DIREITOS FUNDAMENTAIS: A Coisa Julgada e sua Relativização

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DIREITOS FUNDAMENTAIS: A Coisa Julgada e sua Relativização RESUMO Direitos Fundamentais e Coisa Julgada são dois importantes valores jurídicos que em princípio não apresentam antinomias entre si. Mas é possível vislumbrar situações em que tais antinomias podem aparecer. Ficam, então, aparentemente contrapostos os conceitos de efetividade da justiça e de segurança jurídica. Neste caso, o intérprete jurídico deve verificar o procedimento correto a ser adotado para a adequada solução do conflito. O trabalho também faz a análise da discussão existente acerca da chamada relativização da Coisa Julgada, inserindo os Direitos Fundamentais em meio a tal discussão. Por fim, através da análise do caso concreto do Direito à Informação Genética em face da Coisa Julgada, teremos maiores noções acerca da posição que vem sendo judicada e deve se tornar um parâmetro para decisões futuras da Justiça Brasileira. PALAVRAS-CHAVE: Antinomias; Direito Constitucional; Direitos Fundamentais; Coisa Julgada; Relativização; Segurança Jurídica

FUNDAMNETAL RIGHTS: The Res Judicata and its Relativization ABSTRACT Fundamental Rights and Res Judicata are two important legal values that do not normally present antinomies each other. But it is possible to envisage situations where such antinomies may appear. It is then seemingly opposing concepts of effectiveness of justice and legal certainty. In this case, the legal interpreter must verify the correct procedure to be adopted for the proper solution of the conflict. The work also makes the analysis of the existing discussion about the so-called relativization of Res Judicata by inserting the Fundamental Rights in the midst of such a discussion. Finally, through the analysis of the case of Right of the Genetic Information in the face of Res Judicata, we will have greater notions about the position that has been decided and should become a parameter for future decisions of the Brazilian courts. KEY-WORDS: Antinomies; Constitutional Law; Fundamental Rights; Res Judicata; Relativization; Legal Certainly

1. OBJETOS O Direito, seja em sua ordem positiva, seja no campo doutrinário e principiológico, protege fortemente uma série de institutos jurídicos que são reputados como sendo de extrema relevância. Dois deles serão utilizados como objetos de estudo do presente trabalho, quais sejam, os chamados Direitos Fundamentais e a Coisa Julgada. Em princípio, os referidos institutos coexistem em harmonia. Ocorre que é possível deslumbrar academicamente situações em que podem apresentar-se controvertidos em meio a uma mesma situação. Alguns casos práticos também podem ser levantados para representar uma ocasião de conflito entre esses importantes bens jurídicos. Mais adiante, tais desequilíbrios e potenciais conflitos serão expostos de melhor maneira. Mas antes disso, faz-se bastante necessário e interessante ao menos esboçar alguns traços e conceitos básicos acerca de cada um dos objetos de estudo. 1.1. Direitos Fundamentais Os chamados Direitos Fundamentais são uma série de direitos que foram conquistados e reconhecidos através de uma longa construção histórica marcada por grandes revoluções e acontecimentos de grande dimensão. O estudo da origem dos Direitos Fundamentais como hoje são conhecidos, por si só, demandaria uma enorme pesquisa e estudos aprofundados. Não é o que se pretende aqui. Sendo assim, tratemos de caracterizar e demonstrar como são entendidos os Direitos Fundamentais em nossos atuais parâmetros. Sendo estes um dos principais objetos de estudo do Direito Constitucional, bem como uma das maiores demandas protetivas por parte do Estado moderno, a previsão de tais direitos em meio ao nosso ordenamento jurídico não poderia apresentar-se em outro lugar que não na Constituição da República. Logo no início do seu texto, já no Título II e a partir do art. 5º, a Constituição de 1988 nos apresenta os Direitos Fundamentais. O referido Título II, aliás, é denominado “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”, dividindo-se em cinco capítulos que seriam as espécies do qual os Direitos Fundamentais são o gênero. Tais capítulos são: Dos direitos e deveres individuais e coletivos; Dos direitos sociais; Nacionalidade; Dos direitos políticos; e Partidos políticos.

A relevância dos Direitos Fundamentais é tamanha que pode ser percebida de diversas formas, uma que merece relevo é o próprio texto constitucional que mais adiante atribui a tais direitos o status de cláusulas pétreas, sendo, desta forma, passíveis de modificação tão somente através do Poder Constituinte Originário. Consta da Constituição da República, no art. 60 em seu § 4º que “não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: IV - os direitos e garantias individuais”. Vê-se, assim, que ao lado de outros valores considerados de grande relevo, os Direitos Fundamentais receberam escudo contra sua potencial diminuição em sede de Poder Constituinte Derivado. Sendo pacífico na doutrina a possibilidade de que sejam tais direitos modificados tão somente no sentido de ampliá-los. Demonstrada a importância de tal objeto, bem como a proteção estatal que merece e lhe é devidamente atribuída, e ainda, as disposições normativas de alto escalão constantes da Constituição da República acerca de quais são os Direitos Fundamentais, faz-se importante de cuidar de apresentar o entendimento doutrinário acerca do que sejam os Direitos Fundamentais. Apesar de pequenas divergências, a doutrina é grandemente uníssona em relação aos Direitos Fundamentais. Vale aqui, então, destacar aquele reputado como melhor entendimento e que congrega em si a visão doutrinária acerca do presente objeto de estudo. André Puccinelli Júnior, em referência a José Afonso da Silva, diz que são “prerrogativas reconhecidas pelo direito positivo voltadas a assegurar condições mínimas de existência digna, livre e igual a todos os seres humanos” (PUCCINELLI JÚNIOR, 2012, p. 191). Vemos, então, que Direitos Fundamentais podem ser entendidos como condutas que se pode esperar e exigir por parte do Estado. Uma destas condutas, poder-se-ia dizer, seria justamente que o Estado não eterniza-se a incerteza acerca dos conflitos submetidos ao seu Poder Judiciário. Desta forma, diante da necessidade de estabilização das relações jurídicas conflituosas, a Coisa Julgada – nosso outro objeto de estudo que será melhor tratado mais adiante – que representa o corolário da segurança jurídica, é em si, também, um Direito Fundamental. De tal forma, o presente estudo cuidará de contrapor valores jurídico considerados de iguais grandezas. Tendo tecido tais considerações acerca deste, passemos, então, passemos ao objeto de estudo seguinte.

