Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar: um desafio para os profissionais da educação

July 3, 2017 | Autor: Dijaci Oliveira | Categoria: Sociologia da Educação, Sociologia da Infância
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Infância e juventude: direitos e perspectivas

Conselho Editorial PDH/UFG Fundação de Apoio à Pesquisa na UFG (FUNAPE) Cláudio Rodrigues Leles Diretor Executivo Programa de Direitos Humanos – UFG Conselho Editorial Vilma Machado (UFG), presidente Alex Ratts (UFG) Arnaldo Bastos Santos Neto (UFG) Arthur Trindade Maranhão Costa (UnB) Eduardo Bittar (USP) Enrique Leff (UNAM – México) José Querino Tavares Neto (UFG) Lúcia de Fátima Guerra Ferreira (UFPB) Luiz Mello de Almeida Neto (UFG) Magno Luiz Medeiros da Silva (UFG) Manoel de Souza e Silva (UFG) Maria Luisa Eschenhagen (Universidad Externado – Colômbia) Miriam Pillar Grossi (UFSC) Paulo César Carbonari (IFIBE e MNDH) Regina Sueli de Sousa (UCG)

Dijaci David de Oliveira Revalino Antonio de Freitas Tania Ludmila Dias Tosta (organizadores)

Infância e juventude: direitos e perspectivas

Este livro reflete parte das preocupações de vários pesquisadores sobre o processo de educação em direitos humanos e o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes. As preocupações relativas à violação dos direitos de crianças e adolescentes não são novas, mas ainda há muitas trilhas a percorrer. Nosso principal desafio é pensar sobre o que constitui uma cultura de direitos humanos, bem como o modo como deve ser construída e consolidada. Obviamente esta não é uma tarefa fácil, como atestam as diversas agências e atores nacionais e internacionais que sempre defenderam a construção do projeto da Carta de 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Apesar dos entraves existentes, não deixaremos de persistir no trabalho de pesquisar e demonstrar o significado das práticas sociais dos mais diversos atores sociais. Ou seja, quais as implicações de deixar de fazer, de não reconhecer, de se ausentar da ação sobre as questões referentes aos direitos de crianças e adolescentes, da exploração e da violência, do trabalho infantil, dos problemas da relação escola-trabalho, do desemprego entre os jovens, assim como de suas perspectivas futuras. Não temos a ilusão de que os processos sociais transformam-se com facilidade, mas isso não extingue nossa crença na possibilidade de construção de novos valores. É a partir dessa orientação que este livro reúne os resultados dos trabalhos de vários pesquisadores, de forma a ampliar o debate a respeito da consolidação de práticas sociais que nos levem a uma cultura pautada no respeito aos direitos humanos. Os autores não possuem soluções prontas, mas têm a convicção de que seus trabalhos representam um convite à reflexão sobre o fenômeno da violação dos direitos de crianças e adolescentes. Enfim, este trabalho é um chamado para que não se perca a perspectiva da construção de uma cultura de direitos humanos.

Por fim, não podemos deixar de lembrar que este livro só foi possível graças ao apoio do Programa Escola que Protege (EqP) do Ministério da Educação. O financiamento desse Programa possibilitou o envolvimento de um grande número de professores e pesquisadores de várias partes do Brasil na reflexão sobre a condição de nossas crianças e adolescentes. Dijaci David de Oliveira Coordenador do projeto Novas Práticas Sociais na Educação

Sumário

9 Apresentação 17

Parte I: Das questões e dos direitos da infância e da juventude

19 Notas sobre a sociologia da infância Magali Reis 31 Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar: um desafio para os profissionais da educação Dijaci David de Oliveira 53

Violência contra a criança na família: um tabu que mata? Fernanda Bittencourt Ribeiro

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Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente: tratamento redistributivo de responsabilidades sociais e institucionais Ana Liési Thurler

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Parte II: Do trabalho e do futuro de crianças e adolescentes

99 Infância e trabalho: algumas aproximações a partir da normatividade  Revalino Antonio de Freitas 115 Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes  Tania Ludmila Dias Tosta 139 A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho  Licinia Maria Correa 165 Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo: diversidade de experiências e de percepções Maria Carla Corrochano 193

Caminhos, miragens e vazios: a construção simbólica do futuro entre jovens de grupos populares Mónica Franch

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Sobre os autores

Apresentação

A maternidade e a infância têm direito a cuidados e assistência especiais. Todas as crianças, nascidas dentro ou fora do matrimônio, gozarão da mesma proteção social. Declaração Universal dos Direitos Humanos, art. 25, 1948

Nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais. Estatuto da Criança e do Adolescente, art. 5, 1990

De modo geral, o interesse das ciências sociais em relação à criança e ao adolescente tem se limitado ao estudo de sua transformação em atores sociais adultos via socialização, na perspectiva da família e da educação. Por não ser considerada totalmente integrada à sociedade, a criança tem sido frequentemente ignorada pelos pesquisadores, com exceção de sua preparação para a futura participação na sociedade.

Novos estudos na sociologia da infância têm apontado a importância de pensar a criança como um ator social (não apenas um futuro ator) com capacidade e conhecimentos próprios para interagir em sociedade. Além disso, concebem crianças e adultos como duas categorias geracionais, cuja atribuição de seus respectivos direitos e deveres varia de acordo com cada sociedade. A relação geracional é vista como uma ordenação construída socialmente, em que a criança ocupa uma posição desvantajosa, e é analisada como elemento central da estrutura social de todas as sociedades, assim como as relações de gênero, classe e raça (Bühler-Niederberger, 2010a, 2010b). No Brasil, a tendência era pensar a criança não como sujeito, mas como objeto de cuidado e controle. Independentemente da consideração da criança como problema social ou futuro adulto, o foco inicial foi colocado sobre as crianças pobres: os “menores abandonados”, vítimas da desigualdade social e possíveis delinquentes. Essa visão sofreu uma transformação a partir do processo de redemocratização, com a promulgação da Constituição de 1988 e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em 1990, que apresentou a criança e o adolescente como sujeitos de direitos. Apesar de não refletir inteiramente na realidade social, a mudança representou uma contribuição fundamental para o debate sobre infância e juventude no Brasil, com a diversificação de estudos no campo. Mesmo assim, ainda são limitadas as pesquisas brasileiras sobre o tema na área das ciências sociais (Castro; Kosminsky, 2010). Este livro nasce com o objetivo de ampliar as reflexões sobre a exploração de crianças e adolescentes no Brasil, abordando principalmente a violência e o trabalho, os riscos aos quais estão expostos, a constituição dos seus direitos e suas perspectivas. Procuramos trazer diversas contribuições para o debate sobre as condições sociais da infância e da juventude no Brasil, convidando autores que defendem diferentes abordagens sobre o tema. O livro é composto de trabalhos realizados por pesquisadores vinculados à Universidade Federal de Goiás, Univer[ 12

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Tania Ludmila Dias Tosta

Infância e juventude

sidade de Brasília, Universidade Federal da Paraíba, Universidade de São Paulo, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Universidade Vale do Rio Doce. Ao privilegiar uma perspectiva interdisciplinar, o livro conta com especialistas nas áreas de sociologia, educação e antropologia. O livro é dividido em duas partes. A primeira inclui uma reflexão teórica sobre as questões e os direitos da infância e da juventude, além de abordar a violência doméstica e a naturalização da discriminação de gênero que vitima meninas e adolescentes. A segunda parte enfatiza o trabalho e o futuro de crianças e adolescentes. Problematizam-se tanto a exploração do trabalho infantil como as dificuldades da relação entre escola e emprego e do desemprego entre os jovens. Questiona-se ainda a construção do futuro desses jovens, que dão voz às suas perspectivas entre sonhos dificilmente alcançáveis e o vazio da incerteza e do risco, mas que também encontram espaço para projetos possíveis de serem concretizados. Na primeira parte, em “Notas sobre a sociologia da infância”, Magali Reis faz uma revisão da literatura clássica da sociologia, sobretudo a partir das leituras de Durkheim e Marx. Seu objetivo foi o de aprofundar o debate em torno de alguns conceitos de Durkheim, tais como anomia, socialização, ética e moral na infância, e de Marx, a exemplo dos conceitos de classe social, trabalho alienado e estranhamento, reificação e furto da essência da infância. Segundo a autora, essa revisão nos permite visualizar com maior sensibilidade os rumos do debate da sociologia da infância na atualidade. Dijaci David de Oliveira analisa a construção dos direitos a partir da implantação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) em “Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar: um desafio para os profissionais da educação”. O autor discute os obstáculos para a efetivação dos dispositivos que obrigam profissionais de saúde e educação a notificarem casos que envolvam violência contra crianças e adolescentes. Ademais, aponta como a reflexão tem avançado no campo da saúde, mas, em contrapartida, ainda encontra-se incipiente na área da educação. Apresentação

O texto de Fernanda Bittencourt Ribeiro, “Violência contra a criança na família: um tabu que mata?”, aborda a violência doméstica. Um dos pontos de partida do seu trabalho foi analisar a atuação do profissional do Conselho Tutelar. A autora problematiza a violência contra a criança na família, procurando compreender como essa situação é interpretada e enfrentada socialmente com base em normas e valores em torno dos quais se constrói uma concepção da relação entre criança e família. Para corroborar sua reflexão, analisa uma forma de intervenção e de prevenção à violência familiar na França que busca conciliar a proteção dos direitos da criança com o auxílio a pais e mães que demandam ajuda. Com o artigo “Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente: tratamento redistributivo de responsabilidades sociais e institucionais”, Ana Liési Thurler tem como ponto de partida a reflexão sobre a violência sexista. De acordo com a autora, a naturalização, a psicologização, a despolitização e a eufemização da violência masculina podem constituir uma rede de cumplicidades que contribuiria para a impunidade de homens violentos. A partir dessa percepção, questiona se os atuais progressos legais são suficientes para assegurar a proteção das mulheres, bem como sugere que façamos um esforço para desvelar e desconstruir essa rede de cumplicidades. O texto “Infância e trabalho: algumas aproximações a partir da normatividade”, de Revalino Antonio de Freitas, aborda o processo de construção social da infância ao longo do século XX, norteado pela constituição de normas que estabelecem a exclusão de crianças das atividades produtivas com base na realidade das sociedades ocidentais industrializadas. O autor defende a importância de um estatuto social de proteção à infância, mas aponta a necessidade de levar em consideração a complexidade do fenômeno do trabalho infantil na perspectiva de outras sociedades, contemplando seus aspectos culturais, sociais e econômicos. Segundo o autor, a questão premente é a de combater o trabalho infantil abstrato, fundado na exploração da força de trabalho, exploração esta que se expande para todo o planeta seguindo os movimentos da mundialização do capital. [ 14

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Tania Ludmila Dias Tosta

Infância e juventude

A seguir, “Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes”, de Tania Ludmila Dias Tosta, apresenta um retrato atual do perfil das crianças e adolescentes que trabalham no Brasil, apontando que a redução do trabalho infantil ocorrida nos últimos anos não anulou a gravidade da questão. Ainda hoje, pelo menos um terço das crianças de todas as unidades da Federação começam a trabalhar antes da idade permitida, o que denota a importância de elaborar novas formas de combate ao trabalho precoce. A autora concentra sua análise nas situações em que o trabalho é precário e arriscado, com base em dados da estrutura etária dos trabalhadores em situação de vulnerabilidade no Distrito Federal. O texto de Licinia Maria Correa, “A (in)conciliável relação entre jovens, escolas e trabalho”, discute os significados da interação entre experiências escolares e a inserção de jovens e adolescentes da periferia de São Bernardo do Campo no mundo do trabalho. A autora registra três categorias principais entre os pesquisados: os que ingressaram precocemente no trabalho, em prejuízo da vida escolar; os que veem o trabalho como uma necessidade desvinculada da escolarização e os que vislumbram uma relação direta entre a educação e o trabalho como realização profissional. Se, por um lado, a educação representa um meio de melhorar as condições socioeconômicas dos jovens, por outro, a necessidade de sobrevivência dificulta a permanência na escola. Aqueles que escapam da lógica do trabalho precoce aumentam as chances de escolarização, mas, para os que se inserem no mundo do trabalho, a escola passa a ocupar um plano secundário, sendo muitas vezes abandonada e depois retomada com o intuito de ampliar a qualificação profissional. Maria Carla Corrochano busca compreender como jovens de camadas populares vivenciam a experiência de trabalho e de ausência de trabalho em “Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo: diversidade de experiências e de percepções”. Sua pesquisa aponta os diversos sentidos atribuídos a essas experiências, organizados nas seguintes construções: 1) começando a trabalhar cedo; Apresentação

2) do sonho com o trabalho de verdade à busca pelo trabalho possível; 3) em busca de melhores empregos; 4) além do trabalho, em busca de novas possibilidades. De forma semelhante às conclusões de Licinia Correa, a autora declara que o ingresso precoce no trabalho ocorre em prejuízo dos estudos de jovens que estão permanentemente focados na busca pela sobrevivência. Ademais, a maior parte dos que concluíram o ensino médio esperava um “trabalho de verdade” (emprego regulamentado) que nunca chegou. Em comum, os jovens entrevistados revelam dificuldades para o ingresso e a permanência no mercado de trabalho formal e resistem à denominação “desempregados”. Com o artigo “Caminhos, miragens e vazios: a construção simbólica do futuro entre jovens de grupos populares”, Mónica Franch encerra a coletânea abordando a construção de futuro por parte de crianças e jovens da região do Recife. A autora procura identificar a existência de projetos de vida entre os sujeitos, as estratégias traçadas para alcançá-los, além das principais esferas em que os projetam (trabalho, consumo, família). A partir daí propõe uma tipologia de tipos de orientação dos jovens em relação ao futuro, desde o planejamento a longo prazo, com destaque para a carreira profissional, até perspectivas mais imediatistas que perpassam sonhos desconectados do presente e a indiferença quanto ao futuro, em um contexto de incerteza e de risco. Enfim, todos os textos aqui reunidos buscam ampliar o debate a respeito das condições sociais de crianças e adolescentes. Também é nosso objetivo que sirvam de subsídio para a reflexão sobre a sociologia no ensino médio. Afinal, é nessa etapa escolar que encontraremos um dos principais atores enfocados neste livro, e suas considerações sobre nossas análises serão de fundamental importância. Certamente teremos muito que aprender com elas. Tania Ludmila Dias Tosta

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Infância e juventude

Referências Bühler-Niederberger, Doris. Introduction: childhood sociology – defining the state of the art and ensuring reflection. Current Sociology, v. 58, n. 2, p. 155-164, 2010a. Bühler-Niederberger, Doris. Childhood sociology in ten countries: current outcomes and future directions. Current Sociology, v. 58, n. 2, p. 369-384, 2010b. Castro, Lucia R.; Kosminsky, Ethel. Childhood and its regimes of visibility in Brazil: an analysis of the contribution of the social sciences. Current Sociology, v. 58, n. 2, p. 206-231, 2010.

Apresentação

Parte I: Das questões e dos direitos da infância e da juventude

Notas sobre a sociologia da infância

Magali Reis

Estas notas pretendem pôr em relevo alguns conceitos fundamentais para o debate atual em torno da sociologia da infância no Brasil. Diante do clamor que se faz hoje pela notabilidade desse campo de estudos como uma sociologia específica, todas as vozes se misturam, confundindo conceitos, orientações teóricas e metodológicas. Por um lado há tentativas pretensiosas e nada inofensivas de importação ou apropriação mimética de teorizações, em geral oriundas do Hemisfério Norte. Por outro lado, a escamoteação de produções brasileiras datadas do início do século XX acaba por desconsiderar o arcabouço teórico produzido no país naquela época. A importação e a apropriação de pesquisas que aportaram na academia brasileira foram sistematizadas em 2005 no dossiê “Sociologia da Infância” (Dossiê..., 2005), publicado na revista Educação e Sociedade. Este é composto por estudos americanos e europeus, voltados, obviamente, para os modos de vida das crianças de seus países de origem. Esses estudos tratam especialmente das relações criança-criança, das relações sociais e de poder entre gerações e dos modos de socialização da criança. Em sua apresentação, podemos observar a supervalorização de experiências teóricas que se pretendem novas, reunidas sob a nomenclatura “emergência da sociologia da infância”.

Pouco exploradas no país, tais experiências não passam de veleidades bem datadas e situadas em contextos muito diversos da realidade sociocultural das crianças brasileiras. Permanece ainda pouco estudada a produção teórica sobre infância de Florestan Fernandes (1979), que estudou as trocinhas do Bom Retiro, em São Paulo. Constituiu este um estudo seminal, fundador, de fato, da sociologia da infância no país. Subjacente ao projeto pretensamente novo de uma sociologia da pequena infância orbita a teoria denominada “clássica”, que opera como o pressuposto não explicitado de conceitos pouco tratados nas pesquisas mais recentes, uma vez que estas remetem à ficção de que ciência é realizada somente nos países do Hemisfério Norte, mostrando não mais que uma réplica do perfil monopolificado que se exibe por toda parte. É necessário que critiquemos essa concepção sedimentada e recoloquemos, de forma mais precisa, alguns dos conceitos fundamentais da sociologia. Desse modo, este texto fundamenta-se nas teorias de Marx e Engels, bem como na tese funcionalista de Durkheim. A criança como sujeito anômico em Émile Durkheim

O filósofo e sociólogo Émile Durkheim, fundador da sociologia como disciplina acadêmica, nasceu em Épinal, Vosges, em 1858. Frequentou a École Normale Supérieure em Paris. Em 1887 assumiu, em Bordéus, a primeira cadeira de sociologia da França. Atuou incansavelmente em defesa da instituição da sociologia como disciplina acadêmica e de seu reconhecimento como ciência, legitimada pelo aporte teórico e metodológico de matriz funcionalista. Fundou o periódico L’Année Sociologique e, em 1902, passou a lecionar sociologia e educação na Sorbonne. A abordagem funcionalista com que Durkheim fundamenta a sociologia é enunciada nas obras Da divisão do trabalho social (1995) e As regras do método sociológico (1974). Na primeira obra, o sociólogo francês analisa a problemática da ordem em um sistema social que requer o ordenamento para que haja progresso e desenvolvimento social e econômico, detendo-se na naturalização da divisão do trabalho social e [ 22 23 ]

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na necessidade de estabelecer uma consciência coletiva capaz de compreender e aceitar a divisão do trabalho como natural e necessária. Na segunda obra, Durkheim esforça-se para definir o fato social como objeto próprio da sociologia, explicitando a trama metodológica com que procura estudar os fenômenos sociais. Afirma que os fatos sociais vivenciados pelos indivíduos atuam como uma realidade independente da vontade subjetiva. Ademais, oferece exemplos emblemáticos de fatos sociais que não são criados pelos sujeitos mas que estes não podem rejeitar, pois tratam-se das leis e regras de determinada sociedade, suas práticas e rituais, costumes e instituições reguladoras. Assim, a própria sociedade, em sua organização mais complexa, nada mais é para o herói fundador (Ortiz, 1989) que um fato sui generis. Os fatos sociais não dizem respeito aos indivíduos, mas mantêm sua exterioridade, sendo constantemente alimentados pelos próprios indivíduos por meio do que Durkheim chama de “consciência coletiva”, ou seja, o sistema de representações e práticas coletivas de uma sociedade. Ao analisar as sociedades complexas, entretanto, Durkheim introduz o conceito de anomia, relacionado aos conceitos de normalidade e patologia social. Portanto, a anomia seria o estado de anormalidade, individual ou coletiva, decorrente da falta de inscrição da sociedade na consciência individual, impedindo que o indivíduo desenvolva a consciência coletiva. Isso ocorre porque as sociedades, especialmente aquelas baseadas na divisão do trabalho social, adotam a diferenciação, e é preciso que as tarefas individuais correspondam, antes de tudo, às necessidades sociais, sendo os desejos e aptidões de cada um substituídos pela consciência de que a divisão do trabalho é necessária à ordem e ao progresso. Quando essa consciência não pode ser despertada nos indivíduos, a sociedade vê-se ameaçada pela desintegração, pois os valores que a mantêm coesa tornam-se enfraquecidos. A solução proposta por Durkheim, então, é a educação. Durkheim entende que a criança é anômica por natureza, isto é, ainda não é capaz de compreender as normas e as regras da sociedade; Notas sobre a sociologia da infância

encontra-se em estado bruto, de plena entrega às suas volições, às paixões desenfreadas, aos desejos absolutos e inadiáveis. Para corrigir esse mal, Durkheim propõe que a educação seja encarregada não apenas de transmitir conhecimentos, mas, sobretudo, de socializar a criança. A socialização ganha contornos precisos perante a sociedade porque ocorre no âmbito de uma lógica peculiar na sociedade da diferença, criando a noção de desigualdade como parte imanente da vida social. A diversidade indelével da condição material de vida deve ser considerada natural. Essa noção de socialização coaduna com o pensamento liberal no qual a desigualdade social diz respeito às condições individuais, previamente determinadas, atribuindo única e exclusivamente ao indivíduo a responsabilidade pelo lugar social por ele ocupado, seja na divisão do trabalho, seja na estratificação social. A socialização, no entanto, é bastante cara à educação. Finalidade última da educação, não ao acaso, ela fará com que os indivíduos se adaptem1 à realidade vivida, inscrevendo na criança, desde cedo, a sociedade. Segundo a visão de Durkheim, a infância é um mal a ser combatido, sobre a qual “permanece o campo de batalha entre o corpo da criança e a educação que irá corrigi-lo” (Fernandes, 1997, p. 65). Durkheim sugere que as consciências individuais são formadas pela sociedade – para tanto, a formação do sujeito social deve propiciar a assimilação dos princípios morais e éticos que regem determinada sociedade. São esses princípios que, uma vez internalizados, determinam a conduta do indivíduo no grupo. Para Durkheim (1975, p. 223), a moral consiste, antes de tudo, “em estabelecer fins; ela dita ao homem os objetivos que ele tende a perseguir e, por isso, ela distingue-se das ciências aplicadas propriamente ditas”. Portanto, o indivíduo é um produto da sociedade, pois esta exerce influência sobre ele, transformando-o em um sujeito disciplinado, ab-

1 O termo “adaptação” foi cunhado no século XIX para designar o ajustamento dos corpos ao meio ou a um sistema preestabelecido. É empregado mais frequentemente na biologia, mas foi reaproveitado pela sociologia e depois pela educação. [ 24 25 ]

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negado e autônomo. Dessa forma, a educação torna-se um bem social caracterizado pela capacidade de transmitir as normas sociais, compreendidas como a cultura local. Uma vez definidos os seus princípios, a educação tratará de diminuir as capacidades individuais em benefício do coletivo. Para o fundador da sociologia, a educação deve ser transmitida normativamente, da velha para a jovem geração, uma vez que a criança nada mais é que tabula rasa. Essa concepção reitera a autoridade do professor/adulto perante o aluno/criança. Para Durkheim, uma das principais funções sociais da educação é moralizar o indivíduo. O furto do lúdico em Marx

O marxismo está no centro de qualquer discussão científica nos dias atuais. Seja contra, seja a favor, marxistas, diletantes, pesquisadores ou simples marxólogos fazem dessa vertente o eixo imaginário em torno do qual giram teorizações ou atividades políticas. Aquilo que aparentemente poderia significar certo prestígio do marxismo tem, na verdade, um duplo caráter: por um lado, pode auxiliar-nos na compreensão de problemas sociais contemporâneos, mas, por outro, pode gerar novas dificuldades interpretativas e análises totalizadoras e imprecisas (Meszaros, 2006). No campo de estudo sobre a criança e sua infância, tais análises encontraram um lugar comum, pois abordagens tão diversas e heterodoxas têm despertado a simpatia das vertentes mais conservadoras e reacionárias, revestidas de um discurso marxiano vazio. No afã de resolver a celeuma sobre a diversidade de condições de vida das crianças, muitos autores tendem a pluralizar o termo “infância”. No entanto, autores mais rigorosos têm ressaltado a necessidade de qualificações novas nesse terreno (Bujes, 2002; Araújo, 2005; Karmer, 2007). O termo “infâncias” simplesmente não abrange as especificidades das infâncias pobres e ricas, pois, neste caso, a ordem argumentativa do discurso não se altera. Uma criança rica, na Europa, tem uma infância distinta da de uma criança rica no Hemisfério Sul. As consequências Notas sobre a sociologia da infância

ideológicas dessa inflexão são naturalmente amplas: o discurso progressista (obviamente, não marxista) transforma-se rapidamente em um discurso conservador, que define e dimensiona a orientação teórica das pesquisas marxianas sobre a infância, as quais não podemos, nem por licenciosidade, chamar de “marxistas”. É inegável que o debate sobre infância avolumou-se na atualidade – discute-se e indaga-se muito mais. As análises sobre as diferentes infâncias brasileiras aumentaram de forma expressiva. Esse crescimento no número de publicações – ainda que, em certos casos, não represente um salto qualitativo – é certamente o indício de maior atividade científica e política no que diz respeito à criança brasileira. Tornou-se crucial, porém, confrontar tais posições teóricas de modo que os resultados das análises empreendidas possam promover avanços sem recrudescê-las. Este texto debruça-se sobre alguns conceitos marxistas que incidem diretamente na realidade de crianças brasileiras. A importância desses conceitos deriva não somente de suas implicações teóricas, mas de sua relevância para o exame das condições de infância no Brasil. Trata-se de material que se propõe a ser uma pequena contribuição ao debate sobre as peculiaridades da infância brasileira e à necessária superação da alienação e dependência teórico-metodológica de estudos europeus recentes nas áreas da sociologia da infância e da educação infantil. O conceito de classe social parece ter se tornado comum nas discussões referentes à infância, sem que as bases de seus significados e de sua construção epistemológica tenham sido esclarecidas. No entanto, na definição marxista de classe, encontramos duas grandes classes sociais identificadas como antagônicas: os burgueses proprietários dos meios de produção e o proletariado, constituído por aqueles que possuem apenas a força de trabalho para garantir sua sobrevivência e a de sua família. Na esteira dessa definição, localizada nos primeiros estudos de Marx e Engels, especialmente no Manifesto do partido comunista (2001), as relações de classes se constroem nas relações de produção, ou seja, no âmbito econômico. Em outros termos, as relações de produção [ 26 27 ]

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constituem as relações de classe, marcadas fortemente pelo antagonismo entre os detentores dos meios de produção e os possuidores da força de trabalho. Assim compreendidas, as classes sociais são categorias analíticas que nos possibilitam visualizar diferenças sociais e materiais entre grupos que são, de fato, separados por fatores econômicos; isto é, a posição dos sujeitos sociais nas relações de produção é fundamental para o entendimento do “lugar” social de cada sujeito na estrutura social do modo de produção capitalista. No entanto, em escritos posteriores, Marx (1984, 1997) analisa a existência de outros grupos econômicos, tais como pequenos artesãos, ferreiros, moleiros e camponeses, bem como párias e miseráveis. Estes, por não estarem inseridos no modo de produção capitalista, também não estão submetidos à estrutura de classes, constituindo o que Marx denomina “lumpenproletariado”. O termo lumpen deriva da palavra alemã Lump que significa “trapo”. Marx define uma categoria social situada nos estratos inferiores da sociedade, que não constitui um grupo organizado e, portanto, é mais suscetível às manobras mais reacionárias da burguesia. O lumpenproletariado vive, dessa forma, à margem da sociedade. No entanto, entre as duas grandes classes sociais, Marx identifica outro grupo de homens: a pequena burguesia. Segundo Marx, esta é composta essencialmente por um grupo que não detém propriamente os meios de produção material, mas destaca-se do proletariado – são médicos, engenheiros, professores, pequenos comerciantes. Tal grupo visa à ascensão social e, portanto, alinha-se ideologicamente com a burguesia. Essas definições são bastante elucidativas e registram certas especificidades que são importantes na medida em que nos possibilitam compreender a multiplicidade de experiências possíveis das infâncias brasileiras. Ser pobre não é uma categoria totalizadora que indica, de antemão, uma condição geral; ao contrário, a pobreza expõe uma ampla gama de experiências relativas às infâncias. Assim, as crianças pobres incluem tanto os filhos de trabalhadores assalariados, oriundos da classe explorada pelo capital, quanto aqueles explorados pelo trabalho Notas sobre a sociologia da infância

infantil ou que vivem na rua, nas periferias ou em favelas. São também crianças institucionalizadas, desamparadas e expostas a riscos, caracterizando, assim, a progressiva lumpenização da infância. A urgência de um amplo exame das definições de classe vigentes no Brasil não pode ser questionada. As especificidades das condições de vida das crianças pobres refletem-se no conjunto de bens sociais dos quais elas podem usufruir ou não, tais como habitação, educação, saúde e transporte. O que está em questão são as condições gerais de vida dos filhos dos pobres, cujas implicações afetam o tipo de relações sociais macro e micro que este grupo possui, a (in)disponibilidade de aparatos sociais específicos que garantam a plena vivência da infância e os mecanismos encontrados para a superação, de fato, da condição de classe subalterna. Estas são apenas algumas das questões que a simples pluralização do termo “infância” é incapaz de alcançar. O problema das análises relativas à infância pobre ou lumpenizada, que chamamos de forma vaga de infâncias, aparece como problema teórico também no que se refere ao trabalho. Marx dedica-se à análise do trabalho infantil e feminino. Em O capital (1988), no capítulo que trata da maquinaria e da grande indústria, ele denuncia o furto do lúdico. Segundo Marx, o trabalho degradante rouba a essência da infância que é o folguedo, e a exploração do trabalho infantil produz a degradação moral de mulheres e crianças. Marx defende que as crianças devem ser preservadas dos efeitos destrutivos do sistema capitalista, haja vista que o sistema social degrada o operário até o ponto de transformá-lo em simples instrumento de capital, e, em consequência, converte os pais em mercadores de escravos de seus próprios filhos. Cabe destacar aqui o conceito de trabalho alienado, um dos mais caros ao marxismo, que nos possibilita compreender a argumentação a respeito das relações entre trabalho e capital na forma capitalista de produção. Nos Manuscritos econômico-filosóficos (2004) esse conceito é elaborado por Marx, ao desvendar os mecanismos internos da dominação capitalista sobre o trabalhador. Isto porque, no modo de produção [ 28 29 ]

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capitalista, o trabalho aparece como forma de opressão e de desumanização do trabalhador. Marx compreende o trabalho como a força capaz de desenvolver no homem toda a sua potencialidade. O que ocorre no capitalismo, porém, é não apenas o impedimento de que as potencialidades do trabalhador se desenvolvam, mas a sujeição desse operário à condição de escravo de seu próprio trabalho. Cria-se nele uma sensação de estranhamento, reconhecendo no próprio trabalho “algo que o oprime, que o fatiga e a que é obrigado a recorrer, tão-somente, para garantir a sua sobrevivência” (Ranieri, 2001, p. 101-102). Em Marx há uma distinção entre alienação (Entäusserung) e estranhamento (Entfremdung), conforme afirma Ranieri (2001, p. 1): [...] enquanto alienação tem o significado de algo ineliminável do homem, uma exteriorização que o autoproduz e forma no interior de sua sociabilidade, estranhamento é designação para as insuficiências de realização do gênero humano decorrentes das formas históricas de apropriação do trabalho, incluindo a própria personalidade humana, assim como as condições objetivas engendradas pela produção e reprodução do homem. Em outras palavras, pode-se dizer que aquilo que Marx designa por alienação (ou exteriorização, extrusão, Entäusserung) tem a ver com atividade, objetivações do ser humano na história, ao mesmo tempo em que estranhamento, pelo contrário, compõe-se dos obstáculos sociais que impedem que aquela atividade se realize em conformidade com as potencialidades humanas, obstáculos que, dadas as formas históricas de apropriação do trabalho e também de sua organização por meio da propriedade privada, faz com que a alienação apareça como um fenômeno concêntrico ao estranhamento.

O trabalho estranhado é aquele cujo produto não apenas é alienado do trabalhador mas se torna hostil a ele, o que é tão intenso no trabalho do adulto quanto no trabalho infantil. Não obstante, Marx prossegue afirmando que a ganância do capitalista coisifica tudo o que pode. Do mesmo modo, o trabalho alienado nada mais é que o trabaNotas sobre a sociologia da infância

lhador, adulto ou criança, homem ou mulher, transformado em parte do maquinário. Marx nomeia esse fenômeno “reificação”. O conceito de reificação é importante, pois vai além da simples análise de que o sujeito coisificado possa apenas ser instrumentalizado pelo proprietário dos meios de produção; pressupõe, antes, que esse proprietário não perceba mais no trabalhador as características que o tornam propriamente exemplar do gênero humano – isto é, tratar alguém como uma coisa significa justamente tomá-lo como “algo”, despido de quaisquer características ou habilidades humanas (Honneth, 2008). Considerações finais

Evidentemente, o tratamento teórico atribuído aos conceitos de Marx e de Durkheim neste texto não esgota a problemática da infância, suscitando novos estudos complementares que possam dar conta da complexidade das condições de infância das crianças brasileiras. A ideia foi apresentar apenas alguns dos conceitos referentes às infâncias que ainda são pouco estudados pela crítica brasileira. Tal opção parte do entendimento de que qualquer debate cujo horizonte seja a superação da visão adultocêntrica sobre a criança não pode deixar de lado as determinações decorrentes do pensamento estrutural funcionalista, nem sequer ignorar a contribuição de Marx para essa questão. Não pode ainda ignorar o lugar dessa contribuição nas possíveis orientações políticas que poderão ser incorporadas à luta social pela emancipação da classe trabalhadora e de seus filhos. Daí a necessidade de se colocar em discussão os conceitos tratados neste estudo, pois através da exploração de seu conteúdo, podemos pensar tanto nos obstáculos práticos quanto intelectuais para a compreensão das crianças e de suas condições de infância. Esse texto não trata, pelo menos de início, de uma proposição ou de uma correção aos preceitos dessa ou daquela teoria sociológica sobre a infância, mas de uma reconsideração da teoria sociológica em seu sentido mais rigoroso, o que implica explorá-la naquilo que tem efetivamente produzido. [ 30 31 ]

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Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar: um desafio para os profissionais da educação  Dijaci David de Oliveira

Este texto discute a perspectiva de implementação de práticas educacionais de proteção aos direitos da criança e do adolescente, tendo como referência o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Como as possibilidades de reflexão sobre a proteção desses direitos são bem amplas, optou-se por realizar um segundo recorte. Assim, abordou-se o dispositivo que obriga a notificação ao Conselho Tutelar quanto às práticas de violência contra crianças e adolescentes. Parte-se da premissa de que o ECA representa um projeto de garantia dos direitos e das liberdades fundamentais de crianças e adolescentes, bem como se insere no ideal de uma sociedade justa e democrática. Esse pressuposto tem como fundamento a ratificação, por parte do Brasil, da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, realizada em 1990. Sabe-se, entretanto, que muitos dos documentos internacionais de proteção de direitos têm sido ostensivamente desrespeitados.

O ECA conclama pelo menos duas categorias profissionais a atuarem de forma mais ostensiva no processo de proteção dos direitos de crianças e adolescentes: os profissionais da educação e os da saúde. Este trabalho tem como objetivo analisar de que forma as proposições estabelecidas pelo ECA têm sido compreendidas por essas categorias, por meio de uma leitura do debate acadêmico em torno da obrigatoriedade da notificação dos casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes. Por falar em violência...

Segundo Henriques, Fialho e Chamusca (2007), é possível abordar a violência com base em pelo menos quatro perspectivas: direitos humanos, estrutural, cultural e criminal. Conforme os autores, essa tipologia não representa a totalidade das possibilidades, mas permite refletir sobre as formas mais recorrentes. Assim são definidas cada uma das perspectivas: Direitos humanos – a análise da violência, com foco nos direitos humanos, parte do entendimento de que todas as pessoas têm direitos e liberdades fundamentais que devem ser defendidos, como o direito à vida, à liberdade, à educação, à segurança pessoal, a não ser submetido à escravidão ou tortura, a condições dignas de vida, à liberdade de pensamento, religião, entre outros; Estrutural – a violência estrutural se refere às condições de precariedade social, econômica e jurídica a que estão submetidas populações em todo o mundo – especialmente as dos países emergentes ou do Terceiro Mundo – que favorecem e disseminam a desigualdade e a discriminação social; Cultural – nesse enfoque, a violência é investigada a partir das relações de dominação étnico-raciais, religiosas, geracionais, familiares, de gênero, regionais, entre outras; Criminal – no enfoque criminal a análise da violência recai sobre os comportamentos socialmente vinculados à delinqüência e à criminalidade. (Henriques; Fialho; Chamusca, 2007, p. 22). [ 34

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Essa classificação evidencia, de forma objetiva, diferentes formas de abordagens sobre a violência. Esse exercício é fundamental para que se possa circunscrever cada uma das perspectivas que envolvem o problema social da violência. Entretanto, este trabalho procurou, sempre que possível, contemplar mais de uma dessas abordagens. É certo que a reduzida efetividade dos princípios do ECA está diretamente vinculada à longa tradição histórica de dominação masculina e adultocêntrica. Sendo assim, não se pode falar de uma perspectiva de construção de direitos para crianças e adolescentes sem estabelecer relações diretas com outras formas de percepção, como a dos adultos. Portanto, compreender a visão que os profissionais de saúde e de educação possuem a respeito de crianças e adolescentes e de seus direitos é fundamental para visualizarmos obstáculos e possibilidades de implementação de políticas de proteção. Violência contra crianças e adolescentes

A despeito dos inúmeros documentos nacionais e internacionais, bem como dos numerosos debates travados, a violência contra crianças e adolescentes ainda é muito presente no cotidiano das famílias, tanto no Brasil quanto no mundo (Adorno, 1995; Faleiros, 1998; Suárez; Bandeira, 1999; Azevedo, 2000; Corbeil, 2000). Henriques, Fialho e Chamusca (2007) destacam seis formas de violência às quais crianças e adolescentes têm sido submetidos: violência física, psicológica, sexual e doméstica, negligência e trabalho infantil. Por violência física os autores destacam a disciplina abusiva, torturas, privações deliberadas, confinamento, trabalho forçado, homicídio, violência sexual e ameaça de agressão. Como violência psicológica, apontam a relação desigual de poder, em que os adultos são dotados de autoridade e as crianças e adolescentes são dominados. Violência sexual é o ato ou jogo íntimo entre uma criança ou um adolescente e um adulto, ao passo que a violência doméstica expõe o abuso da relação de poder por parte do adulto. A negliDireitos da criança e do adolescente no sistema escolar

gência caracteriza-se pela omissão dos pais ou responsáveis perante as necessidades da criança ou do adolescente. O trabalho infantil é definido como uma exigência de esforço superior à capacidade física do corpo em fase de crescimento. Segundo Adorno (1995, p. 306), a família constitui um espaço perigoso para muitas crianças. Objetivando corrigir comportamentos ou condutas que consideram indesejadas, os pais ou responsáveis reprimem os filhos por meio de “agressões físicas, restrições à liberdade de locomoção, imposição de obrigações ou tarefas humilhantes ou rotinas rigorosas que comprometem o desenvolvimento físico e psíquico de crianças e adolescentes”. Ainda no que tange à violência doméstica contra crianças e adolescentes, Azevedo (2000, p. 6) declara: Todo ato ou omissão praticado por pais, parentes ou responsáveis, contra crianças e/ou adolescentes que – sendo capaz de causar à vítima dor ou dano de natureza física, sexual e/ou psicológica – implica, de um lado, numa transgressão do poder/dever de proteção do adulto e, de outro, numa coisificação da Infância, isto é, numa negação do direito que crianças e adolescentes têm de ser tratados como sujeitos e pessoas em condição peculiar de desenvolvimento.

A autora enfatiza ainda outra subcategoria que ela define como violência doméstica fatal dirigida a crianças e adolescentes. Incluem-se, aqui, casos de violência que resultam em óbitos: Atos e/ou omissões praticados por pais, parentes ou responsáveis em relação a crianças e/ou adolescentes que – sendo capazes de causar-lhes dano físico, sexual e/ou psicológico – podem ser considerados condicionantes (únicos ou não) de sua morte. (Azevedo, 2000, p. 6).

Se o espectro da violência é bastante amplo, os danos provocados pelos diversos tipos também compõem uma lista considerável. Picanço (2005) destaca inicialmente dois grandes campos, as sequelas “orgânicas” e as “psicológicas”. Conforme a autora, as orgânicas resultam em: [ 36

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Seqüelas provenientes de lesões abdominais, oculares; fraturas dos membros inferiores, superiores, e/ou do crânio, queimaduras, ferimentos diversos, enfim, ferimentos que poderão levar à invalidez temporária ou permanente, como as lesões neurológicas irreversíveis.



A morte para a vítima, conhecida como Violência Fatal, e muitas vezes bastante subestimada em função das dificuldades de se detectar as reais causas da morte. (Picanço, 2005, p. 6).

São, portanto, indicadas como orgânicas as sequelas visíveis, inscritas no corpo da criança e do adolescente. Podem ser percebidas com mais facilidade a partir de marcas, manchas e distúrbios corporais. Tal visibilidade não ocorre com as sequelas psicológicas. Estas abrangem um conjunto de traços que se manifestam no cotidiano da criança e do adolescente e interferem de forma singular em seu processo de socialização e de convivência. Dentre os traços mais comuns apresentados por Picanço (2005, p. 6), destacam-se: •

Sentimentos de raiva, medo do agressor.



Quadros de dificuldades escolares.



Desconfiança das outras pessoas.



Autoritarismo (a dor física e o abuso originados da disciplina são os progenitores do autoritarismo).



Baixa auto-estima.



Comportamento agressivo.



Dificuldades de relacionamento.



Infelicidade generalizada.

Enfim, retomando a perspectiva de Henriques, Fialho e Chamusca (2007), é a partir das práticas inscritas no cotidiano de crianças e adolescentes, sobretudo em seus corpos, que se buscam caminhos para enfrentar as manifestações de desrespeito aos direitos humanos. Isso é Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

feito pensando-se nas possibilidades de assegurar uma política de direito à vida, à liberdade e à segurança. Sob essa mesma perspectiva procuram-se mecanismos mais eficientes para compreender os nexos entre violência doméstica e violência estrutural. É importante, ainda, fazer referência aos aspectos culturais que sustentam a tradição adultocêntrica de dominação e desrespeito e, enfim, aprofundar as nuanças criminais que envolvem a violência doméstica. Notificação da violência: aspectos legais

O processo de notificação ainda enfrenta um considerável debate no tocante à sua efetivação. As dificuldades assinaladas por vários pesquisadores remetem à necessária compreensão sobre sua oportunidade, obrigatoriedade e estrutura, bem como sobre o acompanhamento adequado e a confiabilidade dos indícios para se realizar a denúncia. O dispositivo legal presente no ECA estabelece a obrigatoriedade de notificação para duas categorias profissionais: médicos e professores. O artigo 13 (Brasil, 2002) expressa a obrigatoriedade para os profissionais de saúde: Art. 13 – Os casos de suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais.

