Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Descrição do Produto

Viver numa democracia continua sendo preferível à submissão a um Estado totalitário, a uma ditadura militar ou a um regime feudal obscurantista. Mas, corroída assim por seus inimigos íntimos, engendrados por ela mesma, a democracia já não está à altura de suas promessas. Seus inimigos têm uma aparência menos assustadora do que os de ontem, que a atacavam de fora; não projetam instaurar a ditadura do proletariado, não preparam um golpe de Estado militar, não cometem atentados suicidas em nome de um deus impiedoso. Eles usam trajes da democracia, e por essa razão podem passar despercebidos. Nem por isso deixam de representar um verdadeiro perigo: se não lhes for oposta nenhuma resistência, um dia eles acabarão por esvaziar esse regime político de sua substância. Conduzirão a um desapossamento dos seres e a uma desumanização de suas vidas.” Tzvetan Todorov

Conselho Editorial

Organizadores

Capa

Produção Editora

Agradecimento

Adriano Sant´Ana Pedra Caleb Salomão Daury César Fabriz Eliana Junqueira Munhós Ferreira Ézio Carlos S. Baptista Gilsilene Passon Picoretti Francischetto João Maurício Adeodato

Jovacy Peter Filho Nelson Camatta Moreira Olívia Cerdoura Garjaka Baptista Paulo Ferreira Da Cunha Samuel Meira Brasil Júnior Tárek Moysés Moussalem Willis Santiago Guerra Filho

Organizadores

Paulo Roberto Ulhoa • Julio Pinheiro Faro • Daury Cesar Fabriz Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes • Heleno Florindo da Silva

Paulo Roberto Ulhoa Julio Pinheiro Faro Daury Cesar Fabriz Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes Heleno Florindo da Silva Concepção: Paulo Ulhoa e Maria Helena Fabriz Execução: Link Editoração Foto: Weverson Rocio (RPPN Fazenda Bulcão sede do Instituto Terra em Aimorés - MG) 2012 Revisão: Executada pelos próprios autores Diagramação: Link Editoração Impressão: Grafitusa Editora Cognorama Rua Aleixo Neto, 454 - Sala 503 Praia do Canto - Vitória/ES - CEP 29057-200 Especial à jornalista Maria Helena Fabriz

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Direitos humanos e meio ambiente / Paulo Roberto Ulhoa, Júlio Pinheiro Faro, (coordenadores). Vitória : Cognorama, 2014. Vários autores. 1. Direito ambiental - Brasil 2. Direitos humanos 3. Instituto Terra 4. Meio ambiente Brasil 5. Proteção ambiental - Brasil I. Gomes, Carla Amado. II. Faro, Júlio Pinheiro. III. Ulhoa, Paulo Roberto. 14-06081CDU-34:502.7(81) Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Meio ambiente : Direito ambiental 34:502.7(81)

Direitos

humanos e meio ambiente

Obra dedicada ao Instituto Terra

Sumário M

Apresentação Daury Cesar Fabriz_______________________________________________8

M

Nota dos organizadores

9.  Função socioambiental das contratações públicas:

o Estado como ator da sustentabilidade Elizabeth de Mello Rezende Colnago ____________________________________ 185



um caminho rumo ao desenvolvimento sustentável Mariana de Siqueira __________________________________________________ 207



o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade _____________________________________________ 219



Pública tem o dever legal de garantir Gilmar Alves Batista __________________________________________________ 233



ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes __________________________________________________ 245



por impactos ambientais: o que o Brasil pode aprender a partir da experiência jurisdicional internacional? Orlindo Francisco Borges ______________________________________________ 267



pessoas jurídicas de Direito público e de Direito privado Renata Machado Saraiva _______________________________________________ 291



no Direito ambiental brasileiro Camila Pedroni Ribeiro Cristina Grobério Pazó ________________________________________________ 321

5.  A educação em meio ambiente como um dos pilares para a cidadania



Lívia Gaigher Bósio Campello Carlos Walter Marinho Campos Neto ____________________________________ 341

6.  Educação ambiental como instrumento de posse de direitos e cidadania



e tribunais em matéria ambiental Hermes Zaneti Jr. ____________________________________________________ 361



nas demandas coletivas ambientais: substituição processual Márcia Vitor de Magalhães e Guerra _____________________________________ 391



equilibrado na Constituição Federal de 1988 Fernando Carlos Dilen da Silva Paulo Roberto Ulhôa __________________________________________________ 413



M M M M

Academia Brasileira de Direitos Humanos_________________________11 Prefácio______________________________________________________12 Mensagem dos homenageados___________________________________18 O Instituto Terra_____________________________________________20 Introdução Julio Pinheiro Faro_______________________________________________25

1.  A patrimonialização do meio ambiente e o novo constitucionalismo

latino-americano: a Pachamama e a busca pelo buen vivir Heleno Florindo da Silva _______________________________________________ 31



 rojeto do novo Código Florestal brasileiro: P um estado de exceção permanente destrutivo do meio ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury Cesar Fabriz ______________________ 51

2.

3.  O binômio direito-dever fundamental ao meio ambiente



ecologicamente equilibrado e seu alicerce na solidariedade Ivy de Souza Abreu ____________________________________________________ 65

4.  Direito como integridade e integridade do meio ambiente: o dever



fundamental de proteção do meio ambiente e a proposta interpretativa de Dworkin a partir da jurisprudência do STF e do STJ Ludmila Lais Costa Lacerda e Julio Pinheiro Faro ____________________________ 79



Jackelline Fraga Pessanha Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes _______________________________________ 107



Margareth Santos Schayder ____________________________________________ 123



Educação Ambiental no Cotidiano Escolar Wagner Scopel Falcão Ítalo Severo Sans Inglez _______________________________________________ 145

7.  As Tecnologias da Informação e Comunicação e a

8.  A teoria da injustiça ambiental como ocultamento da



ocorrência do racismo ambiental na sociedade brasileira Helena Carvalho Coelho Lorena Ferreira Carpes ________________________________________________ 165

10.  Gestão democrática das águas no Brasil: 11.  O controle das áreas contaminadas:

12.  Saneamento básico: direito do cidadão que a Defensoria 13.  Os tempos estão a mudar: alterações climáticas,

14.  O uso de herbicidas e a violação de direitos humanos

15.  Em defesa da igualdade de responsabilização penal entre 16.  Causas excludentes de nexo causal: aplicabilidade

17.  Tutela do meio ambiente do trabalho nos planos internacional e interno 18.  Ensaio sobre a função de garantia dos juízes

19.  D  efinição do modelo brasileiro de legitimidade ativa ad causam 20.  A  proteção do meio ambiente ecologicamente

HApresentação

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niciativa de alunos e professores do estudo do Direito, a Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH está perto de completar 10 anos de fundação atuando na promoção dos Direitos Humanos por meio da difusão de conhecimento sobre os caminhos legais para sua efetivação no Brasil e no mundo. Durante todo este período foi possível perceber o terreno fértil para o debate do tema, principalmente no meio acadêmico, nacional e internacional, abrindo novas perspectivas para a sua consecução em esfera mundial. Com a realização de simpósios, congressos e colóquios, o trabalho da ABDH permitiu o intercâmbio de ideias e estudos sobre os Direitos Humanos entre juristas, estudantes, pesquisadores e sociedade, reunindo nomes de destaque internacional na área, como o jurista Dalmo de Abreu Dallari; o juiz da Corte Européia de Direitos Humanos Paulo Pinto de Albuquerque; o catedrático da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa professor Jorge Miranda; e a professora Carla Amado Gomes, referência na área do Direito Ambiental, dentre tantos outros, a quem devemos um muito obrigado pelo apoio concedido. Com o lançamento da primeira obra da ABDH, O Tempo e Os Direitos Humanos, no ano de 2011, foi possível perceber uma densa produção científica na área. Neste sentido, artigos de mais de 50 autores do Brasil e de países como Alemanha, Portugal, Espanha, França, Itália, Irlanda e Uzbequistão permitiram criar uma obra audaciosa, sem a pretensão comercial, que ainda hoje se mostra atual pela abrangência e pluralidade das abordagens. A humanidade avança no Século XXI tendo ainda grandes desafios para a efetivação dos Direitos Humanos. Sob esta ótica, a ABDH lançou sua segunda publicação, efetivada sob o título de “Direito das Futuras Gerações”, reunindo artigos de 23 autores em abordagens sobre temas como eutanásia, bullying, homoafetividade, avanços científicos e tecnológicos, genética, democracia participativa, constitucionalismo, identidade cultural, sustentabilidade, entre outros. É neste mesmo caminho da parceria de ideias e ideais, que a ABDH agora apresenta esta importante obra dedicada à temática do Meio Ambiente. Importância que se eleva pelo exemplo do Instituto Terra, ONG ambiental fundada por Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado.

Estabelecido na cidade mineira de Aimorés, o Instituto Terra desenvolve um trabalho de reflorestamento de Mata Atlântica, educação ambiental e promoção do desenvolvimento sustentável em uma região conhecida como Vale do Rio Doce, e que enfrenta um grave quadro de degradação ambiental provocada pela ação do homem. O Instituto Terra desenvolve um trabalho provocador e inspirador, sob todos os aspectos, principalmente pelo ponto de vista de mostrar que se as nações do globo quiserem, efetivamente, elas podem resgatar boa parte do equilíbrio ambiental necessário para garantir a sobrevivência do ser humano na Terra. É neste sentido, na busca da transformação por um mundo mais digno que nossos objetivos se convergem. Não se trata apenas de plantar uma semente, mas de transformar a sociedade por meio de uma cultura, de uma educação plural e participativa. A ABDH tem muito a comemorar com o lançamento desta publicação – “Direitos Humanos e Meio Ambiente - Obra dedicada ao Instituto Terra”. A questão ambiental é urgente e não se pode mais adiar as ações necessárias para frear o perverso processo de degradação do globo terrestre. Ações como a do Instituto Terra são ao mesmo tempo exemplo e referência. Desejamos uma proveitosa leitura a todos e a todas, na esperança de que o conteúdo que ora se publica, possa merecer uma reflexão. Novembro de 2014. Daury Cesar Fabriz Presidente da ABDH

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HNota dos Organizadores

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com grande satisfação que a Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH lança esta importante obra, Direitos Humanos e Meio Ambiente, em um momento em que o debate das questões relativas ao meio ambiente e à sustentabilidade, encontram-se em evidência em nossa sociedade, muitas delas impondo mudanças urgentes na maneira como o homem vem se relacionando com a natureza e os seus recursos. No entanto, mais que a discussão em busca de soluções para os problemas e obstáculos jurídicos que impedem esse equilíbrio, resolveu-se, também, apresentar um caso de sucesso na esfera da recuperação ambiental no Brasil, que vem a ser a história de sucesso realizada pelo Instituto Terra, fundado por Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado. Atuando entre os Estados do Espírito Santo e de Minas Gerais, em uma região conhecida como Vale do Rio Doce, o Instituto Terra está ajudando a mudar o cenário de devastação em que se encontra a região, a partir do reflorestamento de Mata Atlântica, da proteção de nascentes, da assistência técnica a produtores rurais e da educação ambiental para diferentes públicos, entre muitas outras ações. Com a publicação desta obra, a ABDH reúne importantes pensadores do Direito no sentido de fomentar a pesquisa jurídica em relação à questão ambiental, uma pauta urgente para todas as nações do globo. O legislador nacional, seja em âmbito constitucional ou infraconstitucional, tem estabelecido uma série de restrições e garantias, com o escopo de preservar esse patrimônio. São iniciativas que se mostram necessárias no sentido de criar meios de coibir determinados atos que geram enormes impactos ambientais, com prejuízos diretos para a qualidade de vida e mesmo a sobrevivência do homem na Terra. Ainda assim, mesmo com todo esse arcabouço legislativo, há um longo caminho a se percorrer para que tenhamos medidas mais eficazes de controle com foco na preservação ambiental em nosso País. O próprio estilo de vida do homem moderno, por si só, já gera uma sobrecarga brutal sobre os recursos naturais existentes. Para restabelecer certo equilíbrio entre a oferta e a demanda será preciso bem mais que exaustivos debates. Motivo pelo qual conhecer mais sobre exemplos concretos de ação, como o do Instituto Terra, pode nos sinalizar caminhos possíveis para a um verdadeiro desenvolvimento sustentável.  Boa leitura! Academia Brasileira de Direitos Humanos Diretoria Executiva 2013-2017

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HPrefácio José Luiz Quadros de Magalhães1 UFMG – Universidade Federal de Minas Gerais

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Prefaciar um livro, com tantos artigos com reflexões pertinentes sobre o meio ambiente e natureza, é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre as profundas transformações que começam a ocorrer, especialmente com o novo constitucionalismo latino-americano, anunciando a construção de um novo paradigma de conhecimento, de direito, de estado, de economia e de política. A palavra modernidade, significante para um período da história segundo a historiografia ocidental, tem diversos significados e períodos temporais, para autores distintos em diferentes áreas do conhecimento, áreas estas construídas a partir da mesma perspectiva moderna ocidental de fragmentação e especialização do saber, que se tornou hegemônica nestes últimos quinhentos anos. Nestes últimos quinhentos anos construiu-se todo um sistema de compreensão do mundo que justificou (e ainda procura justificar) a hegemonia de algumas pessoas, grupos, classes e etnias, de forma sofisticada, sistêmica e naturalizante. Como referência simbólica para esta “modernidade” utilizamos a referência do ano de 1492, utilizada por vários autores descoloniais, entre eles, Enrique Dussel em seu livro “1492, o encobrimento do outro”2. Neste ano ocorrem três acontecimentos que nos ajudam a entender este período da história: o início da invasão do continente, chamado pelo invasor de “América”; a expulsão do ou1) Graduado em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG (1986) e em Língua e Literatura Francesa pela Universidade Nancy II (1983). Mestrado (1991) e Doutorado e (1996) em Direito (1991) pela UFMG. Professor titular da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Professor associado da UFMG. Professor do programa de mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas. Professor visitante no mestrado em filosofia da Universidad Libre de Bogotá. Professor do doutorado da Faculdade de Direito da Universidad de Buenos Aires. Foi professor visitante na Universidad de la Habana (Cuba) e pesquisador na Universidad Nacional Autónoma de México. Coordenador regional (região sudeste - Brasil) da Rede pelo Constitucionalismo Democrático Latino Americano. 2) DUSSEL, Henrique, El encobrimiente del outro – hacia el origen del mito de la modernidade, Conferências de Frankfurt, Octubre de 1992, Plural editores, La Paz, 1994.

tro considerado mais diferente, no caso os mouros (muçulmanos) da península Ibérica (com a derrota de Granada) e, ainda, a construção da primeira gramática normativa, a do Castelhano, que marca a presença do Estado uniformizador. A própria ideia de modernidade já é uma pretensão uniformizadora e limitadora da história, a partir de uma perspectiva europeia. Leia-se “perspectiva europeia” como a perspectiva dos grupos e etnias que se tornaram hegemônicas nos novos estados nacionais inventados na Europa, neste período, e impostos para todo o mundo como modelo de organização ideal, até hoje. Este período da história chamada de modernidade, encobre muitos fatos, perspectivas, compreensões, enfim, encobre diversas outras histórias e estórias. Precisamos entender a estrutura de poder “moderno” para que possamos superar este projeto uniformizador e violento, assim como, desocultar a enorme diversidade de formas de ser, ver, sentir, compreender, viver; as diversas epistemologias e filosofias que foram ocultadas pelo projeto “moderno ocidental”, ainda hoje, fortemente hegemônico. Este projeto moderno de colonização do mundo por grupos hegemônicos europeus, é marcado por mecanismos de dominação cada vez mais sofisticados. Um órgão da Organização das Nações Unidas ilustra muito bem a pretensão hegemônica uniformizadora das potências: o Conselho de Tutela. Hoje o Conselho de Tutela é constituído pelos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança – China, Estados Unidos da América, Federação Russa, França e Reino Unido. Com a independência do Palau, o último território sob tutela das Nações Unidas, o Conselho suspendeu formalmente as suas atividades a 1 de Novembro de 1994.Entretanto o Conselho ainda existe. O seu regimento foi alterado para eliminar a obrigação de reuniões anuais. Foi resolvido que as reuniões ocorrerão quando as situações o exigissem, por decisão do Conselho, do seu Presidente, ou a pedido de uma maioria de membros da Assembleia Geral ou do Conselho de Segurança. O Conselho de Tutela é um exemplo da arrogância “ocidental”, entendendo ocidente como um conceito criado para marcar a separação do mundo civilizado e um outro nem tanto assim. Os que se julgam “civilizados” entendem poder impor sua “civilização” aos outros não “civilizados” ou com civilizações superadas ou inferiores.  Embora, hoje, não existam mais “colônias” como eram formalmente com-

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preendidas, novas formas de dominação e colonização foram criadas. Podemos dizer ainda mais: estes quinhentos anos de dominação e violência deixaram como herança a colonialidade. A palavra colonialidade expressa o que permanece nas relações sociais, culturais, econômicas para além do processo colonial formal de presença militar e exploração de recursos econômicos de forma direta (embora isto também ainda exista). A colonialidade permanece nas relações sociais, nos comportamentos, nas relações econômicas, na maneira de se perceber e compreender o mundo. A perversa herança colonial chega até a “colonialidade” do ser. Nas palavras de Walter Mignolo3:“A ‘ciencia’ (conhecimento e sabedoria) não poder ser separada da linguagem; as línguas não são apenas fenômenos ‘culturais’ em que as pessoas encontram sua ‘identidade’; elas também são o lugar onde se inscreve o conhecimento. E, dado que as línguas não são algo que os seres humanos têm, mas algo de que os seres humanos são, a colonialidade do poder e a colonialidade do conhecimento engendraram a colonialidade do ser (colonialidad del ser). O novo constitucionalismo latino-americano pode representar uma ruptura com a colonialidade, a partir do desocultamento dos outros com a afirmação e construção de espaços de diversidade. Esta modernidade se fundamenta em alguns eixos como a lógica binária subalterna; a linearidade histórica; a uniformização; a invenção do indivíduo; o falso universalismo europeu e a natureza enquanto recurso a ser explorado por este “individuo racional”. Assim, quando falamos em uma ruptura com a modernidade por parte do novo constitucionalismo, como um movimento descolonial, especialmente nos casos das constituições do Equador e da Bolívia, não estamos em nenhum momento querendo afirmar que trata-se de uma ruptura com 500 anos de história e tudo o que foi vivido, produzido e transformado neste período, no mundo, em cada lugar e claro, também na Europa. Procuramos sim entender, o movimento descolonial e o novo constitucionalismo, como uma ruptura com este conceito de modernidade e sua essência hegemônica e colonial representada pelos eixos essenciais acima mencionados. Os eixos mencionados podem ser resumidamente explicados da seguinte maneira4: a) “uniformização” como rejeição da diversidade e subordinação ou 3) MIGNOLO, Walter. “Os esplendores e as Misérias da ‘Ciencia’: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluriversalidade espistêmica” in: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). Conhecimento Prudente para uma vida decente: um discurso sobre as ciências revisitado. São Paulo Cortez, 2004, p. 667-709. 4) MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional, Editora Juruá, Curitiba, 2013.

assimilação do diferente: a uniformização é necessária para o reconhecimento do poder centralizado e hierarquizado do estado moderno e logo sua principal tarefa; b) “linearidade histórica” significa reduzir a “história” a um único caminho possível, onde as diversas civilizações estariam em estágios distintos de evolução, e onde a civilização norte europeia seria o auge e logo modelo para todas as outras civilizações e sociedades perseguirem: a partir desta percepção surgem palavras como desenvolvimento, evolução e progresso, que sustentam este mito moderno; c) a criação de um falso “universalismo”, que não é “universal” e sim europeu: este mito transforma a filosofia e cultura europeia como universal e imprescindível para qualquer sociedade, sustentando ainda outro mito, o da ciência como certeza infalível; d) a lógica “binária subalterna” que reafirma permanentemente a inferioridade e subalternidade do outro diferente, fora do padrão, e reduz o mundo a uma simplificação binária simplificada; e) a invenção do “individuo” e a naturalização deste conceito, separando o “homem” da natureza e de todo o resto: aí reside toda a depressão e desespero do “homem” solitário moderno; f ) e finalmente, decorrente deste último, a percepção da natureza como algo selvagem e separado do homem (racional) que tem a tarefa de domá-la e explorá-la, e aí reside toda a explicação para sua sistemática e interminável exploração. É justamente deste último eixo que trata este livro: como resolver os problemas decorrentes da percepção da natureza como separada do homem e que deve ser domada e explorada por este homem racional. São terríveis as consequências do tratamento moderno da natureza, o que pode levar ao fim as civilizações humanas, e não, é claro, a natureza. Não nos será possível destruir a natureza mas claro, a nós mesmos, ou nossas civilizações. Isto não ocorrerá se formos capazes de superar a “modernidade”, e as civilizações que sustentam este “homem” (Indivíduo) percebido como vida unitária, fora da vida complexa, que, inclusive, nós somos: seres formados e dependentes de incontáveis outros seres vivos, desde as bactérias que nos mantém vivos até aquelas que nos matam. Neste excelente livro, vamos encontrar farto material para reflexão. Desde uma perspectiva do novo constitucionalismo até compreensões distintas sobre a relação entre natureza, direitos humanos, desenvolvimento e sustentabilidade. O direito ambiental tem sido, tanto no nível interno (constitucional e infra constitucional) como no direito internacional, subordinado aos falsos “imperativos” econômicos. Quem detém o poder político e econômico no planeta, insiste em um modelo de “desenvolvimento” (quantitativo). Muitos ainda tentam tornar este modelo de desenvolvimento (um alucinante sistema de ultra consumo) em sustentável, ou em outras palavras, buscam sustentar e criar formas de como continuar ignorando a natureza como um todo sistêmico; como conti-

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nuar mantendo o eixo da separação da pessoa da natureza; como continuar explorando e percebendo a natureza como algo separado de nós; como continuar insistindo na depressão solitária do individualismo moderno; como continuar convivendo com uma economia de exploração da vida, das pessoas, da natureza. Como o novo constitucionalismo latino americano e o movimento descolonial (em muitos lugares pelo mundo), começamos a perceber que muitos outros mundos são possíveis e que não estamos condenados a este sistema sócio, cultural, jurídico e econômico hegemônicos modernos. Percebemos que não estamos condenados a viver o que vivemos, que a economia capitalista não é a única possível, e o que pensamos ser natural não é, e está em nossas mãos mudar. E mais, que o mundo já está mudando, e que para que percebamos estas mudanças em curso, precisamos sair das armadilhas epistemológicas modernas, precisamos abandonar as mesmas referências hegemônicas do colonizador, e pensar de outro lugar, do nosso lugar. Enfim, percebemos que a história não acabou, que podemos construir nossos caminhos, e que diversos caminhos são possíveis, e ainda, que não precisamos insistir em um sistema que gera violência e destruição da vida, nas suas mais variadas formas. Outros mundos são possíveis, existem e são necessários.  

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HMdosensagem homenageados

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É com grande satisfação que recebemos esta homenagem da Academia Brasileira de Direitos Humanos com o lançamento de uma obra de Direito Ambiental dedicada ao Instituto Terra. A luta pela proteção do meio ambiente passa inevitavelmente pela educação e por questões jurídicas, e neste sentido, ainda temos muito a construir. A sobrevivência dos seres humanos na Terra depende de ações urgentes e concretas em favor da preservação e da recuperação ambiental. No entanto, para promover ações que propiciem um resultado mais efetivo para o planeta e para a sociedade são necessários planejamento, sistematização, parcerias e uma constante reflexão sobre o papel da educação como meio transformador do indivíduo e da coletividade. Ao longo de sua trajetória, o Instituto Terra tem editado diferentes publicações voltadas para difundir o conhecimento adquirido na recuperação da Mata Atlântica e nos caminhos possíveis para promover o desenvolvimento sustentável. São livros e cartilhas orientadas para diferentes públicos, entre estudantes, professores, técnicos agrícolas e ambientais, além de produtores rurais, líderes comunitários e agentes de governo. Agora, com este convite para integrar uma obra jurídica, temos a oportunidade de ampliar o debate e disseminar a semente da educação ambiental dentro da perspectiva dos direitos humanos. Vivemos momento significativo da história da humanidade, quando temas como proteção ambiental, direitos humanos, desenvolvimento, inclusão social e sustentabilidade entram na ordem do dia e passam a ser tratados de forma mais ampla. Ao conhecer diferentes países, por conta das inúmeras expedições fotográficas que já realizamos, observamos que a degradação ambiental é um problema planetário, e o grande desafio que a humanidade terá que vencer se quiser continuar usufruindo da vida na Terra. Para isto, será preciso criar alternativas de desenvolvimento, que passam necessariamente por ações que unam questões educativas e participação da coletividade na promoção de um modo de vida mais responsável no uso dos recursos naturais. No caso do Instituto Terra, nossa iniciativa foi a de transformar uma antiga fazenda de gado em um sonho de recuperação ambiental. Sabíamos que para reflorestar uma área totalmente degradada seria necessário o conhecimento es-

pecífico do ambiente biofísico, além do conhecimento dos ambientes socioeconômico e cultural da região. O projeto inicial veio respaldado na recuperação e na preservação da Mata Atlântica, objetivando as conseqüências em curto e médio prazo, como a recuperação do solo e, principalmente, da água. Mas buscamos, em verdade, desenvolver um processo de longo prazo de “reconhecimento de valores”, por meio de uma aprendizagem ambiental compartilhada com a sociedade, associada a uma intervenção efetiva no meio ambiente da região do Vale do Rio Doce, visando o desenvolvimento e a produtividade de forma ecologicamente equilibrada. Depois de 16 anos das primeiras mudas plantadas, depois de vários projetos de recuperação florestal realizados ou em execução, e de mais de 76 mil pessoas atendidas com cursos de capacitação e treinamento na área ambiental, chegamos a um modelo de atuação que envolve sociedade, meio ambiente e educação, e que julgamos poder propiciar o pleno exercício da cidadania e a efetivação dos direitos humanos. Este convite da Academia Brasileira de Direitos Humanos nos dá a oportunidade de contar mais detalhadamente esta história para um público diferenciado, ligado às áreas jurídicas e especialmente a alunos e profissionais que tem a oportunidade de atuar diretamente com temas de grande relevância envolvendo a questão ambiental. A obra coletiva que se apresenta, com artigos de vários autores que expressam suas análises diante do ordenamento jurídico, ganha ainda mais destaque pela oportunidade que abre para as manifestações sobre a temática ambiental frente ao novo constitucionalismo latino-americano, o papel e a responsabilidade do Estado, a gestão democrática das águas, a responsabilização penal e a proteção ambiental à luz da Constituição brasileira. Ficamos felizes em saber que o exemplo do Instituto Terra tem espelhado e incentivado outras ações ligadas à questão ambiental, inclusive numa perspectiva jurídica, tendo como objetivo a construção de um mundo com valores voltados, verdadeiramente, para a justiça social. Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado Presidenta e Vice-presidente do Instituto Terra

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HO Instituto Terra

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A história do Brasil tem forte ligação com a Mata Atlântica, uma das formações vegetais mais ricas em biodiversidade do planeta e também uma das áreas mais ameaçadas de extinção pela ação do ser humano. Outra riqueza natural, a bacia hidrográfica do Rio Doce, que abastece mais de quatro milhões de habitantes entre os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, vive um avançado estágio de degradação ambiental, com a conseqüente escassez dos recursos hídricos. É neste cenário que atua o Instituto Terra, associação civil sem fins lucrativos estabelecida no município de Aimorés, no Leste de Minas Gerais, Brasil. A ONG ambiental é fruto da iniciativa do casal Lélia Deluiz Wanick Salgado e Sebastião Salgado que, no início dos anos noventa, ao adquirir a Fazenda Bulcão, tomaram como desafio refazer o que décadas de exploração predatória havia desfeito. Na antiga fazenda de gado que pertencia ao pai de Sebastião Salgado, a erosão era tão visível que dava a impressão de uma terra morta, cortada por esqueletos de córregos mortos. Além disso, a paisagem na fazenda repetia o cenário preocupante em que se encontrava toda a região do Vale do Rio Doce, originalmente coberto por exuberantes florestas da Mata Atlântica. Partindo para a ação, Lélia e Sebastião mobilizaram parceiros, captaram recursos e fundaram, em abril de 1998, a associação civil dedicada ao reflorestamento de áreas degradadas de Mata Atlântica, pesquisa científica e a projetos de educação ambiental voltados para promover o desenvolvimento sustentável do Vale do Rio Doce. Com o projeto de reflorestamento em mãos, o próximo passo foi tornar a área da antiga fazenda numa Reserva Particular do Patrimônio Natural (RPPN). O título foi obtido em outubro de 1998, por meio da portaria IEF/MG nº 081, e guarda um ineditismo: foi a primeira RPPN constituída em área degradada do Brasil, com o compromisso de vir a ser recuperada. Hoje, a área total da Fazenda Bulcão é de 709,84 hectares, sendo que 608,69 hectares integram a RPPN. O primeiro plantio foi planejado para o ano seguinte, novembro de 1999. Com o solo altamente desgastado, não foi tarefa fácil preparar a terra para receber as primeiras mudas de espécies de Mata Atlântica. Mas com persistência, e vários plantios depois, a natureza começou a dar sua resposta. O que antes era dominado pelo pasto e erosão, hoje abriga uma floresta rica em diversidade – são mais de 293 espécies florestais arbóreas e arbustivas originárias de Mata Atlântica. Passados 16 anos, o Instituto Terra está perto de concluir um projeto de recuperação de Mata Atlântica que está entre os maiores do Brasil em termos

de área contínua. Ano após ano, com o apoio de importantes parceiros – tanto da esfera governamental como da iniciativa privada, bem como de doadores individuais de vários países e de outras instituições do Terceiro Setor –, já foi possível viabilizar o plantio de cerca de dois milhões de mudas de árvores na RPPN Fazenda Bulcão. Junto com o verde, veio o resgate da água, restabelecendo o fluxo hídrico das nascentes que brotam na RPPN e que antes corriam o risco de secar. Os animais também não demoraram a aparecer. A área reflorestada é hoje refúgio seguro para várias espécies ameaçadas da fauna brasileira. Registros do monitoramento anual comprovam a presença desde pequenos invertebrados, como formigas, besouros e borboletas, até uma família de jaguatiricas (Leopardus pardalis), numa marcante demonstração de que o ciclo da cadeia alimentar foi restabelecido. A jaguatirica é uma das 30 espécies de mamíferos já avistados na RPPN, assim como mais de 170 espécies de aves, 16 espécies de répteis e 15 de anfíbios. Além da restauração florestal, o Instituto Terra realiza um trabalho de pesquisa científica aplicada para desenvolvimento de técnicas de recuperação de áreas degradadas, e que podem ser replicadas em outras regiões da Mata Atlântica. A partir do conhecimento adquirido na prática, está ajudando a promover a recuperação florestal em outros 7,5 mil hectares de áreas degradadas de Mata Atlântica no Vale do Rio Doce, em municípios do Espírito Santo e Minas Gerais. Todas as mudas usadas nos projetos de reflorestamento que realiza saem integralmente do viveiro de nativas construído em sua sede, cuja produção foi iniciada em 2002 e chegou ao ano de 2014 com capacidade para fornecer até mil mudas por ano. Com uma área equivalente à de um país como Portugal, o Vale do Rio Doce apresenta níveis preocupantes de destruição da Mata Atlântica, tendo registro de apenas 0,3% da cobertura original, o que afeta sobremaneira o ciclo hidrológico. A partir da experiência de sucesso obtida na RPPN Fazenda Bulcão, que comprova que junto com a recuperação do verde as nascentes voltam a jorrar água, o Instituto Terra criou o “Programa Olhos D’Água”, que tem uma meta audaciosa: proteger todas as nascentes da Bacia Hidrográfica do Rio Doce, estimadas em aproximadamente 375 mil olhos d’água, tendo como referência levantamentos preliminares realizados pelo programa. Desenvolvido desde 2010, o “Olhos D`Água” já atende oito municípios banhados pela bacia, localizada entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo,

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e foi escolhido pela ONU-Água como uma das 70 melhores práticas para a recuperação e conservação dos recursos hídricos em nosso planeta. A essência do “Programa Olhos D’Água” também passa pelo viés da educação ambiental, mobilizando as comunidades rurais e envolvendo o poder público e o Comitê da Bacia nos municípios atendidos. O programa exige um longo processo de conscientização dos pequenos produtores rurais – tendo em vista que a maioria das nascentes localiza-se dentro dessas pequenas propriedades. É preciso que os produtores cadastrem as nascentes e assinem um termo de compromisso tornando-se parceiros do projeto. Ao se comprometer com a proteção das nascentes, os produtores rurais são estimulados, por meio de capacitação, a adotar técnicas sustentáveis no uso do solo, diminuindo o impacto das atividades agrárias e de pecuária nas nascentes dos rios. De Paris, onde moram há décadas, Lélia e Sebastião participam diretamente da condução de todos os projetos do Instituto Terra, que pouco a pouco vem ajudando a mudar o quadro de degradação na região. Esse era um dos objetivos estabelecidos desde o início de sua fundação – torná-lo um polo irradiador de uma nova consciência ambiental, baseada na recuperação e conservação florestal, aumento da produção agrícola e melhoria da qualidade vida no meio rural. Até o momento, mais de 750 projetos educacionais já foram desenvolvidos para um público superior a 76 mil pessoas, de 176 municípios do Vale do Rio Doce, entre os Estados do Espírito Santo e Minas Gerais, alcançando também os Estados da Bahia e Rio de Janeiro. Um dos programas permanentes de educação ambiental, por exemplo, é o que visa transformar técnicos agrícolas em agentes de desenvolvimento rural sustentável com foco na recuperação de áreas degradadas. Essa é a essência do curso de formação pós-técnica mantido pelo Instituto Terra, voltado para técnicos agropecuários, florestais e de meio ambiente recém-formados. Com esta iniciativa, o Instituto Terra visa tornar acessível aos pequenos produtores rurais o conhecimento adquirido na recuperação da Mata Atlântica, incentivando um modelo de agricultura sustentável na região. Hoje, mais de 90% dos técnicos formados estão atuando na área de formação, em pequenas propriedades de região, principalmente a partir de projetos dos Governos de Minas Gerais e do Espírito Santo na área ambiental. Ao reflorestar áreas degradadas, restabelecer e proteger fontes de água e compartilhar conhecimento ambiental com as comunidades envolvidas, o Instituto Terra cumpre sua vocação de promover a restauração da riqueza natural do Vale do Rio Doce. Ao mesmo tempo, ao alinhar parcerias com governos, empresas e outras instituições do terceiro setor para desenvolver os projetos que idealiza, aponta um modelo de cooperação que sinaliza importante caminho para garantir um mundo mais sustentável para as gerações futuras.

