra seus dilemas no momento da execução, mas as dificuldades não podem intimidar as ações que se fazem necessárias. É importante ter em mente o objetivo final que se almeja, a necessidade Revista Jurídica da Presidência

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da medida e a adequação do meio empregado para realização do fim. Desse modo, sugere-se a análise das cotas raciais a partir de aspecto mais amplo, e uma reflexão sobre o papel da universidade nesse processo de transformação cultural para superação da discriminação racial, contribuindo para a consolidação de ações afirmativas destinadas à promoção da justiça social da população negra, nos diversos segmentos da sociedade.

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Responsabilização estatutária e os avanços do penalismo JOSIANE ROSE PETRY VERONESE Doutora e Mestre em Direito (UFSC). Coordenadora do Núcleo de Estudos Jurídicos e Sociais da Criança e do Adolescente – Nejusca (UFSC). Professora Titular na Graduação e nos Programas de Mestrado e Doutorado em Direito (UFSC).

DANIELLE MARIA ESPEZIM DOS SANTOS Doutoranda e Mestre em Direito (UFSC). Líder do Grupo de Pesquisa Novos Direitos e Sociedade (Unisul). Professora (Unisul e Esmesc). Artigo recebido em 21/08/2014 e aprovado em 29/07/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A Doutrina da Proteção Integral: um paradigma em aplicação 3 A Responsabilidade estatutária ou sociopedagógica 4 Jogando a criança fora com a água suja do banho 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: A responsabilização de adolescentes em face da prática de atos antissociais, no Brasil, assumiu depois de 1990, por intermédio do Estatuto da Criança e do Adolescente, uma concepção pedagógica, com características diametralmente opostas à concepção oficial anterior, de bases autoritária e individualizada, centrada na perspectiva penal de controle social. A responsabilização estatutária perpassa elementos centrais da doutrina adotada, chamada de proteção integral, incompatíveis com os ditames da lei penal. Na aplicação da responsabilização estatutária, as esperadas dificuldades surgiram e receberam respostas legais, na forma preponderante da criação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo – Sinase, ambas já no século XXI. Contudo, a existência de influente corrente doutrinária denominada de direito penal juvenil, no Brasil, tende a ocultar e inviabilizar a prática pedagógica da apuração do ato infracional e das medidas socioeducativas. PALAVRAS-CHAVE: Direito da Criança e do Adolescente Ato infracional Responsabilização estatutária Direito penal juvenil. Revista Jurídica da Presidência

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Responsibility by means of children and juvenile statute and the juvenile penal law CONTENTS: 1 Introduction 2 The Doctrine of Integral Protection: a paradigm in application 3 The statutory or socio-pedagogical responsibility 4 Throwing the child out with the bathwater 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: After 1990, with the enactment of the children and juvenile statute, the responsibility of adolescents for the practice of antisocial acts in Brazil, got a pedagogical conception opposed to the preceding official view, with authoritarian and individualized characteristics, centered in the criminal perspective of social control. The statutory responsibility permeates the core elements of the legal doctrine adopted, called Integral protection, which are incompatible with the precepts of the penal law. On the application of the statutory responsibility, some expected difficulties emerged and legal responses have been given mostly by creation of the Unified Social Assistance System – SUAS and the National System of Socio-Educational Services – Sinase, both already on the XXI century. However, the existence of an influential doctrinal trend called juvenile penal law, in brazil, tends to conceal and derail the pedagogical practice of verification of infraction and socio-pedagogical measures. KEYWORDS: Children and adolescents law Juvenile offense Statutory responsibility Juvenile penal law.

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Responsabilidad por el estatuto jurídico del niño y del adolescente y lo derecho penal juvenil CONTENIDO: 1 Introducción 2 La Doctrina de la Protección Integral: un paradigma en aplicación 3 La responsabilidad legal o socio-pedagógica 4 Jugar al niño con el agua del baño sucia 5 Conclusión 6 Referencias.

RESUMEN: La responsabilización de adolescentes en faz de la práctica de actos antisociales, en Brasil, asumió tras 1990, por intermédio del Estatuto del Niño y del Adolescente, una concepción pedagógica, con características diametralmente opuestas a la concepción oficial anterior, de bases autoritaria e individualizada, centrada en la perspectiva penal, de control social. La responsabilización estatutaria perpassa elementos céntricos de la doctrina adoptada, llamada de protección integral, incompatibles con los dictámenes de la ley penal. En la aplicación de la responsabilización estatutaria, las esperadas dificultades surgieron y recibieron respuestas legales, en la forma preponderante de la creación del Sistema Único de Asistencia Social (SUAS) y del Sistema Nacional de Atención Socioeducativo (Sinase), ambas ya el siglo XXI. Pero, la existencia de influyente corriente doctrinaria denominada de derecho penal juvenil, en Brasil, tiende a ocultar e impossibilitar la práctica pedagógica del cálculo del acto infracional y de las medidas socioeducativas. PALABRAS CLAVE: Derecho del Niño y del Adolescente Acto Infracional Responsabilización Estatutaria Derecho Penal Juvenil.

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1 Introdução

O

Direito da Criança e do Adolescente, instaurado no Brasil com a Constituição da República Federativa do Brasil, em especial pela sua norma regulamentadora, o Estatuto da Criança e do Adolescente – Estatuto (BRASIL, 1990), ao abranger a sistematização de direitos e garantias de pessoas com idade entre zero e dezoito anos, por intermédio da adoção da Doutrina da Proteção Integral, tem a função de ser responsável por nortear o procedimento referente aos processos de apuração do ato infracional e as consequências dele decorrentes. O Estatuto prevê nos incisos I a VI do art. 112, a aplicação de medidas socioeducativas – advertência, prestação de serviços à comunidade, reparação do dano, liberdade assistida, semiliberdade e internação – e/ou medidas específicas de proteção – orientação e acompanhamento temporários; matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; e requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial, conforme previsto no inciso VII do artigo 112, bem como – não se poderia deixar de lado – via remissão, como forma de atenuação do processo ou mesmo perdão, de acordo com os termos dos artigos 126 a 128 (BRASIL, 1990). No caminho da aplicação do Estatuto da Criança e do Adolescente, no campo relativo à apuração e ao processamento do ato infracional, surgiu uma corrente denominada Direito Penal Juvenil, que se formou na esteira do desvelamento das promessas jamais cumpridas do Direito Penal e da opção pelo Direito Penal Mínimo como contraponto das históricas distorções da repressão estatal a atos antissociais cometidos por maiores de idade. Paradoxalmente, essa corrente entende que o Direito da Criança e do Adolescente deva submeter-se a pressupostos garantistas (FERRAJOLI, 1989, p. 853) que, como concebem, seriam específicos do Direito Penal. A característica garantista do ordenamento jurídico brasileiro não se discute, apenas a sua necessária vinculação a um sistema de responsabilização penal juvenil. Para os limites do presente trabalho, a concepção garantista não será aprofundada; parte-se apenas do pressuposto de que está acolhida no quadro político-jurídico nacional, visto que a centralidade da pessoa humana, os direitos e as garantias individuais, sociais e transindividuais assumidos pelo Estado brasileiro por seu sistema normativo vigente redundam logicamente na vinculação das três funções estatais (executiva, legislativa e judiciária) também em sede de Direito da Criança e do Adolescente. Revista Jurídica da Presidência

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O Direito Penal Juvenil vem à tona pelas mãos de um grupo de bem intencionados e bem articulados estudiosos brasileiros1 que pretendia – e ainda pretende – proteger adolescentes do poder estatal diante da concepção de que medidas socioeducativas são um eufemismo para ocultar o caráter retributivo e punitivo dessa resposta estatal a menores de idade. Afirmando sua perspectiva penalista em sede de responsabilização de adolescentes, asseverava Saraiva2: Dito tudo isso, há que se afirmar que a discussão da questão infracional na adolescência está mal focada, com, muitas vezes, desconhecimento de causa. Ignora-se, por exemplo, que o Estatuto da Criança e do Adolescente instituiu no país um Direito Penal Juvenil, estabelecendo um sistema de sancionamento, de caráter pedagógico em sua concepção, mas evidentemente retributivo em sua forma, articulado sob o fundamento do garantismo penal e de todos os princípios norteadores do sistema penal enquanto instrumento de cidadania, fundado nos princípios do Direito Penal Mínimo. (2002, p. 26).

Por uma questão lógica, as concepções assumidas pela Doutrina da Proteção Integral – como a regulamentação especial para a apuração da autoria do ato infracional, bem como a natureza pedagógica das medidas socioeducativas e a participação popular no controle e deliberação sobre os programas de atendimento – tendem a assumir o segundo plano sempre que a corrente penalista avança no campo teórico e no campo prático (processamento, decisões e aplicação das medidas socioeducativas). Cumpre, então, no presente artigo, situar nossa tese principal, a responsabilização estatutária3, implícita na Doutrina da Proteção Integral, expor linhas gerais do Direito Penal Juvenil e, ainda, trazer à tona, perdas que se vislumbram com a sobreposição da primeira pelo segundo.

2 A Doutrina da proteção integral: um paradigma em aplicação A história da relação entre o Estado Brasileiro e a infância/adolescência do país é marcada pela institucionalização – seja por piedade, seja por receio – e por solene negação da condição de sujeito de direitos fundamentais. Essa relação alternou

1  Vide: SARAIVA, 2004, p. 123-145 e LIBERATI, 2006, entre outras obras. 2  Um dos precursores dessa linha interpretativa. 3  Sobre o tema, vide: VERONESE, 2012. Revista Jurídica da Presidência

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pena e receio/medo como critérios de visibilidade desta população4. As legislações voltadas a essa população se alternaram (Lei do Ventre Livre, Código de Mello Mattos de 1924, Código de Menores de 1979, entre outras), com ideologias variadas, mas a tônica do controle social sempre esteve presente. O resultado foi, e infelizmente continua sendo, um grupo de pessoas e suas famílias sob a batuta do sistema de justiça, com autonomia incipiente e sem acesso ao sistema de circulação de bens e serviços. Como reação às doutrinas anteriores, o Brasil, por seus representantes no Congresso Nacional do fim da década de 1980, acolheu a Doutrina Jurídica da Proteção Integral, que vige até hoje. Todavia, tendo em vista uma arraigada cultura menorista – dos Códigos de Menores –, dificilmente se tenderia a um reconhecimento fluido, no mundo dos fatos, da condição de sujeitos de direitos em condição peculiar de desenvolvimento, como hoje está asseverado na doutrina jurídica em vigor, nos artigos 1o a 6o do Estatuto (BRASIL, 1990). Para compreender a doutrina protetiva, cabe salientar que esta se construiu também como reação à doutrina anterior – da Situação Irregular –, conhecida por sua violência, pelo subjetivismo do juiz de menores e pela institucionalização recorrente. O Código de Menores – Lei no 6.697 – consagrava uma doutrina violentadora, visto que os sujeitos dessa lei eram os menores em situação irregular, como eram considerados aqueles com menos de dezoito anos de idade, privados de condições essenciais à saúde e instrução obrigatórias, vítimas de maus-tratos ou castigos imoderados, em perigo moral, desassistidos juridicamente, com desvio de conduta e, ainda, autores de infração penal, nos termos do artigo 2o (BRASIL, 1979). Na Doutrina da Situação Irregular não se vislumbrava a nota da universalidade do sujeito, haja vista que a população por ela contemplada, ou seja, a pessoa objeto da atenção ou tutela do Estado, por intermédio do Direito do Menor, tinha mais que faixa etária determinada (dos 0 aos 18 anos de idade): tinha uma família definida como desestruturada, conduta desviada e vivia em perigo moral. Enfim, pertencia a uma classe social sem qualquer representação econômica, desprovida e despossuída. A vagueza desses termos qualificantes é inequívoca e tem ligação com um elemento das doutrinas pré-estatutárias, principalmente a da situação irregular, que é o subjetivismo do juiz de menores. Assim, com o Código de Menores de 1979, aprofundou-se a marca da 4  Sobre a relação entre Estado Brasileiro e a população considerada incapaz ou menor de idade, vide RIZZINI, 1990 e PRIORE, 1999. Revista Jurídica da Presidência

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subjetividade do juiz, que se pautaria em critérios questionáveis, maculados pela desinformação, discriminação e pela insuficiência das instituições de apreciação de conflitos. As ações públicas voltadas aos ditos menores em situação irregular, nesse período, eram assistencialistas, pois não visavam à alteração da condição subalternizada dos atendidos (PEREIRA, 2000, p. 13). Por assistencialismo compreende-se uma atividade de assistência aos considerados menos favorecidos pelo sistema de distribuição de bens e serviços, cuja condicionante é a ideia da concessão de alguns favores referentes à manutenção básica de sua existência. As atividades perpassadas por esse fenômeno tendem a culminar em manutenção ou aumento da dependência do assistido em relação ao seu bem feitor. No Brasil, no entanto, desde 1988, via Constituição da República, a assistência social é um direito fundamental e, por isso, tem função afirmativa da cidadania e da autonomia5. É importante sublinharmos a diferença entre garantia a direitos fundamentais e assistencialismo: a primeira concepção fundamenta toda a Doutrina da Proteção Integral, adotada pelo atual sistema jurídico; já a segunda – assistencialismo -, perpassa as doutrinas tutelares, entre as quais se inclui a Doutrina da Situação Irregular. O assistencialismo pode ser assumido por atores jurídicos6, e certamente o foi pelos juízes de menores. A competência desses juízes era de decidir sobre a vida dos menores na hipótese da prática de crimes e da ocorrência de problemas sociais (PEREIRA, 2000, p. 13). O artigo 5o do Código de Menores permitia decisões judiciais sem fundamentação alguma, apenas movidas pela vontade do juiz, conforme se depreende: “Na aplicação desta lei, a proteção aos interesses do menor sobrelevará qualquer outro bem ou interesse juridicamente tutelado” (BRASIL, 1979). Em um contexto jurídico em que não há definição de direitos fundamentais, como foi o caso do período de vigência do Código de Menores, resta obscurecida a noção de quais são os interesses de crianças e adolescentes, os menores da época. As decisões judiciais, hoje assumidas como efetivas intervenções estatais, eram pautadas por concepções e valores dos julgadores. Marques sustenta que o 5  Sobre o assunto, vide IAMAMOTO, 1982 e VASCONCELOS, 2002. 6  O  termo é utilizado na perspectiva relacional do sujeito que, ao ser privado da denominação de operador jurídico, é visto como aquele que não só aplica, mas interpreta o Direito e, ao interpretar, interfere no mundo. Encontra-se esse tipo de perspectiva, por exemplo, em ROSA, 2005, p. 15. Revista Jurídica da Presidência

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subjetivismo se caracteriza muito bem pela figura do bom pai refletida no juiz de menores. Nas suas palavras: Não havia, portanto, o império da fundamentação das decisões, ou do estabelecimento do contraditório ou da ampla defesa. O “bom pai” poderia utilizar-se de sua experiência e bom senso para definir o destino de qualquer de seus assistidos, extrapolando mesmo o âmbito da jurisdição e invocando um poder normativo, restringir direitos de forma genérica. (2000, p. 468).