A lei indica claramente a situação (maus-tratos), em que condições (suspeita ou confirmação) e onde a denúncia deve ser feita (Conselho Tutelar). Como não explicita quem deve proceder à notificação, compreende-se que essa medida cabe a todos os profissionais. No caso dos docentes a obrigação é expressa no artigo 56 (Brasil, 2002): Art. 56 – Os dirigentes de estabelecimentos de ensino fundamental comunicarão ao Conselho Tutelar os casos de: [ 38

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I – maus-tratos envolvendo seus alunos; II – reiteração de faltas injustificadas e de evasão escolar, esgotados os recursos escolares; III – elevados níveis de repetência.

O dispositivo aplicado aos profissionais de educação ganha em abrangência quanto à situação (maus-tratos, reiteradas faltas injustificadas, evasão e elevados níveis de repetência). Entretanto, não está evidente em que condição se deve fazer a notificação. Assim, infere-se apenas que deva prevalecer o exposto no artigo 13 (suspeita ou confirmação). O artigo estabelece ainda onde se deve fazer a denúncia (Conselho Tutelar) e indica como responsável direto o dirigente escolar, o que exime a responsabilidade dos outros profissionais de educação (pelo menos os docentes, como indica o artigo 245) que estão diretamente em contato com os estudantes. O dirigente é, assim, um intermediador. Além da exigência de notificação para ambas as categorias profissionais, são previstas também medidas punitivas. Portanto, deixar de notificar corresponde a uma infração administrativa, como indica o artigo 245 (Brasil, 2002): Art. 245 – Deixar o médico, professor ou responsável por estabelecimento de atenção à saúde e de ensino fundamental, pré-escola ou creche, de comunicar à autoridade competente os casos de que tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmação de maus-tratos contra criança ou adolescente: Pena – multa de três a vinte salários de referência, aplicando-se o dobro em caso de reincidência.

É interessante notar o deslize dos legisladores quanto à abrangência etária da adolescência. Ao destacarem apenas o ensino fundamental (artigos 56 e 245), pré-escola e creche (artigo 245), ignoram o ensino médio e, eventualmente, o ensino superior. Portanto, a leitura integral do ECA revela uma ideia ampla e geral sobre a defesa de crianças e adolescentes, mas a obrigatoriedade de notificação não é tão abrangente, Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

livrando da punição quem atua no ensino médio e superior. Será que jovens desses níveis de ensino, ainda que contemplados pelo ECA, já são inteiramente capazes de agir em seu próprio nome? Notificação da violência: percepções da obrigatoriedade

O processo de notificação da violência contra crianças e adolescentes não tem sido bem recebido entre os estabelecimentos de saúde e as unidades escolares. Uma análise da literatura demonstra, contudo, que o processo de reflexão tem sido muito mais fértil, principalmente na área da saúde. Embora haja resistências em ambas as áreas de atuação, a saúde aparenta maior predisposição a enfrentar o desafio de assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Para proceder à análise das reflexões sobre o tema da notificação e sua problematização nos campos profissionais, optou-se aqui por construir um quadro teórico que abarque o estatuto de quatro questões específicas: a recepção da legalidade, a percepção das possibilidades da notificação, a crítica das condições físicas necessárias para efetuar a notificação e a crítica das condições sociais para realizar a notificação. Recepção da legalidade

Nesta seção analisa-se a atitude dos profissionais diante dos dispositivos propostos pelo ECA, examinando reações e interpretações com base nos discursos que evidenciam a aceitação legal ou tácita da lei. Essa perspectiva é evidente em Ferreira et al. (1999), que ressaltam a importância de se compreender a realização da notificação – mais especificamente em casos de abuso – como uma questão legal. Segundo Gonçalves e Ferreira (2002), o profissional de saúde é legalmente obrigado a notificar abusos, de acordo com os instrumentos jurídicos existentes. Posição semelhante é apontada por Algeri e Stobäus (2005), segundo os quais o profissional de saúde tem a obrigação de intervir nos casos de violência contra crianças e adolescentes. Todavia, indicam que este nem sempre sabe como proceder

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diante de um caso concreto. Essa percepção é compartilhada por Zottis, Algeri e Portella (2006, p. 151): “É importante que o enfermeiro saiba reconhecer uma vítima de maus-tratos nos atendimentos e conscientize-se que a omissão pode representar uma opção pela violência”. De forma mais incisiva, Pfeiffer e Salvagni (2005) consideram que todo pediatra precisa estar apto a decodificar sinais e sintomas e enfrentar a situação, além de ter conhecimento dos instrumentos legais. O reconhecimento do instrumento jurídico, para Ferreira e Schramm (2000), surge como uma prerrogativa do papel do Estado no cumprimento do dever de intervenção para assegurar a proteção de crianças e adolescentes. A despeito da obrigação legal e do reconhecimento por parte de vários profissionais, Gonçalves e Ferreira (2002) destacam que o ato de notificar tem sido alvo de questionamentos. Isso ocorre sobretudo porque a notificação deve ser feita não apenas nos casos confirmados, mas também nos suspeitos, o que requer muito mais cuidado por parte do médico. Essa concepção também está expressa no manual distribuído pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (São Paulo, 2004, p. 3), que aponta a “difícil tarefa desse tipo de atendimento, nas portas de prontos-socorros ou em unidades básicas”. Percebe-se uma relativa aceitação do processo de notificação, que não está, contudo, imune a questionamentos. A ênfase está na competência dos profissionais aptos para executar tais trabalhos. Neste campo há duas perspectivas para o reconhecimento da atuação dos profissionais, uma de base estritamente legal e outra moral. A primeira parte do reconhecimento de que o Estado possui a primazia na constituição de instrumentos de defesa dos direitos e garantias fundamentais. A segunda destaca o dever dos profissionais no enfrentamento da prática de violação dos direitos de um agrupamento vulnerável. Percepção das possibilidades da notificação

A questão que norteia esta parte é: o processo de notificação permite uma compreensão do processo de violação e de proteção Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

aos direitos de crianças e adolescentes? Apesar das dificuldades apontadas, verifica-se que, em seu conjunto, os procedimentos de notificação têm permitido aprofundar o estudo do fenômeno da violência contra crianças e adolescentes. Essa perspectiva está evidente em vários trabalhos, sobretudo no campo da saúde. Segundo Ferreira et al. (1999, p. 125), o acompanhamento dos casos tem contribuído para o posicionamento dos profissionais perante os eventos: Em primeiro lugar, tem permitido que todos os serviços se comprometam com o tema, e saibam para onde encaminhar os casos detectados. Em segundo lugar, tem proporcionado uma mudança na qualidade do conjunto dos serviços hospitalares prestados, pois vem reforçando, no contato entre os profissionais e a clientela, a necessidade de se tomar em consideração fatores do relacionamento familiar que podem contribuir para o desencadeamento de algumas manifestações clínicas de seus pacientes. Em terceiro lugar, tem ampliado em muito as possibilidades da prevenção terciária, já que capta a clientela [...].

Para Ferreira e Schramm (2000, p. 664), o processo de notificação permite uma análise dos direitos da criança que ainda não estão totalmente integrados ao cotidiano dos profissionais de saúde. Além disso, é através da notificação “que se cria o elo entre a área da saúde e o sistema legal, iniciando-se a formação da rede multiprofissional e interinstitucional da atuação”. Finalmente, o processo de notificação torna-se necessário para efetivar a proteção da criança, assegurando-lhe a preservação da integridade. Sendo assim, tal processo é moralmente justificável e sua “característica principal é o exercício de cidadania, baseado na autonomia com responsabilidade” (p. 665). Segundo Gonçalves e Ferreira (2002), o processo de notificação promove benefícios para os casos singulares e o controle epidemiológico da violência. Na mesma direção, o manual distribuído pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo declara que a notificação [ 42

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estimula a vigilância aos acidentes e à violência, aumenta a visibilidade do problema e proporciona a “construção de um banco de dados para futuras análises e devolução da informação para o desenvolvimento de ações” (São Paulo, 2004, p. 3). Apesar dos avanços sobre o tema e da formação de novas frentes de reflexão, Ferreira (2005) chama a atenção para o fato de que a maior parte dos casos sequer chega ao conhecimento dos órgãos de proteção. Essa percepção apenas reforça a necessidade de um maior esforço da área médica, sobretudo da pediatria, no acompanhamento dos casos. A participação desses profissionais seria mais uma forma de garantir a intervenção de outros órgãos no processo de proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Com base nos trabalhos analisados, constata-se um maior comprometimento dos profissionais no processo de proteção aos direitos de crianças e adolescentes. Esse compromisso nasce dos princípios de respeito aos direitos, exercício da cidadania e garantia de preservação da integridade. Além disso, vários estudos apontaram maior conhecimento dos procedimentos para lidar com a violência contra crianças e adolescentes, um contato mais efetivo entre os profissionais e sua clientela, uma visão mais abrangente sobre os procedimentos de prevenção, e, consequentemente, uma mudança na qualidade dos serviços prestados. Crítica das condições físicas necessárias para efetuar a notificação

Esta seção busca abordar as demandas físicas que são requeridas pelos profissionais. Tais demandas compreendem a falta de equipamentos, de espaço e de equipes – ou seja, condições concretas para pôr em prática as exigências da lei. Uma vez que o processo de notificação ainda está sendo pensado e aplicado, a falta de infraestrutura é mencionada por vários autores. Segundo Gonçalves e Ferreira (2002), dois requisitos são indispensáveis para que esse processo seja mais eficiente: preparação de manuais de orientação e melhoria da infraestrutura de serviços. Com relação às Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

condições técnicas para a realização do atendimento, Scherer e Scherer (2000), citando Marsland, apontam a necessidade de conhecimento e de perícia por parte de profissionais da saúde e da educação, bem como de autoridades legais. Além dessa equipe, uma administração eficiente também é necessária para evitar repercussões desastrosas de notificações. Essa mesma preocupação é expressa por Habigzang et al. (2006). Segundo eles, a violência sexual contra crianças e adolescentes é um problema de saúde pública, caracterizado por uma dinâmica complexa que envolve aspectos psicológicos, sociais e legais, exigindo a intervenção coordenada de diferentes instituições. Destacam ainda a necessidade de construir uma interligação entre agências de proteção, prevenção e acompanhamento referentes à violência contra crianças e adolescentes. A falta de comunicação entre as instituições tem sido uma rotina incômoda que dificulta a articulação de medidas de proteção. Ferreira (2005) defende que o atendimento de crianças vítimas de violência requer o intercâmbio de diversos setores, tais como ambulatório, emergência e enfermaria – incluindo também a participação da comunidade. Outra perspectiva apontada pela autora é que a família deve ser um fator preponderante no processo de enfrentamento da violência, responsável por oferecer tanto apoio quanto orientação para garantir a segurança da criança. Evidentemente isso não será possível se as unidades de saúde espalhadas pelo país não dispuserem de infraestrutura adequada para receber familiares, promover aconselhamentos e acompanhamentos, entre outros procedimentos necessários. Azambuja (2006) assinala o necessário investimento em capacitação junto às instituições de saúde e justiça, além da captação de novos recursos que permitam a constituição de equipes interdisciplinares. Ademais, destaca a necessidade de uma intervenção mais consistente já na formação inicial do profissional, ou seja, que o tema seja abordado como disciplina nas instituições de ensino superior. Contudo, a preocupação com a infraestrutura não se restringe às instituições de saúde, como observam Romaro e Capitão (2007, p. 9): [ 44

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A precária infra-estrutura observada nos CT [Conselhos Tutelares], como a falta de salas de atendimento adequadas, de fichas de registro padronizadas, de sistemas de informatização, de capacitação dos conselheiros parecem contribuir para uma coleta de dados falha, dificultando a compreensão e o encaminhamento adequado das questões, visto que em mais da metade dos casos não houve marcação de retorno, encaminhamento ou dados sobre a reincidência. Conclui-se pela necessidade de se programar uma ficha de notificação onde os dados significativos possam ser pesquisados, viabilizando uma análise adequada e intervenções primárias, secundárias e terciárias.

Essa mesma observação é compartilhada por Arpini et al. (2008, p. 98) em um artigo mais recente. Os autores destacam as questões estruturais, “relacionadas, sobretudo, à atuação dos Conselhos Tutelares que, em grande medida, revela-se insatisfatória, uma vez que esses órgãos contam com infra-estrutura precária”. Com base nesses trabalhos, percebe-se que há uma significativa demanda por medidas mais efetivas no enfrentamento da violência a crianças e adolescentes. Isso implica equipamentos, espaços e pessoal qualificado. Tal demanda requer a constituição de equipes multidisciplinares, pois algumas formas de violência, como no caso de abuso sexual, possuem um grau de complexidade que reclama a participação de vários profissionais (educadores, psicólogos, enfermeiros, pediatras, autoridades da lei etc.) para que o ocorrido seja devidamente esclarecido de forma cuidadosa e adequada. Do mesmo modo, estruturas específicas são importantes para um atendimento eficiente, como unidades de saúde, ambulatórios, unidades de emergência e enfermarias. Crítica das condições sociais para realizar a notificação

Esta seção salienta a necessidade de conhecimento por parte dos profissionais para que o processo de notificação seja efetuado com maior rigor. Para Ferreira et al. (1999), o tema possui uma complexidade tal que rejeita avaliações muito superficiais. Segundo Gonçalves Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

e Ferreira (2002), duas questões se destacam: a realização de outros estudos sobre as consequências do ato de notificar e o esclarecimento da noção legal de maus-tratos e da concepção de suspeita. O manual distribuído pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo (São Paulo, 2004) estipula que os profissionais de saúde sejam capazes de reconhecer os principais sinais de maus-tratos, bem como propõe uma ampla abordagem sobre os Conselhos Tutelares e outros possíveis encaminhamentos na resolução do problema, não só por parte do agredido como também do agressor. O manual destaca ainda a necessidade de se compartilhar as experiências exitosas como forma de ampliar o domínio do processo de notificação. Segundo Ferreira e Schramm (2000), uma das principais dificuldades está nas implicações éticas da interferência na dinâmica familiar. Ou seja, é preciso compreender o processo e como ele pode modificar as relações intrafamiliares. Todavia, as autoras destacam que não seria necessária nenhuma teoria especial de direitos morais para justificar a interferência. Para elas, o cuidado ético é fundamental para não expor a família a traumas desnecessários. Isso não significa fechar os olhos para o problema, mas saber como agir em cada caso. Zottis, Algeri e Portella (2006, p. 151) assinalam: “Muitos casos notificados ainda não recebem o adequado atendimento, em decorrência da falta de capacitação dos profissionais”. Essa concepção é compartilhada por Algeri e Stobäus (2005) ao indicarem que, para superar a dificuldade dos profissionais de saúde no processo de notificação, é fundamental que eles tenham uma formação inicial adequada nas instituições de ensino. Os autores não descartam ainda a formação continuada como forma de assegurar suporte teórico e prático para os profissionais. Observa-se uma crítica recorrente de vários autores no que diz respeito à falta de preparo dos profissionais para realizarem a notificação (Gonçalves; Ferreira, 2002; Algeri; Stobäus, 2005; Azambuja, 2005; Pfeiffer; Salvagni, 2005). Arpini et al. (2008, p. 98) apontam vários outros problemas comumente ressaltados no campo da saúde: [ 46

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[...] sigilo profissional – muitos profissionais se questionam se a notificação não seria uma quebra do sigilo profissional, embora tanto o Conselho Federal de Psicologia como o de Medicina permitem e orientam a quebra de sigilo nesses casos; transtornos legais – os profissionais têm receio quanto ao processo legal que está relacionado à notificação (realização de laudos, prestação de depoimentos, comparecimento a audiências); dificuldades específicas do próprio caso – a subnotificação de situações de violência, na maioria das vezes, está relacionada ao desgaste emocional do profissional, pois a família geralmente não deseja e, por isso, dificulta o processo de notificação.

Segundo Pfeiffer e Salvagni (2005), são necessárias abordagens primárias e secundárias, tais como o rastreamento de crianças com maior risco, visitas de rotina e orientações preventivas, além da prevenção terciária, ou seja, a identificação e a notificação dos casos. Como pode-se perceber, dentre as chamadas condições sociais existem inúmeras questões sendo abordadas. No entanto, elas abrangem apenas uma parcela das preocupações levantadas, sobretudo no campo da saúde. Elencar todas estas razões não significa opor-se ao processo de notificação, mas realizar uma reflexão crítica sobre as condições reais e as necessárias para lidar com tema tão importante. É preciso abordar o problema com base em sua complexidade (valores sociais, atores envolvidos, necessidade de equipe multiprofissional, entre outros). Dada essa complexidade, evidencia-se a premência de novos estudos para aprofundar questões específicas, como os aspectos éticos e o sigilo profissional. Educação e violência

Se a literatura no campo da saúde tem aprofundado o problema da notificação, o mesmo não ocorre no campo da educação. Uma das razões certamente está na maior possibilidade de evidências observada na área da saúde. Isso, contudo, não deve ser razão para desobrigar uma participação mais efetiva dos profissionais de educação. Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

Segundo Panúncio Pinto (2006), os casos denunciados aos Conselhos Tutelares são, em geral, muito precários. Muitos deles referem-se mais a conflitos gerados por alunos, tais como brigas na escola (Tigre, 2002), do que notificações que objetivam proteger a criança ou o adolescente de violações. Ainda que a escola seja um lugar privilegiado no sentido de permitir um amplo espaço para a prevenção da violência (Njaine; Minayo, 2003), ela expõe uma ambivalência entre admitir ou negar a violência existente em seu interior. A “posição-pai” normalmente contradiz os valores defendidos na “posição-professor” (Panúncio Pinto, 2006). A autora chama a atenção ainda para a dificuldade enfrentada pelos docentes no esforço de desfazer a barreira entre o público e o privado, bem como de refletir sobre o alcance da influência do Estado nas relações entre pais e filhos. Uma possibilidade aventada pela autora é a de que, ao longo do processo de contato entre escola e família, haja um esforço para orientar a substituição de práticas violentas por outras não violentas. Donoso e Ricas (2009) também concordam com a dificuldade no enfrentamento de elementos da cultura social, como, por exemplo, a aceitação das práticas violentas como forma educativa. Em um estudo realizado com dois grupos de pais em Belo Horizonte (MG) sobre suas concepções a respeito da educação e de castigos físicos, verificou-se uma forte presença de discursos da tradição, da religião e até mesmo da ciência popularizada. Segundo Donoso e Ricas (2009, p. 83), “o castigo físico ainda permanece no imaginário social como um recurso permitido e apropriado para a educação dos filhos”. Os autores, entretanto, argumentam que a cultura do castigo físico “encontra-se em transição, em que a tradição de permissão se enfraquece e a interdição se inicia lentamente”. Nesse sentido, uma maior inserção dos poderes públicos seria fundamental para reforçar a interdição do castigo físico, como forma de substituir as práticas violentas por outras não violentas. [ 48

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Para Njaine e Minayo (2003), a escola e a família representam espaços privilegiados no processo de enfrentamento da violência. Contudo, torna-se necessário um esforço de aproximação entre as duas instituições, por meio de uma relação de confiança e de respeito. Nesse processo, cabe à escola o papel de mediadora na reflexão sobre os conteúdos referentes à violência, em especial aqueles veiculados pelos meios de comunicação. A importância da proximidade entre os profissionais e a família também é apontada por Ferreira et al. (1999, p. 129): Consideramos que, idealmente, no momento da notificação a equipe já deve ter conseguido estabelecer um vínculo com a família que assegure o acompanhamento do caso, e possa, assim, também funcionar como suporte para as situações desencadeadas pela notificação. Salvo nos casos de abandono de acompanhamento, as notificações são feitas com o conhecimento da família, que é informada sobre o conteúdo do relatório enviado, do que constará o trabalho inicial do Conselho e das repercussões possíveis.

Os problemas apontados pelos profissionais de saúde certamente são bastante elucidativos para estimular uma maior participação dos profissionais de educação. Sendo assim, sua competência educativa deve estar predisposta, como indicaram outros autores, a construir e a ampliar uma cultura de direitos. Como salientaram Njaine e Minayo (2003), a escola é um espaço privilegiado. Entre as várias possibilidades que oferece está a construção do diálogo, a rotina de encontros, o espalhamento e o enraizamento geográfico. Uma criança certamente vai mais à escola que a uma unidade médica, e o que seus violadores menos desejam é que seja diagnosticada. Nesse caso, a escola constitui um importante reforço para enfrentar a violação dos direitos de crianças e adolescentes. Para que o processo de notificação torne-se uma prática consolidada, ainda há um longo caminho pela frente. Alguns autores têm sugerido que esta seria mais uma daquelas leis “que não pegam”. Tanto os profissionais de saúde quanto os de educação têm questionado Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

muito até que ponto a notificação deve ser uma de suas atribuições. Tal questionamento pode ser analisado sob uma infinidade de perspectivas teóricas e conceituais, mas ainda não se esgotou. De alguma forma, as dúvidas têm produzido relativo imobilismo no processo de notificação. Embora existam resistências por parte de profissionais de saúde e de educação, Weber et al. (2002) demonstraram que os vizinhos têm sido muito importantes para assegurar os direitos de crianças e adolescentes. Segundo os autores, no período de 1995 a 2000, os vizinhos foram responsáveis por 64,9% dos casos denunciados. É interessante refletir sobre o que leva os vizinhos a aceitarem o desafio da denúncia ante o receio dos profissionais de saúde e de educação. Conclusões

Constatou-se a ausência dos profissionais de educação no âmbito do processo de notificação e de reflexão sobre as implicações desta prática no cotidiano escolar. Os poucos trabalhos existentes dedicam-se apenas a abordar as dificuldades, pouco enfatizando os fundamentos do processo. A despeito das dificuldades, é necessário ter em mente duas grandes preocupações: assegurar os direitos de crianças e adolescentes e conter as práticas de violência. O reconhecimento dos direitos deve estar acima dos obstáculos. Algumas práticas de violência, como o abuso sexual, têm um impacto que podem persistir por toda a vida. Portanto, sua detecção precoce é crucial para minimizar as sequelas. Para assegurar o exercício do processo de notificação, os diversos autores analisados defendem a constituição de uma equipe multidisciplinar e institucional. Essa equipe seria fundamental para dar mais consistência aos resultados e para aprofundar as investigações. Os trabalhos apontam ainda que o processo de notificação permite maior vigilância da violência, assegurando a visibilidade do problema, a constituição de um banco de dados, assim como um controle epidemiológico. Entretanto, existem muitas queixas sobre a ausência de manuais informativos [ 50

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tanto para profissionais quanto para familiares, que gera falta de conhecimento e de compartilhamento dos conhecimentos técnicos produzidos. Por fim, os trabalhos ressaltam que o enfrentamento das violações dos direitos de crianças e adolescentes requer uma mudança de atitude por parte dos profissionais: estes devem reconhecer a necessidade de se assegurar os direitos e a dignidade desses indivíduos. Isso implica maior esclarecimento dos processos legais, compartilhamento de experiências, domínio do processo de notificação, maior envolvimento dos profissionais com as famílias das vítimas, assim como cursos de capacitação, formação inicial e, sobretudo, formação de novos profissionais para enfrentar o problema.

Direitos da criança e do adolescente no sistema escolar

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Violência contra a criança na família: um tabu que mata?1  Fernanda Bittencourt Ribeiro

Tabu – termo técnico, na Antropologia, e que tem origem numa palavra da Polinésia/Melanésia, que designa uma proibição culturalmente determinada [relativa a] uma atividade, um vegetal ou animal, uma pessoa ou lugar. Situando-se dentro do campo da relação entre o sagrado e o profano, uma ação, objeto ou espaço são considerados “tabu” se for “proibido” fazer, tocar, comer, entrar. Pode, no entanto, ser aplicado a outras dimensões do agir social, desde que o caráter de “proibição” seja afirmado claramente, tendo como razão de tal proibição o fato da violação do mesmo acarretar perigo, ou ser vergonhosa, sacrílega ou contrária aos costumes.2 [...] os tabus vigentes em qualquer sociedade em geral se relacionam a objetos e ações de importância para a ordem social e pertencem ao sistema geral de controle da sociedade.3

1 Este artigo é uma versão modificada do trabalho apresentado no GT Violência e Sociedade do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 28 a 31 de julho de 2009 no Rio de Janeiro. 2 Disponível em: . 3 Disponível em: .

Na noite de 5 de setembro de 2008, os irmãos Igor e João Vitor, de 12 e 13 anos, respectivamente, foram assassinados em casa pelo pai e pela madrasta. Eles foram asfixiados, esfaqueados, queimados e esquartejados, e seus corpos foram colocados em sacos de lixo depositados na frente da casa. Os lixeiros os encontraram. Na noite anterior, os dois perambulavam pelas ruas de Ribeirão Pires, na Grande São Paulo, e teriam pedido ajuda na base móvel da Guarda Civil Municipal. Diziam estar fugindo de casa porque estavam cansados de apanhar do pai e da madrasta. Foram conduzidos pelos policiais à delegacia e, em seguida, ao Conselho Tutelar, onde eram conhecidos desde 2005, quando uma tia registrou queixas contra o casal por negligência e maus-tratos. Na ocasião a madrasta fora condenada a prestar serviços comunitários, e os meninos, antes de retornarem à casa paterna, moraram durante certo tempo com a tia que havia feito a denúncia. Era sabido que os meninos tiveram passagens pela rua. A juíza que acompanhava o caso atribuiu o comportamento difícil das crianças aos hábitos adquiridos durante essa vivência. Em 2007 novas denúncias de maus-tratos foram registradas pela escola – marcas de agressões e de tortura foram identificadas em uma das crianças. De abril de 2007 a janeiro de 2008 os garotos viveram em um abrigo e retornaram à casa do pai após avaliações de assistentes sociais e psicólogas, que estimavam o apaziguamento das relações familiares, constatavam boa convivência durante o período de férias e suspeitavam de manipulações fantasiosas dos garotos em relação ao tratamento recebido em casa. O crime aconteceu sete meses após o retorno dos meninos. Ao confessar os assassinatos, o pai alegou que as crianças impediam a convivência pacífica do casal. Segundo ele, as brigas teriam começado em 2005 porque os meninos causavam muitos problemas na escola e pirraçavam a madrasta. Dois dias antes das mortes, o pai teria pedido a separação à sua esposa por considerar intolerável a convivência dos quatro na mesma casa. A madrasta cobrava maior rigidez do marido, que dava chineladas e cintadas nos filhos. Ela também alegou temer que os meninos provocassem uma reaproximação do marido com sua [ 56

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ex-mulher. A mãe dos garotos – que também tinha outros quatro filhos – os teria entregue ao pai por falta de condições materiais para criá-los e não os via há dois meses. Antes disso, teria ficado cinco anos sem encontrá-los. A conselheira tutelar que os atendeu e os reconduziu para casa foi recebida pela madrasta, que não estava alcoolizada e negou quaisquer maus-tratos. A decisão da conselheira pautou-se na ordem judicial da Vara da Infância que estava acompanhando o caso, a qual havia determinado a readequação dos meninos à família.4 O terrível desfecho da curta história de vida dos dois meninos traz vários elementos que considero relevantes para a discussão sobre os modos de intervenção social em relações familiares designadas violentas. Os garotos viviam com o pai biológico, estudavam em uma escola cujos profissionais foram capazes de identificar maus-tratos, passaram por instituições de proteção à infância, souberam a quem pedir ajuda quando novamente se sentiram ameaçados e, ainda assim, morreram brutalmente dentro de casa. Diante de um acontecimento como esse, uma análise comprometida com a proteção das crianças deve interrogar, além das responsabilidades individuais, as dimensões socioculturais e o feixe de relações – conjugal, de parentesco, entre instituições e agentes – que o contextualiza. A abordagem proposta por Héritier (1996) pode contribuir para essa perspectiva analítica. Segundo a autora, o tema da violência recobre um conjunto de situações extremamente diversas que se caracterizam pela “negação da humanidade do Outro”. Da mesma forma que a não violência, a violência exprime um estado determinado “das relações humanas de poder: homem x mulher, primogênito x caçula, pais x filhos, mestres x escravos, patrões x empregados etc.” (Héritier, 1996, p. 27).5

4 Esta sequência de fatos foi elaborada com base em quinze reportagens coletadas na internet entre 7 e 24 de setembro de 2008. 5 Todas as traduções de citações originalmente em francês são de minha autoria. Violência contra a criança na família

Este texto apoia-se em um conjunto de procedimentos exploratórios de pesquisa que tiveram nesta tragédia seu ponto de partida. Os procedimentos foram os seguintes: leitura de reportagens sobre violência familiar contra crianças veiculadas na internet de 2006 a 2008; monitoramento do boletim da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (Andi) de setembro de 2008 a fevereiro de 2009, uma publicação on-line que, de segunda a sexta, veicula notícias sobre crianças e adolescentes publicadas em mais de oitenta revistas e jornais brasileiros;6 entrevistas com quatro conselheiros tutelares, uma assistente social e uma psicóloga que atuam em hospitais, em um pronto-socorro em traumatologia e no hospital-sede do único centro de referência do Rio Grande do Sul para casos de violência sexual, todos situados em Porto Alegre. O objetivo desses diferentes instrumentos de pesquisa consistiu principalmente na reaproximação do debate social sobre violência contra crianças e dos modos de intervenção. Digo reaproximação porque, em 1992, quando o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) acabava de ser promulgado e os primeiros Conselhos Tutelares (CT) eram implantados em Porto Alegre, segui a pista levantada informalmente durante uma aula por uma colega, advogada feminista e militante de uma ONG voltada para o enfrentamento da violência contra a mulher (Ribeiro, 1996). Ela declarou: “O que a década de 80 significou em termos de direitos da mulher, a década de 90 significará em termos de direitos da criança”. A primeira entrevista que realizei foi no Hospital de Pronto Socorro de Porto Alegre (HPS) junto a uma equipe encarregada de acompanhar casos de suspeita de maus-tratos a crianças hospitalizadas. Ao longo da entrevista, o CT me foi apontado como o local mais apropriado para a realização de uma pesquisa sobre esse tema. Minha entrevistada afirmou que, a partir daquele ano, todos os casos de violência contra a criança passariam obrigatoriamente por essa nova instituição.

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Ao criar os CT e a figura do conselheiro tutelar, o ECA instituiu um novo espaço social de visibilidade para o problema da violência e constituiu agentes especialmente treinados para intervir. No cotidiano do CT no qual me instalei, em 1994, com o intuito de coletar dados para minha dissertação de mestrado, o debate acerca das categorias de classificação da demanda era intenso. Os dramas familiares dominavam a cena e, no dia a dia de atuação do primeiro grupo de conselheiros tutelares, ouviam-se sobretudo queixas que envolviam familiares de grupos populares, os quais recorriam à instituição por razões muito variadas. Os conselheiros tutelares, a maioria oriunda de movimentos comunitários e sedentos por uma militância que, em nome das crianças e dos adolescentes, trouxesse melhorias para as condições de vida locais, afirmavam-se frustrados com uma intervenção “caso a caso”. As dificuldades de classificação dos casos anunciavam paradoxos que persistem até hoje. No primeiro ano de funcionamento do CT, 22% da demanda foi classificada como “maus-tratos” – uma das conclusões de meu estudo (Ribeiro, 1996) era de que essa primeira classificação não mostrava a rede de relações circundantes à queixa, que se podia entrever através da leitura dos registros feitos pelos conselheiros. Outra observação relativa aos procedimentos adotados pelos conselheiros referia-se à falta de homogeneidade nos termos utilizados e no modo de enquadramento adotado nos oito CT da cidade. Era o começo de um processo extremamente rico e complexo de constituição de novos “agentes de proteção” que hoje multiplicam fóruns de discussão sobre suas práticas, tais como os encontros regionais e nacionais de conselheiros tutelares ou lugares de formação como a Escola de Conselhos. A partir de 1999, no âmbito de minha pesquisa de doutorado, realizei etnografia em duas instituições do sistema francês de proteção à infância (Ribeiro, 1999). Tomando a defesa dos direitos da criança como um referencial semântico genérico, que se traduz em políticas locais e modos de intervenção diversificados, esses trabalhos objetivaram contribuir para que os modos de intervenção Violência contra a criança na família

construídos no Brasil sejam permanentemente colocados em perspectiva com outros contextos de apropriação e de significação desse referencial (Fonseca; Cardarello, 1999). Esse procedimento pretende colocar-se no permanente diálogo crítico e solidário sobre o que se constrói com o intuito de proteger as crianças e de como estas ideias são colocadas em prática. Com esse objetivo, este texto retoma aspectos da construção social do problema da violência contra a criança na França – país onde a atenção a maus-tratos foi despertada – e apresenta os modos de intervenção propostos por uma associação parisiense mantida pelo Centre Français de Protection de L’Enfance (CFPE). Problematização social da violência contra a criança na família: o ponto de partida na França

O primeiro estudo científico referente a maus-tratos contra a criança, intitulado “Étude médico-légale sur les sévices et mauvais traitements exercés sur les enfants”, foi escrito por Tardieu, médico legista e ativo participante da criminologia francesa, em 1860. No entanto, o tema não alcançou larga repercussão e caiu em esquecimento até ser retomado por um grupo de médicos norte-americanos nos anos 1960. Começou a difundir-se a ideia de que, em determinadas circunstâncias, a criança deveria ser protegida até mesmo de sua família. O artigo de Kempe et al., “The battered child syndrome”, de 1961, marca o uso do modelo médico de análise do problema e enfatiza a patologia dos pais abusivos: “Tipificados como imaturos, sexualmente promíscuos, usuários de drogas e psicopatas, os pais eram tomados como responsáveis isolados pelas lesões e ferimentos identificados nas crianças” (Gonçalves, 2003, p. 112). A partir de então, a ocorrência da violência tem sido associada a fatores como estresse, ansiedade e depressão, a determinadas dinâmicas do relacionamento familiar e ao isolamento social. As alternativas de enfrentamento do problema variam entre suas ênfases punitivas, educativas ou psicoterápicas. [ 60

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A problematização social da violência contra a criança na família, seu dimensionamento com base em dados estatísticos, os esforços científicos para sua compreensão e as práticas de intervenção correspondem a uma história recente. No entanto, se os discursos e as ações de agentes de proteção que intentam defender os direitos da criança são relativamente novos, as práticas atualmente designadas como violadoras de direitos não o são. Como bem observa Gonçalves (2003, p. 98), é lugar-comum a afirmação de que “a violência contra a criança é fenômeno onipresente com o qual se convive desde tempos imemoriais”. Ao descreverem a infância de outras épocas, historiadores e antropólogos franceses (Gélis et al., 1978; Farge, 1985; Guillemard, 1986; Zonabend, 1990) afirmam que golpes, punições e prisões são algumas formas de tratamento que descrevem essa faixa etária, ao lado das brincadeiras, da liberdade, da ternura e da aprendizagem pelo olhar. A categoria “crianças maltratadas” apareceu pela primeira vez na legislação francesa em 1889, no texto de uma lei sobre a proteção de crianças maltratadas ou moralmente abandonadas. Segundo Burguière e Lebrun (1986, p. 140), até a metade do século XVI, “além do direito matrimonial propriamente dito, os Estados legislam pouco sobre a família”. Com exceção de dois textos de 1556 e 1566 que tratam, respectivamente, de infanticídio e do futuro das crianças abandonadas, “raras são, ao curso dos dois séculos seguintes, as medidas legislativas voltadas especificamente aos problemas da infância”. Ao longo do século XIX, a categoria “crianças maltratadas” começou a ser utilizada em um contexto em que o poder paterno é colocado socialmente em xeque e redefinições acerca do lugar da criança ocupam as instituições. São exemplos desse processo a proibição das punições corporais nas escolas em 1834 e a criação das primeiras sociedades de proteção da infância em Paris em 1865. Segundo Mons (1991, p. 340), a proibição das punições corporais diferenciava a disciplina escolar dos modos de educação familiar. Para o autor, a permanência dessa Violência contra a criança na família

proibição nos regulamentos escolares atuais corresponde à necessidade de dizer aos pais, assim como aos educadores, que é “possível educar sem brutalidades”. Donzelot (1977, p. 33) observa que as revistas das sociedades de proteção da infância no século XIX apresentavam a coluna “crimes e acidentes”, em que eram mencionados “todos os fatos indicando maus-tratos, todos os delitos de ‘não vigilância’ cometidos pelos pais”. O autor refere-se à criação das Sociedades para demonstrar o controle exercido sobre a família de classe popular pela política de proteção da infância. O objetivo desses grupos consistia em garantir “o exame médico das crianças colocadas sob os cuidados de mães de criação [nourrice] e aperfeiçoar o sistema de educação, os métodos de higiene e a vigilância dos filhos das classes pobres” (Donzelot, 1977, p. 33). Ao analisar os casos de violência e as atitudes da Justiça, das autoridades e da sociedade civil diante do problema da infância maltratada ao longo do século XIX, Yvorel (1997, p. 23) conclui que a variação dos julgamentos não revela uma coerência global nas decisões jurídicas, mas que neste momento histórico foi delimitada “a fronteira que separa o exercício de um direito da ocorrência de um delito”. Ou seja, passou-se a determinar em que circunstâncias um crime teria sido cometido em nome da autoridade parental. Segundo o autor, em casos relativamente semelhantes de uso da violência por parte dos pais, os magistrados do século XIX emitiam julgamentos muito divergentes, que iam desde a opinião de que os pais “não foram além da medida do direito de correção útil para a manutenção da autoridade” (Yvorel, 1997, p. 23), até medidas simbólicas de sanção (“Léon S. é condenado a dezesseis francos de multa”) ou sentenças de prisão do agressor que variavam de 48 horas a dois anos – tal variação, contudo, não era proporcional à gravidade das agressões. De acordo com a historiografia da época que marcou o início da problematização social da violência familiar, não se trata de julgar o ato em si como mais ou menos violento, mas sim de avaliar sua legitimidade. Surge, pois, a compreensão cultural de que a violência familiar pode ser justificada. [ 62

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As crianças maltratadas e moralmente abandonadas de 1889 tinham pais cuja “embriaguez costumeira, sua conduta notoriamente má e escandalosa, os maus-tratos, comprometiam tanto a segurança quanto a saúde e a moralidade das crianças” (Donzelot, 1986, p. 80). Um século mais tarde, quando os dispositivos de proteção e de prevenção da violência à infância foram reorganizados (lei de 10 de julho de 1989), as categorias de classificação do problema não são mais as mesmas. Distinguem-se agora dois tipos de “crianças em perigo”: a criança em risco e a criança maltratada. A criança em risco “conhece condições de existência passíveis de colocar em perigo sua saúde, sua segurança, sua moralidade, sua educação, ou seu cuidado, mas que, no entanto, não é maltratada” (ODAS, 1994, p. 53). A criança maltratada, por sua vez, é “vítima de violências físicas, crueldade mental, abuso sexual, negligência grave com sérias consequências para seu desenvolvimento físico e psicológico”. Se, em 1889, de acordo com a intenção política de controle das classes populares, o comportamento dos pais estava no centro da definição de “criança maltratada e moralmente abandonada”, as categorias atualmente em uso não o mencionam diretamente. A noção de risco potencial, na medida em que se define sem que maus-tratos tenham ocorrido de fato, pressupõe a identificação de contextos ou situações particularmente perigosos e, portanto, uma ampliação da problemática da infância. Em 1997, a proteção da infância maltratada foi decretada como causa nacional na França. No âmbito dessa campanha, a publicação do livro Enfances en danger, de Manciaux et al. (1997) – uma obra de referência sobre a organização do sistema francês de proteção à infância e sobre os conceitos que pretendem orientar a prática dos agentes de proteção –, ilustra o alargamento dessa noção durante os anos 1990. O livro é uma versão atualizada da obra L’enfant maltraité de Straus, publicada quatro anos antes. A mudança de título exprime uma concepção mais ampla da proteção à infância, na medida em que inclui situações de risco e aumenta o espectro de circunstâncias, situações e contextos de vida familiar passíveis de intervenção em nome da criança. Violência contra a criança na família

Para Goyaux (1998, p. 140), em face da infância em perigo, “a sociedade explicita os modelos de legitimidade que se encontram na origem de sua concepção de família”. Ao analisar esse processo na sociedade francesa, a autora identifica medidas contraditórias de enfrentamento do problema: algumas não dissociam a proteção da criança de uma intervenção sobre a família, ao passo que outras visam à preservar a criança “como um indivíduo contra sua família”.7 Assim, compreender como as situações de violência contra a criança são interpretadas e enfrentadas histórica e socialmente nos dá acesso a concepções, normas e valores em torno dos quais se constrói a definição de criança, de família e de suas relações (Ouellette, 1996). Com base nesse objetivo, cabe indagar: quais as alternativas propostas em face de uma família violenta ou que apresenta riscos para a criança? Como se discute e se responde socialmente a concepções educativas que, do ponto de vista dos pais, podem ser justificadas como exercício da autoridade? Qual o lugar reservado aos pais e à parentela nas soluções cogitadas pelos agentes de proteção à infância? A seguir apresentarei um modo de intervenção que age na prevenção aos maus-tratos e busca a difícil conciliação entre a proteção da criança, a defesa de seus direitos e a escuta atenta, bem como o suporte a pais e mães que demandam ajuda. A prática de uma instituição francesa contemporânea

Alésia 14 (atualmente Cap Alésia) é uma associação do sistema francês de proteção à infância que mantém, desde 1984, um serviço de atendimento por telefone anônimo e gratuito destinado a pais que

7 Fonseca e Cardarello (1999), em um diálogo com o ECA, alertam para o fato de que, ao longo da década de 1990, as famílias pobres brasileiras foram ameaçadas de perder seus filhos por não terem condições suficientes de assegurar todos os direitos que a legislação lhes garante. Entendo que o debate constante sobre a implementação de leis que, tal qual o ECA, são conquistas democráticas visando à justiça social pode contribuir para que estas não produzam efeitos inversos aos desejados. [ 64

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enfrentam dificuldades com os filhos. A equipe formada por psicólogas realiza também consultas terapêuticas e conta com um grupo de voluntárias que oferecem diferentes formas de apoio aos pais.8 A diretora da associação observa que a primeira circular ministerial sobre maus-tratos, publicada em 1983, tornou possível o funcionamento desse serviço graças às subvenções que visavam a promover, além dos “procedimentos técnicos ou repressivos clássicos, a instalação de lugares de encontro, escuta e fala destinados a pais em dificuldade” (Verdier, 1987, p. 30). Previam-se também consultas especializadas e redes de solidariedade com vistas a prevenir os maus-tratos intrafamiliares. Nessa mesma época, o lançamento do slogan “Falar é agir” teve como objetivo romper a “lei do silêncio”, identificada como um dos obstáculos à prevenção. Falar sobre o problema e colocá-lo na ordem do dia como algo que deve ser enfrentado rapidamente foi a tônica da campanha. O serviço de atendimento por telefone criado por Alésia 14 − na medida em que possibilita ao interlocutor permanecer anônimo9 e interromper a comunicação − estava sintonizado com esse propósito de promover a expressão de maus-tratos. Conforme a concepção que orienta a atuação da equipe, a consciência de que algo não está bem e a solicitação de ajuda – mesmo quando expressa através de afirmações que acusam a criança de ser difícil – são condições fundamentais para que a violência seja banida da relação entre pais e filhos. O trabalho de Alésia 14 envolve três situações, assim resumidas: 1 – Os casos em que existe um risco potencial de maus-tratos. Em particular as mães isoladas com um filho, sem apoio de amigos ou familiares. [...] 2 – As famílias que atravessam períodos críticos: luto, doença,

8 Para a fundamentação teórica da intervenção proposta por este serviço, cf. Rouyer, 1984; Mignot, 1991; Oxley et al., 1996. 9 Durante mais de vinte anos de funcionamento do serviço, o recurso do anonimato foi raramente utilizado pelos pais que solicitaram ajuda. Violência contra a criança na família

encarceramento de um dos cônjuges, desemprego, situações em que a criança pode se tornar um fardo muito pesado porque a disponibilidade dos pais é menor. [...] 3 – Os maus-tratos já estão instalados, a família já é conhecida da rede de atendimento e, eventualmente, nega os abusos. (Armaing; Bouju, 1990, p. 3).