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RPPN Fazenda Bulcão, sede do Instituto Terra em Aimorés-MG, antes e depois do projeto de reflorestamento de Mata Atlântica. Fotos de Sebastião Salgado (2000 - 2013)

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uito se tem falado em crise ambiental. Os debates são diversos e abrangem temas de várias ordens. Não se trata de uma questão simplesmente política, cultural ou econômica, dentre outras. O que se tem é uma crise que envolve todos os setores de toda a comunidade global. Pode-se dizer que a crise ambiental de que tanto se fala é de escala global. Exemplo disso é o derretimento das calotas polares, decorrência de alterações climáticas promovidas por emissões de gases que têm promovido, há anos, o efeito estufa. Tais emissões são feitas por diversos países, como se pode depreender do Protocolo de Quioto, que almejava um planejamento para as reduzir. O derretimento de gelo nos polos tem levado especialistas a falar na elevação do nível dos oceanos, podendo levar ao desaparecimento sociedades insulares, por exemplo. Embora, tecnicamente, o derretimento das calotas gere a evaporação de água que deveria precipitar em algum lugar, o que se tem visto são ou enchentes violentas ou secas prolongadas. Essas duas consequências foram sentidas, por exemplo, no Brasil, em menos de um ano. No fim de 2013, graves enchentes deixaram desabrigadas centenas de famílias no Estado do Espírito Santo, e no início de 2014 o mesmo ocorreu no Estado do Acre, que ficou praticamente isolado, por terra, do resto do país. Também no início de 2014, o Estado de São Paulo passou por um grave período de estiagem, em que os reservatórios das represas atingiram níveis baixíssimos. Também no final de 2013, os Estados Unidos da América, que não ratificaram o Protocolo de Quioto para redução de emissões de gases na atmosfera, experimentaram uma onda de frio dantes nunca vista, que, ainda que não tenha relação com o efeito estufa, alertou a população mundial para a força da natureza; basta recordar o congelamento das Cataratas do Niágara. Pela amplitude da crise, a conclusão óbvia é de que, além do envolvimento dos políticos e governantes, também é necessário o comprometimento de toda a coletividade, já que não se tratam de problemas pontuais com consequências

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restritas, mas, sim, de problemas que atingem a todos, indiscriminadamente.1 Em outros termos, pode-se dizer que a crise ambiental é resultado de um risco globalmente disseminado, que se insere na propalada crise da modernidade, em que um de seus aspectos, talvez o mais preocupante, é exatamente aquele representado pela possibilidade de desastres e catástrofes ambientais generalizadas,2 experimentadas nas mais diversas regiões do planeta, ainda que elas não tenham contribuído, direta ou indiretamente, para as causar. Os vinte ensaios que compõem o livro Direitos humanos e meio ambiente: obra dedicada ao Instituto Terra retratam um pouco dessa crise da modernidade. O livro começa com um ensaio de Heleno Florindo da Silva, que discute as ideias e pressupostos da patrimonialização do meio ambiente decorrente do constitucionalismo moderno. O autor contrapõe essa instrumentalização com a concepção formada pelo constitucionalismo dos povos latino-americanos, que consideram o ambiente sagrado e proporcionador do bem viver. Na sequência, Luísa Cortat Simonetti Gonçalves e Daury Cesar Fabriz discutem como a instrumentalização do ambiente determinou a implantação de um estado de exceção permanente que o destrói aos poucos, mas de maneira contínua, especialmente a partir de legislações que determinam retrocessos socioambientais. O terceiro ensaio é assinado por Ivy de Souza Abreu, que discute a relação do princípio da solidariedade com a defesa do meio ambiente. A autora analisa a questão do direito-dever fundamental de proteção do ambiente como obrigação do Estado e cidadãos, que têm a responsabilidade de torná -lo um meio sadio e de qualidade, a fim de que todos possam usufruir de um ambiente salubre, visto então como direito. No mesmo trilho, Ludmila Lais Costa Lacerda e Julio Pinheiro Faro analisam o dever fundamental de proteção do meio ambiente a partir da proposta interpretativa de Ronald Dworkin (Direito como integridade), e verificam que as decisões em questões ambien1 )  N  esse sentido, dentre outros: CAMPONOGARA, Silvimar et al. Visão de profissionais e estudantes da área de saúde sobre a interface saúde e meio ambiente. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, vol. 11, n. 1, p. 93-111, jan./abr. 2013, p. 94. 2 )  M  ARTINS, Clitia Helena Backx. A sociedade de risco: visões sobre a iminência da crise ambiental global na teoria social contemporânea. Ensaios FEE, Porto Alegre, vol. 25, n. 1, p. 234-235, 2004.

tais proferidas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) e pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) partem de um consenso mínimo, ainda que não declarado expressamente, de que há certa precedência do dever de proteção do ambiente sobre o direito ao ambiente protegido, muito embora sejam faces complementares do mesmo objeto. Em seguida, no quinto ensaio, Jackelline Fraga Pessanha e Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes trabalham com a questão da educação em meio ambiente para a promoção da cidadania, e destacam o papel fundamental a ser desempenhado pelas escolas sobre a visão que as pessoas têm da importância do meio ambiente e dos direitos da coletividade. Também Margareth Santos Schayder discorre sobre educação ambiental e cidadania e sua importância no desenvolvimento de novos conhecimentos e habilidades, valores e atitudes, para resgatar a cidadania e a preocupação da sociedade com as gerações futuras e o futuro do planeta. No próximo ensaio, de autoria de Wagner Scopel Falcão e Ítalo Severo Sans Inglez, também sobre educação ambiental, são feitas reflexões sobre o uso, em práticas docentes, das tecnologias da informação e comunicação para as discussões sobre a importância do meio ambiente na proteção dos direitos humanos. Helena Carvalho Coelho e Lorena Ferreira Carpes assinam o oitavo ensaio e discutem a relação entre desigualdade social e racismo ambiental. Para as autoras, a forma como as políticas públicas ambientais são formuladas no Brasil visa ocultar desigualdades sociais, o que cria injustiça ambiental, e, assim, falase em racismo ambiental. Também sobre o papel do Estado na promoção de políticas públicas ambientais e justiça ambiental, o ensaio de Elizabeth de Mello Rezende Colnago parte de uma visão contemporânea do Estado e sua função socioambiental enquanto ator da sustentabilidade para reduzir os impactos ambientais enquanto satisfaz as necessidades públicas e atividades socialmente desejáveis, promovendo justiça social. Guardando relação com o ensaio anterior, Mariana de Siqueira discorre sobre políticas de gestão democrática das águas para o desenvolvimento sustentável. A autora, com base na relevância da água e de sua gestão e a partir de considerações a respeito da educação ambiental, vislumbra que a participação cidadã viabiliza o desenvolvimento sustentável. No mesmo sentido sobre a ne-

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cessidade de gestão controlada, Vanessa de Fátima Terrade desenvolve o argumento pela necessidade de políticas pela gestão sustentável dos solos. Gilmar Alves Batista, no duodécimo ensaio, destaca a função da Defensoria Pública na promoção do direito ao ambiente e a relaciona com o exercício da cidadania, o usufruto do saneamento básico e a garantia da justiça social. No tredécimo ensaio, Carla Amado Gomes destaca a responsabilidade do Poder Público em realizar o planejamento territorial para gerir e prevenir o risco ambiental decorrente das alterações climáticas e seus resultados sobre a orla costeira portuguesa. No mesmo sentido está o ensaio assinado por Orlindo Francisco Borges, em que trata sobre a responsabilidade pelo uso de herbicidas e seus impactos ambientais, a partir da análise de jurisprudência internacional. Também Renata Machado Saraiva trata sobre a responsabilidade. Em seu ensaio a autora denuncia a diferença de tratamento no que tange à responsabilidade por danos ao meio ambiente provocados por pessoas jurídicas de Direito público daqueles provocados por pessoas jurídicas de Direito privado, isto é, como a norma penal é aplicada aos dois tipos genéricos de casos. Na sequência, Camila Pedroni Ribeiro e Cristina Grobério Pazó tratam sobre causas excludentes de nexo causal na responsabilidade civil por danos ao meio ambiente, a partir da procura de uma compatibilização entre as legislações civil e ambiental. No décimo sétimo ensaio, Lívia Gaigher Bósio Campello e Carlos Walter Marinho Campos Neto tratam sobre a responsabilidade de pessoas jurídicas de Direito privado na promoção de um ambiente de trabalho sadio para garantir condições dignas e justas de trabalho para o bem-estar do trabalhador. Finalizando o livro, há três ensaios sobre questões judiciárias e processuais que guardam relação com o meio ambiente. Na sequência, o primeiro (décimo oitavo no livro) é assinado por Hermes Zaneti Jr., que discute o problema da abertura do ordenamento jurídico aos princípios como fonte de interpretação dos direitos fundamentais, inclusive o direito ao meio ambiente. O autor aponta a importância das decisões judiciais para a garantia dos direitos relacionados ao meio ambiente. O segundo (penúltimo no livro) é da autoria de Márcia Vitor de Magalhães e Guerra e aborda a questão de uma adequada representação e legitimação nos processos coletivos ambientais a partir do instituto da

substituição processual. Por fim, Fernando Carlos Dilen da Silva e Paulo Roberto Ulhoa abordam as diversas formas de proteção do patrimônio ambiental brasileiro, em especial diante do Poder Judiciário. Trata-se, pois, de um livro que traz algumas das diversas questões sobre o meio ambiente. O fio condutor é a proteção ao meio ambiente. Aliás, toda obra coletiva, por suposto, deve ter um tema central acerca do qual os trabalhos tratem, o que permite certa unidade, ainda que haja uma pluralidade de perspectivas adotadas pelos autores, os quais podem partir, e é salutar que o façam, de abordagens e metodologias diferentes, e que podem ser até divergentes. A riqueza de uma obra coletiva reside exatamente na riqueza de manifestações sobre um mesmo tema. Por isso vale a leitura das dezoito interessantes contribuições que o presente livro oferece sobre questões ambientais. Os ensaios que compõem o livro confirmam a força que a Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH) vem adquirindo em seus já quase dez anos de existência no campo acadêmico que se compromete com o desenvolvimento de pesquisas sobre direitos humanos. Trata-se já do terceiro livro. O segundo foi Direito das futuras gerações, publicado em 2013, com 23 ensaios de autores de diversas nacionalidades (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Itália, Portugal e Romênia). E, antes, O tempo e os direitos humanos, publicado em 2011, com 47 ensaios sobre o reconhecimento e concretização dos direitos, sob as mais variadas perspectivas, em razão da diversidade de nacionalidades dos autores (Alemanha, Brasil, Espanha, França, Irlanda, Itália, Portugal e Uzbequistão). Vê-se que já com os dois primeiros livros a ABDH já possui certa inserção não apenas nacional, como também internacional. O terceiro livro, que agora se introduz, é o primeiro exclusivamente composto por ensaios em língua portuguesa, os quais lidam, basicamente, com as seguintes temáticas gerais: a construção da concepção de proteção ao meio ambiente; educação e meio ambiente como exercício da cidadania; justiça social; políticas de proteção ao meio ambiente; responsabilidade por danos ao meio ambiente; questões judiciárias e processuais. Julio Pinheiro Faro Secretário-Geral da Abdh

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1 A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir Heleno Florindo da Silva1 Faculdade São Geraldo

Sumário: Introdução. 1 O Direito Ambiental Pátrio e a Constituição Federal de 1988: A Instrumentalização do Meio Ambiente para a Vida

Humana Como Mecanismo de sua Patrimonialização.

2 A Pachamama e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: Uma Revolução Ecológica Parae Pelobem Viver. Conclusão

1 )  M  embro do Grupo de Pesquisa Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória. Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (CAPES 4). Pós Graduado em Direito Público e Bacharel em Direito pelo Centro Universitário Newton Paiva. Membro Diretor da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH). Professor do Curso de Direito da Faculdade São Geraldo (FSG). Professor de Direito Administrativo do Centro de Evolução Profissional (CEP). Advogado.

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

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Introdução

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A atualidade dos seres humanos os obriga a identificar e realizar atos, das mais variadas espécies e naturezas, sempre ao mesmo tempo, instantaneamente, pois o Homem de hoje – o aceito social, cultural e politicamente pela sociedade em que vive – é aquele que consegue acompanhar todo o cenário de virtualização das relações humanas, de patrimonialização dos padrões sociais e de conflito entre os papeis sociais desenvolvidos individual e coletivamente por todos. É a partir desse contexto que o presente trabalho buscará analisar os problemas inerentes ao debate acerca do meio ambiente2, principalmente, aquelas discussões oriundas de uma premissa patrimonializante desse meio ambiente, que se desdobra, como veremos, na construção constitucional e infraconstitucional de uma ideia, patrimonial para o meio ambiente. Para tanto, num primeiro momento, será abordado acepções básicas sobre a ideia de meio ambiente dispostas pelo direito brasileiro, principalmente, pelo direito ambiental, concluindo ao final do capítulo, a partir de uma análise geral, pela existência, a partir do ordenamento jurídico pátrio, inerente às discussões sobre o meio ambiente, pela existência de uma instrumentalização desse meio ambiente, vista, pela racionalidade constitucional da modernidade ocidental, como requisito essencial para a Vida Humana. Já no capítulo dois, busca-se trazer às discussões uma nova visão constitucional, ou seja, um novo modelo para as Teorias da Constituição e do Estado, um modelo que se convencionou chamar de novo constitucionalismo latino-americano, e que, dentre outras, possui grande importância para (re)discutirmos as questões ambientais do modelo atual de sociedade – sobretudo das sociedades ocidentais. É aqui que serão abordadas as principais características desse novo cenário a fim de concluir ao final, que nesse novo cenário o meio ambiente passa a ser visto não mais como um patrimônio da humanidade, mas, por outro lado, como algo maior, algo que os povos indígenas campesinos andinos denominam como Pachamama. A busca pelo bem viver, que embasa essa pesquisa e esse trabalho, à luz do novo constitucionalismo latino-americano, como se perceberá abaixo, surge como um caminho possível para a rediscussão da ideia patrimonialista inerente ao meio ambiente – premissa imposta pela racionalidade constitucional ocidental moderna. 2 )  T  odas as discussões sobre o meio ambiente desenvolvidas no presente trabalho giram entorno do meio ambiente natural, ou seja, não se discute neste trabalho, os meio ambientes artificiais, culturais e do trabalho. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

Assim, através de um diálogo múltiplo dialético se buscará resposta ao seguinte questionamento: é possível perceber no cenário inaugurado pelo novo constitucionalismo latino-americano uma nova racionalidade para o meio ambiente, capaz de romper com a racionalidade constitucional ocidental da modernidade?

1) O Direito Ambiental Pátrio e a Constituição Federal de

1988: A Instrumentalização do Meio Ambiente para a Vida Humana como Mecanismo de sua Patrimonialização

A preocupação com o Meio Ambiente no ordenamento jurídico brasileiro data de muito antes do Brasil existir como um país independente, ou seja, as Ordenações Filipinas, já previam em seu Livro Quinto, Título LXXV, uma pena gravíssima àquele que cortasse, indevidamente, árvore ou fruto, estando o sujeito às penas de açoite e ao degredo para a África pelo prazo de quatro anos, nos casos de danos mínimos, ou perpetuamente, se o dano fosse de natureza grave3. Contudo, em que pesem as primeiras preocupações em nosso território datarem do período colonial, foi só com a Constituição de 1988 que o Meio Ambiente passou a ser disposto, constitucionalmente, em capítulo próprio dentro das normas constitucionais do Texto Maior. A respeito desse ponto, Milaré aponta que a Constituição Federal de 1988 pode ser visto como “(...) marco histórico de inegável valor, dado que as Constituições que precederam a de 1988 jamais se preocuparam da proteção do meio ambiente de forma específica e global. Nelas sequer uma vez foi empregada a expressão ‘meio ambiente’, a revelar total despreocupação com o próprio espaço em que vivemos4”. A Carta Constitucional de 1988, portanto, surge a partir de um momento em que os países, regra geral, começam a discutir as questões ambientais com maior seriedade, percebendo, a partir de dados climáticos de pesquisas científicas sobre as mudanças do clima, um futuro preocupante 3 ) FEDERAL, Supremo Tribunal. Inquérito n. 870-2/RJ. 1996. p. 11-462 apud MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 21ª ed. ampl. até EC/53 de 19 de Dezembro de 2006. São Paulo: Atlas, 2007. p. 795. 4 )  MILARÉ, Édis. Legislação Ambiental do Brasil. São Paulo: APMP, 1991. p. 3. Obra dedicada ao Instituto Terra

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para as próximas gerações que nada fosse feito. Nos termos da Declaração sobre o Ambiente Humano, concretizada durante a Conferência das Nações Unidas em Estocolmo na Suécia em 1972, quando os países, ali reunidos, dentre os quais o Brasil, proclamaram “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequadas, em um meio ambiente de qualidade tal que lhe permite levar uma vida digna, gozar de bem-estar e é portador solene de obrigação de proteger e melhorar o meio ambiente, para as gerações presentes e futuras. A esse respeito, as políticas que promovem ou perpetuam o ‘apartheid’, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira permanecem condenadas e devem ser eliminadas. Os recursos naturais da Terra, incluídos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna e, especialmente, parcelas representativas dos ecossistemas naturais, devem ser preservados em benefício das gerações atuais e futuras, mediante um cuidadoso planejamento ou administração adequados. Deve ser mantida e, sempre que possível, restaurada ou melhorada a capacidade da Terra de produzir recursos renováveis vitais. O homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimônio representado pela fauna e flora silvestres, bem assim o seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em conseqüência, ao planificar o desenvolvimento econômico, dever ser atribuída importância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres5”. Dessas premissas, é possível detectar um dado que serviu de base para todas as concepções de proteção ao meio ambiente desde então, qual seja, a ideia de que o meio ambiente e seus recursos compõem-se de patrimônio disponível à humanidade, um patrimônio, inclusive, comum da humanidade, devendo sua proteção integral ser posta em prática, especialmente, para que as gerações futuras também possam desfrutar desse patrimônio. Conforme se debaterá no tópico abaixo, os povos indígenas latino-americanos, especialmente, aqueles de origem andina, percebem o meio ambiente de uma forma diversa. Percebem-no através da designação Pachamama, que será melhor trabalhada a seguir. A Constituição Federal de 1988, a partir dessa visão sobre o meio ambiente, consubstanciada por documentos internacionais que foram surgindo, principalmente, a partir da segunda metade do século passado, determinou a proteção do meio ambiente, um direito fundamental de todos os brasileiros, como um dever do Poder Público, da sociedade e de cada um do povo. 5 )  ONU, Declaração Sobre Ambiente Humano, 1972, Preâmbulo – Tradução Nossa. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

O art. 225, caput, do citado Texto Constitucional de 1988, neste sentido, assevera que todos têm direito ao meio ambiente, sendo esse, um ambiente ecologicamente equilibrado, algo essencial à sadia qualidade de vida. Para tanto, impõe ao “(...) Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Para conseguir analisar a ideia por traz de um meio ambiente ecologicamente equilibrado, o Direito necessita aliar conhecimentos de outras áreas, tais como: a Ecologia, a Biologia, a Geografia, dentre outras. É a Ecologia, por exemplo, a responsável por conceituar biosfera como sendo o conjunto do solo, da água e do ar existentes no Planeta Terra, elementos indispensáveis à vida, principalmente, a do Homem. Mas, mesmo no Direito, há uma distribuição entre os vários ramos de seu conhecimento para debater sobre o meio ambiente. A proteção, portanto, nos termos postos na Constituição de 1988, é uma simbiose entre o Direito Constitucional, o Direito Ambiental, o Direito Internacional, o Direito Civil, o Direito Administrativo, entre outros. Essa é a característica que possibilita visualizarmos uma evolução em conceitos tradicionais como a soberania, o direito de propriedade, o interesse público e privado, sendo que, para Guido Fernando Silva Soares “(...) no fundo, o meio ambiente é um conceito que desconhece os fenômenos das fronteiras, realidades essas que foram determinadas por critérios históricos e políticos, e que se expressam em definições jurídicas de delimitações dos espaços do Universo, denominadas fronteiras. Na verdade, ventos e correntes marítimas não respeitam linhas divisórias fixadas em terra ou nos espaços aquáticos ou aéreos, por critérios humanos, nem as aves migratórias ou os habitantes dos mares e oceanos necessitam de passaportes para atravessar fronteiras, as quais foram delimitadas, em função dos homens6”. Os estudos sobre o meio ambiente, a partir das bases do constitucionalismo ocidental da modernidade, que o fixa como um patrimônio difuso, algo que vai além das divisas de uma propriedade, estão, portanto, conforme debatido, fincados em premissas patrimonializantes. Jimenez traduz muito bem essa ideia quando discute o fato de que os últimos, e maiores, acidentes ambientais das três décadas anteriores, nos possibilitam perceber como o direito fundamental ao meio ambiente equilibrado deve ser uma preocupação para além das fronteiras criadas pelo

6 )  S  OARES, Guido Fernando Silva. Direito Internacional do Meio Ambiente. São Paulo: Atlas, 2001. p. 298 e 299. Obra dedicada ao Instituto Terra

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

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homem em suas convenções sociais, políticas e culturais7. Acerca desse contexto o direito ambiental subsumido, primeira e principalmente, pelas determinações do art. 225, da Constituição Federal de 1988, deve ser interpretado sempre em consonância com o art. 1º, III, do mesmo diploma legal, que determina a dignidade humana como um dos fundamentos da República do Brasil, o art. 3º, II, que determina um dos objetivos fundamentais da república o desenvolvimento nacional, pautado sempre pelos ideais de sustentabilidade inerentes ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A efetivação dos direitos humanos, portanto, tão necessária para a melhoria da vida em sociedade, principalmente do direito à vida em um ambiente ecologicamente equilibrado e do direito ao desenvolvimento sustentável daí decorrente, também representa uma das maiores buscas da humanidade8 do pós Segunda Guerra Mundial. Essa relação está centrada, em resumo, em dois importantes aspectos, quais sejam: a) na proteção do meio ambiente como uma das formas da humanidade e, no caso do Brasil, de seu povo conseguir a efetivação dos direitos humanos garantidos pela Constituição de 1988, vez que o meio ambiente, caso seja lesado, reflete uma contribuição direta para a infração de direitos reconhecidos internacionalmente, tais como: à vida, à saúde, o bem-estar, o desenvolvimento sustentável, entre outros. E, b) os direitos ambientais dependem da concretização dos direitos humanos para, também, se efetivarem, pois é através do direito à informação, da liberdade de expressão, da tutela judicial inafastável, da participação política no Estado nos assuntos da vida civil de seu povo, ou seja, na busca pelo exercício da cidadania, que será possível, consequentemente, reivindicar direitos relativos ao meio ambiente, 7 )  JIMENEZ, Martha Lucia Olivar. O Estabelecimento de Uma Política Comum de Proteção ao Meio Ambiente: sua necessidade num mercado comum. Estudos de Integração. Brasília: Associação Brasileira de Estudos de Integração do Senado Federal, 1994, v. 7. p. 15. 8 )  S  obre tais apontamentos Cançado Trindade destacar ser importante que se considere “para os desenvolvimentos futuros dos mecanismos de proteção internacional da pessoa humana e do meio ambiente a questão de sua proteção erga omnes. Os distintos instrumentos de proteção internacional dos direitos humanos e do meio ambiente incorporam obrigações de conteúdo e alcance variáveis: algumas normas são suscetíveis de aplicabilidade direta, outras afiguram-se antes como programáticas. Há, pois, que prestar atenção à natureza jurídica das obrigações. A esse respeito surge precisamente a questão da proteção erga omnes de determinados direitos garantidos, quelevanta o ponto da aplicabilidade a terceiros – simples particulares ou grupos de particulares – de disposições convencionais (denominado “Drittwirkung” na bibliografia jurídica alemã)” (TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993. p. 145). Direitos Humanos e Meio Ambiente

Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

bem como sustentar todo um ramo da Ciência Jurídica como o direito ambiental. A necessidade de estabelecer um tratamento sistematizado e associado aos temas da proteção ambiental e humana, que pode ser visto a partir da análise do direito fundamental a proteção ao meio ambiente para as gerações presentes e futuras, foi exposta por Cançado Trindade, ao considerar que “Embora tenham os domínios da proteção do ser humano e da proteção ambiental sido tratados até o presente separadamente, é necessário buscar maior aproximação entre eles, porquanto correspondem aos principais desafios de nosso tempo, a afetarem em última análise os rumos e destinos do gênero humano9”. Realizando uma análise do comportamento humano a partir dessas discussões sobre o meio ambiente que desabrocharam, como visto, com maior regularidade na segunda metade do século passado, Lipovetsky conclui que “(...) a ideia de que a Terra está em perigo de morte, impôs uma nova dimensão de responsabilidade, uma concepção inédita das obrigações humanas que ultrapassa a ética tradicional, circunscrita às relações inter-humanas imediatas10”. Diante desse novo contexto ético-ecológico de necessidade de discussão e proteção do meio ambiente, os direitos humanos também são trazidos ao cenário do debate como verdadeiros alicerces de entendimento e salvaguarda desse novo contexto ambiental. O meio ambiente, através das construções modernas do constitucionalismo ocidental, é visto como um patrimônio da humanidade, um patrimônio comum, um bem necessário para a manutenção e o desenvolvimento da vida humana, de modo que “A sucessão de catástrofes ecológicas (...) deram lugar a uma conscientização de massa no que toca aos danos do progresso, bem como a um largo consenso em torno da urgência de salvaguardar o ‘patrimônio comum da humanidade’. Multiplicação das associações de proteção da natureza, ‘dia da Terra’, sucessos eleitorais dos Verdes – a nossa época assiste ao triunfo dos valores ecológicos, a hora é do ‘contrato natural’ e da cidadania mundial, o ‘nosso país é o Planeta’. (...) Os nossos deveres superiores já não são para com a nação: a defesa do ambiente tornou-se um objetivo de massas (...)11”. A Lei 6.938/81, responsável pela instituição da Política Nacional do Meio 9 ) TRINDADE, Antônio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente: paralelo dos sistemas de proteção internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993. p. 23. 10 )  L  IPOVETSKY, Gilles. O Crepúsculo do Dever: a ética indolor dos novos tempos democráticos. Trad. GASPAR, Fátima e GASPAR Carlos. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1994. p. 244. 11 )  Idem. Ibidem. p. 243-245. Obra dedicada ao Instituto Terra

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

Ambiente, o descreveu como um patrimônio público, ou seja, um patrimônio dos Homens de uso coletivo, verdadeiro princípio de direito ambiental que regerá as relações entre os seres humanos e seus impactos no meio ambiente (art. 2º, I). O direito ambiental, desse modo, deve ser visto, principalmente a partir da Constituição Federal de 1988, como verdadeiro instrumento de salvaguarda e garantia ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, visto como verdadeiro patrimônio do ser humano pela legislação ambiental brasileira, bem como pelo constitucionalismo ocidental da modernidade, que vê esse meio ambiente como verdadeiro instrumento nas mãos dos seres humanos. Por fim, no próximo tópico serão debatidos os fundamentos do novo constitucionalismo latino-americano, bem como o novo modelo Plurinacional de Estado e, a partir dessas novas premissas constitucionais e éticas, como é possível identificar um tratamento ao meio ambiente que o identifique não mais como um patrimônio, mas sim, como um verdadeiro sujeito de direitos.

2) A Pachamama e o Novo Constitucionalismo Latino38

Americano: Uma Revolução Ecológica Parae Pelobem Viver

Todo esse cenário atual – de verdadeira crise civilizatória12 –, fruto daquilo que a modernidade impôs ao mundo como único padrão político, econômico, social, cultural e ambiental possíveis, que necessariamente deveriam ser partilhados por todos, caminha para autodestruição. É o momento, portanto, de pensarmos alternativas a esse modelo ideologizante, homogeneizante e uniformizador de patrimonialização do meio ambiente. E é com essa perspectiva que uma nova racionalidade – que é milenar, mas que estava encoberta pela racionalidade europeia moderna desde o “descobrimento das Américas” – começa a ser discutida e constitucionalizada na América Latina, principalmente, nos países andinos. Uma racionalidade que está pautada em preceitos indígenas, em conceitos e modos de ver a vida, de viver a vida, sob um prisma totalmente diverso da hiper competição dos dias atuais. A busca pela felicidade não 12 )  N  este sentido, Lander aponta que “para amplos movimentos sociais em todo o planeta está cada vez mais claro que confrontamos uma profunda crise civilizatória, que estamos diante da crise terminal de um padrão civilizatório baseado em guerras sistemáticas pelo controle e submissão/ destruição da natureza (LANDER, Edgardo. Estamos Viviendo Una Profunda Crisis Civilizatoria. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 3 – tradução nossa). Direitos Humanos e Meio Ambiente

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está no consumo desenfreado, na visão de um meio ambiente patrimonializado, mas numa vida de plenitude – sumak kawsay 13–, ou seja, naquilo que se convencionou chamar de buen vivir. Contudo, essa vida de plenitude não é possível de ser alcançada a partir do sistema-mundo em que vivemos – pautado em competição, na busca desenfreada pelo acúmulo de capital, num sentimento de violência endêmica, de medo do outro, do diferente, do diverso – de modo que há necessidade de mudarmos as estruturas do atual modelo de Estado. Devemos, assim, rediscutir os dogmas do constitucionalismo moderno, não a partir de visões europeias das mais incríveis e difíceis teorias do Direito, do Estado ou da Constituição, mas sim, a partir de nós mesmos14, dos nossos conhecimentos, de nossa emancipação15. A construção latino-americana, em relevo, promove a separação da ideia de nação em duas frentes. Existe uma nacionalidade cívica, que nos identificaria como brasileiros, argentinos, ingleses, espanhóis e assim por diante, e uma nacionalidade étnico-cultural. É a partir disso que Santos aponta que “Não há um conceito de nação, há dois conceitos de nação e não há necessariamente um 13 )  S  egundo Macas Sumak Kawsay seria a vida em plenitude, “a vida em excelência material e espiritual”. Segundo ele, essa ideia nasce da junção entre El Sumak – a plenitude, o sublime, excelente, magnífico, e etc. – e El Kawsay – que nada mais é do que a vida, o ser, o estar, mas de forma dinâmica, ou seja, não como algo passivo, imposto por uma cultura dominante, hegemônica (MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010). 14 )  A  s principais formas de resistência ao modelo moderno e europeu de sociedade do capital – um modelo cada vez mais depredador, seja da natureza, seja do próprio homem – segundo Lander vêm do Sul, ou seja, dos países cujas culturas originárias foram encobertas pela europeia por mais de 500 anos. Assim, ele aponta que “as principais resistências a este modelo depredador, a este processo de acumulação por desapropriação, ocorre em povos e comunidades campesinas e indígenas em todo o planeta, particularmente no Sul” (LANDER, Edgardo. Estamos Viviendo Una Profunda Crisis Civilizatoria. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 2 – tradução nossa). Neste sentido, Boaventura também aponta como essas comunidades são amantes de seu país, como querem e lutam por seu país, participar e construir, juntos, um novo modelo de sociedade, um novo Estado, ou seja, destaca que “não tinha visto ainda gente tão nacionalista como os indígenas, amantes de seu país. Lutaram por seu país, morreram por seu país nas guerras da independência, nas lutas depois da independência; são equatorianos, são peruanos, são colombianos, mas, também, são aymaras, são quechuas, são shuar” (SANTOS, Boaventura de Sousa. “Hablamos Del Socialismo Del Buen Vivir”. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 5 – tradução nossa). 15 )  MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 16. Obra dedicada ao Instituto Terra

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conflito entre eles. A concepção de nação cívica, de origem liberal, cidadã – todos somos equatorianos, bolivianos, brasileiros, portugueses (este era o conceito liberal de cidadania e da nação cívica, geopolítica). Mas há um conceito étnico-cultural (...). Uma nacionalidade que tem raízes étnico-culturais e que não colide, não cria, necessariamente, conflito com o primeiro conceito de nação16”. Toda essa busca, resgate, dos valores encobertos pela modernidade europeia no contexto latino-americano, de enorme diversidade étnico-cultural, política, econômica e social, corrobora uma tentativa de se resgatar no passado – de culturas milenares, tais como: as andinas, onde se destacam a Inca; a Asteca; a Maia; as Amazônicas, entre outras – uma racionalidade para o futuro, que seja mais respeitosa com a diversidade cultural da América Latina, bem como com a natureza17. Assim, a busca pelo bem viver que estampa este ponto do trabalho, necessariamente deve passar pelo desencobrimento dos conhecimentos que foram encobertos ao longo dos séculos por aquilo que Dussel chama de “mito da modernidade18”. Céspedes19 também analisará a necessidade de resgatar o outro, o diverso, o diferente, encoberto pela hegemonia uniformizadora, homogeneizante e ideologizante do eu, para alcançarmos o bem viver, chegando a conclusão de que “Viver bem é recuperar a vivência de nossos povos, recuperar a cultura da vida e recuperar nossa vida em completa harmonia e respeito mútuo com a mãe natureza, com a Pachamama, onde tudo é Vida, onde todos somos uywas, criados da natureza e do cosmos, onde todos somos parte da natureza e não há nada separado, onde o vento, as estrelas, as plantas, as pedras (...) são nossos irmãos, 16 )  S  ANTOS, Boaventura de Sousa. “Hablamos Del Socialismo Del Buen Vivir”. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 5. 17 )  S  obre a necessidade de frearmos a modernidade europeia capitalista, do consumo em competição cada vez mais acirrado e necessário para a manutenção do próprio sistema, José Alberto Mujica Cordano, presidente da República Oriental do Uruguai, em discurso proferido na ocasião da conferência da Organização das Nações Unidas para assuntos climáticos (Rio+20), nos aponta o fato de que não restaria oxigênio a ser respirado no mundo, se os “Indianos tivessem a mesma quantidade de carros por família que os Alemães”, e conclui, que “não se trata de mudarmos e voltar às épocas dos homens das cavernas, nem de termos um ‘monumento ao atraso’”, mas sim, que o desenvolvimento não pode ser contra a felicidade do homem, ou seja, tem que ser a favor da felicidade humana.

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onde a terra é vida em si, bem como o lugar de todos os seres vivos20”. Através dessas discussões é possível perceber que o modo como essas culturas indígenas e campesinas latino-americanas – que se embasa na busca por um bem viver – constroem ou reconstroem sua racionalidade para a vida, se corrobora na ideia de que cada cultura conserva em si, sua própria identidade, que não pode ser relegada por um modelo, uma identidade nacional, homogênea, desenvolvimentista e uniforme, do ser21, que o meio ambiente não guarda, portanto, a característica patrimonialista que a modernidade ocidental lhe impôs. Na cosmovisão dos povos originários latino-americanos, segundo Huanacuni, “não existe um estado anterior ou posterior de subdesenvolvimento ou de desenvolvimento, como condição para se alcançar uma vida desejável, tal como ocorre no mundo ocidental”, europeu e norte americano, mas, ao contrário, há todo um esforço para se construir as condições materiais e espirituais necessárias a criar e manter um bem viver, “que se define também como vida harmoniosa e em permanente construção22”. Antes de continuarmos a análise dessa nova visão latino-americana de pacto social, de um constitucionalismo da diversidade, de um Estado que não seja somente uni nacional, mas sim plurinacional, ou seja, de toda essa novidade que os constitucionalistas contemporâneos vêm chamando de novo constitucionalismo latino-americano, é necessário explicar algumas ideias que lastreiam toda essa racionalidade, tais como: o símbolo cultural Pachamama. Para analisarmos essa ideia, muito importante para as culturas indígenas andinas da América Latina, e que embasa todas as discussões constitucionais mais recentes neste território, é preciso compreender a etimologia dessa palavra, ou seja, é necessário compreender, por exemplo, o que é Pacha. De um modo geral, para as culturas indígenas e campesinas andinas, Pacha 20 )  D  iante disso, Céspedes conclui que essa racionalidade latino-americana discutida não buscará, num primeiro momento, falar de justiça social, “porque quando falamos de construir uma sociedade com justiça social, estamos falando unicamente das pessoas – humanos – e isso é excludente” (CÉSPEDES, David Choquehuanca. Hacia La Reconstrucción Del Vivir Bien. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010, p. 10 e 11).

18 )  DUSSEL, Enrique. 1492 El Encubrimiento Del Otro: hacia El origen del “mito de La Modernidad. La Paz: Plural Editores, 1994.

21 )  E  ssa ideia é percebida por Macas quando chega a conclusão de que “toda sociedade é o resultado de um processo social, econômico, político, cultural, histórico determinado. Os povos ou as nações, (...). os seres humanos, são o produto da vida em sociedade” (MACAS, Luis. Sumak Kawsay: la vida en plenitud. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 14 – tradução nossa).

19 )  C  ÉSPEDES, David Choquehuanca. Hacia La Reconstrucción Del Vivir Bien. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 10.

22 )  HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 19 – tradução nossa.

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é um termo plurissignificativo e multidimensional, pois todas as formas de existência vêm a ser a síntese das forças que movem a vida, ou seja, das forças cósmicas e telúricas23, do tempo e do espaço e forças que vão além disso. Huanacuni destaca sobre esse termo que “A palavra Pacha tem essa concepção, pois representa a união de ambas as forças: Pa que vem de Paya – que significa dois – y Cha que vem de Chama – que significa força. Duas forças cósmico-telúricas que interatuam para poder expressar isto que chamamos vida, como a totalidade do visível (Pachamama) e do invisível (Pachakama)”24. A ideia por detrás do símbolo cultural Pacha não se restringe ao modelo de espaço-tempo da racionalidade moderna europeia, de modo que há que ser destacado que enquanto espaço, Pacha é a junção das forças cósmicas – representadas pelo Alaxpacha e pelo Kawkipacha – e das forças telúricas – representadas pelo Akapacha e pelo Manqhapacha25.