1.2. Coisa Julgada A Coisa Julgada há muito é tutelada pelo Estado. Sem entrar em digressões históricas, no ordenamento jurídico hoje vigente, temos a sua previsão já em 1941 através da hoje alcunhada Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro. O disposto no art. 6º e seu respectivo § 3º, do Decreto-Lei nº 4.567 é que “a lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada” e “chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso” Sendo assim, temos que a Coisa Jurídica é o instituto jurídico que, visando resguardar a segurança jurídica, no sentido de que o indivíduo possa confiar que a jurisdição do Estado será efetivada e garantida, proíbe que um ato seja de ordem administrativa, seja legislativa, ou até mesmo judiciário, não irá afetar a o direito que o Estado outrora o disse possuidor. O ordenamento jurídico disciplina também a Coisa Julgada no Novo Código de Processo Civil. Em seu art. 502, consta que “denomina-se coisa julgada material a autoridade que torna imutável e indiscutível a decisão de mérito não mais sujeita a recurso”. A doutrina muito discute se a Coisa Julgada é um efeito, uma condição, ou outra coisa qualquer. O presente trabalho não se propõe a fazer tal análise e nem a adentrar na discussão. Desta forma, tão somente será trazido aquilo que é encarado como o próprio conceito de Coisa Julgada traçado pela doutrina. Nos valendo das lições de Ari Ferreira de Queiroz, temos que “é a eficácia que torna imutável uma decisão judicial final, já não mais sujeita a qualquer tipo de recurso” e “lei nenhuma pode invadir o passado e atacar direito já reconhecido por sentença com trânsito em julgado” (QUEIROZ, 2002, p. 198). Por fim, corroborando o anteriormente escrito, temos a proteção constitucional da Coisa Julgada. O dispositivo que assim prevê, é constante do art. 5º, inciso XXXVI, ou seja, dentro dos Direitos e deveres individuais e coletivos, portanto, dentro dos Direitos e Garantias Fundamentais: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Desta forma, é também cláusula pétrea, não pode ser extirpada do ordenamento jurídico tão facilmente. Bem como, fica reforçada a ideia anteriormente levantada aceca da grandeza do valor de tal instituto jurídico, que é equivalente a grandeza dos demais Direitos

Fundamentais. Estabelecidas essas considerações gerais acerca de ambos os objetos de estudo, cuida-se agora de passar à análise e enfrentamento das discussões em relação os conflitos que podem eventualmente existir entre si. 2. CONFLITO ENTRE TAIS INSTITUTOS JURÍDICOS Um ordenamento jurídico é pensado e concebido para que todas suas disposições coexistam em harmonia. Mas ocorre que em casos específicos, sejam meramente vislumbrativos, sejam efetivamente práticos, podem ocorrer colisões entre dois valores que tal ordenamento visa resguardar. Esses casos são geralmente chamados de antinomias, e possuem técnicas e parâmetros clássicos para sua solução. Temos a regra da especificidade, em que a lei especial vigora em detrimento da lei geral. Há ainda o critério temporal, aquele que preceitua que a norma mais recente prevalece diante da mais antiga. E por fim, o critério hierárquico, neste o que vale é a norma de mais elevado valor. Ocorre que quando se trata de normas constitucionais fica muito mais difícil de se estabelecer técnicas de solução de conflitos e antinomias. O Princípio da Unidade da Constituição afasta os meios clássicos acima aludidos, de forma que o intérprete tem de se valer de outros meios, tal como o próprio princípio aqui aludido, para estabelecer a solução. O caso proposto é justamente um desses de difícil solução por se tratar de conflitos de valores jurídicos equivalentes e ambos contemplados pela proteção constitucional. A Coisa Julgada é um dos institutos representantes do corolário da segurança jurídica, valor tão importante que tem como fim resguardar o indivíduo dos eventuais arbítrios do Estado. Nesse mesmo sentido, escreveu o Vinicius Augusto Andrioli: Considerado conquista especial do Estado de Direito, o conceito de segurança jurídica tem como função proteger o indivíduo de atos arbitrários de poder estatal, já que as intervenções do Estado, muitas vezes, tendem a ser pesadas e injustas. Por força de dito princípio, procura-se evitar que alterações surpreendentes na ordem jurídica instabilizem a situação dos administrados, minorando, com isso, os efeitos traumáticos que possam resultar de novas disposições jurídicas que alcançariam situações em curso. (ANDRIOLI, 2012, p. 118)

Todavia, é possível deslumbrar situações em que a eficácia de imutabilidade de uma decisão judicial pode acabar por entrar em colisão com a ideia que se tem de Justiça, que seria o objeto de persecução e fim almejado do direito. Neste caso, haveria o surgimento da indagação acerca da justeza de se priorizar um instituto meramente processual – como a Coisa

Julgada é encarada por alguns – em face do ideário de Justiça. Mais grave ainda seria se o objeto da decisão que a eficácia da Coisa Julgada não permite que seja mudada fosse um valor jurídico de grande relevância, um valor constitucional, verdadeiramente uma cláusula pétrea. Talvez não seja comum nos depararmos com situações tais como esta, uma vez que em princípio se tem que o julgador visa resguardar em suas decisões os valores jurídicos importantes. Mas também, não é algo inconcebível e impossível de ser imaginar ou até mesmo encontrar na prática. O exemplo mais clássico, e que será um pouco melhor estudado mais adiante é o do estado de filiação que não foi reconhecido na ação própria de investigação de paternidade, mas que com o advento do exame de código genético pode, enfim, ser comprovado. Surgem, a partir daí, uma série de propostas acerca de como devem ser encarados os conflitos entre a Coisa Julgada e outros valores de relevância equivalente, tais como os Direitos Fundamentais. A seguir, estudaremos algumas das propostas, em especial aquela que preza pela chama relativização da Coisa Julgada. 2.1. Interpretação e Solução dos Conflitos Temos então, de acordo com o até aqui exposto, a concepção de eventuais situações em que dois dos maiores valores jurídicos hoje reconhecidos encontram-se potencialmente contrapostos. Assim sendo, faz-se necessário estudar como se dá a interpretação de qual o valor merece maior proteção por parte do Estado, e, consequentemente, qual deverá prevalecer frente ao outro. Conforme já destacado, tanto os Direitos Fundamentais, quanto a Coisa Julgada – que é também um direito fundamental – são merecedores de grande proteção por parte do Estado. Desta forma, sempre que possível, deve-se prezar por seu respeito. A expressão “sempre que possível” faz-se necessária em virtude de um postulado importante, o reconhecimento de que não há direito ilimitado. Por mais importante que seja, não pode um direito ser tido como absoluto e ser colocado à frente de todos os outros preconizando-os assim. É claro que não é, de igual modo, admissível que um valor jurídico seja relativizado em face de qualquer pretensão contrária em face deste. Ainda mais se considerarmos nossos