O subjetivismo macula todas as ações referenciadas na doutrina em estudo e traz consequências sérias aos processos judiciais em que garantias constitucionais são ignoradas, como a ampla defesa e o contraditório, não apenas na área da prática infracional, mas também em sede de suspensão ou destituição de poder familiar. Além disso, a falta de vinculação das atividades do juiz de menores permitia que ele se omitisse livremente da concretização da dignidade da pessoa humana no campo da manutenção de condições materiais básicas de existência. Em outro estudo já se qualificou a Doutrina da Situação Irregular como um mecanismo de ideologia tutelar, propiciador de sistemas punitivos inquisitórios (VERONESE, 1999, p. 37 et seq.). Ainda sobre a ideologia tutelar, explica Zaffaroni: O tutelado sempre o tem sido em razão de alguma inferioridade (teleológica, racial, cultural, biológica, etc.). Colonizados, mulheres, doenças mentais, minorias sexuais, etc. foram psiquiatrizados ou considerados inferiores, e, portanto, necessitados de tutela. (2013, p. 1004, grifos no original).

Pode-se dizer que a escolha fundamentalmente equivocada da Doutrina da Situação Irregular do Código de Menores de 1979 é, propriamente, de concepção: a lei se volta para os menores, que por sua vez não são todas as crianças e os adolescentes, mas apenas aqueles com as qualificações acima apontadas, ou seja, aqueles considerados problemáticos e que devem ser tratados pelo Estado de forma individualizada e assistencialista, sem o reconhecimento da sua subjetividade e da privação de direitos fundamentais sofrida. A doutrina menorista não assume a perspectiva da intervenção contextualizada e criativa, apenas a do controle social. As ações ou omissões públicas e da sociedade, propiciadoras da condição subumana, passavam despercebidas, atribuindo-se à família a única responsabilidade. O Código de 1979 excluía qualquer possibilidade de responsabilização do Estado sobre a degradante situação de crianças e adolescentes brasileiros. A

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responsabilidade se resumia à família e inexistiam mecanismos de exigibilidade ou garantias jurídicas que compelissem o Estado a cumprir suas funções. Assim, o Estado não era colocado no banco dos réus, apenas havendo previsão de ações individuais. Alguns dos motivos do movimento de reação que se seguiu, pela revogação do Código de Menores, foram: a autorização do Código de intervenção estatal por meio de institucionalização em função da situação de carência; a existência de processo inquisitorial em que o menor era objeto de análise investigatória; o juiz de menores era dotado de poderes ilimitados e não estava sujeito a critérios objetivos; previsão de prisão cautelar para os menores; ausência da garantia de proporcionalidade; e limitação da pena para o menor de dezoito anos (VERONESE, 1999, p. 37 et seq.). No Brasil do final da década de 1970 registravam-se resistências de todas as espécies ao autoritarismo e à violência do regime militar ditatorial. A sociedade se opôs às variadas formas de arbitrariedade e violências, o que gerou o aparecimento de organizações de classe, comunidades eclesiais de base etc, concorrendo para o enfrentamento das estruturas dogmatizadas e burocráticas (DALLARI, 1998, p. 33-51). Nesse contexto, houve forte mobilização social a conclamar por mudanças no tratamento conferido pelo Estado às crianças e adolescentes brasileiros: Diante desse quadro, e graças às possibilidades de organização e participação popular na luta pela garantia dos direitos, novos atores políticos entraram em cena. Em pouco tempo surgiu um amplo movimento social, em favor das crianças e dos adolescentes em situação de pobreza e marginalidade social. Essa frente, integrada, sobretudo, por ONG´s, acrescidas dos demais grupos da assim chamada sociedade civil, com apoio da Igreja e dos quadros progressistas dos órgãos de Governo, desencadeou o processo de reivindicação dos direitos de cidadania para crianças e adolescentes. (RIZZINI; PILOTTI, 1995, p. 18).

Assim é que diversos direitos de conhecidas minorias foram acolhidos pela atual Carta Política. Para exemplificar, citamos os direitos dos índios (artigos 231 e 232), dos idosos (artigo 230), da mulher na família (artigo 226, parágrafo 5o) e da mulher no trabalho (artigo 7o, inciso XX), todos na Constituição (BRASIL, 1988). E também variadas demandas da sociedade organizada em relação a crianças e adolescentes foram acolhidas. O artigo 227 da Constituição firma as obrigações do sistema social como um todo – e dos poderes públicos, especificamente – em face das crianças e adolescentes:

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Art. 227 – É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda a forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. (BRASIL, 1988).

Destaca-se que essa redação é anterior à da Emenda Constitucional no 65, 13 de julho de 2010, que acrescentou o jovem também como sujeito da prioridade absoluta7. De modo incontroverso, em 1988, verifica-se uma profunda alteração na doutrina jurídica referente à população infanto-adolescente, já que entra em cena a Doutrina da Proteção Integral – de cunho humanista – e sai de cena a da situação irregular, modelo este que nega a condição de sujeito a esse grupo: “É neste sentido que a Constituição Federal de 1988, pela primeira vez na história brasileira, aborda a questão da criança como prioridade absoluta, e a sua proteção é dever da família, da sociedade e do Estado” (AMARAL E SILVA, 2013, p. 17). A Doutrina da Proteção Integral é expressamente acolhida pelo Estatuto, em seu artigo 1o, nos seguintes termos: “Esta Lei dispõe sobre a proteção integral à criança e ao adolescente” (BRASIL, 1990). O artigo 227 da Constituição (BRASIL, 1988) é detalhado na legislação estatutária, que delineia os elementos da Doutrina da Proteção Integral, o conteúdo e os obrigados pelos direitos fundamentais infantoadolescentes, além de estipular mecanismos de viabilização desses direitos sem prejuízo da responsabilização dos adolescentes autores de ato infracional. E mais, em sua parte final caracteriza os crimes e infrações administrativas cometidos contra crianças e adolescentes. É como outrora já se afirmou: O Estatuto da Criança e do Adolescente contém em seu Livro I uma declaração dos direitos da criança e do adolescente, ou seja, trata-se de um detalhamento do artigo 227 da Constituição Federal e, em seu Livro II, diz respeito aos mecanismos de viabilização desses direitos, a maneira como podem ser garantidos. (VERONESE, 1999, p. 87).

Para Liberati, há dois sentidos para o termo integral na concepção adotada pelo legislador federal para a doutrina em vigor:

7  O  Congresso Nacional, então, aprovou a Lei no 12.852, de 5 de agosto de 2013, que Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude – SINAJUVE. (BRASIL, 2013). Revista Jurídica da Presidência

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É integral, primeiro, porque assim diz a CF em seu artigo 227, quando determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo; segundo, porque se contrapõe à teoria do “Direito tutelar do menor”, adotada pelo Código de Menores revogado (Lei 6.697/79), que considerava as crianças e os adolescentes como objetos de medidas judiciais, quando evidenciada a situação irregular, disciplinada no art. 2o da antiga Lei. (2004, p. 15).

A positivação específica de direitos fundamentais para crianças e adolescentes é marca central da Doutrina da Proteção Integral, e não foi igualada ou aproximada por qualquer outra doutrina jurídica anterior, tendo sido resultado de pressão interna. Quanto às pressões sociopolíticas internas da proteção integral, é possível detectá-las no comentário de Almeida (2013, p. 19), segundo o qual o Estatuto (BRASIL, 1990): “[...] é o fruto do esforço conjunto de milhares de pessoas e comunidades empenhadas na defesa e promoção das crianças e adolescentes do Brasil.”. O mesmo autor ainda afirma que a sociedade brasileira, acostumada a se omitir diante das injustiças relativas à infância e à adolescência, deverá sofrer uma alteração no sentido da obediência aos preceitos da justiça, da solidariedade e do amor. Com essa disposição nota-se que foi recepcionado, no direito positivo brasileiro, o mesmo padrão internacional informador da Convenção dos Direitos da Criança aprovada na Organização das Nações Unidas (ONU) em 1989, calcado na matriz humanista, que segundo se entende: [...] tem sua razão de ser, uma vez que a Lei no 8069/90 ao assegurar em ser artigo 1o a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como fundamentação doutrinária o princípio da Convenção que em seu artigo 19 determina: “Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso ou tratamento negligente, maus tratos ou exploração, inclusive abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela”. (VERONESE, 1999, p. 99).

Além da mencionada Convenção de 1989, outros documentos internacionais anteriores, como a Declaração de Genebra de 1924, a Declaração Universal dos Direitos Humanos das Nações Unidas de 1948, a Declaração dos Direitos da Criança de 1959 e a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos de 1969 – Pacto de São José, influenciaram a legislação brasileira no sentido de colocar a criança e o adolescente no patamar de sujeitos de direitos. Revista Jurídica da Presidência

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Sobre o assunto, Amaral e Silva faz o seguinte comentário: O espírito e a letra desses documentos internacionais constituem importante fonte de interpretação de que o exegeta do novo direito não pode prescindir. Eles serviram como base de sustentação dos principais dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente e fundamentaram a campanha Criança e Constituinte, efervescente mobilização nacional de entidades da sociedade civil e milhões de crianças, com o objetivo de inserir no texto constitucional os princípios da Declaração dos Direitos da Criança. (2013, p. 18-19).

É possível perceber um encontro entre as iniciativas normativas internacionais e as aspirações da sociedade brasileira organizada em torno das demandas da cidadania da criança e do adolescente, na linha do que já foi mencionado acerca das pressões internas em torno da Assembleia Nacional Constituinte de 1985-1988. Nessa linha de raciocínio, a acolhida das demandas voltadas à criança e ao adolescente manifesta-se como reconhecimento de sua cidadania e da dívida do Estado brasileiro em relação à sua condição na sociedade.

3 A Responsabilidade estatutária ou sociopedagógica Nesse contexto doutrinário, os adolescentes – pessoas com idade entre 12 e 18 anos incompletos – poderão ser processados por prática de atos tipificados no Código Penal ou na Lei de Contravenções Penais – atos infracionais –, tendo para isso direito à ampla defesa, contraditório e outros direitos e garantias individuais, nos termos dos artigos 106 a 111 do Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990). As medidas socioeducativas são sanções, pois têm caráter coercitivo, e não penas, vez que constituem uma nova proposta de intervenção que não seja a do castigo, da punição, da retributividade, aplicáveis aos adolescentes em função de comprovação de autoria de ato infracional, por meio do processo positivado nos artigos 171 a 190 do Estatuto (BRASIL, 1990). São elas: advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade assistida, semiliberdade e internação – artigo 122 do Estatuto. Podem ser aplicadas medidas de proteção, previstas no artigo 101 do Estatuto, para complementar medidas menos restritivas, conforme o entendimento do juiz da infância e da juventude. Acrescente-se, agora, no tocante à execução das medidas socioeducativas, todo o disposto na Lei no 12.594, de 18 de janeiro de 2012 (BRASIL, 2012), que instituiu o Sistema Nacional Socioeducativo – Sinase, regulamentando a execução das medidas

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socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional; e altera as Leis nos  8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente; 7.560, de 19 de dezembro de 1986; 7.998, de 11 de janeiro de 1990; 5.537, de 21 de novembro de 1968; 8.315, de 23 de dezembro de 1991; 8.706, de 14 de setembro de 1993; os Decretos-Leis nos 4.048, de 22 de janeiro de 1942 e 8.621, de 10 de janeiro de 1946; e a Consolidação das Leis do Trabalho – CLT, aprovada pelo Decreto-Lei no 5.452, de 1o de maio de 1943. Também, no mesmo campo da aplicação das medidas socioeducativas, se insere a Resolução no 109 (CNAS, 2009), que tipifica nacionalmente serviços socioassistenciais – dentre eles os programas de atendimento que executarão as medidas socioeducativas – em resposta a uma demanda da criação do Sistema Único de Assistência Social – SUAS (BRASIL, 1993)8. Em função da quebra de paradigma inerente à acolhida da doutrina jurídica atual, tais medidas devem pretender a consolidação da cidadania dos adolescentes e o descolamento entre o sujeito e o ato praticado. Em outras palavras, a medida deve ser aplicada para que o adolescente reafirme ou elabore seu projeto de vida e para que, nesse processo, tenha oportunidades criadas tecnicamente para a revisão do ato cometido. Contudo, a abordagem do ato infracional não deve ser ostensiva e nem central na experiência socioeducativa (VOLPI, 2006, p. 11-44), a fim de que o sujeito perceba que pode entender e julgar eticamente o que fez e o que lhe acontece com certa distância e não como uma prática da qual nunca mais vai se desvencilhar. Discorrer sobre a responsabilização estatutária, contemplada no Direito da Criança e do Adolescente, é relevante e exige o seguinte cuidado metodológico: o legislador estatutário e a sociedade civil por ele representada não criou um Direito Penal Especial, que ganharia o nome de Direito Penal Juvenil, mas inaugurou a Doutrina da Proteção Integral, que contempla a responsabilização especial, aqui denominada responsabilização estatutária ou sociopedagógica. O Direito da Criança e do Adolescente traz embutida a concepção da universalidade dos direitos afetos a crianças e adolescentes. Enquanto dogmática jurídica, esse ramo do direito se caracteriza como um sistema de garantias de direitos fundamentais sem exclusão de classes, gênero, etnia etc., no qual há atores políticojurídicos obrigados pela manutenção da dignidade da pessoa humana – respeitando