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23 ) Conforme analisado acima, para as culturas indígenas e campesinas dos Andes latino-americanos, embasadas em seus ancestrais, existem duas forças que movem tudo o que existe, uma força cósmica, divina, que vem do céu aos seres vivos, e uma força telúrica, que nasce da terra, que formará aquilo que eles entendem ser a Pachamama. Desse modo, é possível perceber que para essa cultura, essa racionalidade, essa cosmovisão andina, tudo o que existe no mundo possui vida, seja algo orgânico, seja algo inorgânico. Portanto, é da conversão dessas forças no decorrer do processo da vida, que todas as diferentes formas dessa vida surgem. Essas diferentes formas de vida passam a se relacionar com aquilo que nessa cosmovisão se entende como Ayni, a complementaridade, o equilíbrio, pois é a diferença, a diversidade, em equilíbrio, que completará o sentido da vida, do bem viver (HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 21 e 22 – tradução nossa). 24 ) Portanto, conforme conclui Huanacuni “para o ser andino esta palavra vai mais além do tempo e do espaço, implica uma forma de vida, uma forma de entender o universo que supera o tempo-espaço (o aqui e o agora). Pacha não só é tempo e espaço, é também a capacidade de participar ativamente do universo, submergir-se e estar nele” (HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 21 e 22 – tradução nossa). 25 ) Alaxpacha representa a dimensão de um plano superior, ou seja, compreende o plano superior tangível, visível, onde se olham as estrelas, o sol, a lua, o raio. No ser humano, alaxpacha compreende o corpo invisível, o emocional, o etéreo. Por outro lado, Kawkipacha, a dimensão de um plano indeterminado, representa o mundo desconhecido, indefinido, o mundo que existe mais além do que é visível. O mundo andino concebe que existe vida mais além do universo visível. Se nos referirmos aos seres humanos, kawkipacha é aquilo que está mais além do corpo tangível, podemo-los chamar de ‘essência da vida’. Enquanto força telúrica, Akapacha representa a dimensão, o espaço deste mundo em que vivemos, ou seja, corresponde a este mundo, onde se desenvolve toda a forma de vida visível, seja ela humana, animal, vegetal ou mineral. Em relação aos seres humanos, akapacha corresponde ao corpo físico e ao espaço da percepção humana consciente. Por fim, Manqhapacha é a dimensão Direitos Humanos e Meio Ambiente

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De outro lado, enquanto tempo26, Pacha é a junção das cinco formas de tempo – segundo a racionalidade andina –, ou seja, o tempo que é presente (Jichapacha), o tempo que é passado (Nayrapacha), o tempo que é futuro (Jutirpacha), o tempo que é intenso (Sintipacha) e o tempo que é eterno (Wiñaypacha). É a partir disso que Huanacuni chega à conclusão de que “É importante diferenciar as concepções a respeito da ideia de tempo entre o Ocidente e os Andes. Para o Ocidente o tempo é linear, vem de um passado, passa por um presente produto desse passado e vai para um futuro. No mundo andino o tempo é circular; se assume um presente, no entanto, que é contínuo, de modo que passado e futuro acabam se fundindo em um só ao final27. A racionalidade andina que fundamenta toda essa recente discussão constitucional trazida à luz pelas recentes Constituições latino-americanas, não concebe nada como estático, pois tudo está em um eterno movimento. Por isso, buscam a ideia de bem viver, que é viver a vida com mais brilho, plenamente, em um tempo que sempre será o presente. Esse bem viver vem romper com a estética moderna europeia de vida, de realidade, de sociedade, de meio ambiente como patrimônio da humanidade e, principalmente, de Estado e de sistema econômico28, haja vista a “noção de bem viver desprezar a acumulação como categoria central da economia, situ-

do mundo de baixo, ou seja, se refere ao mundo de baixo, onde se acham as forças da mãe terra. O mundo andino concebe vida ao interior da terra. Em relação aos seres humanos, manqhapacha é o mundo interior, e no espaço de percepção humana, significa o subconsciente (HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 22 – tradução nossa). 26 ) Uma análise crítica sobre as construções teóricas que narram o tempo inerente aos processos sociais, sua duração, produção e reprodução, a partir de uma racionalidade ocidental, linear, causal e estrutural, ver TÀPIA, Luis. Tiempo, Poiesis y Modelos de Regularidad. In.:Pluralismo Epistemológico. La Paz: Muela del Diablo Editores, 2009, p. 177-192. 27 ) HUANACUNI, Fernando. Paradigma Occidental y Paradigma Indígena Originario. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 22 – tradução nossa 28 ) Isso pode ser percebido mais claramente em Gargarella e Courtis, 2009, quando demonstram como as recentes Constituições de Equador e Bolívia vêm romper com as tradições constitucionais da modernidade europeia – elitistas e individualistas (GARGARELLA, Roberto e COURTIS, Christian. El Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano: promesas e interrogantes. Santiago: CEPAL, 2009. p. 21) –, que são, sobretudo, conforme nos aponta Magalhães pautadas na ideia da propriedade individualizada e uniformizada, bem como da família como algo a seguir um único padrão – o europeu (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2012e, p. 13 e 14). Obra dedicada ao Instituto Terra

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ando a vida nesta centralidade29”, ou seja, o bem viver andino não é somente uma utopia para o futuro das próximas gerações, mas, ao contrário, é uma constante realidade presente. Tracejadas as principais características dessa nova racionalidade social, política, cultural e econômica, fruto de inúmeras revoluções nos países de origem indígena e campesina da América Latina, é necessário destacar como toda essa busca se desenvolveu nas últimas décadas, apontando quais os principais textos constitucionais latino-americanos representam a formação dessas discussões. As primeiras visualizações desse novo modelo constitucional – conforme as palavras de Vieira30– buscam as principais características das Constituições latino-americanas mais recentes, de modo a firmar a percepção de que essas Constituições inauguram um constitucionalismo a partir de toda a racionalidade indígena e campesina descrita acima, o que dá azo a uma nova conformação tanto para o Estado, quanto para o Direito e para a sociedade. O citado autor ainda apresenta como uma das principais características desse cenário que surge, o fato de que nesse novo constitucionalismo o povo ser visto como uma sociedade aberta de sujeitos constituintes, o que, via de consequência, representa uma superação das noções de identidade nacional, construídas em torno de uma cultura hegemônica, verdadeira estética do correto, do certo, do belo. Baldi31 destaca a partir daí que esse constitucionalismo latino americano, possuiu três ciclos32, ou seja, esse modelo plural tem como origem um consti29 ) LEÓN T., Magdalena. Reactivación Económica para El Buen Vivir: un acercamiento. In.: Sumak Kawsay: recuperar el sentido de vida. ALAI, nº 452, año XXXIV, II época, Quito, Ecuador, febrero 2010. p. 24. 30 ) VIEIRA, José Ribas. Refundar o Estado: o novo constitucionalismo latino-americano. In: Universidade Federal do Rio de Janeiro. Disponível em: . Acessado em 15 de Agosto de 2012. 31 ) BALDI, César Augusto. Novo Constitucionalismo Latino-Americano. In: Jornal Estado de Direito. 32ªed. Disponível em: . Acessado em: 14 de Agosto de 2012. 32 ) Sobre os ciclos de formação do novo constitucionalismo latino-americano é importante ressaltar as palavras de Wolkmer e Fagundes para quem esse novo cenário foi construído em três momentos, ou seja, “(...) um primeiro ciclo social e descentralizador das Constituições Brasileira (1988) e Colombiana (1991). (...) um segundo ciclo (...) participativo popular e pluralista, em que a representação nuclear desse processo constitucional passa pela Constituição Venezuelana de 1999”. E um terceiro ciclo – plurinacional comunitário – “passa a ser representado pelas recentes e vanguardistas Constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) (WOLKMER, Antonio Carlos e FAGUNDES, Lucas Machado. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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tucionalismo multicultural (1982/1988), fruto das primeiras discussões acerca da insuficiência do modelo antigo em garantir direitos – de primeira, segunda ou terceira dimensão – para aquelas pessoas que não representassem os ideais – fosse com relação à cor da pele, a religião ou ao modo de viver – da cultura europeia, cristã e capitalista, imposta pelo colonizador – o que serviu para o reconhecimento de direitos indígenas específicos, bem como para a introdução, nos textos das diversas Constituições da época, da noção de diversidade cultural. Em seguida, o autor destaca como segundo ciclo de formação desse constitucionalismo latino-americano em discussão, a ascensão do que se denominou na época, de constitucionalismo pluricultural (1988/2005), que surge como instrumento para o reconhecimento da existência de sociedades multiétnicas e de Estados Pluriculturais – um exemplo desse período é a Constituição Pluricultural da Venezuela de 199933. Como último ciclo de desenvolvimento desse constitucionalismo latino americano, Baldi destacará o constitucionalismo plurinacional surgido em 2006 no contexto da Declaração das Nações Unidas sobre direitos indígenas, bem como nos contextos das assembleias nacionais constituintes da Bolívia e do Equador, que concretizaram a formação dos primeiros modelos de constituições e de Estados Plurinacionais34. Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo Latino-Americano: o estado plurinacional e pluralismo jurídico. In: Revista Pensar. Fortaleza, jul./dez. v. 16. n.2. p. 2011. p. 403)”. 33 ) E mais, neste contexto, há o surgimento, também, da Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho, reconhecendo um catálogo de direitos indígenas, afro e outros de cunho coletivo aos indivíduos e povos cujo Estado a ratificasse – essa Convenção foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto nº 5.051, de 19 de Abril de 2004. 34 ) Sobre os ciclos de formação desse novo constitucionalismo latino-americano, é importante destacar que todas as discussões acerca desse novo cenário constitucional latino não nascem com o advento de uma única constituição. A história não é algo estanque, com data e hora para acontecer. O constitucionalismo da diversidade que emerge, portanto, é fruto, segundo Raquel I. Fajardo – de certo modo, corroborando as ideias de Baldi trazidas acima –, de vários ciclos de debates, cada qual representado por vários textos constitucionais, por onde se destaca que “o horizonte do constitucionalismo pluralista contemporâneo na América Latina passa por três ciclos: a) o constitucionalismo multicultural (1982 a 1988): composto pelas Constituições do Canadá de 1982, da Guatemala de 1985, Nicarágua de 1987 e do Brasil de 1988. A Constituição do Canadá teria inaugurado o multiculturalismo, pois abre um primeiro reconhecimento de sua herança multicultural e da incorporação dos direitos aborígines; b) o constitucionalismo pluricultural (1989 a 2005): inaugurado pelas Constituições da Colômbia de 1991, México de 1992, Perú de 1993, Bolívia de 1994, Argentina de 1994 e Venezuela de 1999; c) o constitucionalismo plurinacional (2006): inaugurado com o surgimento das Constituições do Equador de 2008 e da Bolívia de 2009” (FAJARDO, Raquel I. 2010, p. 25 apud. WOLKMER, Pluralismo Crítico e Perspectivas para um Obra dedicada ao Instituto Terra

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Em que pese Baldi (2008) destacar a construção do modelo constitucional latino-americano em discussão através de uma evolução iniciada no constitucionalismo multicultural da década de 1980 – pois as constituições dessa época são exemplos de reconhecimento e proteção cultural (o que pode ser visto pelos arts. 231 e 232, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988) – existem entendimentos diversos, que ligam essa nova visão constitucional, originariamente, à Constituição Colombiana de 199135. É o que destaca Fernándes-Noguera e Diego36, ao afirmarem que “Na Constituição colombiana aparecem, mesmo que imperfeitamente, mas claramente reconhecível, alguns elementos inovadores e diferenciados em relação ao constitucionalismo clássico, que mais tarde permearão e serão desenvolvidos nos processos constituintes equatoriano em 1998, venezuelano em 1999, e boliviano em 2006-2009 e, de novo, no Equador em 2007-2008. (...). A Constituição colombiana de 1991 é, por conseguinte, o ponto de partida do novo constitucionalismo no continente37”. Apesar dessa forma de se pensar o constitucionalismo latino em discussão, ou seja, desse resgate do valor da constituição na promoção de uma sociedade mais justa, poder ser dissecada a partir desses ciclos, entendemos que a

Constituição da Venezuela de 1999 possui extrema importância para a ponte entre o reconhecimento da diferença trazido pelo multiculturalismo canadense e a plurinacionalidade boliviana. E mais, é a partir da Constituição da Venezuela de 1999 que o novo constitucionalismo latino americano começa a tracejar aquilo que Santos38 chamará de “reinvenção da democracia39”. Tal constatação pode ser vista pela ampliação da participação popular nas decisões tomadas pelo Estado a partir das recentes constituições latino-americanas representantes desse cenário constitucional em discussão40. Todo esse movimento constituinte latino-americano, principalmente nos países de ancestralidade indígena e campesina andina, vem demonstrar que as novas Constituições neste contexto trazem um catálogo de direitos constitucionais que rompe com o paradigma geracional eurocêntrico. São textos construídos a partir do (re)surgimento do indígena, do campesino, efetivamente, como um sujeito de direitos, com vez e vós no cenário político das decisões políticas, sociais e econômicas do Estado. O constitucionalismo que se pretende e se defende nessa nova perspectiva

Novo Constitucionalismo na América Latina. In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, Antonio Carlos (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 30).

38 ) SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia. 2ª ed. Lisboa: Gradiva, 1998 e SANTOS, Boaventura de Sousa. Reinventar a Democracia: entre o pré-contratualismo e o pós-contratualismo. Oficina do Centro de Estudos Sociais. nº 107. Coimbra, 1998a.

35 ) Sobre a formação do que hoje se discute como novo constitucionalismo latino-americano, bem como de Estado Plurinacional – que será trabalhado mais detidamente abaixo – Magalhães percebe a construção desse cenário de discussões fervilhantes, distintamente dos citados autores acima, ou seja, para ele “embora possamos encontrar traços importantes de transformação do cosntitucionalismo moderno já presentes nas constituições da Colômbia de 1991 e da Venezuela de 1999, são as constituições do Equador (2008) e da Bolívia (2009) que efetivamente apontam para uma mudança radical que pode representar, inclusive, uma ruptura paradigmática não só com o constitucionalismo moderno mas, também, com a própria modernidade” (MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Estado Plurinacional e Direito Internacional. Curitiba: Juruá, 2012e, p. 12). 36 ) FERNÁNDEZ-NOGUERA, Albert e DIEGO, Marcos Criado. La Constitución Colombiana de 1991 como Punto de Inicio Del Nuevo Constitucionalismo en América Latina. In.: Revista Estudos Socio-Jurídicos, Bogotá (Colombia), n. 13 (1), enero-junio de 2011. p. 18 – tradução nossa. 37 ) Corroborando esse entendimento Pastor e Dalmáu concluem que “os novos processos constituintes latino-americanos tiveram início na Colômbia, no princípio da década de 1990, como fruto de reivindicações sociais anteriores” (PASTOR, Roberto Viciano e MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Aspectos Generales Del Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano. In.: El Nuevo Constitucionalismo en América Latina: memorias del encuentro internacional el nuevo constitucionalismo (desafios y retos para el siglo XXI). Quito: Corte Constitucional Del Ecuador, 2010. p. 9 – tradução nossa). Direitos Humanos e Meio Ambiente

39 ) Sobre esse ponto em especial, é importante ressaltar que o novo constitucionalismo latino -americano advém desse objetivo – uma reformulação de conceitos formados na modernidade, tal como a ideia de democracia representativa – que aparece estampado nos textos constitucionais mais recentes do continente, qual seja: o de legitimar, bem como, expandir a democracia, surgindo ao contexto constitucional como resultado de lutas e de reivindicações populares por um novo modelo de organização do Estado e do direito (MORAES, Germana de Oliveira e FREITAS, Raquel Coelho. O Novo Constitucionalismo Latino-Americano e o Giro Ecocêntrico da Constituição do Equador de 2008: os direitos de pachamama e o bem viver (sumak kawsay). In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, Antonio Carlos (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013. p. 106 e 107). 40 ) Acerca da importância da Constituição da Venezuela para a conformação desse constitucionalismo latino, Wolkmer ressalta as inovações do constitucionalismo venezuelano trazidas em sua Constituição de 1999, demarcando-as como verdadeiros marcos na participação do povo em relação a formação, execução e controle da gestão pública. É o que determina o art. 6º, da Constituição da Venezuela de 1999, para quem “O Governo da República Bolivariana da Venezuela e das entidades políticas que a compõem sempre será democrático, participativo, eletivo, descentralizado, alternativo, responsável e pluralista, com mandatos revogáveis” (WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Crítico e Perspectivas para um Novo Constitucionalismo na América Latina. In: MELO, Milena Petters e WOLKMER, Antonio Carlos (orgs.). Constitucionalismo Latino-Americano: tendências contemporâneas. Curitiba: Juruá, 2013, p. 31 e 32 – tradução nossa). Obra dedicada ao Instituto Terra

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latino-americana, nos permite superar as leituras liberais, procedimentais ou instrumentais da modernidade41, abrindo espaço para que, por exemplo, a democracia não se restrinja a um devaneio social de um momento de luta contra os monopólios burgueses, ou contra a falta de concretização dos direitos fundamentais ou, ainda, contra as restrições impostas pela cultura globalizante do capital42. Em que pesem as discussões trazidas acima sobre qual instrumento normativo, efetivamente, deu o “ponta-pé-inicial” para o surgimento do novo constitucionalismo latino-americano, o que nos interessa aqui é o fato desse novo modelo paradigmático representar uma novidade capaz de romper com a lógica moderna de Estado, de sociedade, onde o meio ambiente é visto a partir de um prisma patrimonial, exploratório, vigente nos últimos 500 anos da história humana43.

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41 ) É dessa constatação que podemos retirar um fato comum, qual seja, de que todas as deficiências apontadas ao marco do constitucionalismo moderno nacional convergem para uma origem comum, ou seja, às primeiras teorias do nacionalismo de cunho liberal, haja vista esse modelo se concretizar pela desconsideração do caráter político, não meramente étnicocultural, de modo que os governos, as organizações, as instituições de poder, em seus discursos nacionalistas, não refletiam – e como o novo constitucionalismo latino-americano irá discutir – e ainda não refletem, o povo que lhe é subjacente, que lhe é “súdito” (MAÍZ, Ramón. Nacionalismo y Multiculturalismo. Disponível em . Acessado em: 17 de Agosto de 2012. p. 18). Diante desse fato, Tápia expôs uma série de crises que essa noção clássica – moderna e nacional – de Estado, vem cotejando nos últimos anos, sendo que, segundo ele, uma dessas crises é a de correspondência entre os cidadãos e seu governo, ou seja, os membros do poder de um Estado não são ligados às várias culturas de uma sociedade, “se trata de uma crise de correspondência entre o Estado boliviano, a configuração de seus poderes, o conteúdo de suas políticas, por um lado, e, por outro, o tipo de diversidade cultural desenvolvida de maneira auto organizada, tanto ao nível da sociedade civil, quanto da assembleia de povos indígenas e outros espaços de exercício da autoridade política que não formam parte do Estado boliviano, senão de outras matrizes culturais excluídas pelo Estado liberal desde sua origem colonial, bem como em toda sua história posterior” (TAPIA, Luis. “Una reflexión sobre laidea de Estado plurinacional”. In.: OSAL (Buenos Aires: CLACSO) Ano VIII, Nº 22, Setembro de 2007, p. 48 – tradução nossa. Disponível em: . Acessado em 22 de Agosto de 2012). 42 ) LINEIRA, Álvaro Garcia. El Estado en Transición: bloque de poder y punto de bifurcación. In.: LINERA, Álvaro Garcia e outros. El Estado: campo de lucha. La Paz: Muela Del Diablo Editores, 2010. p. 11-24. 43 ) O novo constitucionalismo latino-americano é diferente do constitucionalismo anterior, sobretudo, pela natureza das assembleias constituintes, é o que Pastor e Dalmáu destacam quando concluem que “desde as constituições fundacionais latino-americanas – que por outro lado, foram mas ínsitas ao liberalismo conservador, do que algo revolucionário – a América Latina estava carente de processos constituintes ortodoxos – isto é, plenamente democráticos – e, ao contrário, havia experimentado, em uma multiplicidade de ocasiões, processos constituintes representativos das elites e afastados da natureza soberana essencial do poder constituinte” (PASTOR, Roberto Viciano e MARTÍNEZ DALMAU, Rubén. Se Puede Hablar de un Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano como Corriente Direitos Humanos e Meio Ambiente

Heleno Florindo da Silva M Faculdade São Geraldo

É desse contexto, também, que nasce a ideia de que esse cenário constitucional não possui um progenitor, um pai, ou seja, o novo constitucionalismo latino-americano “(...) é um constitucionalismo sem pais. Ninguém, exceto o povo44, pode se sentir progenitor da Constituição, haja vista a genuína dinâmica participativa e legitimadora que acompanha os processos constituintes45” recentes na América Latina. O bem viver do homem, portanto, não pode estar dissociado dos direitos, segundo as bases do novo constitucionalismo plurinacional latino-americano, da “mãe” terra, pois a partir da construção constitucional do Equador em 2008 e da Bolívia em 2009, por exemplo, é possível percebermos que todos os seres fazem parte de um organismo vivo, a Pachamama, que passa, a partir de então, a ser reconhecida como sujeito de direitos46, e não mais como um patrimônio do qual a humanidade pode, livremente, dispor. Doctrinal Sistematizada?. 2013, p. 8 – tradução nossa. Disponível em: < http://www.juridicas.unam.mx/wccl/ponencias/13/245.pdf>. Acessado em 01 de Agosto de 2013). Sobre a ideia de que as primeiras Constituições latino-americanas não demonstraram uma ruptura total com o sistema até então em vigor – colonialismo – Wolkmer e Fagundes apontam que “a independência das colônias na América Latina não representou, no início do século XIX, uma mudança total e definitiva com relação à Espanha e a Portugal, mas tão somente uma reestruturação, sem uma ruptura significativa na ordem social, econômica e políticoconstitucional” (2011, p. 375). 44 ) Corroborando essa ideia, Wolkmer e Fagundes destacam a marca dos movimentos sociais que dão origem ao novo constitucionalismo latino-americano, demonstrando que “os movimentos pela refundação do Estado latino-americano surgem da exisgência histórica por espaço democrático, congregam interesses a partir do abandono da posição de sujeitos passivos na relação social com os poderes instituídos” (WOLKMER, Antonio Carlos e FAGUNDES, Lucas Machado. Tendências Contemporâneas do Constitucionalismo Latino-Americano: o estado plurinacional e pluralismo jurídico. In: Revista Pensar. Fortaleza, jul./dez. v. 16. n.2. 2011. p. 395). 45 ) DALMÁU, Rubén Martínez. El Nuevo Constitucionalismo Latinoamericano y el Proyecto de Constitución del Ecuador de 2008. In.: Alter Justicia: estudios sobre teoría y justicia constitucional. Ano 2, n. 1, p. 13-28, oct. 2008. p. 19 – tradução nossa. 46 ) A pachamama, portanto, necessita a partir dessas premissas, ser reconhecida enquanto sujeito de direitos, ou seja, há necessidade de transformarmos a forma como tratamos a natureza, vendo-a, então, não somente como um objeto de exploração sem fim, mas sim, concretizando na prática, a ideia de que a natureza deve ser respeitada, haja vista também possuir direitos. Ademais, para a visualização dessas premissas na seara jurídica, ver a AÇÃO CONSTITUCIONAL DE PROTEÇÃO À NATUREZA, julgada em 30 de março de 2011, na Corte Provincial de Justiça de Loja, no Equador (Juicio 11121-20110010). Disponível em: . Acessado em 27 de Julho de 2013. Nesta Ação Constitucional um rio – rio Wilcabamba – figurou como pólo ativo da demanda, ganhando a demanda em face do governo provincial de Loja, no Equador, por ter praticado o depósito de materiais de escavação em seu leito, sem que fosse realizado, previamente, um estudo do impacto ambiental e social na área. Obra dedicada ao Instituto Terra

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A Patrimonialização do Meio Ambiente e o Novo Constitucionalismo Latino-Americano: A Pachamama e a Busca pelo Buen Vivir

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Conclusão

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Após discutirmos o modo como o direito ambiental, sobretudo a racionalidade constitucional dos Estados nacionais da modernidade ocidental, visualiza o meio ambiente e, de outro lado, como o novo constitucionalismo latino -americano visualiza esse contexto, cabe agora trazer as notas finais ao debate. Desta feita, é possível perceber neste contexto que essa nova racionalidade constitucional do Estado Plurinacional latino-americano rompe com os dogmas dos Estados nacionais da modernidade dos colonizadores ocidentais europeus. O meio ambiente passa a ser visto para além de um patrimônio de uso e gozo comuns da sociedade humana, pois, em si, é visto como um verdadeiro sujeito de direitos, podendo, através de determinados agentes, recorrer, às vias judiciais para fazer cessar lesão ou ameaça de lesão ao seu bem viver. Toda ruptura, contudo, traz angústias e preocupações, pois não se imagina o novo sempre como algo que surtirá efeitos, como algo bom. Em muitos casos o novo traz perspectivas escuras, difíceis, ou até mesmo, impossíveis de serem postas, efetivamente, em prática. Para que o novo constitucionalismo latino-americano não ganhe o status dessa segunda acepção, são necessárias mudanças radicais, sejam elas na política, na sociedade, na cultura, na economia, pois esse novo contexto constitucional não surtirá os efeitos pretendidos, se o imaginarmos a partir das mesmas perspectivas que temos atualmente, principalmente, em se tratando do regime econômico de mercado, onde é o Capital – e não o Estado – quem governa. Não visualizar patrimonialmente o meio ambiente não será fácil, principalmente, em sociedades ocidentais extrativistas, exploratórias – como a nossa –, onde o meio ambiente não passa de mero instrumento para a consecução dos objetivos da vida humana, cujo principal é a felicidade – que, atualmente, está ligada mais aos valores das relações entre os Homens e seus bens, do que aos valores das relações humanas. Entretanto, se de um lado romper com o padrão patrimonial do meio ambiente não será tarefa fácil, de outro, é uma tarefa necessária, pois, se ontem podíamos usufruir patrimonialmente do meio ambiente, e ainda hoje “conseguimos” tal feito, as gerações futuras não terão a mesma facilidade. Assim, a Pachamama deverá ser mais do que preservada, resguardada, protegida. Ela deverá ser elevada ao patamar de origem, de base, de primeiro elemento, da felicidade humana. É através da Pachamama, e só por ela, que o Homem, efetivamente, conseguirá garantir seu Buen Vivir.

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2 Projeto do Novo Código Florestal Brasileiro: Um Estado de Exceção Permanente Destrutivo do Ambiente Luísa Cortat Simonetti Gonçalves Faculdade de Direito de Vitória Daury Cesar Fabriz Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 O Estado de Exceção

Permanente em Agamben. 2 A Construção da Proteção Jurídica ao Meio Ambiente no Brasil. 3 A Exceção Permanente Destrutiva do Ambiente. Conclusão

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Introdução

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As sociedades humanas, como se sabe, são estruturadas de maneira complexa, com inúmeras instituições que se inter-relacionam e que, por vezes, são necessárias para que um resultado único seja atingido. Isto é, as estruturas de normas e regras criadas para a regulação das interações humanas deveria emanar do povo (de quem todo poder emana e em cujo nome o poder deve ser exercido), mas que, com populações cada vez maiores, precisa ser representado. Assim, as pessoas se organizam em partidos políticos meio pelo qual alcançam a esfera política que, por sua vez, será responsável pela produção das normas jurídicas. Nessa primeira exposição, embora assumidamente breve e superficial, já fica bastante clara a proximidade da relação entre política e direito. No presente artigo, traz-se o pensamento de Agamben relativo ao espaço de exceção (também discutido em sua permanência), que, em análise última, acaba por ser justamente o espaço vazio que se coloca entre esses dois âmbitos e que, para organização e bom funcionamento do Estado, precisa ser preenchido. Objetiva-se, então, analisar, primeiramente, se esse espaço, no que tange às questões ambientais, se fixou de forma permanente no Brasil, significando a existência de um estado de exceção permanente. O exemplo enfrentado é a elaboração do Novo Código Florestal brasileiro, com base nas discussões que cercaram seu projeto. A partir daí, procura-se responder ao problema central aqui sob análise: se esse suposto estado permanente acabou por gerar uma exceção destrutiva do ambiente. A hipótese trabalhada, posteriormente confirmada, é de que o vazio entre política e direito acaba por travar embates incertos entre as duas searas e, consequentemente, mais suscetíveis a influências outras, como dos poderes econômicos. Para tanto, perpassou-se a teoria do estado de exceção permanente de Agamben e a construção do ordenamento jurídico ambiental brasileiro para, por fim, estabelecer as relações mencionadas.

1) O Estado de Exceção Permanente em Agamben De início, indispensável um breve transcurso no pensamento de Agamben acerca do estado de exceção. É o que se realiza neste tópico, a partir dos pen-

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samentos do autor expressos no livro de mesmo nome1, no qual ele procura conduzir o leitor pelos raciocínios da compreensão do estado de exceção e de como ele tem se manifestado enquanto paradigma de governo. A princípio, já se estabelece relação direta entre soberania e estado de exceção (Schmitt, em Politische Theologie), o qual, por sua vez, poderia estar embasado no estado de exceção e, por isso, a definição do termo estado de exceção teria se tornado tão difícil de definir: situado entre a política e o direito, ou seja, teria se tornado um espaço vazio, mas que necessita ser preenchido para o pleno funcionamento e ordem do Estado. Para o preenchimento desse espaço, Agamben traz a importante “luta de gigantes” acerca desse vazio. Nesse sentido, procura ler a teoria schmittiana da soberania como uma resposta à crítica benjaminiana da violência, construção que se mostra necessária de ser refeita aqui para plena compreensão do raciocínio em comento. O ensaio de Benjamin tem por objetivo “garantir a possibilidade de uma violência (o termo Gewalt significa também simplesmente “poder”) absolutamente fora e além do direito e que, como tal, poderia quebrar a dialética entre violência que funda o direito e violência que o conserva”2. Assim, Benjamin procura trabalhar com os dois tipos de violência, a “pura” e a que depõe o direito: a primeira sendo aquela que põe ou conserva o direito e, como este não tolera de forma nenhuma qualquer violência fora dele, esta seria a que o depõe. Schmitt, por sua vez, procura trazer a violência para o contexto jurídico e “[...] é em resposta à ideia benjaminiana de uma indecidibilidade última de todos os problemas jurídicos que Schmitt afirma a soberania como lugar de decisão extrema”3, procurando neutralizar a violência pura e assegurar uma relação entre anomia e contexto jurídico. O autor conclui, sinteticamente, do debate entre os dois que “se para Schmitt, a decisão é o elo que une soberania e estado de exceção, Benjamin, de modo irônico, separa o poder soberano de seu exercício e mostra que o soberano barroco está, constitutivamente, na impossibilidade de decidir”4. 1 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. 2 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 84. 3 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 85. 4 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 87.

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Relembrando o contexto alemão em que se situaram esses entraves, uma grande questão reside no fato de que o estado de exceção proclamado em 1933 nunca havia sido extinto. Com isso, para Schmitt, a Alemanha estava em uma situação de ditadura soberana que deveria levar à abolição total da Constituição de Weimar e à instituição de uma nova, o que ele não poderia aceitar é que o estado de exceção se confundisse inteiramente com a regra. Por outro lado, a resposta benjaminiana é defender que a tentativa do poder estatal de se anexar à anomia por meio do estado de exceção é uma ficção jurídica por excelência que procura manter o direito em sua própria suspensão como força de lei5. Retorna-se, pois, para o espaço vazio que seria o estado de exceção para o direito, o espaço vazio que é a anomia, isto é, um espaço vazio de toda determinação e de todo predicado real (zona onde se situa o comportamento humano sem relação com a norma), sendo o estado de exceção como dimensão constitutiva. O direito, espectralmente, se dividiria em uma figura na qual é pura vigência sem aplicação (a forma de lei) e outra na qual ele é aplicação sem vigência (força de lei). Utilizando-se o termo técnico essencial de Benjamin, Reine Gewalt, e a distinção dessa violência pura para a que põe o direito, essa força de lei, segundo ele, já não é mais lei, sim vida. Superado o debate entre Schmitt e Benjamin e estabelecidas as premissas para a plena compreensão do estado de exceção e do estado de exceção permanente, Agamben retoma as origens e a evolução semântica do termo iustitium (do estado de exceção ao luto público pela morte do soberano ou de um parente próximo dele), chegando a poder explicar a relação do soberano com a “norma viva”: “Se o soberano é um nomos vivo, se, por isso, anomia e nomos coincidem inteiramente em sua pessoa, então a anarquia (que, à sua morte – quando, portanto, o nexo que a une à lei é cortado – ameaça libertar-se pela cidade) deve ser ritualizada e controlada, transformando o estado de exceção em luto público e o luto, em iustitium. (Agamben, 2004, p. 107)” Complementando-se essa noção de poder, há que se ter em mente que a auctoritas é prerrogativa essencial do Senado, enquanto a potestas e o imperium dependem do povo, sendo que a auctoritas, na visão do autor, é um poder que suspende ou reativa o direito, porém sem a mesma vigência formal. No atual sistema jurídico ocidental, essas instituições podem ser identificadas com os dois elementos heterogêneos que o compõem: um normativo e ju5 ) Agamben assim ser refere à força de lei, porque esta expressão, de modo geral, é um conceito relativo à posição da lei ou dos atos a ela relacionados, mas no espaço anômico do estado de exceção “o que está em jogo é uma força de lei sem lei (que deveria, portanto, ser escrita: força de lei)” (Agamben, 2004, p. 61) Direitos Humanos e Meio Ambiente

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rídico em sentido estrito (potestas) e outro anômico e metajurídico (auctoritas). O estado de exceção atinge seu máximo desdobramento quando ambos coincidem numa só pessoa. Ademais, distinguir entre vida e direito, anomia e nomos, é a própria articulação da máquina biopolítica. “Mostrar o direito em sua não relação com a vida e a vida em sua não relação com o direito significa abrir entre eles um espaço para a ação humana que, há algum tempo, reivindicava para si o nome ‘política’. A política sofreu um eclipse duradouro porque foi contaminada pelo direito”6. Diante dessa constatação do espaço vazio e da função assumida pelo que se denomina hoje no sistema ocidental de política, essencial a análise do papel que a política vem desempenhando nesse sistema. No presente artigo, a referida análise do papel da política centrará seu foco do direito ambiental, passando, mais especificamente, pelos direitos que vêm sendo possibilitados pelas nomos, autorizadas pela potestas, pela autorictas e pela política.

2) A Construção da Proteção Jurídica ao Meio Ambiente no Brasil

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A Constituição brasileira de 1988 traz inúmeras previsões relativas à proteção do meio ambiente, entretanto, relativamente a esse tema, o Capítulo VI do título VIII (“Do Meio Ambiente”) tem grande destaque. Nele, há previsões como o direito comum a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, deveres do Poder Público e da coletividade e possíveis controles e punições. Contudo, a distinção é grande entre previsão constitucional e concretização, sendo, ainda, agravada pela cultura jurídica brasileira, tendo em vista tal proteção ser muito recente no ordenamento jurídico pátrio. Veja-se, pois, como tem se dado a construção da proteção jurídica ao meio ambiente no Brasil. Inicialmente, deve-se destacar que o contexto histórico e, consequentemente, cultural brasileiro, remonta a longos séculos de uma lógica socioeconômica puramente exploratória – não distante do “desenvolvimento” que se procura(va) promover nos demais países ocidentais. Logo, quando, após a Segunda Guerra Mundial, o incipiente movimento ambientalista começa a ganhar mais destaque, as resistências são quase que intransponíveis, vez que o pensamento dominante impunha a compreensão da existência de diferenças inconciliáveis 6 ) AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção: Homo Sacer. 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 133. Obra dedicada ao Instituto Terra

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entre defesa do meio ambiente e crescimento econômico. O grande marco mundial que significou Estocolmo (1972), levou o Brasil a salientar um ponto que até hoje constitui forte divergência durante as conferências internacionais: os contrastantes interesses entre Hemisfério Norte, já rico e preocupado com questões ambientais, e Hemisfério Sul, ainda em desenvolvimento e apenas com ele preocupado. Com base nesse raciocínio, o Brasil causou enorme constrangimento e controvérsia ao defender o desenvolvimento econômico a qualquer preço. Entretanto, ainda nessa mesma década, começou-se a observar iniciativas pontuais, em nível estadual, de tentativa de proteção do meio ambiente, as quais, por outro lado, foram bruscamente impedidas pelo autoritário governo federal ditatorial. Foi apenas com a Lei 6.938/81, conhecida como Política Nacional do Meio Ambiente, que se deu o passo inicial da vida pública do país no que tange à regulação da proteção ambiental. Isso se deve, sobretudo, ao pioneirismo no estabelecimento de uma política de longo prazo, em contraposição com as corriqueiras ações impulsivas ou de momento. Nas palavras de Milaré7: “Sua implementação, seus resultados, assim como a estabilidade e a efetividade que ela denota, constituem um sopro renovador e, mais ainda, um salto de qualidade na vida pública brasileira. Seus objetivos nitidamente sociais e a solidariedade com o planeta Terra, que, mesmo implicitamente, se acham inscritos em seu texto, fazem dela um instrumento legal de grandíssimo valor para o País e, de alguma forma, para outras nações sul-americanas com as quais o Brasil tem extensas fronteiras”. No entanto, as mesmas pendengas observadas entre as posições das diferentes nações passaram a ser vislumbradas dentro do Brasil, colocando em polos distintos os estados mais ricos e os em desenvolvimento. Essa separação, por sua vez, trouxe, contraditoriamente, nova dificuldade ao estabelecimento de uma política ambiental de caráter nacional. Um aspecto essencial é o fato de que a constitucionalização das questões ambientais ocorreu apenas em 1988, com a atual Constituição, tendo em vista que os legisladores constituintes anteriores não se preocuparam com previsões dessa natureza. Aliás, conforme bem destaca Horta8: “no período republicano o tema am-

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biental se confundia com a autorização conferida à União para legislar sobre defesa e proteção da saúde ou com a proteção aos monumentos históricos, artísticos e naturais, às paisagens [...]”. Complementando esse raciocínio, Antunes9 sintetiza a abordagem econômica e estritamente preocupada com as competências federais presente na Constituição de 1934: “De alguma forma, a CF de 1934 estimulou o desenvolvimento de uma legislação infraconstitucional que se preocupou com a proteção do meio ambiente, dentro de uma abordagem de conservação de recursos econômicos”. Pouca coisa mudou nas constituições seguintes, mesmo com o regime democrático em 1946. Todo esse contexto demonstra a grande importância da CRFB/88, em especial o já mencionado título VI do capítulo VIII, sobretudo por elevar o tratamento da questão no ordenamento jurídico ao status constitucional.

3) A Exceção Permanente Destrutiva do Ambiente Parte-se, agora, para a conjugação das duas análises realizadas anteriormente, buscando-se compreender qual proteção jurídica tem sido dispensada ao meio ambiente no Brasil e qual papel tem sido desempenhado pelo Estado. Cabe, de início, analisar as promessas contidas no texto constitucional, o que será realizado por meio do artigo exemplar que é o 225, caput: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Só daí já se extrai inúmeras pretensões do ordenamento jurídico pátrio atual para o tratamento das questões ambientais. A constitucionalização da matéria, que no Brasil, conforme visto, é ainda bastante recente, traz de plano alguns benefícios, como nos lembra Canotilho10, tais quais o estabelecimento de um dever constitucional genérico de não degradar, a ecologização da propriedade e da sua função social, a fundamentalização do direito à proteção ambiental, a legitimação constitucional da função estatal reguladora, a redução da discricionariedade administrativa, a possibilidade de ampliação da participação pública etc.

7 ) MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: A Gestão Ambiental em Foco. 7. ed. rev., atual. e ref. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 405.

9 ) ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 11. ed. reform. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. p. 59.

8 ) HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 3. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2002. p. 271.

10 ) CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens (org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 95-107.