objetos de estudo, que são valores de grande relevância. Diante de tais considerações, devemos procurar saber em quais situações os direitos aqui discutidos devem sofrer limitação. Neste sentido, André Puccinelli Júnior anotou em sua obra o seguinte acerca da limitabilidade dos Direitos Fundamentais: A limitabilidade dos direitos fundamentais também se expressa na interação com outros direitos igualmente relevantes. Vez por outra, contudo, a limitação do direito fundamental é ditada pela necessidade de se preservar a ordem pública ou qualquer outro bem coletivo que consagre valores constitucionalmente tutelados. (PUCCINELLI JÚNIOR, 2012, p. 205)

Temos então, de acordo com os ensinamentos do autor, que um Direito Fundamental vai encontrar seu limite diante de situações em que encontra-se contraposto a outro valor igualmente relevante. É exatamente a questão em que temos aqui proposta, o conflito de Direitos Fundamentais e da Coisa Julgada. Para que não seja possível dizer que, nos termos do preceituado por André Puccinelli Júnior, os Direitos Fundamentais devem ceder diante da Coisa Julgada, uma vez que poder-se-ia levantar que aqueles foram expressamente aludidos pelo autor, já estes não, faz-se necessário ver como este mesmo autor deu tratativa a este segundo mais adiante nesta mesma obra. André Puccinelli Júnior, adiante, se valendo dos ensinamentos de Cândido Rangel Dinamarco, registrou o seguinte: A doutrina e os tribunais começam a despertar para a necessidade de repensar a garantia constitucional e o instituto técnico-processual da coisa julgada, na consciência de que não é legítimo eternizar injustiças a pretexto de evitar a eternização das incertezas. [...] O valor da segurança das relações jurídicas não é absoluto no sistema, nem o é, portanto, a garantia da coisa julgada, porque ambos devem conviver com outro valor de primeiríssima grandeza, que é o da justiça das decisões judiciais, constitucionalmente prometido mediante a garantia de acesso à justiça. (DINAMARCO apud PUCCINELLI JÚNIOR, 2012, p. 263/264)

Vemos então que, sem negar a importância de cada um deles, André Puccinelli Júnior, autor da nova geração dos juristas constitucionalistas, nos mostra que mesmo os mais importantes direitos e valores jurídicos são passíveis de sofrer limitação. Tal constatação é importante para desmanchar o preciosismo ainda muito presente em pensamentos até hoje existente no meio jurídico de que dados valores devem ser encarados como absolutos. Esse pensamento leva a feitura de defesas desprovidas de fundamento de determinados institutos que seriam inafastáveis, simplesmente por serem assim entendidos como sendo. Verdadeiras falácias lógicas, que impedem o raciocínio jurídico de chegar a melhor conclusão.

Interpretação constitucional é um tema bastante delicado e de difícil entendimento, ainda mais quando se trata de uma situação em que temos de encontrar uma solução para dos valores constitucionais relevantes e contrapostos. Diante disto, faz-se muito interessante trazermos até aqui as lições de um grande especialista. O outrora brilhante advogado e procurador do Estado do Rio de Janeiro, hoje Ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso. Inicialmente, acerca de conflitos de valores relevantes, tais como o nosso caso, Luís Roberto Barroso corrobora a fala de André Puccinelli Júnior no sentido de afastar a absolutização de determinados valores, mesmo que muito importantes. Assim encontramos em seus escritos: A doutrina tradicional divulga como mecanismo adequado à solução de tensões entre normas a chamada ponderação de bens ou valores. Trata-se de uma linha de raciocínio que procura identificar o bem jurídico tutelado por cada uma delas, associá-lo a um determinado valor, isto é, ao princípio constitucional ao qual se reconduz, para, então, traçar o âmbito de incidência de cada norma, sempre tendo como referência máxima as decisões fundamentais do constituinte. A doutrina tem rejeitado, todavia, a predeterminação rígida da ascendência de determinados valores e bens jurídicos, como a que resultaria, por exemplo, da absolutização da proposição in dubio pro libertate. Se é certo, por exemplo, que a liberdade deve, de regra, prevalecer sobre meras conveniências do Estado, poderá ela ter de ceder, em determinadas circunstâncias, diante da necessidade de segurança e de proteção da coletividade. (BARROSO, 2006, p. 200/201)

Apesar de todo o exposto, neste ponto, até o momento temos tão somente que uma solução que estabelecesse limites aos direitos aqui contrapostos não poderia, por isso só, ser considerada inadequada por negar a efetividade total de algum destes institutos. Todavia, ainda padecemos de proposta de como solucionar o conflito. Por óbvio, não seria correto simplesmente admitindo a limitabilidade de qualquer dos valores em comento, afastar totalmente a aplicabilidade de um deles e dar total efetividade ao seguinte. A interpretação jurídica não pode ser reduzida a um simplismo barato como este. A proposta que parece-nos mais adequada é a utilização de princípios constitucionais em detrimento das clássicas técnicas de solução de antinomias, porquanto, conforme já aludido, estas são patentemente inutilizáveis na tratativa da contraposição de dois valores de tamanha grandeza. Os princípios aqui invocados seriam o da Proporcionalidade ou Razoabilidade, e o da Unidade da Constituição ou Harmonia das Disposições Constitucionais.