Os modos de intervenção propostos pela equipe de Alésia 14 militam a favor da restauração e da manutenção dos laços familiares.10 A inserção provisória da criança em instituições ou famílias de acolhimento é entendida como uma alternativa ocasionalmente necessária, mas que deve ser evitada. Segundo Rouyer (1985, p. 17), o tratamento da família “é garantia de salvaguarda da criança [...] sabendo que é impossível proteger a criança e mobilizar a família, o interesse da criança deve ter primazia”. Como uma associação que preconiza a prevenção dos maus-tratos, a Alésia 14 propõe o acolhimento e a escuta da criança e de seus familiares. Isso vale também para as situações de separação – quando as crianças estão abrigadas, vivem com uma família de acolhimento, com um dos pais ou com algum parente etc. Trata-se de um modo de intervenção atento aos vínculos familiares, à rede de relações na qual a criança está inserida e da qual faz parte. Notas finais

Com base no que pude coletar através dos procedimentos de pesquisa apresentados no início do texto, concluirei apontando algumas linhas futuras para a reflexão.

10 Ao longo da pesquisa, constatei uma falta de consenso sobre este princípio entre os agentes de proteção à infância. Conforme a equipe do Centro Buttes-Chaumont de Paris, especializada em terapia familiar, a necessidade de manutenção dos laços familiares é um mito incompatível com a proteção das crianças maltratadas e vítimas de abuso sexual. [ 66

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Dos modos de intervenção social

A leitura dos boletins da Andi permite avançar a hipótese de que, atualmente no Brasil, são múltiplas as ações que buscam promover denúncias e criar canais de visibilidade para este problema social. Um exemplo disso é o Disque 100, número do Governo Federal que recebe denúncias de maus-tratos e violência contra crianças e adolescentes. Também proliferam números de telefone locais destinados ao recebimento de denúncias que aumentam cada vez mais. No entanto, cabe investigar a afirmação dos conselheiros tutelares entrevistados de que, em cada dez denúncias que recebem no Disque 100, apenas três têm alguma procedência. As demais denúncias recebidas envolvem principalmente conflitos entre adultos. Exponho aqui esse dado não para desqualificar a criação de serviços desta natureza, mas para reforçar a ideia de que a designação “violência contra a criança” participa da trama das relações de parentesco, conjugalidade e vizinhança. Em 2 de setembro de 2008, uma matéria no boletim da Andi revelou que o Disque Direitos da Criança e do Adolescente de Fortaleza registrou um aumento de 20,5% de denúncias entre janeiro e julho de 2008. Para a coordenadora do serviço, “os números não revelam aumento da violência contra a criança e o adolescente, mas uma maior conscientização da população quanto ao problema.” Ela relata ainda que “pais também ligam pedindo ajuda, alegam não ter mais controle sobre os filhos. O argumento é que ficam impotentes diante do ECA que, segundo eles, nada permite.” Os diversos usos sociais desses números telefônicos e o progressivo aumento das denúncias contrastam com a escassez de recursos e de alternativas de resposta enfrentada pelos conselheiros tutelares. Também cabe destacar, de acordo com as entrevistas, uma crescente visibilidade dos casos de abuso sexual e a persistente nebulosa em torno dos maus-tratos. A definição destes nos discursos dos agentes vem frequentemente acompanhada por imprecisões do tipo “quando Violência contra a criança na família

se fala de maus-tratos, o abandono é mau-trato, a negligência é mau-trato” (conselheiro tutelar entrevistado). Sem uma discussão adequada sobre o tema, a noção de maus-tratos inclui um espectro muito amplo de situações e, em consequência, pode ter seu potencial protetor diminuído. A mesma hipótese deve ser formulada sobre a utilização maciça da categoria “negligência” para casos relativos à pobreza. As entrevistas também apontam as dificuldades de enfrentamento do problema no que se refere às articulações entre os diferentes agentes e aos investimentos públicos e privados no atendimento de famílias e crianças. Tanto os conselheiros como a psicóloga e a assistente social entrevistada chamam a atenção para esse limite de suas intervenções. Cabe destacar que as reportagens publicadas sobre o homicídio dos garotos relatado no início deste texto colocam no centro das interrogações a atuação da conselheira tutelar que os reconduziu para casa. Uma pergunta recorrente busca saber se ela agiu corretamente. A partir daí as posições se dividem. Por um lado afirma-se que sim, afinal ela cumpriu uma ordem judicial e não havia indícios que apontassem tamanha monstruosidade – decorre desse argumento a constatação de que o fato foi uma fatalidade. Por outro lado, o caso dá margem para a atualização de antigas críticas em relação à composição e às condições de funcionamento dos CT. De modo surpreendente, o questionamento sobre os fatores socioculturais que tornariam possível uma tragédia como essa – tais como padrões de convivência geracional, significados da filiação etc. – não é cogitado em nenhuma linha do que foi escrito sobre o caso. Com base em outras histórias terríveis como essa, podemos facilmente demonstrar a recorrência do envolvimento das crianças em relações conjugais conflituosas. Outro aspecto que remete a padrões culturais de convivência aborda o uso constante da violência física continuada como recurso pedagógico. Encontramos algumas campanhas de conscientização que visam a dissociar educação de violência. Em 2003, fez grande sucesso uma campanha institucional da RBS TV que colocava em cena perso[ 68

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nagens do imaginário infantil condenando a violência; outro exemplo é a campanha “Bater em criança é covardia. Lei seca contra a palmada”.11 A despeito dessas iniciativas, parece prevalecer a falta de debate social acerca do tratamento das crianças.12 Da produção acadêmica

No início dos anos 90, ao fazer um levantamento bibliográfico sobre violência contra a criança na família, encontrei textos oriundos da área médica e do serviço social. A bibliografia mais atualizada é produzida principalmente por profissionais da saúde coletiva e da psicologia. Nesse campo de estudos, o trabalho de Gonçalves (2003) nos oferece uma abordagem renovada do tema. Cruzando análises da antropologia, da sociologia e da filosofia, a autora parte de sua experiência como psicóloga do Núcleo de Atenção à Criança Vítima de Violência do Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira da UFRJ para analisar a dissonância observada entre os discursos dos pais acusados de maus-tratos e dos profissionais. Segundo a interpretação da autora, essa discrepância indica divergências sobre a concepção de violência e sobre sua condenação. Ao debruçar-se sobre a extensa literatura acerca da violência contra a criança, constata com surpresa que, apesar “dos inúmeros artigos e livros dedicados à questão, todos – quase sem exceção – dão como suposta uma certa concepção de violência, sem colocá-la em discussão”

11 Disponível em: . 12 Segundo uma reportagem da revista Istoé de 30 de agosto de 2009, dar palmadas em nome da disciplina divide opiniões no Brasil. A matéria faz referência a leis contra o tapa nas nádegas, adotadas em 24 países, e ao referendo realizado na Nova Zelândia, em que quase 90% dos votantes (54% dos eleitores) defenderam as palmadas dadas pelos pais em seus filhos, dois anos após a proibição legal desse tipo de medida disciplinar. Desde então, além do tapa nas nádegas, outras formas de agressão “brandas” contra crianças e adolescentes, tais como beliscões e puxões de orelha, passaram a render ao agressor (em quase 90% dos casos, pais ou mães) o pagamento de multas, o encaminhamento a programas de reabilitação e até mesmo o encarceramento. Violência contra a criança na família

(Gonçalves, 2003, p. 37). De acordo com Gonçalves, a ação restrita ao espaço privado – problema de ordem individual, familiar, psicológica ou mesmo de classe social – ignora o peso dos determinantes socioculturais apontados pela bibliografia. Na medida em que as definições vigentes destacam a responsabilidade parental, os acúmulos teóricos em termos da multideterminação e da complexidade do fenômeno parecem minorados, bem como o isolamento do espaço doméstico em relação ao seu contexto social e comunitário, ainda que se reconheça a inscrição da violência contra a criança na cultura e na sociedade. Cabe registrar que, nas ciências sociais, os estudos que tematizam a violência nas relações familiares expõem a predominância de um acúmulo teórico e metodológico na abordagem e na interpretação da violência doméstica contra a mulher, analisada em termos de desigualdade de gênero. Observar dinâmicas culturais que circunscrevem as múltiplas experiências de infância, os processos de socialização e as relações geracionais, reconstruir a rede de relações na qual a criança está inserida e da qual participa, bem como atentar para os contextos e circunstâncias de ocorrência do que será designado como ato violento podem contribuir para uma intervenção que, ao individualizar a criança como sujeito de direito, não a represente como um ser isolado e abstraído das origens que lhe conferem uma identidade social.

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Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente: tratamento redistributivo de responsabilidades sociais e institucionais1 Ana Liési Thurler

Se eu tivesse que citar uma única característica própria do patriarcado, indicaria a compartimentalização, a capacidade de estabelecer desconexões: o intelecto separado das emoções, o pensamento separado da ação [...]. Se eu tivesse que citar uma só qualidade do feminismo radical, indicaria seu sentido de instituir conexões: uma aptidão perigosa para toda a ordem estabelecida. Robin Morgan

Este texto estabelece conexões onde tudo está aparentemente separado. Assim, será privilegiada a análise de uma rede de cumplicidades sociais e institucionais, nutrida e movida por um sexismo ordinário e, ao mesmo tempo, expresso de modo multiforme no caso da frágil proteção e promoção dos direitos da menina e da ado-

1 Este texto é uma versão modificada do trabalho “Criminalidade sexista e cumplicidade social”, apresentado no GT Violência e Sociedade do XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 28 a 31 de julho de 2009 no Rio de Janeiro. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

lescente; está em foco o direito humano a uma vida livre de violência. Perversidades do sexismo normalizado manifestam-se contra meninas e jovens mulheres, atingindo-as já na infância e na adolescência. A rede de cumplicidades liga-se especialmente à violência masculina perpetrada contra mulheres e lhe oferece condições de sustentação e de perpetuação. Proponho um tratamento redistributivo de responsabilidades por violências sexistas, responsabilidades essas sociais e institucionais que se efetivam por meio de práticas e de não práticas, como silêncios e omissões. A interpretação que apresento é a de que as responsabilidades devem ser compartilhadas por toda a sociedade e suas instituições que convivem e consentem com as criminalidades sexistas, sem, contudo, retirar ou atenuar responsabilidades dos autores dessas violências. Busco conectar algumas estratégias de propagação da misoginia e do sexismo com territórios que compõem uma rede de cumplicidades em que se fundamenta a preservação e a reprodução de violências contra as mulheres, em todas as fases de suas vidas. Criminalidades sexistas

Após trinta anos de lutas feministas, silêncios foram rompidos e denúncias de criminalidades sexistas têm aumentado, assim como pesquisas que documentam e interpretam a violência contra as mulheres (Segato, 2003; Saffioti, 2004; Almeida, 2007). Leis também têm evoluído, mas as conquistas para banir a violência têm se revelado frágeis e contraditórias (Bandeira, 2007). Alguns segmentos resistem a considerar seriamente as denúncias das vítimas, adotando atitudes indulgentes para com o agressor. Novas leis deflagram formas de resistências recriadas, incluindo até mesmo tentativas de inconstitucionalização. No Brasil, a lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha) foi aprovada em 7 de agosto de 2006 e sancionada pelo presidente da República em 22 de setembro do mesmo ano. Tem sofrido vários ataques, alguns deles divulgados amplamente na mídia (Thurler, 2008a). O presiden[ 74

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te, em 19 de dezembro de 2007, representado pelo Advogado-Geral da União, José Antônio Dias Toffoli, ajuizou, no Supremo Tribunal Federal, Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC 19) para garantir a integral aplicação da lei e confirmar sua constitucionalidade (principalmente dos artigos 1º, 33 e 41). A Presidência da República e a Advocacia-Geral da União anteciparam-se, assim, ao possível ajuizamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade. A ADC pedia também a concessão de liminar para suspender efeitos de quaisquer decisões que viessem a negar a vigência da lei ou a considerá-la inconstitucional. O relator, ministro Marco Aurélio, negou a liminar solicitada em 21 de dezembro de 2007. Certamente, a iniciativa da Presidência da República/AGU contribuiu para desencorajar ajuizamentos de Ações Diretas de Inconstitucionalidade, mas não impediu que tribunais de segunda instância, como o do Distrito Federal, arquivassem processos de violência contra a mulher à revelia do que dispõe a Lei Maria da Penha, além dos tribunais de Justiça citados na própria ADC 19: TJ-MS, TJ-RJ, TJ-MG e TJ-RS. Uma estratégia dos setores conservadores do Judiciário é deixar passar o tempo e, com isso, criar uma situação em que diversos tribunais de segunda instância recusem o cumprimento da lei. É uma estratégia de resistência inovada – e perversa – que permite outra via de inconstitucionalização. Nesse processo, instâncias importantes do Judiciário integram-se à rede de cumplicidades com a criminalidade sexista exercida contra mulheres brasileiras, desde a infância e a adolescência. Em 30 de janeiro de 2009, o presidente da República requereu ao Supremo Tribunal Federal (STF) preferência no julgamento da ADC 19 e, em 5 de março de 2009, a Procuradoria-Geral da República emitiu parecer favorável. Até agora, entretanto, o STF não confirmou a constitucionalidade da Lei Maria da Penha, permitindo que outros tribunais de segunda instância prossigam construindo uma inconstitucionalidade de fato, na vida social. Em 2008, a sociedade civil mobilizouProteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

-se em torno da confirmação da constitucionalidade da Lei Maria da Penha por meio da aprovação da ADC 19. Para um andamento mais ágil do processo, diversas instituições e organizações requereram participação2 na condição de amicus curiae.3 A violência contra meninas e mulheres tem sido declarada por governos e organizações internacionais como uma modalidade de violação dos direitos humanos e um obstáculo ao desenvolvimento. Novas leis buscam erradicar a violência e proteger vítimas, mas, por vezes, voltam-se contra estas. Novas formas de violência surgem, tais como violência em casais de adolescentes, assédio sexual de jovens por profissionais de saúde e por religiosos, bem como pornografia organizada em redes de pedofilia (Romito, 2006). Nos EUA, estudos indicam que, em 80% dos casos, as mulheres foram mortas após anos de violência, geralmente após a separação ou o divórcio (Campbell et al., 2003 apud Romito, 2006). Enfim, a criminalidade sexista é uma realidade que tem conquistado visibilidade, graças à atuação do movimento feminista e aos estudos das relações sociais de gênero. Para documentar a recorrência desses crimes, apresento casos recentes ocorridos em Recife (PE), Luziânia (GO) e Indaiatuba (SP), que indicam a persistência desse tipo de agressão, em especial na infância e na adolescência das vítimas.

2 O Instituto Brasileiro de Direito das Famílias (IBDFAM), em 29 de maio de 2008, reiterando essa demanda em 28 de outubro de 2008, 10 de fevereiro de 2009 e 5 de março de 2009; a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 11 de novembro, reiterando esse pedido em 5 de março de 2009 e as organizações feministas Themis, Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, Instituto para a Promoção da Equidade (IPE), Instituto Antígona e Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos Humanos das Mulheres (CLADEM), em 25 de novembro de 2009. 3 Desde o início do século XX, o instituto jurídico e processual amicus curiae (“amigo da corte”), adotado pela Suprema Corte norte-americana, permite a entidades, organizações e instituições integrarem a demanda e participarem da discussão de teses jurídicas, colaborando com o Poder Judiciário. [ 76

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Será sepultada às 11h desta terça-feira (14/7), no Cemitério de Santo Amaro, a menina Talita Emanuele Ferreira Lins, de 12 anos. Ela cursava a 6ª série em uma escola estadual, namorava um adolescente há oito meses e vivia com a avó materna no bairro do Fundão, Zona Norte do Recife. Tinha acabado de completar 12 anos, há apenas 9 dias. No último domingo (12/7), às 19h30, voltava de uma sorveteria para casa. No caminho, morreu atingida por sete tiros em plena Avenida Beberibe. [...] A morte de Talita Emanuele Ferreira Lins é emblemática. Marcou em Pernambuco os 19 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), lembrado ontem em todo o país. (Polícia..., 2009a). A polícia encontrou, na madrugada de terça-feira (19/8), o corpo de uma menina com idade entre 12 e 15 anos. De acordo com o exame cadavérico do Instituto Médico Legal (IML), a vítima sofreu várias agressões antes de morrer. Segundo o documento, ela foi agredida sexualmente, levou um tiro nas costas, teve mãos e pés amarrados, um pneu colocado em volta do pescoço e, posteriormente, carbonizada. O corpo foi encontrado pela Polícia Militar de Goiás, em Luziânia, por volta das 0h50. A jovem ainda não foi identificada. (Polícia..., 2009b). Uma garota de 15 anos, de Indaiatuba, a 98 km de São Paulo, se livrou de ser assassinada pelo ex-namorado ao se fingir de morta na noite de sábado [29/8/2009]. Ela foi jogada no Rio Capivari, em Monte Mor, a 117 km da capital paulista. O ex-namorado, um rapaz de 18 anos, foi preso junto com seu tio, de 33 anos, por suspeita de tentar matar a menina. (Garota..., 2009).

A proposta apresentada neste texto consiste em um tratamento redistributivo de responsabilidades, disseminadas em uma rede de cumplicidades que sustenta e viabiliza a criminalidade sexista que atinge meninas e jovens mulheres. Uma rede de cumplicidades sociais e institucionais Estratégias de preservação e propagação de um sexismo ordinário

Transversalizada pela misoginia e pelo sexismo ordinário, a sociedade constitui e mantém uma rede de cumplicidades que busca leProteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

gitimar e minimizar a gravidade da violência masculina, até mesmo negando-a por meio de um repertório social de mecanismos de ocultamento. Romito (2006, p. 79) conceitua esse repertório social composto por diversas táticas e estratégias: [...] operações mentais, formas de ver, de conceitualizar e nomear a realidade que se materializam sob a forma de comportamentos, tendem a colar no senso comum, tornam-se ideologia coincidindo com o poder dominante, chegando a “institucionalizar-se” sob a forma de leis, teorias científicas ou pseudocientíficas, de modos de funcionamento dos serviços sociais e de procedimentos judiciais. Tais formas institucionalizadas orientam e às vezes condicionam nosso modo de perceber a realidade e mesmo nossas reações, nossos sentimentos e nossos comportamentos.4

Esses mecanismos nos remetem a um sistema e a muitos atores que, mesmo sem ter consciência clara, agem em prol da preservação de uma dada ordem sociossexual. Operadores de Direito que recomendam a uma mulher agredida conciliar, perdoar ou retirar a queixa contra o companheiro violento podem realmente acreditar ser essa a melhor maneira de ajudá-la. A complexidade das táticas e estratégias sociais de ocultamento ou abrandamento da violência pode ser interpretada como uma resposta à qualidade do movimento feminista – energia, inteligência, resistência, capacidade de combate sob tantas formas e em tantos níveis. Esta intervenção destaca, entre esses mecanismos, a eufemização, a desumanização da vítima, a ideologia da culpabilização da vítima e a diluição de responsabilidade, os processos de naturalização e de biologização, a psicologização, a patologização e a despolitização da violência contra as mulheres.

4 Todas as traduções de citações originalmente em língua estrangeira são de minha autoria. [ 78

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Eufemização

A linguagem é um poderoso instrumento e a eufemização é uma política de linguagem, uma técnica sistemática e recorrente por meio da qual é escamoteada a gravidade da violência e atenuada a responsabilidade do autor. Reflete Romito (2006, p. 83, grifo no original): Os resultados de tal método são espetaculares: os homens desaparecem de tudo o que trata da violência masculina contra as mulheres. Assim se falará em “conflitos domésticos” ou em “diferenças conjugais” em lugar de nomear as violências por maridos e companheiros contra suas mulheres.

De modo semelhante, Phillips e Henderson (1999, p. 200) argumentam: Uma vez que o sexo do agressor não é especificado e que só a identidade da vítima do sexo feminino é mencionada, a violência masculina contra as mulheres é apresentada como um problema das mulheres. Nos artigos considerados nesta pesquisa, os termos codificados como “violência doméstica”, “violência conjugal” ou “violência familiar”, empregados para dar conta da violência masculina contra as mulheres, tendem a levar a crer que as mulheres são tão violentas quanto os homens.

Na linguagem corrente, o vocábulo “homem” pretende ter caráter universal, ocultando o item lexical feminino; contudo, quando se trata de violência contra as mulheres, estratégias são utilizadas para manter os homens invisibilizados. Desumanização da vítima

Privar a vítima de sua humanidade, desvalorizá-la, considerá-la inferior, destituí-la de moral, enfim, negar-lhe o reconhecimento e a condição de semelhante permitem que a sociedade permaneça indiferente a seus sofrimentos. Segundo Romito (2006, p. 88),

Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

as agressões sexuais, as torturas, os maus-tratos e, não tenhamos medo de dizer, o massacre das mulheres seriam impossíveis se os assassinos e as testemunhas não fizessem parte de uma cultura em que o sexo feminino é depreciado e desumanizado.

Frequentemente as mulheres são designadas de forma grosseira ou reduzidas a partes de seu corpo – pernas, seios, traseiro –, em um processo que pretende passar por inocente e que, muitas vezes, nem é percebido. É o caso da expressão aparentemente inocente “mulher objeto”, que separa a mulher do mundo humano. Conservar a memória de mulheres assassinadas por homens constitui um investimento na re-humanização das vítimas. É o caso de Suzanne Laplante-Edward, mãe de uma das treze estudantes assassinadas na Escola Politécnica, em Montreal, que teve a seguinte iniciativa: “6 de dezembro de 1989: dar um rosto às vítimas”. Ela apresentou não só o rosto e a história de sua filha, Anne-Marie Edward, mas de cada uma das jovens assassinadas. Suzane propunha uma reação à mídia que, por um lado, se referia ao assassino pelo nome, transformando-o em um herói, e, por outro, apresentava as vítimas coletivamente, de forma despersonalizada. A ideologia da culpabilização da vítima e a diluição de responsabilidade

Ryan (1976, p. 20) situa a ideologia da culpabilização da vítima “em uma longa série de ideologias que racionalizaram crueldades e injustiças. São atos hostis – seríamos tentados a dizer que são mesmo atos de guerra – dirigidos contra desfavorecidos, excluídos, deserdados”. Essa ideologia constitui um poderoso mecanismo de deslocamento moral, atribuindo à própria vítima a responsabilidade por sua condição – de pobreza, doença e violência. Constitui também um mecanismo por meio do qual “almas nobres” convivem com um sistema injusto, sem sentir desconforto ou inquietação nem qualquer ameaça à sua “boa imagem”. Acompanhamos essa ideologia em ocasião do terremoto no Haiti no dia 12 de janeiro de 2010. Os haitianos e sua religiosidade, por meio da qual supostamente fazem pactos com o demônio, seriam [ 80

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os culpados pelo sinistro. Assim se manifestaram o cônsul do Haiti em São Paulo, George Samuel Antoine, e figuras da mídia, como o tele-evangelista Pat Robertson, que desfruta de grande audiência nos Estados Unidos, e o colunista do The New York Times David Brooks. Anteriormente, essa ideologia de culpabilização da vítima já havia sido usada pelo embaixador da Alemanha em Porto Príncipe. Eduardo Galeano (Os pecados..., 2010) relata o que o embaixador dizia a parlamentares conterrâneos em visita ao Haiti, em 2009, perplexos com a miséria extrema que encontraram: “Este é um país superpovoado. A mulher haitiana sempre quer e o homem haitiano sempre pode”. Mas um dos parlamentares, Winfried Wolf, consultou as estatísticas. Constatou que o Haiti é, ao lado de El Salvador, o país mais povoado das Américas, contando com quase a mesma quantidade de habitantes por quilômetro quadrado que a Alemanha. Entretanto, aqui não se incluem apenas negros em sociedades racistas com heranças escravocratas, mas mulheres – meninas e adolescentes – vítimas de violência masculina. Seriam, então, as mulheres espancadas que provocariam as agressões: elas desobedeceriam, cozinhariam mal, seriam desorganizadas, se recusariam a fazer sexo, seriam castradoras. Inescapavelmente são responsabilizadas. Ao persistir em relacionamentos violentos, são taxadas de masoquistas, pois “gostam de apanhar”. Mulheres assassinadas por seus companheiros seriam responsáveis por suas mortes. Se insistiram em sair do relacionamento, por que não se esforçaram em salvá-lo sendo melhores esposas? E as jovens violentadas, não seriam também responsáveis pelos estupros que sofreram ao vestir-se provocativamente? Naturalização e biologização

Segundo Fausto-Sterling (2000, p. 255), debates sobre a biologia do corpo “são sempre debates éticos e políticos sobre a igualdade social e política e sobre as possibilidades de mudança. Não é outra coisa que está em jogo”. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

A naturalização, a essencialização e a biologização servem para legitimar comportamentos de grupos dominantes e de sistemas de opressão. Ao mesmo tempo, tais estratégias servem igualmente para desqualificar e deslegitimar palavras, percepções e testemunhos dos oprimidos. Uma natureza irracional e histérica das mulheres explicaria seus medos e a violência masculina “inventada”. As mulheres estão mais próximas do mundo da natureza: são emotivas, impressionáveis e regidas por seu útero. Segue essa trilha o mecanismo da negação social da violência masculina (Lieber, 2005 apud Romito, 2006). Psicologização, patologização, despolitização

Interpretações psicologizantes tornam-se instrumentos para culpabilizar as mulheres vítimas de violência, analisando os problemas sob uma perspectiva estritamente individual e psicológica que ignora fatores políticos, econômicos e sociais. Com a estratégia da psicologização, reduz-se a possibilidade de ampliar a consciência da opressão e os riscos de rebelião. A psicologização é um mecanismo despolitizador5 que serve ao fortalecimento do poder dominante. Comportamentos “desviantes” são explicados por fatores pessoais, naturalizando-se por via psicológica e/ou biológica e reduzindo a possibilidade de alterar a ordem das coisas. A sociedade que interpreta a violência contra as mulheres e o abuso sexual de meninas como decorrentes de problemas psicológicos encaminhará os agressores para a terapia, não para uma sanção. A psicologização é um modo de interpretar e de interferir em conflitos sociais sem colocar em questão as relações de poder aí presentes. A psicologização pode tanto patologizar e desresponsabilizar o agressor quanto desqualificar e deslegitimar a vítima da violência. Em

5 Na Europa devastada durante a Primeira Guerra Mundial, psiquiatras diagnosticavam o comportamento de oficiais pacifistas e desertores, psicologizando e patologizando (Romito, 2006). [ 82

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qualquer um dos casos, as relações sociais de gênero e a ordem sociossexual permanecem intocadas. Territórios sociais e institucionais de sustentação de violências masculinas

Há casos emblemáticos em que é evidente a cumplicidade de uma rede para explicar a recorrente violência contra meninas e jovens mulheres ao longo de anos, sem que nada seja feito para deter iniquidades sexistas. Apresento a seguir duas situações: a primeira em Luziânia (GO), próxima à capital federal, onde meninas sofrem graves violências sexistas desde os dez anos de idade; a segunda no Guarujá (SP), onde um vizinho é o principal suspeito de estuprar gêmeas, durante dois anos, desde os nove anos de idade das garotas. Somente com a gravidez de uma delas, aos onze anos, algumas medidas foram adotadas. Não podemos permitir cair no esquecimento casos como, por exemplo, o ocorrido em Luziânia (GO), a 58 km da capital do país, denunciado e vindo a público, amplamente, em fevereiro último [de 2008] pela imprensa nacional, envolvendo uma menina submetida a crimes tipificados pelo Tribunal Penal Internacional como crimes contra a humanidade. A menina – hoje com 19 anos – relata que Raimundo Gomes Farias começou a estuprá-la aos 10 anos de idade, sob ameaças de matar sua família caso ela revelasse algo. A menina foi violentada, submetida à escravidão sexual, tratamentos cruéis e degradantes, prostituição e gravidez forçadas, mantida em cárcere privado por nove anos, no porão da casa de RGF, tendo uma primeira gravidez aos 13 anos. Nessa oportunidade, a família pobre denunciou o caso à polícia. RGF teria, então, incendiado o barraco da família, assassinado a mãe da menina e ameaçado matar suas irmãs. A filha de RGF, hoje com cinco anos, teria também sido vítima de abusos sexuais. Outros homens teriam ido ao local onde a menina era mantida encarcerada e prostituída, tendo tido uma segunda gravidez aos 16 anos. Esses crimes perpetrados por RGF também contra outra menina – hoje com 15 anos – agridem não só a nós, brasileiras e brasileiros, mas à humanidade inteira, tendo o agravante de aliar às condições de sexo, Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

as condições econômicas (as meninas viviam em situação de indigência) e de idade (elas estavam com 10 anos quando começaram a sofrer violações). (Thurler, 2008b). Um homem de 62 anos foi preso na terça-feira [15 set. 2009] por suspeita de abusar sexualmente de duas irmãs gêmeas, de 11 anos, no bairro Cachoeira, no Guarujá (litoral de São Paulo). Segundo a SSP (Secretaria de Segurança Pública), uma das garotas está grávida. Ainda de acordo com a Secretaria, a denúncia contra o suspeito foi feita pelo pai das meninas, no último dia 15. Ele afirmou à polícia que uma das crianças afirmou ter mantido relações sexuais com o suspeito – que é seu vizinho – nos últimos dois anos, assim como sua irmã. De acordo com a SSP, o suspeito oferecia dinheiro às crianças para atraí-las a sua casa. O suspeito foi preso temporariamente. As meninas passaram por exames no IML (Instituto Médico Legal) que comprovaram o abuso e a gravidez. (Homem..., 2009).

Ganharam repercussão internacional dois casos de abuso sexual perpetrados contra uma jovem mulher (desde os dezoito anos) e uma menina (desde os onze anos) pelos próprios pais – o primeiro ocorreu na Áustria durante 24 anos, e o segundo, na Austrália durante trinta anos. Josef Fritzl, o engenheiro que manteve a filha Elisabeth refém sexual por 24 anos, já tinha sido condenado por estupro, revelam arquivos de 1967. A informação não era conhecida pelas autoridades que permitiram a Fritzl criar 3 das 7 crianças que teve com a filha – o pai-avô as levara para a casa, simulando abandono por Elisabeth. A ministra da Justiça, Maria Berger, quer alterar a lei que retira da ficha criminal delitos sexuais após um prazo de 10 a 15 anos. (Áustria..., 2008). Bem no centro da capa do jornal australiano Herald Sun, em sua edição de ontem [17 set. 2009], a manchete “pai cruel” chamava os leitores para uma história que chocou o país e provocou um sentimento generalizado de repulsa. Na cidade de Morwell, no estado de Victoria, no sudoeste da Austrália, um homem foi indiciado pela polícia por ter estuprado quase diariamente a filha ao longo de 30 anos e ter tido quatro filhos com ela. Não foi revelada a identidade da vítima nem a [ 84

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do acusado, que deve ir a julgamento em novembro próximo. O homem, chamado pela imprensa de “Fritzl australiano”, teria começado a abusar sexualmente da menina na década de 1970, quando ela tinha 11 anos, e continuado até 2007. (Pai..., 2009, p. 23).

Essa última reportagem revela que 83 acusações formais por abuso sexual foram apresentadas contra o agressor. O próprio primeiro-ministro de Victoria, John Brumby, “prometeu uma investigação para determinar como um caso de tamanha amplitude pode ter passado despercebido pelas autoridades” (Pai..., 2009, p. 23). Dificilmente uma investigação que passe ao largo das relações sociais entre os sexos e da ordem sociossexual vigente dará conta da interseccionalidade de territórios sociais e institucionais que garantem sustentação a essas práticas violentas de homens contra meninas e jovens mulheres. Transmissões intergeracionais: educação sexista, racista e homofóbica

A legitimação social da violência masculina é produzida mediante uma persistente educação sexista, vinculada ao aprendizado da virilidade e do poder masculino. A ocorrência de transmissões intergeracionais da violência de gênero confirma-se nos inúmeros assassinatos de jovens mulheres por ex-companheiros e ex-namorados, enfatizando a continuidade da socialização sexista de meninos e jovens homens. A educação sexista, por meio do currículo oculto na instituição escolar, preserva papéis sexuais, com construções hierarquizadoras do feminino e do masculino. Nos comportamentos cotidianos e em interações e conflitos, categorizações sexistas, racistas e homofóbicas estão presentes de modo permanente e complexo nas relações entre adultos e crianças e entre crianças desde a primeira infância nas creches. A produção de gênero e das desigualdades entre os sexos não pode acontecer sem a participação conivente da educação. Rupturas só poderão ocorrer a partir de uma educação crítica à ordem sociossexual, que seja antissexista, antirracista e anti-homofóbica. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

Judiciário: espaço institucional androcêntrico

Posições institucionais no Judiciário ainda ligam-se à inevitabilidade da dominação masculina e do caráter supostamente imperativo das pulsões sexuais masculinas. Essa perspectiva abranda as responsabilidades dos homens e minimiza a autonomia das mulheres, que, sob coação ou não, deveriam atender a essas pulsões. Osborne (2001, p. 23) destaca a declaração do presidente da Audiência Provincial de Lérida à imprensa espanhola, em maio de 1990: Quando lhes propõem [às mulheres] uma relação sexual, normalmente não concordam logo. Sempre opõem uma negativa inicial. É o normal. Até mesmo em uma relação consentida ou tolerada posteriormente, inicialmente uma jovem não concorda. Ela resiste no início, porque não gosta, não lhe agrada, mas acaba consentindo. Ou, pelo menos, tolerando a relação.6

Pesquisas mostram que as possibilidades de um estuprador ser identificado e perturbado são ínfimas.7 Apenas uma parcela reduzida é processada judicialmente e reconhecida como culpada. Na Grã-Bretanha, casos de estupro denunciados à polícia passaram de 1.842 para 4.589 entre 1985 e 1993, mas as condenações caíram de 24% para 10% (Lees, 1997 apud Romito, 2006). Na França, registros de casos de estupro passaram de 2.823 para 5.068 entre 1986 e 1990-1991, mas as condenações caíram de 22% para 14,5% (Morbois et al., 1994 apud Romito, 2006). Na Grã-Bretanha, em 1993, 10% dos casos de estupro denunciados culminaram em condenações, ao passo que, na França, de

6 Há debates e iniciativas importantes – “Quando digo ‘não’ é ‘não’” – sobre essa questão, em que discursos masculinistas pretendem expor vítimas de estupro como cúmplices e responsáveis por terem sido violadas, atenuando a responsabilidade do estuprador. Tais debates e iniciativas merecem um estudo mais detido. 7 O estupro conjugal passou a ser considerado na França em 1980, na Holanda em 1991, no Reino Unido em 1994 e na Alemanha em 1997. [ 86

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1990 a 1991, esse porcentual foi de 14,5%. No Brasil, por sua vez, em universo estudado por Assunção (2008), as condenações entre 2000 e 2004 ficaram em 6%. A investigação sinaliza uma inserção e um comprometimento de segmentos do sistema criminal nessa rede de cumplicidades com a criminalidade sexista produzida contra mulheres. Ao investigar a (re)produção da violência institucional no processamento dos crimes de estupro entre 2000 e 2004 em Ceilândia (DF), Assunção (2008) oferece uma análise importante do sistema criminal no âmbito do aparelhamento institucional do Estado, que, em pleno século XXI, ainda vigora no país. A autora nos informa que, nesse período, foram registradas 217 ocorrências de crimes de estupro nas delegacias policiais de Ceilândia (havia, então, quatro delegacias), que resultaram somente em 23 processos judiciais perpetrados pelas três varas criminais então existentes no Fórum da cidade. Desses, treze receberam sentença condenatória (6% das ocorrências registradas),8 das quais oito foram proferidas por juízas. Tal estatística demonstra forte filtragem já na fase policial, ou seja, dentro do sistema, uma grande seleção precede a fase judiciária (Assunção, 2008). Esse estudo conclui que, entre as sentenças proferidas por juízas, sete tiveram pena superior a sete anos e um, a três anos. Nas sentenças proferidas por juízes, as penas alcançaram um patamar de seis anos. Assunção (2008, p. 13) conclui: É possível depreender que o sistema de justiça brasileiro vem reproduzindo e reafirmando desigualdades de gênero, (re)construindo processos de produção de sentido que reafirmam relações de poder, sustentadas no androcentrismo.

8 Dentre os demais processos, cinco foram arquivados por razões diversas, dois foram suspensos e três aguardavam julgamento até o encerramento da pesquisa. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

Acrescento que, mediante tais encaminhamentos, esse sistema continua inserido na rede de cumplicidades institucionais, que permite a perpetuação da criminalidade sexista contra as mulheres, até mesmo na infância e na adolescência. A mídia e leituras masculinistas da violência contra as mulheres

Os autores da violência são frequentemente apresentados pela mídia como parte de situações de exceção, dominados por emoções incontroláveis ou provenientes de “outras” culturas (no caso de imigrantes). Enfim, a imprensa até fala em violência, mas não em violência masculina.9 De modo semelhante, governos e organismos internacionais aludem a “violências exercidas contra mulheres e meninas” em documentos oficiais, mas não mencionam explicitamente “violência masculina” (Romito, 2006, p. 19). Até mesmo editorialistas apresentam diagnósticos masculinistas, segundo os quais homens inconformados com a iniciativa das parceiras em pôr fim a um relacionamento matariam por “amar demais”. A imprensa também não registra o que dizem as mulheres que “abandonaram” esses homens, nem o que dizem vizinhos e familiares: que elas vinham sendo maltratadas há anos. Contribuem para a composição da rede de cumplicidades a disseminação de mitos, tais como: as mulheres não se separariam, não denunciariam e estariam dispostas a suportar toda sorte de violência para manter um relacionamento. Pesquisas demonstram que, apesar dos riscos de violência, as mulheres efetivamente se separam (Thurler;

9 Recentemente, autoridades do Ministério Público Federal e da Polícia Federal envolvidas na investigação que resultou na Operação Laio declararam que os crimes de pedofilia são praticados por homens em 98% dos casos. Por meio dessa operação e com base na Lei 12.015 de 11 de agosto de 2009, a Polícia Federal, com treze mandados de busca e apreensão expedidos pela Justiça, prendeu, em 15 de setembro daquele ano, sete pessoas (homens?) integrantes de uma rede de pedofilia no estado de São Paulo e uma pessoa (diz a imprensa... de que sexo? Não se trata de interrogação desnecessária...) em Minas Gerais. [ 88

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Bandeira, 2009). O quadro das dissoluções das uniões legais é produzido, sobretudo, por decisões das mulheres e indica processo semelhante nas uniões não formalizadas.10 O silêncio tem sido rompido não só pelas mulheres, mas também pela mídia, que vem divulgando crimes contra elas. A pergunta é: com base em que interpretações? Os assassinatos de mulheres por seus ex-maridos e ex-companheiros são apresentados como frutos de uma sociedade violenta, não de um sistema patriarcal, bem como frequentemente amenizados com a explicação de que “ele perdeu a cabeça”, “ele amava demais”. Estupros ainda são espantosa e inaceitavelmente tratados com condescendência, mesmo por setores da mídia que ao mesmo tempo se apresentam como progressistas e resistem a assumir o sexismo como profundamente atentatório aos mais caros valores da democracia.11

10 Em 1984 – primeiro ano em que o IBGE produziu esses números –, os divórcios e as separações no Brasil somaram 95.383, representando 10,2% dos casamentos no ano (936.070). Em 2007, foram 231.329, representando 25,25% dos casamentos no ano (916.016) (IBGE, 1986, 2007). Em cada quatro casos de divórcio e separação, três são de iniciativa das mulheres. 11 Nesse sentido, cabe exemplificar o recente comportamento da revista Piauí ao abrir espaço para o texto “O sono de Polanski”, de Jenny Diski (2009, p. 24-25), sob a chamada “Questões jurídico-sexuais”. A escritora inglesa declara ter vivido a experiência do estupro aos catorze anos. A autora discute a grave questão do consentimento e de o estupro ser mesmo possível (“um amigo mais velho e experiente me garantiu, anos mais tarde, que era impossível estuprar uma mulher: se a penetração ocorria, era porque ela queria. Não lhe contei sobre o estupro, mas fiquei imaginando se, nesse caso, eu devia parar de pensar naquilo como um estupro, uma vez que tinha havido penetração. Hoje já não penso mais assim, embora continue acreditando que não foi a pior experiência da minha vida.”). E radicalizando no campo das suposições masculinistas, continua: “Sem dúvida, Samantha Geimer (juntamente com sua mãe), assim como eu, colocou-se numa situação na qual o estupro poderia ocorrer. Talvez ela tenha correspondido, e talvez até consentido em fazer sexo oral com Polanski. Então ele a penetrou e perguntou quando fora sua última menstruação. Quando viu que ela não sabia [...] por via das dúvidas ele a sodomizou.” E finaliza com uma interrogação brutal: “Não foi gentil de sua parte?”. (Thurler, 2010). Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

O masculinismo presente nessas decodificações investe fortemente na construção e na perpetuação de uma rede de cumplicidades com a criminalidade sexista. O masculinismo – expressão cunhada por Michèle Le Doeuff – é uma ideologia que representa os homens como vítimas dos excessos das mulheres, que teriam obtido direitos e liberdade em demasia e se tornado “incontroláveis”. Seria, então, necessário chamá-las à ordem (Palma, 2008). Martin Dufresne (1998) registra que, no Quebec, entre 1989 e 1992, mais de quatrocentas mulheres e uma centena de crianças foram assassinadas por homens – ex-companheiros e pais – após a separação dos casais. Emissoras de TV frequentemente apresenta-os como “sobreviventes de uma tragédia familiar”. No Brasil há ocorrências semelhantes. No Paraná, em novembro de 2008, quatro meninas foram assassinadas em um período de dez dias. Em 15 de novembro, Lavínia Rabech da Rosa, de nove anos, foi morta, provavelmente por asfixia, na região norte de Curitiba. Em um box que apresenta, de forma assexuada, as crianças assassinadas, o jornal Correio Braziliense rememora crimes sexistas contra meninas, não deixando claro tratar-se de sexismo exterminando meninas. Rachel Genofre, de 9 anos, foi encontrada morta por asfixia dentro de uma mala na rodoferroviária de Curitiba. [...] Dias depois, foi encontrado o corpo de Alessandra Subtil Betim, de 8 anos, em Castro, na região dos Campos Gerais, que sofreu traumatismo craniano [...]. A terceira vítima infantil foi Pâmela Diele dos Santos, assassinada em Querência do Norte, no noroeste do estado. Segundo a polícia, a menina foi morta por Manoel Tenório de Miranda, que já está preso e teria confessado o crime, dando como justificativa uma vingança contra a mãe da criança, que teria rejeitado pedido de namoro”. (Quatro..., 2008, p. 6, grifo nosso).