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Ao mesmo tempo, preocupações como essas, principalmente no contexto da “constituição cidadã”, levam à possibilidade de entendimento de que o Estado brasileiro seria, então, um estado de direito ambiental, posto que a ordem pública instituída não estaria mais apenas vinculada a elementos esparsos da natureza, mas sim passou a ser abordado holística e autonomamente. E só assim pode ser, porque o Direito Ambiental exige essa visão holística, ainda pouco presente no pensamento jurídico-político. Com isso, “todos os fatores que compõem o meio ambiente, sejam bióticos (vivos, como fauna e flora) ou abióticos (não vivos, como água, ar atmosférico, minerais) devem ser protegidos, pois interagem entre si garantindo o equilíbrio dos ecosssitemas”11. Entretanto, planos tão ambiciosos nunca vêm desconectados dos ônus, e aqui não é diferente. Um estado de direito ambiental impõe deveres que lhes são inerentes, podendo eles serem distinguidos em três níveis12 – do máximo para o mínimo: “a) O dever de promover ativamente a melhoria do estado do ambiente, desenvolvendo ações de aperfeiçoamento ambiental e investindo na reabilitação de habitats e ecossistemas. São exemplos deste tipo de medidas, a replantação de florestas, a construção de recifes artificiais [...]; b) O dever de evitar a degradação progressiva e gradual dos ecossistemas, habitats e recursos naturais [...] (mantendo apenas os níveis mínimos e inevitáveis de poluição) [...]; c) O dever de prevenir e precaver a ocorrência de acidentes ambientais graves com consequências irreversíveis e importantes (catástrofes ou calamidades), resultantes de riscos ambientais”. Para análise do Estado brasileiro, em seu aspecto estritamente normativo13, frente aos desafios que ele próprio (não sem uma generosa dose de pressão internacional) se propôs a superar, faz-se necessário, então, perpassar, ainda que brevemente, as principais normas brasileiras reguladoras de questões ambientais. Além da Constituição propriamente dita, as principais legislações (infra11) ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manutenção do equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. Derecho y Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013. p. 3. 12) ARAGÃO, Alexandra. A prevençãode riscos em Estados de Direito Ambiental. In: MENDES, José Manuel; ARAÚJO, Pedro (org.). Os Lugares (Im)possíveis da Cidadania. Coimbra: Almedina, 2012. p. 159-193, p. 160. 13) Está-se ciente que a realidade muito frequentemente se mostra de maneira completamente distinta do que se pretende no plano teórico das leis, entretanto, a análise aqui realizada parte justamente desse momento inicial, de como se pretende que sejam encaminhadas as questões ambientais no Brasil. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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constitucionais) a serem mencionadas são a já referida Política Nacional do Meio Ambiente (Lei nº 6.938/81), a Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/98) e a Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85). Obviamente, cada uma delas trouxe seus avanços para o ordenamento jurídico brasileiro, que, até não muito tempo, contava com nenhuma regulação nessa área. A Política Nacional do Meio Ambiente, por exemplo, foi o primeiro passo brasileiro rumo à regulamentação da proteção ambiental, apesar de todas as dificuldades anteriormente apresentadas; já a Lei dos Crimes Ambientais, inova ao trazer os comportamentos indesejados e cominar sanções aos infratores; e a Lei da ACP, por sua vez, contribui mais no aspecto processual, ao possibilitar o ajuizamento de demandas coletivas. Entretanto, como se vê, trata-se de iniciativas esparsas, que não contribuem efetivamente para o tratamento holístico necessário à adequada proteção ambiental. Para uma melhor compreensão, abordar-se-á o exemplo do Código Florestal (Lei nº 4.477/65), dada sua especificidade e importância. O tratamento jurídico destinado às florestas é de especial relevo, dado o atual grau avançado de desmatamento. Antes de prosseguir, cabe destacar alguns dados (Portal Brasil, 2012): “Dos 64 milhões de km² de florestas existentes no planeta, restam menos de 15,5 milhões, ou cerca de 24%. Isso quer dizer que 76% das florestas primárias já desapareceram. […]; Dos 100% de suas florestas originais, a África mantém hoje 7,8%, a Ásia 5,6%, a América Central 9,7% e a Europa Ocidental – o pior caso do mundo – apenas 0,3%. O continente que mais mantém suas florestas originais é a América do Sul, com 54,8%. [...]; A Mata Atlântica foi a principal vítima do desmatamento florestal no País e hoje tem apenas cerca de 7% do que seria seu território original. Ela é reconhecida como o bioma brasileiro mais descaracterizado. Já o cerrado brasileiro perdeu 48,2% da vegetação original. Hoje são desmatados cerca de 20 mil km² por ano, principalmente no oeste da Bahia – na divisa com Goiás e Tocantins – e no norte de Mato Grosso. As áreas coincidem com as regiões produtoras de grãos, de carvão e pecuária. A floresta amazônica brasileira permaneceu praticamente intacta até os anos 1970, quando foi inaugurada a rodovia Transamazônica. A partir daí, passou a ser desmatada para criação de gado, plantação de soja e exploração da madeira.” Vê-se, a partir da gravidade da situação do desmatamento, que a proteção do remanescente de florestas constitui dever mínimo de um Estado de Direito Ambiental. Porém, os recentes debates acerca do Novo Código Florestal brasileiro demonstraram que o Estado brasileiro tem priorizado Obra dedicada ao Instituto Terra

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outras questões (sobretudo de foro político e econômico) quando o assunto é proteção ambiental. Afirma-se tão grave fato tendo-se em vista os retrocessos flagrantemente aprovados no substitutivo do Senado e nos motivos que levaram a essas decisões. Veja-se, inicialmente, como teria ficado o Novo Código Florestal – em verdade, uma breve exposição sobre alguns de seus aspectos – caso a presidente Dilma Roussef não o tivesse vetado14. Um dos pontos mais graves é talvez a diminuição da previsão de tamanho das áreas de preservação permanente de beiras de curso d’água (APPs ripárias): “O Substitutivo prevê uma nova classe de áreas de preservação permanente ripária com 15 m de largura em cada margem em rios de até 5 m de largura. A versão atual do Código Florestal prevê APP de 30 m de largura em cada margem. Analisando apenas a área total de APP ripária afetada por esta medida, sem estimar os prejuízos ecológicos e hidrológicos20, calculamos, para o estado de São Paulo, uma redução de 20% na área total de APP ripária15.” A isso, acresce-se o fato de que seriam excluídas dessas, a partir de uma emenda proposta posteriormente no Congresso, as margens de rios intermitentes. Outro ponto de extrema gravidade seria a isenção de reserva legal para as propriedades rurais com tamanhos inferiores a 4 módulos fiscais. Além da patente abertura de espaço às fraudes, essa medida levaria ao desmatamento de algumas áreas remanescentes, bem como à não recomposição de áreas já afetadas, isso porque devido a duas questões: “A primeira diz respeito à efetiva capacidade do Estado em identificar e fiscalizar as áreas remanescente de vegetação nos imóveis isentos de recomposição da RL. [...] Na prática, uma expressiva quantidade de vegetação natural ficará sem proteção temporária, e poderá ser desmatada sem medo de complicações até o dia em que algum mecanismo de fiscalização (já previsto pelo Substitutivo) consiga determinar sua existência e localização, possibilitando o monitoramento. O total de VN envolvido nesta incerteza temporária e dependente da agilidade e eficácia dos órgãos ambientais é de aproximadamente 90 Mha. [...] A segunda questão diz respeito à extensão da medida, ou seja, se é razoável ou não fixar em quatro MF a área das propriedades rurais que passariam a ser 14) Importante destacar que, até meados de 2014, o projeto prossegue no mesmo impasse, sem qualquer mudança aos vetos ou a medida provisória. 15) SPAROVEK, Gerd et al . A revisão do Código Florestal brasileiro. Novos estudos. CEBRAP, São Paulo, n. 89, Mar. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 Feb. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000100007 Direitos Humanos e Meio Ambiente

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isentas de recomposição da RL. Uma isenção de 0,25 MF da exigência total de RL já atingiria 50% do número de imóveis e uma área de aproximadamente 5% da atual RL exigida. Com uma isenção de um MF teríamos 75% de imóveis anistiados, algo em torno de 10% da área da atual de RL exigida.”16 Inúmeros outros exemplos poderiam ser trazidos, mas os já tratados são suficientes para demonstrar o retrocesso que significariam grande parte das mudanças trazidas na nova redação do Código Florestal, aprovada pelo Congresso brasileiro. Prosseguindo, então, para os motivos que levaram à aprovação dessas alterações, não é preciso muito esforço argumentativo para se concluir que foram definidores os interesses econômicos dos produtores rurais, pressionando tanto das bancadas presentes no Congresso quanto a partir da sociedade civil organizada, e também os interesses políticos em agradar essa categoria e, assim, evitar atritos. Acerca dessas influências, que têm se mostrado quase que inevitáveis no mundo atual, Garcia17 bem nos recorda das aproximações da economia, da política e do próprio direito com a proteção do ambiente. Começando com a economia, vale destacar que “A ciência ecológica mostrou que as decisões humanas, particularmente as económicas, não podem ser tomadas ao acaso, pelas consequências a que ambientalmente dão lugar. [...] Durante muito tempo, os agentes económicos usavam o ambiente sem constrangimentos e sem preocupação em pagar o que quer que seja por esse uso. O reconhecimento científico de que o uso dos bens ambientais acarreta um custo ambiental, reflectido na vida em sociedade e, em última análise, na permanência da vida na Terra, conduziu a incorporar o referido custo no conceito de eficiência econômica18.” Em verdade, o que se percebe é que o Brasil ainda está longe de ver a incorporação eficiente, pelas empresas, do custo ambiental na eficiência econômica. Entretanto, a realidade é bem outra quando há obrigações legais – com respectivas punições financeiras –, de onde advém toda a influência que esse setor 16) SPAROVEK, Gerd et al . A revisão do Código Florestal brasileiro. Novos estudos. CEBRAP, São Paulo, n. 89, Mar. 2011. Disponível em: . Acesso em: 16 Feb. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002011000100007 17) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007. 18) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007. p. 145-146.

Obra dedicada ao Instituto Terra

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procura exercer em legislações ambientais de maior relevo. Depois, vêm as questões políticas. Garcia19 mantém seu foco, sobretudo, no esteio científico que pode advir dos cientistas do meio ambiente, quando se viu que no Brasil a política tem usado seu poder, principalmente por meio do direito, para intervir em questões científico-ambientais, a depender dos interesses que estiverem em jogo. Finalizando este breve intercurso nas três vertentes, deve-se falar no direito propriamente dito, questão essa que acabou por permear todo o texto do presente artigo, o qual é centrado nos aspectos jurídicos da temática. Ainda assim, vale lembrar que as pressões à regulação estatal, em virtude de todo o contexto histórico da evolução da proteção do meio ambiente, vêm aumentando muito. Assim, “a generalização desse desconforto, que contém no âmago um «sentimento de injustiça», determinou o alerta para propostas de intervenção estadual, destinadas a reequilibrar o que é compreendido como ruptura do sistema de justiça, uma ruptura de relacionamento entre as gerações presentes e as futuras20.hoje” No caso em tela, o que se percebe é que o vazio permanente que se estabeleceu entre política e direito acaba por criar um também permanente embate entre eles na tentativa de preenchimento desse espaço, sendo que muitas vezes a economia também aparece tentando ocupá-lo. Portanto, demonstrou-se que graves retrocessos na proteção ambiental juridicamente prevista podem ser produzidos por fatores essencialmente econômicos e políticos. Assim, sobrevém a forte relação com a teoria do estado de exceção permanente de Agamben. Nas discussões trazidas por esse autor, conforme sintetizado, tem-se que o estado de exceção seria o espaço vazio entre política e direito, mas que precisa ser preenchido para o pleno funcionamento e ordem do Estado. No caso brasileiro, vê-se a abertura de amplas possibilidades a influências dessas mesmas áreas bem como de outras, tal qual a econômica, nas decisões sobre questões ambientais. E é daí que se extrai a constatação de que esse espaço vazio não está preenchido no Estado brasileiro que, por conseguinte, está vivendo uma situação de exceção permanente na regulação ambiental. Logo, de acordo com o defendido por Agamben, o direito está demonstrando sua não relação com a vida e a vida a sua não relação com o direito, le19) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007. p. 253-257 20) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O Lugar do Direito na Proteção do Ambiente. Coimbra: Almedina, 2007. p. 369. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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vando a abertura de espaço para a ação humana denominada política que, por sua vez, vem sofrendo um eclipse duradouro não só pelo próprio direito, mas também por fatores extrínsecos, como a economia. Consequentemente, o Estado brasileiro vem permitindo uma exceção permanente que é destrutiva do ambiente21.

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CONCLUSÃO

A partir da descrição do contexto brasileiro de construção das normas jurídicas, com ênfase nos recentes debates em torno da aprovação da proposta de Novo Código Florestal, utilizou-se da base teórica fornecida por Agamben para analisar a atual situação do estado brasileiro. Assim, foi possível verificar o estado de exceção permanente que se formou, tendo em vista o não preenchimento do espaço vazio entre política e direito. Via de consequência percebeu-se a abertura às influências inconstantes em um embate permanente entre essas duas esferas do poder, o que, por sua vez, abre possibilidades de intervenções outras, como da economia. No caso sob análise, do direito ambiental brasileiro, a exceção permanente acabou se mostrando destrutiva do ambiente, na medida em que a porosidade às distintas influências colocou interesses particulares, sobretudo de cunho econômico, à frente dos interesses da melhor proteção do ambiente (interesses da coletividade). Acerca do Novo Código Florestal, vê-se, por fim, mais uma ingerência da política, por meio do veto da presidente Dilma Roussef, mas que, dado todo o exposto, pode ter significado uma tentativa – embora não muito bem sucedida – de reequilíbrio da presença da política nesse espaço vazio. Portanto, o presente estudo buscou trazer nova perspectiva à análise da produção normativa brasileira, nomeadamente na área ambiental, o que, espera-se, pode servir como alerta para a gestão que tem se realizado na prática, em contraposição com a gestão holística e com vistas no futuro que deveria ocorrer.

21) Cabe fazer uma breve observação, já que foi também uma atitude eminentemente política (o veto da Presidente), que, embora não tenha solucionado os graves problemas do projeto, permitiu a retirada de alguns deles e a inserção de pequenos avanços no texto final. Obra dedicada ao Instituto Terra

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3 O Binômio Direito-Dever Fundamental Ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade Ivy de Souza Abreu1 Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 O Direito ao Meio Ambiente

Ecologicamente Equilibrado e o Dever de Proteção do Meio

Ambiente. 2 Os Direitos Humanos e o Princípio da Solidariedade.

3 Uma Nova Concepção da Proteção do Ambiente. Conclusão

1) Doutoranda em Direitos e Garantias Fundamentais pela FDV; Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela FD; Membro do BIOGEPE – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Políticas Públicas, Direito a Saúde e Bioética da FDV; Bolsista da FAPES – Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado do Espírito Santo; MBA em Gestão Ambiental; Pós Graduada em Direito Público; Bacharel em Direito; Licenciada em Ciências Biológicas; Advogada; Bióloga; Professora universitária. E-mail: [email protected]. Endereço: Avenida Rio de Janeiro, n. 35, Bairro Belo Horizonte, Marataízes-ES.

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Introdução

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A Constituição brasileira de 1988 trouxe em seu art. 225, caput, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e o dever fundamental de proteção do ambiente, tanto para o Estado quanto para os particulares. Poder Público e sociedade deverão se engajar na tutela ambiental para preservação dos recursos naturais para as gerações atuais e vindouras. O fundamento para a existência dos deveres fundamentais é a solidariedade. Ao trata-se do dever de proteção do meio ambiente, por ser uma questão de direito difuso, fica evidente que os benefícios da tutela ambiental atingem toda a sociedade, não apenas em seu aspecto sincrônico (gerações presentes), mas também anacrônico (gerações futuras), extrapolando, inclusive, os limites temporais e físicos. Entretanto, na atual conjuntura de crise ambiental e destruição da natureza, a solidariedade do ser humano em relação à sua própria espécie já não é suficiente para conter e solucionar os problemas ambientais. O paradigma humano da solidariedade intraespécie necessita transcender para uma nova concepção da proteção e da solidariedade ambiental. Assim, com base no holismo ambiental, que defende a inserção do ser humano no ambiente, sem grau hierárquico em relação aos demais seres vivos, apenas como espécie animal que é, como o dever fundamental de proteção do meio ambiente pode se fundamentar na solidariedade interespécies? Eis a problemática que será trabalhada. O artigo trabalhará com a hipótese de que a solidariedade é o princípio que embasa os deveres fundamentais de modo geral. Especificamente, em relação à proteção ambiental e sua análise dentro da escola de pensamento holística, a solidariedade em sua vertente usual – intra-espécie – é insuficiente, transcendendo para uma visão ambientalmente altruísta, a solidariedade interespécies.

1) O Direito ao Meio Ambiente Ecologicamente

Equilibrado e o Dever de Proteção do Meio Ambiente

No contexto do atual Estado Democrático de Direito a principal temática de discussão, seja acadêmica, doutrinária ou jurisprudencial, gira em torno dos direitos, em especial, dos direitos fundamentais. A questão dos deveres fundamentais fica relegada a último plano de discussão. Entretanto, direitos e deveres são as duas faces da mesma moeda, coexistindo simbioticamente: não há Direitos Humanos e Meio Ambiente

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direito sem dever e tampouco dever sem direito. A qualidade do meio ambiente é conditio sine qua non para o saudável desenvolvimento da vida em todas as suas formas. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é, indubitavelmente, imprescindível à realização da vida humana digna, por isso, o direito a este ambiente salubre e harmônico é um direito humano fundamental. O autor português José Casalta Nabais informa que “[...] tanto os direitos como os deveres fundamentais integram o estatuto constitucional do indivíduo, ou melhor [,] da pessoa”2. Por mais liberal que seja um Estado, a partir do momento que se constitui como tal, com a convergência das vontades dos indivíduos neste sentido (o chamado contrato social), parte da liberdade dos cidadãos é perdida em prol da construção de um ente coletivo, o Estado. Os cidadãos adquirem responsabilidades perante toda a coletividade, dentre as quais, se destacam as obrigações constitucionalmente previstas: os deveres fundamentais. Direitos e deveres se tornam parte da vida dos cidadãos nas democracias constitucionais. O dever fundamental de proteção do meio ambiente está expresso no art. 225, caput, da Constituição de 1988, sendo tanto uma responsabilidade do Estado quanto da sociedade em geral. Tal dever se estabelece não apenas ao poder público, mas no âmbito privado, para os particulares. O grupo de pesquisa da Faculdade de Direito de Vitória-ES (FDV ) “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais”, que estuda os deveres fundamentais no âmbito do particular, construiu dialógica e dialeticamente um conceito, que merece destaque: “Dever fundamental é uma categoria jurídico-constitucional, fundada na solidariedade, que impõe condutas proporcionais àqueles submetidos a uma determinada ordem democrática, passíveis ou não de sanção, com a finalidade de promoção de direitos fundamentais3. (2013)” Quanto ao fundamento dos deveres fundamentais, Nabais esclarece que existem os fundamentos jurídico e lógico. Juridicamente, o alicerce dos deveres fundamentais é a Constituição. Sem previsão constitucional, não há dever 2) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 164. 3) Conceito cunhado coletivamente pelos membros do Grupo de Pesquisa “Estado, Democracia Constitucional e Direitos Fundamentais”, coordenado pelos professores Adriano Sant’Ana Pedra e Daury Cesar Fabriz, do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direitos e Garantias Fundamentais da Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Obra dedicada ao Instituto Terra

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fundamental, e sim, mero dever legal4. Em relação ao fundamento lógico, os deveres fundamentais expressam a soberania estatal alicerçada na dignidade da pessoa humana. “[...] los deberes fundamentales son, em ocasiones, consecuencia de la convención y del ejercicio del poder soberano, titular de la producción normativa”5 6. É imanente à natureza soberana do Estado a existência de obrigações próprias, dele perante a sociedade e, principalmente, as raramente lembradas, obrigações de seus cidadãos. O Estado é detentor de inúmeros compromissos frente aos seus cidadãos e também os cidadãos têm deveres para com o Estado e para com os demais cidadãos e a sociedade. Julio Faro propõe um conceito de deveres fundamentais: “deveres são aquilo que cada indivíduo tem ante o Estado e a sociedade de contribuir para a formação de uma base material que satisfaça as necessidades básicas das instituições públicas (manutenção do maquinário estatal) e efetive os bens de primordial importância para que haja o correto exercício dos direitos fundamentais de todas as pessoas humanas7”. Os deveres jurídicos alçam o status constitucional de deveres fundamentais quando são imprescindíveis a convivência da coletividade, tratando de temáticas relevantes para a organização do Estado e efetivo funcionamento da máquina pública e para o exercício dos direitos fundamentais, em especial, para a garantia da dignidade humana. Como os deveres fundamentais se correlacionam com matérias de alta relevância social, os proveitos trazidos pelo cumprimento de tais deveres extrapolam os limites individuais do titular do direito correspondente ao dever. Toda a coletividade é beneficiada direta ou indiretamente com o regular exercício dos deveres fundamentais fortalecendo, destarte, o Estado Democrático de Direito.

“El ejercicio de um dever fundamental no reporta beneficios exclusivamente al titular del derecho subjetivo correlativo, cuando existe, sino que alcanza una dimensión de utilidad general, beneficiando al conjunto de los ciudadanos y a su representación jurídica, el Estado8 9”. Ao trata-se do dever de proteção do meio ambiente, por ser uma questão de direito difuso, fica evidente que os benefícios atingem toda a sociedade, não apenas em seu aspecto sincrônico (gerações presentes), mas também anacrônico (gerações futuras), extrapolando, inclusive, os limites temporais e físicos, haja vista que a tutela ambiental visa a garantia da qualidade de vida de seres humanos que sequer se encontram no planeta. As consequências positivas do dever de preservação do ambiente geram efeitos intergeracionais. Eis a dicção do art. 225 caput da Lei Maior brasileira de 1988, in verbis: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações10”. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado e, consequentemente, o dever de protegê-lo se traduzem como formas da expressão e desenvolvimento da dignidade humana, um dos fundamentos basilares e inconcussos do Estado Democrático de Direito brasileiro. Reiteram Abreu e Sampaio que o “direito à higidez ambiental [...] é indispensável à qualidade de vida das presentes e futuras gerações, consubstanciando-se no princípio da dignidade da pessoa humana”11. E “a pessoa humana e sua dignidade constituem fundamento e fim da sociedade e do Estado”12.

4) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 170-171.

9) “O exercício de um dever fundamental não traz benefícios exclusivamente ao titular do direito subjetivo correlato, quando existe, mas alcança uma dimensão de utilidade geral, beneficiando ao conjunto de cidadãos e a sua representação jurídica, o Estado”. Tradução nossa.

5) PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. Alicante, n. 04, p. 329-341, 1987. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013, p. 336. 6) “[...] os deveres fundamentais são, ás vezes, consequência da convenção e do exercício do poder soberano, titular da produção normativa”. Tradução nossa. 7) FARO, Julio. Deveres como condição para a concretização de direitos. Revista de Direito Constitucional e Internacional. São Paulo, ano 20, n. 79, p. 167-209, Abr. /Jun. 2012, p. 175-176. Direitos Humanos e Meio Ambiente

8) PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa. Alicante, n. 04, p. 329-341, 1987. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013, p. 336.

10) BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013. 11) ABREU, Ivy de Souza; SAMPAIO, Flávia Duarte Ferraz. A Conservação Ambiental sob a Ótica dos Acadêmicos de Ciências Biológicas e Direito. Cadernos Camilliani. Cachoeiro de Itapemirim, v. 8 - n.1, p. 71-81, 2007, p. 78. 12) FABRIZ, Daury Cesar. Bioética e direitos fundamentais: a bioconstituição como paradigma do biodireito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 280. Obra dedicada ao Instituto Terra

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O dever de conservação do meio ambiente, bem sobremaneira valioso, é indispensável para a manutenção do equilíbrio no planeta e, portanto, é uma questão vital para a espécie humana. O ser humano, como ser biótico que é, integra o meio e depende da natureza e da salubridade de seus recursos tanto quanto os demais seres vivos, por isso o dever de proteger o ambiente faz parte de um dever maior de solidariedade para com a própria espécie humana e para com as demais espécies.

2) Os Direitos Humanos e o Princípio da Solidariedade A solidariedade está prevista expressamente no texto constitucional de 1988, no artigo 3º, como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil. Além da construção de uma sociedade solidária, livre e justa, a promoção do bem de todos também está no rol de escopos do Estado brasileiro. Eis a dicção do artigo 3º: 70

“Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

M I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; M II - garantir o desenvolvimento nacional; M I II - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

M I V - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação13”.

Gramaticalmente, o conceito de solidariedade é trazido pelo dicionário como “1 Qualidade de solidário. 2 Estado ou condição de duas ou mais pessoas que repartem entre si igualmente as responsabilidades de uma ação, empresa ou de um negócio, respondendo todas por uma e cada uma por todas. 3 Mutualidade de interesses e deveres. 4 Laço ou ligação mútua entre duas ou muitas coisas dependentes umas das outras. 5 Dir Compromisso pelo qual as pessoas se obrigam umas pelas outras e cada uma delas por todas [...]14”. 13) BRASIL. Constituição (1988). Constituição (da) República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Disponível em: . Acesso em: 11 ago. 2013. 14) Solidariedade. In: Dicionário Michaelis online. 2009. Disponível em: . Acesso em: 01 jul. 2013. 15) BRASIL. Supremo Tribunal Federal – Pleno. MS nº 22164/SP. Relator: Min. Celso de Mello. Brasília, 30 de outubro de 1995. Disponível em: . Acesso em: 02 ago. 2013. 16) MOTTA FILHO, Sylvio Clemente da. SANTOS, William Douglas Resinente dos. Direito Constitucional: teoria, jurisprudência e 1000 questões. 15. ed. rev., ampl. e atual. até Emenda Constitucional nº 44/2004. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, P. 70. Obra dedicada ao Instituto Terra

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da humanidade, o direito de comunicação, o direito ao desenvolvimento, direito ao progresso, direito à autodeterminação dos povos. Chacon e Cruz prelecionam que os direitos de terceira dimensão tratam-se de direitos coletivos, por seus benefícios atingirem não apenas um indivíduo em particular, mas toda a coletividade17. Acerca desses direitos fundamentais, ensina Bonavides: “Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos da terceira geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de um determinado Estado. Têm primeiro por destinatário o gênero humano mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos de existencialidade correta. [...] Emergiram eles da reflexão sobre temas referentes ao desenvolvimento à paz, ao meio ambiente, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade18”. A Constituição espanhola de 1978 trabalha com a ideia de dever de preservação do meio ambiente pautado no dever de solidariedade coletiva, como se verifica no artigo 45: 72

“Artículo 45.

M 1. Todos tienen el derecho a disfrutar de un medio ambiente adecuado para el desarrollo de la persona, así como el deber de conservarlo.

M 2. Los poderes públicos velarán por la utilización racional de

todos los recursos naturales, con el fin de proteger y mejorar

la calidad de la vida y defender y restaurar el medio ambiente, apoyándose en la indispensable solidaridad colectiva.

M 3. Para quienes violen lo dispuesto en el apartado anterior, en

Ivy de Souza Abreu

A solidariedade é fundamento dos deveres fundamentais. A responsabilidade mútua entre os cidadãos e o Estado para com o bem-estar, a qualidade de vida e a dignidade dos outros cidadãos acentua a fraternidade e a alteridade nos tempos hodiernos. O dever de proteção do meio ambiente também tem como fundamento a solidariedade. Acerca dos direitos de solidariedade, em especial os direitos ecológicos, Nabais esclarece que são: “[...] direitos que, implicando directamente com o comportamento de todos os indivíduos duma colectividade e sendo exercidos num quadro de reciprocidade e de solidariedade, têm um conteúdo necessariamente definido em função do interesse comum [...]21 22”. O que ainda falta é a aplicação da solidariedade às relações dos seres humanos para com os seres não humanos e com a natureza. A proteção do meio ambiente depende da construção de uma nova postura da humanidade frente à sua participação e integração do ao meio natural. Daí exsurge a relevância dos estudos e da efetivação da escola holística ambiental.

3) Uma Nova Concepção da Proteção do Ambiente O holismo ambiental prega a integração e a necessária interação entre todos os elementos constituintes dos ecossistemas naturais como sistemas biológicos e tendentes ao equilíbrio. Segundo a concepção holística, “todas as entidades físicas e biológicas formam um único sistema interagente unificado e que qualquer sistema completo é maior do que a soma das partes componentes”23. A Organização das Nações Unidas, por meio da resolução nº 37/7, de 28

los términos que la Ley fije se establecerán sanciones penales o, en su caso, administrativas, así como la obligación de reparar el daño causado19 20”.

17) CHACON, Mario Peña. CRUZ, Ingread Fournier. Derechos Humanos y Medio Ambiente. Revista de Direito Ambiental. São Paulo, ano 10, n. 39, p. 189-211, Jul. /Set. 2005, P. 192.

2. Os poderes públicos zelarão pela utilização racional de todos os recursos naturais, com o fim de proteger e melhorar a qualidade de vida e defender e restaurar o meio ambiente, apoiando-se na indispensável solidariedade coletiva. 3. Para aqueles que violem o disposto número anterior, nos termos da lei que estabelece sanções penais ou administrativas, bem como a obrigação de reparar o dano causado. Tradução nossa.

18) BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 15. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 569.

21) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 320-321.

19) ESPANHA. Constitución Española de 1978. Disponível em: < http://noticias.juridicas. com/base_datos/Admin/constitucion.t1. html#a45>. Acesso em: 10 ago. 2013.

22) “[...] direitos que, implicando diretamente com o comportamento de todos os indivíduos de uma coletividade e sendo exercidos num quadro de reciprocidade e de solidariedade, têm um conteúdo necessariamente definido em função do interesse comum [...]”. Tradução nossa.

20) Artigo 45. 1. Todos tem o direito de desfrutar de um meio ambiente adequado ao desenvolvimento da pessoa, bem como o dever de preserva-lo. Direitos Humanos e Meio Ambiente

23) Holismo. In: WATANABE, Shigueo (coord.). Glossário de Ecologia. 2. ed. rev. ampl. São Paulo: ACIESP, 1997, p. 139. Obra dedicada ao Instituto Terra

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de outubro de 1982, proclamada pela Assembléia Geral enuncia: “Toda forma de vida é única e merece ser respeitada, qualquer que seja a sua utilidade para o homem, e, com a finalidade de reconhecer aos outros organismos vivos este direito, o homem deve se guiar por um código moral de ação24 25”. Em 1992, com o advento da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (ECO-92), a concepção holística ambiental se fortaleceu com a ideia de desenvolvimento sustentável. A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em sua apresentação, estabelece a necessidade de que os Estados “protejam a integridade do sistema global de meio ambiente e desenvolvimento, reconhecendo a natureza integral e interdependente da Terra, nosso lar”26. Para Édis Milaré, o holismo se refere à percepção ou conhecimento que integra partes ou componentes em um todo abrangente e compreensivo, a partir da constatação de que há uma integração entre eles e não apenas uma mera justaposição dos componentes de um todo27. O meio ambiente é um todo constituído por diversos elementos interdependentes e co-relacionados, que interagem mutuamente entre si, estabelecendo seu próprio equilíbrio. O ambiente deve ser globalmente considerado, em todos os seus aspectos e componentes, vez que dessa relação inextricável surge a harmonia ecológica. Na fase holística de proteção, “o ambiente passa a ser protegido de maneira integral, vale dizer, como sistema ecológico integrado (resguardandose as partes a partir do todo) e com autonomia valorativa (é, em si mesmo, bem jurídico)”28. O holismo ambiental consagra a visão sistêmica e integrativa do meio ambiente, com a inserção dos seres humanos nas questões am24) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Resolução nº 37/7 da Assembleia Geral. 1982. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2013. 25) Tradução nossa. “Every form of life is unique, warranting respect regardless of its worth to man, and, to accord other organisms such recognition, man must be guided by a moral code of action”. 26) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS (ONU). Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Rio de Janeiro, 1992. Disponível em: . Acesso em: 01 maio 2013.

Ivy de Souza Abreu

bientais e com o reconhecimento da importância de todos os fatores do ambiente para o equilíbrio ambiental. Não apenas os seres vivos são protegidos, mas também os recursos ambientais (meio abiótico), dos quais derivam as condições para o efetivo desenvolvimento da vida. A bem ambiental é considerado autônomo e não mais valorado segundo as necessidades humanas. Nessa concepção ampla de meio ambiente existe a unicidade entre o meio ambiente natural e o meio ambiente artificial (que foi construído pelo homem), além da inclusão do patrimônio cultural e, modernamente, do meio ambiente do trabalho, formando-se essa visão holística do conceito. Abreu e Sampaio afirmam que tutelar o bem ambiental é uma forma de buscar a qualidade do meio ambiente e de garantir que todos os seres vivos permaneçam vivos, inclusive o ser humano29, afinal, o ser humano é parte integrante da natureza e do meio ambiente, tanto quanto indivíduo (espécie) tanto quanto coletivamente (sociedade). A temática ambiental permea “todos os segmentos da comunidade global, uma vez que a conservação do bem ambiental é questão de sobrevivência para toda a humanidade”30. No holismo ambiental não apenas o meio natural e seus elementos são tutelados. A vida humana e suas expressões também se tornam objeto de proteção, mas não pelos motivos apregoados pelo antropocentrismo e sim, pela espécie humana (e os fatores que se relacionam com sua existência e desenvolvimento) ser parte do meio ambiente e indispensável ao equilíbrio ambiental. Sobre a solidariedade, Nabais entende que em sentido objetivo, “alude à relação de pertença [...], de partilha e de corresponsabilidade que liga cada um dos indivíduos [...] aos demais membros da comunidade”. Em sentido subjetivo, “a solidariedade exprime o sentimento, a consciência dessa mesma pertença à comunidade”31. Relembra Leonardo Boff que “a ética da sociedade dominante hoje é utilitarista e antropocêntrica. Considera o conjunto dos seres a serviço do ser hu29) ABREU, Ivy de Souza; SAMPAIO, Flávia Duarte Ferraz. A Conservação Ambiental sob a Ótica dos Acadêmicos de Ciências Biológicas e Direito. Cadernos Camilliani. Cachoeiro de Itapemirim, v. 8 - n.1, p. 71-81, 2007, p. 76.

27) MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, prática, jurisprudência e glossário. 4.ed. rev. ampl. atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 1082.

30) ABREU, Ivy de Souza. Holismo e proteção do meio ambiente com vistas a manutenção do equilíbrio ecológico: uma análise a partir do conceito de justiça em Aristóteles. Derecho y Cambio Social. Lima - Peru, ano X, n. 31, p.1-11, 01 jan. 2013. Disponível em: . Acesso em: 28 jan. 2013. P. 8.

28) BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcellos. Introdução ao Direito Ambiental Brasileiro. Revista de Direito Ambiental, n.14. São Paulo: RT, 1999, p. 78.

31) NABAIS, José Casalta. Por uma liberdade com responsabilidade: estudos sobre direitos e deveres fundamentais. Coimbra: Coimbra Editora, 2007, p. 134.

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O Binômio Direito-Dever Fundamental Ao Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado E seu Alicerce na Solidariedade

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mano que pode dispor deles a seu bel-prazer, atendendo a seus desejos e preferências”32. Esta postura diante da natureza não corrobora com a necessária proteção integral do ambiente. Com o aprimoramento da concepção da tutela ambiental e o desenvolvimento da visão holística e da ética ambiental, não apenas os componentes ambientais que trazem benefícios direitos aos seres humanos são protegidos, todos os fatores bióticos e abióticos e os processos que ocorrem naturalmente no ambiente e dos quais resulta o equilíbrio ecológico, são tutelados. Peter Singer aduz que “o bem-estar e o desenvolvimento da vida na Terra, humana e não humana, têm valor em si (sinônimos: valor intrínseco, valor inerente). Estes valores são independentes da utilidade do mundo não humano para finalidades humanas”33. O ser humano, holisticamente considerado, como ser biótico que é, integra o meio ambiente e depende da natureza e da salubridade de seus recursos tanto quanto os demais seres vivos, por isso o dever de proteger o ambiente faz parte de um dever maior de solidariedade, com a própria espécie e com as demais espécies. Quando a humanidade se sentir parte da comunidade biótica e do meio natural, a proteção ambiental com base na solidariedade entre os seres humanos e os seres não humanos será apenas uma consequência da modificação de postura da humanidade. A solidariedade que transcende ao vínculo antropocêntrico e fundamenta o dever de cuidado e promoção de ambiente ainda é utópica. Entretanto, com base no holismo ambiental e na integração dos seres humanos no meio natural é possível e desejável.

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O meio ambiente ecologicamente equilibrado é conditio sine qua non para o desenvolvimento da vida humana com qualidade. A interação harmônica entre o homem e o meio natural implica a imersão da figura humana no ambiente, o que, consequentemente, gera a mudança de postura, de um posicionamento egoísta, antropocêntrico e interesseiro para uma postura ética e consciente, de respeito ao ambiente. O ser humano está na natureza, faz parte do meio ambiente onde vive e, ao agredi-lo, agride a si próprio. Ao protegê-lo, a contrario sensu, garante o futuro de seus próprios descendentes e realiza-se enquanto ser biótico. Os problemas ambientais se agravam com o passar do tempo, por isso a mudança do paradigma de proteção ambiental se faz necessária. O antropocentrismo não é mais suficiente para resolver a atual crise ambiental. Eis que surge o holismo ambiental com uma nova concepção do ambiente. Dentro da visão holística ambiental, o meio ambiente tem valor em si mesmo, independentemente dos benefícios trazidos aos seres humanos, que por sua vez, são considerados apenas uma espécie animal, como todos os outros seres vivos, sem grau hierárquico e sem superioridade. A solidariedade que fundamenta as relações humanas transcende para uma solidariedade em relação às demais espécies e à natureza. Como afirma Boff (2004, p. 22): “E por fim ético seria reconhecer o caráter de autonomia relativa dos seres; eles também têm direito de continuar a existir e a co-existir conosco e com outros seres, já que existiram antes de nós e por milhões de anos sem nós”.

4) Conclusão O estudo dos deveres é sobremaneira carente no Brasil e no mundo. Muito se preocupa em estudar os direitos fundamentais sem analisar sua outra face: os deveres fundamentais. Dentro deste panorama, o estudo do dever fundamental de proteção do meio ambiente se destaca. 32) BOFF, Leonardo. Ecologia: gritos da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004, p. 21. 33) SINGER, Peter. Ética prática. Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1993, p. 295. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj Ludmila Lais Costa Lacerda1 Universidade Federal de Minas Gerais Julio Pinheiro Faro2 Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Sumário: Introdução. 1 O Direito como Integridade de Ronald Dworkin. 2.

A Interpretação do Stf e do Stj Sobre Integridade

e Meio Ambiente. Conclusão

1) Mestranda em Direito Constitucional e Teoria do Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG); Graduada em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas); Advogada e Consultora Jurídica. Tem experiência e interesse acadêmico pelas áreas de Filosofia do Direito, Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica, Direito Público, Direito Constitucional, Teoria da Constituição e Hermenêutica Constitucional. Currículo Completo: http://lattes.cnpq.br/7654938362880630. 2) Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Diretor Secretário-Geral da Academia Brasileira de Direitos Humanos (ABDH); Pesquisador vinculado aos Programas de Pós-Graduação em Direito da FDV (Mestrado/Doutorado) e do Departamento de Direito Público (Mestrado) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Servidor Público Federal. Pesquisa nas áreas de Teoria do Direito, Filosofia do Direito, Teoria Política e Direito Constitucional. http://lattes.cnpq.br/1936096236504255.

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Direito como Integridade e Integridade do Meio Ambiente: O Dever Fundamental de Proteção do Meio Ambiente e a Proposta Interpretativa de Dworkin a Partir da Jurisprudência do Stf e do Stj

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Introdução

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O direito ao ambiente adequado foi mundialmente reconhecido pela Declaração do Meio Ambiente, em seu princípio primeiro, adotada na Conferência das Nações Unidas, em Estocolmo, em 1972, sendo assegurado ao ser humano o direito fundamental à preservação do ambiente e o direito à vida. No Brasil, diante da importância que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem (art. 225, Constituição brasileira de 1988), ele é considerado pela doutrina majoritária nacional como um direito fundamental, ainda que não esteja presente nos artigos do Título II. Tal pensamento de correlação tem respaldo diante do fato de que com um meio ambiente saudável há melhor qualidade de vida, requisito básico e indispensável para a existência humana digna (concretização do art. 1º, III, da Constituição de 1988). Assim, assegurado meio ambiente ecologicamente equilibrado, também se garante o direito individual à vida e à dignidade humana e são promovidos os demais direitos fundamentais, de modo a possibilitar o entendimento que, assegurar um meio ambiente equilibrado é, também, amparar um direito individual e social. O presente trabalho propõe uma análise da interpretação que o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm sobre a integridade do meio ambiente. A discussão é feita a partir da proposta do Direito como integridade de Ronald M. Dworkin, a qual é apresentada na segunda seção e aplicada na terceira, para encerrar o artigo com considerações finais sobre o tema. Utiliza-se, para isso, uma metodologia dialógico-argumentativa.

1) O Direito como Integridade de Ronald Dworkin A teoria da decisão e argumentação jurídica tem trabalhado com questões de justificação por meio de critérios de legitimidade (justos) e através de critérios de validade (legalistas). No Direito, a diferença entre uma prática lícita e ilícita pode estar tanto pautada sob a perspectiva científica de uma situação ecológica e sustentável, como em um futuro a ser delineado e construído de forma idealizada a partir de condições do presente. A justificativa quanto a uma decisão pode ser focada tanto no prisma da validade das normas criadas, quanto na fundamentação de uma decisão jurídica legítima.