Acerca do princípio da Razoabilidade, Luís Roberto Barroso explica que é difícil de se dizer o que é ser razoável, sendo, segundo ele próprio, mais fácil senti-la do que sabê-la. Assim consta de sua obra: O princípio da razoabilidade é um parâmetro de valoração dos atos do Poder Público para aferir se eles estão informados pelo valor superior inerente a todo ordenamento jurídico: a justiça. Sendo mais fácil de ser sentido do que conceituado, o princípio se dilui em um conjunto de proposições que não libertam de uma dimensão excessivamente subjetiva. É razoável o que seja conforme à razão, supondo equilíbrio, moderação e harmonia; o que não seja arbitrário ou caprichoso; o que corresponda ao senso comum, aos valores vigentes em dado momento ou lugar. Há autores, mesmo, que recorrem ao direito natural como fundamento para a aplicação do mandamento de razoabilidade, embora possa ela radicar-se perfeitamente nos princípios gerais da hermenêutica. (BARROSO, 2006, p. 224/225)

Assim sendo, no caso conforme o apresentado, em homenagem ao princípio da Razoabilidade, a solução a ser dada diante do conflito não pode ser algo extraordinário, porquanto assim seria oposto ao senso comum e aos valores vigentes. Desta forma, descartamos qualquer solução mágica e com aparentes requintes de genialidade. Preferimos aquela que se apresente mais parcimônica. O outro princípio que colocamos de importante observação no momento de se estabelecer uma solução ao nosso problema foi o da Unidade ou Harmonia. Tal princípio estabelece que as disposições constitucionais foram feitas para coexistirem sem antinomias, mas uma vez deflagrada tal questão, seja real ou aparente, é necessário que sejam considerados ambos os valores contrapostos sem o sacrifício total de um em face do outro. Melhor é a explicação de Luís Roberto Barroso: O papel do princípio da unidade é o de reconhecer as contradições e tensões – reais ou imaginárias – que existam entre normas constitucionais e delimitar a força vinculante e o alcance de cada uma delas. Cabe-lhe, portanto, o papel de harmonização ou “otimização” das normas, na medida em que se tem de produzir em equilíbrio, sem jamais negar por completo a eficácia de qualquer delas. Também aqui, a simplicidade da teoria não reduz as dificuldades práticas surgidas na busca do equilíbrio desejado e na eleição de critérios que possam promovê-lo. (BARROSO, 2006, p. 200)

Arrematando as disposições deste tópico, temos então que se, conforme nosso caso, a Coisa Julgada se colidir com outros Direitos Fundamentais, a solução a ser buscada e implementada não deve ser aquela que pareça mais milagrosa, nem aquela que vá privilegiar um valor em detrimento do outro. Será aquela que, sem recorrer a absurdos, dê a maior efetividade possível a ambos os valores conforme o caso. André Puccinelli Júnior assim sintetiza muito do aqui levantado: A relativização da segurança jurídica baseia-se, portanto, no equilíbrio de dois vetores aparentemente divergentes, mas que, no fundo, interagem e nutrem diálogo constante, mostrando-

se, a nosso ver, retrógrado o enfoque da coisa julgada como uma garantia inquestionável e capaz de legitimar injustiças, transformando o preto em branco e quadrado em redondo. (PUCCINELLI JÚNIOR, 2012, p. 265)

2.2. Relativização da Coisa Julgada Em meio a uma série de situações em que viu-se uma aparente contraposição entre o valor jurídico da Coisa Julgada e aquilo que seria o propósito do direito, a Justiça, nasceu uma corrente que propunha a relativização de tal instituto. Os adeptos da chamada relativização da Coisa Julgada, entro outros argumentos secundários, alegam que não pode um instituto iminentemente processual ser utilizado, a pretexto de segurança jurídica, como óbice a consecução da Justiça. Desta forma, as decisões judiciais que tenham transitado em julgado, se revestidas de caráter de injustiça, não devem contar com a eficácia de imutabilidade que lhes seria conferida pela Coisa Julgada. Luiz Guilherme Marinoni, ao discorrer acerca do que seja essa nova corrente, assim assevera: Em favor da “relativização” da coisa julgada, argumenta-se a partir de três princípios: o da proporcionalidade, o da legalidade e o da instrumentalidade. No exame desse último, sublinha-se que o processo, quando visto em sua dimensão instrumental, somente tem sentido quando o julgamento estiver pautado pelos ideais de Justiça e adequado à realidade. Em relação ao princípio da legalidade, afirma-se que, como o poder do Estado deve ser exercido nos limites da lei, não é possível pretender conferir a proteção da coisa julgada a uma sentença totalmente alheia ao direito positivo. Por fim, no que diz respeito ao princípio da proporcionalidade, sustentase que a coisa julgada, por ser apenas um dos valores protegidos constitucionalmente, não pode prevalecer sobre outros valores que têm o mesmo grau hierárquico. Admitindo-se que a coisa julgada pode se chocar com outros princípios igualmente dignos de proteção, conclui-se que a coisa julgada pode ceder diante de outro valor merecedor de agasalho. (MARINONI, p. 3)

Vê-se então que tal corrente faz a valoração de institutos jurídicos, colocando outros de indiscutível relevância acima da Coisa Julgada. Conforme o referenciado, na concepção adotada por defensores da relativização, ao se chocar com outros direitos quem deveria ceder, pela força dos princípios da Proporcionalidade, da Legalidade e da Instrumentalidade, seria a Coisa Julgada, e não o direito que representa o ideário de Justiça. Se considerássemos, então, que o direito a ser protegido em face da Coisa Julgada fosse verdadeiramente um Direito Fundamental, teríamos, então, que é ainda mais merecedor de preponderância. Isso porquê, além de representar a Justiça, é um valor da mais alta hierarquia jurídica. Esta situação, mais do que qualquer outra, poderia ser assim afirmada. Isto porquê o próprio Supremo Tribunal Federal outrora já manifestou-se nesse sentido. O Ministro Cézar

Peluso, quando ainda em atividade, assim fez registrar em seu voto em um dos julgados da nossa mais alta corte: Esse direito fundamental à segurança jurídica não é, como todos os demais, absoluto, podendo ceder em caso de conflito concreto com outros direitos de igual importância teórica. Ora, somente em hipótese nítida de colisão entre direitos fundamentais é que se pode admitir, em tese, a chamada "relativização da coisa julgada", mediante ponderação dos respectivos bens jurídicos, com vistas à solução do conflito (Ministro Cezar Peluso no julgamento do AC nº 2.182/DF apud Ministro Dias Toffoli no julgamento do RE 363.889/DF, p. 21)