Situa-se nesse modelo de leitura masculinista a cobertura televisiva nacional, em tempo real, da violência que vitimou a adolescente Eloá Cristina Pimentel, de quinze anos, em Santo André (SP). A jovem

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mulher pagou com a vida sua tentativa de exercício de autonomia e de expressão do desejo de encerrar o relacionamento com Lindemberg Alves, 22 anos. Inconformado com a iniciativa de Eloá, o ex-namorado a sequestrou e, sob holofotes, a manteve refém por quatro dias. Finalmente, atingiu-a com um tiro na cabeça.12 Eloá não resistiu e faleceu em 19 de outubro de 2008. A superexposição da mídia heroicizou Lindemberg, um homem violento. Não suportando ter sua vontade contrariada, ele pressionou a jovem que ousara o exercício da liberdade por meio de sequestro, cárcere privado e ameaça com arma de fogo. Também nesse caso a mídia omitiu uma informação-chave: tratava-se, antes de tudo, de violência contra uma jovem mulher, ocorrendo em um contexto de desigualdade de relações de poder que era fortemente desfavorável a ela. Em contrapartida, destaco iniciativa importante do Ministério Público Federal, que acionou a Rede TV por colocar no ar uma entrevista ao vivo do sequestrador com Sônia Abrão. O terapeuta familiar Paulo Fernando Pereira de Souza, que trabalhou mais de dez anos como psicólogo judiciário, não cogitou que modalidades ainda hegemônicas de relações sociais entre os sexos possibilitassem tais ocorrências. Declarou ele: “Fatos assim não são explicáveis por especialistas, muito menos sem contato com o próprio assassino. Não há nada que explique o que ele fez” (Souza, 2008). Ao encerrar a entrevista ele expressa uma perplexidade que compartilho: “o que tem de surpreendente nessa história é a presença de um pai supostamente poderoso e armado [...] ter sido incapaz de proteger a filha.” Ou não se (pre)ocupou com a proteção dela, nem lhe ofereceu cuidados.

12 Lindemberg Alves responde pelos crimes de sequestro seguido de homicídio duplamente qualificado (motivo torpe e sem possibilidade de defesa da vítima), cárcere privado, tentativas de homicídio contra Nayara Rodrigues da Silva e o sargento da Polícia Militar Atos Antonio Valeriano. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

Sobre o assassinato da jovem Eloá, feministas interrogaram: “O que seu assassino quis mostrar a todas/os nós? Que, como homem, tinha o controle do corpo de Eloá e lhe era superior?”. Ao perceber Eloá como sujeito autônomo, Lindemberg sentiu-se traído no que atribuía a ela como mulher (a submissão a seu desejo) e no que atribuía a si próprio como homem (o poder sobre ela, base de sua virilidade). Assim, “o feminicídio é um crime de poder, é um crime político” (Mota; Fernandes, 2008).13 Segmentos importantes da mídia, entretanto, ainda difundem a tese de que esses homens matam porque amam demais, não porque são violentos. Pesquisas indicam, todavia, que eles assassinam suas mulheres e ex-mulheres não como um incidente pontual em seus relacionamentos, mas como resultado de uma escalada de violência e anos de impunidade; suas agressões cotidianas são compreendidas como direitos patriarcais. Ao apresentar esses indivíduos como “pobres vítimas”, a mídia contribui para que seja obscurecida sua verdadeira condição de agressores. Boas práticas de monitoramento do comportamento da mídia vêm sendo adotadas por programas como Observatório da Imprensa e VerTV, apresentados pela TV Brasil. A contribuição que oferecem está ainda aquém do que podem aportar e do que precisamos para substituir a rede de cumplicidades sociais e institucionais vigente por uma outra, em que sejam recusadas todas as formas de misoginia, de sexismo, de racismo e de homofobia e em que sejam tratadas sem condescendência todas as formas de discriminação e de violência contra as mulheres, em qualquer fase de suas vidas, na sociedade brasileira.

13 Nesse mesmo artigo, as autoras lembram que, no estado do Ceará, 474 mulheres foram assassinadas por companheiros e ex-companheiros entre 2004 e 2007, o que confirma a realidade de um verdadeiro feminicídio, crime do patriarcado, ainda em franco andamento em nosso país. [ 92

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A Igreja institucional e a resistência à afirmação de um Estado laico

Benevolência com o violentador e rigor com os profissionais de saúde foi a posição da Igreja institucional, em pleno século XXI, diante da violência contra uma menina de nove anos, exposta nacional e internacionalmente no caso de abuso sexual pelo padrasto que resultou em gestação gemelar, em Alagoinha, no estado de Pernambuco. Instituição emblemática do patriarcado, a Igreja Católica foi representada nessas dramáticas ocorrências pelo arcebispo de Recife e Olinda, d. José Cardoso Sobrinho, que veio a público não para avaliar e condenar o violador, um homem que deveria justamente proteger a menina. Nesse caso, a Igreja institucional desnudou suas dificuldades em conviver democraticamente com diversidades e contribuir para a consolidação de um Estado laico.14 Ao arcebispo não interessou a possibilidade de os integrantes da equipe de saúde, que agiram eticamente ao cumprir obrigações legais e profissionais, serem fiéis da Igreja Católica Apostólica Romana. O arcebispo, por um lado, distribuiu sanções religiosas com rigor, excomungando os profissionais de saúde e a mãe da menina; por outro lado, com benevolência poupou o estuprador, que confessou à polícia ter abusado sexualmente da menina desde os seis anos e da irmã dela, então com catorze anos, desde os onze. O arcebispo, sob uma perspectiva fundamentalista, considerou a sociedade brasileira unidimensional em suas crenças, ignorando e desrespeitando a pluralidade religiosa, a violência contra mulheres e meninas e a própria legislação do país.15 Não podem ser vistos como estritamente pessoais pronunciamentos e condenações emitidos pelo arcebispo. Este

14 O Estado laico brasileiro vem sendo construído há mais de um século. Destaco como marcos nesse processo a criação do registro civil de nascimento, com o Decreto 9.886, de 7 de março de 1888, e a instituição do casamento civil, com o Decreto 181, de 1890. 15 Em 2008, foram realizados 3.241 abortos não clandestinos pelo SUS. Abortos são previstos e admitidos no artigo 128 do Código Penal brasileiro em casos de estupro ou de risco à saúde e à vida da mulher. Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

assumiu o caráter institucional de suas atitudes invocando o Direito Canônico (Cânon nº 1.398) e declarando à mídia: “Não excomunguei ninguém. Isso é uma loucura. [A ordem] não é fruto de um pensamento pessoal, mas de uma doutrina da Igreja” (Dias; Neiva, 2009). Outras autoridades da Igreja apoiaram-no publicamente, reiterando seu discurso. O arcebispo de Maceió, d. Antônio Muniz, presidente regional da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, destacou, na Basílica do Carmo no Recife, na abertura da Campanha da Fraternidade da CNBB, diante de seiscentos fiéis, o apoio da cúpula da Igreja – inclusive do Vaticano – ao arcebispo José Cardoso Sobrinho. Nessa oportunidade, o representante da CNBB criticou o governo e a ciência que “inventa teorias para justificar o que fazer”. Em contrapartida, foram marcantes os pronunciamentos públicos de profissionais de saúde e do próprio ministro da pasta, José Gomes Temporão, indicando que, mesmo entre contradições, avançamos na constituição de um Estado laico. Fátima Maia, diretora do Centro Integrado de Saúde Amaury de Medeiros (Cisam), onde a gestação da menina foi interrompida em 4 de março de 2009, declara-se católica e afirma: “O Cisam fez e vai continuar fazendo, estamos preparados, qualificados e referenciados para esse tipo de atendimento há 16 anos” (Dias; Neiva, 2009). O gerente médico do Centro, Sérgio Cabral, que participou da interrupção da gravidez de quinze semanas da menina, assim se posicionou: “Estou cumprindo um trabalho perante a população pobre de Pernambuco que só tem o Sistema Único de Saúde (SUS) para resolver seus problemas.” O ministro José Gomes Temporão, contribuindo para a afirmação de uma sociedade e de um Estado republicanos, declarou: Fiquei chocado com os dois fatos: com o que aconteceu com a menina e com a posição desse religioso que, equivocadamente, ao dizer que defende uma vida, coloca em risco outra tão importante quanto.

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Nesse caso exemplar, com ampla repercussão nacional e internacional, a Igreja como instituição reafirmou seu masculinismo em caso de violência contra as mulheres − mesmo aquelas mais vulnerabilizadas pela condição de pobreza e de idade − e sua ausência de solidariedade e de compaixão com as mulheres, participando intensamente da rede de cumplicidade com criminalidades sexistas. Nesses diversos territórios, a despolitização, a naturalização, a psicologização, a negação, a eufemização da violência masculina integram, social e institucionalmente, uma rede de cumplicidades que contribui para que homens violentos continuem a agir sem serem perturbados, usufruindo da impunidade.

Proteção e promoção dos direitos da menina e da adolescente

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Parte II: Do trabalho e do futuro de crianças e adolescentes

Infância e trabalho: algumas aproximações a partir da normatividade  Revalino Antonio de Freitas

Elas são centenas de milhões em todo o mundo. Pertencem a diferentes etnias ou raças, professam credos distintos, falam as mais variadas línguas e dialetos, mas têm algo em comum. O que as une é a condição degradante a que são submetidas todos os dias, sujeitas à exploração do próprio trabalho. Corpos mais frágeis do mundo do trabalho, as crianças são seres sociais visíveis na produção material, desde a mais tenra idade da humanidade. Todavia, só nos últimos decênios adquiriram certo reconhecimento, a ponto de se tornarem motivo de preocupação tanto em relação ao presente quanto em relação ao futuro. Contudo, para que esse reconhecimento viesse a acontecer, foi necessário entender o processo de construção social da infância. As investigações levadas a termo por Ariès (1981), Gélis (1991) e Kuhlmann Jr. (1998), dentre outros autores, são importantes referenciais para o entendimento da construção dessa categoria. E uma sociologia da infância na interface com uma sociologia do trabalho proporciona uma apreensão mais substancial desse fenômeno, ainda que isso não signifique uma categorização singular.

O trabalho das crianças, comumente denominado “trabalho infantil” na literatura corrente, ainda ressente de contornos mais rigorosos que permitam seu delineamento. Entretanto, fixar-lhe limites implica em recortes arbitrários que, mais do que explicitar a dimensão do fenômeno, podem levar a caminhos sinuosos, insuficientes para apreender a dimensão do fenômeno em toda a sua magnitude. O que se pode observar com mais frequência é a existência de representações sociais diversas acerca desse tipo de trabalho, que muitas vezes definem as ações políticas e a institucionalização de uma normatividade que desconsidera a complexidade do fenômeno. Por isso, uma investigação que esclareça o trabalho infantil requer, antes de tudo, a desconstrução do discurso sobre as concepções em torno do fenômeno, sem a qual não será capaz de contemplar as várias configurações que este trabalho possui, decorrente de aspectos culturais, sociais e econômicos. Desse modo, o primeiro aspecto a ser considerado sobre o estatuto da infância diz respeito à difusão da construção social dessa categoria. Trata-se de uma concepção ocidental que se quer universal. Essa concepção se impõe com o avanço da ocidentalização do mundo e da expansão do capital. Desde o século XIX, a construção social da infância se faz a partir desse olhar, que desconsidera as especificidades de outras sociedades e oculta o fato de que não existe uma realidade social homogênea; a heterogeneidade social se acentua na medida em que se faz uma imersão nessa realidade como totalidade. A realidade social das crianças difere no espaço e no tempo. Cada sociedade traz consigo uma representação social da infância que perpassa aspectos sociais e culturais endógenos, não obstante a influência externa. No caso do trabalho infantil, o que se constata nos últimos decênios é a afirmação de uma concepção que se declara universal e se constitui a partir das sociedades ocidentais industrializadas. O domínio dessa concepção se impõe principalmente através de uma normatividade expressa em convenções internacionais, particularmente sob a [ 102 103 ]

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égide da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Essa concepção é corroborada pela exclusão gradativa da criança das atividades produtivas. Com efeito, o que se constata é o desdobramento de um processo amplo que se desenvolve desde o século XIX, resultante das lutas sociais contra o trabalho indiscriminado de crianças e mulheres nas fábricas durante a fase de ascensão da maquinaria, permitindo ao capital se apropriar de todas as formas possíveis dessa força de trabalho outrora suplementar. No caso do trabalho infantil, como afirma Marx (1980), a compulsoriedade imposta pelo capital tomou o lugar dos folguedos infantis neste período. A percepção acerca do trabalho infantil, portanto, encontra-se datada, do ponto de vista ocidental, nos marcos da Revolução Industrial. É um fenômeno recente e sua generalização demonstra o avanço da própria industrialização, do desenvolvimento tecnológico de uma época. Hobsbawm (2000a), ao analisar a formação da classe operária britânica, observa que, até o final dos anos de 1840, a maior parte da população do país continuava habitando a zona rural. Somente após 1850 constata-se um crescimento vertiginoso da população urbana, voltada para o trabalho fabril. A emergência desse novo personagem no cenário fabril atesta a mudança do padrão tecnológico vigente no processo de trabalho. Voltando a Marx (1980), a maquinaria permite o uso de uma força de trabalho cujo desenvolvimento corporal ainda está por constituir-se e cujos membros mais flexíveis lhe atribuem maiores habilidades. Esses corpos maleáveis são também frágeis, mais sensíveis à fadiga, portanto, menos resistentes ao trabalho prolongado. No período em questão, porém, o que não falta às famílias de trabalhadores é a prole, que amplia consideravelmente a oferta de mão de obra. Ademais, a máquina permite que o grau de exploração do trabalho gere um excedente extraordinário à época. Ao utilizar todos os membros da família, amplia o exército de reserva e, em consequência, desvaloriza a força de trabalho. O próprio Marx afirma, por exemplo, que a aquisição Infância e trabalho

de quatro forças de trabalho dessa natureza substitui, pelo excedente gerado, o custo provocado pelo emprego do chefe da família. Segundo Hobsbawm (2000b), os trabalhadores eram obrigados a aceitar tão somente um salário para o mínimo de subsistência, posto que a oferta abundante de força de trabalho provocava um rebaixamento geral dos salários. Essa situação era tal que o salário de mulheres e crianças era bem inferior a esse mínimo de subsistência. Submetidos ao trabalho em uma sociedade assalariada, esses corpos frágeis se espalham ao longo da segunda metade do século XIX pelas fábricas dos países europeus industrializados, particularmente Reino Unido, França, Bélgica e Alemanha, e é nessa condição que são inscritos nas relações da sociedade salarial (Castel, 1998). Sujeitas às piores condições no trabalho fabril, as crianças desde cedo tornam-se alvo de manifestações dos trabalhadores, visando ao fim de sua exploração social. A erradicação do trabalho infantil passa a ser uma bandeira do movimento social, e as crianças são gradativamente afastadas do trabalho, elevando-se a outro estatuto, fundado na proteção social. Nesse novo contexto, observa-se a perda da dimensão econômica verificada durante o período de apogeu de sua inserção no trabalho fabril e a emergência de uma dimensão moral nos discursos que elevam a criança, no Ocidente industrializado, à condição de ser social sob proteção da família, da sociedade e do Estado. Com isso, verifica-se nessas sociedades um deslocamento do espaço de socialização de assimilação dos valores morais, sociais e culturais outrora vivenciados no trabalho e que têm sérias consequências sociais, como será visto mais adiante, por conta da generalização negativa atribuída ao trabalho na infância. À medida que surge um novo estatuto social para as crianças, que as exclui do trabalho, a família e a escola tornam-se as instituições preferenciais para a socialização. E são essas instituições que fundamentarão as novas percepções sobre o trabalho infantil, de tal [ 104 105 ]

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forma que os novos valores dominantes nas sociedades europeias industrializadas se pretendem valores universais, a ponto de constituírem as premissas básicas para a institucionalização de uma normatividade também universal. Ao longo do século XX, uma série de convenções e declarações foi aprovada com o objetivo de assegurar a proteção à infância e a erradicação do trabalho infantil. Em 1924, a Sociedade das Nações adotou a Declaração dos Direitos da Criança, aprovada originalmente pela União Internacional de Socorro às Crianças (Uise)1 em maio de 1923. Entre os cinco enunciados dessa Declaração, um decreta que a criança deve ser protegida de todas as formas de exploração. Observa-se, portanto, já no início dos anos 20, a emergência de uma política internacional de proteção à infância, cuja amplitude avança até a proteção referente ao trabalho. Com a fundação da Organização das Nações Unidas (ONU) em 1945, a proteção à infância ganha um novo marco internacional. No ano seguinte, é constituído o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) e, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos menciona a necessidade de proteção social das crianças (art. 25). As ações da ONU e de suas agências – particularmente a Unicef – intensificam-se nos decênios seguintes no campo da proteção à infância. Em 1959, a Assembleia-Geral da ONU adota a Declaração dos Direitos da Criança. A Declaração reconhece o direito indistinto de todas as crianças à proteção social e rejeita qualquer tipo de discriminação. Em 1966, é aprovado o Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. A aprovação desse pacto

1 A Uise foi fundada em Genebra, na Suíça, em janeiro de 1920, por iniciativa do Save the Children Fund, de Londres (Reino Unido), e do Comité International de Secours aux Enfants, de Berna (Suíça), sob os auspícios do Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Seus objetivos eram o socorro e a proteção às crianças de todos os países, indistintamente. Infância e trabalho

inclui, uma vez mais, os direitos das crianças à proteção e o combate a todas as formas de exploração social. A partir dessa normatividade, que se desenvolve até os anos 60, verifica-se a construção de um amplo caminho rumo à proteção e à restrição ao trabalho infantil. Os procedimentos que visam à adoção de tais mecanismos estruturam-se em torno de uma noção de infância cujos contornos são estabelecidos a partir de uma perspectiva etária. É a idade que sinaliza os marcos temporais da existência do ser social na infância, bem como define a possibilidade da criança de se inserir no mundo do trabalho. Cabe aqui uma explicitação sobre essa institucionalização dos marcos existenciais da infância. Tais marcos têm sido constituídos gradativamente através das declarações e convenções internacionais. A Declaração dos Direitos da Criança (1924) e a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) apenas aludem à existência da infância, sem estabelecer seus contornos. A Declaração dos Direitos da Criança, de 1959, mantém a mesma posição das declarações que lhe antecederam, propugnando a necessidade de se estabelecer uma idade mínima para o trabalho infantil (princípio 9°), embora não fixe tal limite. O Pacto Internacional sobre os Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966), por sua vez, enfatiza a necessidade da proteção à infância e recomenda aos Estados-membros que estabeleçam, por lei, o limite mínimo de idade para o trabalho infantil (art. 10º, item 3). Assim, pode-se observar um amplo movimento em direção à constituição dos marcos temporais da infância e, por extensão, dos limites restritivos ao trabalho infantil. Primeiro, uma especificação genérica da infância, seguida da adoção de mecanismos que visam à institucionalização de limites etários para a existência da infância e do trabalho infantil. Esse movimento persiste e adquire nova configuração a partir da Convenção 138 da OIT (1973), que dispõe sobre a idade mínima para admissão no emprego e que retoma outras con[ 106 107 ]

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venções sobre esse mesmo tema aprovadas ao longo do século XX pela própria OIT.2 A Convenção estabelece a idade mínima de quinze anos para que a criança possa ser inserida no mundo do trabalho (art. 2º, item 3). A delimitação é justificada com base na conclusão da escolaridade compulsória. Constata-se, aqui, outra inovação importante: a vinculação direta entre trabalho e educação. No âmbito de todas as convenções e declarações anteriores, o direito à educação é um dos princípios básicos, inserido no campo da proteção social assegurada às crianças. Ao estabelecer essa vinculação, a Convenção aponta para a necessidade de garantir que as crianças não sejam prejudicadas no direito de “desenvolver de modo normal, materialmente e espiritualmente” (Sociedade..., 1924, item I) e que lhes seja assegurado o direito ao “desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal, em condições de liberdade e dignidade” (ONU, 1959, princípio 2º). A Convenção 138, todavia, mesmo limitando a idade mínima para o exercício do trabalho na infância, faculta aos Estados-membros que não tenham condições plenamente desenvolvidas no campo econômico e educacional a adoção do trabalho infantil a partir dos catorze anos (art. 2º, item 4), desde que esclareça os motivos de tal medida e defina um prazo para sua efetivação (art. 2º, item 5). Todavia, essa

2 As Convenções que tratam da idade mínima de admissão ao trabalho são: Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho na Indústria, de 1919; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho Marítimo, de 1920; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho na Agricultura, de 1921; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho Como Estivadores e Foguistas, de 1921; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Emprego Não Industrial, de 1932; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho Marítimo (revista), de 1936; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho na Indústria (revista), de 1937; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Emprego Não Industrial (revista), de 1937; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho Como Pescadores, de 1959; Convenção Sobre Idade Mínima Para o Trabalho Subterrâneo, de 1965. Infância e trabalho

Convenção ainda inova ao apontar um marco temporal mais nítido para a infância, estabelecendo dezoito anos como a idade mínima necessária para admissão em trabalho que, por sua natureza ou circunstância de execução, possa prejudicar a saúde, a segurança e a moral do jovem (art. 3º). Ela é explícita ao denominar “jovem” uma pessoa com dezoito anos. No entanto, ao definir de forma peremptória o limite de acesso ao trabalho, ainda que reportando-se ao jovem, ela evidencia a continuidade do processo que se estrutura gradativamente em torno da concepção de infância nas sociedades ocidentais e que, procurando estabelecer um marco temporal mais preciso, caminha em direção a estender o tempo de infância. Esse alargamento do marco temporal da infância até os dezoito anos encontra-se normatizado através da Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Assembleia-Geral da ONU em novembro de 1989. Em seu artigo 1°, declara: “nos termos da presente Convenção, criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo” (ONU, 1989, p. 1). A Convenção reafirma suas antecessoras no que diz respeito à proteção e restrição ao trabalho infantil, de modo a assegurar a proteção social à infância. Dessa forma, os marcos temporais da infância estão garantidos sob uma perspectiva normativa. É através desses marcos que o trabalho infantil passa a ter uma configuração mais precisa, que não se restringe a intenções ou formulações genéricas, como as primeiras declarações e convenções, mas que se especifica no plano temporal. O passo seguinte, nesse processo de construção social da infância nas sociedades ocidentais, particularmente no que tange ao trabalho infantil, é dado pela Convenção 182, que diz respeito à proibição das piores formas de trabalho infantil e à ação imediata para sua eliminação (OIT, 1999). Aprovada na Conferência-Geral da OIT realizada em Genebra, na 87ª Sessão Ordinária do Conselho de Repartição Internacional do Trabalho, em 1999, a Convenção já se realiza sob a égide da nova De[ 108 109 ]

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Infância e juventude

claração dos Direitos da Criança, assinada dez anos antes e que sinalizava a necessidade de avanços relativos ao trabalho infantil no campo da proteção social à infância. A Convenção 182 já parte do princípio normativo adotado na Declaração referente aos marcos temporais da infância, e considera que o termo “criança” designa todo aquele com idade inferior a dezoito anos (art. 2º). Além disso, a Convenção define com clareza o que propõe como as piores formas de trabalho infantil: aquelas em que as crianças são submetidas à escravidão ou práticas análogas, que incluem o tráfico de crianças, a servidão por dívidas e o trabalho forçado ou obrigatório; o recrutamento para a prostituição ou atividades vinculadas à pornografia; a utilização em atividades ilícitas (particularmente aquelas envolvendo entorpecentes) e, por fim, trabalhos que envolvem riscos à saúde, segurança ou moral das crianças. Como desdobramento desse amplo processo normativo que se consolida na Convenção 182, diversos Estados, bem como a OIT e a Unicef, estabeleceram medidas visando à erradicação do trabalho infantil. A OIT, ao se preocupar em dimensionar efetivamente o trabalho infantil no plano mundial, procurou categorizar esse trabalho de modo a possibilitar uma mensuração mais confiável do fenômeno, e assim garantir legitimidade, do ponto de vista político, às reivindicações pela sua erradicação. Para a OIT (2006), existem três tipos de trabalho desenvolvidos pelas crianças que requerem a atenção da instituição. O primeiro tipo deriva da atividade econômica. Trata-se de um conceito amplo, não normativo e que procura apreender as atividades desenvolvidas pelos infantes, em atividades remuneradas ou não, ao longo do dia ou em períodos parciais, realizado de forma contínua ou ocasional. Para que se considere tal trabalho como economicamente ativo, ele deve ser realizado pelo menos durante uma hora, no mínimo uma vez, em um período de referência contínuo de sete dias. O segundo tipo diz respeito ao trabalho infantil propriamente dito e definido de acordo com a Convenção 138 (1973), que trata da idade mínima e apresenta-se como referência internacional autorizaInfância e trabalho

da para a admissão ao trabalho. Nesse caso, estão excluídos todos os infantes com idade igual ou superior a doze anos que trabalham até algumas horas por semana, bem como indivíduos acima de quinze anos que não se encontram em atividades classificadas como perigosas. O terceiro tipo refere-se ao trabalho perigoso, que, por sua natureza, produz efeitos adversos à saúde, à segurança e ao desenvolvimento físico e mental, resultante do excesso de carga de trabalho, de sua intensidade ou das exigências que ultrapassam as condições físicas dos que são submetidos a ele. Como se pode observar, os critérios estabelecidos pela OIT dão margem para distinguir o trabalho infantil em si, constituinte do ser social, daquele que se caracteriza pela exploração, abstração e estranhamento. Como já foi mencionado anteriormente, o trabalho infantil é um fenômeno social que remonta aos primórdios da humanidade. Sua existência pode ser constatada tanto nas sociedades tradicionais quanto nas contemporâneas. O que está em jogo é o caráter que esse trabalho adquire. Conforme foi analisado nas páginas anteriores, a construção social da infância, ao longo do século XX, ocorreu a partir de uma normatividade que impôs a concepção ocidental como universal e que se caracterizou, dentre outras coisas, pelo alargamento dos marcos temporais da infância e pela erradicação do trabalho infantil. Sem dúvida, esse estatuto social adquirido pela infância é coerente com os mais avançados interesses concernentes à proteção social, sob a perspectiva ocidental. Entretanto, embora não se possa esquecer que tal estatuto manifesta-se com vigor nas sociedades ocidentais industrializadas, ele não desfruta da mesma receptividade em outras sociedades, tanto por conta da constituição social da infância, quanto pelas condições materiais e sociais de vida da maioria dos trabalhadores que vivem nessas sociedades. Cada vez torna-se mais evidente que a universalização dessa normatividade enfrenta obstáculos que expõem, não obstante a participa[ 110 111 ]

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Infância e juventude

ção dos Estados na formulação normativa de políticas sociais orientadas à infância, o predomínio de um olhar muitas vezes exógeno. Se os princípios inerentes de proteção à infância são universais, o mesmo não ocorre com o caráter assumido pelo trabalho infantil. Sua universalidade não se traduz em homogeneidade. A concepção das sociedades ocidentais industrializadas está ancorada nas lutas sociais que a classe trabalhadora desenvolveu ao longo dos séculos XIX e XX, visando a restringir e mesmo proibir que as crianças fossem submetidas à degradação violenta sob o jugo do capital. Essa perversidade social foi responsável, durante décadas e décadas, pela mutilação desses corpos frágeis, obrigados a realizar um trabalho abstrato por longas jornadas, sem nenhuma proteção social. Encontra-se, nos princípios dessa concepção, certamente uma das mais radicais denúncias contra a exploração social levada a cabo pelo capitalismo. O trabalho infantil acarreta a perda da infância, a violação de um período de vida fundamental para a formação do ser social, a privação do direito ao lúdico. Ele se recobre da lógica da produção para o mercado. Diante da realidade constatada nas sociedades industriais europeias que emergem no século XIX, não haveria outra possibilidade para o trabalho infantil que o de evitar contrair uma carga de negatividade aos olhos dos trabalhadores e de grande parcela da sociedade. Infância e trabalho são incompatíveis e o estatuto social possível à infância se faz em relação direta com a educação. Essa incompatibilidade constitui o fundamento moral que leva à defesa da erradicação desse trabalho. De igual modo, trabalho e educação tornam-se mutuamente excludentes. A garantia de um estatuto social capaz de se afirmar no plano da civilidade, portanto, passa pela erradicação de todas as formas de trabalho infantil e pela socialização das crianças através da família e da educação. Uma concepção não ocidentalizante geralmente cerca o trabalho infantil de positividade. Há um caráter ontológico de constituição do ser social pelo trabalho. O trabalho educa, garante a reprodução da Infância e trabalho

vida familiar3 e a perpetuação da herança geracional, bem como se manifesta como principal meio de socialização. Assim, a complexidade acerca do trabalho infantil e do que ele significa ou pode significar permeia a construção do estatuto social da infância. Sua heterogeneidade exige que o olhar se destitua de um foco único e se deixe prismar pelo espectro das cores que se irradiam do fenômeno. O movimento que se manifesta demonstra que, se por um lado a normatividade não é capaz de abranger a condição social derivada do trabalho infantil diante de sua heterogeneidade, por outro, sua existência passa a adquirir legitimidade e a configurar certa homogeneidade, capaz de ampliar o caráter de universalidade pretendido, na medida em que o atual estágio de mundialização do capital exportou para todos os quadrantes do planeta sua exploração desmedida. O quadro de barbárie social promovido pelo capital tem no trabalho infantil um de seus principais mecanismos para garantir sua expansão e acumulação. Tanto no campo quanto na cidade, a exploração do trabalho infantil se manifesta, dentre outras causas, a partir do desenvolvimento das relações capitalistas de produção. Nas últimas décadas, o desenvolvimento dessas relações, com a incorporação das novas tecnologias informacionais e o novo estágio de mundialização do capital, tem provocado uma degradação cada vez maior das condições materiais e sociais de vida de uma grande parcela de trabalhadores e, por extensão, de suas famílias. O capital, diante da nova divisão internacional do trabalho, não apenas inseriu essas sociedades em sua nova fase de expansão e acumulação. Impossibilitado de continuar a exploração do trabalho infantil nos países de bem-estar social, encontrou terreno fértil para sugar a

3 Ao desenvolver suas investigações entre os colonos de Canarana (MT), Martins (1993) observa que a única noção que os colonos e seus filhos têm acerca da realidade é a noção de trabalho – não do trabalho abstrato, mas sim do trabalho concreto que produz arroz, o alimento que permite a reprodução da vida daquelas famílias. [ 112 113 ]

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energia das crianças na África, Ásia e América Latina, territórios ávidos pelo “progresso” proporcionado pelas sociedades industriais e pelo consumo desenfreado de bens materiais outrora inacessíveis. Diante do amplo movimento de reconfiguração do trabalho infantil nessas sociedades, a normatividade internacional sobre trabalho infantil adquire uma legitimidade, como mecanismo para contrapor-se à brutal exploração manifesta nesta fronteira em expansão do capital. Assim, passados pouco mais de dois decênios desde que a Convenção dos Direitos da Criança foi aprovada pela Assembleia-Geral da ONU, percebe-se que um longo caminho está a se construir para erradicar o trabalho infantil. Não trata-se tão somente de questionar o caráter desse trabalho, posto que a heterogeneidade persiste, mas de afirmar a necessidade de combater determinado tipo de trabalho infantil — abstrato e fundado na exploração da força de trabalho. Afinal, se a universalidade da normatividade expressa uma imposição etnocêntrica acerca da construção social da infância, a expansão do capital em direção às sociedades onde o trabalho infantil possuía outra dimensão tem provocado a necessidade de adoção dessa normatividade. O próprio capital se encarrega de promover a ocidentalização da concepção de infância, concepção essa que surge como resposta à barbárie promovida pelo capital.

Infância e trabalho

Referências ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. 2. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1981. CASTEL, Robert. As metamorfoses da questão social: uma crônica do salário. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. GÉLIS, Jacques. A individualização da criança. In: ARIÈS, Philippe; CHARTIER, Roger (Org.). História da vida privada: da Renascença ao Século das Luzes. v. 3. São Paulo: Cia das Letras, 1991. p. 311-329. HOBSBAWM, Eric J. A formação da cultura da classe operária britânica. In: ______. Mundos do trabalho: novos estudos sobre história operária. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000a. p. 257-277. HOBSBAWM, Eric J. Costumes, salários e cargas de trabalho na indústria do século dezenove. In: ______. Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000b. p. 399-427. KUHLMANN JÚNIOR, Moysés. Infância e educação infantil: uma abordagem histórica. Porto Alegre: Mediação, 1998. MARTINS, José de S. Regimar e seus amigos: a criança na luta pela terra e pela vida. In: ______ (Coord.). O massacre dos inocentes: a criança sem infância no Brasil. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 1993. p. 51-80. MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980. v. 1. OIT. Convenção 138, de 6 de junho de 1973. Dispõe sobre idade mínima para admissão a emprego. OIT. Convenção 182, de 1º de junho de 1999. Dispõe sobre proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para a sua eliminação. OIT. O fim do trabalho infantil: um objetivo ao nosso alcance. Lisboa, 2006. ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada pela Assembléia das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948. ONU. Declaração dos Direitos da Criança. Adotada pela Assembléia das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1959. ONU. Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Aprovado

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Infância e juventude

pela Assembléia das Nações Unidas, em 16 de dezembro de 1966. ONU. Convenção sobre os Direitos da Criança. Adotada pela Assembléia das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1989. SOCIEDADE das Nações. Declaração dos Direitos da Criança. Adotada pela Assembléia da Sociedade das Nações, em 26 de setembro de 1924.

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Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes Tania Ludmila Dias Tosta

O trabalho infantil refere-se à participação de crianças e adolescentes em atividades econômicas, o que nem sempre ocorre em troca de remuneração. A definição não abrange as atividades domésticas realizadas no próprio domicílio, junto à família, mas inclui os trabalhadores familiares não remunerados que produzem bens ou serviços para o consumo do domicílio e os que ajudam a família em atividades agrárias. Para a mensuração do trabalho infantil, as pesquisas brasileiras geralmente consideram qualquer trabalho, mesmo não remunerado, realizado por indivíduos com idade igual ou inferior a 14 anos, ocupando pelo menos uma hora semanal (Rocha, 2003). Esse tipo de trabalho é constitucionalmente definido como ilegal no território brasileiro e é considerado pernicioso para a criança que deveria dividir seu tempo entre família, escola e lazer para alcançar seu pleno desenvolvimento (Martinez, 2001). Os padrões de regulação da idade mínima para o trabalho variam internacionalmente e dependem de critérios como tipo de trabalho, grau de risco à criança, se a criança é submetida à exploração e em que medida o trabalho interfere com a escola. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) considera economicamente ativa qualquer criança que desenvolva atividades de no mínimo uma hora de trabalho durante a semana. Para a OIT, o trabalho infantil (child labor) pode ser considerado nas seguintes situações: 1) qualquer pessoa economicamente ativa

menor de 12 anos; 2) todas as pessoas de 12 a 14 anos que trabalham em atividades sem risco por catorze horas ou mais na semana ou uma hora ou mais na semana quando a atividade é de risco. Segundo esses critérios, mais de 200 milhões de crianças entre 5 e 14 anos de idade são economicamente ativas em todo o mundo. Destas, considera-se que 186 milhões estejam em situação de trabalho infantil. Além disso, quase 6 milhões de crianças são exploradas por meio de trabalhos forçados, 1,8 milhão são vítimas de prostituição e 0,3 milhão participam de conflito armado (Basu; Chau, 2008). Considerando os valores absolutos, a incidência de trabalho infantil é maior na Ásia, com 127 milhões de crianças economicamente ativas, seguida por África e Oriente Médio (61 milhões) e América Latina (17 milhões). Em termos porcentuais, o trabalho infantil atinge níveis mais elevados na África, onde praticamente uma entre três crianças (29%) é economicamente ativa, valor que gira em torno de 19% na Ásia e de 16% na América Latina (Basu; Chau, 2008). Apesar da definição veiculada pela OIT, há divergências no tocante ao que pode ser considerado trabalho infantil em diversas partes do mundo. Embora o conceito seja amplamente divulgado pela literatura científica, existem algumas controvérsias sobre sua precisão. Como muitas vezes é empregado também para designar a inserção precoce de adolescentes no mercado de trabalho, alguns autores preferem o termo “trabalho precoce”1 ou “trabalho infanto-juvenil”, por incluir a faixa etária de

1 Ferreira (2001, p. 223-224) argumenta: “Os termos ‘trabalho precoce’ e ‘trabalho infantil’ serão utilizados de forma intercambiável neste artigo, mesmo que o autor prefira o primeiro, por qualificar a entrada no mundo do trabalho como um evento antecipado, aquém do regularmente esperado, seja para crianças como para púberes e adolescentes jovens. O segundo termo está consagrado como entrada para a pesquisa bibliográfica nas diversas bases de dados, mesmo quando a referência não trate exatamente de trabalho infantil stricto sensu, ou não seja seu tema central. A diferença entre os termos pode tornar-se significativa com o passar do tempo, na medida em que o desenvolvimento teórico-conceitual exija maior precisão em seu uso”. [ 118 119 ]

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15 a 18 anos (Ferreira, 2001; Campos; Francischini, 2003; Carvalho, 2008). Para facilitar o entendimento, este texto faz uso da concepção de trabalho infantil em seu sentido mais amplo, abrangendo também o trabalho adolescente; este muitas vezes assume o caráter de exploração, uma vez que deve obedecer a uma série de requisitos para ser considerado legal.2 Este texto expõe as estatísticas atuais sobre o trabalho infantil no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2008, apresentando o perfil das crianças e adolescentes trabalhadores e procurando caracterizar suas formas de ocupação. Em seguida, aponta brevemente as transformações no trabalho infantil nos últimos anos, decorrentes de uma conjunção de esforços entre governo, organismos internacionais e sociedade civil. Finalmente, analisa a estrutura etária dos trabalhadores ocupados em situação de vulnerabilidade, focando no trabalho precarizado de crianças e adolescentes no Distrito Federal. Pretende, assim, abordar a questão do trabalho precoce, discutindo os aspectos em que este carrega o peso adicional do trabalho inseguro, instável e precarizado. Breve panorama do trabalho infantil no Brasil

Em 2008, 4,5 milhões de crianças e adolescentes trabalhavam no Brasil, sendo que 993 mil pertenciam à faixa etária de 5 a 13 anos de idade, período no qual qualquer forma de trabalho é proibida. Proporcionalmente, 10,2% dos brasileiros entre 5 e 17 anos estavam ocupados em 2008. Entre as crianças de 5 a 13 anos, 3,3% trabalhavam. A proporção de meninos de 5 a 17 anos trabalhando era maior (13,1%) que a de meninas (7,1%), sendo que 35,5% do total das pessoas dessa faixa etária

2 Segundo a Constituição de 1988, o trabalho é considerado ilegal até os 14 anos. É admitido sob condição de aprendiz dos 14 aos 16 anos e aceito, de modo geral, para maiores de 16 anos. Uma exceção é feita nos casos de atividades noturnas, perigosas ou insalubres, em que o trabalho só pode ser realizado por maiores de 18 anos. Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

estavam em atividade agrícola e 51,6% eram empregados ou trabalhadores domésticos, ocupação em que as meninas assumem posição de destaque (PNAD, 2009). As condições das ocupações de crianças e adolescentes são bastante precárias. É muito baixo o porcentual de adolescentes ocupados que possuem um emprego com carteira assinada. Segundo os dados da PNAD de 2008, somente 9,7% dos empregados ou trabalhadores domésticos de 14 a 17 anos tinham a possibilidade de obter a proteção das leis trabalhistas pelo emprego registrado. Além de não ter garantias, um grande número de trabalhadores precoces nem ao menos asseguram uma remuneração por seus esforços. Na faixa dos trabalhadores entre 5 e 17 anos, 32,2% não eram remunerados, muitas vezes por estarem ajudando os pais na atividade agrícola. Esse valor cresce ainda mais entre as crianças de 5 a 13 anos: 60,9% trabalham sem receber nenhuma remuneração. Entre os trabalhadores de 16 e 17 anos, esse porcentual cai para 19,1%. Entre os que tinham remuneração, o rendimento médio das pessoas de 5 a 17 anos foi de 269 reais em 2008, valor bem abaixo do salário mínimo vigente na época, que era de 415 reais. A média de rendimentos também varia bastante com a faixa etária dos trabalhadores: quanto menor a idade, menos remuneração recebem. Os mais novos, entre 5 e 13 anos, recebiam somente 100 reais, os de 14 ou 15 anos, 190 reais, e os de 16 ou 17 anos tinham o maior rendimento médio, de 319 reais. O aumento da remuneração nas faixas etárias mais elevadas corresponde a uma ampliação no número de horas trabalhadas. A jornada média de trabalho de todas as pessoas entre 5 e 17 anos de idade foi de 26,8 horas semanais. Ao passo que as crianças de 5 a 13 anos trabalhavam em média 16,1 horas semanais, as de 14 e 15 anos atingiam 24,2 horas e os adolescentes de 16 e 17 anos chegavam a 32,7 horas. Os dados da PNAD confirmam que o trabalho infantil está vinculado à desigualdade social e à pobreza, entre outros fatores. De acordo com a pesquisa de 2008, 865 mil trabalhadores entre 5 e 17 anos (10,8% [ 120 121 ]

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das pessoas dessa faixa etária) residiam em domicílios cujo rendimento per capita não atingia um quarto do salário mínimo ou não tinham rendimentos. O rendimento médio domiciliar per capita das crianças ocupadas de 5 a 9 anos era de 186 reais e o dos adolescentes de 16 ou 17 anos, de 394 reais. Assim, grande parte dos casos de inserção precoce no mundo do trabalho se dá pela necessidade de contribuir com o orçamento da família ou mesmo de garantir a própria sobrevivência. O trabalho infantil é uma realidade antiga na história do Brasil. Desde a época da escravidão, a infância pobre foi objeto de exploração, usada como mão de obra nas casas de família, na produção agrícola, nas fábricas e nas ruas. Além do aspecto econômico, há o sentido disciplinador, com a ideologia de que a inserção da criança (pobre) no trabalho seria positiva para sua formação moral, transformando-a em um indivíduo útil à sociedade e afastando-a da criminalidade e do ócio (Cruz Neto; Moreira, 1998; Campos; Alverga, 2001). No Brasil, o tema do trabalho infantil foi colocado na agenda política a partir da redemocratização nas décadas de 1970 e 1980, quando diversos movimentos sociais de defesa dos direitos de crianças e adolescentes entraram em cena. Foi somente com a Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) que os antigos “menores” passaram a ser vistos como sujeitos de direitos, respeitados em sua condição especial de desenvolvimento (Carvalho, 2008). E foi a partir dos anos 90 que o combate ao trabalho precoce de crianças e adolescentes ganhou maior expressividade (Sartori, 2006; Carvalho, 2008). Em 1992, o nível de ocupação de crianças e adolescentes era de 19,6%, passando para 11,8% em 2004 e para 10,2% em 2008.3 A série de dados produzidos pelo IBGE aponta para uma expressiva redução

3 É preciso notar que somente a partir de 2004 a PNAD alcançou uma cobertura completa do território nacional. Antes disso, a pesquisa não era realizada nas áreas rurais de Acre, Amapá, Amazonas, Pará, Rondônia e Roraima. Assim, uma comparação mais precisa do nível de ocupação atual só pode ser feita a partir da pesquisa de 2004. Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

do trabalho infantil no Brasil. Esta queda deve-se a um conjunto de medidas tomadas no sentido de enfrentar o trabalho precoce de crianças e adolescentes. Em 1992 o Brasil passou a fazer parte do Programa Internacional para a Erradicação do Trabalho Infantil (Ipec), promovido pela OIT, e, em 1994, com o apoio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ) e de diversas organizações não governamentais, criou o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil. A partir daí foi implementado o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti) como tentativa de combater as piores formas de trabalho de crianças e adolescentes. O Peti propõe um trabalho articulado em dois níveis: o serviço socioeducativo para as crianças e adolescentes afastadas do trabalho precoce e a transferência de renda para suas famílias. Prevê ainda ações assistenciais com foco na família, tais como programas de geração de emprego e renda. O Programa começou como ação pontual em regiões denunciadas pelo trabalho degradante de crianças na produção de carvão, cana-de-açúcar e sisal, atendendo famílias em condições de extrema pobreza e oferecendo uma compensação financeira para que as crianças deixassem o trabalho e frequentassem regularmente a escola.4 A partir de 2000 o Peti passou por uma expansão, chegando a atingir cerca de 810 mil beneficiários em 2002 (Carvalho, 2008). Entre 2004 e 2005 houve uma integração do Peti com o Programa Bolsa Família, e a transferência de renda foi unificada dentro do segundo programa; para alguns especialistas, isso prejudicou a especificidade do combate ao trabalho infantil. Segundo o coordenador do Programa Internacional para a Eliminação

4 Para participar do Peti e receber a transferência de renda, as famílias teriam que assumir os seguintes compromissos: retirada de todas as crianças e adolescentes de atividades laborais e de exploração; frequência mínima de crianças e adolescentes nas atividades de ensino regular e no serviço socioeducativo, no turno complementar ao da escola, de acordo com o porcentual mínimo de 85% da carga horária mensal exigida; acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, da vacinação, bem como da vigilância alimentar e nutricional de crianças menores de 7 anos. [ 122 123 ]

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do Trabalho Infantil da OIT, Renato Mendes, a efetividade do Peti estaria na garantia da participação da criança e do adolescente nas atividades escolares e socioeducativas. Mendes avalia que, para continuar a avançar, é preciso que o Peti integre, de forma mais eficaz, a transferência de renda e as ações educacionais (Oliveira, 2009). Uma análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) baseada nos dados da PNAD de 2007 apontam para um quadro interessante a respeito do trabalho infantil. Na época, 89,7% das crianças de 7 a 15 anos só estudavam, 7% trabalhavam e estudavam, 0,8% só trabalhavam e 2,5% não trabalhavam ou estudavam (nesse porcentual incluem-se 1,2% de crianças que realizavam atividades domésticas na própria casa). Avaliando esses números ao longo do tempo, concluiu-se que a porcentagem de crianças que só estuda vem aumentando, e a proporção de crianças que estuda e trabalha vem se reduzindo, mas a porcentagem de crianças que só trabalha praticamente não se altera. Em 2007, 1.044.000 crianças de 7 a 15 anos não freqüentavam a escola, sendo que dentre elas, 253 mil trabalhavam na semana de referência da PNAD e 380 mil não trabalhavam, mas cuidavam de afazeres domésticos. Portanto, mais de 600 mil crianças estariam possivelmente impedidas de freqüentar a escola por estar desenvolvendo atividades de trabalho ou atividades domésticas. (Ipea, 2008).