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Atualmente, autores como Robert Alexy3 e Ronald Dworkin4 colocam os princípios morais como o fundamento de validade e da legitimidade do direito. Devido à necessidade de uma abordagem teórica constitucional e principiológica quanto aos direitos e garantias ambientais no Brasil pelos tribunais, procuraremos desenvolver, como cerne no presente artigo, os argumentos da teoria de Ronald Dworkin em paralelo com comentários de modo acessório e comparativo a outras teorias e casos concretos. Antes de tudo, é importante diferenciar as perspectivas dos autores ora mencionados, pois Dworkin não trabalha com diferenciação entre regras e princípios conforme estrutura de aplicação ou por características morfológicas. Ele trabalha com uma distinção lógico-argumentativa partindo do caso5 concreto para análise das razões trazidas pelos participantes na discussão para então compreendermos as regras e os princípios. Ademais, Dworkin traz não somente a possibilidade de regras e princípios, mas inclusive, de diretrizes políticas, assim, enquanto um princípio consagra uma exigência de um direito, uma diretriz política traz um objetivo a ser alcançado, o qual geralmente coincide com alguma questão de ordem econômica, política ou social e pode ser considerada desejável em uma comunidade. Nesse sentido, para o mencionado jusfilósofo, diretrizes políticas podem ser aplicadas em graus distintos, mas não os princípios, pois esses últimos possuem o caráter de “trunfo”, sendo aplicados

3) Alexy afirma que “a partir de um estágio mínimo de desenvolvimento, todos os sistemas jurídicos contêm necessariamente princípios. Isso basta como base para a fundamentação de uma conexão necessária entre direito e moral pelo argumento dos princípios”. Ver: ALEXY, Robert. Conceito e validade do direito. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009, p. 90. 4) O positivismo de H. L. A. Hart sustentou que o direito seria um conjunto de regras identificadas por meio de uma única regra de reconhecimento. Afirmou ainda que, esse conjunto de regras válidas esgotaria o conteúdo do direito e, não havendo regra clara que seja identificada pela regra de reconhecimento ao caso concreto, os juízes teriam poder discricionário para decidir. Defendeu igualmente que, os direitos e obrigações poderiam originar-se somente de regras jurídicas as quais seriam validadas pela regra de reconhecimento. Consequentemente, nos casos em que não haja regras jurídicas validadas pela regra de reconhecimento, não se poderia sustentar que uma das partes do litígio teria direito a alguma decisão a seu favor. Para Dworkin o conteúdo do direito não se esgotaria em um conjunto de regras, e nem poderia ser totalmente identificado (delimitado) por uma regra de reconhecimento, pois na legislação e na prática jurídica existiriam, também, “princípios” que possuiriam estrutura e funcionamento distintos das regras e que poderiam ser aplicados pelos juízes aos casos. 5) Em comparativo teórico, podemos afirmar que para Günther, o problema não é a aplicação correta de uma norma, mas da “aplicação da norma correta” (apropriada). Ver: GÜNTHER, Klaus. Teoria da argumentação no Direito e na Moral: justificação e aplicação. São Paulo: Landy Editora, 2004, p.55. Obra dedicada ao Instituto Terra

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de modo deontológico e prevalecendo também contra as diretrizes políticas6. Em suas obras, Dworkin não considera adequada uma concepção da democracia ou de princípios políticos justos a partir da mera premissa majoritária7, já que as decisões da maioria podem ser justas ou injustas (mesmo 6) FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito constitucional. 6.ed. Salvador: JusPodivm, 2014, p. 237.

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7) Nesse sentido, de uma democracia sob concepção do majoritarismo, observar Waldron e o debate do tema “democracia e constitucionalismo”. Segundo ele, o Poder Legislativo tem mais legitimidade que o Poder Judiciário, pois o procedimento legislativo parte de instituições representativas, compostas por membros eleitos diretamente pela população. Segundo Waldron, nos lugares onde a legislação não pode ser invalidada pelo Poder Judiciário, o povo (representado pela maioria legislativa) decide os assuntos de ‘forma definitiva’, na medida em que elege os candidatos que os representarão no Poder Legislativo. Ao se adotar o Judicial Review, o eleitor que vota em candidatos que tendem a representar seus ‘interesses’ não tem segurança alguma de que seu ponto de vista será considerado. Dessa forma, o Judicial Review seria politicamente ilegítimo para Waldron, pois privilegia poucos juízes que sequer foram eleitos diretamente, em detrimento dos votos da maioria e de seus representantes diretos, retirando os cidadãos comuns do processo e da solução final de assuntos sobre direitos, deixando de lado os princípios de representação e igualdade política. Para que uma decisão legislativa tenha sido tirânica em relação a determinada(s) pessoa(s), não basta que essa pessoa faça parte da minoria que decide. Além disso, é preciso que: (i) a decisão tenha realmente sido equivocada, causando implicações negativas para os direitos dos afetados e (ii) a minoria que decide coincida com a minoria afetada pela decisão. Ele ressalva que o processo legislativo só é legítimo se cada votante tiver a garantia de que os demais votantes encaram os direitos dos outros com igual respeito e consideração. Quando essa premissa (pressuposta) não é observada, o Poder Judiciário estaria reforçando a democracia ao determinar a não aplicação da lei (ilegítima ou inválida por não respeitar a participação de todos). Waldron afirma que o compromisso com os direitos dos demais é uma premissa (pressuposto) que ele assume (assim, nos casos em que ela não fosse observada teríamos um “non-core case” e o Judicial Review realmente poderia servir para combater tais anomalias). Porém, a solução judiciária será sempre excepcional e de curto prazo, apta a resolver casos específicos e imediatos. A solução de longo prazo adequada é a revisão legislativa que corrija eventual distorção da lei. Waldron ainda defende que o fato de o processo legislativo poder não ser adequado em algum momento não torna o Judicial Review necessariamente adequado, pois a ausência de premissas desqualifica o Poder Legislativo, mas não faz caírem por terra todos os argumentos contrários ao arranjo judicial (uma vez que os juízes também podem errar ou não observar a declaração de direitos e todas as premissas, ou pressupostos democráticos e participativos traçados). No campo da decisão judicial, ele acaba adotando a “natureza mista do raciocínio moral”, de acordo com a qual os juízes se envolvem em um raciocínio que torna inseparável a parte moral da parte jurídica da sua missão (alguns dirão que o raciocínio moral vai além de muitos aspectos que o raciocínio jurídico). O autor cita o método de equilíbrio reflexivo recomendado por Rawls e outros como uma forma de abordar questões morais entre certos julgamentos e princípios gerais. Certo é que, para Waldron, os juízes nunca deixam o raciocínio moral para trás em nada que fazem, nem mesmo no raciocínio mais técnico e legalista pode fazer com que eles deixem os elementos mais reconhecidamente morais de sua argumentação. Engajar-se em que tipo de raciocínio é também uma das coisas que moralidade requer (ele diz que essa pode ser a forma da denúncia de Dworkin sobre Posner). Conrado Hübner defende que a democracia em Waldron não é meramente procedimental ou formal, pois faz uma reivindicação substantiva pelo direito Direitos Humanos e Meio Ambiente

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que excepcionalmente) com as minorias sem que possam ser consideradas como menos democráticas8. Há uma defesa que Dworkin chama de “concepção constitucional da democracia”9, segundo a qual, as decisões tomadas de participação (como um ‘direito dos direitos’), ao que parece, Hübner trata a participação meramente através de via indireta (institucional) com reforço da representação através de mecanismos eleitorais. Ele afirma que em Waldron a regra da maioria não seria um ‘mero’ procedimento da democracia, uma vez que há nela um conteúdo fundamental, ou seja, a regra maioria teria assim, um valor moral. Hübner afirma que as críticas ao Judicial Review não são firmadas somente na regra da maioria (que teria um conteúdo moral fundamental relacionado ao direito de participação através de representantes), mas que tais críticas apontam a revisão judicial apenas como mais um (novo) procedimento de democratização. A partir da colocação de Hübner, talvez seja possível afirmar que, sendo a ‘regra da maioria’ passível de consideração como ‘procedimento democrático de conteúdo moral fundamental’ relacionado ao ‘direito de participação’, nada impede que o Judicial Review também seja considerado como um procedimento de democratização (em âmbito jurisdicional), também de cunho moral e fundamental ao direito de participação (seja através também de representantes na esfera judiciária ou de modo mais direito e efetivo como cidadão – por mecanismos jurídicos e processuais difusos de acesso pelas partes ao poder judiciário), porém, para correção daqueles casos que possam envolver erros no procedimento de regra da maioria (principalmente na esfera legislativa), em que não sejam observados os direitos também fundamentais, inclusive de participação das minorias. Ver: WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. Oxford: Oxford University Press, 1999; WALDRON, Jeremy. The core of the case against judicial review. The Yale Law Journal, v. 115, 2006; WALDRON, Jeremy. Do judges reason morally? In: HUSCROFT, Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2008; HÜBNER MENDES, Conrado. Controle de constitucionalidade e democracia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008. 8) DWORKIN, Ronald. Is democracy is possible here? Princeton: Princeton University Press, 2006, p. 131. 9) Para Dworkin o objetivo que define democracia tem de ser diferente: que as decisões sejam tomadas por instituições políticas cuja estrutura, composição e modo de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, a “mesma consideração e o mesmo respeito” (o que nem sempre a premissa majoritária, por si somente, pode garantir). A concepção de Dworkin também engloba o mecanismo e premissa majoritária e a complementa com ressalvas (limitações). Dworkin não opõe objeções ao emprego deste ou daquele procedimento majoritário ou não-majoritário para proteção e promoção da igualdade (igual consideração e respeito). Pode haver então uma interdependência e mútua sustentação (entre a concepção de democracia caracterizada pela regra majoritária e a concepção constitucional de democracia). Há certas condições para exercício das liberdades positivas e da democracia segundo a concepção constitucional. Dworkin divide essas condições em: condições estruturais - a comunidade política não pode ser somente nominal, tem de ter sido estabelecida no decorrer de um processo histórico que tenha produzido fronteiras territoriais suficientemente reconhecidas e estáveis. E condições de relação - determinam como um indivíduo deve ser tratado por uma comunidade política verdadeira para que possa ser um membro moral dessa comunidade. Uma comunidade política não pode fazer de nenhum indivíduo um membro moral se não possibilitar que nas decisões coletivas essa pessoa tenha participação, um interesse (na decisão) e independência em relação a ela. É preciso observação de três elementos: (i) participação - todas as pessoas devem ter a oportunidade de modificar de algum modo as Obra dedicada ao Instituto Terra

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por maioria pelos cidadãos não definem a democracia; o objetivo que define democracia é pautado por decisões coletivas tomadas por instituições políticas, nas quais as estruturas, composições e modos de operação dediquem a todos os membros da comunidade, enquanto indivíduos, com a mesma consideração e o mesmo respeito10. As pessoas participam de uma democracia quando governam a si mesmas, porém como parceiras de um empreendimento político coletivo, assim, através de uma visão constitucional, uma comunidade que ignora os interesses de uma minoria é por essa razão, antidemocrática, ainda que possua eleições majoritárias11. A teoria proposta por Ronald Dworkin ainda enfrenta o tema da divergência teórica a partir da análise do exercício da justiça pelos juízes nas decisões judiciais, ou seja, por meio da prática nos tribunais, vez que o direito “é a nos-

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decisões coletivas. / (ii) reciprocidade - o processo político de uma comunidade política verdadeira deve expressar alguma concepção de igualdade de consideração para com o interesse de todos os membros da comunidade, um indivíduo não pode ser um membro a menos que seja tratado pelos outros como tal. Uma sociedade onde a maioria despreza as necessidades e perspectivas de uma minoria, não se mostra somente injusta, mas também ilegítima. / (iii) independência moral - A independência moral deve ser mais controversa do que as duas primeiras. Os membros de uma comunidade política podem encarar uns aos outros como sócios num empreendimento conjunto, como os membros de uma orquestra ou de uma equipe de futebol, todos os quais compartilham muitas coisas, ainda que o empreendimento como um todo seja conduzido (em decisões e circunstâncias) de uma maneira com a qual nem todos concordem completamente sempre. Não há nada nessa ideia constitucional de democracia que ponha em xeque a responsabilidade do indivíduo de decidir por si mesmo que vida viver, dados os recursos e oportunidades que lhe são oferecidos antes e depois das tomadas de decisões coletivas. A comunidade política verdadeira é aquela feita de agentes morais independentes. Não se pode determinar o que os cidadãos devem pensar exatamente a respeito de política ou ética, mas deve propiciar circunstâncias que os permitam chegar a convicções em matéria de ética e política, através da reflexão própria. Ver em: DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 10) DWORKIN, Ronald. O Direito da Liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 26. 11) Ver também: DYZENHAUS, David. The Incoherence of Constitutional Positivism. In. HUSCROFT, Grant (org). Expounding the Constitution: essays in constitutional theory. Cambridge: Cambridge University Press, 2008. Dyzenhaus faz uma interessante crítica à postura de um ‘positivismo político’ e posições ‘neo-benthamistas’ como alega ser a de Waldron, também propõe a ideia sobre uma interação institucional: mais cooperativa e responsável com a decisão em si tomada e amadurecimento dos princípios democráticos em uma sociedade, e menos ‘rude’ com possíveis desdobramentos destrutivos e de usurpação em prol de interesses corporativistas, assim, as instituições podem emanar decisões pautadas em um fortalecimento mútuo da confiança e legitimidade (nas relações entre as próprias instituições e os cidadãos), principalmente em lugares onde ocorre uma progressiva transição para o modelo de democracia liberal e consolidação de interações civis pautadas no ‘igual respeito e igual consideração’. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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sa instituição social mais estruturada e reveladora” e se “compreendermos melhor a natureza de nosso argumento jurídico, saberemos melhor que tipo de pessoas somos”12. Dworkin vai além da perspectiva analítica, da divisão entre “ser” e “dever ser” e da busca por cognições descritivas ou críticas normativas do direito a partir de um observador externo com pretensão de uma teoria neutra. No Direito como integridade há um resgate de demonstrações por meio da prática nas decisões judiciais (como produtos da argumentação e interpretação das práticas sociais, da história e do tempo) que revelam impossibilidade da neutralidade de teorias semânticas sobre o direito, visto que tanto estas teorias (concepções do direito) quanto seus autores (“observadores”/participantes) estarão sempre imersos13 em um contexto histórico e portanto limitados, marcados pelo tempo e por pré-compreensões14. 12) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 15. 13) Interessante destacar segundo Lenio Streck: “... o processo de subsunção no Direito reproduz metafisicamente a divisão ser-ente, opondo o ser ao ente... o resultado disso é o predomínio do método, do dispositivo, da tecnização e da especialização, que na sua forma simplificada redundou em uma cultura jurídica estandartizada, na qual o direito não é mais pensado em seu acontecer.” Ver: STRECK, Lenio Luiz. A crise da hermenêutica e a hermenêutica da cise: a necessidade de uma Nova Crítica do Direito (NCD). Em: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição Constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 117-130. 14) Contrário ao império da racionalidade metódica destacada a partir do Aufklärung, Gadamer expõe que a racionalidade não pode ser vista como uma ferramenta mágica em prol da compreensão livre dos “pré-conceitos”, pois compreender algo já é sempre interpretar (fusão de horizontes), vez que a visão é sempre feita a partir dos pré-conceitos do interprete. Reassalta-se que, conforme Gadamer, “preconceitos / pré-conceitos” não são vistos de maneira pejorativa e tampouco como uma limitação à interpretação. A constatação que a compreensão flui mediatizada por conhecimentos prévios demonstra que a compreensão sempre se funda em pré-compreensões. Ao fixar a compreensão em métodos que desconsiderem a tradição e levem à interpretação, despreza-se também o aspecto fundamental humano, que é a sua posição histórica, passando a tratá-lo como ser a-histórico. A condição histórica de todo conhecimento e de qualquer método tido como correto são condição de possibilidade para seu próprio aprimoramento e também de reconhecimento das suas debibilidades. Assim, não é correto analisar um evento histórico ignorando-o no contexto presente e no contexto em que foi escrito. A tensão causada entre um comando de sentido criado e realizado no passado e a necessidade de constantemente aplicá-lo no presente, exige do interprete sempre uma interpretação e reconstrução (coerente) do conteúdo de tal comando em seu momento de criação e momentos de suas aplicações anteriores, para solucionar uma questão de acordo com as exigências do presente... Em sua origem, o fenômeno hermenêutico não é problema do método. A questão não está em submeter às obras a um método de compreensão científico, mas em se compreender a tradição, não se compreende apenas obras, mas também é necessário discernimento e reconhecimento de contingentes verdades: “com a experiência da filosofia, com a experiência da arte, da própria historia. São modos de experiência nos quais se manifesta uma verdade que não pode ser verificada com os meios metodológicos Obra dedicada ao Instituto Terra

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As teorias semânticas do Direito partem do pressuposto que os advogados e os juízes utilizam os mesmos critérios para determinar se uma proposição jurídica é verdadeira ou falsa, ou seja, nas teorias semânticas acredita-se que os envolvidos na prática jurídica estão de acordo a respeito dos fundamentos do Direito. Assim, para os teóricos do positivismo jurídico a verdadeira divergência sobre a natureza do Direito seria uma divergência empírica estabelecida sobre um consenso institucional pré-estabelecido, enquanto, na escola do Direito natural as divergências sobre o fundamento do Direito e validade das preposições jurídicas estariam em questões de critérios morais e não inteiramente factuais. Há também a corrente do realismo jurídico, que permite a previsão de prováveis e possíveis decisões de acordo com variados contextos, assim, o fundamento do Direito e determinação da validade das proposições jurídicas dependem de resultados calculados pelo magistrado, os adeptos dessa corrente afirmam que “o Direito” conforme explicitado pelos juspositivistas e os jusnaturalistas não existe, e o que existem são somente decisões judiciais a serem proferidas considerando probabilidades e cálculos futuros, ou que resulta apenas daquilo que “o juiz tomou em seu café da manhã”15. Em contraponto às perspectivas existentes, a teoria de Dworkin considera como “elemento central a coerência de princípio”, não desprezando “a equanimidade (fairness), justiça (justice) e o devido processo legal16 (procedure due process)” negando, portanto, que “as manifestações do Direito sejam meros relatos factuais voltados para o passado” ou que sejam somente “programas instrumentais voltados para o futuro”. Para a teoria do direito como integridade “as afirmações jurídicas são, ao mesmo tempo, posições interpretativas voltadas tanto para o passado quanto para o futuro”17. O direito que apresenta integridade sinaliza e norteia a aplicação dos princípios em face de cada caso concreda ciência”. Ver: GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. 3. ed. Petrópolis: Editora Vozes, 1997, p. 29-30. 15) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 45. 16) Uma observação: Para Marcelo Cattoni a tarefa geral da jurisdição (constitucional) no marco do paradigma procedimentalista do Estado Democrático de Direito, “é a garantia das condições processuais para o exercício da autonomia pública e da autonomia privada dos co-associados jurídicos, no sentido da equiprimordialidade e da interrelação entre elas.” Para Cattoni deve ser garantida a participação dos possíveis afetados por cada decisão na matéria, através de uma interpretação construtiva que compreenda o próprio processo como garantia das condições para o exercício da autonomia jurídica dos cidadãos. Ver: CATTONI, Marcelo. Devido processo legislativo. 2. ed. Belo Horizonte: Mandamentos, 2006, p. 166. 17) FERNANDES, Bernardo Gonçalves; PEDRON, Flávio Quinaud. Poder Judiciário e(m) crise. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 209. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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to, que é considerado como evento único e irrepetível18. Dworkin se contrapõe a tais perspectivas e apresenta casos19 demonstrando que, na prática, há, verdadeiramente, uma divergência teórica quanto aos fundamentos do Direito. O autor menciona, inclusive, o caso “Snail Darter”20, que versou sobre uma lei promulgada pelo Congresso dos Estados Unidos da América em 1973, conhecida como “Lei das Espécies Ameaçadas”, que autorizava ao ministro do Interior designar as espécies que, em sua opinião, estariam próximas da extinção. Um grupo de preservacionistas do Tennessee vinha se opondo ao projeto de construção de uma barragem da Administração do Vale do Tennessee porque o projeto estava alterando a geografia da região, para produzir um aumen18) Menelick de Carvalho Netto aduz que há um grande desafio, posto hoje em relação aos direitos fundamentais, como sendo: a descoberta que o Direito moderno não regula nem a si mesmo. Nas palavras do professor: “O direito moderno só se dá a conhecer por meios de textos e textos, que por definição são manipuláveis. Kelsen já buscara trabalhar o caráter indeterminado do Direito moderno a partir de uma concepção positivista de ciência. Dworkin, ao contrário, buscará responder a esse desafio, no contexto do atual conceito de ciência, optando pelo enfoque da hermenêutica filosófica. Se são possíveis várias leituras de um mesmo texto, para ela, a saída se encontra na concretude e na singularidade dos eventos sociais que o Direito regula. A situação vivencial concreta levada ao Judiciário é única, irrepetível, por definição. No campo social, os eventos não se repetem em grau definitivo, porque se o fizerem já não são os mesmos, uma vez que nós que os vivenciamos somos pessoas diferentes do que antes fôramos, já que aprendemos vivencialmente com eles. Somos pessoas mais vivenciadas, mais vividas, mais experientes e as nossas expectativas em relação a eles são distintas. É nesse sentido que Ronald Dworkin pôde afirmar que há uma única decisão correta para cada caso, não é em termos de que só seja possível uma única leitura de um texto legal. Dworkin tem uma formação extremamente sofisticada, é um crítico literário, sabe não somente que um texto admite várias leituras, mas que o horizonte de possibilidade das leituras se altera com as mudanças sociais verificadas ao longo do tempo”. E ainda: “não há saída fora de nós mesmos, nossa situação é hermenêutica, vemos a nós mesmos em tudo. E se o nós que construímos for um nós pobre, um nós excludente e excluído, um nós de um país periférico, é claro que a identidade constitucional será apenas um ícone para os poderosos reproduzirem a sua privatização do espaço público, como, aliás, necessariamente se veem obrigadas a fazer as ditaduras.” Ver: CARVALHO NETTO, Menelick de. A hermenêutica constitucional e os desafios postos aos direitos fundamentais. Em: SAMPAIO, José Adércio Leite. Jurisdição constitucional e direitos fundamentais. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 159-161. 19) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 20-38. 20) Ainda hoje, trinta anos após batalhas jurídicas para salvar uma espécie ameaçada, o pequeno peixe que bloqueou a conclusão de uma barragem ainda é invocado em vários escritos. No livro “The Snail Darter and the Dam” o advogado Zygmunt J. B. Plater narra o caso no qual participou juntamente com seus alunos, vencendo diante da Suprema Corte Norte Americana. Ele oferece um relato detalhado de seis anos contra um projeto que, segundo ele, “não fazia sentido econômico e era falho desde o início”. Ver: PLATER, Zygmunt Jan Broël. The Snail Darter and the Dam. New Haven: Yale University Press, 2013. Obra dedicada ao Instituto Terra

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to desnecessário de energia hidrelétrica. Esse grupo descobriu que uma barragem quase concluída, que custara mais de cem milhões de dólares, ameaçava destruir o único hábitat do snail darter, um peixe de 7,5 cm. Assim, convenceu o ministro a apontá-lo como uma espécie ameaçada de extinção e a impedir a conclusão da barragem. A Administração do Vale argumentou que a lei não podia ser interpretada de modo a impedir a conclusão ou operação de qualquer projeto já em fase avançada de construção. Demonstrou, ainda, várias leis do Congresso que sugeriam seu interesse na conclusão da barragem, inclusive a autorização da dotação de recursos para o projeto. No entanto, a Suprema Corte determinou a interrupção da obra. O presidente Warren Burger, cujo voto foi seguido pela maioria dos juízes, afirmou que quando o texto é claro, a corte não tem o direito de recusar-se a aplicá-lo apenas por acreditar que seus resultados serão tolos. Entendeu que, sendo claro o significado das palavras do texto, então o tribunal deve atribuir esse significado àquele termo, a menos que se pudesse mostrar que o legislador pretendia, na verdade, um resultado diverso. No caso, porém, considerou o juiz que o histórico do processo legislativo que leva à promulgação da Lei das Espécies Ameaçadas não autorizava tal conclusão, pois estava claro que o Congresso queria dar às espécies ameaçadas de extinção alto grau de proteção, mesmo em detrimento de outros objetivos sociais. O juiz Lewis Powell, vencido, entendeu que a Corte deveria adotar uma interpretação eficaz, compatível com o bom senso e o bem -estar público. Para ele, os tribunais só deveriam aceitar um resultado absurdo se encontrassem uma prova inequívoca de que fosse isso o pretendido. Neste caso, os juízes admitiram que a Corte deveria seguir a lei, mas discordaram sobre o sentido dela, sobre o modo como os eles deveriam decidir sobre qual norma jurídica resultava de textos promulgados pelo Congresso. Diferentemente do caso que envolveu controvérsias normativas norte-americanas, no histórico do Direito brasileiro, podemos afirmar que há uma tendência a criar legislações rígidas para garantir a preservação do meio ambiente. A Constituição de 1988 é a primeira a tratar de forma direta o meio ambiente, tendo o tema se consubstanciado no art. 225, além do referido dispositivo, ao longo do texto constitucional são feitas diversas referências ao meio ambiente, o que demonstra uma preocupação com a proteção jurídica efetiva mediante diversas garantias e mecanismos processuais, como, por exemplo, a ação popular. No caso brasileiro, a competência do poder público para proteger o meio ambiente e combater abusos é comum à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios, tendo em vista a preocupação com a eficácia e a responsabilidade protetiva de forma conjunta por todos os entes federativos. Em relação Direitos Humanos e Meio Ambiente

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à competência para legislar sobre o tema, ela é concorrente entre a União, os Estados e o Distrito Federal, cabendo aos Municípios a competência suplementar nos casos de interesse local. Nos documentos jurídicos nacionais podemos encontrar diretrizes principiológicas que norteiam as práticas cidadãs juntamente com as práticas institucionais dos poderes públicos, como direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado em decorrência do direito à vida (seja como existência física e saúde, seja como aspecto da dignidade da existência humana). Também pode ser observada a dimensão de responsabilidade a partir da solidariedade intergeracional21 (entre gerações), que busca assegurar a solidariedade entre a geração presente e as futuras, para que se possa usufruir, de forma saudável, dos recursos naturais. A partir de 1988 há um compromisso constitucional com a natureza pública da proteção ambiental, que preconiza a primazia do interesse público sobre o particular, além da indisponibilidade do interesse público. Podemos falar também no desenvolvimento sustentável, finitude dos recursos ambientais e ligação dessa realidade com a prática das atividades econômicas. No campo da responsabilização, é possível argumentar sobre a questão do “poluidor pagador” e a do “usuário pagador”, que refletem fundamentos da responsabilidade em matéria ambiental. Em relação à proibição do retrocesso ecológico podemos dizer que possui caráter irretroativo em relação às conquistas quanto à proteção ambiental, e pode ser identificada nos conceitos de proteção deficiente e proteção excessiva. Sobre a “prevenção” e a “precaução”, a primeira relaciona-se com o perigo concreto de um dano inevitável e iminente, fazendo-se necessário adotar medidas urgentes para evitá-lo, já a segunda trata do perigo abstrato potencial, pautado na incerteza científica e na dúvida, devendo haver extrema consideração da necessidade para adoção de qualquer medida, não somente na reparação de qualquer dano (iniciado ou concluído), como para a redução de incidentes. A participação na informação e educação ambiental e na promoção de atividades e audiências públicas pode demonstrar que o cidadão não depende de seus representantes políticos para atuar na gestão do meio ambiente, dotandolhe de capacidade para atuação instantânea na preservação do meio ambiente e na gestão ambiental. A proteção do meio ambiente é tema transversal e ubíquo na sociedade, sendo primordial quando tratamos dos direitos humanos, pois toda atividade pública deve considerar o fundamento de preservação da vida e, principalmen21) Observar novamente a Declaração de Estocolmo e o Princípio terceiro da ECO-92. Obra dedicada ao Instituto Terra

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te, a qualidade para que as pessoas possam viver de modo plural, respeitando autonomia e responsabilidade, conforme cada ‘projeto de uma vida boa’. Sendo assim, a partir de uma verificação (superficial e breve) quanto aos documentos jurídicos, garantias, competências e responsabilidades do poder público em relação ao tema ambiental para a tomada de decisões, inclusive aquelas proferidas por um magistrado diante um caso concreto, questiona-se, como proceder a tal tomada de decisões e como justificar argumentativamente a decisão (principalmente em âmbito judicial). Para decidir conforme o Direito como integridade, Dworkin traça uma concepção sobre interpretação22, podendo ser dividida a etapa interpretativa em três subetapas: etapa pré-interpretativa, etapa interpretativa e etapa pós-interpretativa. A primeira identifica as regras e padrões que fornecem o conteúdo experimental da prática. A segunda estabelece uma justificação dos princípios que se ajustam às práticas em questão, visando garantir que se obtenha uma “interpretação” e não uma “invenção”. Por fim, a terceira reforma a prática para que esta se adapte. O Direito como integridade é uma teoria alternativa, onde as afirmações jurídicas voltam-se tanto para o passado quanto para o futuro e que recusa descoberta de um direito pré-existente (convencionalismo) ou invenção de um direito novo (pragmatismo), pois coloca a prática jurídica melhor compreendida quando se reconhece que as decisões judiciais contêm as duas coisas e nenhuma delas. Para construí-la, Dworkin utiliza de metáforas na tentativa que seu intérprete capture a essência das experiências comunicadas e as aplique em sua prática, a partir de uma substituição analógica. A palavra metáfora tem a mesma raiz de “ânfora”, um recipiente usado para guardar e transportar óleos e condimentos de um lugar para outro23, de modo semelhante, as metáforas dworkinianas parecem conter ideias e ensinamentos valiosos tendo a capacidade de conservá-los e potencial de transmiti-los no decorrer do tempo. Uma das metáforas utilizadas na teoria do Direito como integridade é o “romance em cadeia” (chain novel), onde o juiz em sua atividade, é comparado a um crítico literário que procura interpretar as diversas dimensões de valor em uma obra ou peça teatral. O magistrado faria parte de um grupo de romancistas responsáveis por escrever um romance em série, sendo que cada romancista interpretaria os capítulos anteriores para dar início à escrita de

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um novo capítulo, assim, cada um deveria escrever seu capítulo de modo a contribuir para um todo coerente24. A escolha pelo gênero narrativo em prosa na modalidade romance abdica das formas clássicas e não se liga à subjetividade do lírico, à tragédia do dramático ou à objetividade do épico, dando lugar à escrita da realidade e do hodierno a cada tempo. Diante do jogo entre tradição (passado), novidade (futuro) e imediato (presente), o “romance em cadeia” demonstra a necessidade de encadeamento da narrativa jurídica, onde, considerado o conjunto da obra, cada (novo) capítulo escrito mantém plausibilidade com as partes produzidas por diversos juízes e Cortes, o que pode ser mais facilmente exequível em ordenamentos que exijam a consideração do precedente como parte da argumentação. Assim, uma argumentação jurídica inspirada no “romance em cadeia” não pode negligenciar interpretação dos debates escritos em diversos capítulos por distintos autores na cadeia do romance jurídico e a obra não pode conter capítulos isolados em que juízes desprezem os precedentes, escrevam argumentos restritos (“interpretações” ou “literalidades”/“subsunções”) que considerem apenas o texto das leis como cânones, e/ou recorram exclusivamente a argumentos políticos no momento de elaboração dos textos normativos por seus autores. Essa postura desvinculada comprometeria a segurança jurídica e a visão constitutiva da justiça, já que a busca daquilo que o legislador/autor quis dizer, caso não sejam considerados outros elementos presentes no iter decisório, desnatura as conexões históricas e despreza as contribuições (não subjetivas, mas compartilhadas entre a comunidade) que o intérprete/romancista/ magistrado pode oferecer aos casos. Além disso, ao se valer somente de argumentos políticos pautados na intenção do legislador no momento de ações políticas ou somente em uma política de resultados prospectivos, o juiz estaria a desconsiderar a necessidade de um equilíbrio de opiniões, já que os legisladores divergem entre si; desconsideraria também que, durante a elaboração das leis, os legisladores poderiam decidir a partir de suas próprias opiniões e convicções ou negociações com grupos de interesses particulares (apesar de se esperar que, além dos juízes, os legisladores de uma comunidade ajam com base em princípios e com integridade, o histórico da legislatura é limitado para servir de base exclusiva às pretensões argumentativas na construção da decisão correta, servindo a priori como tentativa de apontar as convicções que justificaram o que os legisladores fizeram).

22) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 81. 23) LAKOFF, George; JOHNSON, Mark. Metáforas da vida cotidiana. São Paulo: Mercado das Letras, EDUC, 2002. Direitos Humanos e Meio Ambiente

24) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 276. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Salutar mencionar um apontamento feito por Dworkin25: a busca por uma interpretação exclusiva do autor como revelação plena da obra já foi alvo de crítica de Gadamer26. Em uma visão íntegra do Direito, há importância na memória e em seu acesso pelas decisões, o que fica demonstrado diante da exigência de que as novas decisões não somente considerem decisões passadas, mas que contenham também uma recuperação das narrativas construídas pelo encadeamento de decisões pretéritas, realizando argumentativamente, na nova decisão, uma des-re-construção das decisões passadas, (re)interpretando -as criticamente e aperfeiçoando-as à luz, principalmente, das exigências do caso concreto (em questão), das práticas sociais e dos princípios justificados. A partir do resgate da memória é possível que, além de uma formação coerente e encadeada do Direito, haja o desenvolvimento da identidade do(s) próprio(s) sujeito(s) constitucional(is)27. A memória coletiva e a lembrança de acontecimentos exigem, como suporte, os discursos intersubjetivos tecidos na esfera pública e operados com uma construção contínua mediante a (re)interpretação. Também como um dos pilares para a construção da decisão jurídica, além do romance em cadeia, Dworkin lança mão da “comunidade de princípios”. Afinal, as decisões ao longo do romance em cadeia são construídas para (e também por) uma sociedade que aceita a integridade como virtude, transformando-se em um “tipo especial de comunidade”, a qual desenvolve sua autoridade moral para assumir e mobilizar a força coercitiva. A comunidade de princípios segue a ideia de que as pessoas aceitam um governo não somente por regras expressas estabelecidas por decisões políticas tomadas no passado, mas por quaisquer outros compromissos que possam decorrer dos princípios pres25) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 62-63. 26) Habermas ainda apontou em Gadamer uma visão por demais passiva se a hermenêutica assumisse o fluxo comunicativo como unilateral (autor – interpretes), Habermas justifica que a interpretação pressupõe que também o autor poderia aprender com o intérprete sobre a obra e seus sentidos. Ver: HABERMAS, Jürgen. Dialética e hermenêutica. Porto Alegre: L&PM, 1987, p. 92-93. 27) Para Rosenfeld não faz sentido falar em constitucionalismo sem pluralismo. Em uma comunidade homogênea, com um objetivo coletivo único e sem uma concepção de que o indivíduo tem algum direito legítimo ou interesse distinto daqueles da comunidade como um todo, o constitucionalismo seria supérfluo. O constitucionalismo depende do pluralismo e pode ser visto como outorga de meios para sua institucionalização. A identidade constitucional é propensa a se alterar com o tempo, sendo ora um significado ora outro, conforme a interpretação que se faça da expressão, necessária a reelaboração através de um entrelaçamento entre o passado e o futuro das gerações que se sujeitam a uma determinada Constituição. – Ver em: ROSENFELD, Michel. A identidade do sujeito constitucional. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003, p. 21-36. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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supostos nas decisões públicas. Assim, politicamente, o conjunto de normas públicas reconhecidas pode expandir-se e contrair-se organicamente, à medida que as pessoas da comunidade se tornem mais sofisticadas em perceber e em explorar o que esses princípios exigem a cada nova circunstância28. Para expor a complexa estrutura da interpretação jurídica, Dworkin, inspirado pela história do herói mitológico Hércules (Héracles29 para os gregos), utiliza um juiz imaginário de capacidade e de paciência sobre-humanos, que aceita o Direito como integridade30. Ele representa a figura do magistrado a partir da atividade interpretativa, da comunidade de princípios e do romance em cadeia, e constrói a resposta correta para cada caso. Na esteira do mito, Dworkin descreve (contrafactualmente) o juiz Hércules como um magistrado com capacidade e paciência sobre-humanas, que não se deixa abater pelo tamanho da tarefa e que, por ser persistente e dedicado, não vai abdicar da decisão, ou seja, não passará o problema adiante. Além disso, o juiz Hércules é um dos responsáveis na construção de uma resposta (correta/ adequada) para cada caso, assim como o Héracles da mitologia grega se empenhou para buscar uma solução inteligente e específica para cada trabalho con28) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 229. 29) O conto grego descreve Héracles como um extraordinário mortal (tanto que após sua morte foi convertido em semideus) filho de Zeus e Alcmena (neta de Perseu), foi anunciado como Rei de Micenas antes de seu nascimento. Porém, Hera, a rainha do Olimpo que o odiava, o destronou. Ela manipulou Zeus a fazer um juramento: a primeira criança que nascesse naquele dia assumiria os mandos da Casa Real de Perseu. Hera retardou o parto de Héracles e apressou o de seu primo Euristeu, este nasceu primeiro e assumiu o trono. Desde jovem Héracles já era um guerreiro letal e graças a suas façanhas ganhou a mão de Mégara com quem teve seis filhos. Em mais um ato contra o herói, Hera invocou Atê (deusa da loucura) que lançou a sombra da insanidade sobre Héracles fazendo com que em um surto ele se equivocasse e matasse seus próprios filhos. Abandonado e arrasado pela dor e culpa, Héracles foi ao Oráculo que como expiação ordenou que ele se curvasse a serviço de Euristeu (seu primo e Rei de Micenas, covarde e invejoso que vivia no ócio e luxo) o Rei ordenou à Héracles doze missões mortais e impossíveis de executar à primeira vista (Os Doze Trabalhos de Héracles). Após ser dispensado por Euristeu e se remir cumprindo as 12 tarefas, Héracles desposou Dejanira, que foi raptada por um centauro apaixonado, Héracles venceu o centauro com flechas envenenadas. Antes de morrer o centauro entregou a túnica com seu sangue para Dejanira prometendo que se seu marido colocasse tal vestimenta a amaria para sempre. Assim ocorreu. Um dia desconfiada do fim do amor de Héracles sua esposa lhe enviou a túnica, sendo que, a vestimenta estava embebida de sangue e também de veneno (causador da morte do centauro). Ao usar a veste, Héracles, tomado de dor, acabou por arrancar as próprias carnes e no desespero do sofrimento se lançou sobre feches de lenha implorando que alguém lhe ateasse fogo, o que foi feito por um de seus discípulos. Ver: BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da mitologia: história de deuses e heróis. 34. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006. 30) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 287. Obra dedicada ao Instituto Terra

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siderado inexequível, dentre os doze que lhe foram ordenados. Em contrapartida ao juiz dotado de tantas qualidades e tão próximo à dedicação e perfeição encontra-se a falibilidade humana, que é admitida e trabalhada por Dworkin quando ele explica o motivo para querer se utilizar ‘Hércules’ e não de outro exemplo extraído da falibilidade judicial: (1) utilizar-se de um exemplo falível seria admitir que por “desventura e com frequência” os juízes tomarão decisões injustas não adiantando que eles se esforçassem para chegar a decisões justas; (2) por serem considerados falhos, poderia entender-se que os juízes não precisam fazer esforço algum para apontar institucionalmente o direito das partes, de modo a decidir os casos com base em razões políticas ou, simplesmente, não os decidir; o que o autor considera como perverso. Assim, ficaria aberta a possibilidade de que os juízes submetessem a outros órgãos as questões de Direito colocadas pelos casos sem resposta aparente ou clara. Se fosse assim, Dworkin questiona a quem submeter tais casos, e, também, se o judiciário poderia se eximir de julgar. A figura do juiz Hércules suscita uma crítica pertinente feita por Habermas31 a Dworkin: a impossibilidade de se conceber o Direito de uma comunidade composta por somente um narrador e a “solidão” de Hércules ao decidir “sozinho” demonstrariam a falta de pressupostos de uma teoria do discurso. Tal crítica se mostra infundada se analisada a teoria de Dworkin em seu conjunto, pois tanto o juiz Hércules quanto os diversos autores do romance em cadeia (inclusive as partes que participam do processo judicial) são membros dessa comunidade, tendo sua visão formada por um mesmo “pano de fundo de silêncio compartilhado”32 que rege as práticas sociais. Assim, retomando uma das metáforas ora retratada (a da comunidade de princípios), percebe-se que o juiz Hércules também faz parte dessa comunidade, e interage e desenvolve suas tarefas a partir dessa realidade. Ademais, não haveria qualquer outro interlocutor que se esmerasse mais que juiz Hércules na construção do Direito como integridade. Os críticos da metáfora de Hércules não percebem que as atribuições dele decorrem de um recorte no trabalho de Dworkin, o qual alerta os leitores que seu projeto é limitado também nesse sentido, pois “concentra-se na decisão judicial, nos juízes togados,

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mas estes não são os únicos protagonistas nem mesmo os mais importantes”33. Dworkin não defende que os juízes devam34 ter (ou não) a “última palavra”35, mas ressalta que, “ainda que os juízes devam ter a última palavra, sua palavra não será melhor por esta razão”36, pois têm o dever de descobrir quais são os direitos das partes, e não inventar novos direitos, e aplicá-los de modo retroativo37. Assim, o juiz real deve suprir sua desvantagem em relação a Hércules recorrendo aos participantes e garantindo o trânsito livre de comunicação na prática jurídica38. Hércules não se considera nem um passivista nem um ativista39: acredita, assim como em outros casos, que sob o regime do Direito como 33) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 16-19. 34) Para Dworkin “a democracia não faz questão de que os juízes tenham a última palavra, mas também não faz questão de que não a tenham”. Ver: DWORKIN, Ronald. Direito da liberdade: a leitura moral da Constituição norte-americana. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 10. 35) Cumpre ressaltar que conforme Hanna Pitkin “ninguém tem a última palavra, pois não há última palavra”. No entanto, é importante observar que essa colocação ocasiona negação da existência de uma ‘última palavra’. Assim, nega o que está em questão ‘à priori’, ou seja, nega inclusive a tensão sobre momentâneas “prevalências institucionais” e existência de autoridade para controle-correção da produção legislativa, assim como controle-correção da produção judiciária. Diante da negativa de existência da “ultima palavra”, nos parece mais adequado que se faça um questionamento inicial do que é ou poderia ser considerado como “última palavra”, sobre qual a sua função e importância para o desenvolvimento democrático. A “última palavra” não se resume a uma decisão definitiva, mas a uma série de decisões institucionais temporais, constantemente (re)construídas e, portanto, modificadas ou modificáveis sob vários aspectos, em relação à vários assuntos e competências institucionais. Uma “última palavra” (inclusive a “última palavra” sobre quem dita “a última palavra”) para as instituições e sistemas perdura pelo tempo que consegue equilibrar satisfatoriamente (e articular através da atividade discursiva) melhores soluções temporais viáveis para os atritos / tensões e discordâncias práticas / teóricas juntamente com a correção demandada e minimização de erros. Os poderes públicos estabelecem relações de diálogos através de desacordos e discussões institucionalizadas. Interessa que esse diálogo não configure mera disputa destrutiva, com questões de vaidade e competição institucional sobre ilusões quanto à “última palavra” e “monopólio” da autoridade, mas sim, que propicie oportunidades e condições para cooperação e coordenação mútua com decisões construídas de forma mais democrática, legítima e institucionalizada, considerando o desenvolvimento (social, político e jurídico) dos cidadãos em suas autonomias, ajustes necessários e historicidade de uma comunidade. 36) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 492. 37) DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 127.

31) HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre faticidade e validade. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997, p. 276-277. 32) CARVALHO NETTO, Menelick de. Requisitos pragmáticos da interpretação jurídica sob o paradigma do Estado Democrático de Direito. Revista de Direito Comparado, vol. 3, p. 473. Belo Horizonte: Curso de Pós-Graduação em Direito da UFMG e Mandamentos, maio/1999. Direitos Humanos e Meio Ambiente

38) DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 114. 39) Importante frisar que em suas obras sobre uma decisão judicial justificada e adequada constitucionalmente, sendo dotada de legitimidade, Dworkin não defende ativismo judicial. Até mesmo pelos riscos de decisionismo que uma postura assim ocasiona. Nesse sentido, Daniel Sarmento afirma que “... e a outra face da moeda é o lado do decisionismo e do ‘oba-oba’. Acontece que muitos juízes, deslumbrados diante dos princípios e da possibilidade de atraObra dedicada ao Instituto Terra

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integridade, os problemas constitucionais polêmicos pedem uma interpretação para resposta adequada, não uma emenda. Hércules atribui relevância apenas aos argumentos de princípio40 (ratios), já que a tese dos direitos sustenta que tais argumentos correspondem corretamente à responsabilidade do tribunal. De forma resumida, o caminho feito por Hércules para encontrar a resposta correta a um problema jurídico inicialmente é: trabalhar com coerência argumentos e justificações os direitos em conflito; Selecionar as hipóteses principiológicas que possam corresponder à melhor interpretação do histórico das leis e decisões anteriores, caso haja mais de uma hipótese é necessário encontrar uma correta; Encontrar a hipótese correta a partir do pensamento de que o direito é estruturado por um conjunto coerente de princípios. A partir da coerência é possível encontrar uma resposta satisfatória quando princípios aparentemente conflitam; Colocar a interpretação à prova. Perguntar-se-á se essa interpretação é coerente o bastante para justificar as estruturas e decisões políticas anteriores de sua comunidade. Mesmo seguindo toda uma construção para decidir o caso, Hércules sabe da possibilidade de encontrar decisões incoerentes. Por isso precisa também de uma teoria sobre os erros.41 96

vés deles, buscarem a justiça – ou que entendem por justiça -, passaram a negligenciar no seu dever de fundamentar racionalmente os seus julgamentos. Esta ‘euforia’ com os princípios abriu um espaço muito maior para o decisionismo judicial. Um decisionismo travestido sob as vestes do politicamente correto, orgulhoso com seus jargões grandiloquentes e com a sua retórica inflamada, mas sempre um decisionismo. Os princípios constitucionais, neste quadro, converteram-se em verdadeiras ‘varinhas de condão’: com eles, o julgador de plantão consegue fazer quase tudo o que quiser. Esta prática é profundamente danosa a valores extremamente caros ao Estado Democrático de Direito. Ela é prejudicial à democracia, porque permite que juízes não eleitos imponham a suas preferências e valores aos jurisdicionados, muitas vezes passando por cima de deliberações do legislador. Ela compromete a separação dos poderes, porque dilui a fronteira entre as funções judiciais e legislativas. E ela atenta contra a segurança jurídica, porque torna o direito muito menos previsível, fazendo-o dependente das idiossincrasias do juiz de plantão, e prejudicando com isso a capacidade do cidadão de planejar a própria vida com antecedência, de acordo com o conhecimento prévio do ordenamento jurídico”. Ver: SARMENTO, Daniel. Ubiquidade Constitucional: Os Dois Lados da Moeda. In: SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel. A constitucionalização do Direito: fundamentos teóricos e aplicações específicas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2007. 40) Thomas Bustamante leciona sobre a atividade judicial e os limites e deficiências da razão prática, sendo plausível que o juiz aplique decisões com efeitos prospectivos e de modo a afetar qualquer segurança jurídica a partir da justificação e fundamentação em princípios constitucionais, assentando sua decisão em argumentos jurídicos e não exclusivamente pragmáticos nos casos de mutação jurisprudencial prospectiva. Ver: BUSTAMANTE, Thomas da Rosa de. Teoria do precedente judicial. São Paulo: Noeses, 2012, p. 465. 41) O presente artigo não visa exaurir ou mesmo resumir de modo completo o conteúdo teórico proposto por Dworkin, trata-se apenas de uma abordagem interpretativa e dialógica sobre Direitos Humanos e Meio Ambiente

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2) A Interpretação do Stf e do Stj Sobre Integridade e Meio Ambiente

Apresentada a teoria de Ronald Dworkin do Direito como integridade, como aquela em que o Direito é construído a partir do diálogo entre intérpretes, como um romance em cadeia, propõe-se, aqui, uma abordagem ousada, inspirada na proposta dworkiniana e na perspectiva dos deveres fundamentais. Realiza-se, assim, uma análise a partir das jurisprudências do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) brasileiros relacionada com o dever de preservar a integridade do meio ambiente.42 Nesse sentido, é necessário discorrer, mesmo brevemente sobre o tema dos deveres fundamentais. Apesar de o conceito de dever ser, originariamente, um conceito moral, seu uso no âmbito jurídico está consolidado, o que revela uma conexão entre Direito e Moral.43 É muito comum dizer que o Direito é um instrumento que se propõe organizar a vida social. E como ele é essencialmente linguagem, revela-se um texto prescritivo, ou um discurso prescritivo, exprimindo uma diretiva, um modelo de agir ou se comportar.44 O que se extrai desses textos prescritivos, por meio de um procedimento interpretativo multifásico, são as normas, isto é, enunciados prescritivos que se referem àquilo que é normal, a algo que deve ou costuma acontecer, enfim, a uma regra.45 Portanto,

alguns pontos propostos pelo autor para interligação com o tema. Portanto, para uma leitura “à melhor luz” do autor e de suas obras, ler inicialmente: DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1999. 42) Ressalte-se: o próprio dever de preservar o meio ambiente (assegurando o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado) se revela relacionado à uma integridade com os demais direitos que possam vir a ser assegurados, pois, a integridade em questão, não se refere somente a uma estrutura ambiental sustentável, mas também à própria lógica ou noção de ter e assegurar quaisquer direitos (inclusive os humanos/individuais). 43) ASIS ROIG, Rafael de. Deberes y obligaciones en la Constitución. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 1991, p. 54-55 e 448. 44) MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2001, p. 28; SGARBI, Adrian. Introdução à teoria do direito. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 54. 45) KELSEN, Hans. Teoria geral das normas. Trad. José Florentino Duarte. Porto Alegre: Sergio Fabris Editor, 1986, p. 5; ROBLES, Gregorio. Considerações sobre a teoria da norma jurídica em Kelsen. In: FARO, Julio Pinheiro; BUSSINGUER, Elda Coelho de Azevedo (org.). A diversidade do pensamento de Hans Kelsen. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 92. Obra dedicada ao Instituto Terra

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normas jurídicas são também regras,46 que têm uma estrutura sintático-condicional, dotadas de um antecedente (causa, hipótese, descrição) e de um consequente (efeito, resultado, prescrição): o primeiro descreve uma situação hipotética, o segundo prescreve o efeito esperado com a ocorrência da hipótese. O que esses enunciados normativos significam, e quando utilizados, podem ser vistos a partir da perspectiva do Direito como integridade. Os significados das palavras e expressões contidas nos enunciados normativos dependem daquilo que Dworkin chamou de interpretação construtiva. Podemos aceitar essa proposta e lançar aqui uma concepção interpretativa de “meio ambiente” para auxílio no estudo do tema: o entendimento de que o meio ambiente é o conjunto de agentes físicos, químicos, biológicos e de fatores sociais suscetíveis de exercerem um efeito direto ou indireto, imediato ou a longo prazo, sobre todos os seres vivos, incluindo o ser humano.47 Decisões em matéria ambiental proferidas pelos tribunais serão consistentes se, tomadas aqui e agora, aproveitarem as lições do passado e se propuserem a construir um futuro melhor.48 O STF parece entender dessa mesma forma quando destaca que o direito à preservação da integridade do meio ambiente decorre de seu caráter metaindividual e do fato de decorrer da solidariedade, sendo, por isso, necessário impedir que quaisquer transgressões a esse direito faça irromper, no seio da coletividade, conflitos intergeracionais.49 Embora utilize nomenclaturas distintas,50 há um consenso dentro do tribunal, já a algum tempo, de que o direito ao meio ambiente funda-se na solidariedade, e, por isso é de interesse da coletividade.51 O STJ também parece partir desse consenso,

46) Princípios podem ser considerados metanormas (Ver: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Far beyond from norms, distinguishing between rules and principles. ARSP – Archiv für Rechts-und Sozialphilosophie, vol. 97, n. 2, 2011). 47) IBGE. Vocabulário básico de recursos naturais e meio ambiente. 2. ed. Rio de Janeiro: IBGE, 2004, p. 210. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/vocabulario.pdf. Acesso em: 09 maio 2014. 48) DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: The Belknap Press of Harvard University Press, 1986, p. 95. Ver. Também: OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 102. 49) STF. ADI 3540-MC, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 3.2.2006. 50) Direito metaindividual, direito transindividual, direito coletivo. 51) STF. MS 25284, Plenário, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, DJE 13.8.2010; STF. MS 22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995; STF. RE 134297, 1ª Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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quando entende ser o meio ambiente um direito de todos.52 Nas decisões do STF a adoção do entendimento de que o direito ao ambiente ecologicamente equilibrado e sustentável depende da assunção de uma responsabilidade em nível intergeracional, ou seja, que o dever de preservação da integridade ambiental é um compromisso para a geração atual e para as futuras.53 O STJ adota igual linha de raciocínio ao afirmar que a Constituição impõe tanto ao Poder Público quanto à coletividade o dever de defender e de preservar o meio ambiente em benefício não apenas das presentes como também das futuras gerações.54 Evidencia-se nos julgados tanto do STF quanto do STJ que o direito ao meio ambiente equilibrado ecologicamente decorre do cumprimento do dever fundamental, imposto pela Constituição ao Poder Público e à sociedade, de fazer respeitar e defender a integridade do patrimônio ambiental para as atuais e futuras gerações.55 Essa precedência do dever sobre o direito é vista também nas exigências de compensações reparatórias e de realização de estudos e relatórios de impacto ambiental para a implantação de empreendimentos com significativo potencial impactante,56 e de cadastro de produtos potencialmente danosos,57 nas proibições de atividades que impliquem em tratamento cruel a espécimes da fauna58 ou em prática atentatória à flora,59 e na regulamentação 52) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010. 53) STF.ADPF 10, Plenário, Rel. Min. CÁRMEN LÚCIA, DJE 4.6.2012; STF. ADI 1952MC, Plenário, Rel. Min. MOREIRA ALVES, DJ 12.5.2000. 54) STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010. 55) STF. AgRg no RE 417408, 1ª Turma, Rel. Min. DIAS TOFFOLI, DJE 26.4.2012; STF. MS 26064, Plenário, Rel. Min. EROS GRAU, DJE 6.8.2010; STJ. AgRg no REsp 958766, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 30.3.2010; STF. MS 22164, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 17.11.1995 56) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011; STF. ADI 3378, Plenário, Rel. Min. AYRES BRITTO, DJE 20.6.2008; STF. ADI 1086, Plenário, Rel. Min. ILMAR GALVÃO, DJ 10.8.2001. 57) STJ. Resp 1153500, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 3.2.2011; STF. AI 158479-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA, DJ 26.4.1996. 58) STF, ADI 1856, Plenário, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJE 14.10.2011; STF. ADI 3776, Plenário, Rel. Min. CEZAR PELUSO, DJ 29.6.2007; STF. ADI 2514, Plenário, Rel. Min. EROS GRAU, DJ 9.12.2005. 59) STF. RE 134297, 1 Turma, Rel. Min. CELSO DE MELLO, DJ 22.9.1995. Obra dedicada ao Instituto Terra

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da poluição, entendida como uma forma de degradação ambiental decorrente de atividades que, de alguma maneira, prejudiquem a saúde e o bem-estar da população ou condições estéticas ambientais.60 Os casos decididos pelos dois tribunais atestam a preocupação com o dever de proteger o meio ambiente firmando-se a responsabilidade objetiva fundada no risco integral, obrigando, então, o empreendedor a prevenir ou reduzir o impacto dos riscos à saúde e ao meio ambiente (princípio da prevenção), bem como a incluí-los em seus custos operacionais (princípio do poluidor-pagador).61 E isso se evidencia na preocupação em estabelecer medidas compensatórias pelo uso de recursos que causem danos inevitáveis e imprescindíveis previstos nos estudos e relatórios de impacto, e medidas mitigadoras e preventivas para os danos não previstos,62 devendo-se mensurar o dano não apenas a partir dos efeitos visíveis à fauna ou à flora, mas também pelo grau de desequilíbrio ecológico provocado.63 Verifica-se, nesse breve análise de alguns dos julgados do STJ e do STF que há uma construção coerente sobre o dever fundamental de proteção do meio ambiente que permite a sua defesa, ainda que os dois Tribunais cometam alguns erros judiciais. Há, portanto, a partir de uma abordagem baseada na teoria dos deveres fundamentais uma conexão condicional: a exigência do direito ao ambiente ecologicamente equilibrado depende do cumprimento do dever de proteção a esse mesmo meio ambiente, e vice-versa; flagra-se uma relação jurídica obrigacional, permissiva da formulação de uma pretensão diante do descumprimento do dever para defender o direito e da titularidade do direito para exigir que se preserve e proteja o seu objeto (meio ambiente). Trata-se, assim, de dever e direito não autônomos, pois correlatos ou relacionados entre si, permitindo, então, uma exigibilidade dupla, seja por violação ao direito seja por descumprimento do dever.64 60) STJ. REsp 876931, 2ª Turma, Rel. Min. MAURO CAMPBELL MARQUES, DJE 10.9.2010. 61) STJ. REsp 1346430, 4ª Turma, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, 21.11.2012; STJ. REsp 967375, 2ª Turma, Rel. Min. ELIANA CALMON, DJE 20.9.2010. 62) STJ. REsp 896863, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 2.6.2011. 63) STJ. REsp 1164630, 2ª Turma, Rel. Min. CASTRO MEIRA, DJE 1.12.2010. 64) Para essa relação, ver, por exemplo: SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); AMADO GOMES, Carla. O direito ao ambiente: vertentes pretensiva e impositiva de um falso direito. Argumenta, n. 16, 2012, p. 323; DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Leonardo. Deveres fundamentais. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang; CARBONELL, Miguel (coord.). Direitos Humanos e Meio Ambiente

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A característica da exigibilidade revela que o binômio direito-dever ou dever-direito determina a natureza metaindividual ou transindividual da proteção ao meio ambiente; quer dizer, trata-se de um direito pertencente a e de um dever exigível dos cidadãos, e também de toda a coletividade, transcendendo ou indo além do indivíduo. Isso determina a natureza coletiva do direito e dever de proteção do meio ambiente, tornando-o, assim, um dever híbrido, pois é genérico por pertencer e a cada uma das pessoas, não sendo específico por não se relacionar a um direito subjetivo (potestativo) de uma pessoa específica.65 A construção jurisprudencial do STF e do STJ revela, como ficou registrado, que a sociedade e cada indivíduo têm tanto dever de quanto direito à proteção do meio ambiente, assim como o Estado (o Poder Público) possui o dever de protegê-lo ou conservá-lo.66 O referido dever, que tem uma profunda relação Direitos, deveres e garantias fundamentais. Salvador: JusPodivm, 2011, p. 327; CASALTA NABAIS, José. O dever fundamental de pagar impostos: contributo para a compreensão constitucional do estado fiscal contemporâneo. Coimbra: Almedina, 2009, p. 78-83, 114-117 e 123-124; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 10. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 228; ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española: esencialidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 279; PALOMBELLA, Gianluigi. De los derechos y de su relación con los deberes y los fines. Derechos y Libertades, n. 17, 2007, p. 129-130; VIEIRA DE ANDRADE, José Carlos. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 2. ed. Coimbra: Coimbra, 2001, p. 161; PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987, p. 340-341; VARELA DÍAZ, Santiago. La idea de deber constitucional. Revista Española de Derecho Constitucional, n. 4, 1982, p. 69, 73, 84 e 86; NAVAS BENAVENTE, Sara. Observaciones a algunas normas del capítulo III “de los derechos y deberes constitucionales” del proyecto de nueva constitución. Revista Chilena de Derecho, vol. 6, 1979, p. 246-248; PARRA, Dario. Deberes constitucionales. Boletín de la Academia de Ciencias Políticas y Sociales, vol. 31, n. 34, 1966, p. 42. 65) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); PECES-BARBA MARTÍNEZ, Gregorio. Los deberes fundamentales. Doxa, n. 4, 1987, p. 336. 66) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo); PINHEIRO, Gleydson Gleber Bento Alves de Lima. O dever fundamental de proteção do meio ambiente e a proibição da proteção deficiente à luz da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Revista do Instituto de Direito Brasileiro, vol. 2, n. 9, 2013; ABREU, Ivy de Souza; FABRIZ, Daury César. O dever fundamental de proteção das matas ciliares e das nascentes com base no princípio da proibição do retrocesso: uma análise do Código Florestal brasileiro. Derecho y Cambio Social, n. 32, 2013; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontooura de; GRAU NETO, Werner. A esquizofrenia moral e o dever fundamental de proteção ao animal não humano. Revista Brasileira de Direito Animal, vol. 10, n. 1, 2012; SGARIONI, Márcio Frezza; RAMMÊ, Rogério Santos. O dever fundamental de proteção ambiental: aspectos axiológicos e normativos-constitucionais. Direito Público, n. 42, 2011; ZAMBRANO CETTINA, William. Deberes de los particulares en la ConstiObra dedicada ao Instituto Terra

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com o direito ao meio ambiente sano (relação condicional, o exercício de um depende do cumprimento do outro, e o cumprimento de um depende da existência do outro), encontra respaldo na Constituição brasileira de 1988, no art. 225, no qual se lê aquilo que resume bem a construção em cadeia interpretativa feira pelo STF e pelo STJ: todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, enquanto bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida e bem-estar. Impondo-se ao Poder Público e à coletividade, bem como a cada indivíduo, o dever de defende-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Isso quer dizer que o dever de conservar ou proteger o meio ambiente é uma obrigação, que se relaciona com o direito ao meio ambiente sano (relação condicional), sendo passível de sanção o descumprimento dessa obrigação, como, ademais, registrou-se na análise das decisões do STF e do STJ. O destaque dado, pelos julgados dos dois tribunais, muito mais ao dever de proteção do ambiente que ao direito a ele relacionado tem sua razão de ser. A construção jurisprudencial parece se basear, ainda que não faça isso consciente e expressamente, no entendimento (consenso mínimo) de que para a reivindicação de direitos é necessário o cumprimento de deveres. Essa não é uma conclusão fácil em uma sociedade, como a ocidental, marcada pelo individualismo e pelo subjetivismo,67 em que a referência aos deveres é normalmente feita de passagem,68 ou como um adorno ou recurso de retórica.69 Para confirmar isso, basta folhear os livros de curso de Direito constitucional e notar quantas linhas são dedicadas ao tema. Como a teoria dos deveres fundamentais ainda está em construção,70 apenas é possível indicar, provisoriamente, que a natureza desses deveres está funtución y medio ambiente. Anuario de Derecho Constitucional Latinoamericano, 2010; GREY, Natália de Campos. Dever fundamental de proteção aos animais (Dissertação de Mestrado em Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2010; RUSCHEL, Caroline Vieira. O deber fundamental de proteção ambiental. Revista Direito & Justiça, vol. 33, n. 2, 2007; FENSTERSEIFER, Tiago. A dimensão ecológica da dignidade humana: as projeções normativas do direito (e dever) fundamental ao ambiente no Estado socioambiental de Direito (Dissertação de Mestrado em Direito). Porto Alegre: PUC-RS, 2007. 67) Sobre a relação entre individualismo e subjetivismo, ver, por exemplo: RENAUT, Alain. L’ère de l’individu. Paris: Gallimard, 1989. 68) ALEGRE MARTÍNEZ, Miguel Ángel. Los deberes en la Constitución española: esencialidad y problemática. Teoría y Realidad Constitucional, n. 23, 2009, p. 271.

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dada em noções como responsabilidade, solidariedade, fraternidade, cooperação, valores e alteridade. Isso quer dizer que o real sentido da existência de deveres está em como cada pessoa percebe o seu papel na sociedade e como se relaciona com as outras pessoas. Se há uma precedência dos direitos sobre os deveres, destacando uma exaltação do eu (ego) em prejuízo do outro (alter), é possível considerar haver uma crise de valores na sociedade,71 seria interessante que se voltasse a atenção para os deveres quando um direito não puder ser exercido. Em uma sociedade baseada na solidariedade, cooperação e valores, seria interessante que se repensassem os deveres, inclusive como condições para o exercício adequado dos direitos, fomentando a prática cidadã de mútua cooperação em relação ao patrimônio natural e aos recursos ecológicos que permitam valorização de proteção ambiental e uma melhor qualidade de vida aos integrantes dessa comunidade. O que se observa em relação ao meio ambiente, o qual se funda, enquanto objeto de estudo do ramo jurídico, em noções como responsabilidade, solidariedade, cooperação, e alteridade, bem como fraternidade. Isso se extrai especialmente do art. 225 da Constituição de 1988, como se pode observar logo em seu caput (imposição ao Poder Público e à coletividade do dever de defender e preservar o meio ambiente para as atuais e as futuras gerações), como em seus parágrafos, nos quais se estabelecem as incumbências do Poder Público em matéria ambiental (o §1º trata sobre a preservação e a manutenção do patrimônio ambiental), a responsabilidade de todos de recuperar o meio ambiente degradado (§§2º-3º e 6º), bem como o uso do meio ambiente (§§4º-5º). Os princípios e valores, tanto positivados quanto construídos pelos tribunais, que regem as relações com o meio ambiente, especialmente no que se refere ao dever de protegê-lo, têm íntima relação com o projeto teórico de Dworkin que coloca o Direito como integridade. Isso porque, para ele, “(...) se todos estamos em comunidade e nos vemos como membros de uma comunidade de princípios, profundamente divididos quanto aos projetos individuais de felicidade, mas unidos quanto a um projeto coletivo comum, qual seja, tentar tornar essa comunidade a melhor que ela pode, de modo a nos orgulharmos de fazer parte dessa comunidade, porque ela, inclusive, nos respeita, então temos que ser responsáveis uns pelos outros, devendo fiscalizar as ações estatais e as ações de nossos parceiros de empreendimento comum”.72 A isso se

69) BUSCH VENTUR, Tania. Deberes constitucionales. Revista de la Facultad de Ciencias Jurídicas de la Universidad Católica de Salta, n. 1, 2011, p. 64.

71) ROBLES, Gregorio. Los derechos fundamentales y la ética en la sociedad actual. Madrid: Civitas, 1997, p. 91-92, 119 e 125.

70) SIQUEIRA, Julio Pinheiro Faro Homem de. Deveres fundamentais: uma revisão de literatura, 2014 (no prelo).

72) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 23.

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pode chamar de “democracia como parceria”.73 E a construção e preservação do meio ambiente depende essencialmente desse tipo de parceria. Em Dworkin, a questão da cooperação é imprescindível, especialmente para explicar a relação entre o Direito e a Moral e sua complementaridade na formação do Direito como integridade, bem como da comunidade de princípios. A proposta construída pelo autor se baseia no diálogo, pressupondo que todos os indivíduos de uma comunidade sejam respeitados em suas escolhas individuais,74 pois todos adotam um consenso mínimo de que o Direito é formado por um conjunto coerente de princípios, os quais visam garantir o igual respeito e consideração de um indivíduo por todos e de todos por um.75 O consenso mínimo ou o conjunto coerente de princípios no sistema ambiental brasileiro, parece ser, nesse sentido pela regra da proteção, que estabelece um dever (dever de proteção do meio ambiente) e que deve ser interpretada à sua melhor luz, para se construir um sistema de efetiva proteção ao meio ambiente. Em suma, tanto o STF quanto o STJ parecem ter interpretado à Constituição dentro daquilo que Dworkin propôs, coadunando com a concepção de meio ambiente aqui proposta como sendo um conjunto de agentes físicos, químicos e biológicos e de fatores sociais que podem exercer efeitos, diretos ou indiretos, imediatos ou mediatos, sobre todos os seres vivos (fauna, flora e seres humanos), de maneira que é preciso agir com responsabilidade e compromisso para que no presente se consiga extrair as lições do passado e se possa ajudar a construir um futuro melhor.

H

Conclusão

Ao expor sobre o processo decisório juntamente com a questão ambiental, podemos destacar a contribuição teórica de Dworkin em relação aos princípios (inclusive aqueles constitucionalizados e institucionalizados em uma sociedade) e a construção de uma esfera pública para a comunicação democrática e institucionalizada discursivamente, bem como, para a convivência e diálogo que considere a complexidade de argumentos e interações dos diversos atores sociais. 73) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 23. 74) OMMATI, José Emílio Medauar. Uma teoria dos direitos fundamentais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 80.

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Dworkin constrói sua teoria, que considera a Constituição como a construção de uma comunidade política de princípios e o Direito como prática interpretativa. Ele procura demonstrar que a filosofia do Direito e filosofia política não são disciplinas desvinculadas da prática, e que através desse reconhecimento é possível desenvolver uma ligação de forma mais profunda, esclarecedora e íntegra entre a prática e a teoria pelos juízes e cidadãos em tribunais de decisões. Assim, mesmo que inexistam regras ou leis expressas e minuciosas que procurem instruir ou detalhar determinados comportamentos esperados em uma comunidade, já que a lei não traz por si só a solução dos problemas e de todos os parâmetros, não sendo o “ponto de chegada”, mas sim um “ponto de partida” que inaugura e tematiza as discussões e reflexões de pessoas em uma sociedade democrática, mediante os princípios que regem as práticas sociais e a condição interpretativa do direito não há espaço ou lacuna para um poder amplamente discricionário dos juízes ao decidir um caso concreto. Na dimensão ambiental no Estado democrático de direitos, a interpretação principiológica considera o Direito como integridade para tratar sobre a integridade do meio ambiente. Podemos dizer que as vivências de casos concretos podem trazer uma percepção da adequação do processo decisório às exigências democráticas comunicativas e aprendizado discursivo para sua legitimidade, além da garantia de princípios e direitos fundamentais. Conforme visto na aplicação prática da teoria de Dworkin, tanto o STF quanto o STJ em várias decisões assumem a importância do tratamento deontológico do compromisso e do princípio constitucional em relação a um meio ambiente ecologicamente equilibrado para construir uma visão sobre a proteção da integridade do meio ambiente com certo enfoque sobre deveres fundamentais, ainda que não anuncie isso expressamente em seus julgados. Nesse sentido, é possível afirmar que a Constituição brasileira de 1988 abre espaço para o exercício interpretativo em uma comunidade política, primando pela consideração entre seus membros a partir de um processo decisório interpretativo e participativo que exercita a Constituição em permanentes discussões de uma comunidade política e fraterna que revisita interpretações históricas de seus princípios ao mesmo tempo em que os aplica visualizando a construção do futuro, o que propicia uma coerência institucional entre gerações ao longo do tempo e adequação da jurisdição constitucional brasileira às exigências do Estado democrático de direitos. No caso ambiental isso é bastante evidente, já que a leitura feita pelos tribunais coaduna-se com a registrada no texto constitucional originário.

75) OMMATI, José Emílio Medauar. Teoria da Constituição. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 146. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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A Educação em Meio Ambiente como um dos Pilares para a Cidadania Jackelline Fraga Pessanha1 Faculdade São Geraldo Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes2 Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A escola na contemporaneidade. 2 A escola como formadora do cidadão que respeita o meio ambiente. 3 A Educação em Direito Ambiental como Alicerce do Desenvolvimento Sustentável e da Cidadania. 4. Conclusão

1) Mestre em Direitos e Garantias Fundamentais pela Faculdade de Direito de Vitória. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito de Vila Velha. Professora da Faculdade São Geraldo. Assessora do Ministério Público do Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected]. 2) Mestrando em Direito pela Universidade Federal do Estado do Espírito Santo – UFES. Especialista em Direito Processual Civil e Graduado pela Faculdade de Direito de Vitória - FDV. Membro da Diretoria, na condição de Vice-Secretário Geral, da Academia Brasileira de Direitos Humanos - ABDH. Assessor do Ministério Público Federal no Estado do Espírito Santo. E-mail: [email protected].

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Introdução

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A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Como observado no trecho acima, a educação é um importante instrumento de formação das crianças e adolescentes para o exercício de sua cidadania. Não é à toa que o art. 225, da Carta Constitucional o trouxe com a redação que se observa. Há que se perceber que muitos são os conhecimentos diuturnamente difundidos nas salas de aula espalhadas por todo o país. Contudo, algumas prioridades devem ser levadas em consideração, exatamente, com o foco na formação do indivíduo, razão pela qual a educação em meio ambiente é fundamental. É diante desse contexto que se insere o presente trabalho. Tem-se como foco a necessidade que as escolas de ensino fundamental e médio, sejam públicas ou particulares, tenham em sua grade curricular disciplinas que incentivem a educação em meio ambiente. Para tanto, o artigo se divide em três pontos chaves. No primeiro tópico, é abordada a escola na contemporaneidade e a importância da educação para inclusão social. No segundo tópico, a abordagem diz respeito ao meio ambiente e a forma como ele tem sido tratado em âmbito nacional e/ou ambiental. Por último, no terceiro tópico, a abordagem traz uma discussão da educação em meio ambiente para formação do cidadão. Como marco teórico para o debate relativo à educação, são evidenciados os ensinamentos de Paulo Freire, através de uma análise hipotético-dedutiva do fenômeno da educação ambiental.

1) A Escola na Contemporaneidade Na atualidade a escola possui um papel mais substancial do que, efetivamente, acredita ter. Isso porque, vários são os pais que relegam à escola a formação total de seus filhos, na medida em que creem que a formação agregada aos valores da convivência da sociedade advém, exclusivamente, da educação escolar. Obviamente que, esse pensamento se mostra retrógrado e absolutamente contrário a real importância da educação para a formação da cidadania do indivíduo. O próprio art. 225 da Carta Constitucional, como já enunciado anteriormente, já estabelece que a educação deve ser fomentada em colaboração Direitos Humanos e Meio Ambiente

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com a coletividade. Assim sendo, é gritante e latente a necessidade de que a educação escolar se mostre como um dos sustentáculos. A educação, como forma de inclusão social, foi um dos grandes ensinamentos de Paulo Freire. Ele pretendia construir uma educação democrática, onde quaisquer pessoas poderiam estudar e obter os conhecimentos necessários à sua qualificação, oferecendo condições de acesso e de permanência escolar a todos os estudantes. Isso porque, no Brasil, a escola “é vista como a instituição que tem a missão de promover a unidade nacional través da transmissão de conteúdos unificados, de valores culturais e morais”3. E, neste sentido, Paulo Freire4 descreve com clareza as diferenças entre a concepção bancária e a problematizadora, ou seja, a primeira não admite o nivelamento entre professor e aluno, uma vez que o professor é superior aos alunos. A segunda concepção é a mais fundamentada, pois estimula a criatividade, pesquisa e reflexão dos alunos, sobre a verdadeira realidade, proporcionando um pensamento crítico e o professor funciona como mediador das discussões e debates entre os mesmos, ocorrendo a mútua humanização de conhecimentos. Neste contexto, “A concepção bancária não pode admitir uma tal nivelação e isto necessariamente. Dissolver a contradição professor -aluno, mudar o papel daquele que deposita, prescreve, domestica, colocarse como estudante entre os estudantes equivale a minar a potência de opressão e servir à causa da libertação. A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se comprometem na procura e na transformação criadoras. A educação crítica considera os homens como seres em devir, como seres inacabados, incompletos em uma realidade igualmente inacabada e juntamente com ela. Por oposição a outros animais, que são inacabados mas não históricos, os homens sabem-se incompletos. Os homens têm consciência de que são incompletos, e assim, nesse estar inacabados e na consciência que disso têm, encontram-se as raízes mesmas da educação como fenômeno puramente humano. O caráter inacabado dos homens e o caráter evolutivo da realidade exi-

3) PAULA, Cláudia Regina de. Educar para a diversidade: entrelaçando redes, saberes e identidades. Curitiba: Ibpex, 2010. p. 17. 4) FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980. p. 80-84. Obra dedicada ao Instituto Terra

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gem que a educação seja uma atividade contínua5”. Dessa maneira, é através da educação formal para a solução dos conflitos existentes que cada ser humano poderá se desenvolver, com a criação de uma nova realidade social em que está incluída passando a ser crítico e consciente da realidade em que vive. Isso porque a educação abre portas para o aprimoramento intelectual, social e político, além de inserção no mercado de trabalho. Mas tal conscientização não se finda nesse contexto, haja vista que o homem é uma pessoa inacabada educacionalmente. Com essa nova realidade deve-se tornar objeto de uma nova reflexão e, assim, desenvolver-se mais em seu aprendizado. Corroborando o entendimento firmado, Dermeval Saviani6 descreve que “a educação é direito de todos e dever do Estado. O direito de todas à educação decorria do tipo de sociedade correspondente aos interesses da nova classe que se consolidara no poder: a burguesia. Tratava-se, pois, de construir uma sociedade democrática, de consolidar a democracia burguesa. Para superar a situação de opressão, própria do ‘Antigo Regime’, e ascender a um tipo de sociedade fundada no contrato social celebrado ‘livremente’ entre os indivíduos, era necessário vencer a barreira da ignorância. Só assim seria possível transformar os súditos em cidadãos, isto é, em indivíduos livres porque esclarecidos, ilustrados. Como realizar essa tarefa? Por meio do ensino. A escola é erigida no grande instrumento para converter os súditos em cidadãos”. A educação e a família são consideradas os pilares da sociedade, haja vista ser por meio deles que ocorre o desenvolvimento intelectual e social dos seres humanos, convertendo-os em sujeitos preparados para exercer direitos e obrigações dentro da sociedade. Mas, para isso, a educação deve ser efetiva, através de mecanismos que realmente desenvolvam os estudantes. Neste sentido, Eliane Ferreira de Souza7 descreve que o direito à educação “é pressuposto para a sobrevivência do Estado de Direito, porque ele enseja a própria condição de desenvolvimento da personalidade humana de cada indivíduo, consequentemente, da cidadania”. A educação compreende um processo de aprendizagem e transmissão de conhecimentos às crianças e aos adolescentes, para que assim possam desenvolver variados ramos do saber humano, o que estimula a capacidade de apren-

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dizado, bem como a criação e difusão de ideias e ideais de formação pública, que futuramente concretizarão sua cidadania. A escola, juntamente com a educação realizada pela família, sociedade e Estado são de fundamental importância para a mudança de rumos da sociedade, pois somente com cidadãos educados passa-se a ter novos valores sociais e pluralidade de pensamentos para o debate e crescimento intelectual de todos. Além disso, a escola acompanha as crianças e os adolescentes durante horas diárias e anos da sua vida. Sendo assim, precisa ser um ambiente acolhedor, sem qualquer preconceito, para ser um local de debate e reflexão, em que famílias, educadores e alunos convivem em harmonia. De acordo com Roberto João Elias8“o termo educação deve ser entendido como o trabalho sistematizado seletivo e orientador, pelo qual nos ajustamos à vida de acordo com as necessidades ideais e propósitos dominantes”. Por isso a educação visa à inclusão de todas as crianças e adolescentes na escola, justamente para cumprir suas necessidades básicas e, neste contexto, a educação inclusiva pretende a captação de todos os alunos, com diversas capacidades, interesses, características e necessidades, para que possam, no decorrer do seu processo de aprendizagem, professores e alunos aprenderem juntos, com o verdadeiro sentido da igualdade de oportunidades. A educação é direito de todos e dever do Estado e da família, com a colaboração da sociedade, ao promover mecanismos para o desenvolvimento de crianças e adolescentes em fase de maturidade intelectual, como forma de “evolução” de cada indivíduo. Mas não se pode esquecer que a educação, em tempos anteriores, era vista como modo de inculcação cultural, onde cada meio cultural desenvolvia a educação do modo que bem entendia. A título de exemplo os jesuítas ensinavam para que todos pudessem ser evangelizados, de acordo com as normas e teorias da igreja católica, sem, contudo, verificar a cultura da sociedade brasileira. Assim, a criança e o adolescente têm direito a uma educação digna de desenvolver a sua personalidade e cidadania, uma vez que é obrigação estatal que o ensino primário seja obrigatório e gratuito, para encorajar a organização e ascensão ao ensino secundário e superior, pois a escola deve ser um ambiente de respeito aos direitos e a dignidade de cada criança e adolescente.