Vemos então o entendimento de um grande jurista no sentido de autorizar expressamente essa chamada relativização da Coisa Julgada. Seu fundamento é certo, nem a segurança jurídica ou qualquer outro direito é absoluto. Isso corrobora o entendimento anteriormente trazido ao texto de outros juristas importantes, todo direito, mesmo que da mais alta e importante extirpe, encontrará em algum momento, em alguma circunstância sua limitabilidade. A Coisa Julgada é um valor jurídico de grandíssima relevância, e não se vê entre os adeptos da relativização a negatória de tal preceito. O que é visado com a tese defendida por tal corrente é que não seja usada da Coisa Julgada a pretexto de manutenção de injustiças. Desta forma, não se vê nada de errado em tal pensamento, até mesmo os grandes defensores da Coisa Julgada concordam com este. A questão surge a partir do momento em que diz-se que a Coisa Julgada deverá ceder frente ao direito que representa a Justiça. Invocam-se princípios para assim justificar. Mas esquece-se que um dos mais importantes princípios utilizáveis na interpretação desta situação desautoriza que um valor sobreponha-se irrestritamente sobre o outro. É o princípio da Harmonia. Tal princípio é aquele anteriormente trazido ao texto, o que preceitua que diante da contraposição de duas normas constitucional de igual valor, a interpretação mais adequada a dar solução a antinomia apresentada é aquela que não sacrifique por completo um valor em razão do outro. Mas sim aquela que melhor pondere e dê a mais ampla efetivação possível a tais direitos contrapostos. Outro princípio invocado para defender a relativização da Coisa Julgada é o da Proporcionalidade. Todavia, segundo o entendimento de Luiz Guilherme Marinoni, a interpretação que se dá para tal princípio no uso deste como instrumento para defender a relativização, é errôneo, ou no mínimo precário ou inadequado. Assim consta de seus escritos:

Mas, o que aqui interessa é perguntar se a proporcionalidade pode ser admitida como critério para a “relativização” da coisa julgada. Como é evidente, a proporcionalidade, nesse caso, não poderia ser pensada como adequação ou necessidade, mas como proporcionalidade em sentido estrito, ou seja, como regra hermenêutica que seria capaz de solucionar as situações de choque entre a manutenção da coisa julgada e a proteção de bem que torne indispensável a revisão do julgado. Seria o caso, em outras palavras, de aplicar um método de “ponderação” dos bens, e não de simples harmonização, lembrando-se que “ponderar” é o mesmo do que sopesar para definir o bem que deve prevalecer, enquanto que “harmonizar” indica a necessidade de contemporizar para assegurar “a aplicação coexistente dos princípios em conflito”. (MARINONI, p. 16)

A Proporcionalidade não deve ser um instrumento para pesar qual o valor jurídico é mais importante, mas sim para que a solução dada ao caso concreto seja inteligível, viável e não esdrúxula. Desta forma, colocar que o princípio da Proporcionalidade prioriza a Justiça e preconiza a Coisa Julgada não é condizente com aquilo que tal princípio de fato representa. Sendo assim, apesar de defensável, uma ideia de relativização da Coisa Julgada não mais é adequada se preceituar que tal valor deverá ceder em face do ideário de Justiça. Até porque, Justiça pode ser considerada um conceito mutável. Pelo menos, é isso o que defende o jurista Kiyoshi Harada, em um breve texto que disserta acerca desta questão, assim ficou registrado em seus escritos: Cada decisão judicial reflete a ordem jurídica então vigente, que nem sempre coincide com o ideal de justiça. Como próprio nome está a indicar o ideal é algo a ser perseguido eternamente. O ideal de justiça certamente é um valor de grande importância a ser buscado por vias legislativa e judicial. Porém, a segurança das relações jurídicas deve ser levada em conta, sob pena de desmoronamento da ordem jurídico-social gerando em caos na sociedade. Essa desordem do ordenamento jurídico, certamente, acabaria por afetar o ideal de justiça. A realidade social é dinâmica. Mudam-se os valores, e alteram-se o conceito de justiça. Não é possível desconsiderar a coisa julgada a pretexto de que determinada decisão transitada em julgado não mais reflete a noção de justiça. (HARADA, 2011)

Assim sendo, parece frágil o intento de relativizar um valor jurídico tão importante com base em um ideário que pode mudar de tempos em tempos, de pessoa para pessoa. Justiça é abstrato por demais. Coisa Julgada são bem mais concretos. Assim não deve a Justiça ser invocada diante de direito resguardado pela Coisa Julgada, para que seja possível se operar alguma forma de relativização de tal valor jurídico, é preciso que esteja contraposto um outro valor de igual grandeza. Seria obviamente o caso dos Direitos Fundamentais. Todavia, mesmo que seja reconhecido a necessidade de se estabelecer a limitabilidade da Coisa Julgada para que outro direito de igual importância possa se operar, não é admissível dizer-se que tão somente esta deve ceder para que o outro direito possa ser efetivado em sua plenitude. Em homenagem aos princípios norteadores da interpretação

constitucional – o da Proporcionalidade e o da Harmonia – deve-se, diante do caso concreto, estabelecer uma solução de aplicação viável e amplamente admissível, mas que tanto a Coisa Julgada quanto o Direito Fundamental contraposto sejam elevados a sua maior efetividade possível, ao encontrar o momento em que a efetividade de um se choque com a do outro, devese limitar ambos. Apesar do aqui exposto, a discussão parece inofensiva. Isto no sentido de que não temos nada sequer próximo do dualismo de desenhos animados, não há um lado do bem contra o lado do mal. Ambos os lados prezam pela efetivação dos altos valores jurídicos e constitucionalmente protegidos, divergindo entre si em pontos não cruciais. Ninguém espera que a Coisa Julgada seja um obstáculo à Justiça, mas sim um verdadeiro instrumento efetivador desta. A nomenclatura dada a tal corrente parece-nos uma das grandes causadoras das discussões, “relativização da Coisa Julgada” transmite a ideia de que a Coisa Julgada deverá ser colocada de lado e não poderá mais contar com o valor que hoje detém – apesar que isso só e possível através da instituição de um novo Poder Constituinte Originário, conforme anteriormente levantado. Afastada a ideia de que a Coisa Julgada se contrapõe à Justiça, bem como a ideia de que esta deverá sofrer abolição, resta-nos esperar que a construção doutrinária e jurisprudencial dê os devidos contornos as pequenas e poucas arestas soltas desta discussão. Para arrematar este tópico, vale deixar registrado um breve pensamento de Kiyoshi Harada que parece-nos sintetizar bem a discussão: Toda a discussão em torno da relativização de coisa julgada material está fundada na busca de plenitude da justiça que se contrapõe ao princípio da estabilidade das relações jurídicas. O princípio da segurança está previsto no art. 5º da CF e protegido por cláusula pétrea. Mas, como dizia Montesquieu a injustiça que se faz representa uma ameaça a todos. Daí a dificuldade de opção entre justiça e segurança jurídica, deslocando o debate para o vasto campo filosófico. Cabe ao Supremo Tribunal Federal dar a última palavra considerando as garantias fundamentais expressas no corpo da Constituição. (HARADA, 2011)

2.3. O Caso ao Direito à Informação Genética Todo o exposto até o momento, mesmo que atinente a uma discussão relevantíssima que espraia seus efeitos ao campo prático, cingiu-se a seara doutrinária e acadêmica. Para atribuir maior materialidade ao presente estudo, muito interessante faz-se uma análise mesmo que breve de um caso concreto em que vejamos a contraposição de algum dos Direitos Fundamentais em relação a Coisa Julgada.