Tais dados evidenciam que os programas de combate ao trabalho infantil tiveram uma boa repercussão entre as crianças que trabalhavam e estudavam ao mesmo tempo, mas não conseguiram atingir na mesma proporção aquelas que já estavam fora da escola. Estudos apontam que o Peti teve um papel importante no combate ao trabalho infantil, ao retirar crianças e adolescentes de situações de trabalho degradante (Carvalho, 2004; MDS, 2004). O resultado apresentado, no entanto, foi a redução do trabalho infantil, não sua eliminação. Além disso, pesquisas indicam que não houve alteração significativa em relação à escolarização e à situação econômica dos membros das famílias participantes do Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

Peti, mesmo porque muitos dos aspectos do nível socioeducativo do programa não foram efetivamente colocados em prática (como a inexistência de uma proposta pedagógica para a jornada ampliada e de programas de geração de emprego e renda). Houve melhora na qualidade de vida e na garantia da permanência na escola, mas com impacto pouco expressivo sobre a realidade dos participantes (Carvalho, 2004; MDS, 2004). Conclui-se que o Peti não chegou a produzir uma mudança nas causas do trabalho precoce, de modo que o nível de ocupação de crianças e adolescentes persiste como uma grave questão no Brasil atual. O trabalho precário de crianças e adolescentes

O trabalho infantil contribui para expor crianças e adolescentes a situações de risco, exploração, abuso e violência, além de exaurir as energias de quem está em período de formação, no qual escola, família e lazer teriam um papel fundamental (Martinez, 2001; Carvalho, 2008). Contudo, além de exigir esforços em uma ocupação, em vez de enfocar a educação e o desenvolvimento subjetivo da criança e do adolescente, o trabalho precoce frequentemente se caracteriza por uma extrema precariedade. Para analisar a estrutura do trabalho precário de acordo com a idade dos trabalhadores, foram utilizadas duas categorias estabelecidas nas pesquisas de emprego e desemprego do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese): a categoria dos trabalhadores em situação de vulnerabilidade e a dos contratados à margem da modalidade padrão – ou simplesmente os vulneráveis e os flexibilizados. A ideia é refletir sobre a participação de crianças e adolescentes em ocupações que reúnam as características do trabalho precário. A definição das “pessoas em situação de trabalho vulnerável” inclui os assalariados do setor privado sem carteira de trabalho assinada, os autônomos que trabalham para o público, os trabalhadores não remunerados e os empregados domésticos. São trabalhadores cuja ocupação não lhes assegura o acesso aos direitos e à proteção social do [ 124 125 ]

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assalariado registrado. À insegurança da falta de garantia de direitos juntam-se os baixos níveis de remuneração desses trabalhadores. Nesse sentido, essa categoria reúne todas as dimensões que Rodgers (1989) concebe para definir o trabalho precário: instabilidade, falta de proteção, insegurança e vulnerabilidade social. Por outro lado, o Dieese considera como “trabalhadores de contratação fora da modalidade padrão” os assalariados sem carteira registrada dos setores público e privado, os autônomos que trabalham para empresas e os terceirizados. Assim, existe um segmento dos ocupados (assalariados do setor privado sem carteira assinada) que está representado tanto na categoria de vulneráveis como na de contratação flexibilizada. Mas as duas categorias são diferentes. Entre os últimos, por exemplo, só são contabilizados os que foram contratados por uma empresa, embora tal contrato não siga as normas do assalariamento padrão. Consequentemente, não são assegurados os direitos vinculados ao emprego registrado. Desse modo, os flexibilizados também se enquadram no grupo de trabalhadores submetidos à insegurança, instabilidade e baixa proteção social em razão de sua forma de inserção no mercado de trabalho. Enfim, pretende-se analisar tanto a categoria dos vulneráveis como a dos flexibilizados, considerando que cada uma delas representa um aspecto do trabalho precário. Enquanto os trabalhadores em situação de vulnerabilidade estão próximos da noção mais tradicional de informalidade, os contratados fora da modalidade padrão vinculam-se às novas relações e formas de trabalho criadas com o processo de flexibilização a partir das mudanças estruturais no trabalho, ligadas à reestruturação econômica e à desregulamentação dos mercados. Para este estudo serão analisados os dados da Pesquisa de Emprego e Desemprego do Distrito Federal (PED-DF), realizada pelo Dieese de 1992 a 2006. Sede do governo federal e palco de inúmeras discussões sobre direitos de crianças e adolescentes, desde a redemocratização e promulgação da Constituição Federal em 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990, o Distrito Federal tem uma trajetória singular com Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

respeito ao trabalho infantil. Com características predominantemente urbanas, apresenta baixo porcentual de trabalho de crianças e adolescentes,5 embora seja marcado como uma das regiões com maior índice de desigualdade do Brasil.6 Dados da PNAD de 2008 indicam que, das 567 mil pessoas de 5 a 17 anos residentes no Distrito Federal em 2008, 23 mil trabalhavam, o que corresponde ao porcentual de 4,05% de crianças e adolescentes trabalhadores (Oliveira, 2009). Embora os dados da PED considerem apenas os maiores de 10 anos em suas estatísticas, é possível analisar a categoria de trabalhadores entre 10 e 17 anos para se ter uma ideia da distribuição das crianças e adolescentes ocupados no Distrito Federal. Não se pode perder de vista, porém, que o resultado estará subestimando o total do trabalho infantil, por não contemplar as crianças menores de 10 anos que trabalham.7 De qualquer forma, estatísticas demonstram que o número de crianças trabalhadoras torna-se mais significativo na faixa dos maiores de 10 anos, avançando ainda mais depois dos 14 anos.8

5 Segundo os resultados da pesquisa sobre trabalho infantil da PNAD de 2001, as unidades da Federação que apresentaram os mais baixos níveis de ocupação da população de 5 a 17 anos foram o Distrito Federal (4,5%) e o Rio de Janeiro (4,8%). De acordo com Oliveira (2009), esse ranking permanece em 2008, com apenas uma pequena inversão: o Rio de Janeiro aparece com o menor índice de trabalho infantil (3,9%) e o Distrito Federal fica em segundo lugar, com 4,05%. O estado com o maior índice de trabalho infantil foi Tocantins, com 15,7% da população de 5 a 17 anos ocupada. 6 Segundo a PNAD de 2008, o Distrito Federal é a unidade da Federação com a maior disparidade de renda do país. Seu índice Gini é de 0,618, contra a média nacional de 0,521 (quanto mais próximo de 1, maior é a desigualdade de uma região). Além disso, o Distrito Federal não acompanhou a tendência de diminuição da desigualdade do resto do país (Nunes, 2009). 7 Segundo a PNAD, havia 237.280 crianças brasileiras de 5 a 9 anos trabalhando em 2006, o que corresponde a 1,4% das crianças desta faixa etária. 8 Ainda de acordo com a PNAD de 2006, 1.168.330 crianças de 10 a 13 anos trabalhavam no Brasil (8,2%). Entre 14 e 17 anos, eram 3.731.549 adolescentes, atingindo um nível de ocupação de 26,9%. [ 126 127 ]

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A PED começou a ser realizada em 1992 no Distrito Federal. Naquele ano, estimou-se que os ocupados entre 10 e 17 anos somavam 32.675 pessoas, correspondendo a 5,3% do total. Já em 2006 a faixa de 10 a 17 anos caiu para 17.288 pessoas, contando apenas 1,7% do total de ocupados, o que aponta uma redução significativa no porcentual de crianças e adolescentes que trabalham (Tabela 1). Os dados da tabela indicam que uma grande extensão dessa queda está relacionada a um número consideravelmente menor de crianças e adolescentes nas categorias de ocupação classificadas como vulneráveis. Tabela 1 – Estimativa das categorias vulneráveis por idade – Distrito Federal (1992-2006) 10-17 anos Categorias

1992

2006

18-24 anos

25-39 anos

1992

2006

1992

2006

40 e mais 1992

2006

Ass. privado sem carteira

8.461

6.568

18.041

37.983

13.805

31.221

5.083

13.028

Autônomo para o público

2.716

1.611

8.137

9.761

27.680

45.777

27.598

65.552

Doméstico diarista

303

180

1.205

1.348

5.889

10.375

4.086

10.332

Doméstico mensalista

10.709

1.951

25.635

17.687

19.078

37.488

6.193

22.121

Trab. fam. sem remuner.

2.853

308

1.741

407

1.510

201

870

346

Total de vulneráveis

25.042

10.618

54.759

67.186

67.962

125.062

43.830

111.379

Não 7.633 vulneráveis

6.670

87.906

122.794

210.007

319.206

123.272

248.032

Total de ocupados

17.288

142.665

189.980

277.969 444.268 167.102 359.411

32.675

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da PED-DF/Dieese.

Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

A faixa etária de 10 a 17 anos foi a única a sofrer um decréscimo entre 1992 e 2006. Todas as demais faixas etárias de trabalhadores ocupados apresentam um aumento no mesmo período.9 Considerando apenas crianças e adolescentes ocupando posições de vulnerabilidade, a diminuição foi de 57,6%: de cerca de 25 mil para pouco mais de 10 mil pessoas. Em comparação com o segmento de trabalhadores não vulneráveis, percebe-se uma redução mais significativa na quantidade de trabalhadores vulneráveis de 10 a 17 anos no período pesquisado. A queda mais impressionante foi no segmento dos domésticos mensalistas. Em 1992 havia mais de 10 mil crianças e adolescentes trabalhando como empregados domésticos no Distrito Federal. Em 2006, esse número diminuiu para menos de 2 mil pessoas, em uma redução de 81,8%. O trabalho doméstico tem grande peso entre as ocupações ditas vulneráveis. Somando-se os trabalhadores domésticos mensalistas e diaristas, o segmento de 10 a 17 anos representava 44% dos vulneráveis dessa faixa etária em 1992, baixando para 20% em 2006. Considerando-se todas as idades, o trabalho doméstico inicia com 38% dos vulneráveis, permanecendo na faixa de 32% em 2006. Assim, se no começo da pesquisa o peso dos menores de 17 anos que trabalhavam como domésticos era maior entre os vulneráveis, em 2006 eles atingem um porcentual menor que o total de trabalhadores domésticos, o que novamente demonstra a redução do trabalho doméstico entre crianças e adolescentes. É importante observar que isto se deu mesmo com a diminuição do número de vulneráveis de 10 a 17 anos e o aumento nas demais faixas etárias. Em relação a todas as crianças e adolescentes ocupadas, 33,7% eram domésticos em 1992 e 12,3% em 2006. Sabe-se que o trabalho doméstico pode ser considerado uma das posições mais vulneráveis entre os ocupados. Mesmo entre adultos, é

9 Em todas as outras faixas etárias há um aumento do número de trabalhadores vulneráveis, com exceção da categoria dos trabalhadores familiares não remunerados, que sofre um declínio geral, e do segmento de domésticos mensalistas entre 18 e 24 anos. [ 128 129 ]

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uma das categorias mais desvalorizadas, menos protegidas e com menor remuneração (Nunes, 1993; Theodoro; Nunes, 2000). A média dos rendimentos dos trabalhadores domésticos no Distrito Federal foi de 378,81 reais em 2006 (Tabela 2). Esse valor representa quase a metade do segundo menor rendimento do Distrito Federal no período, o dos assalariados sem carteira do setor privado (668,83 reais) e menos que a metade da média dos rendimentos das outras categorias de vulneráveis e contratados flexibilizados (785,91 reais). Ademais, o rendimento médio dos ocupados em geral, de 1.395,68 reais, é mais de três vezes maior que o dos domésticos.10 Tabela 2 – Rendimento médio por posição na ocupação (em reais) – Distrito Federal (2006) Posição na ocupação

Rendimento

Trabalhador doméstico

378,81

Sem carteira/setor privado

668,83

Terceirizado

754,39

Autônomo para o público

702,14

Autônomo para empresa

750,49

Sem carteira/setor público

1.484,59

Ocupados

1.395,68

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da PED-DF/Dieese.

Em sua grande maioria, o trabalho doméstico é ocupado por representantes do sexo feminino,11 sendo considerado porta de entrada no

10 A remuneração média do Distrito Federal é a mais alta do país. Segundo dados da PNAD de 2008 (Ipea, 2009), a renda média das trabalhadoras domésticas em todo o Brasil era de 350,77 reais. Esse valor corresponde a 42% da renda média pelas outras categorias de empregados (826,11 reais) e é menor que o salário mínimo da época (415 reais em setembro de 2008). 11 Segundo dados da PNAD de 2008, a maior proporção de trabalhadoras brasileiras está no serviço doméstico, chegando a mais de 15% das ocupadas (Ipea, 2009).   Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

mercado de trabalho para mulheres jovens pobres, de baixa escolaridade e pouco qualificadas (Santana, 2003). Ligado à reprodução, o serviço doméstico é naturalizado como função feminina pela divisão sexual do trabalho, ao passo que as atividades ligadas à produção, com maior valor e reconhecimento social, estariam no território do masculino. Todo trabalho relacionado com o cuidar e o alimentar, com a reprodução e a casa, encontra-se na seara do feminino (Nobre, 2004). Assim, mulheres com condições sociais desfavoráveis buscam no emprego doméstico uma forma de inserção no mercado de trabalho, com um serviço tradicionalmente visto como sua função natural, sua responsabilidade. Segundo a PED-DF, em 2006 havia mais de 100 mil trabalhadores domésticos no Distrito Federal, dos quais 94% eram mulheres. Esse número é quase idêntico ao do Brasil como um todo, que registrou 93,6% de mulheres entre os 6,6 milhões de trabalhadores domésticos em 2008 (Ipea, 2009). Além de ser profundamente marcado pela questão de gênero, o trabalho doméstico também assume um forte componente racial. De acordo com a PNAD de 2008, os negros representam mais de 60% dos trabalhadores domésticos no Brasil. Dessa forma, o emprego doméstico se constitui historicamente como uma atividade feminina e negra. Desvalorizado e estigmatizado, representa um traço permanente de uma herança patriarcal e escravocrata e símbolo da persistente desigualdade de gênero e raça no Brasil. Essa desvalorização pode ser exemplificada no campo dos direitos trabalhistas, pois somente em 2006 a trabalhadora doméstica teve acesso a alguns direitos, como trinta dias de férias, estabilidade para gestantes e direito a feriados religiosos e civis, como os demais trabalhadores (Lei nº 11.324, de julho de 2006). Além disso, mesmo sendo uma prática ilegal, mais de 70% não têm a carteira de trabalho registrada pelo empregador, o que se traduz em um altíssimo grau de informalização e consequente falta de acesso à proteção social (Ipea, 2009). Se a trabalhadora doméstica ocupa uma posição de vulnerabilidade mesmo entre adultos, para crianças e adolescentes a condição se [ 130 131 ]

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agrava. Essa ocupação foi classificada como uma das piores formas de trabalho infantil pela OIT e integra a lista de trabalhos proibidos para menores de 18 anos no Brasil, promulgada pela Presidência da República no Decreto nº 6.481,12 de 12 de junho de 2008. De acordo com o decreto, o trabalho doméstico incide em diversos riscos ocupacionais para crianças e adolescentes. Entre eles, mencionam-se esforços físicos intensos, isolamento, abuso físico, psicológico e sexual, longas jornadas de trabalho, trabalho noturno, exposição ao fogo, posições antiergonômicas e movimentos repetitivos, tracionamento da coluna vertebral e sobrecarga muscular. Embora o número tenha diminuído, cerca de 2 mil crianças e adolescentes ainda trabalhavam como empregadas domésticas no Distrito Federal em 2006. No Brasil como um todo havia 305 mil meninas na faixa de 10 a 17 anos ocupadas no trabalho doméstico em 2008 (Ipea, 2009). Dez anos antes, esse total chegava a 490 mil, o que mostra que a redução do trabalho doméstico infantil abrangeu todo o país, não se restringindo ao Distrito Federal.

12 Este decreto regulamenta os artigos 3º, alínea “d”, e 4º da Convenção 182 da OIT, que trata da proibição das piores formas de trabalho infantil e ação imediata para sua eliminação, aprovada pelo Decreto Legislativo nº 178, de 14 de dezembro de 1999, e promulgada pelo Decreto nº 3.597, de 12 de setembro de 2000, e dá outras providências. As piores formas de trabalho infantil compreendem: i) todas as formas de escravidão ou práticas análogas à escravidão, como venda e tráfico de crianças; sujeição por dívida; servidão; trabalho forçado ou compulsório, inclusive recrutamento forçado ou obrigatório de crianças para serem utilizadas em conflitos armados; ii) utilização, demanda e oferta de crianças para fins de prostituição, produção pornográfica ou atuações pornográficas; iii) utilização, recrutamento e oferta de crianças para atividades ilícitas, particularmente para a produção e o tráfico de entorpecentes, conforme definidos nos tratados internacionais pertinentes; e iv) trabalhos que, por sua natureza ou pelas circunstâncias em que são executados, são susceptíveis de prejudicar a saúde, a segurança e a moral da criança. O decreto pode ser encontrado na íntegra no seguinte endereço: . Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

Tabela 3 – Estimativa das categorias de contratados flexibilizados por idade – Distrito Federal (1992-2006) 10-17 anos 2006

18-24 anos 1992

2006

25-39 anos 1992

2006

40 e mais

Categorias

1992

Ass. privado sem carteira

8.407

4.682

17.781

30.243

13.541

29.318

5.007

1992

12.614

2006

Ass. público sem carteira

286

932

2.468

7.803

1.517

8.961

741

6.895

Autônomo 2.090 para empresa

2.343

5.157

7.668

7.722

15.059

3.829

9.224

Terceirizados

700

3.142

6.103

21.493

12.467

39.612

6.017

21.131

Total de flexibilizados

11.483

11.099

31.509

67.207

35.247

92.950

15.594

49.864

Ocupados

32.675

17.288

142.665

189.980

277.969

444.268 167.102

359.411

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da PED-DF/Dieese.

Diferentemente do que ocorre na categoria dos trabalhadores vulneráveis e dos ocupados em geral, não há uma redução expressiva do número de crianças e adolescentes que trabalham com contratados flexibilizados (Tabela 3). Há uma diminuição pontual de 3,3% em virtude da queda do número de assalariados sem carteira do setor privado, já contabilizada na Tabela 1. As demais posições que não seguem o contrato-padrão apresentam aumento em todas as faixas etárias, apontando que a flexibilização representa uma realidade importante no atual cenário do mercado de trabalho. Assim como nas outras faixas de idade, há uma concentração de terceirizados entre crianças e adolescentes com contratos flexibilizados. Isso pode ser explicado pelo forte crescimento da categoria dos terceirizados entre os trabalhadores sem contrato-padrão no período de 1992 a 2006, fenômeno que se repetiu entre todas as faixas etárias. Para a faixa de 10 a 17 anos os terceirizados aumentaram mais de quatro vezes, passando de 700 para mais de 3 mil pessoas em 2006. Esse fato torna-se ainda mais significativo ao se notar que a taxa de ocupação de crianças e adolescentes sofreu uma redução no mesmo período. [ 132 133 ]

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De forma semelhante à categoria de ocupados, 42% dos contratados fora da modalidade padrão em 2006 têm entre 25 e 39 anos, mas em seguida vem a faixa de 18 a 24 anos, que concentra 30,4% desse tipo de contratado (ante 18,8% de ocupados), e só depois os maiores de 40 anos, com 22,6% (ante 35,6% de ocupados). A faixa de 10 a 17 anos responde por 5% dos flexibilizados e por apenas 1,7% dos ocupados. Assim, 77,4% dos contratos atípicos são encontrados entre trabalhadores com até 39 anos, enquanto 64,4% do total dos ocupados estão nessa faixa etária. Há, portanto, um maior porcentual de jovens, o que indica que a flexibilização dos contratos teria um componente geracional. Os dados da Tabela 3 apontam para uma forte participação de jovens de 18 a 24 anos com contratos atípicos. Por outro lado, a variação de 1992 a 2006 indica que está havendo um aumento maior da flexibilização entre os mais velhos. É possível que o fenômeno esteja se universalizando entre as diversas faixas etárias. Ou os contratos à margem do padrão estão se ampliando entre os trabalhadores de maior idade com novas contratações ou está havendo um envelhecimento dos trabalhadores flexibilizados desde jovens. A expressiva quantidade de jovens entre os precarizados aparece em diversos países. É o caso, por exemplo, do Canadá, onde Vosko (2006) constata uma maior presença de jovens de 15 a 24 anos entre os trabalhadores precários. Pesquisadores questionam se esse dado deve-se à possibilidade do trabalho precário diminuir com o passar da idade ou se é um sinal do aumento da insegurança para o futuro do mercado de trabalho. Tabela 4 – Porcentual de trabalhadores vulneráveis e flexibilizados por idade – Distrito Federal (1992 e 2006) 10-17 anos Categorias Vulneráveis

1992 13,1

2006 3,4

18-24 anos 1992 28,6

2006 21,4

25-39 anos 1992 35,5

2006 39,8

40 e mais 1992 22,9

2006 35,4

Flexíveis

12,5

5

33,6

30,4

37,6

42

16,6

22,6

Ocupados

5,3

1,7

23

18,8

44,8

43,9

26,9

35,6

Fonte: Elaboração própria a partir de dados da PED-DF/Dieese.

Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

Pelo quadro que relaciona as categorias de ocupados às faixas etárias, fica claro que, embora haja uma proporção maior de contratações flexibilizadas entre os mais jovens (até 24 anos) em comparação com os ocupados em geral, essa proporção está diminuindo com o passar dos anos. Desse modo, 46,1% dos flexibilizados tinham até 24 anos em 1992 (faixa que representa 28,3% dos ocupados em geral). Em 2006 o número de crianças e jovens flexibilizados caiu para 35,4%. Tal queda se dá em grande parte pela redução geral de trabalhadores de 10 a 17 anos, não apenas dos contratados à margem da modalidade padrão, mas também do total dos ocupados. Por outro lado, nota-se ainda um aumento da quantidade de flexibilizados nas faixas de 25 a 39 anos e dos maiores de 40 anos. Essas faixas concentravam 54,2% dos flexíveis em 1992, ampliando-se para 64,6% em 2006. O padrão de concentração entre os mais jovens com aumento entre os mais velhos não apenas se repete entre os trabalhadores vulneráveis como se mostra ainda mais expressivo. Em 1992, 41,7% dos vulneráveis tinham até 24 anos, número que diminuiu para quase a metade em 2006 (24,8%). Na outra ponta, 58,4% dos vulneráveis em 1992 tinham mais de 25 anos, alcançando 75,2% em 2006. Reforça-se, com tais dados, a existência de um movimento de ampliação de trabalhadores flexibilizados e em situação de vulnerabilidade entre os maiores de 25 anos, faixa etária mais expressiva em termos de ocupados em geral. Assim, o que poderia ser explicado como um fenômeno de contornos geracionais, pela grande presença de jovens, tende a consolidar-se como um fenômeno generalizado entre trabalhadores de todas as faixas etárias do Distrito Federal. No entanto, no que concerne às crianças e adolescentes, é importante frisar que ainda estão sobrerrepresentadas tanto no âmbito do trabalho vulnerável como nos contratos flexibilizados. Apesar da sensível diminuição do trabalho infantil no Distrito Federal entre 1992 e 2006, os ocupados que estão na faixa de 10 a 17 anos continuam fortemente concentrados em trabalhos considerados precários. Os trabalhadores precoces [ 134 135 ]

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sofrem duplamente a fragilidade de sua condição etária. Além de ter que buscar os meios de sobrevivência por conta própria, contrariando a legislação trabalhista do país, submetem-se a condições degradantes em sua lida diária. Insegurança, instabilidade, baixas remunerações, vulnerabilidade e falta de proteção social são algumas das características que se repetem no trabalho de crianças e adolescentes no Brasil. Considerações finais Quando eu morava na Bahia, aí eu vim com sete anos de idade. Aí eu fui babá... Com sete anos... Criança cuidando de outra criança... Nossa, que horror. [...] Recebia não era dinheiro. Recebia roupa, comida... Era explorada, né, lógico. [...] Ah, eu durei pouco lá. Uns cinco meses... Fiquei com saudade da minha família e voltei pra lá. (Cecília, 25 anos, vendedora de feira).

O relato da vendedora de confecções, trabalhadora informal em uma feira do Distrito Federal, é apenas um exemplo do que ocorre com milhares de outras crianças brasileiras. Para a maioria dos brasileiros de baixa renda, a entrada no mundo do trabalho inicia-se cedo. As posições que crianças e adolescentes ocupam e suas modalidades de vínculo reproduzem um percurso de vulnerabilidade. Percurso que, em regra, repete a trajetória de seus pais, marcada, na maioria das vezes, pelo início precoce da atividade e pelo trabalho precário. Oriunda de uma família muito pobre do interior da Bahia, criada pela mãe juntamente com seis irmãos e sem nenhum apoio do pai, Cecília revela que sua primeira prática de trabalho se deu aos 7 anos de idade como babá. Mas a jovem não foi apenas vítima do trabalho infantil. Assim como 32,2% dos ocupados entre 5 e 17 anos em todo o Brasil (PNAD, 2009), ela não recebia salário em troca de seu trabalho, somente roupas e comida, configurando uma relação de exploração ainda mais grave. Embora os dados quantitativos Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

apresentados apontem para uma expressiva redução do trabalho em situação de vulnerabilidade para essa faixa etária, esse tipo de relação de trabalho ainda é comum entre crianças e adolescentes. Em sua dissertação sobre o trabalho doméstico de adolescentes, Santana (2003) realizou uma pesquisa com 332 meninas de 14 a 17 anos que frequentavam o ensino noturno em escolas públicas de Natal (RN). Destas, 46% estavam no Ensino para Jovens e Adultos (EJA) por trabalharem como domésticas durante o dia, e 35% moravam no local de trabalho. Entre as que residiam com os patrões, 97% não tinham carteira assinada, ganhavam cerca de 70% do salário mínimo (as mais novas recebiam apenas 42% desse valor) e tinham jornadas de trabalho muito extensas. Em média as jovens trabalhadoras apresentavam atraso escolar de quatro anos, mas 12% tinham mais de sete anos de atraso. Entrevistas em profundidade com catorze delas apontam que as adolescentes vêm do interior, são de famílias pobres e começaram a trabalhar entre os 10 e 14 anos. A maior parte relatou más condições de trabalho (não tinham carteira de trabalho e desfrutavam de poucos períodos de descanso – somente duas chegavam a receber o salário mínimo), além de sofrer humilhação, preconceitos e desconfiança por sua categoria de empregadas domésticas. Em levantamento recente realizado a partir de dados da PNAD de 2008, constatou-se que 39,6% dos brasileiros começam a trabalhar entre os 10 e 14 anos de idade e 13,5% deles se inserem no mercado com menos de 9 anos. Assim, mais da metade da população do país tem o primeiro emprego em idade proibida pela legislação brasileira e 78,6% de todos os brasileiros estreiam no mercado até os 17 anos. A pesquisa mostra, novamente, o Distrito Federal e o Rio de Janeiro como as duas unidades da Federação que apresentam a menor exploração do trabalho infantil. Ao passo que 53% dos trabalhadores brasileiros tiveram o primeiro emprego com até 14 anos, esse porcentual cai para 33,3% no Distrito Federal e para 29,8% no Rio de Janeiro (Flores, 2009). [ 136 137 ]

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Mesmo nos estados com menor porcentual de trabalho infantil, um terço dos trabalhadores iniciou suas atividades antes da idade permitida, sinal de que o trabalho de crianças e adolescentes ainda precisa ser considerado uma importante questão social. Graças a uma série de políticas concebidas para garantir os direitos de crianças e adolescentes – que têm como marco o ECA e persistem com ações mais direcionadas ao combate ao trabalho infantil, tais como o Peti e a regulamentação da proibição das piores formas de trabalho infantil, em esforço conjunto do Estado, de organizações da sociedade civil e de organismos internacionais –, está havendo uma melhora paulatina nesse campo, o que pode ser comprovado pelas estatísticas. No entanto, a dificuldade de erradicar o trabalho infantil pode ser vista na persistência de um porcentual de crianças e adolescentes que integra o contingente de trabalhadores do país. Estudos feitos para analisar a questão concluíram que é preciso enfrentar os condicionantes estruturais do trabalho infanto-juvenil, como a pobreza e a desigualdade, além de fatores culturais e subjetivos, como a representação de trabalho que dignifica o ser humano ou seu efeito educativo para crianças e adolescentes (Campos; Alverga, 2001; Carvalho, 2004, 2008). O que pode ser questionado é por que a alternativa de socialização pelo trabalho somente é colocada para as crianças das classes populares, ao passo que as outras gozam do direito de serem crianças (Dal Rosso; Resende, 1986). Partindo de uma série de leituras e pesquisas sobre o trabalho precoce, este texto defende que todas as crianças tenham a oportunidade de experienciar práticas mais saudáveis de socialização, que dignificam sua condição de ser humano em formação. Para isso, um fator importante é o investimento em uma educação de qualidade e acessível para todos, que tenha a capacidade de atrair e manter crianças e adolescentes em um programa nos moldes da educação integral. É preciso que o período ampliado dentro da escola não signifique apenas uma ocupação do tempo dos estudantes, mas que seja pautado em um projeto pedagógico estruturado de forma a assegurar o desenvolvimento da criança e do adolescente como ser humano. Trabalho infantil, trabalho precário e a vulnerabilidade de crianças e adolescentes

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Infância e juventude

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A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho Licinia Maria Correa

Os elos entre juventude, escola e mundo do trabalho têm sido amplamente discutidos no meio acadêmico nas três últimas décadas. A começar por temas que envolvem as mudanças no trabalho e seu significado para a sociedade contemporânea, passando pelos áureos tempos de plena expansão do emprego até chegar ao período da reestruturação produtiva, do desemprego em massa que reconfigura as relações no mundo do trabalho. Neste debate, destaca-se um conjunto de teses e argumentos que enfatizam ora a aversão dos jovens à escola, ora a inadequação da escola ao trabalho. Em resposta às concepções generalizantes e no intuito de apresentar um quadro argumentativo da realidade do trabalho juvenil, nos referenciamos na investigação desenvolvida por Pais (1993) que, ao pesquisar jovens portugueses de diferentes estratos sociais, sugere a existência de reações diferenciadas desses sujeitos em relação ao trabalho, emprego e desemprego. No caso do Brasil, Madeira (1986), Frigotto (2004) e Guimarães (2005) examinam, sob perspectivas diferentes, porém convergentes, as questões conjunturais e estruturais que interferem, afetam e constituem o imaginário e a realidade do trabalho juvenil.

Ao dirigir-se para a realidade juvenil portuguesa, Pais (1993) constata que um conjunto diversificado de fatores interfere nas representações que os jovens têm acerca do trabalho e do emprego. As estratégias de inserção profissional dos jovens das camadas médias e populares estão condicionadas por fatores externos ao indivíduo, tais como as oscilações do mercado de trabalho que afetam a estrutura das oportunidades de emprego e determinam suas trajetórias sociais, e por fatores internos, que concernem mais aos indivíduos e à composição familiar. A conjugação desses fatores irá incidir decisivamente sobre a relação e o valor atribuído ao trabalho. Um aspecto evidente na pesquisa é que a flexibilização contratual e a alta rotatividade nos postos de trabalho não configuram uma total negatividade. Além de estarem conscientes do efeito da introdução das novas tecnologias, os jovens também se sentem em condições de analisar o custo e o benefício do trabalho realizado e, em algumas situações, consideram a aquisição da experiência laboral um fator preponderante. Tal assertiva não subtrai as frustrações juvenis quanto ao futuro profissional, o sentimento de impotência frente ao desemprego e a precariedade das condições de trabalho. Todavia, serve para enfatizar que qualquer proposição teórica no tocante ao trabalho juvenil deve considerar os muitos significados do trabalho para os jovens. Deve-se atentar ainda para os componentes socioeconômicos, de escolaridade, de gênero, étnicos e etários que afetam os interesses e as necessidades laborais dos grupos juvenis. Quanto à situação de desemprego, esta também revela comportamentos, atitudes e sentidos diferentes para os jovens pesquisados por Pais (1993). Já na família e na escola, os jovens das camadas populares são gradativamente conscientizados das dificuldades de obtenção de emprego e talvez por isso sejam aparentemente menos afetados pelas frustrações em comparação com jovens da classe média. Como afirmou um jovem operário português, a entrada precoce no mercado de trabalho e a escolarização precária lhes preparam para encarar as opor[ 142 143 ]

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tunidades que aparecem e não alimentam expectativas de ajustar suas aspirações profissionais às qualificações escolares, como é o caso dos jovens da classe média. Pais (1993) observou que os jovens não diplomados e de origem operária não creem em uma direta e positiva vinculação entre escolarização e reais oportunidades de emprego, têm uma relação mais instrumental com o trabalho e talvez por isso consigam manter-se em atividade laboral por mais tempo. Contrariamente, os jovens diplomados buscam rentabilizar o capital escolar, procurando um tipo de trabalho mais próximo das expectativas geradas pela escolarização alongada. Observa-se ainda que, no caso das jovens portuguesas, o risco de desemprego e precariedade é maior para aquelas menos escolarizadas e pertencentes às camadas sociais mais baixas. Estas são fatalmente excluídas do mercado de trabalho formal, especialmente as que se casam e têm filhos, pois são direcionadas para o trabalho doméstico não remunerado. No relatório encomendado pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), Madeira (1986)1 circunscreve os elementos centrais de transformação da vida social que afetaram diretamente a juventude brasileira: escola, família e trabalho são categorias centrais para compreender as mudanças estruturais que perpassam nossa sociedade, especificamente a juventude. Ao elaborar um diagnóstico sobre a situação dos jovens nessas diferentes dimensões, Madeira (1986, p. 15) avalia o impacto das mudanças quantitativas e qualitativas na estrutura econômica brasileira nas condições de trabalho de crianças, adolescentes e jovens. Efetivamente, o diagnóstico propunha-se 1 Este diagnóstico contou com a colaboração de Albertina Costa e foi encomendado por ocasião do Ano Internacional da Juventude, decretado em 1985 pela Organização das Nações Unidas. O documento, baseado fundamentalmente em dados censitários, visava a dimensionar o papel dos jovens nas tendências da dinâmica demográfica, nas alterações na organização familiar, nas condições de trabalho e de escolaridade etc. A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

duas tarefas básicas e complementares – a de mostrar como estas parcelas da população foram condicionadas a participar das tendências do mercado de trabalho ocorridas ao longo deste período, contribuindo à sua maneira para os novos contornos que assumiu a sociedade brasileira, e em segundo lugar, mostrar como estas mudanças acionaram mecanismos de acesso pelos setores populares à identidade jovem.

Madeira destaca alguns limites das pesquisas demográficas e econômicas, pois estas, ao incluírem a temática da juventude ou das mulheres, por exemplo, desconsideravam que esses grupos biodemograficamente delimitados acrescentam variáveis específicas ao conjunto das variáveis socioeconômicas clássicas, quais sejam: renda, ocupação, zona residencial, nível educacional etc. Tais limites demonstravam a ausência de estudos que considerassem a dimensão juvenil, sua participação singular na População Economicamente Ativa (PEA), bem como a incidência mais direta das transformações sociais sobre esse grupo. Referindo-se à necessidade de estudos sobre a condição juvenil, Madeira aponta dois aspectos que deveriam pautar o debate: o primeiro é a necessidade de relativizar o problema da marginalidade e da pobreza nas análises sobre a inserção de crianças2 e jovens no mercado de trabalho. O segundo é a importância de indagar sobre as relações de trabalho e o sentido da escolaridade, não somente a partir da ótica do capital, mas tomando em conta essa categoria, esse ator específico. Se admitirmos que o trabalho é um direito e um componente essencial na formação do jovem, ele deixa de ser a marca da tragédia do subdesenvolvimento familiar e se configura como uma prática que tende

2 Na realização do diagnóstico, ocorrido antes da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente, Madeira (1986) subdividiu as faixas etárias em: 10-14 anos – crianças; 1519 anos – adolescentes; 20-24 anos – jovens. Além de ser uma subdivisão oferecida pelo Censo, a autora já considerava as diferenças de expectativas e responsabilidades para cada um desses segmentos etários. A partir de 1988, confirmou-se o dispositivo legal de erradicação do trabalho infantil, bem como de regulamentação do trabalho juvenil. [ 144 145 ]

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a generalizar-se em famílias pobres e não pobres. Madeira (1986) adverte que é extremamente limitado focalizar a problemática do jovem trabalhador na ótica recorrente da pobreza; deve-se recuperá-lo analiticamente como parte integrante e estrutural do processo social de produção. Em se tratando das relações de trabalho, o diagnóstico confirmava que o problema do desemprego aberto ou oculto (mascarado pelo trabalho precário), a transitoriedade, a dupla atividade (escola-trabalho) e a intermitência são as características que segmentam os jovens no Brasil e na América Latina. Quanto à escolaridade, os dados evidenciaram que, ao longo da década de 1970, ela tornou-se uma importante credencial para o acesso ao mercado de trabalho. Nota-se, de um lado, a visível transformação nos níveis educativos entre os jovens e a extensão da escolaridade até o ensino médio, e do outro, o atraso escolar como um fenômeno disseminado e a combinação escola-trabalho. Aspectos que, consequentemente, vão empurrando os jovens pobres para os cursos noturnos e supletivos. Madeira (1986, p. 27) acrescenta que, ao analisar os motivos que levaram os jovens a interromper seus estudos, aparecem mais as dificuldades relativas ao acesso à vida escolar ou à sua própria estrutura que a necessidade de trabalhar [...] e principalmente por situações ligadas à própria estrutura do ensino, no que se refere à organização, conteúdo e didática.