5) FREIRE, Paulo. Conscientização: teoria e prática da libertação: uma introdução ao pensamento de Paulo Freire. 3. ed. São Paulo: Moraes, 1980. p. 81 6) SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 41. ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2009. p. 05. 7) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 19. Direitos Humanos e Meio Ambiente

8) ELIAS, Roberto João. Direitos fundamentais da criança e do adolescente. São Paulo: Saraiva, 2005. p. 79 Obra dedicada ao Instituto Terra

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2) A Escola como Formadora do Cidadão que Respeita o Meio Ambiente

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No cotidiano do operador do direito, por muitas vezes, é possível vislumbrar um grande descaso das autoridades públicas para com a população. Problemas relacionados à saúde, ao saneamento básico, à educação, à moradia são os mais comuns. Quando se está a tratar do meio ambiente, a situação se mostra ainda mais calamitosa. Na medida em que não existem instrumentos efetivos para a contenção dos avanços e degradação do meio ambiente, uma medida se torna o foco do problema: a educação ambiental. Ocorre que, por mais que se vislumbrem dificuldades e os meios de comunicação noticiem problemas, a postura passiva da sociedade ainda se mostra um tanto quanto de aceitar muito calmamente essas ocorrências e não buscam uma solução ao problema latente. Enquanto algumas pessoas, com um espírito mais revolucionário, organizam passeatas, manifestações públicas na busca por direitos, outros permanecem em suas residências, apenas criticando as ações, sem qualquer preocupação, efetiva com o que está sendo reivindicado. Será que realmente todas as manifestações que surgem, são em decorrência de um grupo de “baderneiros” sem mais nada para fazer? A resposta é clara e, obviamente, negativa. É exatamente por esse motivo que as escolas de ensino fundamental e médio possuem um importante papel nesse contexto. É através de práticas simples na escola que será possível a formação do cidadão pensante quanto ao meio ambiente. Perceba-se que “educar para a cidadania exige educar para a ação políticosocial e esta, para ser eficaz, não poderá ser somente individual, nem individualista”9. Isso se torna absolutamente profundo. E se torna por um simples motivo, a visão que se deve ter é uma visão coletiva, tendo em vista que para se ter um meio ambiente saudável e equilibrado, são necessárias ações simples de cada um: imagine que se cada cidadão evitar de jogar um pedaço de papel nas ruas, quantas toneladas de papel não irão para os bueiros? Reflita-se que, todo esse papel que é eliminado indevidamente, pode ser responsável por dificultar o escoamento de águas de chuva, ou mesmo auxiliar a proliferação de insetos e/ou outros animais nocivos à saúde da população? É nas escolas que ações de conscientização podem ser realizadas para 9) CANDAU, Vera Maria et. al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos humanos. 3.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 14. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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que as crianças e adolescentes possam se desenvolver já com essa ideia inerente à sua condição em sociedade. Há que se compreender que “o ensino e a educação, em seu sentido mais amplo e integral, constituem a essência da promoção dos direitos humanos, base incontestável e condição necessária, ainda que não exclusiva nem suficiente, para alcançar o respeito e a vigência desses direitos”10. Entender os direitos e exigir que eles sejam cumpridos é um dever de cada cidadão. Para que haja uma convivência harmônica em sociedade, regras são estabelecidas com o intuito de que o respeito à individualidade do semelhante seja respeitado e, assim, surge a premissa de que “o seu direito termina, quando começa o do outro”. Baseando-se nesse respeito mútuo em sociedade, tem-se, claramente, a noção real de cidadania. Nada mais evidente, portanto, que a cidadania implica ao mesmo tempo em direito (de estabelecer livremente as regras da convivência interpessoal, política, sócio econômica, cultural e ecológica) e em dever (de respeitar e zelar por essas normas de convivência que os próprios cidadãos e cidadãs estabelecem, diretamente ou através de representantes legítimos)11. Nesse contexto a escola atual tem deixado a desejar. Não há uma real demonstração de como as escolas tem trabalhado em relação à cidadania com as crianças e adolescentes na atualidade. O que se percebe é que não há uma disciplina dentro da grade curricular que tenha condições de suprir a falha que a sociedade tem delegado à escola. Por esse motivo, planejamento curricular de ações de educação para a cidadania torna-se fundamentais para garantir que o cidadão cresça com outra visão de mundo. Logicamente que, aqui, o foco é a análise da educação em meio ambiente. Mas a cidadania que se pretende a discussão escolar deve ser de maneira mais ampla. O que se almeja é que a escola seja o local, de fato, de formação de um cidadão participativo, com uma visão futura de coletividade. Pensar de maneira individual e imediatista tem feito com que grandes tragédias tenham se perpetuado na sociedade contemporânea. Com os avanços tecnológicos a premência por uma resposta instantânea fez com que a sociedade passasse a alternar sua visão de mundo, para aquilo que traz uma resposta rápida. Há que se perceber, contudo, que a formação do cidadão merece uma formação gradual e efetiva. O que se pretende é que as crianças e adoles10) RAYO, José Tuvilla. Educação em Direitos Humanos: Rumo a uma perspectiva global. 2. ed. Porto Alegre: Artmed, 2004. p. 164. 11) MEDEIROS, Antonio José Castelo Branco. Idéias e práticas da cidadania. União, Piauí: CERMO, 2002.p. 28. Obra dedicada ao Instituto Terra

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centes em fase escolar possam ter visões a longo alcance. Portanto, a percepção de educação que se pretende incutir na atual sociedade é que a escola tem um papel fundamental de “[...] formar pessoas capazes de construir novos valores, atitudes e comportamentos, fundados no respeito integral aos direitos universais do ser humano, independentemente de raça, etnia, condição social, gênero, orientação sexual e opções política e religiosa. [...]12”. Em outra visão, é através da percepção desses novos valores e comportamentos que a sociedade terá condições de evoluir. Para evoluir, se faz presente que a educação para a cidadania passe a ter relevância na educação de base atual. Ao contrário do que se analisa, o simples fato de colocar latas de lixo que dividem metais de papéis, plásticos e materiais orgânicos, já transparece a todos uma visão conscientizadora de reciclagem. O que não se percebe é que ao se jogar um determinado produto na natureza, não se pensa o tempo que ele durará para retornar ao estado natural da matéria. Da mesma forma, muitas instituições se esquecem de despejar seus resíduos em locais próprios, contaminando em muito o meio ambiente, pensando em uma maneira de eliminar, a qualquer custo, os produtos que são indesejáveis à produção. Mas, se esquecem do principal, as consequências danosas que essa atitude pode gerar a coletividade. Diante dessa análise, percebe-se que ao se falar em levar conhecimentos mínimos de mudar, efetivamente à cultura não civilizatória atual, transportando uma visão individual, para uma coletiva. Rezende Filho e Câmara Neto13, ao tratarem do tema relacionado à cidadania na atual conjuntura, deixam claro que “Hoje, uma variedade de atitudes caracteriza a prática da cidadania. Assim, entendemos que um cidadão deve atuar em benefício da sociedade, bem como esta última deve garantir-lhe os direitos básicos à vida, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, trabalho, entre outros. Como consequência, cidadania passa a significar o relacionamento entre uma sociedade política e seus membros”. É por esse motivo que a escola possui toda sua importância para a alteração dessa concepção atrasada e ainda arraigada no tecido das classes sociais. Em

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decorrência disso é que o próximo tópico tem o condão de analisar e demonstrar como a educação em direito ambiental, com foco no desenvolvimento sustentável e cidadania, pode mudar o futuro.

3) A Educação em Direito Ambiental como Alicerce do Desenvolvimento Sustentável e da Cidadania

Como ponto de partida, é importante perceber o papel desenvolvido pela educação para o exercício da cidadania. Neste alicerce, Maria Cristina de Brito Lima14 ensina que “a educação pode se transformar em um instrumento extremamente hábil para o pleno desenvolvimento da pessoa, conduzindo-a ao exercício da cidadania e expandindo a sua qualificação para o trabalho, e do País, que passará a contar com cidadãos conscientes do seu papel”. É por isso, que no Brasil a Constituição Federal incumbiu o dever de proporcionar a todas as crianças e adolescentes a educação básica, na busca da cidadania do futuro, sendo um dever constitucional à abertura de mecanismos e formas de conquistar uma melhor educação para todos. Desta maneira, a Constituição brasileira entende a educação como matriz social, de acordo com o artigo 6º, o que ancorado nos dizeres de André Ramos Tavares15 “Como típico direito social, o direito à educação obriga o Estado a oferecer o acesso a todos os interessados, especialmente àqueles que não possam custear uma educação particular. Os direitos sociais ocupam-se, prioritariamente, dentro do universo de cidadãos do Estado, daqueles mais carentes”. Mais que isso, se percebe que uma sociedade capaz de analisar criticamente seu contexto social, é capaz de mudar o futuro e buscar a valorização e respeito a direitos. Inúmeros são os descasos para com o meio ambiente atual e qual a solução para o problema? Muitas das vezes nenhuma. Enquanto empresas a todo o tempo despejam resíduos químicos e esgoto em afluentes de rios, ou mesmo no ar atmosférico, o que a sociedade tem feito para solucionar o problema. Na maioria dos casos, absolutamente nada. E isso porque, não há uma cultura social, desde a educação de base em exigir o res-

12) MONTEIRO, Aída; MENDONÇA, Erasto Fortes. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos. In: Brasil Direitos Humanos, 2008: A realidade do país aos 60 anos da Declaração Universal. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, 2008. p. 29.

14) LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como Direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.p. 02.

13) REZENDE FILHO, Cyro de Barros; CÂMARA NETO, Isnard de Albuquerque. A Evolução do Conceito de cidadania. Revista Ciências Humanas. Taubaté V. 7, n. 02, 2001. p. 06.

15) TAVARES, André Ramos. Direito fundamental à educação. Disponível em: , acesso em 30/04/2014. p. 07.

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peito aos direitos, seja para aqueles que dizem que não o buscam, porque nunca o Estado cumpre com o que promete, seja porque nunca foram ensinados a exigir os seu cumprimento. O Estado, para essa última parcela da população, é visto como um “ser misterioso” e inatingível. A educação inicia um processo de conhecimento e conquista das crianças e dos adolescentes de uma cidadania digna, bem como poder usufruir dos direitos fundamentais que lhes são garantidos pela Constituição, pois sem educação não há como efetivar outros direitos sociais. O direito à educação é resultante de uma matriz constitucional, confirmada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, pois garante às crianças e aos adolescentes estudar e aprender de forma digna, o que influenciará na convivência em sociedade. È nesse ponto que se percebe a fundamental importância dos ensinamentos de Dalmo de Abreu Dallari16, na medida em questionando “Preparar para a cidadania não é, portanto, apenas dar a informação sobre os cargos eletivos a serem disputados e sobre os candidatos a ocupá-los, mas também informar e despertar a consciência sobre o valor da pessoa humana, suas características essenciais, sua necessidade de convivência e a obrigação de respeitar a dignidade de todos os seres humanos, independentemente de sua condição social ou de atributos pessoais”. É aqui que se percebe que cidadania não se restringe à participação nas eleições, com o voto. Obviamente que, o exercício da cidadania também se transfigura na concepção jurídica, como o direito a votar e a ser votado. Contudo, a visão de cidadania, não pode ser tão restrita a ponto de inobservar outras questões básicas como o direito a ter um meio ambiente sustentável e equilibrado. A cidadania também é respeitar e exigir respeito ao meio ambiente que nos circunda. Ao se observar qualquer violação, principalmente por se tratar de direito fundamental e social, cabe a todos os cidadãos, saber fazer cumprir o comando que a própria Carta Constitucional traz em seu texto como relevante. A escola, para conseguir obter uma melhoria no ensino, merece passar por algumas transformações. Isso porque o desenvolvimento de crianças e adolescentes com preceitos de cidadania é o foco que deve ser almejado pelo Estado. É por esse motivo que “Torna-se necessária a construção de uma escola que forma crianças e jovens construtores ativos da sociedade, capazes de viver no dia-a-dia, nos distintos espaços sociais, incluído a escola, uma cidadania cons-

ciente, crítica e militante. Isto exige uma prática educativa participativa, dialógica e democrática, que supere a cultura profundamente autoritária presente em todas as relações humanas e, em especial, na escola17”. Mais que isso, ao se estabelecer que o espaço da escola seja um espaço efetivamente ativo, com absoluta certeza a sociedade tende a evoluir em paralelo. Uma sociedade crítica e reflexiva, capaz de entender quais são seus direitos, tendo um espaço escolar capaz de garantir de maneira imparcial o levantamento de ideias e a formação do indivíduo, irá, consequentemente, fortalecer as gerações futuras mais evoluídas em termos de respeito à concepção de mundo. Não se objeta da lógica de que existem fortes influências governamentais no sentido de “brecar” até certo ponto esse desenvolvimento crítico-reflexivo. Isso porque, não é interessante aos anseios “politiqueiros” que os cidadãos possam conhecer seus direitos e tenham condições de exigi-los. Muito embora, os governantes sejam eleitos pelo voto popular, democraticamente, os mesmos só conseguem se manter no poder se tiverem a aprovação popular. Se uma população insatisfeita passa a exigir mudanças de ordem prática que não estão na agenda governamental, a instabilidade institucional acaba se instaurando. É por esse motivo, que os fins almejados de construção de uma cidadania efetiva, em especial no respeito ao meio ambiente, deve ser a pauta de reivindicações. A escola torna-se um importante produto para fomentar essa evolução, tendo em vista que “[...] Esse processo educativo deve, ainda, visar à formação do cidadão participante, crítico, responsável e comprometido com a mudança daquelas práticas e condições da sociedade que violam ou negam os direitos humanos. Mais ainda, deve visar à formação de personalidades autônomas, intelectual e afetivamente, sujeitos de deveres e de direitos, capazes de julgar, escolher, tomar decisões, serem responsáveis e prontos para exigir que não apenas seus direitos, mas também os direitos dos outros sejam respeitados e cumpridos18”. Mais que isso, a escola, desde que fundada nos pilares de desenvolvimento do cidadão, deve tecer uma linha de busca de meios para garantir que suas ações tenham importância para a formação do indivíduo. De nada adianta ações que não sejam capazes de fazer refletir questões envolvendo o meio ambiente se não há como colocá-las em prática.

16) DALLARI, Dalmo de Abreu. Um breve histórico dos direitos humanos. In: CARVALHO, José Sérgio (org.). Educação, Cidadania e Direitos Humanos. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004. p.42.

18) BENEVIDES, Maria Victoria. Educação em Direitos Humanos: de que se trata? São Paulo, 2000. Disponível em: http://www.hottopos.com/convenit6/victoria.htm. Acesso em 15 mar. 2014. p. 03.

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17) CANDAU, Vera Maria et. al. Tecendo a Cidadania: oficinas pedagógicas de direitos humanos. 3.ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000. p. 15,

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Passeios, visitas a ecossistemas, a parques botânicos, fomentar o cultivo de plantas e hortaliças entre as crianças, estabelecer conscientização em relação à utilização da água, já são os alicerces iniciais desse contexto. José Romão e Paulo Padilha19 (1997, p. 85), já demonstram que o simples fato de se pensar em estruturas escolares capazes de garantir ações voltadas à cidadania, já mostra um exercício da mesma. Não mais que isso, a cidadania pautada no estudo das questões ambientais, é um dos focos que merecem trabalho e análise entre as crianças e adolescentes uma vez que “planejar a escola de forma socializada é exercitar a cidadania, pois implica a tomada de decisões, em envolvimento com as ações do cotidiano escolar e em avaliações dos serviços prestados à população, o planejamento deve começar pela inserção de toda a sociedade no debate democrático sobre as questões relativas não só ao processo de ensino aprendizagem, mas também em relação às questões administrativas e financeiras da escola e às questões da própria sociedade em que ela se insere, considerando sempre os condicionantes socioculturais e políticos que influenciam e afetam diretamente o cotidiano escolar”. Aqui se percebe o importante papel que a escola possui na educação do indivíduo. É ela o início, o meio e o fim da formação do indivíduo. Obviamente que não se exclui dessa formação de cidadania a família, mas deve-se perceber que é na escola que as crianças e adolescentes passam a maior parte do tempo e é ali que poderão passar a ter uma nova visão de mundo. Não mais que isso, muitas das famílias são compostas por pais e mães que sequer concluíram o ensino fundamental. Portanto, são essas crianças que terão condições de repassar em suas casas, os ensinamentos adquiridos na escola no que se refere à cidadania. É por isso que “Precisamos da educação para nos prepararmos, para construirmos, de forma criadora e transformadora, um conhecimento que possibilite a nossa intervenção na sociedade de forma plena, justa e solidária. Essa participação ativa na sociedade é a forma mais clara e consequente, o melhor modo de desempenharmos o nosso papel no exercício da cidadania.20” Assim sendo, é que o direito à educação torna-se o foco de todo o debate. Constitucionalmente garantido, o direito à educação acaba sendo o pilar bási-

co da formação do cidadão. Isso quer dizer que o Estado deve garantir a formação básica do indivíduo através da garantia desse direito, de forma a que o indivíduo que nasce desprovido de qualquer conhecimento, possa desenvolverse. Neste sentido, Elaine Ferreira de Sousa21 estabelece que “O direito à educação, como pertencente à ordem dos direitos fundamentais, é essencial à ordem jurídica nacional. É um tipo de direito que ultrapassa o próprio sistema nacional. Essa superação do sistema nacional diferencia-se em dois aspectos: um substancial e outro sistemático. Os direitos fundamentais ultrapassam o sistema nacional de forma substancial porque, se eles devem fazer jus às exigências que lhes são estabelecidas, hão de contemplar os direitos humanos”. O processo de formação da criança e do adolescente inicia-se com a educação, que pode ser familiar, social, cultural e/ou escolar. Isso porque “a educação consiste num processo de desenvolvimento da pessoa que implica a boa formação moral, física, espiritual e intelectual, destinando o seu crescimento integral para o melhor exercício da cidadania e aptidão para o trabalho”22. A educação, por isso, é um direito fundamental constitucionalmente assegurado a todas as crianças e adolescentes, com o fundamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que é por meio da educação que nascem os cidadãos do futuro, na eterna busca de uma sociedade livre, justa e solidária. De acordo com Maria Cristina de Brito Lima23 “a Constituição Brasileira de 1988 uniu o direito público subjetivo à educação a dois dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito: a cidadania e a dignidade da pessoa humana. Por sua vez, esses princípios tendem a se concretizar com a observância dos objetivos fundamentais do Estado: de construção de uma sociedade livre, justa e solidária; de garantia do desenvolvimento nacional; de erradicação da pobreza e da marginalização, com redução das desigualdades sociais e regionais; e por fim, de promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.” O direito fundamental à educação se for realmente concretizado pelo Estado Brasileiro, como forma de aplicação dos princípios e objetivos fundamentais do Estado Democrático, influenciará num melhor futuro nacional, com crianças e adolescentes melhores preparados para enfrentar o trabalho e

19) ROMÃO, José; PADILHA, Paulo. Planejamento Socializado Ascendente na Escola. In: GADOTI, Moacir e ROMÃO, José E. (org.). Autonomia da Escola: princípios e propostas. 2ª ed., São Paulo: Cortez, 1997.p. 85.

21) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 37-38.

20) ALVIM, Márcia Cristina de Souza. Educação, Cidadania e o Acesso à Justiça. Revista Mestrado em Direito. Osasco, ano 6, n.2, p.97-106, 2006. Disponível em: www.fieo.br/ edifieo/index.php/rmd/article/viewfile/39/77. Acesso em: 20 mar. 2014. p. 11 Direitos Humanos e Meio Ambiente

22) TEIXEIRA, Anísio. Educação não é Privilégio. 5. ed. Rio de Janeiro: UFRJ. 2001, p. 101 23) LIMA, Maria Cristina de Brito. A educação como Direito fundamental. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.p. 08. Obra dedicada ao Instituto Terra

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exercer com dignidade a sua cidadania, pois “a educação se apresenta como poderoso instrumento de transformação e inclusão social e, consequentemente, como pressuposto para o exercício dos demais direitos fundamentais”24. Por isso, a educação é considerada o futuro da sociedade, pois é por meio dela que cada indivíduo capta o conhecimento para promover o desenvolvimento da sua personalidade e da cidadania, desenvolvendo em cada um a sua consciência crítica e a livre determinação, para que, assim, possa estar diante de um verdadeiro Estado Democrático de Direito25. A educação busca garantir a todos o seu pleno acesso, uma vez que é por meio do conhecimento que cada indivíduo se tornará cidadão, usufruindo de maneira correta a sua cidadania, bem como conhecendo os seus direitos constitucionalmente previstos. Entende-se, portanto, que a educação detém uma função de conscientização e reflexão crítica do que está sendo ensinado, para que os educandos possam participar ativamente na sociedade, tendo conhecimentos dos seus direitos e exercendo a sua cidadania plena. Portanto, o objetivo da Constituição e do Estatuto da Criança e do Adolescente ao disciplinar sobre a educação, foi demonstrar de que maneira devem agir as escolas públicas e particulares, o Estado e a família, para que a educação possa transformar um adulto mais consciente e participativo. A educação escolar tem a função precípua de garantir a todas as crianças e adolescentes a convivência decente em sociedade, podendo se manifestar sobre os assuntos cotidianos e importantes no seio social, pois “a educação escolar emergiu na modernidade como a forma principal e dominante de educação, erigindose em ponto de referência e critério para se aferir as demais formas de educar”26. Assim, na concepção de Costa e Duarte27 o que se almeja é que a educação seja não só ao acesso pleno, embora passivo, a um determinado conjunto de direitos existentes. Ao contrário ela supõe uma participação ativa na luta pelo cumprimento de direitos já reconhecidos, na luta pelo reconhe24) ARANÃO, Adriano, Direito à educação: A educação como direito fundamental na Constituição Federal de 1988. In: Argumenta: Revista do programa de Mestrado em Ciência Jurídica da FUNDINOPI. nº 9. Jacarezinho, 2008. p. 248. 25) SOUSA, Eliane Ferreira de. Direito à educação: requisito para o desenvolvimento do País. São Paulo: Saraiva, 2010.p. 34. 26) SAVIANI, Dermeval. Escola e democracia: teorias da educação, curvatura da vara, onze teses sobre a educação política. 41. ed. Campinas, São Paulo: Autores Associados, 2009.p. 202. 27) COSTA, Antonio Carlos Gomes da; DUARTE, Cláudio Nunes. Educação para os direitos humanos. Belo Horizonte: Modus Faciendi; Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos e Ministério do Trabalho e do Emprego, 2004, p. 21. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Jackelline Fraga Pessanha m Marcelo Sant’Anna Vieira Gomes

cimento de novos direitos que se tornem historicamente necessários como também por seu reconhecimento e por sua implementação tendo em vista a promoção do bem comum. Diante disso é que a educação em meio ambiente, em especial, com respeito a parâmetros ambientais, se torna um dos focos a serem trabalhados entre as crianças de escolas de ensino fundamental e médio, como busca de desenvolver sua cidadania plena, objetivo traçado pelo legislador constitucional.

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Conclusão

Em suma, percebe-se durante toda a explanação que o foco a ser difundido no que se refere à educação em meio ambiente é um maior aprimoramento da educação escolar. A escola, como fomentadora da formação dos cidadãos, deve ser uma das principais responsáveis por praticar ações inovadoras no sentido de desenvolver pessoas capazes de refletirem criticamente sobre determinados pontos e, assim, tornarem-se cidadãos ativos. Desprovida de qualquer concepção “politiqueira”, a sociedade tende a evoluir na medida em que seus cidadãos passam a ter condições de exigir do Estado o cumprimento dos direitos aos quais ele se propôs a garantir. A população deve passar a ser menos passiva e mais ativa na participação em sociedade. Essa participação não deve se resumir a lidar com o voto. Não se está aqui a afirmar que o sufrágio universal, ou seja, o direito de votar e ser votado não seja exercício de cidadania. Contudo, deve ser propagado que o exercício da cidadania é muito mais amplo que simplesmente essa concepção eleitoreira. Na medida em que as crianças e adolescentes passam a reconhecer seus direitos e os meios de fazer cumpri-los, a sociedade tende a evoluir de maneira mais efetiva. Para tanto, a matriz curricular das escolas de educação de base deve sofrer alterações no sentido de manter disciplinas capazes de desenvolver ações em respeito a preceitos de cidadania. Aqui é que o respeito às questões ambientais se torna o foco da questão. Na medida em que são difundidas métodos e ações curriculares capazes de demonstrar como é o meio ambiente atual e formas mínimas de preservá-lo de maneira saudável, estar-se-á dando um importante passo em busca de cidadãos mais bem conscientizados. Enquanto a escola for responsável por difundir conhecimentos que nenhum proveito trazem ás crianças e adolescentes, em nada servirá a malfadada expressão de formar cidadãos. Já afirma a música de Gabriel, o Pensador: “Manhê! Tirei um dez na prova Me dei bem tirei um cem e eu quero ver quem me reprova. Decorei toda lição, não errei Obra dedicada ao Instituto Terra

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nenhuma questão, não aprendi nada de bom Mas tirei dez (boa filhão!)”. Enquanto a escola só trouxer às crianças e adolescentes ensinamentos que nada alteram suas realidades, que servem apenas para decorar e fazer uma determinada avaliação, mas não geram aprendizado, a cidadania almejada tende ao fracasso.

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Educação Ambiental como Instrumento de Posse de Direitos e Cidadania Margareth Santos Schayder*1 Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Aspectos legais da Educação

Ambiental. 1.1 Finalidades da Educação Ambiental. 1.2 Meio ambiente e cidadania. 2 Sustentabilidade.

2.1 Crise ambiental

e educação. 3 Educação Ambiental e participação social. 4

Ministério Público e Educação Ambiental. Conclusão.

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1) *Graduada em Ciências Biológicas pela Universidade federal do Espírito Santo. Servidora Pública do Ministério Público do Espírito Santo, lotada na Coordenadoria regional do Meio Ambiente e Urbanismo da Região Metropolitana. Pós-Graduada, lato sensu, em Direito Urbano e Ambiental, Fundação Escola Superior do Ministério Público do Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

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Introdução

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A Educação Ambiental, desde a publicação da Lei Federal nº 9795/1999, seu decreto regulamentador, Decreto nº 4281/2002, tem se consolidado na gestão ambiental ganhando notoriedade e reconhecimentos quanto à sua importância estratégica para socialização de informações e conhecimentos, autonomia dos grupos sociais, participação popular e a democratização das decisões. Inegavelmente, a educação no processo de gestão ambiental torna-se elemento estruturante para que haja participação e controle social no processo decisório sobre a destinação dos recursos ambientais na sociedade.2 Pensar em educação no processo de gestão ambiental é desejar o controle social na elaboração e execução de políticas públicas, por meio da participação permanente dos cidadãos, principalmente de forma coletiva, na decisão do uso dos recursos ambientais e nas decisões que afetam à qualidade do meio ambiente. Importa acrescentar que o preceito constitucional determinado no art. 225 da Constituição Federal estabelece ao mesmo tempo “o meio ambiente ecologicamente equilibrado” como direito e “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, também impõe ao Poder Público e a coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Para garantir a efetividade deste princípio, a constituição determina incumbências ao Poder Público e a coletividade que vão desde a preservação e restauração de processos ecológicos até a proteção da fauna e da flora destacando a educação ambiental como instrumento estratégico para conscientização do controle social. O grande desafio da educação ambiental é atuar como agente difusor dos conhecimentos e indutor da mudança de hábitos e comportamentos predatórios, em hábitos e comportamentos tidos como compatíveis com a preservação dos recursos naturais, pois o processo de educação ambiental torna-se eficaz na medida em que possibilita ao indivíduo perceber-se como sujeito social capaz de compreender a complexidade da relação sociedade/ natureza, e comprometer-se a agir em prol da prevenção de riscos. Torna-se então necessário trazer para o processo decisório, como determina a Constituição Federal, todos os atores sociais nele implicados, pois a experiência tem mostrado que a própria sociedade se constitui em um parceiro vital na defesa dos seus recursos naturais, desde que sensibilizada e capacitada para tal. Surge assim o desafio de se fazer cumprir a finalidade da educação ambiental, conforme definida na Constituição Federal, de proporcionar as 2) Lei Federal nº 9795/1999 Direitos Humanos e Meio Ambiente

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condições para o desenvolvimento das capacidades necessárias, para que grupos sociais em diferentes contextos socioambientais do país exerçam o controle social da gestão pública. Neste sentido, no presente estudo, busca-se apresentar a educação ambiental como instrumento estratégico para a socialização de informações, conhecimentos, participação popular e democratização das decisões. Importante mediadora na construção social, oportunizando uma vivencia participativa como um terreno fértil capaz de produzir um sujeito ambientalmente correto, colocando-se como componente urgente e essencial no exercício da cidadania.

1) Aspectos Legais da Educação Ambiental O marco inicial da educação ambiental no mundo foi a Conferência das Nações Unidas para o Meio Ambiente Humano, em Estocolmo, no ano de 1972. Surgiu daí um novo conceito de desenvolvimento, o “desenvolvimento sustentável”, servindo de base para o entendimento das relações entre meio ambiente e o desenvolvimento. Em 1975 a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA), realizaram o Seminário Internacional sobre educação ambiental, com objetivo de disciplinar uma das resoluções da conferência de Estocolmo na qual a educação ambiental era recomendada com caráter interdisciplinar visando preparar o ser humano para viver em harmonia com o meio ambiente. Naquele seminário foi aprovada a Carta de Belgrado onde se encontram os elementos básicos para estruturar um programa de educação ambiental em diferentes níveis, seguindo a orientação da Recomendação 96 da Conferência Estocolmo a qual atribuía importância fundamental à Educação Ambiental. 3 Em 1977, na primeira Conferência Intergovernamental sobre Educação Ambiental ou Conferencia de Tbilisi, os objetivos e diretrizes da Carta de Belgrado foram ratificados. A Educação Ambiental foi conceituada como chave principal para uma tomada de consciência que pudesse tornar visível os problemas já existentes e formasse cidadãos responsáveis para alterar os rumos destrutivos nos quais a sociedade se encontrava. Nesta Conferência a Educação Ambiental foi apontada como uma formação permanente, prepa3) CARVALHO, I & SCOTTO, G. Conflitos Socioambientais no Brasil I. Rio de Janeiro: Ibase, 1995. Obra dedicada ao Instituto Terra

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rando os indivíduos para os problemas contemporâneos, possibilitando-lhes conhecimentos técnicos que orientasse e qualificasse sua vida induzindo a proteção do ambiente, considerando sempre os princípios éticos norteadores do meio ambiente. Dez anos após a Conferência de Tbilisi, especialistas de aproximadamente cem países, juntamente com observadores da IUCN, reuniram-se em Moscou, antiga URSS para a realização do Congresso Internacional de Educação e formação Ambiental cujo objetivo era revisar os progressos e as dificuldades alcançadas no campo da Educação Ambiental a partir da Conferencia. Deste Congresso saíram às estratégias internacionais para as ações no campo da Educação e formação ambiental para a década de 90, consolidando a Conferência como um marco importante e fundamental da Educação Ambiental. No ano de 1992 aconteceu no Rio de Janeiro, a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Eco - 92 ou Rio 92) Organizada pela ONU- Organização das Nações Unidas. O objetivo deste encontro foi reafirmar a Conferencia de Estocolmo e a partir dela estabelecer diretrizes para o século 21. O principal documento foi a Agenda 21. Nesta Agenda cada país definiu as bases para a preservação do meio ambiente em seu território, possibilitando o desenvolvimento sustentável.4 Como resultado de uma vasta consulta à população foi criada a Agenda 21 Brasileira surgindo como um processo e instrumento de planejamento participativo para o desenvolvimento sustentável e que tem como eixo central a sustentabilidade, compatibilizando a conservação ambiental, a justiça social e o crescimento econômico. O documento foi construído a partir das diretrizes da Agenda 21 global. Trata-se, portanto, de um instrumento fundamental para a construção da democracia participativa e da cidadania ativa no País. A partir da Lei 6.938/81 foram estabelecidos os objetivos e instrumentos da Política Nacional de Meio Ambiente, no Brasil. Esta lei coloca, pela primeira vez, a necessidade de se conciliar desenvolvimento econômico com preservação ambiental, tendo como um de seus princípios a educação ambiental incluída em todos os níveis de ensino, inclusive a educação da comunidade, objetivando capacitá-la para participação ativa na defesa do meio ambiente. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 incorporou o conceito de desenvolvimento sustentável ao consagrar, em seu artigo 225, o meio ambien4) Educação ambiental no licenciamento: aspectos legais e teórico-metodológicos. In: Carlos Frederico B. Loureiro (org.). Educação Ambiental no contexto de medidas mitigadoras e compensatórias de impactos ambientais: a perspectiva do licenciamento. Salvador: IMA, 2009 – (Série Educação Ambiental v. 5). Direitos Humanos e Meio Ambiente

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te ecologicamente equilibrado como direito de todos, bem de uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, atribuiu ao Estado e à coletividade a responsabilidade de preservá-lo e defendê-lo para as presentes e futuras gerações. No parágrafo 1º, inciso VI, a Carta Magna atribui ao poder público a responsabilidade de assegurar a efetividade do direito mencionado no corpo do citado artigo, de promover a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente, complementado pela Lei nº 9795/99, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental, e pelo seu Decreto Regulamentador 4.281/02. 5 Diante do exposto podemos depreender que a educação ambiental, sob a perspectiva do Direito, está muito bem amparada, oferecendo orientações básicas para se implantar uma educação ambiental de qualidade. Observa-se, porém, a falta de atuação do Estado no sentido de fiscalizar e cobrar a aplicação dessas leis dentro dos sistemas educacionais, tornando efetiva a educação ambiental, não só diante da legislação, mas atendendo a necessidade de dar soluções adequadas aos graves problemas que afetam o Planeta.

1.1) Finalidades Da Educação Ambiental No rotineiro cotidiano as pessoas estão envolvidas em uma dinâmica, inconsciente, que leva a assimilar como natural uma série de práticas que, sem reflexão, executam mecanicamente. Convivem com tal tranquilidade presas aos artefatos da tecnologia que não vislumbram imaginar um mundo em que estas coisas não estejam presentes, passando a aceitar isso como natural ao ambiente. Quando, porém, se enfrenta a problemática ambiental verifica-se o quanto se tem de limite. Nem com toda a ciência e conhecimento tecnológico se acham competentes para superar as questões ambientais. Faz-se então necessário a reflexão a respeito de possíveis soluções objetivas e prováveis de serem colocadas em prática com propósito de atenuar, de maneira gradativa, a crise ambiental. Neste cenário, portanto, a educação ambiental ganha especial destaque, uma vez que tem como objeto a formação do sujeito capaz de compreender o mundo e agir nele de forma analítica, sabendo ler seu ambiente e interpretar as relações, os conflitos e os problemas aí presentes. Atores sociais preparados para autocompreender o lugar que ocupam, capazes de exercer uma cidadania ambiental, inspirados por uma educação crítica, voltada para o exercício desta cidadania. 5) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Uma educação que possibilita o fornecimento de elementos para formação capacitando identificar a dimensão conflituosa das relações sociais que se expressam em torno da questão ambiental, posicionando-se diante desta. Dentro dessa perspectiva a educação ambiental deverá adotar uma atitude estimuladora e analítica dos diferentes fatores que intervém em cada caso, mediando interesses e conflitos entre atores sociais. As pessoas agem sobre o meio físico natural e construído, definindo e redefinindo continuamente o modo como esses diferentes atores sociais, por meio de suas práticas, alteram a qualidade do meio ambiente e como são distribuídos os custos e benefícios decorrentes da ação desses agentes. Assim agindo, superam o desafio de favorecer, em todos os níveis, a participação responsável e eficaz da população na concepção e aplicação das decisões que põem em jogo a qualidade do meio natural, social e cultural. Uma educação estratégica para a socialização de informações e conhecimentos dos grupos sociais, resultando na democratização das decisões. Esta educação ambiental crítica voltada para a cidadania incluí como objetivo os direitos a integridade dos bens naturais, o caráter público e a igualdade na gestão daqueles bens dos quais depende a existência humana. Este método educativo deverá fornecer os elementos para formação de um sujeito capaz tanto de identificar a dimensão conflituosa das relações sociais que se expressam em torno da questão ambiental quanto de posicionar-se diante dela. E também objetivar a socialização de informações, proporcionado uma intervenção qualificada, capaz de, através de diagnóstico participativo garantir apropriação pública de informações que permitam o posicionamento responsável e qualificado. A atuação deve ser orientadora da tomada consciente de decisão buscando adotar uma atitude crítica e estimuladora de uma análise precisa e ordenada apropriada aos diferentes fatores que intervém em cada situação. Consolida-se, assim, uma educação ambiental que não se limita simplesmente a divulgar novos conhecimentos, mas despertar a capacidade de questionar ideias sobre os diversos problemas ambientais e os sistemas de valores que sustentam essas ideias, difundindo a importância da participação com maior frequência possível de organizações, surgindo como um espaço de tomada de decisões sobre os problemas ambientais de forma coletiva. Neste contexto, a educação ambiente concentra o olhar para estabelecer uma relação entre a aquisição de conhecimentos, o esclarecimento dos valores, a aptidão para resolver problemas, a sensibilização ambiental e a participação direta e indireta de proteção e melhoria do meio ambiente em âmbito local. Em suma, uma educação voltada à promoção de procedimentos pedagógicos que permitam um debate bastante amplo sobre as possíveis soluções dos problemas ambientais e o caráter dos valores correspondentes. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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1.2) Meio Ambiente e Cidadania A Constituição Federal (1988)6, em seu artigo 225, caput, consagra o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito de todos. Meta esta já estabelecida no artigo 4º, inciso I, da Lei n 6938/ 81 (Lei da Política Nacional do Meio Ambiente), que tem como um dos objetivos fundamentais a compatibilização do desenvolvimento econômico-social com a preservação da qualidade do meio ambiente e do equilíbrio ecológico. Para que tal objetivo seja alcançado, e efetive-se o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, não basta à existência da lei, porquanto a lei em si só não opera a transformação necessária à superação da crise ambiental, pois não tem força suficiente para impor mudanças nos comportamentos e modos de vida nocivos ao ambiente. Tal mudança se realiza socialmente através de um processo educativo apto a munir os cidadãos com os valores, conhecimentos e habilidades necessárias à construção de uma sociedade ecologicamente sustentável. Neste contexto, a educação ambiental surge como um instrumento de extrema importância para a efetividade da Política Nacional de Meio Ambiente, uma vez que, oferecendo maneiras inovadoras de se perceber o mundo, é capaz de tornar os cidadãos aptos a atuarem diretamente na construção de uma sociedade socialmente justa, democrática e ecologicamente sustentável. Infere-se assim que, a educação ambiental, como um processo educativo evolucionário, é o primeiro passo a ser dado rumo à sustentabilidade, pois irá fornecer substrato necessário às mudanças que deverão ser feitas, propiciando a formação de cidadãos aptos a atuarem de forma consciente na construção do meio em que vive. Vale citar que os princípios e valores ambientais traçam os rumos da construção de uma proposta de educação ambiental emancipatória e comprometida com o exercício da cidadania, exigindo a explicitação de pressupostos que devem fundamentar sua prática nos preceitos constitucionais. Assim, a participação popular, como um dos princípios do direito ambiental, é sumamente importante para alcançar mudanças eficazes na sociedade. Esta participação democrática da sociedade é reflexo das demandas ambientais que clamam pela gestão de seus recursos naturais, requerendo do Poder Público maior atenção com a educação ambiental. É urgente e necessário que o Poder Público e a sociedade civil juntos elaborarem e executem 6) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Obra dedicada ao Instituto Terra

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projetos que não visem apenas resultados pontuais, mas tenham como objetivo uma educação ambiental contempladora das aspirações de melhor qualidade de vida em um mundo ambientalmente sadio. Ressalta-se então, a necessidade do agir do Estado como parceiro no processo de transformação, exercendo seu papel fortalecedor da sociedade civil, disponibilizando uma educação ambiental capaz de contribuir com o processo dialético Estado/ sociedade que possibilite uma definição das políticas públicas a partir do diálogo. Entende-se que esta deve ser a diretriz norteadora para a construção da educação ambiental como política pública, uma política consciente que implique em uma crescente capacidade do Estado de disponibilizar uma educação voltada para a cidadania, ampliando a dinâmica interativa entre população e o poder público. Assim, é necessário e urgente que o objetivo da Política Nacional do Meio Ambiente, a partir de um amplo processo de educação ambiental, instrumentalize formas variadas e inovadoras de relacionamento com o ambiente natural, efetivando o direito fundamental ao meio ambiente, administrando riscos socioambientais, valorizando e ampliando o envolvimento público através de iniciativas que possibilitem o aumento do nível da consciência ambiental. Vale citar que a prática da educação ambiental deve ter um dos seus pressupostos o respeito aos processos culturais, considerando as realidades locais, proporcionando aos diferentes seguimentos condições efetivas de intervirem no processo de gestão ambiental. Só então será possível a construção de uma sociedade livre, justa, solidária, desenvolvida com estreitos índices de desigualdade social e que promova o bem estar de todos. Assim, a educação ambiental se estabelece como importante estratégia de ações permanentes que promovem o fortalecimento de uma consciência maior sobre os problemas ambientais, contribuindo para a formação de cidadãos capacitados para exercer seu papel na preservação do meio ambiente e aptos para tomar decisões, sabedores que a educação ambiental sozinha não é suficiente para resolver a problemática ambiental, mas é condição indispensável para tanto. Preparando assim cidadãos para exigirem justiça social e ética na relação homem-natureza, tornando possível a construção de uma sociedade justa.