Para evitarmos maiores digressões desnecessárias, vamos direto ao exemplo clássico que é frequentemente utilizado em meio a discussão até o momento apresentada. O referido exemplo é o chamado caso do Direito à Informação Genética. Tal caso apresenta a situação em que uma ação investigatória de paternidade foi inicialmente proposta no início da década de 1990, como à época exames de código genético eram altamente inacessíveis, tal prova não pôde ser produzida. Ao final, o processo foi resolvido com resolução de mérito no sentido de não reconhecer a paternidade atribuída ao réu porquanto o autor não comprovou tal vínculo e nem se desincumbiu de prová-lo. Anos depois, com o avanço tecnológico, o mesmo autor propôs esta mesma demanda em face do mesmo pai em potencial como réu. Admitida a propositura pelo juízo singular, tal demanda foi levada a conhecimento do tribunal através de agravo de instrumento. Lá o tribunal reformou a interlocutória exarada, e reconhecendo a condição de Coisa Julgada da decisão que transitou no feito anterior, resolveu a ação sem resolução de mérito. Entendendo ser o estado de filiação direito protegido pela Constituição da República, o autor impetrou então Recurso Extraordinário no Supremo Tribunal Federal. Depois de vários anos de aguardo, finalmente em 2011 houve o julgamento do processo, com reconhecimento da repercussão geral, e ganho de causa para o autor. Assim foi ementado o acórdão do RE 363.889/DF de relatoria do Ministro Dias Toffoli: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. DIREITO PROCESSUAL CIVIL E CONSTITUCIONAL. REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AÇÃODE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE DECLARADA EXTINTA, COM FUNDAMENTO EM COISA JULGADA, EM RAZÃO DA EXISTÊNCIA DE ANTERIOR DEMANDA EM QUE NÃO FOI POSSÍVEL A REALIZAÇÃO DE EXAME DE DNA, POR SER O AUTOR BENEFICÁRIO DA JUSTIÇA GRATUITA E POR NÃO TER O ESTADO PROVIDENCIADO A SUA REALIZAÇÃO. REPROPOSITURA DA AÇÃO. POSSIBILIDADE, EM RESPEITO À PREVALÊNCIA DO DIREITO FUNDAMENTAL À BUSCA DA IDENTIDADE GENÉTICA DO SER, COMO EMANAÇÃO DE SEU DIREITO DE PERSONALIDADE. 1. É dotada de repercussão geral a matéria atinente à possibilidade da repropositura de ação de investigação de paternidade, quando anterior demanda idêntica, entre as mesmas partes, foi julgada improcedente, por falta de provas, em razão da parte interessada não dispor de condições econômicas para realizar o exame de DNA e o Estado não ter custeado a produção dessa prova. 2. Deve ser relativizada a coisa julgada estabelecida em ações de investigação de paternidade em que não foi possível determinar-se a efetiva existência de vínculo genético a unir as partes, em decorrência da não realização do exame de DNA, meio de prova que pode fornecer segurança quase absoluta quanto à existência de tal vínculo. 3. Não devem ser impostos óbices de natureza processual ao exercício do direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser, de forma a tornar-se igualmente efetivo o direito à igualdade entre os filhos, inclusive de qualificações, bem assim o princípio da paternidade responsável. 4. Hipótese em que não há disputa de paternidade de cunho biológico, em confronto com outra, de cunho afetivo. Busca-se o reconhecimento de paternidade com relação a pessoa identificada.

5. Recursos extraordinários conhecidos e providos. (Supremo Tribunal Federal, Plenário, Relator Ministro Dias Toffoli. Recurso Extraordinário 363.889/DF. Julgado em: 2 de junho de 2011. Publicado em: DJe do Supremo Tribunal Federal de 16 de dezembro de 2011.

Vê-se no item 3 que houve o reconhecimento da condição de Direito Fundamental ao bem jurídico que o autor visou resguardar a si com a impetração do recurso. O que corrobora o exposto anteriormente no presente trabalho, de que é necessário que para se dar a limitabilidade da Coisa Julgada, é necessário que ela esteja contraposta a um valor jurídico de igual grandeza. Todavia, parece-nos que alguns termos utilizados na ementa em questão poderiam ter sido mais cuidadosamente escolhidos para que mais afortunados fossem. Isso porquê, não parece ter sido negada a importância da Coisa Julgada no processo em questão. Todavia, no item 2 é utilizada a nomenclatura relativização, esta mesma que anteriormente atribuímos a condição de infeliz. Além disso, a redação do item 3 passa a impressão de que a Coisa Julgada é um instituto de natureza processual – o que de fato o é – e meramente isto, o que já vimos que não é verdade. Mas para que nossa análise não fique empobrecida através da limitação de se discutir as palavras empregadas, passemos ao conteúdo material do julgamento do Recurso Extraordinário em questão. No entendimento de Fernando Menegueti Chaparro, o que foi feito no RE 363.889/DF não foi a adoção pela corte da tese da relativização da Coisa Julgada, mas tão somente a mitigação deste valor no caso concreto: É preciso distinguir, pois, entre o julgamento realizado pelo Supremo, e a adoção da tese denominada de relativização da coisa julgada. Na situação acima narrada, o Tribunal apenas autorizou a mitigação da coisa julgada no caso concreto, sem, contudo, filiar-se à tese da relativização, principalmente nas chamadas impugnações de sentenças consideradas injustas. Devido às múltiplas restrições impostas pelos Ministros à tese que propugna rediscussões de causas definitivamente decididas, o instituto da coisa julgada sofreu um mero arranhão do Poder Judiciário, nada mais grave do que às já autorizadas hipóteses de desconstituição da coisa julgada previstas no ordenamento jurídico, sem sujeição de prazo: art. 741, do CPC; Lei da Ação Civil Pública; Lei da Ação Popular; Lei 7.853/89 (apoio ao deficiente); Código de Defesa do Consumidor, entre outras, enfatizando que tramitam no Congresso Nacional alguns projetos legislativos que visam mitigar a coisa julgada especificamente nas ações de investigação de paternidade. (CHAPARRO, 2012)