8  O SUAS foi criado politicamente por meio de participação da sociedade organizada, nos termos da IV Conferência Nacional da Assistência Social (CNAS, 2003), e acolhido em lei por via de alteração na LOAS, pela Lei no 12.435, de 6 de julho de 2011. Revista Jurídica da Presidência

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a Constituição da República, artigo 1o, III (BRASIL,1988) – antes, durante e depois da prática de atos infracionais. É nesse quadro que se concebe o ato infracional e as medidas a serem aplicadas, sejam as específicas de proteção, as socioeducativas, ou a remissão (perdão). A perspectiva é a de que o adolescente possa receber tais medidas como oportunidade de revisão de sua própria vida, da funcionalidade de sua dinâmica pessoal e da sua experiência em comunidade. Esse ponto merece atenção: o sistema de garantias de direitos formulado pelo legislador estatutário é mais premente do que a porção infracional da mesma lei, já que a integralidade do sujeito criança/adolescente exige muito mais em termos do Estado e da sociedade do que apenas medidas sancionatórias – ainda que pedagógicas – quando o adolescente pratica um ato considerado antissocial. Explica-se: a exigência maior, decorrente da Proteção Integral, é a de que as instituições públicas e privadas sejam responsáveis pela cidadania, ou pela garantia dos direitos assegurados, de todos os indivíduos com idade entre 0 e 18 anos, independentemente de classe, etnia, gênero etc. A exigência protetiva, nos casos de processamento e aplicação de medidas a adolescentes em conflito com a Lei, perpassa, principalmente, dois caminhos: de um lado, a demanda é de elaboração e implementação de políticas públicas, prestadoras de serviços sociais. Nos termos do artigo 87 do Estatuto (BRASIL, 1990), e com a denominação de linhas de ação, a política de atendimento deve conter: políticas sociais básicas; políticas e programas de assistência social; serviços especiais de prevenção e atendimento médico e psicossocial às vítimas de negligência, maus-tratos, exploração, abuso, crueldade e opressão; serviço de identificação e localização de pais, responsável, crianças e adolescentes desaparecidos; proteção jurídico-social por entidades de defesa dos direitos da criança e do adolescente; políticas e programas destinados a prevenir ou abreviar o período de afastamento do convívio familiar e a garantir o efetivo exercício do direito à convivência familiar de crianças e adolescentes; campanhas de estímulo ao acolhimento sob forma de guarda de crianças e adolescentes afastados do convívio familiar e para adoção, especificamente inter-racial, de crianças maiores ou de adolescentes com necessidades específicas de saúde ou com deficiências e de grupos de irmãos. De outro lado, exige-se gestores públicos comprometidos ou ao menos controlados pelos conselhos de direitos, posto que se trata de órgão controlador e deliberativo das políticas públicas relacionadas à população menor de 18 anos,

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nos termos do artigo 88, II do Estatuto (BRASIL, 1990) e órgãos responsabilizadores (Conselho Tutelar, Ministério Público e Judiciário) capacitados e atuantes. Assim, é possível dizer que é no contexto da Doutrina da Proteção Integral – e nunca à margem dele – que deve ser localizado o sistema socioeducativo.

4 Jogando a criança fora com a água suja do banho9 Em que pese a intenção garantista dos defensores da existência – no direito positivo brasileiro – de um Direito Penal Juvenil, esse reconhecimento e a aplicação dessa corrente colocam em risco a aplicação da Doutrina da Proteção Integral, como um todo, e a responsabilização do adolescente em virtude da prática de ato infracional, em especial. O legislador, em 1990, via Estatuto da Criança e do Adolescente, como se viu, optou por uma quebra do paradigma jurídico no que tange à população com idade entre zero e dezoito anos. Como decorrência necessária, não deixou o ramo dos atos antissociais de fora do processo: optou – por pressão da sociedade organizada – por deslocar o padrão de intervenção estatal, nesta área, de caráter penalista (retributivo, seletivo, punitivo e exclusivamente estatal) para um caráter pedagógico de endereço protetivo (leia-se protetivo de Doutrina da Proteção Integral e não protecionista) que coadune com uma política de atendimento progressivamente qualificada, tanto por técnicas sociais, quanto pela participação popular. A execução das medidas, em especial das socioeducativas, deve estar articulada com a dinâmica da rede de atendimento, explicitada no artigo 86 do Estatuto: “A política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não-governamentais, da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios” (BRASIL, 1990). O aspecto técnico tem avançado, e o Sinase e a Tipificação dos Serviços Socioassistenciais ilustram o processo: o primeiro, com uma série de determinações voltadas para a regulamentação da natureza pedagógica das medidas socioeducativas – frise-se que sem o filtro pedagógico, corre-se o risco de conceber a regulamentação como similar à lei de execução penal; a segunda, para a inserção 9  A expressão “não se deve jogar a criança fora com a água suja do banho” é atualmente utilizada em debates sobre fenômenos complexos que tem pontos adequados e pontos inadequados muito imbricados, a ponto das críticas simplistas incorrerem em perdas graves. Remonta ao fato atribuído popularmente aos banhos da Idade Média, tomados por todos os familiares na mesma bacia e na mesma água: as crianças seriam as últimas a utilizarem a água, que já estaria tão suja, a ponto de ser comum serem jogadas fora com a água descartada. Revista Jurídica da Presidência

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de medidas socioeducativas – dentre outras – em um rol extremamente detalhado de serviços socioassistenciais. Resta destacar os seguintes artigos da Lei do Sinase: Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional.  § 1o Entende-se por Sinase o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei.  § 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos:  I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;  II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e  III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei.  § 3o Entendem-se por programa de atendimento a organização e o funcionamento, por unidade, das condições necessárias para o cumprimento das medidas socioeducativas.  § 4o Entende-se por unidade a base física necessária para a organização e o funcionamento de programa de atendimento.  § 5o Entendem-se por entidade de atendimento a pessoa jurídica de direito público ou privado que instala e mantém a unidade e os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento de programas de atendimento.  (BRASIL, 2012).

Portanto, a Lei do Sinase, depois de conceituar o Sistema de Atendimento Socioeducativo – em seu artigo 1o, § 1o (BRASIL, 2012) – e reafirmar a concepção de medidas socioeducativas – as previstas no art. 112 do Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 1o, § 2o, de modo explícito refere-se à responsabilização do adolescente. Em momento algum o citado documento normativo discorre sobre a responsabilidade penal ou imputação penal. Enfim, o Sinase (BRASIL, 2012) reforça a concepção prevista no Estatuto da Criança e do Adolescente, prevendo a responsabilização do adolescente como consequência ao ato infracional que praticara, incentivando a reparação dos atos Revista Jurídica da Presidência

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lesivos causados sempre que possível. Destaca a necessária integração social do adolescente, por meio do cumprimento do plano individual do adolescente - PIA, bem como a desaprovação da conduta que caracterizou o ato infracional, nos termos do art. 1o, § 2o, I, II e III). O aspecto participativo ainda é um grande desafio. A diretriz da participação popular é uma demanda constitucional clara, também na área dos direitos da criança e do adolescente, conforme artigos 227, § 7o c/c 204, II, (BRASIL, 1988) e, também, uma diretriz estatutária, conforme artigos 86 e seguintes do Estatuto (BRASIL, 1990) apontam claramente que, mesmo com toda relevância da tecnocracia, a participação popular – via controle social que se manifesta em conselhos de direitos, com poder deliberativo e controlador – é o outro lado da moeda. A participação popular, além da acuidade técnica traduzida na perseguição progressiva e incansável da natureza pedagógica das medidas, completa o desenho da responsabilização estatutária como uma opção ao penalismo. É uma falha grave não reconhecer que diversos mecanismos legais e políticos, a concorrer para a implantação mais efetiva da Doutrina da Proteção Integral e do Estatuto, são resultado da ação dos Conselhos de Direito da Criança e do Adolescente, tanto no nível Nacional – Conanda – quando nos níveis estadual e municipal: as conferências organizadas por esses conselhos, que contam com governo e sociedade interagindo nas ações voltadas para os direitos da população em apreço, têm gerado mobilização, mais consciência e pressões no sistema político para a absorção de demandas no sentido de aplicação dos direitos10.

5 Conclusão A opção pelo Direito Penal Juvenil, por igualar áreas do saber jurídico autônomas e, portanto, distintas, incorre no erro de dispensar as conquistas obtidas com o Direito da Criança e do Adolescente. Nesse descarte se inclui a necessária quebra de paradigma com vistas à constituição de uma nova forma de intervenção que não a historicamente punitiva e retributiva. E, por último, quando os juristas práticos e teóricos filiados ao que se intitulou Direito Penal Juvenil afirmam que só se poderia proteger devidamente o adolescente acusado e processado pela prática de um determinado ato infracional, reconhecendo o caráter penal dessa área, além de se ignorar completamente o garantismo presente 10  Sobre as Conferências Bienais, vide: CONFERÊNCIAS BIENAIS, 2013. Revista Jurídica da Presidência

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nos direitos e garantias individuais reservados no texto do Estatuto da Criança e do Adolescente, perde-se ou atenua-se – por vezes como perfumaria – avanços e alternativas como a participação popular e a especialização progressiva no campo das medidas socioeducativas. Em ambiente de reconhecimento, teorização e aplicação de um Direito Penal Juvenil não se concebe o debate da aplicação pedagógica e da revisão de um projeto de vida que melhor se relacione com o mundo real em que vive e se insere o adolescente, simplesmente porque não são reflexões compatíveis com a concepção de que medidas socioeducativas são penas. Ao que parece, já se passou do momento em que as linhas de interpretação e aplicação da porção infracional do Estatuto da Criança e do Adolescente – Responsabilização Estatutária e Direito Penal Juvenil – devem ser reconhecidas como muito distintas e suas colisões devem estar no debate, sob pena do “adolescente ser jogado fora com a água suja do banho” sem que nem se perceba e/ ou se concorde com isso.

6 Referências ALMEIDA, Luciano Mendes de. Artigo 1o. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 19. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando do. Artigo 1o. In: CURY, Munir (Coord.). Estatuto da criança e do adolescente comentado: comentários jurídicos e sociais. 12. ed. rev. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2013, p. 17. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Diário Oficial da União. Brasília, 1988. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2014. ______. Lei no 6.697, de 10 de outubro de 1979. Diário Oficial da União. Brasília, 1979. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2014. ______. Lei no 8.069 de 13 de julho de 1990. Diário Oficial da União. Brasília, 1990. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2014. ______. Lei no 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Diário Oficial da União. Brasília, 1993. Disponível em: . Acesso em: 4 ago. 2014.

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Direitos consulares do preso estrangeiro: confronto ou paralelismo da jurisprudência internacional e brasileira? GUSTAVO FERREIRA RIBEIRO Doutor em Direito Internacional (Maurer School Of Law, Indiana University – EUA) com Bolsa do Programa Capes/Fulbright. Mestre em Direito (UFSC). Bacharel em Direito (UFMG). Professor do Programa de Mestrado e Doutorado (UniCEUB).

JEISON BATISTA DE ALMEIDA Mestre em Direitos Humanos (Universidade do Minho – Portugal). Erasmus no Máster de Estudios Internacionales (Universidade de Santiago de Compostela – Espanha). Graduado em Direito (UNEMAT). Professor (UNEMAT). Artigo recebido em 18/02/2015 e aprovado em 15/07/2015.

SUMÁRIO: 1 Introdução 2 A Assistência Consular 3 Dos Direitos Consulares dos Presos 4 Análise da Jurisprudência Brasileira 5 Conclusão 6 Referências.

RESUMO: A Convenção de Viena sobre Relações Consulares (1963) codificou o denominado Direito Consular. Seu artigo 36(1)(b) contém normas relacionadas à assistência consular do preso estrangeiro, cuja finalidade é assisti-lo em um momento de extrema fragilidade: sua privação de liberdade. Este artigo, com subsídios na doutrina e na jurisprudência internacional, retoma o conjunto de direitos associado ao referido dispositivo. A partir desta síntese, e como principal objetivo do estudo, verifica-se como esses direitos são interpretados pelas cortes superiores brasileiras, com base em sua jurisprudência dos últimos dez anos (2005-2014). Busca-se, fundamentalmente, delinear a existência de confronto ou paralelismo entre os planos de interpretação internacional e doméstico. PALAVRAS-CHAVE: Direito Consular Preso Estrangeiro Convenção de Viena de Relações Consulares Jurisprudência.

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Consular rights of the foreign prisoner: confrontation or parallelism between international and brazilian jurisprudence? CONTENTS: 1 Introduction 2 Consular Assistance 3 Consular Rights of the Prisoners 4 Analysis of the Brazilian Jurisprudence 5 Conclusion 6 References.

ABSTRACT: The Vienna Convention on Consular Relations (1963) codified the socalled Consular Law. Its article 36(1)(b) contains provisions related to consular assistance of prisoners abroad, whose purpose is to assist them in a moment of extreme vulnerability: his imprisonment. This article, with subsidies in doctrine and international jurisprudence, recalls the rights set associated with the said provision. From this summary, and as the main objective of the study, it verifies the way these rights are interpreted by Brazilian Higher Courts, based on its case law of the last ten years (2005-2014). Fundamentally, the paper aims at portraying the existence of collision or parallelism between the plans of international and domestic interpretation. KEYWORDS: Consular Rights Relations Case law.