No intervalo de duas décadas, produziu-se uma série de dados quantitativos e estudos qualitativos que focalizam atentamente as relações entre juventude e trabalho e debruçam-se sobre: trajetórias ocupacionais de jovens para captar suas representações sobre trabalho e desemprego; os novos e diferenciados significados do trabalho juvenil a partir de seus macro e microcontextos; suas trajetórias biográficas e seus perfis. Em sua análise, Frigotto (2004) conjuga dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999 com o Censo Demográfico de 2000 para examinar a temática juventude, trabalho e educação. Os aspectos priorizados nesse exame são: o dimensionamenA (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

to do universo juvenil brasileiro e a inserção precoce dos jovens no mercado de trabalho; as questões conjunturais e estruturais que circundam o problema e as políticas públicas de caráter emergencial e estrutural que se situam em face da problemática. Guimarães (2005), por seu turno, baseia-se na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira3 para discutir o significado e a importância do trabalho para os jovens brasileiros. Partindo de um recorte de classe social, Frigotto (2004) delimita o universo juvenil investigado: são filhos da classe trabalhadora, imersos em empregos precários no campo e na cidade, atravessados por particularidades geográficas, socioculturais e étnicas. Esses jovens, em suas singularidades, se aproximam quando estão em jogo as condições de trabalho e a inserção precoce e precária no mercado de trabalho formal e informal. Compõem ainda esse universo jovens que trabalham para o tráfico ou nas redes de prostituição infanto-juvenil. A sobreposição de pobres e negros é um componente fundamental nas análises estatísticas do PNAD, que revelam uma desvantagem dos negros quanto à inserção no mercado laboral. Entre as crianças trabalhadoras na faixa etária de 5 a 9 anos, 61,7% eram afrodescendentes. Na faixa de 10 a 14 anos, eram 61,3%, de 15 a 17 anos (idade legal para estágios e ingresso no mercado formal), 53%, e, de 18 a 24 anos, a proporção cai para 41%. Esses indicadores, quando associados às taxas de escolaridade, deixam mais visíveis as desigualdades entre jovens negros e brancos, bem como os problemas relativos à trajetória escolar dos jovens brasileiros. Basta saber que, segundo o Censo de 2000, na população juvenil entre 18 e 24 anos, somente 46,8% estavam na escola, dispersos entre alfabetização e pós-graduação (Frigotto, 2004). A distorção idade-série também tem suas implicações na vida juvenil. Em 2000, 48% dos jovens entre 15 e 24 anos eram assim distribuídos:

3 Esta pesquisa deu origem à obra Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa nacional (Abramo; Branco, 2005). [ 146 147 ]

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6,2% na alfabetização e 42,6% no ensino fundamental. Os indicadores de raça indicavam que, em 1999, 46% dos brancos não concluíram o ensino fundamental, contra 66,5% de negros. O ensino superior era uma realidade para apenas 2% dos jovens negros. Nesse sentido, o desmonte da escola básica é, para Frigotto (2004), um problema da mesma ordem que o acesso à educação. A baixa escolaridade não é mais relevante que a qualidade do ensino. Da mesma forma, o fato de os jovens negros terem os piores empregos, remuneração e escolaridade não se resume ao pertencimento étnico-racial, mas toma parte em um engendrado mecanismo socioeconômico que, desde o longo processo de escravidão, lhes empurra às camadas sociais mais baixas. Frigotto (2004, p. 193, grifo no original) sinaliza: [...] a inserção precoce no emprego formal ou ‘trabalho informal’, a natureza e as condições de trabalho e a remuneração ou o acesso ou não à escola, a qualidade dessa escola e o tempo de escolaridade estão ligados à origem social dos jovens.

Guimarães (2005) parte das variações nas relações entre sociedade e mundo do trabalho para analisar as mudanças no trabalho e seu significado sobre as formas de sociabilidade contemporânea. Com isso, a autora desconstrói discursos que apontariam a decrescente importância do trabalho para os jovens, em virtude da reestruturação produtiva e das modificações nos mercados de trabalho internos e externos. A autora começa dizendo que, para compreender as relações entre juventude e trabalho, é relevante demarcar que o construto teórico “juventude” não é unívoco e que o trabalho como campo específico tem suas próprias regras para cortes etários ou geracionais. Guimarães ressalta que, no mercado de trabalho, encontram-se distintas formas de socialização profissional de jovens que, por seus variados pertencimentos, constroem variadas percepções, representações, aspirações e interesses a propósito do trabalho. Guimarães (2005) informa que o intrigante achado na pesquisa Perfil da Juventude Brasileira foi justamente este: o trabalho é tema A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

que está na ordem do dia para os jovens brasileiros, ou seja, é dotado de múltiplos significados e aparece para os jovens como um valor, uma necessidade e um direito. O trabalho é uma necessidade sentida pelos jovens, a tal ponto que, instados a escolher, aparece como o primeiro, segundo e terceiro assuntos de interesse. Assuntos que, no seu reverso, constituem um problema quando o fantasma do desemprego entra em cena. Novamente trata-se de um problema que afeta mais diretamente um segmento etário e socioeconômico específico: os jovens entre 18 e 20 anos com baixa escolaridade e renda. Guimarães destaca que os jovens entendem o trabalho como direito, como condição de cidadania. O direito ao trabalho, ao emprego, a ter uma profissão é significativo para 15% como resposta única e para 30% quando há mais de uma resposta. A centralidade do trabalho no imaginário juvenil e seu significado subjetivo não são uma coincidência. Como já sinalizava Madeira (1986), Guimarães conclui que uma grande parcela da juventude brasileira tem uma longa experiência no mundo do trabalho e a primeira evidência é que esta inserção é impactada pela dinâmica demográfica e por seus determinantes. As transformações no aparato produtivo explicam parcialmente as relações entre oportunidades seletivamente preenchidas e percursos no mercado de trabalho. Contudo, é preciso atentar para os fatores que geram o alargamento e as descontinuidades etárias intervenientes na dinâmica da oferta de trabalho. Uma segunda evidência nesse quadro são as relações entre escolaridade e oportunidades de trabalho, o que nos encaminha para uma análise dos padrões de inclusão e exclusão que se manifestam no sistema escolar brasileiro. Deterioram-se as condições de trabalho para os jovens com baixa escolaridade, na mesma proporção em que aumentam as chances de emprego daqueles que concluem o ensino médio. Os que estão fora do sistema escolar e os que enfrentam a distorção idade-série têm maiores dificuldades de incluir-se no mundo do trabalho, principalmente no mercado formal. [ 148 149 ]

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A terceira evidência são as formas de ingresso juvenil no mercado de trabalho. Os mecanismos informais de intermediação são os mais eloquentes instrumentos para iniciar as incursões no mercado de trabalho. Geralmente, este modo protegido e supervisionado de buscar algum tipo de rendimento e independência financeira conta com a participação da rede de familiares, conhecidos e amigos. Essas intensas transições, que deveriam ser uma exceção, constituem a regra na maior parte das trajetórias ocupacionais juvenis nos mercados metropolitanos. Não obstante as condições precárias e instáveis de inserção laboral, Guimarães (2005) reafirma que as dificuldades de inserção no mundo do trabalho não diminuem seu significado e sua importância para a experiência social juvenil. Ao contrário, suscitam a produção de novos e diferenciados significados, que refletem os distintos contextos e trajetórias ocupacionais. Durante nossa pesquisa de doutorado, procuramos dialogar com um grupo de jovens acerca dos significados e sentidos que atribuíam à escolarização e nos deparamos com a questão da identidade desses sujeitos: jovens estudantes ou jovens trabalhadores? Dubet e Martucelli (1996) respondem a essa pergunta argumentando que a construção da experiência escolar não decorre de uma escolha feita a priori pelos jovens ou da faixa etária. Se os jovens, ou melhor, a vida juvenil está no centro do debate sobre a escola, há razões para isso. Primeiro, vem o fato de que a experiência social, a própria subjetividade do indivíduo deve ser construída pelos atores coletiva e individualmente. Nesse sentido, os jovens entram na cena social instados a explicar e a equacionar sua relação com o mundo. O reconhecimento da juventude como um grupo social ou como uma experiência de massa na sociedade moderna confere a esses indivíduos relativa autonomia na maneira de gerir a vida, observam os sociólogos. Contudo, no mesmo momento da vida em que aprendem a ser jovens, devem aprender por si mesmos a gerir suas relações com o universo escolar e com o mundo do trabalho. A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

Os jovens pesquisados4 nos respondem que é na conjugação de seus modos de socialização familiares e suas formas de inserção no mundo do trabalho que a escola adquire diferentes significados (Correa, 2008). Não existe uma identidade a priori, nem de estudante, nem de trabalhador. O que existe são biografias juvenis nas quais se inscrevem as relações estabelecidas com o mundo do trabalho e se constituem experiências e trajetórias escolares, ora exitosas, ora mal-sucedidas. A (in)conciliável relação entre jovens, mundo da escola e mundo do trabalho […] se você for pegar, por exemplo, meu histórico escolar, você vai ver que sempre foi muito conturbado, eu nunca tive fixo numa escola… eu nunca estudei um ano direto numa escola... quando eu comecei a estudar, eu não fiz pré-escola, eu fui pra primeira série, aí estudei três vezes na primeira série numa fase de... uma situação na minha vida, porque minha mãe tava separando do meu pai, e eu tive que... todos os meus irmãos tivemos que sair da escola... aí, eu comecei a vender bala, comecei a trabalhar pra conseguir recursos pra ajudar na renda familiar...Voltei e fiz depois uma prova e matriculei na terceira e saí de novo, mas desta vez eu não me lembro porque eu saí, mas a maioria das vezes foi por causa do trabalho... (Cláudio)

Estudante trabalhador ou trabalhador estudante? Em que categoria se enquadram os jovens pesquisados por seus pertencimentos ao

4 O objeto da tese é a presença da escola na constituição das identidades juvenis. Investigaram-se os sentidos e significados que jovens urbanos e pobres atribuem à experiência escolar. A pesquisa, de abordagem qualitativa, foi realizada com um grupo de jovens estudantes do ensino fundamental e médio, com idade variável entre 17 e 26 anos, oriundos da periferia urbana de São Bernardo do Campo. A coleta de dados efetivou-se em duas etapas, no período 2005-2007, com base em entrevistas intensivas individuais, entrevistas em grupo e observação. O diálogo do objeto com a teoria foi construído no aprofundamento da noção de juventude e na análise sócio-histórica da escola. [ 150 151 ]

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mundo do trabalho? Controvertido tema, o ingresso precoce ou tardio no mundo do trabalho é uma realidade para os jovens pesquisados. Em observações e entrevistas, registramos três formas de demarcar as experiências escolares juvenis em interação com o trabalho. Em um primeiro registro, aparece a inserção precoce, o trabalho infantil que, em total desrespeito à infância e à adolescência, manifesta sua desarmonia com a vida escolar. As rupturas escolares que se sucedem na infância e na adolescência são explicadas, na maioria das vezes, por uma “entrada forçada” no mundo do trabalho e, quase sempre, no contato com a rua. A sensação de liberdade que a rua proporciona e a ausência de rotina que essa “liberdade” implica, combinadas às chances de ganhar dinheiro para ajudar a família, são as razões que os jovens apontam para seu afastamento do mundo escolar quando ainda eram crianças e adolescentes. Este é o primeiro vínculo rompido. Pudera, é o mais frágil. Pode-se considerar que essa ruptura associa-se também à existência de uma relação instrumental que as famílias estabelecem com a escola. Thin (2006, p. 221) assevera que, para muitos pais, a escola está classificada ao lado do trabalho, no sentido de que as atividades escolares só têm sentido se as famílias das classes populares puderem associá-las aos objetivos sociais que atribuem à escolarização de seus filhos […] a importância do trabalho e do trabalho “sério” está também na origem da reserva dos pais com relação às atividades pedagógicas que aparentemente são menos trabalhosas que as aulas e os exercícios. Eu parei de fazer aqueles cursos porque eu estudava o dia inteiro… Aí, não dava mesmo porque eu faltava uma semana e ficava difícil... é que meu pai mesmo pega no meu pé direto... ele acha que é melhor arrumar um emprego... é complicado porque fica aquela cobrança de emprego, todo dia ele pega e fala: “Não sei o que tá fazendo na escola”... Meu pai fala que tenho que procurar uma ocupação pra fazer... Mas procurar emprego, a gente procura, só que não acha, meu… Você procura, mas não consegue... até pra minha irmã de 16 anos meu pai A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

queria procurar trabalho. Tá eu, ele, meu irmão e minha irmã desempregada, só minha madrasta trabalhando... isso aí é forte, meu... eu, quando tô livre, saio pra jogar bola, o que eu não consigo é ficar em casa. Quando eu tava ocupado, estudando de manhã, tarde e noite, meu pai mesmo falava pra mim parar, que eu não ia aguentar, que eu ficava o dia inteiro sem comer, que eu tava comendo demais quando chegava em casa.… (Marcos)

Outro fato observado entre os jovens é que as mulheres, mesmo trabalhando, tendem a manter certa regularidade em seus processos de escolarização até a conclusão do ensino médio. Apelando para o ensino noturno e para as transferências de turno, essas jovens chegaram ao final do ensino fundamental ou médio mesmo a despeito de tantas agruras. Quando eu fui pro colegial, foi na época que eu comecei a trabalhar... antes eu trabalhava em algumas coisinhas, mas no colegial foi a época que eu comecei a trabalhar mesmo, tanto que eu mudei o horário de escola, porque eu sempre estudei à tarde ou de manhã… Aí, eu mudei pra noite pra eu poder trabalhar durante o dia. E nesta fase de conciliar trabalho e escola, acho que foi quando eu tive mais dificuldade, porque o pensamento que eu tinha antes era que a escola ia ser meu pontapé, o meu passaporte pra mudar a realidade e quando eu comecei a trabalhar, eu comecei, sem querer, a priorizar o trabalho. Então, a escola não era mais o que eu imaginava antes. Tanto que teve uma época que eu quase parei de estudar porque não tava conseguindo, é... lidar… Aí, eu faltava muito da escola, aí tinha um grupo de professores que já me conhecia antes que sentaram comigo, conversaram... (Eugênia)

As jovens que se ocupam do trabalho doméstico não veem dificuldades em desempenhar as duas funções, a de dona de casa ou empregada doméstica e a de estudante. Com a exceção de Simone, que, além dos “problemas de aprendizagem”, engravidou e casou-se, as outras jovens que trabalharam fora de casa na infância e na adolescência (Eugênia, Mariana e Kátia) conseguiram conciliar o mundo do trabalho com a escola. [ 152 153 ]

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Eu tinha 12 anos e ia fazer 13... Apesar de que eu estudava à noite! Mas por quê? Porque eu falei pra minha mãe que eu queria trabalhar e aí nessa época eu comecei trabalhar mesmo... Eu trabalhei mesmo um tempo em casa de família e depois eu parei... Só que com 12 anos eu já tava trabalhando, né... Eu comecei a trabalhar e aí que na época eu trabalhava, eu estudava e aí que era uma coisa terrível, né... Eu voltava da escola e chegava em casa e aí tudo bem, mas eu num... Aí, eu ficava super cansada e eu lembro que dava quatro horas e eu já tava passada de sono! Mas quando eu voltava pra escola, nessa coisa de voltar pra escola, nesses retornos meu, sempre tinha vontade de estudar mesmo... “Eu vou estudar, vou terminar e dessa vez eu não saio mais!”... Mas aí eu acabava saindo, que nem essa última vez, né... (Simone)

Com os homens, não ocorre o mesmo. A entrada no mundo do trabalho significa ir para a rua, sair da rotina familiar ou comunitária, fato que provoca constantes rupturas escolares, ocasionadas pelas dificuldades em conciliar trabalho e escola. Para Sarti (1996), a diferença reside de fato em uma divisão hierárquica e complementar que identifica a figura masculina com o externo, o público e a rua, e a figura feminina com o interno, o privado e a casa. Soma-se a isso a necessidade de buscar a subsistência, que empurra as mulheres para o trabalho como babás, faxineiras e empregadas domésticas, e os homens para as ruas, trabalhando como engraxates, lavadores e guardadores de carro, ajudantes de feira, vendedores, dentre outras ocupações: O trabalho, em alguns momentos, dependendo do que você faz, acaba prejudicando sim. Eu, por exemplo, acabei parando de estudar algumas vezes por causa do trabalho. Quando eu trabalhava de ajudante de caminhoneiro, chegava meia noite e não tinha tempo de ir pra escola. […] Pra mim, o trabalho atrapalha sim. Porque mesmo tendo um incentivo, esse trabalho atrapalha porque a maioria das atividades exige uma dedicação maior e você acaba tendo que ficar até mais tarde no trabalho, tendo que participar de atividades fora do município e isso prejudica. (Cláudio) A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

Em seu estudo sobre a moral dos pobres no mundo do trabalho, Sarti (1996) certifica que, para os homens das camadas populares, a identidade de trabalhador confunde-se com a de pobre. São pobres e trabalhadores e é através do trabalho que demonstram não ser pobres. É através de sua honestidade, de sua disposição de vencer que os pobres sentem-se iguais aos ricos. Esse valor atribuído ao trabalho compensa a desigualdade social. É um valor positivo que não se encerra na ideia de ascensão social, mas se afirma no valor positivo do trabalho. Se ser pobre é uma negatividade, ser trabalhador dá ao pobre uma dimensão positiva. Eu tava pensando esse dias: “Que vida que é essa?” Daí eu xinguei mesmo… Que vida do caralho é essa, meu? A gente vai e bate de cabeça de um lado e pro outro e não consegue nada, meu… Tinha dia que eu vinha dentro do ônibus chorando. Vê os outros aí, trampando. Todos com suas motos, suas coisas. E eu aqui a pé, sem dinheiro, sem nada. Que é isso, meu? Piada? E aí? A gente fica com besteira na cabeça. Aí eu começo a pensar... “Vou fazer que nem meu irmão [refere-se ao irmão que entrou no mundo do crime], se meu irmão se deu bem eu também vou me dar bem”. (Marcos)

A autora reitera a diversidade de sentidos que o trabalho adquire para o pobre. O trabalho é, tanto para o homem quanto para a mulher, uma forma de cumprir o papel familiar de provedor. No entanto, para o homem é também a afirmação da identidade masculina de força. Não há necessariamente uma inadequação da escola ao trabalho, mas uma centralidade do trabalho na moral dos pobres, trabalhadores e homens. Pais (1993) também ressalta o conjunto de fatores que interferem nas representações que os jovens fazem do trabalho e que comandam suas estratégias de inserção profissional. A relação com o mundo do trabalho não se atém somente a processos externos (mercado de trabalho, subsistência), mas também a processos internos que dizem respeito aos indivíduos e suas famílias. [ 154 155 ]

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Quando meu pai faleceu, minha mãe ficou daquele jeito dela, muito calmo… Aí ela teve que trabalhar pra cuidar dos meus irmãos… mas ela teve problema de saúde e não pôde trabalhar mais, então eu tive que sair pra trabalhar. Eu não tinha conhecimento nenhum, de nada, mas tinha que acordar quatro horas da manhã pra trabalhar… eu era uma menina de 11, 12 anos. (Mariana)

Talvez por isso, quando chegam à juventude e buscam formas diferenciadas de inserção laboral, os jovens passam a demarcar dois tipos de trabalho: o trabalho informal, diretamente ligado à subsistência, e o trabalho formal, que se vincula à realização pessoal. Essa segunda maneira de encarar a relação com o trabalho recai sobre a experiência escolar. Ou seja, os jovens reclamam não somente do trabalho informal, da intermitência, do pouco dinheiro que ganham, mas também de sua interferência nos estudos, sem que isso acarrete nenhum proveito ou benefício social, nenhuma forma de realização pessoal ou profissional. Licinia: Você faltava na escola por quê? João: Porque tinha dia que chegava, por exemplo, dia de sexta-feira, o número de carros pra lavar era muito, então a gente até cinco horas da tarde recebia carros... Então, tinha dia que cinco horas da tarde, tinha dez carros pra lavar e eu tinha que ficar até o último carro sair pra poder ir embora... Isso normalmente dia de sexta, às vezes dia de quinta e de vez em quando na segunda-feira também tinha. Licinia: Você acha que essa é uma das razões pra você... João: Ah, eu ter repetido nesse tempo, foi sim… aí é fogo, porque eu não ia na escola, né?

Quando falam do trabalho em geral, os jovens pesquisados veem nele um sentido instrumental. Como declara Pais (1993, p. 251), para os jovens do meio operário, “ter um trabalho qualquer é melhor do que não ter trabalho algum e um trabalho em que se ganha mais dinheiro é melhor do que um trabalho em que se ganha menos”. Em síntese, o trabalho é tomado como uma necessidade, principalmente entre os A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

jovens desempregados, e como uma fonte de independência. Contudo, os jovens valorizam o fato de ocuparem “um posto de trabalho” e não este ou aquele trabalho em si. Poucos estabelecem uma relação intrínseca entre o que fazem e sua escolarização ou a realização profissional. Marcelo: Teve uma hora que eu optei pelo emprego, né. Ou você estuda, ou... ganha alguma coisa, né? Licinia: Era o trabalho, a questão de ter que trabalhar? Marcelo: É, era por causa da questão do trabalho. Se fosse um serviço que você... Como eu te falei, que tenha sua garantia, tenha seu registro, você pode chegar e falar: “Olha, eu tô estudando, então o meu horário tem que ser esse”. Eles te colocam de manhã... te colocam à noite depois das aulas... Te colocam à tarde, né... Mas não, é aquele que você vai e não sabe a hora que tá voltando. Então, isso aí dificulta muito. Licinia: Que tipo de trabalho você fez? Foi ajudante de pedreiro, como você falou… E teve alguma outra coisa? Marcelo: Eu já trabalhei de office boy, trabalhei com vidraçaria, com vidro temperado, entreguei leite também... já puxei carroça também, já fiz de tudo um pouco… Sempre assim… aí, depois de um certo tempo, era sempre nessa parte, sempre tava trabalhando com serviço braçal. Licinia: E por quê? Marcelo: Não que era mais sossegado… Chegava de manhã, aí tinha que correr, acordar cedo, às três horas... No caso, né, tirando o barro ali, e depois tinha que carregar areia, pedra, pra depois começar carregar os blocos, depois ajudar o pedreiro... Um bom tempo assim. Até no momento né, até hoje faço o serviço que me aparece... O contato que eu tenho, é esse aí. Lá onde eu moro, conheço bastante pessoa que mexe com isso, aí eles: “Ah, vamos lá Marcelo”... Aí, eu tô trabalhando com isso aí. Licinia: Agora você está fazendo o quê, nesse momento? Marcelo: Eu tava trabalhando de servente. Aí, ligaram pra mim, e agora eu tô aqui, eu tô ficando aqui de noite, né? Tomando conta do espaço. E eu tava trabalhando… Até semana passada eu trabalhei, até sexta-feira eu trabalhei e o cara pediu pra dá um tempo, porque... Por causa da chuva, aí não dá para trabalhar. Aí eu falei pro cara... “Eu vou ver um negócio hoje!”. Aí, se virar lá também, eu trabalho aqui de noi-

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te e trabalho lá de dia, porque aqui não é todo dia, é um dia sim... Uma noite sim e uma noite não. Então dá pra mim fazer alguma coisa de dia. Mas é nisso, questão de... Como é que fala... Construção civil, né?

A realização pessoal aparece como uma expectativa para os que estão na informalidade e um sonho realizado para os que encontraram um trabalho formal, em que seus direitos estão assegurados. Aqui, a escolarização toma a forma de uma apropriação instrumental. Os jovens sabem e dizem que o ensino médio é um pré-requisito básico para a busca de um emprego formal. Portanto, seja por meio de uma escolarização regular ou de outros mecanismos de aligeiramento da formação escolar, os jovens tentam obter a certificação. A terceira forma de encarar a relação escola-trabalho demarcada pelos jovens é aquela em que o trabalho aparece diretamente vinculado à escolarização. O trabalho como consequência da escolarização converte-se em fonte de realização profissional e pessoal, concomitantemente. Poder fazer o que gosta, realizar um sonho tão almejado é, para os jovens pesquisados, uma expectativa que acompanha a escolarização. Todavia, o sentimento de engodo vivenciado durante esse período confirma-se quando finalizam o ensino médio: a escola não os prepara para a inserção no mercado de trabalho e este, por sua vez, é altamente seletivo: Kátia: Às vezes você até é chamada pra fazer uma entrevista, eles conversam com você e aprovam você na entrevista, né? Vai conversar com você pra saber como você é, onde você mora, sobre você, né? E aí, depois, vem o teste... Vem uma dinâmica e depois vem o teste... Aí, no teste é onde você acaba se perdendo. É como eu falei pra você... Eu fui fazer o teste, fiz o teste de redação que eu não lembro o tema, né? Era de dez linhas, aí passei na redação... Teve a dinâmica, passei na dinâmica, aí foi fazer a prova de matemática, que eram cinco questões... Tinha vários cálculos lá de subtração, divisão, multiplicação... E na última questão, que foi a quinta questão eu não consegui, porque eles colocaram lá pra você dividir e ao mesmo tempo você mul-

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tiplicar... Sabe, você fazer um monte de cálculo em um só, em uma questão só? Aí eu acabei me confundindo, me atrapalhando toda... Daí, depois, você tinha que “porcentar”, tirar o “porcento” em cima daquele produto, aí eu falei... “Isso daí eu não entendi!”... Aí eu não consegui acertar e por essa última questão, eu acabei sendo reprovada... Não consegui a vaga de estar trabalhando… Aí eu fiquei muito desanimada, né? Falei: “Caraca... Puta… estudei até o terceiro ano, e não saber fazer uma porcentagem!”. E eu tive isso no terceiro ano, mas eu não consegui aprender... Eu não consegui aprender! Acho que eu tive umas três aulas de porcentagem, se eu não me engano... Não consegui. Acho que também, eles têm um jeito lá de fazer deles, já pra pegar você, né... Saber se você sabe mesmo... Porque ele misturou multiplicação com divisão, sabe... Você tinha que fazer vários cálculos lá e aí acabei me enrolando toda... Então, no que eu encontro dificuldade no mercado de trabalho... Licinia: Teve alguma outra coisa que... Por exemplo, algum outro teste que você tenha feito, ou foi esse que... Kátia: Não, eu acho que esse foi o único... Esse foi o único. Às vezes tem algum lugar assim, que você tem vontade de trabalhar, mas você pensa... “Não, isso usa muito a matemática, usa muito a sua mente, a sua cabeça, acho que você não vai conseguir!”. Pra você chegar lá você tem que primeiro estudar pra você conseguir passar, né? Mas aí você tem vontade de trabalhar num caixa, por exemplo, você tem que saber fechar o caixa... Calcular todos aqueles valores que ganhou, o que saiu do caixa e o que entrou... Então, eu já percebo que se eu for para aquele cargo, eu já vou sentir uma dificuldade. Eu acho que eu posso aprender, mas que eu vou sentir dificuldade, eu vou... Eu posso não passar, posso não conseguir a vaga pela dificuldade. Então tem alguns cargos assim, que eu sei que eu ainda não me encaixo, então eu nem tento... Porque pra mim tentar, eu tenho primeiro que estudar pra aprender aquilo, pra poder conseguir a vaga. Então, é isso!

A frase “eu esperava (ou espero) conseguir um emprego de verdade quando terminei (terminar) o ensino médio” é unânime na boca dos jovens pesquisados. Também é unanimidade a descrença de que isso possa suceder. O desemprego, o subemprego e a necessidade de [ 158 159 ]

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subsistência são a realidade mais nua e crua para jovens que concluíram o ensino médio há nove, sete, cinco, três anos ou menos e ainda não conseguiram uma colocação no mercado de trabalho formal. Fazem o que podem e o que é possível, sem ater-se a sonhos ou desejos. Estes são postergados. Então, agora tá legal, apesar de duas vezes na semana eu sair pra trabalhar, pra mim tá legal porque não puxa muito em casa, só que... Porque ainda tem duas crianças que dependem muito de mim, né? Mas ia ser ideal pra mim se eu trabalhasse de segunda a sexta das oito às cinco... Eu acho que esse ia ser o ideal e com um salário mais ou menos, né? O que é meio difícil! Eu não quero mais trabalhar final de semana, eu não quero trabalhar em feriado... Não quero porque... Pelo menos eu quero um trabalho de segunda a sexta e não tenha que trabalhar no sábado e domingo, porque a pior coisa que tem é ser escravo dessas empresas aí que fazem você trabalhar final de semana e feriado... Você não tem religião, você não tem nada... Nem família, nem religião e nem nada! (Simone)

Ao examinar a relação entre jovens, escola e trabalho, percebo que os jovens evocam sentidos e significados já apresentados em estudos sobre a juventude. A escolarização deveria representar uma condição de cidadania, algo de que pudessem desfrutar sem nenhuma intercorrência. A aprendizagem pela aprendizagem. O conhecimento por sua razão de ser. Contudo, sabem que a democratização do ensino não veio sozinha. Concomitantemente a ela veio a desqualificação do ensino, a reestruturação produtiva que reconfigurou o mercado de trabalho e o desemprego estrutural. Olha, eu nunca trabalhei… Assim… trabalho mesmo... Eu tava até falando isso ontem, que agora eu vou ter que começar a fazer “trampo” mesmo, “fiel”, sabe?... Ou em loja ou em telemarketing... “Trampo” eu nunca fiz! Eu já trabalhei em projeto social só, né? Trabalhei no projeto com pesquisa, já trabalhei lá até como educadora voluntária... Trabalhei dois anos num projeto em Santo André com crianças de quatro A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

a seis anos, eu era educadora das crianças, aí fiquei dois anos lá... Fiz um trabalho com o programa de aids durante um ano, que era teatro, dança e canto. Então, sabe, eu trabalhei com arte, assim… Aí, eu trabalhei até o ano passado e aí no fim do ano eles me mandaram embora... Mandou um monte de gente embora... E agora eu tô precisando trabalhar de novo. Começar a trabalhar! [risos]. (Sandra)

Se o alongamento da escolarização é direito, deveria então constituir-se em um bem, ou pelo menos reverter-se em benefícios. Um deles seria o trabalho formalizado e livre. Outro seria a continuidade dos estudos. Quanto mais “podem” ingressar no sistema de ensino, porém, menos estudam. Quanto maior o tempo de escolarização, mais dificuldades encontram para entrar no mercado de trabalho. A instituição escolar acaba se transformando em uma “espécie de terra prometida, semelhante ao horizonte, que recua na medida em que se avança em sua direção” (Bourdieu; Champagne, 1998, p. 221). Marcelo: Eu não ia na escola porque eu queria emprego bom, isso eles não falavam... eu ia pra aprender. Saber ler e escrever. Depois de uma certa idade que você pensa nisso. Não falavam que tinha que ir na escola pra ter um trabalho bom, era pra ir pra aprender. Simone: Antes não tinham essas coisas, claro que tinham pra aqueles que queriam ser matemáticos, músicos. Era pensando em chegar na faculdade. Esse era o objetivo do estudo. Agora não tem como sonhar com essas coisas, como aprender o abc. Tem que atropelar um ano depois do outro pra chegar no colegial. É muita pressão nas crianças agora, não é como a gente estudava antes. Não tem mais “eu quero ter a letra mais bonita” ou “quero saber mais matemática ou história”. Sandra: Eu me dedicava à escola… e agora ficam me perguntando se eu vou fazer faculdade, mas eu não sei. Aprendi muita coisa na escola que não podia aprender em outro lugar, como meus valores... Eugênia: Pra mim, por exemplo, essa questão de que aumentou a pressão da escolaridade. Uma criança, quando ela vai pra escola, é muito mais pressionada do que na minha época de criança. Quando eu ia pra escola, era o momento de estar com outras crianças, de brin[ 160 161 ]

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car, não tinha preocupação se eu ia ser médica ou outra coisa. É uma imposição do sistema essa pressão de agora. A criança agora tem que ser a melhor pra tirar notas. Se a criança for bagunceira, ela não serve pra esse sistema, porque não é uma criança competitiva. A criança competitiva é aquela que tira A ou 10. Então cada vez mais a educação tá pressionando. Porque sempre é a questão do lucro, a educação é um negócio, ninguém pode negar. Cláudio: O mercado de trabalho obriga você a estudar. Mas o dono do mercado de trabalho é o capitalista, mas pra dominar os capitalistas precisam que os dominados não tenham conhecimento, nem formação. Se você tem um grande incentivador, que é a necessidade de trabalho, é um motivo pra você se dedicar aos estudos. Mas se você tiver só esse motivador, não vai ficar preocupado com a aprendizagem. Você fica preocupado com seu diploma, faz a prova e volta pra casa. O que importa é o comprovante que concluiu tal série ou tal grau. Não estamos preocupados com o saber, o aprender, no conhecer novos horizontes. Simone: Se meu filho vai mal, eles vão empurrar ele. Se ele for mal na sétima, vai ser empurrado pra oitava. Da primeira até a oitava série, eles vão empurrando o aluno, porque eles só querem o diploma. Por isso que os governantes querem que a gente estude, porque estão sendo pressionados. E isso acaba sobrando pra gente.

Este diálogo entre os jovens merece uma reflexão pelos ângulos e desdobramentos que revela. A princípio, trata-se de uma discussão sobre a educação em geral que tomou forma quando propus o diálogo sobre a função socializadora e formativa da escola. Em seguida, constata-se a aguda percepção que os jovens têm sobre as exigências de escolarização. Eugênia indica um aumento da pressão por escolarização sentida pelas crianças de hoje, algo que não foi vivenciado por ela e sobre o qual ela sabe com base em outras referências. Simone parece compreender bem o que Eugênia está dizendo, pois sabe que, quando o ensino era restrito a determinadas camadas sociais, havia uma certa equivalência entre escolarização e mobilidade social. Como afirmam Bourdieu e Champagne (1998), os beneficiários do sistema de ensino A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

sabiam que bastava ter acesso ao ensino secundário para ter êxito nele, e bastava tal êxito para ter acesso às posições sociais que lhes eram correspondentes. Efetivamente, ia-se à escola para aprender os conhecimentos necessários a essa nova identidade que o ensino conferia. Com a democratização, a pressão não parece estar ligada ao ensino, uma vez que o aluno será aprovado de qualquer modo. O que existe é a exigência da certificação que, ao final da escolarização, se apresenta como uma farsa para os alunos provenientes das camadas populares. Ao frequentarem instituições escolares e cursos sem nenhum “valor de mercado”, estes descobrem mais ou menos rapidamente que sua escolarização não representa nenhuma alteração social e nenhum aprendizado escolar. Bourdieu e Champagne (1998) denominam “conciliação dos contrários” este mecanismo sutilmente hierarquizado de diversificação oficial do sistema de ensino, que contribui para criar um princípio de diferenciação entre os estudantes. No mesmo sentido da análise empreendida por Dubet (1994), os jovens dizem que, de um lado, estão os alunos “bem nascidos”, isto é, os “verdadeiros estudantes”, que trazem um senso de investimento nos estudos anterior à entrada na escola e são capazes de conciliar a exigência do diploma com as pressões por qualificação exercidas pelo mercado. Todavia, sofrem as pressões de suas próprias escolhas profissionais e são obrigados a organizar suas vidas em função das carreiras escolhidas. De outro lado, estão os beneficiários da democratização do ensino, os alunos provenientes das camadas populares, relegados às piores escolas, condenados a cursos pouco ou nada valorizados no ensino e no mercado, que se veem obrigados a diminuir suas pretensões e a renunciar às aspirações criadas pela própria escola. Esses novos estudantes vivem uma situação paradoxal. São os grandes beneficiários da massificação do ensino e são a primeira geração de suas famílias a alcançar o ensino médio e a inscrever-se em um projeto de mobilidade social. Suas experiências escolares, porém, são abaixo da mediocridade se comparadas às dos estudantes que escolhe[ 162 163 ]

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ram a formação geral e técnica. Na realidade brasileira, inscreve-se aí a grande maioria de jovens pobres que frequentam o ensino médio em escolas pouco ou nada prestigiadas. Por suas origens socioculturais, apresentam dificuldades em incorporar seu papel de aluno, e os estudos servem apenas para evitar a reprovação e a exclusão social. Seus engajamentos nos estudos são escassos, inconsistentes, temporários e inconstantes, o que resulta na baixa rentabilidade de aprendizagem ou na evasão escolar. Os jovens, especialmente aqueles oriundos das camadas populares, experimentam nas condições estruturais da vida juvenil as vicissitudes de uma escolarização que lhes é incontestavelmente necessária e ilusória. Contudo, por suas formas de resistência e sua capacidade de desafiar a lógica do sistema, esses sujeitos desenvolvem estratégias de apropriação e recusa da experiência escolar. Observando mais atentamente as entrevistas e os diálogos entre os jovens pesquisados, pode-se inferir que há uma valorização da escola, sobretudo a posteriori. Enquanto estavam na escola, viam-na como um espaço de experimentação e de socialização. Ao deixarem esse ambiente, percebem o que ele poderia ter representado se lhes tivessem sido oferecidos os conhecimentos e as habilidades necessárias à vida social. Todavia, essa tomada de consciência significa uma certa “resignação desencantada” (Bourdieu; Champagne, 1998, p. 224), pois, apesar de saberem o que deveriam ter aprendido, sabem também que havia pouco a esperar da escola. Ou seja, embora estejam cientes de suas exigências, quem poderia atendê-las? Considerações finais

A adesão à escola resulta de um esforço conjugado dos jovens e de suas famílias em busca da melhoria das condições materiais de vida, bem como da superação das situações socioculturais em que se encontram. Para os jovens e suas famílias, a escola representa uma chance de escapar à condenação de “viver cada dia com sua agonia”. Contraditoriamente, é a necessidade de sobrevivência que dificulta a A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

permanência na escola. À medida que esses jovens são impelidos precocemente ao trabalho, rompem com o mínimo de adesão à lógica de socialização escolar conseguida. A entrada no mundo do trabalho, para a maioria deles, insere-se na lógica da sobrevivência. Aqueles que escapam dessa lógica na infância ampliam suas chances de escolarização e conseguem chegar ao ensino médio. Aqueles que fazem a total imersão no mundo do trabalho manifestam, na experiência temporal, dificuldades em reposicionar a escola na vida cotidiana e retomar os estudos. Quando o trabalho, formal ou informal, entra definitivamente na vida juvenil, a escolarização tende a ocupar um plano secundário e, consequentemente, associa-se às expectativas de inserção profissional. Estabelece-se, a partir daí, uma relação instrumental com a escola. Os jovens saem da escola porque precisam trabalhar e voltam a estudar em razão da necessidade de qualificar sua inserção laboral. Todavia, por mais que estejam convictos dos problemas estruturais da escola, os jovens pesquisados têm a escolarização como horizonte, meta, necessidade ou simplesmente como desejo a ser realizado. A vontade de finalizar o ensino fundamental e médio ou de cursar uma faculdade aparece recorrentemente nas falas dos sujeitos, e a perspectiva de retomar os estudos para fazer um curso superior está delineada em seus projetos pessoais. Por essa razão, é fundamental reconhecer que é na condição de estudante que os jovens manifestam sua adesão à escola. Na condição de trabalhadores, os jovens conhecem os limites da escolarização. Os que retornam à escola não o fazem em razão de estarem completamente seduzidos pelo sonho da mobilidade social. Há um misto de confiança e descrédito naqueles que manifestam resistência à escola – uma contradição que os próprios jovens revelam e com a qual admitem não saber lidar. Há sempre uma expectativa de continuar os estudos, de investir na formação e qualificação profissional. Mas há também uma descrença que soa mais como um ressentimento pela dupla traição vivida na relação com a escola. Primeiro, pela esco[ 164 165 ]

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larização precária daqueles que concluíram o ensino médio e dos que retornam à escola – os jovens têm a exata dimensão dos saberes que deveriam circular pela escola e ressentem-se de que isso lhes seja negado. Segundo, porque há uma promessa de mobilidade social, declarada ou insinuada pela instituição escolar, que, de fato, não se efetiva. Ao mobilizar suas heterogêneas formas de vivência social para construir o retorno e a permanência na instituição escolar, os jovens buscam estabelecer uma relação positiva com a escola. Contudo, sua presença no sistema de ensino só terá sentido se a escola atentar para os significados que eles atribuem a esse encontro. A presença juvenil na instituição escolar é pautada por estratégias de apropriação dos produtos escolares, mas também é um espaço de constituição de distintas identidades e biografias, marcadas pela relação com instituições de socialização diversas, como a família, a escola e o trabalho, dentre outras. Das experiências escolares juvenis pode-se depreender que o “domínio” da forma escolar de socialização tem relevância nos processos de inserção e transição escolar e na conformação de relações sociais mais amplas, dentre elas as relações estabelecidas com o mundo do trabalho.

A (in)conciliável relação entre jovens, escola e trabalho

Referências ABRAMO, Helena W.; BRANCO, Pedro Paulo M. Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/ Fundação Perseu Abramo, 2005. BOURDIEU, Pierre; CHAMPAGNE, Patrick. Os excluídos do interior. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio. Pierre Bourdieu: escritos de educação. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998. p. 217-227. CORREA, Licinia M. Entre apropriação e recusa: os significados da experiência escolar para os jovens da periferia urbana de São Bernardo do Campo (SP). 2008. Tese (Doutorado em Educação Escolar) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2008. DUBET, François. Sociologie de l’expérience. Paris: Seuil, 1994. DUBET, François; MARTUCELLI, Danilo. À l’école: sociologie de l’expérience scolaire. Paris: Seuil, 1996. FRIGOTTO, Gaudêncio. Juventude, trabalho e educação no Brasil: perplexidade, desafios e perspectivas. In: VANNUCHI, Paulo; NOVAES, Regina (Org.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004. p. 180-216. GUIMARÃES, Nadya. Trabalho: uma categoria chave no imaginário juvenil? In: ABRAMO, Helena W.; BRANCO, Pedro Paulo M. Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa nacional. São Paulo: Instituto Cidadania/ Fundação Perseu Abramo, 2005. p. 175-214. MADEIRA, Felícia R. Os jovens e as mudanças estruturais na década de 70: questionando pressupostos e sugerindo pistas. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 58, p. 15-48, ago. 1986. PAIS, José M. Culturas juvenis. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1993. SARTI, Cynthia. A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres. Campinas, SP: Autores Associados, 1996. THIN, Daniel. Para uma análise das relações entre famílias populares e escola: confrontação entre lógicas socializadoras. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, v. 11, n. 33, p. 211-225, maio/ago. 2006.