O autor ainda defende que, pelo contrário do que poderia aparentar, a corte reconheceu o valor da Coisa Julgada de igual importância em relação aos Direitos Fundamentais. Aliás, o autor ainda propugna que devem viver tais valores harmoniosamente, o que é por óbvio uma homenagem ao princípio da Harmonização que utilizamos na interpretação da antinomia:

Ficou evidente, outrossim, que o STF entende que a coisa julgada é instituto de natureza constitucional, uma garantia fundamental, muito embora não seja um valor absoluto, devendo conviver harmoniosamente com outros direitos fundamentais. Essa conclusão não agrada, entretanto, aos que consideram o princípio da segurança jurídica como um pressuposto da própria ordem jurídica, um antecedente necessário ao sistema normativo de um Estado Democrático, com maior envergadura do que outros direitos fundamentais. Porém, não trata a coisa julgada como instituto meramente processual, sem status constitucional, como alguns doutrinadores a proclamam, como já citado acima. (CHAPARRO, 2012)

Agora, saindo dos fins partindo para os meios, vejamos como o Supremo encarou a maneira que deve ser relativizada a Coisa Julgada. Vale dizer, como é que deve-se dar o manejo do instrumento processual adequado a relativização da Coisa Julgada. Apesar da dissidência dos Ministros Marco Aurélio e Cézar Peluso – essa última bastante surpreendente em razão da mudança de posicionamento em relação ao anterior por ele explicitado– o Supremo Tribunal Federal admitiu que a Coisa Julgada pode ser relativizada, sem, contudo, especificar como se deve proceder no caso em que se pretenda ajuizar uma ação em face de uma decisão transitada em julgado. O Ministro Dias Toffoli, ao final do seu voto, pugnou frente ao caso concreto em apreço, que deveria ser reformada a decisão do tribunal e o processo voltaria a correr diante do juízo de primeiro grau: Ante o exposto, pelo meu voto, Senhor Presidente, conheço dos recursos extraordinários e lhes dou provimento para, reformando o acórdão recorrido, afastar o arguido óbice da coisa julgada e, por conseguinte, o decreto de extinção do processo sem apreciação do mérito, para permitir o prosseguimento da ação de investigação de paternidade em tela, até seus ulteriores termos, tal como havia sido corretamente determinado pelo Juízo de Primeiro Grau. (Ministro Dias Toffoli no julgamento do RE 363.889/DF, p. 51)

Desta forma, contudo, não explicitou como se proceder nos demais casos. A maioria dos demais Ministros simplesmente aderiram ao voto do relator, o Ministro Luiz Fux, todavia, proferiu voto-vista encarando essa problemática. O Ministro propugnou que em seu entendimento deve-se obedecer a via da ação rescisória, a data de início da contagem de prazo. Assim consta do voto: Em outras palavras, a harmonização entre os princípios constitucionais da segurança jurídica, de um lado, e do direito fundamental à filiação e da garantia da assistência jurídica aos desamparados, de outro, consiste na aplicação analógica do marco inicial flexibilizado para o ajuizamento da ação rescisória, que não pode permanecer rigidamente contado da data do trânsito em julgado. Ao contrário, o marco para a contagem dos dois anos deve poder ser alterado quando demonstrado pelo autor, argumentativamente, que não pudera ajuizar, anteriormente, a demanda, pela impossibilidade prática de obtenção do exame de DNA. Desta forma, é apenas da data da possibilidade prática de obtenção do DNA que deve ser contado o referido prazo, pois apenas nesse momento que se mostra possível o exercício, in concreto, do direito à tutela jurisdicional efetiva, de modo que, apenas nessas

condições, a omissão em fazê-lo poderá ser imputada à própria parte. (Ministro Luiz Fux no julgamento do RE 363.889/DF, p. 116/117)

Fernando Mengueti Chaparro fez a seguinte análise dos votos exarados: Na conjugação de ambos os votos escritos, ficou demonstrado que o Ministro Luiz Fux, embora reconhecendo a natureza fundamental do direito ao conhecimento da origem genética, fundado no princípio maior da dignidade da pessoa humana, impõe um óbice de natureza meramente processual para o exercício de tal magno direito, qual seja o prazo de dois anos, na interpretação flexível de normas processuais. Prestigia, sem dúvida, o princípio da segurança jurídica, e o excepciona somente na hipótese concretamente demonstrada. Embora casuístico e paradoxal, o voto-vista impôs uma impressão geral sobre o tema e declinou as hipóteses válidas para a mitigação da coisa julgada, de forma severamente restritiva. Já o voto do Relator, malgrado tenha perdido ímpar oportunidade de impor balizas às hipóteses de relativização da coisa julgada, data venia, possibilita interpretação de modo a reconhecer o caráter excepcional do julgamento, pois, trazendo inúmeros argumentos para o provimento do recurso, manteve fortalecido o instituto da coisa julgada. É certo que não impôs um prazo para impugnação da coisa julgada, tal como fez o Min. Fux e é a proposta de abalizada doutrina; todavia, afastou a possibilidade de revisão de decisões com base na alegação de injustiça, e restringiu a aplicação da tese nas ações que envolvam reconhecimento da filiação, nas quais não foi possível a produção de qualquer prova técnica. Tudo porque a evolução da ciência proporcionou um exame de notável confiança que é o DNA. (CHAPARRO, 2012)

Vale ressaltar que apesar da crítica, pontual mas bem fundada do autor, a doutrina tem majoritariamente entendimento no mesmo sentido do Ministro Luiz Fux, entendendo que aquele que pretender relativizar a Coisa Julgada no caso concreto deve fazer uso da ação rescisória a partir da data em que deflagrada foi a possibilidade de fazê-lo. Nesse sentido, manifestou-se Kiyoshi Harada: Costuma-se argumentar muito com o exemplo da ação de investigação de paternidade em que foi negada ou reconhecida a paternidade em função da prova técnica então apresentada. Posteriormente, o exame do DNA demonstrou resultado contrário àquele acolhido pela sentença. O que fazer? Continuar sendo o pai da criança contra prova incontestável do ponto-de-vista científico? Se na época, não existia esse exame sofisticado, fato que conduziu a uma decisão fora da realidade, é até possível sustentar a contagem do prazo para a rescisória, a partir do momento em que essa prova técnica passou a ser utilizada nos meios judiciários, com fundamento em documento novo, assim entendido o laudo médico elaborado com base em nova técnica de exame. (HARADA, 2011)