Foreign Prisoner Vienna Convention on Consular

Derechos consulares de lo detenido extranjero: ¿confrontación o paralelismo de la jurisprudencia internacional y brasileña? CONTENIDO: 1 Introducción 2 La Asistencia Consular 3 De los Derechos Consulares de los Detenidos 4 Análisis de la Jurisprudencia Brasileña 5 Conclusiones 6 Referencias.

RESUMEN: La Convención de Viena sobre Relaciones Consulares (1963) codificó la llamada Ley Consular. Su artículo 36(1)(b) contiene disposiciones relativas a la asistencia consular de los presos en el extranjero, cuyo propósito es ayudar en un momento de extrema vulnerabilidad su encarcelamiento. En este artículo, con subsidios en la doctrina y la jurisprudencia internacional, se recuerda el conjunto de los derechos asociados a la citada disposición. A partir de este resumen, y como el objetivo principal del estudio, se verifica la forma en que estos derechos son interpretados por los Tribunales Superiores de Brasil, con base en su jurisprudencia de los últimos diez años (2005-2014). Fundamentalmente, el trabajo pretende retratar la existencia de colisión o paralelismo entre los planes de interpretación internacional y nacional. PALABRAS-CLAVE: Derecho Consular Detenido Extranjero Convención de Viena sobre Relaciones Consulares Jurisprudencia. Revista Jurídica da Presidência

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1 Introdução

N

os últimos séculos, coube ao denominado Direito Consular regular a função de proteção e assistência aos nacionais de determinado Estado quando eles se encontrarem em território estrangeiro. Um dos fundamentos dessa proteção e assistência destinada ao nacional do Estado que envia1 está na fragilidade experimentada pelo indivíduo imerso em sistemas culturais, linguísticos, sociais, jurídicos, etc., diferentes dos seus. No ano de 1963, especificamente, com a elaboração da Convenção de Viena sobre Relações Consulares – CVRC, que veio a codificar o Direito Consular disperso em normas consuetudinárias e em tratados bilaterais, foi idealizado o seu artigo 36(1)(b). O dispositivo tem a finalidade especial de assistir ao nacional do Estado que envia em um momento de extrema fragilidade: quando ele se encontra preso em território estrangeiro2. Casos recentes apresentados nos noticiários internacionais vêm suscitando indagações sobre a forma e a amplitude da referida assistência, como a dos brasileiros condenados por tráfico internacional na Indonésia. Neles, houve a prestação da assistência consular, embora não se possa garantir que de seu provimento decorra êxito absolutório, como em qualquer tipo de assistência ou aconselhamento. Em outros casos, por outro lado, envolvendo nacionais mexicanos nos Estados Unidos, sequer se deu a oportunidade do exercício da devida assistência consular. É o que ocorreu com Humberto Leal Garcia, em 2011, cidadão mexicano que teve sua sentença a pena de morte executada no estado do Texas. Indaga-se, assim: em que, exatamente, consiste a assistência consular ao preso estrangeiro e de que forma o artigo 36(1)(b) da CVRC é interpretado nos tribunais internacionais? São estas interpretações seguidas pelos Tribunais Superiores Brasileiros, sob o prisma do Brasil como Estado receptor3 de estrangeiros? No plano internacional, pelo menos dois tribunais internacionais já se pronunciaram sobre o assunto: a Corte Internacional de Justiça – CIJ, através da sua competência originária decorrente do Protocolo adicional no 01 à CVRC, nos casos

1  Neste estudo, Estado que envia é o Estado do qual é nacional o indivíduo restringido em sua liberdade. 2  Utilizar-se-á preso em sentido amplo, uma vez que as disposições do Artigo 36(1)(b) da CVRC englobam qualquer condição de privação de liberdade como a de estar “preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer outra maneira.”.(ONU, 1963). 3  Neste estudo, Estado receptor é o Estado que priva a liberdade do nacional do Estado que envia. Revista Jurídica da Presidência

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Breard, LaGrand e Avena (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE; 1998, 2001, 2004); e a Corte Interamericana de Direitos Humanos – CIDH, em sua competência consultiva, na Opinião Consultiva no 16/1999 (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 1999). No plano doméstico, dois casos julgados pelo Supremo Tribunal Federal – STF podem ser considerados paradigmáticos: MVDB (BRASIL, 2004, 2005, 2006) e MW (BRASIL, 2009)4, com alusão às decisões dos referidos tribunais internacionais. Ao mesmo tempo, decisões recentes sugerem haver algum grau de mitigação das obrigações previstas na CVRC à luz de princípios processuais penais brasileiros, como o de não haver nulidade sem prejuízo. No decorrer deste artigo, desenvolve-se, justamente, um olhar crítico sobre a construção dos direitos previstos no artigo 36 da CVRC pelos tribunais internacionais e a jurisprudência pátria. Inicialmente, esclarecem-se os distintos sentidos e usos da terminologia consular. Na sequência, apresentam-se o texto literal do referido dispositivo e a respectiva jurisprudência da CIJ e CIDH. Em seguida, é trazido o contexto nacional para, finalmente, verificar confronto ou paralelismo entre as interpretações no plano internacional e no doméstico.

2 A Assistência Consular A função de assistência realizada pelo Estado que envia através da sua repartição consular e dos funcionários consulares é considerada uma das atividades mais elementares da repartição consular. Em termos gerais, consiste em prestar aos nacionais do Estado que envia, pessoas físicas ou jurídicas, toda a ajuda, assistência e, se for o caso, a informação que necessitem para tratar de resolver problemas pessoais ou profissionais que lhes ocorram no Estado receptor (VILARIÑO PINTOS, 2011, p. 352). O funcionário consular deve fornecer apoio e assistência eficazes para os nacionais que habitem ou estejam de passagem pelo seu distrito consular (RIVIER, 1896, p. 536). No entendimento de Maresca (1974, p. 221), é possível identificar duas formas de exercício da função de assistência consular; uma segue a regra geral (interna), e a outra a título excepcional (externa). A assistência consular realizada de forma interna é feita pela repartição consular por meio de recursos próprios, ou seja, sem o recurso às autoridades locais do Estado receptor. Nesses termos, a função se realiza na informação e conselho conferidos em situações, por exemplo, de como seu nacional 4  Para preservar a identidade dos indivíduos, optamos por abreviar o nome civil dos mesmos. Revista Jurídica da Presidência

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deverá atuar diante das autoridades do Estado receptor ou sobre o cumprimento do seu ordenamento jurídico. Já a assistência consular na forma externa pode consistir, por exemplo, em solicitar às autoridades locais a informação necessária para poder assistir devidamente aos seus nacionais. No caso de atuação frente aos órgãos jurisdicionais do Estado receptor, a repartição consular poderá indicar ou proporcionar um advogado para o seu nacional ou um intérprete para atuar em juízo. Mesmo atuando diante das autoridades locais, como pondera Biscottini (1969, p. 13), a atuação da repartição consular é substancialmente recomendatória, e não é diferente de uma pessoa influente. A doutrina tem ainda identificado dois tipos de manifestação da assistência consular em sua forma externa. A primeira delas, convencionada no artigo 5(i) da CVRC, dispõe caber ao funcionário consular representar os nacionais do Estado que envia e tomar as medidas convenientes para sua representação perante os tribunais e outras autoridades do Estado receptor, de conformidade com a prática e os procedimentos em vigor neste último. Visa conseguir, de acordo com as leis do Estado receptor, a adoção de medidas provisórias para a salvaguarda dos direitos e interesses desses nacionais, quando, por estarem ausentes ou por qualquer outra causa, não possam defendêlos em tempo útil (BISCOTTINI, 1969, p. 16). A segunda manifestação específica é a atinente à regra do artigo 36 da CVRC, de maior interesse deste artigo, pois versa justamente sobre o instituto da assistência consular ao preso estrangeiro. Sobre ela, em que pese o enunciado no preâmbulo da CVRC que dispõe ser o Direito Consular codificado destinado aos Estados, ao se fazer uma interpretação extensiva5 da norma em estudo, identificam-se três sujeitos a quem são conferidos direitos e deveres distintos. São eles, nomeadamente, o nacional do Estado que envia– preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer outra maneira –, ao qual são conferidos direitos frente ao seu Estado de nacionalidade (Estado que envia) e ao Estado receptor; o Estado que envia, ao qual são conferidos direitos em relação ao Estado receptor e deveres frente ao seu nacional; e o Estado receptor, que possui deveres diante do Estado que envia e do estrangeiro em seu território. Na próxima seção, detalhamos as particularidades desse conjunto de direitos partindo de uma breve remissão histórica à elaboração da CVRC.

5  Interpretação essa subsidiada pela jurisprudência internacional, nomeadamente os casos Breard, LaGrand e Avena do Tribunal Internacional de Justiça, e a Opinião Consultiva de no 16 da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Revista Jurídica da Presidência

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3 Dos Direitos Consulares do Preso Estrangeiro Nos idos dos anos 1960, não era o propósito da Comissão de Direito Internacional – CDI, em sua missão codificadora do Direito Internacional, que o artigo 36 da CVRC conferisse direitos individuais subjetivos ao nacional do Estado que envia. A CDI seguia a cartilha de que um eventual tratado sobre normas consulares estivesse em consonância com a prática e teoria de um Direito Internacional Público – DIP estritamente interestatal. O indivíduo era considerado como simples objeto, e não sujeito do DIP (CASSESE, 1991, p. 119-127). Mesmo com o processo de humanização do DIP, no contexto do pós-Guerra, a CDI mantinha fidelidade a ratio interestatal da instituição consular ao não atribuir, textualmente, direitos subjetivos ao nacional do Estado que envia. O primeiro sinal de mudança de paradigma foi acontecer no ano de 1979, quando os Estados Unidos da América – EUA buscaram diante da CIJ a satisfação dos seus direitos diplomáticos e consulares violados durante a invasão de sua embaixada em Teerã. Não obstante, foi por meio da Opinião Consultiva no 16, elaborada pela CIDH em 1994, que houve a verdadeira ruptura com o reconhecimento de atribuição de direitos individuais pelo artigo 36 da CVRC (TRINDADE, 2008, p. 47). No mesmo sentido, no caso LaGrand, julgado no ano de 2001, foi feito o reconhecimento, pela primeira vez dentro da competência contenciosa da CIJ, da atribuição de direitos individuais pela CVRC. Em sua análise do caso, o tribunal desconsiderou os argumentos do Estado demandado (COGAN, 2008, p. 385-391) – EUA – de que a referida norma só conferia direitos aos Estados, devido ao caráter eminentemente interestatal e recíproco do Direito Consular (GRAHAM, 2007, p. 70). É elucidativa a frase do juiz Simma inúmeras vezes citada no caso: “why something which looks like an individual right, feels like an individual right and smells like an individual right should be anything else but an individual right?” (INTERNATIONAL COURT OF JUSTICE, 2001)6. O entendimento, primeiro expressado pela CIDH, na Opinião Consultiva no 16/1999, e depois pela CIJ (caso LaGrand), foi repetido por esses tribunais internacionais, respectivamente, na Opinião Consultiva no 18/2002, sobre a Condição Jurídica e Direitos dos Migrantes sem Documentos, e no caso Avena e Outros Nacionais Mexicanos, do ano 2003. Consolidou-se na jurisprudência internacional, assim, a ideia que o artigo 36 da

6  Por que algo que se parece com um direito individual, percebe-se como um direito individual e “cheira” como um direito individual deve ser algo que não seja um direito individual? (tradução nossa). Revista Jurídica da Presidência

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CVRC confere direitos individuais aos nacionais do Estado que envia. Assumindo-se, então, a natureza de direito individual, pode-se dizer que ao nacional do Estado que envia é conferido um conjunto inter-relacionado de direitos. Tratam-se dos direitos de informação, notificação, comunicação e de receber assistência consular, abordados na sequência (ALMEIDA, 2013, p. 55-77).

3.1 Direito de Informação sobre a Assistência Consular O direito de informação sobre a assistência consular é angular em todo o sistema do instituto da assistência consular ao preso estrangeiro garantido pela CVRC. Esse direito é pressuposto obrigatório para que os outros direitos decorrentes do mesmo artigo sejam cumpridos tanto pelo Estado receptor, quanto pelo Estado que envia. Esse direito foi codificado na última frase do artigo 36(1)(b) da CVRC7. Nela, aduz-se que o Estado receptor deverá, através da autoridade competente, informar imediatamente o nacional do Estado que envia de que este possui direitos decorrentes do próprio artigo 36. Tais direitos seriam o de notificação, comunicação consular e assistência consular, posteriormente analisados. O respeito pelo direito de informação do preso estrangeiro é cumprido pelo Estado receptor a partir do momento em que este informa imediatamente ao nacional do Estado que envia dos direitos à notificação, comunicação e assistência consular. Essa informação, que deve ser prestada pelo Estado receptor, pode ser oral ou escrita e, como disposto no próprio texto da Convenção, deve ser feita imediatamente após a restrição da liberdade do nacional do Estado que envia. A partir dessa leitura, depreendem-se três elementos que caracterizam o direito à informação: o de fundo (ou substancial), o de forma e o temporal. O primeiro elemento – de fundo – refere-se ao conteúdo da informação a ser dada ao nacional do Estado que envia. Esse conteúdo, como mencionado, abarca o direito de notificação, comunicação consular e a informação de que poderá ser assistido pelos funcionários consulares. Quanto ao segundo elemento – de forma –, ao se aduzir que a informação a ser prestada pode ser oral ou escrita, percebe-se que o Estado receptor tem a faculdade de escolher a forma de prestar o direito de informação, uma vez que serão exercidas de acordo com as suas leis e regulamentos. Deve-se, contudo, levar-se em conta que tais leis e regulamentos não poderão impedir o pleno efeito dos direitos reconhecidos – art. 36(2) da CVRC. Além disso, ao longo 7  Artigo 36(1)(b) da CRVC: “Estas deverão imediatamente informar o interessado de seus direitos nos têrmos do presente subparágrafo” (ONU, 1963). Revista Jurídica da Presidência