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Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo: diversidade de experiências e de percepções1 Maria Carla Corrochano

Este texto visa a apresentar resultados de minha pesquisa de doutoramento, que teve jovens oriundos de camadas populares do município de São Paulo como sujeitos centrais. Tratava-se de compreender como esses jovens viviam e compreendiam a experiência de trabalho e de ausência de trabalho, onde se incluía a categoria “desemprego”. A porta de entrada para a investigação foi o Programa Bolsa Trabalho, desenvolvido na gestão municipal no período de 2001-2004, em função de sua estratégia específica de enfrentamento dos crescentes índices de desemprego juvenil: a retirada ou retardamento do ingresso de jovens no mercado de trabalho por meio da transferência de renda e do incentivo do retorno ou da permanência na escola, aliado à oferta

1 Este texto foi originalmente apresentado no XIV Congresso Brasileiro de Sociologia, realizado de 28 a 31 de julho de 2009 no Rio de Janeiro.

de atividades de caráter educativo (Corrochano, 2007, 2008). Dados os limites deste texto, serão focalizados os significados atribuídos pelos jovens a suas experiências de desemprego, aqui considerado como construção social e histórica (Topalov, 1994; Guimarães, 2005). O Programa Bolsa Trabalho dirigia-se a jovens desempregados e assim os nomeava, mas como esses jovens consideravam a si mesmos em sua diversidade de experiências? A pesquisa utilizou-se de metodologia qualitativa baseada em entrevistas em profundidade, com roteiro semiestruturado. No final de 2004, foram entrevistados sete gestores; entre 2005 e 2006 a pesquisa compreendeu 38 jovens com idades entre 19 e 23 anos. É importante observar que os jovens não estavam mais participando do Programa no momento da pesquisa, pois todos haviam saído há pelo menos um ano antes da entrevista. A chegada até eles foi realizada em etapas, tendo como porta de entrada o banco de dados do Programa. O fato de que tivessem participado de um programa público com critérios previamente estabelecidos contribuiu para conformar certa homogeneidade entre eles, principalmente em termos de idade, renda e condições de vida. Contudo, uma das hipóteses da investigação era de que esses aspectos não obscureceriam diferentes experiências e percepções. Ainda que todos fossem jovens de baixa renda, poderiam viver e representar a experiência do trabalho ou sua ausência de maneiras diversas, sobretudo em um momento de fragilidade das instituições que convida os indivíduos a construírem, de modo cada vez mais solitário, seus percursos (Dubet, 2002). Na busca pela diversidade também foram entrevistados jovens de diferentes níveis de escolaridade, cor, raça e sexo. Nesse último caso, particular atenção foi dada às diferenças entre moças e rapazes, o que remeteu a significativas desigualdades de gênero. Antes de apresentar os principais resultados da investigação, cabe uma breve incursão teórica em torno dos estudos sobre a relação dos jovens com o trabalho e, mais especificamente, com o desemprego. [ 168 169 ]

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Os jovens e os sentidos do trabalho e do desemprego

A relação dos jovens com o universo do trabalho e as representações dessa dimensão diferencia-se ao longo do tempo e do espaço, bem como de um mesmo momento histórico-social, segundo as perspectivas dos diferentes grupos. Para uns, a juventude se constitui mais fortemente como um momento de preparação para o ingresso no mundo do trabalho; para outros, o trabalho faz parte da realidade juvenil desde muito cedo, principalmente se considerarmos países como o Brasil. É possível perguntar, tal como o faz Castel (2001), se os jovens têm uma relação específica com o emprego e, poder-se-ia acrescentar, com a falta de emprego. À medida que o mundo do trabalho se transforma profundamente, vários estudos destacam como os jovens são mais atingidos pelo desemprego de massa e pelo aumento da precarização das relações de trabalho (Castel, 2001; Pais, 2001). De fato, a partir da crise dos “Trinta Gloriosos” nos países centrais, a preocupação com a transição da escola para o mundo do trabalho foi tomada como centro do debate relativo à passagem para a vida adulta. Além disso, as reflexões sobre a maneira de medir as taxas de emprego e desemprego também têm ressonâncias na discussão sobre o lugar dos jovens no mercado de trabalho (Galland, 1997; Pais, 2001; Maruani, 2002). O fato dos jovens ainda não serem ou serem pouco socializados no mundo do trabalho, especialmente considerando os países mais desenvolvidos, também tem produzido inúmeras questões relativas às suas atitudes em relação ao trabalho e ao desemprego (Gorz, 1991; Schehr, 1999; Castel, 2001; Pais, 2001). Parece razoável que o desemprego seja vivido de maneira diferente por um operário que tenha trabalhado por anos em uma fábrica e um jovem que nunca trabalhou ou só realizou pequenos trabalhos temporários, o que não necessariamente significa uma recusa ao trabalho (Castel, 2001). Todavia, além das diferenças geracionais, é possível encontrar, entre os próprios jovens, formas diversas de experimentar a relação com o trabalho e com o desemprego. Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

Entre o final dos anos 70 e início dos anos 80, o desemprego juvenil emergiu na cena pública europeia como um problema, desencadeando um conjunto de políticas (Demazière, 1995) e de estudos em que essa visibilidade não é questionada, como sugerem as análises de Maruani (2002). Entretanto, a mais curta duração do desemprego nesse momento parece marcar, em boa medida, a maneira de olhar as experiências dos jovens desempregados (Schehr, 1999). Além de explicar a experiência do desemprego propriamente dito, tratava-se de oferecer respostas à seguinte questão: estariam os jovens recusando o trabalho? Assim, de acordo com Demazière (1995) e Schehr (1999), a forte relação entre o valor atribuído ao trabalho e a experiência do desemprego marcou alguns estudos do início dos anos 80 (Galland; Louis, 1981; Schnapper, 1981). A impossibilidade do desemprego ser vivido de uma única forma é um dos avanços e consensos em torno dessas pesquisas. Embora com mais ou menos ênfase em um ou outro aspecto, é a relação do jovem com o mundo do trabalho e seus significados que pautam as experiências do desemprego. Em Galland e Louis (1981) e Schnapper (1981), elas também se diferenciam a depender da classe social, da escolaridade e do perfil profissional. A variável mais central, porém, ainda é o próprio trabalho. Praticamente inexistem referências às diferenças de sexo e de cor/raça ou ao papel dos mecanismos normativos e institucionais. Nos anos 90, com o aprofundamento das mudanças no mundo do trabalho assalariado, o acirramento do desemprego e a crescente precarização do mercado de trabalho, alguns autores enfatizaram, por um lado, que as atitudes dos jovens em relação ao trabalho seriam a expressão mais visível de uma mutação cultural que marcaria o fim da centralidade do trabalho (Gorz, 1991; Schehr, 1999); por outro lado, encontra-se um conjunto variado de estudos problematizando essa perspectiva e argumentando que não se estaria diante de uma perda da centralidade do trabalho (Bajoit; Franssen, 1993; Castel, 2001; Pais, 2001). Partindo da tipologia do desemprego de Schnapper (1981), Bajoit e Franssen [ 170 171 ]

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(1993) argumentam que a insatisfação dos jovens com o trabalho e o emprego não implicam uma valorização positiva do desemprego. Nesse sentido, acabam por questionar a relação direta estabelecida entre os sentidos e experiências do trabalho e a experiência do desemprego, pois constatam, entre os jovens que investigaram, uma experiência negativa do desemprego, mesmo entre aqueles que não valorizavam o trabalho como dever moral. Evidentemente os autores não afirmam que o desemprego tem um único sentido para todos os jovens. De forma geral, o desemprego é vivido de maneira mais dramática entre jovens com menos recursos econômicos, escolares e culturais, bem como de forma mais banalizada entre jovens com maiores recursos. Mas o instigante em sua análise relaciona-se à convivência dos diferentes sentidos. Não há, de um lado, o desempregado feliz e, de outro, o desempregado deprimido. Até mesmo um jovem com elevados recursos pode viver o desemprego de forma banalizada e sofrida. Essa combinação de lógicas associa-se aos recursos econômicos, culturais e escolares, às relações estabelecidas com a família, bem como à diversidade de orientações concernentes ao mundo do trabalho. De todo modo, a combinação das diferentes lógicas não significa, para Bajoit e Franssen (1993), que o desemprego deixe de trazer consigo, em grande medida, o sentimento de desvalorização em função do “rótulo de desempregado”. Com base em uma revisão detalhada de vários estudos que focaram o desemprego entre jovens, realizados em diferentes países, Schehr (1999) enumera um conjunto de questões sobre o momento atual do desemprego, principalmente em sua nova forma: o desemprego de longa duração. Se o desemprego não é mais um “episódio” no interior de uma vida de assalariamento, como isso modifica os sentidos dados ao desemprego? Em relação aos jovens, tais questões ganham peso ainda maior, pois, como afirma o autor, boa parte deles nunca conheceu a identidade pelo trabalho e a seguridade do emprego. Embora não negue que o desemprego possa comportar uma dimensão Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

de sofrimento, Schehr questiona os estudos que tomam como ponto de partida o modelo de trabalho assalariado, em que o desempregado é representado apenas por aquilo que não é, ou seja, um trabalhador assalariado. E reconhece que, para alguns jovens, o emprego estável não é mais uma prioridade. Nessa perspectiva, identifica experiências diversas do desemprego juvenil, localizando novas formas de relacionamento com o desemprego e com o tempo do desemprego. Assim, para uns, o tempo de desemprego ainda se opõe claramente ao tempo estruturado do trabalho; mas, para outros, pode ser o tempo de viver de modo mais tranquilo ou fortemente ligado ao cotidiano, ao presente, ao maior tempo livre para vivenciar outras experiências. No entanto, bem como nos demais estudos, a análise de Schehr (1999) é restrita à presença de outras instituições. Que mecanismos podem possibilitar ou não ao jovem viver o tempo de desemprego como um tempo para explorar novos projetos? Muitos podem apresentar para si e para o mundo outros desafios em relação ao trabalho, mas quantos conseguirão, de fato, ultrapassá-los? Desse modo, Pais (2001) traz elementos muito significativos para a análise: olhar para os modos como jovens vivenciam o trabalho, o trabalho precário ou o desemprego a partir do cruzamento da análise de transição biográfica – a articulação de seu futuro com o passado, com uma análise mais estrutural das redes e dos recursos sociais com os quais os jovens podem ou não contar. No caso brasileiro, o acesso a empregos regulares e protegidos foi uma condição geralmente restrita. Ao mesmo tempo, as formas de institucionalização do desemprego são muito recentes e frágeis, poucas e atuais são as formas de apoio aos desempregados e as políticas para o enfrentamento da grave e profunda diminuição de empregos formais, que ocorreu principalmente na década de 1990 (Guimarães, 2002). É certo que essa configuração tem efeitos significativos sobre as experiências subjetivas do desemprego. A dimensão do trabalho (e certamente do desemprego) para os segmentos juvenis, particularmente para aqueles [ 172 173 ]

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oriundos das camadas populares, parece guardar um lugar diferenciado em relação ao contexto europeu, como destaca Hasenbalg (2003, p. 147148, grifo no original): A transição escola-trabalho apresenta grandes variações tanto nos países desenvolvidos como nos países em desenvolvimento, havendo também, nesses dois grupos de países, importantes variações nos nexos institucionais entre o sistema educacional e o mercado de trabalho. Estudos recentes dessa transição em países desenvolvidos focalizam a relação entre qualificações educacionais e resultados do mercado de trabalho no ponto em que os indivíduos se deslocam da escola para o primeiro emprego [...]. Por trás dessa assertiva existe a suposição de que, tipicamente, os jovens ingressam no mercado de trabalho depois de fechado o seu ciclo de educação formal. Esta é uma suposição realista nesses países, onde a norma é que os jovens façam trajetórias escolares relativamente prolongadas, cumprindo minimamente a educação compulsória estipulada [...]. Duas características da transição escola-trabalho no Brasil – bem como em outros países latino-americanos – dificultam a observação em forma “pura” da relação entre qualificações educacionais e o ponto de entrada no mundo do trabalho. Essas características são (1) o ingresso precoce no mercado de trabalho e (2) a conciliação ou superposição de estudo e trabalho.

No Brasil, considerando a relação dos adolescentes e jovens com o trabalho, as primeiras preocupações em termos de pesquisa datam dos anos 70. Até esse período, eram os jovens estudantes de classe média, não os trabalhadores, que estavam no centro da preocupação de pesquisadores (Ianni, 1968; Foracchi, 1972). A partir de então, quando se verifica um aumento no número de jovens trabalhadores, resultado do modelo econômico da época e das necessidades de sobrevivência e ampliação do padrão de consumo entre as famílias (Madeira, 1986; Abramo, 1994), o interesse em compreender as razões que levam o jovem para o trabalho e a situação do mercado de trabalho para esse grupo ampliam-se, especialmente em torno da questão do emprego e Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

do desemprego juvenil. Já nos anos 80, Madeira (1986) argumentava em prol da importância do trabalho entre os jovens, até mesmo para a constituição de uma identidade juvenil. A referida autora atenta para o fato de que, ao mesmo tempo em que mudanças importantes ocorrem na esfera produtiva e a escolaridade é ampliada, isso não impacta negativamente na contratação de “menores”, assinalando o que chama de “falácia da teoria da modernização”. Sem aprofundar esse debate, o que interessa aqui registrar é que, nesse período, crianças, sobretudo adolescentes e jovens, inseriam-se com primazia no setor secundário da economia e, dentro desse setor, preferencialmente entre os empregados formais (Madeira, 1986). O aumento da presença juvenil no trabalho urbano é um dos fatores que leva a autora a problematizar a compreensão do trabalho da criança e do jovem através da ótica mais recorrente que se concentra tradicionalmente nos aspectos aparentes da marginalidade e da pobreza. Para Madeira (1986, p. 22), “é preciso recuperar analiticamente o trabalho da criança e do adolescente (como se fez com o trabalho da mulher) como parte integrante e estrutural do processo social de produção”. O estudo da autora foi um dos primeiros a indicar que, além da necessidade de sobrevivência ou ajuda à família, o trabalho juvenil permitia que parte do dinheiro pudesse ser utilizado pelo jovem para seu próprio consumo, seja para a aquisição de vestimentas e calçados, seja para atividades culturais e de lazer, seja, inclusive, para possibilitar seus estudos (Madeira, 1986; Madeira; Bercovich, 1992). De certa forma, os diferentes estudos que abordam a questão do trabalho juvenil concordam com essa visão (Abramo, 1994; Martins, 1997; Corrochano, 2001; Sposito; 2005). Já nos anos 80, Madeira (1986, p. 24) problematizava as taxas de desemprego juvenil: Assim, as taxas de desemprego aberto [entre os jovens] são tradicionalmente muito baixas. Sabe-se, entretanto, que as informações expressas nesses indicadores pouco têm a ver com a real disponibilidade ou desejabilidade do exercício de uma atividade remunerada [ 174 175 ]

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constante entre a população jovem brasileira. É que a grande maioria dos jovens encontram-se numa situação de desemprego mascarado, oculto, seja pela realização de trabalhos precários, comumente conhecidos como “bicos”, seja na forma de desempregados desalentados, neste caso entre aqueles que deixaram de procurar trabalho em função do desestímulo.

Por outro lado, Madeira também evidenciava que o desemprego dos jovens apresentava valores altíssimos quando se ampliavam as possibilidades concretas de conseguir trabalho. Na pesquisa qualitativa que realizou, observou uma parcela considerável de jovens que, em sua maioria, declaravam-se desempregados não pela dificuldade em encontrar emprego, mas porque era difícil encontrar um emprego que correspondesse às suas expectativas. Para a autora, o conceito de intermitência estaria mais próximo do jovem que os de desemprego e inatividade, muito embora ressalte a dificuldade em generalizar essa afirmação. Já nos anos 2000, Madeira (2004) continua assinalando os limites de se observar o desemprego de jovens apenas por taxas estáticas e não por uma ótica longitudinal, na perspectiva de apreender movimentos de entrada e de saída do mercado de trabalho e da população economicamente ativa. Isso se faz necessário na medida em que jovens tenderiam a transitar mais facilmente pela ocupação, pelo desemprego e pela inatividade. Nesse sentido, não seria a falta de experiência, mas os elevados índices de rotatividade juvenil que explicariam as altas taxas de desemprego entre jovens. Para Madeira (2004), seria preciso retirar o excessivo peso atribuído à falta de experiência para melhor compreender os altos índices de rotatividade. Sem entrar no debate em torno das taxas de desemprego entre os jovens e das maneiras de medi-las, o fato a destacar é que as situações dos jovens parecem muito mais complexas do que as próprias taxas indicam, como também assinalava Pais (2001) no caso dos jovens portugueses. Se isso já era apontado como difícil nos anos 80 por Madeira (1986), o que dizer do período seguinte? Mutações no mundo do trabalho nos Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

anos 90 levaram à reversão da tendência que vinha se observando até então: o aumento da presença de jovens em ocupações mais protegidas. Comparando essas duas décadas, Hasenbalg (2003, p. 157) acentua: Apesar da crise econômica dos anos 1980, o desemprego na faixa de 15 a 19 anos permaneceu relativamente baixo, variando entre 3% e 6%, mas cresceu vertiginosamente nos anos 90, superando os 15% nas idades de 18 e 19 anos.

Assim, é pertinente assinalar que, especialmente a partir dos anos 90, ampliam-se as dificuldades crescentes de ingressar e permanecer no mercado de trabalho, a despeito de maiores níveis de escolaridade dessa geração em relação às gerações anteriores. De todo modo, permanece como característica a simultaneidade da participação na escola e no mercado de trabalho: como evidenciam as análises de Camarano (2006) e Hasenbalg (2003), os jovens demoram mais para sair da escola; em relação à entrada no mercado de trabalho, porém, a variação é menos expressiva. Contudo, as transformações não atingem apenas as gerações mais jovens. Análises do mercado de trabalho observam um novo padrão de transição ocupacional nos anos 90, quando parte importante da população adulta teria vivido traços que anteriormente poderiam ser atribuídos a jovens, ou seja, àqueles que estariam tentando ingressar no mercado, tais como fragilização dos vínculos e intensificação das transições ocupacionais. Acirram-se os trânsitos não apenas entre ocupação e desemprego, isto é, no interior do próprio mercado de trabalho, mas também, e de maneira bastante intensa, entre situações de atividade e inatividade (Guimarães, 2006). De todo modo, isso parece atingir os jovens de maneira mais aguda, como assinala Guimarães (2006, p. 183): O conjunto de evidências até aqui sublinhadas aponta para a importância tanto macrossocial, quanto individual, tanto estrutural, como subjetiva, da experiência vivida pela atual geração de jovens brasileiros [ 176 177 ]

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no que concerne ao movimento de autonomização do status via inserção no trabalho. Custosa, marcada por percalços, tal transição parece estar sendo desafiada por um contexto de reestruturação do mercado e das relações de trabalho, que torna o provisório e transitório ensaio e erro (da assim chamada busca “juvenil” por uma adequada inserção), uma sorte de fado generalizado e de inquietante duração.

É a partir desse momento que também se observa no Brasil a ampliação de análises que procuram compreender os modos como os jovens vivem e significam o trabalho, sua crise e a falta de trabalho, mais particularmente o desemprego. Já em meu estudo de mestrado chamava atenção para os relatos de jovens operários de pequenas e médias indústrias da Região do ABC que, mesmo com emprego regular, mostravam-se intensamente preocupados com o desemprego (Corrochano, 2001). De forma semelhante, Rodrigues e Martins (2007) evidenciaram que até mesmo jovens trabalhadores de montadoras, na mesma região, não estavam imunes às preocupações e inseguranças que atingiam os demais jovens no mundo do trabalho. Nos anos 2000, despontam estudos que tomam outros espaços para a análise do trabalho entre adultos e jovens com vistas a compreender não apenas o sentido do trabalho, mas também do desemprego. Ferreira (2004), por exemplo, parte do local de moradia e, ainda que o centro de sua preocupação não seja o desemprego juvenil, traz contribuições importantes na perspectiva de assinalar como a falta de trabalho pode ser vivida de maneira diferenciada até mesmo em uma população que poderia ser tomada como homogênea – moradores de uma favela na cidade de São Paulo. Outro aspecto apontado nesse estudo e aprofundado em pesquisa posterior diz respeito ao papel das redes na procura por trabalho e, mais especificamente, dos impactos causados pela qualidade dessas redes no alcance de uma ocupação entre jovens. Tanto sua pesquisa quanto a de Guimarães (2005) atestam a importância das redes familiares para os jovens na busca por trabalho e na Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

saída do desemprego. Todavia, nem sempre essas redes permitiam acesso a empregos de melhor qualidade, muito embora isso não devesse obscurecer o forte apoio material e afetivo oferecido pela família nos momentos de busca por trabalho. Preocupada em compreender o modo como as mutações do trabalho atingem os indivíduos, Jardim (2004) realiza outro estudo bastante instigante em torno do desemprego por desalento. Partindo de uma agência pública de emprego, a autora chega à análise de trajetórias de jovens e adultos de ambos os sexos, que haviam, em algum momento de seus percursos, atravessado um período de desistência de busca por trabalho. Dentre outras coisas, Jardim observa em todas as entrevistas a distinção entre o trabalho e o emprego, este último relacionado a maior segurança e estabilidade. A preocupação central é com a seguridade futura, não apenas presente. Também parece significativo que, na pesquisa comparativa entre França, Brasil e Japão desenvolvida por Demazière, Guimarães e Sugita (2006), um dos grupos-alvo da análise tenha sido formado por jovens rapazes e moças entre 16 e 24 anos, com pelo menos o ensino fundamental e no máximo o ensino médio completo, que estavam à procura de trabalho. No grupo de jovens do Brasil os autores apontam “uma relação com o desemprego construída em torno do trabalho, mais do que da privação do emprego” (p. 106), o que parece reforçar ainda mais a importância do trabalho para os jovens brasileiros e um modo específico de viver a situação de desemprego. Diante desse breve balanço, torna-se perceptível que o desemprego entre jovens e o modo como vivem e representam essa situação tornou-se alvo de investigações sugestivas, especialmente a partir dos anos 2000. Mas o que dizer dos olhares para essa situação entre jovens que participam ou participaram de ações públicas? Aqui as lacunas parecem mais evidentes, o que também pode ser relacionado ao caráter recente dessas ações. Além disso, tal como foi destacado, nos estudos aqui alcançados as reflexões estavam mais direcionadas à avaliação dos impactos dos programas (Mesquita, 2006) e menos [ 178 179 ]

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voltadas para os percursos dos sujeitos que foram alvo desses programas, o que realizei de modo mais aprofundado em minha tese de doutorado (Corrochano, 2008). A seguir apresentarei parte dos resultados alcançados nesse estudo, especialmente no que tange aos sentidos atribuídos pelos jovens ao desemprego. Experiências e percepções em torno do desemprego

A análise realizada em minha pesquisa (Corrochano, 2008) revelou diferentes grupos de jovens organizados a partir de quatro construções discursivas: 1) começando a trabalhar cedo; 2) do sonho com o trabalho de verdade à busca pelo trabalho possível; 3) em busca de melhores empregos e 4) além do trabalho, em busca de novas possibilidades. Tal como na hipótese inicial, embora os jovens tivessem uma renda e condições de vida semelhantes, foi possível observar uma diversidade de sentidos atribuídos ao trabalho e à sua ausência, em particular ao que se denomina “desemprego”. O primeiro grupo é constituído por jovens2 cujas experiências de trabalho “desde muito cedo” – em sua própria expressão – formavam o eixo estruturante de suas narrativas. A recorrência da expressão “eu sempre trabalhei” parecia indicar que o trabalho fora central para esses jovens desde antes do término dos estudos. Começaram a trabalhar cedo, quando ainda pequenos ou “moleques”; para eles, a falta de emprego não é nomeada como desemprego, mas como tempo de inventar o que fazer para obter renda e ocupação. Três deles já eram casados e com filhos, outros dois seguiam solteiros; todos trabalhavam há muito tempo e não mais frequentavam a escola. À exceção de um deles, que havia interrompido os estudos ainda na 4ª série do ensino fundamental, os demais concluíram o ensino fundamental, mas não

2 Este grupo era composto por quatro rapazes e uma moça; três deles declararam-se pretos e dois, pardos. Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

lograram concluir o ensino médio. Sem um emprego garantido era preciso inventar algum trabalho. Era preciso não ficar “parado”, como as palavras a seguir expressam bem: Desemprego é uma palavra chata, né, porque todo mundo precisa pra se manter e tudo, a pessoa desempregada é ruim demais. Tipo, a pessoa que fica desempregada, vai acostumando, vai passando um dia, vai passando outro, já acostumou... o que você faz? Não, tô desempregado. Só que ela não pensa em correr tipo assim numa área tipo... lá é ruim, é um serviço ilegal e tudo, só que querendo ou não você tá trabalhando, você tá fazendo alguma coisa. (Wander, 20 anos, pardo, ensino fundamental completo).

Estar desempregado é estar totalmente parado, sem realizar até mesmo os conhecidos “bicos” e sem procurar uma ocupação. Se a maneira de falar e de se relacionar com a situação que analítica e institucionalmente denomina-se desemprego não se resume à fraca institucionalização do desemprego em nosso país (Guimarães, 2004), também não se pode negar o peso dessa situação. Como afirmam Demazière, Guimarães e Sugita (2006), ao compararem as experiências e percepções de desempregados no Brasil, na França e no Japão, a experiência do desemprego no Brasil é fortemente configurada pela prática de atividades que não se reduzem a posições tradicionalmente ocupadas no mercado de trabalho. Todavia, esses autores chamam a atenção para o fato de que os modos de agir, pensar e sentir a situação de desemprego transbordam as lógicas institucionais e as características de perfil. Nesse sentido, também seria possível encontrar jovens com falas muito mais próximas de adultos em relação ao desemprego. É o que parece prevalecer nesse grupo. Aqui a representação do desemprego surge como a necessidade de se virar de qualquer maneira, indicando não somente a importância de se movimentar para buscar recursos para a sobrevivência, como uma certa resistência em se considerar desempregado, encontrada em muitos dos adultos investigados por Guimarães (2004). [ 180 181 ]

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O vocábulo “desempregado” representa algo que os jovens não desejam para si, pois os desqualifica e pode inseri-los no desalento. Estar na busca, estar na procura é sinônimo de ação, é não esperar, é agir. O desespero para não ficar parado, para estar sempre em movimento e buscando uma ocupação era ainda maior entre os jovens com filhos, tanto para os rapazes quanto para a única moça do grupo. Os jovens solteiros reconheciam a diferença de sua situação: embora ficar sem trabalho pudesse lhes trazer dificuldades, em razão de suas responsabilidades no apoio ao sustento familiar, sua situação era muito diferente daqueles (e é exatamente os do sexo masculino que lançam mão) que possuíam responsabilidades com filhos e com mulher – o que evoca a importância do papel de provedor. Assim, para os rapazes solteiros do grupo, a dificuldade de se perceberem como desempregados também advinha do próprio peso que o desemprego (não) tinha em suas vidas, se comparado aos chefes de família. No entanto, nem por isso momentos sem trabalho eram vividos com menos angústia. Tinham clara percepção de que, sem um “trabalho fixo”, não estavam conseguindo cumprir o papel que eles próprios e suas famílias esperavam – e isso tornou-se mais forte a partir dos 18 anos. O que parece ficar evidente nos relatos é que o impacto do desemprego aumenta com a idade, mesmo durante a juventude. De todo modo, tanto para os casados quanto para os solteiros, a ausência de trabalho não é nomeada como desemprego, como fica evidente pelos relatos. Entretanto, também não é um tempo de espera até que se alcance um trabalho profissional, tal como parece acontecer entre alguns jovens dos outros grupos. Dado que já interromperam seus estudos e têm poucas (ainda que não nulas) perspectivas de retorno, é preciso se virar agora, é preciso movimentar-se sem muitas expectativas de que essa situação se transformará em um tempo futuro. Nesse processo, a família e os grupos podem fornecer um apoio significativo, mas também a própria ação de fazer algo – um “bico” ou a simples procura por uma ocupação – parece consistir-se em um “suporte”, na perspectiva de Martuccelli (2002). Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

No segundo grupo encontra-se a maior parte dos jovens3 entrevistados: jovens que passam do sonho com o trabalho de verdade à busca pelo trabalho possível. A recorrência com que argumentaram a ideia “nunca trabalhei” foi oferecendo pistas para a possibilidade de constituição de um grupo diverso dos demais. Diferentemente do grupo anterior, aqui o trabalho parece ter surgido mais tardiamente. Nesse sentido, o emprego e o desemprego também assumiram conotações diferenciadas. À época da entrevista todos haviam finalizado o ensino médio, mas não haviam conseguido um “trabalho de verdade”, um lugar no universo do mundo assalariado com inserção regular e regulamentada. Embora grande parte já tivesse exercido diferentes tipos de trabalho remunerado, especialmente no emprego doméstico e na entrega de panfletos (no caso das moças) ou na construção civil e na função de office boy (no caso dos rapazes), era recorrente a declaração de que “nunca haviam trabalhado, de verdade”. O verdadeiro ingresso no mundo do trabalho aconteceria quando encontrassem um emprego assalariado e com registro em carteira, mas não apenas dessa forma. Sobretudo para os rapazes deste grupo, havia um reconhecimento de que estavam desempregados, mas não “por natureza”. Segundo um dos jovens, desempregado é aquele que se entregou ao desemprego e que não corre atrás nem mesmo de algum bico para fazer. O fato de poder contar com o apoio dos pais e de estar sempre procurando ou fazendo algum bico, agindo e não ficando parado, era o que fazia Erasmo não se considerar um desempregado “por natureza”. À semelhança do primeiro grupo, a ideia de ação em contraposição ao ato de ficar parado também parecia essencial nesse grupo. Além disso, a idade aparece como outro aspecto importante para que os jovens não se considerem desempregados. Para um deles, por exemplo, desemprego não era coisa

3 Dezoito jovens (treze moças e cinco rapazes), predominantemente negros (dez pretos e quatro pardos). [ 182 183 ]

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de jovem. A crença em encontrar trabalho no futuro acabava por tirá-lo dessa condição. Todas as falas dos rapazes levam à compreensão de que se afirmarem como desempregados era visto de maneira negativa. Temporariamente, só eu estou sem trabalhar, mas assim desempregado, hoje assim, não. [...] É o lance que nem você falou: jovem, ainda tenho muito o que aprender, posso mostrar meu potencial, que não sei o que, essas coisas assim tipo pra mim eu tô jovem pra caramba, tenho muito que aprender, muito que mostrar, entendeu? Por isso que eu não me sinto desempregado agora, quem sabe assim quando eu tiver lá com uns 45, 50 anos, aí sim eu posso falar “não, hoje eu tô desempregado”. (Daniel, 21 anos, branco, ensino médio completo).

A dificuldade em se nomear como desempregado, no entanto, não significava sentir-se menos pressionado a encontrar um “trabalho de verdade”, algo muito forte entre os rapazes. Por mais que suas famílias seguissem apoiando-os, eles, mais do que as moças, sentiam essa pressão. É possível levantar a hipótese de que tal dificuldade em reconhecer-se como desempregado está relacionada a pelo menos dois aspectos. Em primeiro lugar, aos papéis do homem e da mulher em nossa sociedade. Se a ideia do homem como provedor ainda está presente, parece pertinente que eles se sintam mais constrangidos a se identificar como desempregados. Em segundo lugar, recuperando a fala de um dos jovens, ao estigma a que estavam mais fortemente sujeitos: de se envolverem com a violência, de usarem drogas, de serem aliciados pelo tráfico. Um dos jovens, Daniel, relatou as inúmeras brigas que tivera com sua mãe; ela o acusava frequentemente de consumir drogas, influenciada pelas informações que recebia de vizinhos. Sposito (2005, p. 107-108) argumenta: Assim, ao não se considerar as relações entre os sexos como portadoras de sentidos e práticas diversas que tornam invisíveis o universo feminino cotidiano, mais restrito à esfera privada com menor “circulação” nos espaços públicos e, portanto, “menos ameaçador” à ordem Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

pública, o tratamento do desemprego juvenil tem sido carregado de imagens e estereótipos masculinos [e, poderíamos acrescentar, ligados à cor/raça negra].

Entre as moças, era perceptível a menor dificuldade em identificarem-se como desempregadas, o que pode remeter ao fato de que o desemprego feminino apresenta características próprias que não afetam o conjunto dos homens, e que estão na origem do que é denominado “tolerância social” (Torns, 2003, p. 250). Além disso, segundo a análise de Maruani (2002), o fato de que as mulheres são associadas ao trabalho doméstico e mais questionadas quanto à legitimidade de possuírem um emprego faz com que seja muito mais fácil diluir as diferenças entre estar desempregada por desalento ou temporariamente indisponível para o mercado. Nesse sentido, parecia menos problemático para as jovens serem submetidas a um julgamento moral por estarem sem emprego. Entretanto, na medida em que o foco não é a questão juvenil, mas sim a situação das mulheres, escapa ao estudo de Maruani o peso que a falta de trabalho remunerado tem entre os rapazes, uma vez que, ao menos em países como o Brasil, há uma forte associação entre desemprego juvenil (masculino) e violência. Todas essas moças e rapazes contavam com o apoio material provisório de suas famílias, mas já consideravam que o tempo para esse apoio havia se encerrado. Havia um marco claro para o encerramento dessa etapa: a idade de 18 anos, em geral combinada com a conclusão do ensino médio. O mais angustiante para eles era a dificuldade em completar a autonomização de seu status (Hasenbalg, 2003), não conseguir sair de casa para morar sozinho ou não conseguir ajudar os pais, retribuindo o apoio que receberam. Como todos já tinham mais de 18 anos e haviam “terminado a escola”, encontravam-se em um período muito difícil de suas vidas: sem estudo, sem trabalho e na dependência de suas famílias. Por certo que todos tinham seus bicos, conseguiam um dinheirinho aqui e ali, mas não era possível ir além disso. [ 184 185 ]

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A família ainda era a fonte de apoio mais importante para esses jovens, não somente em termos financeiros. Era muito importante o apoio emocional que encontravam em suas casas, principalmente nos momentos de maior desânimo. Além de não conseguirem apoiar seus familiares, enfrentavam a dificuldade de concretizar seus projetos para o futuro. Seus planos de continuidade de formação, de residirem sozinhos ou de constituírem família estavam fortemente atrelados à conquista de um lugar no mundo do trabalho. A maior prova de sua grande preocupação com o futuro e da importância atribuída ao emprego nesse processo estava na inquietação que expressavam com o fato de nunca terem tido a oportunidade de um registro em carteira. O tempo para a conquista de um registro estava passando e muitos já se sentiam “velhos” para isso, temendo a dificuldade na conquista de seus direitos, tal como a aposentadoria. Ainda que independência econômica não equivalha necessariamente a ausência de autonomia, tal como observa Singly (2000), o longo período em uma situação de dependência econômica também pode comprometer a própria autonomia, especialmente quando se trata de depender da própria família – como também enfatiza esse autor. Não parece ser por acaso que, se o registro demora a chegar, os jovens começam a aventar a possibilidade de um trabalho qualquer no presente: “qualquer coisa que vier é lucro” (Daniel); “não tô escolhendo emprego” (Marcos); “qualquer coisa para começar” (Clarice); “hoje em dia não dá para ficar escolhendo emprego, não” (Miriam) – para mencionar apenas algumas das frases mais proferidas. Se alguns autores revelam que a intensa rotatividade de jovens por diferentes ocupações parece um fenômeno associado à idade (Madeira, 2004), que tende a diminuir com o passar dos anos, este parece não ser o caso entre os jovens investigados aqui, pois todos, mais próximos dos 20 anos, nem haviam conseguido um ingresso mais regular no mercado. Nesse sentido, mesmo se concordássemos que, na juventude, há maior rotatividade do emprego ao desemprego ou à inatividade, também é preciso atentar Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

para um “‘núcleo duro” de jovens que acumulam fragilidades sociais e que têm dificuldade de entrar e permanecer no mundo do trabalho. Há fortes indícios de que, entre esses jovens, os problemas da empregabilidade tendem a não desaparecer com o tempo (Madeira, 2004). Os jovens desse grupo parecem fazer parte desse segmento, para os quais as dificuldades de ingresso e permanência no mercado de trabalho formal se prolongarão até a vida adulta. O terceiro grupo também era constituído por jovens4 que haviam finalizado o ensino médio, sendo que dois deles já haviam ingressado no ensino superior quando da primeira entrevista. Com exceção de um jovem, todos haviam alcançado um trabalho com registro em carteira, ao menos em algum momento de seus trajetos. Estes são os jovens para os quais a chegada ao emprego com registro, ou o emprego mais estável, nem de longe representava um ponto final em seus percursos profissionais. Chama atenção aqui o desejo de partir (ainda que não imediatamente) em direção a outras experiências de trabalho que lhes permitissem não apenas melhores salários e condições de trabalho, mas também a possibilidade de alcançar seus projetos de formação e realização profissional. Para eles, a questão era “não se acomodar, crescer, correr atrás”. São jovens trabalhadores que se consideram transitando em direção a melhores oportunidades de vida e de emprego (um emprego “na área” e/ou um emprego de que “gostem”). O fato de já terem conseguido ao menos uma experiência profissional estável ou de estarem no ensino superior parece contribuir para uma boa percepção de si mesmos e para um maior otimismo em relação a suas perspectivas futuras, mesmo no caso daqueles que estavam desempregados no momento da entrevista. E, se já haviam alcançado, pelo menos uma vez, aquilo que os jovens do grupo anterior nomearam “trabalho de

4 O grupo era constituído por cinco mulheres e dois homens, com idades entre 19 e 23 anos. Quanto à cor/raça, três deles declararam-se brancos, dois, pardos e duas jovens, pretas. [ 186 187 ]

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verdade”, parecia menos problemático considerarem que viveram momentos de desemprego em algum ponto de seus percursos. Os jovens desse grupo que se encontravam sem emprego não hesitavam em se declarar desempregados. De fato, considerando o desemprego como uma construção social, reconhece-se que tal condição estaria atrelada às experiências de emprego mais duradouras, como apontam Demazière, Guimarães e Sugita (2006) em sua pesquisa sobre diferentes experiências de desemprego em grandes metrópoles. O peso que o desemprego tinha para esses jovens também estava atrelado à possibilidade de um apoio maior da família: com o apoio dos pais, eles poderiam até mesmo adiar um pouco mais a busca por emprego. De fato, para os outros jovens do grupo os períodos de desemprego não eram vividos de maneira tão aflitiva, mas, como já foi assinalado, isso dependia em larga medida da condição dos outros membros da família. Com isso não se quer afirmar que esses jovens só buscavam trabalho em função da necessidade material de suas famílias. Assim como prevalece entre boa parte dos jovens deste estudo, o trabalho era valorizado pela possibilidade de gerar maior independência em relação às famílias, bem como sociabilidade e circulação pela cidade. Contudo, suas narrativas evidenciaram que, quando algum componente da família tinha trabalho ou algum rendimento, os períodos sem ocupação não eram tão dramáticos. Pelas narrativas, a perspectiva de poder “descansar” um pouco em momentos de desemprego, além de associada ao momento vivido pela família, também parecia atrelar-se à idade: quanto mais passavam-se os anos, mais os jovens sentiam necessidade de encurtar esse período. Por fim, o quarto grupo5 é composto de jovens orientados pelo distanciamento das demandas mais imediatas, construindo uma experiência que permitia certo alargamento de sua reflexividade e capa-

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Constituído por quatro jovens, três rapazes e uma moça, todos declarando-se pretos. Desemprego entre jovens de um programa público na cidade de São Paulo

cidade crítica. À exceção de um deles, que cursava o ensino médio, todos já haviam superado esse patamar e nenhum havia conseguido uma experiência de trabalho formal; esse não era, contudo, o centro de suas preocupações à época da entrevista. Suas expectativas eram fortemente direcionadas pela busca de um trabalho na área correspondente ao curso que almejavam fazer, um trabalho “profissional”. Além dessa condição, o que é muito recorrente em suas falas e contribui para aproximá-los é a forte problematização que expressam em relação ao trabalho assalariado – evidenciada na participação de três jovens desse grupo na experiência de formação de uma cooperativa. Como experiência de formação pessoal e profissional mais duradoura, marcou fortemente o modo como passaram a perceber e a se relacionar com as esferas do trabalho e da escola. A intensa relação estabelecida com um grupo de amigos do bairro também agrega-se ao cenário de um dos jovens desse grupo. De fato, esses jovens esforçavam-se intensamente para imprimir alguma direção em seus destinos, para terem chances reais de escolha, segundo a perspectiva de Dubet (2005). Diante disso, nenhum deles se considerava desempregado; em nenhum momento de suas vidas, até a entrevista, se sentiram desse modo. Uma das jovens declarou que nunca se sentira desempregada porque sempre “correu atrás” de cursos para fazer, de outras experiências. Desemprego era algo que, em sua casa, apenas sua mãe havia vivenciado. Associa desemprego à responsabilidade com o orçamento doméstico e, no caso dos jovens, a ficar parado em casa, sem fazer nada, ou, mais especificamente, sem planos de formação. De todo modo, também nesse grupo já era possível perceber a existência de tensões entre a abertura de horizontes propiciada pela experiência mais positiva na cooperativa (vivenciada a partir da participação no Programa Bolsa Trabalho) e o estreitamento de suas chances de realização, uma vez que viviam entre o dilema de permanecer na experiência e conseguir um trabalho que lhes possibilitasse arcar com seus planos de formação e apoiar sua família. [ 188 189 ]

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O lugar que o Programa Bolsa Trabalho assume entre esses jovens parece relacionado não apenas ao tipo e à qualidade da formação oferecida, mas também ao próprio momento em que esses jovens se encontravam quando ingressaram no Programa e ao momento em que se encontravam à época da entrevista. Contudo, tanto para aqueles mais atrelados à esfera do trabalho, quanto para aqueles que desejavam prosseguir com os estudos e qualificar-se profissionalmente, o Programa esteve muito aquém de suas expectativas. Um ano depois, ao falarem sobre essa experiência, não deixaram de ressaltar aspectos positivos, mais fortemente vinculados à esfera da sociabilidade, mas reclamavam a possibilidade de apoio não apenas para encontrar um “verdadeiro trabalho”, mas também para melhor compreender e circular pelo tão instável e mutável universo do trabalho. A despeito da diversidade entre os grupos, chama a atenção o modo como esses jovens consideram que o governo deveria apoiá-los, especialmente quando se trata de trabalho (embora não apenas nesse caso). Nessa perspectiva, as ações públicas deveriam constituir-se como alicerces, algo que não foram durante a participação dos jovens no Programa. Sinalizavam a necessidade e o desejo da maior presença de outras instituições em suas vidas, indo além do grupo familiar, na esperança de tornar menos dramáticos e solitários seus percursos em direção à vida adulta.

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Caminhos, miragens e vazios: a construção simbólica do futuro entre jovens de grupos populares  Mónica Franch

A dimensão do futuro é um dos principais focos do debate em curso sobre as mudanças nas temporalidades contemporâneas e uma das preocupações sociais mais acionadas quando o assunto é juventude. Com efeito, junto com uma relativa licença para aproveitar o presente, a preparação para o futuro é um dos significados mais comumente associados a essa idade da vida, sobretudo quando enfatizamos seu caráter de transição para o mundo adulto. É pensando no futuro que se impõe, ou se tenta impor, certa disciplina no presente, sem a qual presume-se que os jovens fracassarão em sua tarefa de se inserir satisfatoriamente na esfera do trabalho e de serem responsáveis por suas famílias. Contudo, o encurtamento do futuro característico da contemporaneidade põe em questão o papel preparatório que a juventude adquiriu na época moderna, produzindo efeitos sobre as orientações temporais dominantes para cada momento do curso da vida dos indivíduos (Leccardi, 1991, 2005a). É em relação a esse pano de fundo que busco compreender as expectativas de jovens de periferia, suas imagens a respeito do futuro e as estratégias de que lançam mão para construir seu amanhã.