Desta forma, a disciplina traçada pelo Ministro Luiz Fux e pela doutrina é incabível no âmbito do processo penal. Pois devendo a Coisa Julgada ser rescindida pela ação rescisória – ou no caso pela revisão criminal – alterando-se tão somente o prazo inicial da contagem do tempo de autorização da propositura da ação, podendo ser proposta a qualquer tempo a ação no processo penal, a disciplina legislativa já é suficiente para operar a relativização se necessária. CONCLUSÃO Por todo o exposto, concluímos que Direitos Fundamentais e Coisa Julgada são dois importantíssimos valores jurídicos que a Constituição cuidou de resguardar. A Coisa Julgada,

diante de como se apresenta inserta no texto constitucional, inclusive, é considerada um Direito Fundamental. Todavia, mesmo considerando ambos como valores de extrema relevância, temos que mesmo os mais elevados direitos estão sujeitos a limitabilidade. Assim sendo, seria possível que numa eventual contraposição entre tais valores, a efetividade de um deles ou de ambos possa ser restringida em relação àquela entendida como a efetividade total. Ainda, diante de uma verdadeira antinomia de duas normas do mais alto valor, deve-se dar uma solução não pelos métodos tradicionais, mas sim através da interpretação de princípios constitucionais. Como o princípio da Razoabilidade que preceitua que a solução neste caso não deve ser advinda de uma ideia extravagante, e ainda o princípio da Harmonização que prevê que neste caso nenhuma das normas deve ser totalmente sacrificada em relação a outra, mas sim que sejam levadas e se complementarem. “Relativização da Coisa Julgada” não nos parece, depois de todo este estudo, ser uma denominação afortunada. É que esta transmite a impressão de que a Coisa Julgada, um valor constitucional importantíssimo, sofrerá uma grande preconização. Analisando os argumentos dos que defendem e dos que atacam tal corrente, podemos notar que tanto de um lado como do outro, o objetivo não é negar o valor controvertido, mas sim dar maior efetividade ao valor defendido no caso concreto. Colocando hipóteses genéricas ou radicalmente distintas, vemos que não encontramos um ponto que possa ser considerado controvertido na prática. Desta forma, parece-nos que a discussão acaba por cingir-se tão somente a ser devido ou não o uso da referida nomenclatura e questões diminutas. O caso prático apresentado mostra-nos isso melhor do que qualquer explicação. Não encontramos quem defendesse que deve prevalecer a Coisa Julgada em face do Direito à Informação Genética – a não ser a decisão do TJDFT que foi reformada. Seu grande mérito foi nos elucidar que o instrumento processual hábil e que deve ser manejado para se obter a relativização da Coisa Julgada é a ação rescisória, cujo prazo inicial é mitigado. Do ponto de vista do pesquisador, este trabalho foi um grande aprendizado. Fugindo um pouco da questão aqui discutida, ver a contraposição de ideias que aparentemente não formam uma real contradição mas geram um enorme estardalhaço, parece-nos bobo. Temos de

abrir mão um pouco das nossas vicissitudes. Temos de dar menos valor às palavras e maior valor à razão. O que é certo é certo, independentemente da maneira que alguém possa dizê-lo. REFERÊNCIAS ANDRIOLI, Vinicius Augusto. Efeitos da Declaração de Inconstitucionalidade sobre a Coisa Julgada. Dissertação de Mestrado. UFRS, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2012. 212 p. Versão digital disponível em: Acessado em: 3 de setembro de 2015. BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. 6ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2006. 427 p. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Diário Oficial da União, Brasília, 5 de outubro de 1988, Seção 1, p. 1. Versão digital disponível em: Acessado em: 18 de setembro de 2015. ________. Decreto-Lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942: Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro. Diário Oficial da União, Rio de Janeiro, 9 de setembro de 1942, Seção 1, p. 13635. Versão digital disponível em: Acessado em: 8 de setembro de 2015. ________. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015: Código de Processo Civil. Diário Oficial da União, Brasília, 17 de março de 2015, p. 1. Versão digital disponível em: Acessado em: 3 de setembro de 2015. CHAPARRO, Fernando Menegueti. Investigação de Paternidade e o STF: Relativização da Coisa Julgada? Âmbito Jurídico, Rio Grande, XV, nº 99, abril de 2012. Versão digital disponível em: Acessado em: 1 de setembro de 2015. HARADA, Kiyoshi. Relativização da Coisa Julgada. Jus Navigandi, Teresina, Ano 16, nº 2848, 19 de abril de 2011. Versão digital disponível em: Acessado em: 9 de setembro de 2015. MARINONI, Luiz Guilherme. Relativizar a Coisa Julgada Material? Academia Brasileira de

Direito

Processual

Civil,

Porto

Alegre.

Versão

Acessado em: 1 de setembro de 2015.

digital

disponível

em:

PUCCINELLI JÚNIOR, André. Curso de Direito Constitucional. 1ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2012. 539 p. QUEIROZ, Ari Ferreira. Direito Constitucional. 13ª Edição. Goiânia: Editora Jurídica IEPC, 2002. 525 p. STF, Supremo Tribunal Federal. Inteiro Teor do Acórdão do RE 363.889/DF. DJe, Diário da Justiça Eletrônico do Supremo Tribunal Federal, Brasília, 16 de dezembro de 2011. Versão digital disponível em: Acessado em: 9 de setembro de 2015. Thales Oliveira Januário. Advogado e pesquisador. Graduado no curso de Bacharelado em Direito da PUC Goiás, 2013. Pós-graduando do curso de Especialização em Direito Tributário da PUC Goiás. Pesquisador e discente do Programa de Pós-graduação em Direito, Relações Internacionais e Desenvolvimento da PUC Goiás, modalidade de Mestrado. “Que veja que todos os homens usam mais ou menos a mesma máscara, Mas que saiba também que há rostos mais belos do que a máscara que os cobre” - Jean-Jacques Rousseau

Goiânia, 2015

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