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da construção jurisprudencial deste elemento, nos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos, considera-se que, caso o nacional do Estado que envia não compreenda ou não fale suficientemente bem a língua utilizada pelas autoridades do Estado receptor, a informação deve ser feita em língua que aquele entenda. Caso contrário, a informação transmitida pelas autoridades do Estado receptor restaria sem efetividade, carente de produzir os efeitos desejados pelo artigo 36(1) da CVRC (CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS, 2002). Por fim, o elemento temporal do direito de informação é fonte de controvérsias. Divergem a CIDH e a CIJ quanto à interpretação do termo without delay8, disposto na última parte do art. 36(1)(b) da CVRC, em sua versão em língua inglesa. A CIDH, em sua interpretação do termo without delay, buscou, segundo Graham (2007, p. 25-26), o effet utile9 dos direitos reconhecidos no artigo 36 da CVRC. O direito de informação consular teria, para a CIDH, o propósito de conferir ao nacional do Estado que envia uma defesa eficaz, e, deste modo, a informação deve ser oportuna. É dizer, ser efetivada no momento processual adequado para tal objetivo. Nesses termos, a CIDH interpreta que se deve proporcionar a informação no momento em que se priva de liberdade o nacional do Estado que envia, e, em todo caso, antes que este forneça a sua primeira declaração perante a autoridade do Estado receptor. Por sua vez, a CIJ (2004, p.43) se concentrou em precisar esse momento. Assim, deve ser efetivado a partir da constatação de que o indivíduo preso não possui a nacionalidade do Estado receptor, ou indícios suficientes para isso. Não obstante os diferentes enfoques dos dois tribunais internacionais, entende-se, neste artigo, a possibilidade de compatibilizá-los. É evidente que o dever do Estado receptor de informar o indivíduo preso dos seus direitos consulares surge a partir do momento em que as autoridades têm conhecimento ou suspeita de que ele não possui a sua nacionalidade. Se se exigisse que as autoridades do Estado receptor informassem todos os indivíduos presos sobre direitos consulares, antes mesmo de se saber suas nacionalidades, criar-se-ia uma situação desarrazoada de comunicações desnecessárias. Ao mesmo tempo, a definição da nacionalidade pode não ser claramente depreendida na execução do ato constritivo de liberdade. A CIDH (1999, p. 60) ressalta que, em algumas situações, o próprio preso pode tentar encobrir sua nacionalidade por temores de deportação ou persecução penal no seu Estado de origem. De fato, não é incomum 8  N  a versão em lingua portuguesa da CVRC, encontra-se a expressão imediatamente, que dá menos margem a interpretações divergentes, como a correspondente na versão inglesa. 9  Efeito útil (tradução nossa). Revista Jurídica da Presidência

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que o estrangeiro tenha grau de fluência na língua local que permita tal encobrimento. Ao mesmo tempo, tem-se a preocupação de que a determinação da nacionalidade se dê em momento anterior a qualquer declaração do preso. O bom cumprimento da norma do artigo 36 da CVRC ensejaria, assim, a particularização, no sistema penal dos Estados-Partes, das interpretações apontadas. No caso brasileiro, com a constrição da liberdade do nacional do Estado que envia, mas antes de se proceder ao seu interrogatório, as autoridades brasileiras deveriam buscar elementos de convencimento acerca da nacionalidade do indivíduo preso através de documentação que este portar, entrevista com o mesmo ou busca realizada em banco de dados. Verificando-se ou suspeitando-se que o indivíduo não possui a nacionalidade do Estado receptor, deverão as autoridades informar o preso de seus direitos consulares em idioma que este compreenda. Evita-se, dessa maneira, que a manifestação do indivíduo preso ocorra sem a presença de um advogado ou outra autoridade defensora, causando vícios no processo de acusação e prejuízos ao estrangeiro preso. É de fundamental relevância o locupletamento deste primeiro ato. Se as autoridades de um Estado não cumprem com seu dever de informar, o estrangeiro privado de sua liberdade poderá não ter conhecimento dos seus demais direitos consulares. Como consequência, também será extremamente difícil que a repartição consular tenha conhecimento da prisão do seu nacional.

3.2 Direito de Notificação Consular O direito de notificação consular10 integra o elemento substancial do direito de informação consular, como já indicado. Está previsto na primeira parte do artigo 36(1)(b) da CVRC11. Conceitua-se como o direito do nacional do Estado que envia de solicitar e obter que as autoridades competentes do Estado receptor informem, sem tardar, sobre sua prisão à repartição consular. Note-se a discricionariedade dada ao nacional do Estado que envia. Ao ser informado do seu direito de notificação, o estrangeiro tem a faculdade, segundo o dispositivo, de optar se sua prisão será ou não informada à repartição consular do 10  Ou, simplesmente, direito de notificação. 11  Art. 36(1)(b) da CVRC: “se o interessado lhes solicitar, as autoridades competentes do Estado receptor deverão, sem tardar, informar à repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um nacional do Estado que envia fôr preso, encarcerado, posto em prisão preventiva ou detido de qualquer outra maneira” (ONU, 1963, grifos nossos). Revista Jurídica da Presidência

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Estado nacional e se deseja ser assistido pelo mesmo. Essa condicionante, baseada na vontade do indivíduo, foi motivo, nos dizeres de Maresca (1974, p. 227), de uma das “fases más laboriosas, difíciles y, a veces, dramáticas de la historia de la Conferencia”12 que discutia a CVRC. Maresca (1974, p. 225-126) chega a esse entendimento em virtude das mudanças ocorridas no projeto de artigos apresentado pela CDI no decorrer da Conferência, em relação ao caráter automático ou condicional do direito de notificação. Segundo o autor, a norma consular de Direito consuetudinário tende a estabelecer um dever automático de informação por parte das autoridades locais à repartição consular do Estado que envia, prescindindo da manifestação de vontade do indivíduo, com base na presunção absoluta do seu desejo de receber assistência consular. De início, a CDI, em seu projeto de artigos da CVRC, adotou como critério a notificação automática. Posteriormente, quando o projeto foi novamente analisado, foi proposta emenda ao artigo 36, destinada a eximir as autoridades do Estado receptor do dever de informação (a repartição consular) nos casos em que o estrangeiro preso se opusesse. Entretanto, a emenda apresentada não prosperou, em votação com uma maioria restringida. Entre idas e vindas, prevaleceu no texto final aprovado a necessidade de se respeitar a vontade do indivíduo interessado, dando-se primazia ao aspecto volitivo do ato. Em síntese, o direito à notificação consular está condicionado, unicamente, à vontade do indivíduo. Ao informar o indivíduo de seu direito de notificação consular, no caso de haver recusa, o Estado receptor deve se abster de informar a repartição consular da sua prisão. Consequentemente, obsta-se a promoção da assistência consular pelos funcionários consulares.

3.3 Direito de Comunicação com a Repartição Consular O direito de comunicação com a repartição consular13, tal como o direito de notificação, também integra o elemento substancial do direito de informação do nacional do Estado que envia. O referido direito está inserido na segunda frase do artigo 36(1)(b) da CVRC14. Pode-se conceituar o direito de comunicação como o direito do estrangeiro 12  “fases mais trabalhosas, difíceis e, às vezes, dramáticas da história da Conferência”. (tradução nossa). 13  Também será utilizada a expressão direito de comunicação. 14  S  egunda frase do artigo 36(1)(b) da CVRC: “Qualquer comunicação endereçada à repartição consular pela pessoa detida, encarcerada ou presa preventivamente deve igualmente ser transmitida sem tardar pelas referidas autoridades [do Estado receptor]” (ONU, 1963, grifos nossos). Revista Jurídica da Presidência

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restringido em sua liberdade de se comunicar com a repartição consular do Estado que envia, e o direito de que qualquer comunicação endereçada à repartição consular seja transmitida, sem demora, pelas autoridades do Estado receptor. Sugere-se, ademais, que a manutenção do sigilo de qualquer comunicação feita pelo nacional do Estado que envia é imprescindível. Embora não disposto no texto convencional, é por meio dessa comunicação que o nacional pode relatar casos de abusos por parte da autoridade local e más condições de encarceramento que violem a dignidade humana. Além disso, poderá fornecer à repartição consular elementos adicionais sobre o suposto fato delituoso, visando sua melhor defesa.

3.4 O Direito de Assistência Consular Se houver consentimento do nacional do Estado que envia, o Estado receptor deverá informar, sem tardar, à repartição consular competente, sobre a restrição de liberdade do seu nacional. A partir desse momento, fica a repartição consular obrigada a promover assistência ao seu nacional. Já o Estado receptor não deve colocar óbices ao direito do Estado que envia de prestar assistência. Tem-se, então, o momento do exercício da assistência consular, conforme convencionado no artigo 5(e) da CVRC, em sua forma externa, analisada anteriormente. Como anteriormente mencionado, tem a assistência consular ao preso estrangeiro uma conformação complexa, a ter em vista os sujeitos e regras relacionados. Primeiro, apresenta-se como um direito do nacional do Estado que envia de ser assistido por sua repartição consular (assistência consular ao preso estrangeiro na modalidade passiva); segundo, revela-se como um direito/dever para o Estado que envia. É direito em relação ao Estado receptor (assistência consular ao preso estrangeiro na modalidade ativa), que não deve impor óbices às investidas assistenciais da repartição consular e seus funcionários, e dever em relação ao seu nacional, pois, conforme a norma consular, a promoção da assistência pelos funcionários consulares é um dever e não uma faculdade do Estado que envia. A assistência consular em sua modalidade passiva é um direito do nacional do Estado que envia. Isso garante ao estrangeiro o direito de receber assistência do seu Estado nacional, que tem caráter obrigatório para este, sendo que o Estado receptor não deve colocar obstáculos à plena concretização deste direito.

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3.5 Síntese Embora a CDI, em seu desiderato inicial, pensava a CVRC como um instrumento inserido no sistema tradicional de DIP, atribuindo apenas direitos e deveres entre Estados, as interpretações realizadas pela CIDH e a CIJ expandiram o escopo do texto convencional. Revelaram, assim, a presença de direitos individuais nos dispositivos analisados da CVRC. Nessa perspectiva, deve-se ressaltar que os direitos consulares do preso estrangeiro guardam uma dependência umbilical com o direito de informação. Essa centralidade é evidenciada, pois muitas vezes o conjunto de direitos conferidos – notificação, comunicação e assistência – é simplesmente desconhecido pelos nacionais do Estado que envia. Não é por outra razão que se aprofundou sobre o significado do elemento temporal (without delay; imediatamente) do direito de informação. No sistema jurídico brasileiro sugerimos inclusive que, uma vez identificada a nacionalidade estrangeira do preso ou se suspeite dessa qualidade, deve-se proceder à efetivação do direito de comunicação em momento anterior ao interrogatório. Como elementos de fundo do direito de informação, em síntese, o direito de notificação é a faculdade do preso de solicitar e fazer chegar a sua repartição consular a ciência, sem tardar, sobre sua prisão. O direito de comunicação, por sua vez, visa garantir, igualmente sem demora, que suas comunicações alcancem a repartição consular. O direito de assistência, por fim, conforma-se em mais de uma dimensão. Salientou-se o direito do nacional do Estado que envia de ser assistido por sua repartição consular, assim como o direito, do Estado que envia em relação ao Estado receptor, de não ter óbices impostos às investidas assistenciais da repartição consular. A seção seguinte, para os propósitos deste artigo, busca avaliar de que forma as jurisprudências dos Tribunais Superiores brasileiros se amoldam ao prescrito na CVRC e à jurisprudência das Cortes Internacionais.

4 Análise da Jurisprudência Brasileira A jurisprudência coletada para o desenvolvimento deste artigo corresponde aos julgados do STF e do STJ no intervalo temporal entre 1o de janeiro de 2005 e 30 de setembro de 2014. Cobre-se, praticamente, dez anos de jurisprudência dos Tribunais

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Superiores. O parâmetro inicial da pesquisa foi o termo consulado15. A pesquisa, no sistema de buscas do STF, resultou em 12 Acórdãos, 58 decisões monocráticas e 16 decisões da presidência; no do STJ, em 31 Acórdãos. Cada uma dessas decisões foi analisada individualmente com o fim de se selecionar aquelas pertinentes ao estudo16. Aplicada essa metodologia, obteve-se um conjunto diminuto de seis decisões17. Para efeitos deste artigo, as duas inicialmente analisadas dizem respeito ao que se sugere ser os leading case18s na matéria: MVDB e MW. Na sequência, as demais trazem dois tipos de reflexão: (i) se se caminha, na prática, para a notificação automática da repartição consular estrangeira sem levar em conta a vontade do preso; e (ii) a natureza dos direitos consulares como obrigações de meio ou fim, no sistema processual penal brasileiro.