Os dados que constituem a base empírica deste trabalho provêm de pesquisas desenvolvidas de 2001 a 2007, em três bairros populares do Grande Recife. A reflexão sobre o futuro está inserida em um esforço maior de compreender os usos e sentidos do tempo desses jovens, que redundou em minha tese de doutorado (Franch, 2008). O trabalho de campo, de cunho antropológico, incluiu observação direta nos bairros, escolas, centros profissionalizantes e outros espaços de socialização juvenil, além de entrevistas e grupos de discussão com um total de 45 jovens. Foram igualmente aplicados 48 questionários abertos em uma das localidades pesquisadas. Os questionários, bem como boa parte das entrevistas e grupos de discussão realizados entre 2001 e 2004, faziam parte da pesquisa internacional Os Jovens e a Cidade: Habilidades, Conhecimentos e Reprodução Social, promovida pelo Instituto de Antropologia da Universidade de Copenhague em três cidades “do Sul”: Recife, Hanói e Lusaka. No Recife, a pesquisa foi desenvolvida pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal de Pernambuco, sob a coordenação de Parry Scott e de Anne Line Dalsgaard. Algumas das entrevistas utilizadas neste texto foram feitas em colaboração com a geógrafa Katherin Gough, que também participou do projeto. Outras entrevistas foram feitas com a antropóloga Anne Line Dalsgaard (Hansen, 2008). Lendo o futuro: anotações para uma abordagem socioantropológica do porvir

O futuro traz em si o paradoxo de ser “um objeto real sem realidade” (Araújo, 2005, p. 9): embora oriente as ações no presente, sendo, deste modo, uma importante dimensão a ser explorada, não constitui uma realidade palpável e carrega, ainda, a incerteza. Até certo ponto, refletir sobre o futuro é como avançar em uma no man’s land, território incógnito que inevitavelmente nos surpreende, pondo por terra os planos e aspirações que com tanto cuidado traçamos para que guiem nossa caminhada no escuro. Todavia, não é apenas de imponderáveis que o futuro é construído. Aspectos como a origem social, o momento [ 196 197 ]

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do curso da vida, a experiência geracional e a condição de gênero informam socialmente nossa orientação temporal e, a julgar por alguns autores, tornam o futuro, se não plenamente previsível, muito menos impreciso do que gostaríamos de acreditar. Alguns estudos enfatizam a ligação existente entre aquilo que os sujeitos projetam para seu futuro e sua posição no espaço social. Já em 1950, Maurice Halbwachs (apud Araújo, 2005) sugeria que o futuro é um horizonte temporal significativo apenas para as classes médias, ao passo que o passado é a dimensão mais acionada pela classe privilegiada e o presente, pelas classes trabalhadoras. De forma semelhante se manifestava Richard Hoggart (1973, p. 160), ao discorrer sobre a orientação temporal dominante na classe trabalhadora inglesa, também na década de 1950: [...] de uma maneira geral, a natureza imediata e presente da vida nas classes proletárias contribui para que se manifeste uma tendência para gozar os prazeres imediatos, desencorajando o planejamento em vista de um objetivo futuro, ou de um ideal a atingir.

As diferenças na percepção de futuro a partir da origem de classe foram objeto de várias pesquisas, que costumam confirmar a relação entre tempo e classe social postulada por Halbwachs, notadamente o maior investimento no futuro pelas classes médias e, contrariamente, o encurtamento do horizonte temporal nos grupos populares (LeShan, 1952; O’Rand; Ellis, 1974; Araújo, 2005). No estudo de O’Rand e Ellis (1974), a orientação para o futuro aparece, inclusive, como um indicador muito comum de projetos de ascensão social entre jovens de origem trabalhadora. No Brasil, os trabalhos de Cláudia Fonseca (2002) caminham no mesmo sentido, a partir da comparação entre a forma de constituir famílias em grupos populares e nas classes médias. Para essa autora, entre os segmentos médios é possível encontrar uma visão linear do tempo orientada para o futuro, o que se traduz em um vocabulário específico com ênfase na ideia de investimento e na família conjugal. Já os grupos populares, devido à instabilidade e à fragmentação de seu cotidiano, Caminhos, miragens e vazios

põem menos fé em uma visão linear do tempo, centrando-se no presente e enfatizando as relações dadas (“de sangue”) em detrimento daquelas construídas (“de aliança”). Indo mais longe, Pierre Bourdieu (2001, p. 254) considera que o futuro dista de ser uma dimensão aberta, como apregoa a “visão intelectualista da experiência temporal”. Para esse autor, existe uma adequação entre esperanças e oportunidades, o que faz com que sonhemos principalmente com aquilo que estamos socialmente destinados a fazer: “O porvir iminente está presente, imediatamente visível, como uma propriedade presente das coisas, a ponto de excluir a possibilidade de que não ocorra – possibilidade que continua existindo teoricamente” (p. 254). De acordo com essa abordagem, projetar-se no futuro somente seria possível para aqueles que estão bem posicionados – e bem ajustados – no jogo social, conhecendo suas regras e conseguindo, desse modo, traçar estratégias efetivas que extrapolem o presente. Já os sujeitos malposicionados, notadamente aqueles que se situam nos segmentos do subproletariado, não possuem qualquer controle sobre seu porvir, lançando mão de expedientes fantasiosos, usualmente desconectados da dimensão do cotidiano. Para os “homens sem futuro” de Bourdieu, os sonhos inatingíveis tomam o lugar dos projetos e as pessoas não são capazes de interferir em seus próprios destinos, vivendo em um presente permanente e plano. Contudo, o aumento da incerteza nos tempos atuais parece ter tornado cada vez mais comum a experiência de “falta de futuro”, aproximando, assim, as orientações temporais dos jovens das classes médias e das classes trabalhadoras. Se usarmos a terminologia de Bourdieu, tudo indica que o “jogo social” perdeu o caráter autoevidente, tornando mais difícil a adequação entre expectativas e oportunidades. O que está em questão é a persistência ou a ruptura da percepção linear do tempo que foi construída ao longo da modernidade e como isso afeta os sujeitos de acordo com certas propriedades, tais como a origem de classe, sua condição de gênero e sua geração. [ 198 199 ]

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Infância e juventude

Levando em consideração essas reflexões, neste trabalho não busquei relacionar causalmente presente e futuro nas trajetórias juvenis, apontando fatores que levariam ao sucesso ou ao fracasso na inserção social dos jovens. Com exceção daqueles jovens que já morreram como consequência da violência urbana (Franch, 2008), todas as narrativas que colhi em campo encontravam-se em aberto, e cada recorte na vida dos jovens era o futuro de um momento anterior, ao mesmo tempo em que abria novas janelas para o desconhecido. Mesmo aquelas carreiras que pareciam mais definidas estavam sujeitas a reviravoltas inesperadas, das quais provavelmente eu jamais tomaria conhecimento. Ao centrar meu interesse na dimensão do futuro, busquei, principalmente, identificar as esferas em que os jovens projetam prioritariamente seu amanhã – trabalho, família, consumo etc.; a extensão de seu horizonte temporal, ou seja, a existência ou não de projetos a curto, médio e longo prazo; e, por fim, a relação que eles estabelecem entre presente e futuro, isto é, se traçam estratégias para conseguir seus fins ou se existe, pelo contrário, uma desconexão entre as ações do presente e as expectativas para o dia de amanhã. Se pensarmos em termos de agência juvenil, uma maior conexão entre presente e futuro sugere, a princípio, um maior controle dos jovens em relação a suas vidas. Essa ideia está presente em muitos trabalhos educativos voltados ao público juvenil, o que transparece na ênfase à construção de um projeto de vida como atividade central do processo educativo. Todavia, se o futuro, em nossas sociedades, tende a se tornar cada vez mais incerto em razão da rapidez com que os cenários se modificam, ter um projeto de vida deixa de ser um indicador automático de agência. Pode-se inclusive pensar que os jovens mais adaptados aos novos tempos não são necessariamente aqueles que planejam tudo antecipadamente, mas os que se movimentam no curto prazo, de forma a aproveitar as oportunidades de cada momento. Essa parece ser a conclusão a que chegam alguns estudos feitos na Europa (Lasén, 2000; Leccardi, 2005b), que também demonstram, entretanto, como a facilidade Caminhos, miragens e vazios

para aproveitar as oportunidades depende muito dos recursos com que cada jovem conta, notadamente seu capital cultural e social. Os jovens com os quais trabalhei não possuem, via de regra, os mesmos recursos (culturais, econômicos e sociais) que muitos dos jovens europeus mencionados nesses estudos. A falta de oportunidades é um mote constante em seus relatos, o que constitui um desafio na hora de projetar, imaginar e construir seu futuro. O futuro não é um só: pluralidade de orientações temporais juvenis

Nas próximas páginas, apresentarei ao leitor alguns aspectos da construção simbólica do futuro entre os jovens entrevistados. A pesquisa revelou a existência de uma pluralidade de práticas e sentidos atribuídos pelos jovens a essa dimensão temporal, desde o planejamento a longo prazo até perspectivas mais imediatas da ação. Além disso, a dimensão do futuro revela-se polissêmica, servindo tanto para a orientação das ações como para a afirmação de valores e formas de estar-no-mundo que só fazem sentido a partir da posição dos sujeitos no presente. Certeza, incerteza, linearidade, mas também dificuldades ou até mesmo indiferença em relação ao futuro compõem o retrato dessa dimensão das temporalidades juvenis, que apresentarei com base nas orientações mais comuns encontradas em campo. Futuro longo: linearidade e projeto na experiência juvenil

Nascida em um pequeno município da Zona da Mata pernambucana, Mara1 gostava muito de falar sobre como seria seu futuro. Essa jovem, então com 15 anos de idade, tinha objetivos a curto, médio e longo prazo, quase todos ligados à formação escolar. Quando a conheci, estava se preparando para entrar no Centro Federal de Educação Tecnológica (Cefet),

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Todos os nomes de entrevistados foram trocados para preservar suas identidades.

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mas não conseguiu passar no exame, ao qual concorreram mais de 4 mil candidatos. Estava também matriculada em um curso de informática de um centro profissionalizante próximo de seu bairro, e aguardava, ansiosa, pelo começo das aulas. Um ano depois de nosso primeiro encontro, Mara conseguiu entrar em uma boa escola técnica, onde começou a estudar química. A médio prazo, a jovem queria se especializar em biologia marinha, o que pretendia conseguir alistando-se no Exército, uma vez que cursar uma universidade era incompatível com suas condições desfavoráveis de subsistência. Apenas depois de discorrer longamente sobre esses planos, Mara lembrava que, no futuro, também gostaria de casar e de ter dois filhos. Esse projeto, contudo, era o mais indefinido (às vezes falava que queria morar sozinha), pois somente se concretizaria, segundo ela, depois de adquirir “estabilidade”, lá para os 30 anos de idade. Era, igualmente, o que acreditava ser mais difícil de conseguir, pois, ao passo que o trabalho dependia somente de seu esforço (“A força de vontade vence tudo”), “encontrar um marido perfeito” não era nada fácil. Mara não tinha dúvidas de que conseguiria seu objetivo e falava frequentemente em termos assertivos sobre ele: “Vou ser bióloga da Marinha”. O caso dessa jovem, moradora de uma das três localidades estudadas, constitui o protótipo de uma representação de futuro que, para efeitos de contraste, podemos denominar “modelo moderno” ou “modelo da primeira modernidade”: o futuro é projetado em uma linha reta a partir de um “projeto de vida”, que relaciona as ações presentes com as futuras, dando destaque à carreira profissional. Trata-se de um “futuro longo”, pois abrange vários anos, coincidindo com o processo de transição à vida adulta. Seus princípios básicos são aqueles da percepção do futuro surgida na primeira modernidade – causalidade e linearidade (Araújo, 2005) –, tornando essa representação condizente com a imagem da juventude como uma época preparatória para a idade adulta. O mecanismo de “diferimento das recompensas” (Leccardi, 2005b, p. 35), que subordina o presente ao futuro sonhado, está igualmente na base dessa orientação temporal. Caminhos, miragens e vazios

A valorização da educação formal, a ideologia meritocrática, a percepção do trabalho como um veículo para a realização pessoal e, por fim, a subordinação da vida familiar à consolidação da esfera profissional nos informam que estamos diante de uma constelação de valores própria do individualismo moderno (Dumont, 1985). Hoje vários estudos indicam que essa ideologia, outrora limitada às classes médias (Heilborn, 1984; Duarte, 1988; Sarti, 1996), também pode ser encontrada nas camadas populares, embora não isenta de tensões (Scott, 2001; Duarte, 2005; Heilborn et al., 2006; Barros; Machado, 2007). Existe, por trás dos sonhos de Mara e de outros jovens de “futuros virtuais” semelhantes, uma expectativa de ascensão social pelo estudo e pelo esforço pessoal, o que implica uma visão de “futuro aberto”, herdeira dos ideais de progresso construídos na modernidade: “O tempo aberto e irreversível do futuro avança, sem incertezas, na direção de um indiscutível melhoramento” (Leccardi, 2005b, p. 38). A meritocracia, isto é, a ideia de que os indivíduos conseguem sua posição na sociedade graças a seu desempenho individual, sem fazer uso de privilégios hereditários ou corporativos (Barbosa, 2001), é um forte componente da visão causal e linear do porvir entre aqueles entrevistados que têm representações de “futuro longo” – e, de resto, em muitos dos jovens entrevistados. Trata-se de um valor transmitido de geração a geração, mas que frequentemente esbarra na estrutura desigual de oportunidades que os jovens enfrentam. Roberto, assistente de serviços gerais em uma rede de supermercados, fala dos conselhos que recebia em casa: Aprendi com minha mãe que se a pessoa quer uma coisa, tem que ir em frente, tem que lutar, né, se esforçar pra ter as coisas, ter muita fé em Deus, né, e lutar pelo que a gente quer. A pessoa ter um ideal de uma vida melhor, mais organizada. Meu pai, eu aprendi também um pouco do serviço dele e que a pessoa tem que trabalhar pra se esforçar.

A ênfase no trabalho e no esforço pessoal faz sentido, sobretudo, para aqueles que não podem contar com as benesses dos privilégios ad[ 202 203 ]

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quiridos. Em vez do recurso a um Estado forte e redistributivo, o apelo à fé. Diante das dificuldades da vida, esforço e luta. Dos três elementos constitutivos da noção de desempenho (talento, habilidade e esforço), tão cara à ideologia meritocrática (Barbosa, 2001), o esforço é talvez o que mais aparece na fala dos jovens que apresentam uma visão linear do futuro, reforçando a permanência de uma forte ética do trabalho entre eles. Entretanto, o empenho e a habilidade não são suficientes quando inexiste a “oportunidade”. A linearidade desse tipo de projeção de futuro encontra-se ameaçada pelas circunstâncias concretas que dificultam a realização dos projetos dos jovens. Podemos compreender um aspecto muito singular nesse tipo de orientação temporal: a convivência de uma visão individualizante do futuro, em que o porvir é resultado do próprio esforço, e de uma visão religiosa (“ter muita fé em Deus”), que indica, em última instância, que os desígnios do futuro não dependem exclusivamente das ações dos homens. Um aspecto interessante nas representações de “futuro longo” é a adesão a esse modelo por parte de muitas garotas, sobretudo das mais novas, que parecem querer se distanciar da forma tradicional de transição à idade adulta para as mulheres nos grupos populares: via maternidade e casamento. Em alguns casos, a prioridade dada à busca de uma inserção no mundo do trabalho repercute no adiamento do início da vida sexual, como já foi observado em outros estudos (Bozon; Heilborn, 2006). Mesmo quando existe um investimento paralelo na carreira conjugal, a projeção de uma esfera individual de futuro, ligada à satisfação que as jovens esperam encontrar em seus trabalhos imaginados, convida a pensar a relação entre essa dimensão temporal e a transformação nas relações de gênero, que possibilita uma maior individuação das mulheres. Com efeito, a representação linear do futuro, vinculada prioritariamente à esfera profissional, tem uma marcada inscrição de gênero, correspondendo, sobretudo, à maneira como os homens traçaram suas metas e construíram suas trajetórias ao longo da história, especialmente em contextos próximos do pleno emprego. Araújo (2005, p. 31) declara: Caminhos, miragens e vazios

O futuro é tradicionalmente uma categoria “masculina” justamente quando acoplado à linearidade e à monocronia que esta implica. Congrega a sucessão de fases relativas às próprias passagens estatutárias reguladas pela sociedade, mas acertadas de acordo com as “etapas” do “ciclo da vida”. Mais, o futuro [...] como algo para o qual se exige disciplina no dia-a-dia, é a pedra de toque da temporalidade referencial a partir da qual se julgam e classificam todos os outros regimes e estilos de uso do tempo. Mas trata-se de uma temporalidade autorizada, regulada e instituída ao sabor das temporalidades masculinas.

Em geral, o futuro socialmente atribuído às mulheres não se encaixa nesse modelo monôcrono, ao incorporar uma pluralidade de regimes temporais (o tempo reprodutivo, familiar e doméstico, ligado ao cuidado com os outros) cuja articulação com o tempo do trabalho remunerado costuma ser conflituosa. Desde o pioneiro trabalho de Julia Kristeva (1981), “Women’s time”, vários estudos chamaram a atenção para a importância do elemento cíclico ou repetitivo no tempo familiar e doméstico, que não se coaduna com uma representação linear do futuro. Considero, entretanto, que a repetição ou o caráter cíclico não é um traço “natural” das temporalidades femininas, no sentido de ser necessário ou ditado por uma biologia inescapável, antes um efeito da organização social do tempo destinado às diversas esferas da vida humana, incluindo a produção de bens e a reprodução da vida cotidiana.2 O que chama a atenção na forma como essas garotas imaginam seu futuro é a articulação de uma forma individualizada de projetar-se e uma representação do tipo linear do futuro, que tende a minimizar, ou mesmo a negar, o desafio de conciliar trabalho e formação de uma família. Por fim, o “futuro longo” parece depender fortemente do tempo institucional, principalmente da inserção dos jovens em instituições educativas como a escola, em programas de estágio em empre-

2 A esse respeito ver Araújo (2005) e Leccardi (2005c), além de Kristeva (1981), cujo estudo enfrentou críticas relativas à essencialização. [ 204 205 ]

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sas públicas ou privadas, bem como em projetos voltados ao público juvenil, que costumam enfatizar a construção de um “projeto de vida”. Chama a atenção o modo pelo qual a representação do futuro assume, para os jovens que participam desses projetos, uma feição linear e planejada, refletindo a já mencionada ordem de prioridades que vai da estabilidade financeira, via inserção no mercado de trabalho, até o estabelecimento da própria família, em um modelo de transição idealizado que raramente encontra equivalência nas formas concretas de tornar-se adulto. Em um grupo de discussão com participantes do Projeto Agente Jovem, era surpreendente a semelhança encontrada em suas visões para o futuro: Eu gostaria primeiro de terminar os meus estudos, arrumar um bom emprego e depois namorar, noivar e casar, ter um casal de filhos, também pode ser dois meninos ou duas meninas, depende da vontade de Deus. E eu não queria só trabalhar em casa, em casa só de noite depois que eu largasse do serviço. (Participante do sexo feminino do Agente Jovem). Eu pretendo me casar, agora só quando eu terminar os estudos, arrumar um bom emprego pra poder sustentar minha família e em casa assim, não só eu que posso trabalhar, porque tem aquela mania de antigamente que só quem trabalhava era o homem e a mulher ficava em casa lavando os pratos na cozinha. Eu pretendo me casar, agora a idade certa pra casar eu não sei, só quando eu arrumar meu emprego, minha condição de dar uma boa escola pra que quando ele crescer seja alguém na vida. (Participante do sexo masculino do Agente Jovem).

Um caso especial nas representações lineares de futuro foi aquele apresentado por alguns jovens membros de igrejas evangélicas, para os quais a vida privada também é passível de planejamento. Para a maioria dos jovens o casamento é algo que acontece “de repente”, respondendo a visões espontaneístas da prática sexual. Para aqueles que participam de igrejas neopentecostais, entretanto, existe uma norma de estabelecer a própria família, comportando uma série de etapas que Caminhos, miragens e vazios

deveriam, a princípio, ser rigorosamente seguidas – embora, mais uma vez, as exceções sejam encontradas por toda parte: “Meu propósito é primeiro namorar, noivar e casar, porque já que eu sou evangélico, isso está na Bíblia” (jovem da Assembleia de Deus). Futuros oníricos: quando presente e futuro se desencontram

Um segundo tipo de representação do futuro pode ser classificado a partir da ênfase no sonho, em vez de no projeto. Em um dos questionários aplicados, um garoto de 17 anos escreveu a seguinte frase: “Adolescente é uma pessoa que ainda tem muito sonho”. Crescer seria, necessariamente, deixar de sonhar? Qual seria a medida de tal crescimento? A idade? O casamento? Os filhos? E como saber quando um sonho é o germe de um projeto e quando não passa de uma ilusão fantasiosa, situada no terreno da mais pura imaginação? Qualquer resposta dada a essas questões é incompleta. Afinal, se não é bem verdade que a vida seja apenas um sonho, como queria o dramaturgo espanhol Calderón de la Barca em La vida es sueño, é provável que sonhar seja a maneira mais comum de imaginar o futuro ou, simplesmente, de nos projetarmos além do cotidiano. Nas narrativas juvenis, o sonho parece cumprir esse duplo papel, de um lado servindo de incentivo para o presente, de outro permitindo “brincar” com a realidade, ensaiando outras identidades que não as habituais. É nesse segundo sentido que o sonho se desconecta do presente, e o futuro deixa de corresponder à percepção linear anteriormente descrita. Hogne Øian (2004) descreve esse tipo de orientação temporal com base na ideia de “futuro espacializado”, tomada de empréstimo do trabalho de Bourdieu (2000) junto aos Kabila. Para esse povo argelino, o futuro encontra-se em um lugar situado “atrás das montanhas” e não guarda qualquer conexão com aquilo que acontece no dia a dia. Øian acredita ter encontrado uma representação semelhante do futuro em Linda, uma jovem norueguesa desempregada que projeta para si futuros desconectados de seu cotidiano e que mudam ao longo do tempo. [ 206 207 ]

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Embora o autor não use essa expressão, pareceria que os sonhos de futuro atuam, para essa jovem, como uma espécie de alter ego, permitindo-lhe se apresentar aos outros de uma forma diferente e muito mais interessante do que ela é. Contudo, é também através desses futuros inventados que a jovem se identifica com certos valores e estilos de vida, servindo os sonhos como uma via para seu autoconhecimento: As pessoas desempregadas podem operar com imagens delas mesmas como pessoas de sucesso no futuro e usar essas imagens na construção de identidades, tanto em termos de autocompreensão como de autoapresentação. (Øian, 2004, p. 183, tradução nossa).

Como se vê, embora a ideia de Øian se aproxime daquela de “homem sem futuro” de Bourdieu, sua análise semântica dos “futuros espacializados” faz emergir uma dimensão mais criativa e significativa dos sonhos e ilusões dessa adolescente, que pode ser de muita utilidade para a análise dos “futuros oníricos”. Encontrei representações semelhantes àquelas descritas por Øian entre muitos jovens que participaram desta pesquisa, sobretudo (mas não apenas) entre os mais novos. Jovens que moravam em uma favela próxima de um shopping center sonhavam em trabalhar nas lojas desse centro, onde poderiam conviver cotidianamente com todos aqueles objetos que despertavam seus desejos: as comidas, as roupas, os perfumes. De modo interessante, nesse grupo, a jovem Jade, de 16 anos, que se intitulava “a voz da experiência”, considerava as ideias de suas colegas como simples desvarios adolescentes e sonhava para si um futuro como secretária ou algum outro emprego de “colarinho branco”. De todo modo, fantasiar futuros nessa idade (as garotas tinham de 11 a 15 anos) não é algo tão estranho, uma vez que ainda se tem poucos elementos quanto aos caminhos que é possível trilhar. Futuros espacializados são também os sonhos de se ter uma profissão de sucesso (advogado, juiz, médico etc.) por parte daqueles jovens que, por sua escolaridade comprometida ou por seu estilo Caminhos, miragens e vazios

de vida, claramente não chegarão à universidade. Carol estava nessa situação. Com 19 anos de idade e sem ter concluído ainda a oitava série, acalentava o sonho de ser médica, embora estivesse fazendo um curso profissionalizante de panificação oferecido no seu bairro quando a conheci. Em casos como este, a profissão sonhada pode ser vista como uma forma de construir uma identidade no presente (Øian, 2004) ou como resultado da dificuldade de pensar em um futuro provável, devido à falta de capital escolar, simbólico, relacional e/ ou econômico (Bourdieu, 2001) – ou ainda ambas as coisas. Futuros oníricos não necessariamente ligados a profissões universitárias apareceram nas entrevistas de muitos jovens. Paulo, de 22 anos, gostava de fantasiar que algum dia apareceria um “olheiro” no campo onde ele e seus colegas jogavam futebol de várzea – apesar de ter passado da idade em que as novas promessas do futebol costumam ser reveladas. Laura, por sua vez, sonhava em ser uma renomada cantora gospel, sonho acalentado em suas idas à igreja, onde se afastava de um cotidiano enfadonho e com poucas compensações. Nesses casos, o futuro parece colocar-se a serviço do presente, enfatizando as representações da juventude ligadas ao lazer e à diversão em detrimento da dimensão preparatória vista anteriormente. Tais ensonhações trazem, por vezes, o elemento da fama, do reconhecimento, do sucesso econômico, a expectativa de se destacar perante os demais, de se singularizar graças ao talento ou a um golpe de sorte: Gosto de jogar [futebol], sonho um dia ser, minha idade já estourou pra ser profissional, mas pra treinar em clube, quem sabe eu treinando por aí um olheiro me vê e gosta do meu futebol, e me leva pra jogar em algum lugar [...]. A gente nunca sabe que tem [um olheiro por perto], a gente joga num local e nunca pensa que tem, aí de repente ele chama você. (Paulo, 22 anos).

Afora os futuros oníricos vistos até aqui, existe outro tipo de sonho muito comum entre as garotas e, sobretudo, entre os rapazes [ 208 209 ]

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entrevistados. Trata-se de um objetivo mais genérico e, pode-se dizer, modesto quando comparado ao sonho de ter uma profissão liberal e prestigiosa: “Eu quero arrumar um emprego fixo, estabilidade, condições pra pessoa viver com um pouco de conforto” (Douglas, 23 anos); “Profissão, eu não tenho nenhuma não, mas queria um trabalho que ganhasse bem, que desse pra viver” ( João, 25 anos). Estabilidade e um bom salário que dê condições de viver minimamente bem mostram a permanência, entre esses jovens, do ideal fordista de emprego para a vida toda. A recorrência com que esse sonho reaparece sugere que, apesar dos tempos de incerteza, isso não traz necessariamente uma mudança quanto às expectativas de futuro, contrariamente ao que apontam alguns autores: Nesse horizonte temporal comprimido, o próprio significado da idade juvenil se transforma [...] a ‘boa vida’ não se baseia mais em um compromisso de longa duração, a idéia de estabilidade perde valor. (Leccardi, 2005b, p. 37, grifo no original).

Evidentemente, se os jovens que sonham com estabilidade pudessem experimentar trabalhos temporários estimulantes e bem remunerados, é bem provável que seu ideal de estabilidade se transformasse. Mas, nas circunstâncias em que vivem, com limitados recursos educativos e capital social para se inserirem em um mercado de trabalho cada vez mais especializado e excludente, a passagem do tempo pode emergir como uma ameaça, revestindo o futuro de uma feição intimidante e muito mais real que aquela apresentada nos sonhos oníricos. “Quando a idade vai chegando”: construindo os futuros possíveis

Algumas circunstâncias parecem tornar os jovens mais pragmáticos em suas ideias e planos para o futuro: entrar no mundo do trabalho e, sobretudo, tornar-se responsável por uma família. Tais circunstâncias são às vezes traduzidas com as expressões “quando a idade chega” ou “quando a idade vai chegando”, que, dependendo Caminhos, miragens e vazios

do contexto, podem definir também o processo de envelhecimento. A idade cronológica exerce igualmente um papel na mudança da forma de representar o futuro, não apenas pelo amadurecimento psicológico (que depende de muitas variáveis, não necessariamente relacionadas à idade), mas pela pressão social no sentido de assumir certas responsabilidades na vida, principalmente de constituir família e conseguir os meios para sustentá-la. É entre esses jovens que encontramos mais planos a curto prazo, porém conectados com o presente. Trata-se de uma orientação próxima da noção de “presente estendido”, que Helga Nowotny (1989) acredita ser um traço marcante nas temporalidades contemporâneas, uma vez que o futuro tem se tornado cada vez menos passível de controle pelos indivíduos. Todavia, se essas situações podem ser novas para os jovens europeus, elas parecem fazer parte do modo como os grupos populares construíram historicamente suas estratégias de reprodução material e simbólica, em consonância com visões mais presenteístas da vida social, como sugerido por Hoggart (1973). Muitos jovens têm planos de futuro (ampliar uma casa, comprar um terreno, constituir família), mas não sabem quando poderão concretizá-los, uma vez que sua realização depende da conjunção de uma série de circunstâncias que vão além da vontade individual, envolvendo frequentemente o apoio de terceiros. O que parece ser novo nessas “estratégias da indeterminação” (Lasén, 2000) é a expectativa de que a vida se desenrole conforme um esquema linear e causal. Também forma parte dos novos cenários a pluralidade de recursos com que os jovens contam para tentar construir seus futuros, que vão desde as redes de apoio outrora existentes (família, parentes, vizinhos) à escola e os projetos para jovens, sem falar na nova economia das drogas. Essa multiplicidade de opções, mais presente em alguns lugares que outros, alimenta a visão de “futuro aberto”, que não necessariamente encontra equivalência no plano concreto. O caso de Saulo é um bom exemplo de como funcionam as estratégias no “presente estendido” dos jovens entrevistados. Como tantos [ 210 211 ]

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outros jovens, Saulo começou a trabalhar ainda na infância, quando tinha 8 anos de idade, junto com seu tio, que era marceneiro. Interessado na profissão, fez um curso profissionalizante que lhe possibilitou começar a trabalhar em uma firma, fazendo móveis. Contudo, a invasão dos móveis tubulares no Recife arruinou boa parte dessas pequenas empresas, deixando Saulo desempregado. Depois de tentar a sorte no negócio de marcenaria de um colega, o jovem terminou abrindo uma barbearia na casa dos pais, pois aprendera os rudimentos dessa profissão com um primo. Quando nos conhecemos, perguntei a ele o que pensava do futuro. Saulo manifestou seu interesse em ampliar a barbearia, que lhe permitia uma sobrevivência confortável para sua vida de solteiro. Meses depois, o retorno de um primo que morava em São Paulo fez com que seus planos mudassem, e esperava, agora, ser incorporado no futuro salão que este pretendia abrir em um bairro próximo ao Vietnã. Abertura para aproveitar as oportunidades do presente, multiplicidade de recursos para construir suas estratégias (cursos, família) e uma dependência de situações externas incertas compõem o retrato das estratégias de futuro de Saulo e de outros jovens como ele, que precisam ser “mil utilidades” para traçar seus caminhos na vida. Jovens sem futuro? O “fim dos tempos” de quem vive nas margens

Por fim, muitos jovens mostram desinteresse em falar sobre o futuro, recorrendo a frases como “o futuro a Deus pertence”, que sugerem a permanência de uma ideia de destino em que o porvir foge aos desígnios humanos. Todavia, isso não quer dizer que não tenham estratégias direcionadas ao dia de amanhã, nem penso que possamos nos contentar com essas expressões para retomar as tão criticadas teses do fatalismo. É possível, porém, que o futuro não seja para alguns jovens uma dimensão muito significativa, sobretudo a longo prazo. Contrariamente, a curto prazo é comum que eles alimentem pequenos projetos, tais como ir à praia no final de semana, sair à noite, inscrever-se em um curso, comprar uma roupa, visitar um amigo, Caminhos, miragens e vazios

namorar. São pequenos projetos que mostram uma valorização do instante, do presente que se justifica por si mesmo, sem precisar de um sentido externo ou de uma direção. Se o “futuro longo” traduzia uma temporalidade moderna, baseada no princípio da linearidade e da causalidade, os presentes sucessivos, feitos de pequenos projetos que vão se tornando realidade, parecem condensar as características atribuídas aos futuros da segunda modernidade, em que a projetualidade a longo prazo tende a desaparecer. Nesses casos, a noção de projeto muda em relação àquela que observamos nos jovens que seguiam um “futuro longo”. Como observa Lasén (2000, p. 242, tradução nossa), os projetos servem para alimentar o presente e não para programar o futuro. Transformam-se em objetos virtuais que integram os devaneios e o imaginário. Partilhados e criados em comum, ajudam a criar vínculos e não a fortalecer a identidade individual.

Se, ao pensar no futuro longo, encontrávamos eco na ideologia individualista moderna, baseada na meritocracia, esse outro tipo de orientação temporal afina-se com uma visão de mundo que incorpora a dimensão do hedonismo, a busca de sati\ssfação no aqui-e-agora e a desvalorização dos sacrifícios, que não se justificam mais diante de um futuro incerto. Esses elementos costumam ser arrolados como próprios das novas formas do individualismo, que se afasta do modelo moderno originário na ética protestante e floresce em circunstâncias da pós-modernidade ou da modernidade tardia.3 Do ponto de vista da organização das idades, ao passo que o futuro longo remetia a um dos significados sociais mais comuns da juventude, como uma etapa pre-

3 Considero pós-modernidade e modernidade tardia como equivalentes, apesar de ser ciente dos debates sobre essas questões. Foge aos objetivos deste texto uma reflexão mais aprofundada sobre o assunto. [ 212 213 ]

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paratória para a idade adulta, a expansão do presente responde a outro dos significados socialmente atribuídos a essa fase da vida: a maior disponibilidade para o lazer, para a sociabilidade e para a “curtição”. Viver a curto prazo, em uma série de presentes sucessivos, não parece ser um grande problema para muitos jovens, sobretudo quando áreas de incerteza biográfica (como o estudo ou o trabalho) se justapõem a outras em que a trajetória mostra-se mais definida (a família, por exemplo). Em contrapartida, as “estratégias da indeterminação” situam-se frequentemente a serviço dos aspectos mais expressivos da vida social – a sociabilidade e o afeto, podendo conviver com áreas em que se constroem “futuros possíveis”. Há alguns casos, entretanto, que merecem uma atenção especial por problematizar mais claramente a projetualidade biográfica, levando aos limites uma orientação presenteísta marcada pela falta de profundidade temporal. É quando as dimensões do risco se tornam mais presentes nas biografias dos jovens, a ponto do presente se tornar o único terreno possível para a imaginação, diante de um futuro que se desdobra entre os sonhos de grandeza e a possibilidade última da extinção física. Nesse sentido, as dimensões da incerteza e do risco, comuns nas discussões sobre a sociedade contemporânea, assumem um caráter específico entre os jovens estudados, que os separa claramente da vivência de jovens em outros contextos nacionais. É o que podemos ver no seguinte trecho de entrevista: Mónica: Como vocês se imaginam no futuro? Murilo: Marginal, tudo marginal. Eu me imagino no futuro no cemitério, aquele caixão de ouro... Williams: É que nem a gente diz: a gente não tá mundo pra semente não, a gente não vai ser uma rosa mais na frente não, o mundo da gente não é feito de rosa não. Mónica: É feito de que? Williams: É feito de espinho. Murilo: De barro, mas antes de eu ir já vai uns três ou quatro comigo. Já foi um, está pra ir mais um bocado.

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Williams: Esse está perdido, esse está perdido, não tem jeito não. Murilo: Antes de eu ir, eu vou, eu sei que eu vou mas vai comigo também. Williams: Um dia a gente todinho vai comer areia no pé da casa, só não vai comer por causa da tampa de madeira, mas ainda a turma vai lá e tira! Murilo: Ossada, só os ossos. Mónica: Tá bom, todo mundo vai morrer um dia, mas vocês pensam que isso vai acontecer quando? Williams: O mais cedo possível. Murilo: Eu não espero muito não e do jeito que o mundo tá aí... Williams: Hoje em dia a gente não pode virar aqui na esquina e nem pode prever o futuro da gente, tanto faz a gente tá aqui conversando como a gente sair daqui pra ali, morreu. Murilo: Levar uma topada e morrer. Williams: E aí, o que restou da gente? Nada... Murilo: Só a entrevista. Williams: Só a entrevista da fita, foto e lembrança.

A entrevista em questão aconteceu em uma tarde de sábado. A foto a que Williams se refere foi tirada pela geógrafa Katherin Gough, que realizou comigo algumas das entrevistas deste trabalho. Ao escutar a gravação, percebo o incômodo que aquela conversa provocadora ocasionava em mim. Williams e Murilo estavam obviamente brincando comigo, explicitando interditos com vistas a chocar as “duas gringas” que estavam atrasando a hora da farra. Ao mesmo tempo, verdades eram ditas, e tudo aquilo só podia ser pronunciado porque existia como possibilidade existencial para aqueles jovens. Ouvi-los falar da morte, contudo, não era fácil para mim, o que provocou perguntas pouco adequadas e respostas que, com o passar do tempo, mostraram-se proféticas. De Murilo, não tive mais notícias, mas Williams morreu perto de casa, em represália por ter roubado o celular de uma moradora do bairro. A fita, a foto e a lembrança aqui ficaram, fixando sua memória.

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Considerações finais

Neste trabalho, discuti algumas das representações sobre o futuro que encontrei entre jovens moradores do Grande Recife, agrupadas com base em alguns elementos que me permitiram contrastá-las. Todavia, é preciso lembrar que tais orientações não são exclusivas ou definidoras de “estilos temporais” necessariamente opostos. Antes, elas convivem, ora se sucedendo no tempo (um jovem pode sonhar em uma época e ser pragmático mais adiante ou, pelo contrário, voltar a sonhar em uma nova fase da vida), ora definindo diferentes esferas (planejamento a longo prazo da vida profissional e incerteza em relação à vida afetiva, por exemplo). Como tentei mostrar, as ideias dos jovens a respeito do futuro indicam a permanência de uma representação linear do tempo, ligada à percepção da juventude como um período preparatório para a vida adulta. Essa representação organiza o futuro em uma sequência de etapas bem definidas, começando pela estabilidade econômica e terminando pela formação da própria família; essa sequência, no entanto, raramente se corresponde com a prática. Se relacionarmos esse tipo de representação com o individualismo moderno e com as condições de passagem à idade adulta tradicionalmente acionadas pelos jovens das classes médias, podemos talvez nos aventurar a pensar que existe uma adoção desse modelo entre os jovens estudados, o que reflete também uma expectativa de melhora de vida a partir da ideia de futuro aberto. Contudo, o futuro longo e linear é apenas uma dentre as várias orientações encontradas. Muitos jovens empreendem estratégias de curto prazo, que são características do presente estendido (Nowotny, 1989) e que indicam sua maleabilidade para lidar com as incertezas à frente. As dificuldades para se inserir no mundo do trabalho e formar uma família são hoje, talvez, maiores do que aquelas que outras gerações enfrentaram. Entretanto, não se pode dizer que essas circunstâncias sejam totalmente novas para eles, e é por isso que o recurso a redes

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de parentesco, amizade e vizinhança termina se mantendo como uma estratégia fundamental para construir o futuro. Em contrapartida, as perspectivas mais imediatistas de vida apenas se verificam, e nem sempre de modo exclusivo, no caso dos poucos jovens envolvidos com a criminalidade, o que mostra o alto conteúdo de risco envolvido nessa forma de vida. Todavia, sonhos, expectativas de futuro e projetos a curto, médio e longo prazo estão presentes em todos os jovens, mesmo entre os jovens “errados”, sugerindo a importância dessa dimensão temporal como perspectiva das experiências juvenis que modela fortemente o significado social da juventude nas periferias das cidades brasileiras. Agradecimentos

As reflexões contidas neste texto são devedoras de muitas contribuições. Não poderia deixar de agradecer a Rosilene Alvim, do PPGSA/UFRJ, pela orientação da minha tese, e a Anne Line Dalsgaard (Universidade de Aarhus) e Katherin Gough (Universidade de Copenhague), com quem realizei algumas das entrevistas narradas ou citadas neste trabalho.

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Sobre os autores

Ana Liési Thurler Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). É autora de Em nome da mãe: o não reconhecimento paterno no Brasil (Editora Mulheres, 2009) e coautora de Violência doméstica: vulnerabilidades e desafios na intervenção criminal e multidisciplinar (Lumen Juris Editora, 2009). Dijaci David de Oliveira Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Fernanda Bittencourt Ribeiro Doutora em Antropologia Social e Etnologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), França. É professora de Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Licinia Maria Correa Doutora em Educação Escolar pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). É professora da Universidade Vale do Rio Doce (Governador Valadares-MG) e pesquisadora visitante da Uni-

versidade Roma Tre, com pesquisa financiada pelo Programa Marie Curie da Comunidade Europeia. Magali Reis Doutora em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG). Maria Carla Corrochano Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e assessora licenciada do Programa Juventude da Ação Educativa – Assessoria, Pesquisa e Informação. Mónica Franch Doutora em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). É professora do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Revalino Antonio de Freitas Doutor em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). É professor da Faculdade de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Tania Ludmila Dias Tosta Doutora em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB). É associada ao Núcleo de Estudos sobre o Trabalho da Universidade Federal de Goiás (UFG).

© Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tania Ludmila Dias Tosta, 2011 Direitos desta edição reservados aos autores, Ministério da Educação. Revisão Gisele Dionísio da Silva Estagiária Isis Carmo Pereira do Nascimento Projeto gráfico da coleção e capa Alanna Oliva Editoração eletrônica Alanna Oliva Dados internacionais de catalogação-na-publicação (CIP) (Henrique Bezerra de Araújo) I43

Infância e juventude: direitos e perspectivas / organizadores, Dijaci David de Oliveira, Revalino Antonio de Freitas, Tania Ludmila Dias Tosta. – Goiânia : UFG/Funape, 2011. 220p. (Educação em Direitos Humanos; 2) ISBN: 978-85-87191-69-4 1. Educação – Direitos Humanos. 2. Violência – Crianças e Adolescentes. 3. Sociologia – Direitos Humanos. I. Título. CDU 37.015.4

Revisão, projeto gráfico, editoração, impressão e acabamento Campus Samambaia, Caixa Postal 131 CEP: 74001-970 - Goiânia - Goiás - Brasil Fone: (62) 3521-1107 - Fax: (62) 3521-1814 [email protected] www.cegraf.ufg.br

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9 788587 191694

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