4.1 Casos Paradigmáticos: MVDB e MW No caso MVDB, envolvendo a extradição de um nacional belga, a pedido do governo da Itália, com base em alegada prática de tráfico internacional, houve uma sequência de despachos (BRASIL, 2004, 2005, 2006). Coube a relatoria de todos eles ao então Ministro Joaquim Barbosa. No primeiro deles, o Relator decidiu favoravelmente sobre o pedido de prisão preventiva do extraditando (BRASIL, 2004), com base em Tratado de Extradição entre Brasil e Itália. No despacho subsequente, relata-se que foi aberto vista à Procuradoria-Geral da República – PGR para que o órgão se pronunciasse sobre diversos pedidos incidentais, incluindo sobre a intimação do Consulado da Bélgica, de interesse deste estudo. A PGR se pronunciou sobre a não necessidade de intimação do Consulado. Em sua análise, o Relator concorda com o posicionamento da PGR, na medida que “a 15  Realizada em 30 de setembro de 2014, por meio dos sites do STF (http://www.stf.jus.br/portal/ jurisprudencia/pesquisarJurisprudencia.asp) e do STJ (http://www.stj.jus.br/SCON/); a opção Todos os tipos de documentos foi selecionada. 16  O escrutínio consistiu em selecionar as decisões contendo as sequências textuais assist, notific ou Viena. 17  A redução é consequência da amplitude do termo consulado como parâmetro da pesquisa inicial. Foram capturados, na pesquisa no site do STF, julgados sobre execução fiscal, expulsão de estrangeiro e questões de áreas diversas envolvendo consularização (ou chancela) sobre documentos estrangeiros. Uma vez excluídas as decisões que não diziam respeito ao objeto de estudo, justifica-se a redução. 18  “caso paradigmático” (tradução nossa). Revista Jurídica da Presidência

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Bélgica não possui interesse propriamente processual no caso” (BRASIL, 2004). Por outro lado, aponta a existência de outra necessidade, como decorrência do art. 36(1) (b) da CVRC, dispositivo que consagraria o que a prática internacional, segundo o Relator, teria denominado direito de assistência consular. Amparando-se nos também paradigmáticos casos La Grand e na Opinião Consultiva no 16 da CIDH, destaca o Relator que: sempre que as autoridades detiverem um estrangeiro, deve este ser informado de que possui a prerrogativa de solicitar a assistência de autoridade consular de Estado do qual é nacional. Do mesmo modo, se o indivíduo fizer a solicitação, a comunicação às autoridades consulares estrangeiras não lhe pode ser negada. A doutrina internacionalista, bem como a maciça jurisprudência de tribunais internacionais, tem enfatizado que existe um direito humano à solicitação de assistência consular. (BRASIL, 2005).

Em seguida, o Relator levanta duas indagações: “(i) Em que casos de extradição surge a necessidade de aplicação do dispositivo do tratado? e (ii) sabendo-se que a prisão, nos casos de extradição, é mera condição para o seu processamento, podese afirmar ser impositiva a aplicação do art. 36 (1)(b)?” (BRASIL, 2005). Sobre o primeiro ponto, aponta a aplicação do dispositivo apenas quando o pedido não se referir a nacional do Estado demandante. Tratar-se-ia de uma questão eminentemente lógica. Não haveria sentido “algum a solicitação, pelo indivíduo, da assistência consular ao Estado que, em primeira análise, deu causa a sua prisão ao formular pedido de extradição” (BRASIL, 2005). É a hipótese que se delinearia se se discutisse a necessidade de notificação do Consulado italiano em uma extradição envolvendo um nacional italiano, o que não era o caso. No segundo ponto, entendeu o Relator ser a linguagem da CVRC suficientemente ampla para abarcar toda e qualquer privação de liberdade, incluindo aquela decorrente do processamento do pedido de extradição. Determina, então, a expedição de ofício: ao diretor da penitenciária em que se encontra o extraditando, a fim de que seja este informado de que, à luz do art. 36 (1), b, da Convenção de Viena sobre Relações Consulares (Decreto 61.078, de 26.07.1967), possui o direito de solicitar a comunicação de sua prisão no Brasil às autoridades consulares belgas. (BRASIL, 2005).

Por fim, o Relator negou provimento à extradição, por uma questão completamente alheia aos direitos previstos na CVRC. Tratava-se da ausência de informação sobre o fato de o extraditando já ter cumprido ou não pena na Bélgica pelos mesmos atos

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criminosos objeto da extradição, o que seria uma hipótese de não extradição. Nesse ponto, depreende-se que o próprio STF havia solicitado informações à embaixada da Bélgica acerca da existência ou não do cumprimento da pena pelo mesmo crime. Ao responder ao pedido, entretanto, informou a Embaixada belga não estar habilitada a fornecer as informações, indicando a necessidade de formulação de carta rogatória para se obtê-las (BRASIL, 2006). Embora o teor da formulação da pergunta pelo STF e a resposta da Embaixada parecem perfazer o direito de notificação contidas na CVRC, ressalve-se que o Relator sugere serem atos distintos. Sua interpretação, manifestada anteriormente, é a de que a “citação judiciária das autoridades consulares belgas não é propriamente a informação de que trata o art. 36 (2) b [sic 36(1)(b)], de modo que cabe ao Ministério das Relações Exteriores fazê-la, se requerida pelo extraditando” (BRASIL, 2005). A decisão revela consistência entre o estudado no plano internacional e sua aplicação no caso concreto, em alguns pontos. Além da alusão à natureza de direito individual do direito consular, prima-se pela distinção técnica entre o direito de informação, de notificação (e seu caráter facultativo) e de assistência. Mais ainda, reforça-se entendimento de que os ritos consulares concernentes possuem formalidades próprias. Isso é, a citação da embaixada belga, para efeitos de interesse processual na extradição, não supre o direito de notificação. São atos distintos e não se substituem. Ao mesmo tempo, percebe-se que o direito de informação ocorreu em algum momento posterior ao ato de constrição de liberdade do extraditando e não de forma imediata. No que toca o caso MW, verifica-se um largo arrazoado sobre a disciplina do artigo 36 (1)(b). O caso consistia em requerimento de extradição de um nacional alemão (MW), a mando do próprio governo Alemão. Alegava-se a prática do crime de tráfico ilícito de substâncias entorpecentes (cocaína) (BRASIL, 2009). Em maio de 2008, decretou-se, no Brasil, a prisão preventiva para fins de extradição. Na ausência de tratado de cooperação, transitava o pedido por via diplomática, com base em reciprocidade. Como ocorre em casos de extradição, o Acórdão percorre questões relativas à análise das condições de admissibilidade da extradição – como dupla tipicidade, extinção de punibilidade e prescrição – além da competência jurisdicional do Estado requerente (BRASIL, 2009). Ao analisar a alegação de nulidade do processo de extradição em função do depoimento do extraditando ter sido colhido ilegalmente por agentes da Polícia Federal alemã que se fizeram passar por agentes diplomáticos, o Relator destacou o

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428 parecer do Ministério Público Federal:

A Convenção de Viena sobre Relações Consulares, em seu art. 36, 1 (b), determina que a autoridade competente do Estado receptor, no caso, o Brasil, deverá, sem tardar, informar a repartição consular competente quando, em sua jurisdição, um estrangeiro for preso ou detido e também deverá informar imediatamente o interessado preso ou detido acerca desse direito. Na verdade, o objetivo de tal norma é assegurar que os detidos estrangeiros recebam o apoio consular a fim de que compreendam seus direitos legais e que tenham à disposição todos os meios para preparar uma defesa adequada, tendo em vista as eventuais dificuldades oriundas da falta de conhecimento do idioma local e da natureza do procedimento criminal do Estado receptor. Ora, compulsando os autos, verifica-se que, as autoridades policiais brasileiras preservaram o direito do extraditando de comunicar-se com os agentes consulares por ocasião de sua prisão em flagrante e de constituir à sua escolha um advogado para representá-lo. (BRASIL, 2009, p. 23).

E é no voto do Ministro Celso de Mello que as obrigações da CVRC são, novamente, delineadas. Primeiro, ao se apontar a natureza dupla da notificação consular: A notificação consular em questão, tal como delineada no Artigo 36 da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, revela-se ato bifronte, pois se mostra impregnado, quanto aos seus destinatários, de dupla subjetividade, eis que dirigido ao agente consular (que tem a liberdade de comunicar-se e de visitar os respectivos nacionais, mesmo quando presos) e ao estrangeiro sob custódia do Estado receptor (que tem o direito de solicitar às autoridades nacionais a cientificação de sua prisão à repartição consular competente, bem assim a faculdade de avistar-se com o agente consular de seu próprio país (BRASIL, 2009, p. 32).

Depois, ao alçar a notificação consular ao universo conceitual básico da pessoa humana, aludindo à expressão utilizada pelo professor Cançado Trindade na Opinião Consultiva no 16 da CIDH (BRASIL, 2009, p. 33). Ainda, por relembrar que o não cumprimento da formalidade pelas autoridades brasileiras, em prisões envolvendo estrangeiros, implica em potencial transgressão de obrigação no plano internacional (BRASIL, 2009, p. 33). Por último, com base na referida Opinião Consultiva, por destacar o momento de realização da notificação, há de ser efetivada no “exato momento em que se realizar a prisão do súdito estrangeiro e, em qualquer caso, antes que o mesmo preste a sua primeira declaração perante a autoridade competente” (BRASIL, 2009, p. 34). Outrossim, enfatiza o voto do Ministro Celso de Mello o desrespeito recorrente, em outros países, da obrigação de notificação contida na CVRC. Relaciona os notórios Revista Jurídica da Presidência

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casos Breard, La Grand e Avena nos quais a CIJ havia decidido que a notificação consular em referência se constitui em: garantia indisponível que assiste a qualquer pessoa estrangeira submetida a prisão em território sujeito à soberania de qualquer outro Estado nacional. A essencialidade dessa notificação consular resultado do fato de permitir, desde que formalmente efetivada, que se assegure a qualquer pessoa estrangeira que se encontre presa, a possibilidade de receber auxílio consular de seu próprio país, viabilizando-se lhe, desse modo, o pleno exercício de todas as prerrogativas e direitos que se compreendem na cláusula constitucional do devido processo (BRASIL, 2009, p. 38-38).

Entretanto, ao avaliar o caso, na espécie, entende o Ministro ter sido cumprida a notificação em referência, reproduzindo a manifestação da PGR de que as autoridades policiais brasileiras “preservaram o direito do extraditando de comunicar-se com os agentes consulares por ocasião de sua prisão em flagrante e de constituir à sua escolha um advogado para representá-lo” (BRASIL, 2009, p. 37-39). Embora não se possa depreender da análise o sentido prático de preservaram, a manifestação, na sequência, do Ministro Marco Aurélio é reveladora da pouca familiaridade das obrigações da CVRC. Expressa o Ministro o quão nova era a situação concreta com que se deparava, revelando terem passado muitos processos em suas mãos sem a observância da formalidade da notificação em estudo. Ao seu ver, a notificação se mostraria essencial à validade do ato de constrição (BRASIL, 2009, p. 40). Atendidos todos os requisitos para a extradição, o Tribunal, por unanimidade, e nos termos do voto do Relator, deferiu o pedido de extradição. Podem-se observar pelo menos três questões nas manifestações ministeriais neste caso. Primeiramente, o arrazoado do Ministro Celso de Mello se coaduna com as distinções conceituais do conjunto de direito feitas pelas cortes internacionais. Já a alusão pelo Ministro Joaquim Barbosa à obrigação de notificação pelo Estado receptor à repartição consular (e não à faculdade) destoa do que ele mesmo havia sugerido no caso anterior (MVDB). Por fim, as palavras do Ministro Marco Aurélio têm o condão de, curiosamente, revelar que se trata de matéria potencialmente não levada em conta em casos passados. Ao mesmo tempo indica sua importância; seu descumprimento das formalidades atingiria o plano da validade processual penal. Os próximos blocos desenvolvem as dualidades: (4.2) a obrigação/faculdade da notificação consular; e (4.3) a validade/invalidade do processo penal pelo descumprimento do artigo 36(1)(b) da CVRC.

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4.2 Rumo à Notificação Automática? No caso GFS19 (BRASIL, 2008), levado ao STJ pela Defensoria Pública da União em favor de um brasileiro e de GFS, peruano, atacava-se decisão da Quarta Turma do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF1) que os condenou a pena privativa de liberdade por tráfico internacional. A decisão perpassa preliminares, como incompetência de juízo, nulidade de laudo toxicológico e, de interesse deste artigo, a questão da ausência de notificação consular, no que tocava ao réu estrangeiro, GFS. Sobre essa preliminar, o Relator entendeu: Inviável se mostra o conhecimento da questão relativa à assistência consular para o réu estrangeiro, uma vez que não foi demonstrado que esse direito lhe tenha sido negado. Ao contrário disso, extrai-se dos autos que a Polícia Federal, mediante oficio, comunicou o Cônsul do Peru em Rio Branco/AC sobre a prisão em flagrante do seu compatriota. (BRASIL, 2008, p. 7).

No caso AN20 (BRASIL, 2012), trazido ao STF como habeas corpus – HC em 2012, com pedido de medida liminar, impetrado pela Defensoria Pública da União – DPU contra decisão do STJ, constatou-se, igualmente, a existência do ato de notificação consular. Em pauta, a legalidade das prisões em flagrante e preventiva de AN, nacional alemão. Para o que interessa neste artigo, o HC sustentava que “a autoridade policial não teria nomeado intérprete ao paciente, de nacionalidade alemã, e não teria comunicado a mencionada prisão ao respectivo Consulado” (BRASIL, 2012, grifos nossos). Por outro lado, o Relator, Celso de Mello, apontou que: Embora relevante a alegação de descumprimento, por autoridade nacional competente, da determinação constante da Convenção de Viena sobre Relações Consulares, cujo Artigo 36 torna necessária a notificação consular na hipótese de prisão, em nosso País, de súditos estrangeiros (v., a propósito, meu voto na Ext 1.126/Alemanha), cabe observar que se registrou, no caso, esse ato de comunicação ao Cônsul do Estado de nacionalidade do ora paciente (referência feita no acórdão ora impugnado), a significar, portanto, que se respeitou, na espécie, referida cláusula convencional (BRASIL, 2012, p. 7).

19  A sigla corresponde ao nome civil abreviado do indivíduo. 20  A sigla corresponde ao nome civil abreviado do indivíduo. Revista Jurídica da Presidência

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Já em MADL21, a Primeira Turma do STF, em 2013, deferiu pedido de extradição do nacional paraguaio, atendendo requerimento do Governo Alemão, por prática de crime de lavagem de dinheiro relacionada a narcotráfico. Deu-se ciência à Embaixada da Alemanha, sobre o prazo de 60 dias, para retirada do extraditando do País (BRASIL, 2013). Sob a denominação Reclamação Diplomática, a Embaixada Paraguaia intercedeu no procedimento alegando, entre outros pontos, não se ter observado o art. 36 (1) (b) e o artigo 1o da Resolução no 162/2012 do Conselho Nacional de Justiça. A referida Resolução estabelece: A autoridade judiciária deverá comunicar a prisão de qualquer pessoa estrangeira à missão diplomática de seu Estado de origem ou, na sua falta, ao Ministério das Relações Exteriores, e ao Ministério da Justiça, no prazo máximo de cinco dias (BRASIL, 2012, grifos nossos).

O Ministro Relator, Luiz Fux, traz à baila o parecer do MPF, que se expressou nos seguintes termos: A reclamação não procede. É certo que é muito recomendável que o nacional estrangeiro seja de imediato cientificado de que tem direito à assistência consular, bem como que as autoridades sejam comunicadas da prisão de seu nacional. Mesmo assim, no caso, a omissão dessa formalidade não se traduz em ilegalidade da prisão pois, ao tratar da comunicação com os nacionais do “Estado que envia”, o art. 36, 1, “b”, da “Convenção de Viena sobre Relações Consulares” reza que a assistência consular depende de solicitação do interessado. O extraditando foi preso em 15.02.2013 e, mesmo tendo advogados constituídos, nada postulou até o julgamento da extradição, somente se dirigindo ao consulado paraguaio quando o processo atingiu a fase da entrega, enviando uma carta datada de 06.10.2013. (BRASIL, 2013, p. 5, grifos no original).

O Relator faz referência, então, à assertiva do Ministro Marco Aurélio no caso MW, sobre a novidade com a qual aquele Ministro se defrontava e que muitos processos teriam passado em suas mãos sem observância da devida formalidade (BRASIL, 2013, p. 6). Mas, no caso concreto, aduz que: a prisão do cidadão paraguaio foi efetivada em 15/02/2013 para fins de extradição requerida pela República Federal da Alemanha, a fim de que ali responda pelo suposto crime de lavagem de dinheiro oriundo do tráfico de entorpecentes, sendo certo que o advogado constituído nos autos nada 21  A sigla corresponde ao nome civil abreviado do indivíduo. Revista Jurídica da Presidência

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requereu até o julgamento do pleito extradicional, relativamente à mencionada exigência convencional, somente se dirigindo ao consulado paraguaio na fase de entrega do extraditando. (BRASIL, 2013, grifos nossos).

Ao final, não foi provida a Reclamação Diplomática. Como ponto comum dos casos, é de se observar que, de forma geral, as discussões se desenvolvem em torno do direito de notificação. O caso AN, adicionalmente, envolve a alegação da ausência de intérprete, o que se relaciona com o direito de informação. Não se pode depreender da simples leitura dos Acórdãos se, anteriormente à notificação, a efetivação do direito de informação ocorreu em sua plena substância (notificação, comunicação e assistência), seu aspecto temporal, tampouco se deu a pedido do estrangeiro. Poder-se-ia mesmo especular que a ausência de uma discussão mais aprofundada sobre esses pontos se deve à própria atuação da defesa do réu, ao não apontar eventuais vícios na consecução dos diversos elementos que conformam o direito de informação. Ao se adentrar, entretanto, em um campo meramente especulativo, optase apenas por chamar a atenção da oscilação das decisões entre o dever ou o condicionamento da notificação à vontade do preso. Os casos GFS e AN sugerem que, na prática, as autoridades pendem para a notificação automática. De fato, pelo menos na esfera judiciária, a partir de 2012, estabeleceu o CNJ ser esse o procedimento para as autoridades sob sua competência. Já em MADL, o arrazoado do Relator e do MPF se coadunam com o disposto literalmente na CVRC; a notificação é uma faculdade do preso.

4.3 Rumo à Instrumentalidade do Artigo 36(1)(b)? Em IB22, tem-se recurso ordinário em habeas corpus, impetrado perante o STJ, a favor de IB, de nacionalidade romena, preso em flagrante por suposto tráfico de drogas. O episódio teve origem quando IB e sua mulher foram surpreendidos no Aeroporto de Guarulhos, admitindo ingestão de cápsulas de cocaína. Lavrou-se auto de prisão em flagrante. A DPU alegou a nulidade da prisão em função de diversos pontos, incluindo a ausência de notificação da prisão ao Consulado da Romênia (BRASIL, 2010). De principal interesse deste artigo é a ponderação, pelo juízo, das obrigações do art. 36(1)(b) à luz da processualística penal brasileira. É que, nessa seara, de 22  A sigla corresponde ao nome civil abreviado do indivíduo. Revista Jurídica da Presidência

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acordo com o art. 563 do Código de Processo Penal – CPP23 e em entendimento consubstanciado há longa data na Súmula no 523 do STF (BRASIL, 1969)24, condiciona-se a nulidade penal à prova de efetivo prejuízo para o réu; princípio este retratado no brocardo pas de nullité sans grief25. É o que se observa na análise do Ministro Relator Jorge Mussi: Destaque-se que, conforme ressaltou a Corte impetrada, ainda que tivessem ocorrido esses equívocos, tais circunstâncias não seriam suficientes, por si sós, para viciar o auto de prisão em flagrante, menos ainda a própria ação penal, tendo em vista a ausência de demonstração de prejuízo efetivo ao recorrente, “a quem, afinal, estão sendo conferidas todas as garantias constitucionais para o exercício pleno de seu direito ao contraditório e à ampla defesa (...) E, como bem asseverou o Tribunal de origem, “somente haverá falar-se em nulidade do processo quando cabalmente comprovado prejuízo efetivo à acusação ou à defesa” o que não se vislumbrou ter ocorrido no caso presente. (BRASIL, 2010, p.8, grifos nossos).

É esta a reflexão final do artigo. Seriam os vícios concernentes ao não cumprimento das formalidades do artigo 36 (1) (b) da CVRC supríveis, uma vez ausente prejuízo ao preso estrangeiro? Situar-se-ia a CVRC no campo das nulidades relativas no processo penal brasileiro? Se, dos casos paradigmáticos, é possível extrair maior deferência a certo formalismo das exigências do artigo 36(1)(b) como pressuposto da validade do processo penal e da garantia constitucional da ampla defesa, ao condicionar seu descumprimento com eventual prejuízo ao réu, relativiza-se o disposto no tratado. Uma face desse formalismo é observada, por exemplo, no caso paradigmático MVDB. O Relator indicava não ser a citação da Embaixada belga, para fins de interesse processual, o mesmo ato de notificação consular da CVRC. A retórica envolvendo o status do artigo 36(1)(b) de direito individual, humano e de garantia indisponível que assiste a qualquer pessoa estrangeira submetida a prisão em território também se alinha com essa perspectiva. Por outro lado, a ponderação dos direitos consulares com a ausência de prejuízo retrata a mitigação das obrigações. Alinha-se com uma visão da natureza finalística destas obrigações, e não de meio, o que, no seu 23  “Art. 563. Nenhum ato será declarado nulo, se da nulidade não resultar prejuízo para a acusação ou para a defesa”. (BRASIL, 1941). No mesmo sentido, veja-se: artigos 566 e 572 do CPP. 24  S  úmula 523: “No processo penal, a falta da defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”. (BRASIL, 1959). 25  “Não há nulidade sem prejuízo” (tradução nossa). Revista Jurídica da Presidência

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incumprimento, sugeriria hipótese de nulidade relativa, na perspectiva de um sistema instrumental de nulidades no processo penal brasileiro.

5 Conclusão Casos recentes envolvendo brasileiros presos no exterior demonstram a relevância e a contemporaneidade do debate sobre os direitos consulares, assim como nos fazem refletir sobre a atuação das autoridades brasileiras, em relação a esses direitos, na situação inversa: presos estrangeiros no país. Parte dessa dinâmica pode ser depreendida da jurisprudência dos tribunais superiores brasileiros. Para esta verificação, exigiu-se, primeiramente, conhecer as disposições literais da CVRC, em especial o artigo 36(1)(b). A partir daí, fez-se a distinção doutrinária dos direitos consulares e as respectivas interpretações realizadas por dois tribunais internacionais relevantes: a CIJ e a CIDH. Destacou-se a centralidade do direito de informação consular e seus elementos de fundo – notificação, comunicação e assistência – além de seu aspecto temporal que exige sua pronta efetivação. Ao se confrontar, entretanto, o arcabouço doutrinário e a jurisprudência internacional com a situação brasileira, revelaram-se abordagens distintas. As decisões internacionais enfocam o aspecto formalista das obrigações do artigo 36(1)(b). A jurisprudência nacional ora adere a essa abordagem, ora se distancia subordinando um eventual reconhecimento do vício à efetiva demonstração de prejuízo sofrido. Não menos curioso é que, mesmo se empreendendo uma pesquisa nos sistemas de busca do STF e STJ, nos últimos dez anos, apenas seis decisões foram encontradas. O desconhecimento dos estrangeiros e de suas defesas sobre o arcabouço dos direitos consulares pode ser uma explicação plausível para o reduzido número de casos. Afinal, até mesmo em uma das decisões, revelou-se a possibilidade de outros processos terem sido julgados pelo STF sem a observância da formalidade do direito de notificação, por falta de familiaridade da própria Corte. Salutar, enfim, esse reconhecimento, ao suscitar um maior debate sobre a amplitude, natureza e qualidade dos direitos e obrigações do artigo 36(1)(b) da CVRC.

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Normas de submissão de trabalhos à Revista Jurídica da Presidência

1 Submissão 1.1 Ineditismo: a Revista Jurídica da Presidência publica apenas artigos inéditos, que nunca tenham sido divulgados em outros meios (blogs, sites ou outras publicações); 1.2 Encaminhamento dos artigos: devem ser encaminhados à Coordenação de Editoração da Revista Jurídica da Presidência, pelo formulário disponível no sítio eletrônico: https://www.presidencia.gov.br/revistajuridica. 1.3 Tipo de arquivo: são admitidos arquivos com extensões .DOC, .RTF ou .ODT, observando-se as normas de publicação e os parâmetros de editoração adiante estabelecidos. 1.4 Composição dos artigos: além do texto, os artigos devem conter os seguintes itens:   1.4.1 Título   1.4.2 Sumário   1.4.3 Resumo   1.4.4 Palavras-chave   1.4.5 Referências 1.5 Número de Palavras: mínimo de 7.000 (sete mil) e máximo de 9.000 (nove mil) no artigo completo. 1.6 Idiomas: os autores podem encaminhar artigos redigidos em Português, Inglês, Francês e Espanhol. 1.7 Requisitos para o(s) autor(es): a Revista Jurídica da Presidência só admite artigos de autores graduados (qualquer curso superior); graduandos podem submeter artigos em co-autoria com graduados.

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2 Traduções obrigatórias para outros idiomas Os artigos enviados devem ter os seguintes itens obrigatoriamente traduzidos para outros idiomas nas variações especificadas: 2.1 Título   2.1.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório);   2.1.2 Em mais dois idiomas:      2.1.2.1 Inglês (obrigatório); e      2.1.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório);   2.1.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.1.2.2 (obrigatório). 2.2 Sumário   2.2.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório);   2.2.2 Em mais dois idiomas:      2.2.2.1 Inglês (obrigatório); e      2.2.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório);   2.2.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.2.2.2 (obrigatório). 2.3 Resumo   2.3.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório);   2.3.2 Em mais dois idiomas:      2.3.2.1 Inglês (obrigatório); e      2.3.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório);   2.3.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.3.2.2 (obrigatório). 2.4 Palavras-chave   2.4.1 No idioma predominante do artigo (obrigatório);   2.4.2 Em mais dois idiomas:      2.4.2.1 Inglês (obrigatório); e      2.4.2.2 Português, Espanhol ou Francês (obrigatório);   2.4.3 Quando o idioma predominante for o Inglês, o autor deverá escolher dois outros idiomas dentre os especificados no item 2.4.2.2 (obrigatório).

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3 Formatação do artigo Com exceção de quando seja especificado, o artigo deverá ter a seguinte formatação geral: 3.1 Tamanho da página: folha A4 (210 mm x297 mm). 3.2 Margens:   3.2.1 Superior: 3 cm   3.2.2 Inferior: 2 cm   3.2.3 Esquerda: 3 cm   3.2.4 Direita: 2 cm 3.3 Fonte: Arial ou Times New Roman   3.3.1 Tamanho: 12 pontos   3.3.2 Estilo: Regular 3.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha 3.5 Alinhamento: texto justificado

4 Especificação dos itens do artigo 4.1 Título   4.1.1 Posicionamento: Deve estar centralizado no topo da página.   4.1.2 Número de palavras: Deve conter no máximo 15 (quinze) palavras.   4.1.3 Fonte: Arial ou Times New Roman      4.1.3.1 Tamanho: 16 pontos      4.1.3.2 Estilo: Negrito   4.1.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha   4.1.5 Título e subtítulo do artigo devem ter apenas a primeira letra de cada frase em maiúscula, salvo nos casos em que o uso desta seja obrigatório. Exemplos:

A suposta permissão do Código Civil para emissão eletrônica dos títulos de crédito A cultura do controle penal na contemporaneidade

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442   4.1.6 O título nas duas línguas estrangeiras deve obedecer às mesmas regras do título na língua predominante do artigo. Exemplos:

Argumentação jurídica e direito antitruste: análise de casos Legal argument and antitrust law: case studies La argumentación jurídica y el derecho antitrust: un análisis de caso 4.2 Sumário   4.2.1 Conteúdo: deve reproduzir somente número e nome das seções principais que compõem o artigo.   4.2.2 Configuração: os itens de sumário devem ser antecedidos pelo título “Sumário”.      4.2.2.1 Para início e fim do sumário, adotam-se apenas os termos “Introdução”, “Conclusão” e “Referências”.   4.2.3 Posicionamento: deve figurar abaixo do título. Exemplo:

SUMÁRIO: 1 Introdução - 2 (In)Justiça transicional e Democracia: paralelismo entre a Espanha e o Brasil - 3 Conclusão - 4 Referências. CONTENTS: 1 Introduction - 2 Transitional (In)Justice and Democracy: parallelism between Spain and Brazil - 3 Conclusion - 4 References. CONTENIDO: 1 Introducción - 2 (In)Justicia Transicional y Democracia: paralelismo entre España y Brasil - 3 Conclusión - 4 Referencias. 4.3 Resumo   4.3.1 Conteúdo: deve ser um texto conciso que ressalte o objetivo e o assunto principal do artigo.      4.3.1.1 O resumo não deve ser composto de enumeração de tópicos.      4.3.1.2 Deve-se evitar uso de símbolos e contrações cujo uso não seja corrente, bem como fórmulas, equações e diagramas, a menos que extremamente necessários.   4.3.2 Número de palavras: até 150 (cento e cinquenta). Revista Jurídica da Presidência

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4.4 Palavras-chave   4.4.1 Número de palavras: devem ser indicados até 5 (cinco) termos.   4.4.2 Configuração: os termos devem ser antecedidos pelo título “Palavras-chave” e ser separados entre si por travessão. Exemplo:

PALAVRAS-CHAVE: Justiça Transicional – Comissão da Verdade – Anistia – Memória – Reparação. KEYWORDS: Transitional Justice – Truth Commission – Amnesty – Memory – Repair. PALABRAS CLAVE: Justicia Transicional – Comisión de la Verdad – Amnistía – Memoria – Reparación. 4.5 Texto   4.5.1 Não deve haver recuo ou espaçamento entre os parágrafos.   4.5.2 Títulos e subtítulos das seções:   4.5.3 Fonte: Arial ou Times New Roman      4.5.3.1 Tamanho: 14 pontos      4.5.3.2 Estilo: Negrito   4.5.4 Espaçamento entre linhas: 1,5 linha   4.5.5 Alinhamento: texto alinhado à esquerda   4.5.6 Numeração: uso de algarismos arábicos. Exemplo:

2 A evolução da disciplina sobre os juros no Direito brasileiro 2.1 O Direito colonial e a vedação inicial à cobrança de juros 2.2 A liberalização da cobrança de juros e sua consagração

5 Citações Sempre que é feita uma citação, deve-se utilizar o sistema autor-data (item 5.1) e inserir a referência completa ao final do artigo (item 7). As citações obedecem à Norma 10.520 da ABNT.

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444 5.1 Sistema de chamada das citações: utiliza-se o sistema autor-data, segundo o qual se emprega o sobrenome do autor ou o nome da entidade, a data e a(s) página(s) da publicação de onde se retirou o trecho transcrito.   5.1.1 Citação indireta sem o nome do autor expresso no texto: deve apresentar, entre parênteses, a referência autor-data completa. Exemplo:

A criança passa a ocupar as atenções da família, tornando-se dolorosa a sua perda e, em razão da necessidade de cuidar bem da prole, inviável a grande quantidade de filhos (ARIÈS, 1973, p. 7-8).   5.1.2 Citação indireta com o nome do autor expresso no texto: deve apresentar, entre parênteses, o ano e a(s) página(s) da publicação. Exemplo:

Duarte e Pozzolo (2006, p. 25) pontuam que a ideologia constitucionalista adota o modelo axiológico de Constituição como norma, estabelecendo uma defesa radical de interpretação constitucional diferenciada da interpretação da lei.   5.1.3 Citação direta sem o nome do autor expresso no texto: deve conter o trecho citado entre aspas e apresentar, entre parênteses, a referência autor-data completa. Exemplo:

Mas esse prestígio contemporâneo do Poder Judiciário decorre menos de uma escolha deliberada do que de uma reação “de defesa em face de um quádruplo desabamento: político, simbólico, psíquico e normativo” (GARAPON, 2001, p. 26).   5.1.4 Citação direta com o nome do autor expresso no texto: deve apresentar, entre parênteses e junto ao nome do autor, o ano e a(s) página(s) da publicação. Exemplo:

Pensando no realce à condição brasileira, interessante notar, nos termos propostos por Anthony Pereira (2010, p. 184), que o golpe de 1966 na Argentina foi: [...] estreitamente associado ao golpe brasileiro. Ambas as intervenções foram descritas como ‘revoluções’ pelas forças armadas dos dois países.

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5.2 Recuo das citações   5.2.1 Citações com até três linhas: devem permanecer no corpo do texto, sem recuo ou realce. Exemplo:

O autor registra ainda que, segundo o artigo 138 do Código Comercial Alemão, “não basta que os juros sejam excessivos, nem também a mera desproporção entre prestação e contraprestação, pois é preciso que o contrato em seu todo [...] seja atentatório aos bons costumes, ou seja, imoral” (WEDY, 2006, p. 12).   5.2.2 Citações com mais de três linhas: devem ser separadas do texto nas seguintes configurações:      5.2.2.1 Recuo de parágrafo: 4 cm da margem esquerda.      5.2.2.2 Fonte: Arial ou Times New Roman          5.2.2.2.1 Tamanho: 11 pontos          5.2.2.2.2 Estilo: Regular      5.2.2.3 Espaçamento entre linhas: simples      5.2.2.4 Alinhamento: texto justificado      5.2.2.5 A citação não deve conter aspas. Exemplo:

De fato, na consulta organizada por Jacques Maritain a uma série de pensadores e escritores de nações membros da UNESCO, que formaram a Comissão da UNESCO para as Bases Filosóficas dos Direitos do Homem, em 1947, é possível observar que Mahatma Gandhi destacou justamente a dimensão do dever para a preservação do direito de todos: Os direitos que se possa merecer e conservar procedem do dever bem cumprido. De tal modo que só somos credores do direito à vida quando cumprimos o dever de cidadãos do mundo. Com essa declaração fundamental, talvez seja fácil definir os deveres do homem e da mulher e relacionar todos os direitos com algum dever correspondente que deve ser cumprido. (MARITAIN, 1976, p. 33)

Em segundo lugar, essa aceitação se deu porque tanto o esboço chileno [...]. Revista Jurídica da Presidência

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446 5.3 Destaques nas citações Os destaques devem ser reproduzidos de forma idêntica à constante do original ou podem ser inseridos nas citações pelo autor.   5.3.1 Destaques no original: após a transcrição da citação, empregar a expressão “grifo(s) no original”, entre parênteses. Exemplo:

A escola ocupa o lugar central na educação, enclausurando a criança em contato apenas com seus pares e longe do convívio adulto. “A família tornou-se um espaço de afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos” (ARIÈS, 1973, p. 8, grifos no original).   5.3.2 Destaques do autor do artigo: após a transcrição da citação, empregar a expressão “grifo(s) nosso(s)”, entre parênteses. Exemplo:

Em suma, o ambiente de trabalho constitui-se em esfera circundante do trabalho, espaço transformado pela ação antrópica. Por exemplo, uma lavoura,por mais que seja realizada em permanente contato com a terra, caracteriza-se como um meio ambiente do trabalho pela atuação humana. Em outras palavras, apesar de a natureza emprestar as condições para que o trabalho seja realizado, a mão semeia, cuida da planta e colhe os frutos da terra, implantando o elemento humano na área de produção. (ROCHA, 2002, p. 131, grifos nossos) 5.4 Tradução de citação em língua estrangeira: as citações em língua estrangeira devem ser sempre traduzidas para o idioma predominante do artigo nas notas de rodapé, acompanhadas do termo “tradução nossa”, entre parênteses.

6 Realces Destaques em trechos do texto devem ocorrer apenas no estilo de fonte itálico e somente nos seguintes casos: 6.1 Expressões em língua estrangeira. Exemplo:

[...] Contudo, a Lei de Repressão à Usura, de 23 de julho de 1908, mais conhecida por lá como Ley Azcárate, prevê a nulidade de contrato de

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mútuo que estipule juros muito acima do normal e manifestamente desproporcional com as circunstâncias do caso (ESPANHA, 1908). 6.2 Realce de expressões. Exemplo:

A terceira parte introduz uma questão relativamente nova no debate jurídico brasileiro: o modelo real das relações entre Direito e Política.

7 Referências Todos os documentos mencionados no texto devem constar nas referências, de acordo com o disposto na NBR 6023 da ABNT. 7.1 Configuração:   7.1.1 Espaçamento entre linhas: simples   7.1.2 Alinhamento: texto alinhado a esquerda   7.1.3 Destaque: o nome do documento ou do evento no qual o documento foi apresentado deve ser destacado em negrito.   7.1.4 Eletrônicos: devem ser informados o local de disponibilidade do documento, apresentado entre os sinais ; e a data do acesso a esse. Exemplo:

AMARAL, Augusto Jobim do. A Cultura do Controle Penal na Contemporaneidade. Revista Jurídica da Presidência, Brasília, v. 12, n. 98, out. 2010/jan. 2011, p. 385-411. Disponível em: https://www4.planalto.gov. br/revistajuridica/vol-12-n-98-out-2010-jan-2011/menu-vertical/artigos/ artigos. 2011-02-18.8883524375>. Acesso em: 02 de maio de 2011. 7.2 Livros (manual, guia, catálogo, enciclopédia, dicionário, trabalhos acadêmicos):   7.2.1 Publicados. Exemplos:

ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Trad. Roberto Raposo, rev. Adriano Correria. Rio de Janeiro: Forense, 2010. BESSA, Fabiane Lopes Bueno Netto. Responsabilidade social: práticas sociais e regulação jurídica. 1. ed. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2006.

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448   7.2.2 Eletrônicos. Exemplos:

CAMÕES, Luis de. Os Lusíadas. Biblioteca Nacional Digital de Portugal. 2. ed. 1572. Disponível em: . Acesso em: 13 de junho de 2012. BRASIL. Combate a Cartéis na Revenda de Combustíveis. Secretaria de Direito Econômico, Ministério da Justiça, 1. ed. 2009. Disponível em: . Acesso em: 16 de novembro de 2011. 7.3 Coletâneas:   7.3.1 Publicadas. Exemplos:

TOVIL, Joel. A lei dos crimes hediondos reformulada: Aspectos processuais penais. In: LIMA, Marcellus Polastri; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna (Coord.). A renovação processual penal após a constituição de 1988: estudos em homenagem ao professor José Barcelos de Souza. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. AVRITZER, Leonardo. Reforma Política e Participação no Brasil. In: AVRITZER, Leonardo; ANASTASIA, Fátima (Org.). Reforma Política no Brasil. Belo Horizonte: UFMG, 2006. 7.4 Periódicos:   7.4.1 Publicados. Exemplo:

MENDES, Gilmar Ferreira. O Mandado de Injunção e a necessidade de sua regulação legislativa. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 13, n. 100, jul./set. 2011, p. 165-192. SARLET, Ingo Wolfgang. Os Direitos Fundamentais Sociais na Constituição de 1988. Revista Diálogo Jurídico. Salvador: Centro de Atualização Jurídica, ano I, v. 1, n. 1, abril de 2001.

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  7.4.2 Eletrônicos. Exemplos:

BARROSO, Luís Roberto. Constituição, Democracia e Supremacia Judicial: Direito e Política no Brasil contemporâneo. Revista Jurídica da Presidência. Brasília, v. 12, n. 96, fev./mai. 2010, p. 3-41. Disponível em: . Acesso em: 14 de junho de 2012. MORAES, Maurício. Anticoncepcional falhou, diz mãe de suposto filho de Lugo. In: Folha de São Paulo, 27 abr. 2009. Disponível em: . Acesso em: 22 de outubro de 2010. 7.5 Atos normativos. Exemplos:

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 05 de outubro de 1988. Brasília, 1988. Diário Oficial da União. Disponível em: . Acesso em: 31 de julho de 2011. ________. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Brasília, 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União. Disponível em: . Acesso em: 13 de abril de 2012. 7.6 Projetos de lei. Exemplos:

BRASIL. Congresso Nacional. Projeto de Lei nº 6.793/2006, versão final. Disponível em: . Acesso em: 13 de abril de 2012. ________. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei da Câmara dos Deputados nº 41/2010. Disponível em: .Acesso em: 11 de julho de 2011. Revista Jurídica da Presidência

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450 7.7 Jurisprudência:   7.7.1 Publicada. Exemplos:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Súmula no 14. In: ______. Súmulas. São Paulo: Associação dos Advogados do Brasil, 1994, p.16.   7.7.2 Eletrônica. Exemplos:

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus no 97.976 MC/MG. Relator: Ministro Celso de Mello. Brasília, 12 mar. 2009. Diário de Justiça Eletrônico. Disponível em: . Acesso em: 13 de setembro de 2009. 7.8 Notícias eletrônicas. Exemplos:

RABELO, Luiz Gustavo. Posição do STJ quanto à paternidade é progressista, diz pesquisadora da UnB. In: Portal do Superior Tribunal de Justiça. Disponível em: . Acesso em: 22 de junho de 2011. PORTAL UOL. Neymar será pai de um menino. Disponível em: . Acesso em: 12 de julho de 2011.

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8 Avaliação: Os artigos recebidos pela Revista Jurídica da Presidência são submetidos ao crivo da Coordenação de Editoração, que avalia a adequação à linha editorial da Revista e às exigências de submissão. Os artigos que não cumprirem essas regras serão devolvidos aos seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias. Aprovados nessa primeira etapa, os artigos são encaminhados para análise dos pareceristas do Conselho de Consultores, formado por professores doutores das respectivas áreas temáticas. A decisão final quanto à publicação é da Coordenação de Editoração e do Conselho Editorial da Revista Jurídica da Presidência.

9 Direitos Autorais: Ao submeterem artigos à Revista Jurídica da Presidência, os autores declaram serem titulares dos direitos autorais, respondendo exclusivamente por quaisquer reclamações relacionadas a tais direitos, bem como autorizam a Revista, sem ônus, a publicar os referidos textos em qualquer meio, sem limitações quanto ao prazo, ao território, ou qualquer outra. A Revista fica também autorizada a adequar os textos a seus formatos de publicação e a modificá-los para garantir o respeito à norma culta da língua portuguesa.

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Considerações finais:

Qualquer dúvida a respeito das normas de submissão poderá ser dirimida por meio de mensagem encaminhada ao endereço eletrônico: [email protected]

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