2) Sustentabilidade Em 1972 a ONU, ao realizar a Conferências das Nações Unidas, declarou formalmente o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como Direitos Humanos e Meio Ambiente

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um direito fundamental. Porém, a expressão “desenvolvimento sustentável” foi utilizada pela primeira vez em um estudo intitulado “Estratégia mundial para a conservação”, da International Union for Conservation of Nature (UICN). Foi, portanto, no “Relatório Brundtland” Relatório da Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, ligada a ONU, que esta expressão se tornou conhecida. O “Relatório Brundtland” retomou o conceito de “desenvolvimento sustentável” trazendo a seguinte definição: “a humanidade tem a capacidade de alcançar o desenvolvimento sustentável - de atender às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das futuras gerações de atenderem às suas próprias necessidades”. Esse relatório propôs que os interesses econômicos seriam atingidos satisfatoriamente pela sustentação da capacidade ambiental, comprometidos com a durabilidade da vida relacionando as gerações presentes com as que estão surgindo. Em setembro de 2000, a ONU, diante da inquietação em torno da necessidade de preservação do Planeta, ao analisar os maiores problemas mundiais, estabeleceu oito (8) objetivos do Milênio, que devem atingir todos os países até 2015. O debate resultou na aprovação da “Declaração do Milênio” que contêm oito metas a serem atingidas, entre as quais está a garantia da sustentabilidade ambiental, como um aspecto fundamental para a concretização dos demais objetivos sociais. Surge assim, com a proposta de assegurar um projeto de vida digno para uma sociedade duradoura, vinculando todos os atores sociais a um compromisso de longo prazo.7 Deparamos então com a definição de um princípio de sustentabilidade intimamente relacionada com o da responsabilidade social, porém, não se pode pensar em responsabilidade sem uma compreensão das relações sociedadenatureza e a desarmonia que aí se instaura, o que é chamado de conflitos socioambientais. Diante desses conflitos faz-se necessário refletir acerca dos atuais valores sociais buscando aplicar uma maneira coerente de lidar com os problemas ambientais, evitando extremismos. Certamente, há muito que trilhar para se chegar a um conceito de sustentabilidade e suas relações com a cidadania. Nessa perspectiva, eis o conceito proposto para o princípio da sustentabilidade: trata-se do princípio constitucional que determina, com eficácia direta e imediata, a responsabilidade do Estado e da sociedade pela concretização solidária do desenvolvimento material e imaterial, 7) MARRUL FILHO, S. Crise e sustentabilidade no uso dos recursos pesqueiros. Brasília, 2001. Dissertação (Mestrado) – Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília. Obra dedicada ao Instituto Terra

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socialmente inclusivo, durável e equânime, ambientalmente limpo, inovador ético e eficiente, no intuito de assegurar, preferencialmente de modo preventivo e precavido, no presente e no futuro, o direito do bem- estar8. Denota-se então, que o conceito desenvolvimento sustentável não contradiz com o crescimento econômico, mas que requer a observação de princípios que enfatizam um padrão de justiça coletiva integrando necessidades humanas com a necessidade de proteção dos recursos naturais. Este conceito reúne elementos indispensáveis para uma sustentabilidade operacional, trazendo uma visão de desenvolvimento que busca superar o reducionismo e estimula um pensar e fazer sobre o meio ambiente diretamente vinculado ao diálogo, à participação e aos valores éticos. Assim, esboça-se a formulação de um conceito de desenvolvimento sustentável em forma de discurso simbólico, que sucumbe aos ditames da ordem econômica, apontando explicitamente para a necessidade de repensar e analisar de onde emanam os valores que comandam nossas práticas, possibilitando, assim, a construção de uma relação harmônica e duradoura entre o homem e o ambiente. Possibilita a integração de mais informações e conhecimentos que viabilizem condições para o desenvolvimento de capacidades e sensibilidades para identificar e compreender os problemas ambientais, com intuito de fazer-lhe frente comprometendo-se com a tomada de decisão onde o ambiente é entendido como uma rede de relação entre a sociedade e o meio ambiente. Convém sublinhar o papel eticamente esperado da educação Ambiental com a visão de superar a concepção mecanizada de Meio Ambiente, fundada em princípios e valores que permitam uma relação sustentável entre o homem e os recursos naturais, auxiliando na compreensão do ambiente como conjunto de práticas sociais, superando o desafio de ir além da aprendizagem comportamental, engajando-se na construção de uma cultura cidadã e de atitudes ecológicas, promovendo transformações reais, duradouras e efetivas capazes de legitimar modos alternativos e responsáveis de apropriação da natureza. É importante considerar que a dissonância entre os comportamentos observados e as atitudes que se pretendem formar é um dos grandes desafios da Educação Ambiental. É necessário romper o paradigma de um processo educativo imerso e condicionado por um contexto cultural, social, econômico, político e ecológico, capaz de gerar e moldar os valores e conhecimentos que devem ser transmitidos aos indivíduos. Uma atitude ecológica cidadã implicaria desenvolver capacidades e sensibilidades para identificar a soli8) Juarez Freitas- 2012- pg. 41- 2ª edição Direitos Humanos e Meio Ambiente

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dariedade e a justiça ambiental como faces de um mesmo ideal de sociedade justa e ambientalmente orientada. Isto posto, a educação ambiental, considerando toda a complexidade que envolve o processo de aprendizagem, alerta para a cautela ao propor a indução de mudança de comportamentos diante dos desafios ambientais. Há de se ter consciência que nem sempre será alcançada a formação de uma atitude ecológica resultando procedimentos ambientalmente corretos. Cabe reconhecer que gerar comportamentos individuais ordeiros e preocupados com as questões ambientais, pode ser socialmente desejável e necessário, mas não significa que tais comportamentos sejam integrados na formação de uma atitude ecológica e cidadã. Nesse sentido é proposto um ideal de convívio solidário entre os sujeitos como parte de uma grande teia de relações naturais, culturais e sociais que constroem modos individuais e coletivos de olhar, perceber, usar e pensar o ambiente. Assim sendo, no seu papel orientador, é mister que a educação ambiental atenda ao anseio por uma consciência racional, considerando o comportamento de uma totalidade capaz de expressar as motivações individuais. Acreditando que é possível proporcionar uma transformação que passe pelo plano do esclarecimento, do acesso a informações coerentes, da capacidade de tomadas de decisões. Que sejam mais do que comportamentos isolados, mas sejam produto do amadurecimento de valores e visões de um mundo que obrigatoriamente perpassa pela relação aberta com o outro. Compreendendo os recursos naturais além do monetário que ultrapasse a visão econômica da sustentabilidade.

2.1) Crise Ambiental E Educação Diante do vertiginoso crescimento populacional, percebido após a revolução industrial, somado ao desenvolvimento tecnológico, questiona-se até quando os recursos naturais serão suficientes para atender a tão grande demanda. Fica visível então que a problemática ambiental está cada vez mais presente no cotidiano da população, principalmente no que se refere ao desafio de preservar a qualidade de vida, fazendo-se necessário a busca do equilíbrio entre população, recursos naturais e consumo. Porém, uma retrospectiva histórica deixa à mostra a dificuldade de estabelecer um pacto de sobrevivência pacífica entre os humanos, o ambiente, os vários interesses sobre o direito e acesso aos bens e recursos ambientais e sobre suas formas de uso. Embora crescente a consciência da existência de uma crise Obra dedicada ao Instituto Terra

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ambiental planetária, sendo difundida por toda humanidade, tem-se a certeza que não se trata apenas de problemas isolados, mas de uma ameaça à sobrevivência de toda biosfera. Trata-se, sim, de necessidade de modificar o nosso relacionamento com o ambiente em prol da sobrevivência da humanidade. Em busca de respostas aos questionamentos e tentando conciliar o desenvolvimento socioeconômico com a proteção e conservação dos ecossistemas, delegados de todo o mundo, reuniram-se no Rio de Janeiro, em 1992, na primeira Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, também conhecida como “Cúpula da Terra”. Nesta reunião foi consagrado o conceito de desenvolvimento sustentável e apontou como responsáveis pelos danos ambientais os países desenvolvidos. Na ocasião desta conferência, a canadense Severn Cullis-Suzuki9, com apenas 12 anos, fez seu nome conhecido e sua voz ouvida com um apelo intenso aos delegados que tomariam decisões para as presentes e futuras gerações. Em seu discurso revelou, há mais de 20 anos, seus temores sobre o estado do ambiente e sua preocupação com o futuro da humanidade: “[...] Sou apenas uma criança e não tenho as soluções, mas quero que saibam que vocês também não têm. Vocês não sabem como reparar os buracos da camada de ozônio. Vocês não sabem como salvar os salmões de águas poluídas. Vocês não podem ressuscitar os animais extintos. Vocês não podem recuperar as florestas que um dia existiram onde hoje é deserto. Se vocês não podem recuperar nada disso, então, por favor, parem de destruir! Aqui vocês são os representantes de seus governos, homens de negócios, administradores, jornalistas ou políticos. Mas na verdade são mães e pais, irmãos e irmãs, tias e tios, e todos também são filhos. Sou apenas uma criança, mas sei que todos nós pertencemos a uma sólida família de cinco bilhões de pessoas, e ao todo somos 30 milhões de espécies compartilhando o mesmo ar, a mesma água e o mesmo solo. Nenhum governo, nenhuma fronteira poderá mudar essa realidade [...]”. Passados 40 anos da primeira reunião mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, e 20 anos do discurso de Servrn Cullis, aconteceu a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (CNUDS), conhecida também como Rio+20, cujo objetivo era discutir a renovação do compromisso político com o desenvolvimento sustentável, firmado em 1992, na cidade do Rio de janeiro. Considerado o maior evento já realizado pela Nações Unidas, o Rio+20 contou com a participação de chefes de estados de cento e noventa nações que 9) Disponível em: . Acesso em: 17 mar.2013. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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propuseram mudanças, sobretudo, no modo como estão sendo usados os recursos naturais do planeta. Porém, o documento “O futuro que queremos”, resultado final desse encontro, foi considerado uma grande distância entre a expectativa gerada por uma conferência como essa e sua capacidade de mudar o cenário de degradação ambiental e acabar com a extrema pobreza. Diante do que se observa no mundo e da constatação que a crise ambiental é fruto de ações danosas causadas ao longo do tempo pela ação humana, questiona-se quem será responsabilizado pelo dano. Neste contexto, Milaré relaciona o homem ao dano e à crise: “Parece ser consequência da verdadeira guerra que se trava em torno da apropriação dos recursos naturais limitados para a satisfação de necessidades ilimitadas (MILARÉ, 2005, p.131). Assim, em tempos de questionamentos e incertezas, reascende oportunamente a educação, em espacial a ambiental, como estratégia para o “desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos.10 Este instituto legal busca fundamentar modos de vida inovadores baseados na participação democrática, na justiça social e modos de apropriação dos recursos naturais. Constata-se, portanto, que a crise ambiental é uma crise do nosso tempo e o enfrentamento dessa crise requer entendimento do caráter público dos bens ambientais, que embora apresente diferenças nacionais e regional é, antes de tudo, um problema global, pois todos dependem de um ambiente equilibrado para viver. Para isso, portanto, a educação, voltada para a cidadania ambiental, deve envolver a participação da sociedade cotidianamente.

3) Educação Ambiental e Participação Social A participação como eixo norteador das práticas sociais de educação ambiental representa a possibilidade de motivar e sensibilizar as pessoas para transformar as diversas formas de atuação na defesa da qualidade de vida. Proporciona a reorganização da sociedade num processo de aprendizagem social capacitando para a constituição de identidades coletivas e de comunidades em espaços de convivência, conduzindo ao caminho do exercício da cidadania. Do ponto de vista dos ambientalistas, participar é debater a questão ambiental considerando a administração do espaço comum, partindo do pressu10) Lei nº. 9.795-99, artigo 5º, I Obra dedicada ao Instituto Terra

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posto de que os recursos naturais são finitos. É oportuno citar que a disponibilização da informação é uma condição essencial para que possamos falar ou não de participação, porém não basta disponibilizar informação, é necessário que as pessoas possam dialogar sobre essas informações, trocar ideias, sentimentos e afetividades, se sentir envolvidas com aquela temática.11 Sob este prisma de análise, verifica-se que a informação, nos últimos tempos, tem assumido um papel cada vez mais relevante abrindo espaços, cada vez maiores, para a discussão sobre participação colocando como necessidade a articulação de saberes e fazeres para responder às complexas questões socioambientais, contribuindo para o alcance destes objetivos no cenário mundial e local. Nesta perspectiva, aponta-se a educação ambiental como mecanismo de ampliação de espaços decisórios e difusão de conhecimento onde diferentes grupos sociais são capacitados e se organizam para alcançar resultados eficazes, possibilitando intervir na prevenção ou resolução dos problemas ambientais. Constitui-se, assim, um espaço com potencialidade estratégica, capaz de difundir diferentes saberes que possam promover uma sociedade sustentável, partindo do pressuposto que o recurso é finito e que as mudanças só podem ocorrer a partir de uma nova consciência, uma nova forma de se comportar e de consumir. Questiona-se, porém, as possibilidades de participação que estão colocadas para os cidadãos e qual o peso desta participação nos discursos e na lei, pois, embora tenha disponível uma legislação permeada por dispositivos que buscam viabilizar a participação popular, observa-se que o arcabouço jurídico, somente, é insuficiente para proporcionar a efetiva participação da sociedade nas decisões tomadas acerca do uso e apropriação dos recursos naturais. Faz-se então necessário a contribuição do Estado disponibilizando instrumentos que viabilizem o cumprimento das prerrogativas legais para que esta participação se dê de fato. Sob esta visão ressalta-se a tarefa estatal de assegurar a materialização de uma política pública e seus instrumentos, para que a participação comunitária seja efetiva, através da prestação de informações ambientais, usando como forte instrumento uma educação ambiental capaz de promover processos participativos baseados em conhecimento de causa e sentido de responsabilidade. Isto posto, como caso concreto da efetiva participação da comunidade, destaca-se a participação do líder de nove Associações de Moradores junto a Empresa Vale, localizada no Município de Vitória, Espírito Santo, Sr. Paulo Esteves. 11) UEMA. E. E, Pensando e Praticando a educação no processo de gestão ambiental: controle social e participação no licenciamento. Brasília: IBAMA, 2006. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Em sua entrevista, Paulo fala da inquietação que despertou a necessidade de discussão sobre as causas que induziram uma crise vivenciada por uma coletividade, da busca em viabilizar a participação nos processos de gestão do meio ambiente, do papel que cabe ao Estado na gestão desta crise e da importância da representação efetiva da sociedade organizada nos processos decisórios no que tange as ações que interferem na qualidade do ambiente em que vivem. Constata-se, neste caso a ser citado, a importância, na prática da gestão ambiental, da presença do Estado e da Sociedade Civil se complementando, agindo de forma compartilhada a partir de objetivos comuns. Certo é que esta parceria exigiu dos envolvidos transparência, humildade, compromisso com a causa ambiental e postura negociadora. Tudo isto reunindo condições necessárias para nortear as discussões da problemática socioambiental. Neste cenário, a narrativa de Paulo Esteves, Engenheiro Civil aposentado, exemplifica a importância da participação na resolução dos conflitos, imbuído de uma cidadania ambientalmente correta, conforme proposta nas diretrizes da Agenda 21 global, considerada um instrumento fundamental para a construção da democracia participativa e da cidadania ativa no País. Constata-se a partir de seu depoimento a importância do conhecimento e consciência ambiental na resolução de conflitos socioambientais causados pela emissão de pó preto pelas Empresas Vale e Arcelor, localizadas ao norte da cidade de Vitória. Este depoimento foi-nos cedido dia 18 de março de 2013, numa manhã de segunda-feira, em um espaço público. Paulo relata que, “quando trabalhava em Salvador, Bahia, presenciou operários tendo contato com o Clinquer, cujo pó, espalhado pelo vento, em contato direto com os operários suados, causaram queimaduras gravíssimas, como consequência da reação química entre a cal, contida no pó, e o suor”. A partir desta vivencia, ao observar o caso em 1972, com o apoio da imprensa local, da Secretaria de Meio Ambiente e da Comissão de Saúde da Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, conseguiram evitar que o navio atracasse até que a Empresa responsável pela entrada da substância, no Estado, neste caso a Empresa Vale, executasse todos os ajustes necessários para um descarregamento seguro. Paulo cita “que esta negociação levou 45 dias, contando o dia da chegada do navio até seu descarregamento o que resultou na decisão da Vale de não descarregar mais esta substância até o dia de hoje. Diante do satisfatório resultado de sua participação como cidadão e do importante espaço dado pela mídia começou a questionar sobre a emissão de pó preto causador de vários transtornos na comunidade local. Havia fortes indícios mostrando que a Vale e a Arcelor Mital eram as principais empresas responsáveis pela emissão dessa substância. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Como cidadão, Paulo, tornou-se o porta voz na relação conflituosa entre moradores e Empresa com apoio da mídia local. Recebeu então o convite para participar de um encontro para exposição de fatos, onde compareceu acompanhado por outro membro da associação dos moradores, porém, “descobriu ao chegar ao local, que seria a primeira audiência pública sobre licenciamento ambiental da oitava usina da Vale”. É importante ressaltar, com relação a audiências públicas, o § 2º artigo 37 do Decreto estadual 1777/2007, versando que ”a convocação da audiência pública será fixada em edital e publicada no Diário Oficial do Estado e em jornal de expressiva circulação na área de influencia direta do empreendimento, com antecedência mínima de 07 (sete) dias úteis”. E ainda, a declaração do art. 31, do referido decreto afirmando que: “A participação pública no processo de licenciamento ambiental tem caráter informativo e consultivo, servindo de subsídio para tomada de decisão do órgão ambiental”, que confirma que a Audiência Pública é uma forma inequívoca de participação. Diante do fato vivenciado, Paulo “percebeu-se ultrajado em seu direito de cidadão, retirou-se do local seguido do único representante da associação de moradores afetados presentes, frustrando assim esta reunião”. Segundo Paulo, “uma segunda reunião foi marcada com participação da comunidade e representante das associações, porém, mais uma vez houve a tentativa de camuflar a participação social, onde o mais agravante foi à condição de silêncio dos moradores e de seus representantes imposta pelo órgão licenciador”. O representante das associações de moradores observou a influência socialmente negativa da empresa sobre o órgão e as pessoas que deveriam defender os direitos dos cidadãos envolvidos. O depoente foi provocado e quebrou a regra do silêncio, assim, com apoio da imprensa televisada, fez varias denúncias e teve voz. Neste cenário, de posse de resultado que apontava a Empresa Vale como principal responsável pela emissão de pó, e após vários debates foi requisitada e atendida, junto ao Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos – IEMA e a Secretaria Estadual de Meio Ambiente- SEAMA, uma Notificação Premonitória para suspensão do licenciamento devido às condicionantes. Aconteceu então à terceira reunião, nos moldes de audiência pública, com participação dos representantes da Empresa Vale, do IEMA, da SEAMA, do Ministério Público do Estado do Espírito Santo – MPES e Associação de Moradores dos bairros afetados. Esta audiência obteve grande repercussão na imprensa local, e com efetiva atuação do MP resultou na assinatura do Termo de Compromisso Ambiental (TCA), lastreado na legislação do Termo de Compromisso de Conduta (TAC). Para garantir o cumprimento do compromisso foi criada a Comissão Direitos Humanos e Meio Ambiente

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de Acompanhamento do referido termo com representantes da Empresa Vale, do MPES, do IEMA e da Associação dos moradores. Às reuniões são mensais durante todo o período de implantação do TCA, com representação fixa do representante das associações. Na visão de Paulo “as respostas veem com mais facilidade com negociação interna”. Hoje, na conclusão de Paulo, “os resultados positivos que têm contribuído para a resolução dos conflitos são conquistados em reuniões com participação ativa e incondicional do representante das associações dos moradores e das comunidades afetadas”. Afirma que a principal fonte de poluição não é mais a Vale e que a posição da Empresa no esforço em atender aos anseios da população local tem amenizado o conflito das negociações. Enfatiza o entrevistado que o papel intermediador do Estado, através do Ministério Público local, com a presença do órgão licenciador (IEMA) tem sido fundamental para as conquistas que atendem aos anseios da população afetada. Acrescenta ainda, como resultado da importante participação da sociedade organizada na resolução dos conflitos, “a ação civil pública em face da empresa apontada, anteriormente, como a segunda maior emissora do pó na região, instaurada pelo Ministério Publico em parceria com as associações de moradores”. Diante do exposto, percebe-se a importância da participação da sociedade organizada na resolução de conflitos ambientais, considerando, neste contexto, a bagagem de conhecimentos do depoente, adquirida através de um processo de educação que o tornou um cidadão questionador com conhecimentos necessários para transformar a sociedade em que vive, conforme visão da Política Nacional de Educação Ambiental (Lei nº 9.795-99), apontando como eficaz, o processo de educação ambiental, na medida em que possibilita ao indivíduo perceber-se como sujeito social capaz de compreender a conflituosa relação sociedade – natureza, e também agir em prol da prevenção de riscos e danos ambientais causados por intervenções no ambiente físico-natural. Citando Carvalho12 no texto introdutório do Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, “a educação ambiental como um processo dinâmico em permanente construção devendo, portanto, propiciar a reflexão, o debate e a sua própria modificação”. Para a referida autora [...] “o papel central da educação na formação de valores e na ação social” [...] o “comprometimento com o processo educativo transformador através do envolvimento pessoal, de nossas comunidades e nações para criar sociedades sustentáveis e equitativas”. E conclui que o 12) CARVALHO, Isabel Cristina de M. Educação Ambiental: a formação do sujeito ecológico-6. ed.-São Paulo: Cortez, 2012. Obra dedicada ao Instituto Terra

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objetivo é “tentar trazer novas esperanças e vida para nosso pequeno, tumultuado, mas ainda belo planeta”. Do exposto, constata-se que a própria comunidade constitui-se e efetiva-se em parceiro vital na defesa do meio ambiente ecologicamente saudável, desde que sensibilizada e capacitada para tal. Destaca-se, também, a participação social como valioso instrumento de uma educação ambiental que valoriza as diferentes formas de conhecimento, acumulado e produzido socialmente, capaz de promover a cooperação e o diálogo entre indivíduos e instituições, com finalidade de criar novos modos de vida, converter cada oportunidade em experiências educativas na construção de uma sociedade sustentável.

4) Ministério Público E Educação Ambiental

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A Constituição Federal de 1988, criada em resposta aos anseios e necessidade do ser humano, traz em seu bojo uma série de direitos fundamentais cujo objetivo é a construção de uma sociedade mais justa e igualitária enfatizando a importância do bem estar do homem13. Esses direitos fundamentais, com força constitucional, são capazes de interferir no modo de ação do Estado que é obrigado a observar e garantir este preceito determinado na Carta Magna. Insta esclarecer que, por serem direitos relacionados a valores humanos fortalecendo o conceito de bem estar geral, vêm imbuídos de uma relação umbilical com a necessidade de proteção ao meio ambiente exigindo, assim, políticas que visem à efetivação desses direitos. Neste contexto, ressalta-se a proteção concebida ao meio ambiente no artigo 225 da Constituição Federal, no qual a condição de bem estar é indispensável para a sobrevivência humana, associado com a qualidade do lugar em que vive. Assim, a instituição de políticas públicas visando a proteção do meio ambiente, tornou-se obrigatória, tendo em vista que este é um fator determinante na busca da qualidade de vida. Nesse sentido, ressalta-se a responsabilidade estatal de analisar as necessidades humanas pactuadas com o desenvolvimento de atividades que zelam pela harmonia da relação do homem com o meio natural. Cabe citar, o artigo 127, caput, da Constituição Federal de 1988, que apresenta o órgão do Ministério Público como instituição pública defensora da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses individuais indisponíveis. Destaca-se ainda o referido órgão como aliado da Educação Ambiental, ten13) Brasil, Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do em vista à sua atuação jurisdicional. Esta interação, da educação ambiental e o Ministério Público, pode se dar por meio de instrumentos legais de que este último dispõe em seu acervo jurídico, no caso o termo de ajustamento de conduta (TAC) ou Termo de Compromisso Ambiental (TCA), que são instrumentos legais de atuação extrajudicial com propostas sócio-educacionais efetivas para combater os desmandos provocados pelo homem na natureza. Nesta visão, o Ministério Público do Estado do Espírito Santo assinou um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) com a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e recursos Hídricos (SEAMA), Secretaria Estadual de Educação e Cultura (SEDU) e o Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA), com participação intensiva e testemunhal da Comissão Interinstitucional de Educação Ambiental (CIEA). O referido Termo visa a estabelecer ações destinadas à implementação da Lei da Política Nacional e Estadual de Educação Ambiental, especificamente, no âmbito da educação formal, com vistas à construção de valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente. Com o propósito de se alargar as discussões e fazer cumprir o objeto deste Termo, foi instituída uma Comissão de Acompanhamento, composta por 5 (cinco) membros, entre os quais 2 (dois) são do Ministério Público Estadual. Com efeito, para o Estado do Espírito Santo, o Ministério Público, como órgão jurisdicional, tem sido um importante aliado na formulação de uma nova proposta pedagógico educacional, participando efetivamente na gestão articulada da Educação Ambiental no Estado. As avaliações periódicas do Termo de Compromisso, estreitamente acompanhadas pela instituição Ministério Público e pela sociedade civil organizada, representada pela CIEA, demonstram avanços visíveis na área da educação ambiental, e evidencia uma soma de esforços na direção de contribuir com a adoção de uma atitude mais participativa da sociedade. Diante deste caminho a ser percorrido, torna-se imprescindível a participação de uma Instituição Pública que se dispõe a abraçar a causa ambiental na defesa do direito de todos, coibindo os excessos praticados em prejuízo do meio ambiente, acompanhando o cumprimento das obrigações do Termo de Compromisso e intermediando as negociações na área da educação ambiental local. Assim, a interação da educação ambiental com um órgão de atuação jurisdicional tem se mostrado extremamente proveitosa para que, lado a lado, façam triunfar a causa ambiental no Estado. Em suma, o Ministério Público, na sua função constitucional de representar a sociedade na esfera judicial, tem sido um auxiliar valioso na árdua tarefa Obra dedicada ao Instituto Terra

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da educação ambiental. Desempenha também, importante papel no processo educacional através de instrumentos legais de atuação extrajudicial, que é o caso do termo de Ajustamento de Conduta (TAC), cujo objeto é prevenir e corrigir práticas atentatórias ao meio ambiente, figura assim, como órgão público preparado para atender as demandas sociais na área ambiental, cuidando para que as pessoas, em sua totalidade, possam contar com um meio ambiente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.

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Conclusão

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Há diante da espécie humana um grande desafio: como agir ante os graves desequilíbrios verificados na natureza considerando que os distúrbios ambientais são verificados no mundo todo? O modo despreocupado de viver e o incentivo ao consumismo desenfreado distanciam do ideário de sustentabilidade que visa garantir um ambiente saudável para as presentes e futuras gerações. O momento global denota sério desconforto socioambiental expresso na má qualidade de vida, na violação dos valores humanitários de solidariedade e cooperação, expondo ao risco a dignidade da pessoa humana. O homem não se enxerga como parte da natureza e tem dificuldade de estabelecer critérios para utilização dos recursos naturais, colocando como incerto o futuro da vida. Percebe-se assim que o sistema de poder que sustenta a direção política e econômica será mantido até que a sociedade civil dotada de verdadeira inserção social, educada, consciente e participativa, ocupe lugar na condução e adaptação da ordem pública e social, tendo compreensão sistêmica de todos os temas relacionados à qualidade de vida e saúde e que têm relação direta com o meio ambiente. Cabe acreditar que a sociedade civil educada com enfoque ambiental será dotada de capacidade para compreender a ordem jurídica e social, podendo assumir um papel mais participativo no controle da comunidade e do Estado, provocando a ação socioambiental mais efetiva da Administração Pública. Neste cenário a educação ambiental foi apresentada com proposta de um viver coerente com os ideais de uma sociedade sustentável e democrática, visando criar condições para a ruptura com a cultura política dominante, através da educação para a participação. Uma educação capaz de avaliar velhas fórmulas de vida propondo ações concretas, proporcionando a transformação do sistema produtivo e do consumismo em uma sociedade baseada na solidariedade, afetividade e na cooperação, ou seja, visando a justa distribuição de seus recursos entre todos, facilitando o diálogo entre saberes, à partiDireitos Humanos e Meio Ambiente

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cipação, os valores éticos como valores fundamentais para fortalecer a complexa interação entre sociedade e natureza. Nesta direção, motivar e sensibilizar para a educação voltada para a cidadania representa a possibilidade de preencher vazios e promover a inserção social pela presença crescente de uma pluralidade de atores que, pela ativação do seu potencial de participação, terão cada vez mais condições de intervir consistentemente e sem tutela nos processos decisórios de interesse público, legitimando e consolidando propostas de gestão baseadas na garantia do acesso à informação e na consolidação de canais abertos para a participação, que são precondições básicas para a institucionalização do controle social. Concluímos, afirmando que o desafio político da sustentabilidade, apoiado no potencial transformador das relações sociais encontra-se estreitamente vinculado ao processo de fortalecimento da democracia e da construção da cidadania. A sustentabilidade traz uma visão de desenvolvimento que busca superar o reducionismo e estimula um pensar e fazer sobre o meio ambiente diretamente. Percebe-se então que a promoção da informação e da educação ambiental, instrumentos valiosos de transformação política e social, é determinante para o redirecionamento da cultura da insustentabilidade, pois, ajudam à coletividade a tomar consciência da responsabilidade da atuação cidadã em prol de um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

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As Tecnologias da Informação e Comunicação e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar Wagner Scopel Falcão1 Instituto Federal do Espírito Santo Ítalo Severo Sans Inglez2 Instituto Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A educação e a formação para a cidadania. 2 A educação ambiental. 2.1 Breve histórico sobre a educação ambiental. 2.2 Debates sobre a Educação Ambiental em um contexto nacional. 3 As Tecnologias da Informação e Comunicação (Tics) e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar. 3.1 A Terceira Revolução Industrial e As Tics na Sala de Aula. 3.2 A Educação Ambiental por Meio das Tics: Algumas Possibilidades. 3.2.1 As músicas. 3.2.2 Os vídeos. Conclusão

1) É Licenciado e Bacharel em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo e Licenciado em Pedagogia pela Faculdade Capixaba da Serra. É especialista em Informática na Educação e mestrando no Programa de Pós-graduação em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo. Atualmente é pedagogo do Instituto Federal do Espírito Santo – campus Serra e é professor de Geografia no projeto Pré-universitário Dandara, CESAM/Salesiano, Vitória – ES. 2) É Licenciado em Geografia pela Universidade Federal do Espírito Santo e Licenciado em Pedagogia pela Faculdade Capixaba da Serra. É especialista em Educação de Jovens e Adultos. Atualmente é pedagogo no Instituto Federal do Espírito Santo – campus Ibatiba, atuando diretamente nos cursos técnicos em Meio Ambiente e Floresta.

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Introdução

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Este artigo tem seus primeiros passos no curso de graduação em Geografia dos autores no ano de 2008, na Universidade Federal do Espírito Santo. Em busca de alternativas metodológicas de ensino, com a disciplina Estágio Supervisionado, com o Trabalho de Conclusão de Curso3 orientado durante nossa graduação e com os muitos anos de formação continuada (especializações e mestrado), bem como as experiências adquiridas durante a atuação profissional (docência e supervisão pedagógica), e as recentes pesquisas de cunhos teórico e empírico promovidas pelos autores, foi possível adquirir uma visão ressignificada sobre metodologias de ensino e a Educação Ambiental em um contexto escolar. Nesse processo, os professores Vilmar José Borges, Marisa Terezinha Rosa Valladares, Regina Frigério, Gisele Girardi e Leonardo Matiazzi Corrêa foram verdadeiros orientadores e a eles somos gratos por todas as aprendizagens. Durante todo esse período, foi possível perceber que questões relativas ao ensino, no que tange a importância da educação, a formação para a cidadania e a Educação Ambiental, estavam muito presentes nas escolas e nos cursos de formação de professores. Em meio a esse contexto, surgem nas práticas educativas dos professores nas escolas muitos projetos que visam trabalhar a Educação Ambiental, visto que temáticas como a grande produção de lixo, o desperdício e a escassez de água, a emissão de gases tóxicos, as mudanças climáticas globais etc. passaram a serem discussões cotidianas da sociedade. Inquietos com tantas demandas que atravessavam a escola, passamos a fazer alguns questionamentos, do tipo: Qual é o papel da escola? O que é formar para a cidadania? O que é a Educação Ambiental? Como as discusões sobre Educação Ambiental ocorreram a nível global e nacional? Como as tecnologias atuais podem contribuir para a formação dos alunos quanto às demandas ambientais do século atual? Diante desses questionamentos que se deu nossa busca. Assim, objetivando desenvolver e socializar reflexões e possibilidades de práticas docentes que se utilizem das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), com este artigo, visamos contribuir para as discussões urgentes e imediatas sobre a importância do meio ambiente para a proteção dos direitos humanos. 3) ALMEIDA JUNIOR, Edvaldo Dias de; BAPTISTA, Rafael Costa; FALCÃO, Wagner Scopel; INGLEZ, Ítalo Severo Sans; LIMA, Welder Rodrigues de; PEREIRA, Thiago Barcelos. Aula de campo: uma alternativa para o ensino de Geografia na Região Metropolitana da Grande Vitória-ES. 2008. 86 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Geografia) – Centro de Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2008. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Wagner Scopel Falcão m Ítalo Severo Sans Inglez

1) A Educação e a Formação para a Cidadania Vivemos em uma sociedade dividida por classes e marcada por desigualdades sociais, onde poucos têm acesso a uma educação de qualidade. Estes poucos detêm o poder e procuram a todo custo manter o “status quo”. Neste cenário, a educação serve como ferramenta para a classe dominante disseminar seus valores de forma subliminar e assim serem aceitos e naturalizados. Ao observarmos a história da educação brasileira com um olhar mais detido e investigativo, o que podemos perceber de maneira clara é que desde a catequização dos povos indígenas até as políticas atuais que propõem e implementam diversos projetos educacionais, existe uma nítida relação de poder que delega à educação, especificamente à escola, a tarefa de formar cidadãos que se encaixem e sirvam à ordem social e econômica vigente, além de transmitir a ideologia de determinada classe social. Hoje, a Constituição da República Federativa do Brasil de 19884 define as normas para a educação no país. O artigo 205 da Constituição deixa claro qual seria o verdadeiro papel da educação brasileira: formar para a cidadania plena: “Art. 205. A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Em 1996, atendendo o previsto na Constituição Federal, a educação brasileira ganha uma nova aliada: a Lei de Diretriz e Bases da Educação Nacional – LDBEN (Lei nº 9394/96). É ela que a partir deste momento direciona e traça as metas para a educação no Brasil, onde vários artigos expressam a preocupação com uma educação que desenvolva a aprendizagem continuada e a criticidade do aluno. De fato, temos observado que apesar desses avanços na legislação em favor de uma educação cidadã, o que muitas vezes tem ocorrido é o inverso, onde nem sempre as nossas escolas têm propiciado formar seus alunos nessa direção. Em muitos casos elas têm se preocupado mais em prepará-los para as provas de ingresso nas universidades e para o mercado de trabalho deixando em segundo plano a formação cidadã. Nessa perspectiva, ao discutir sobre a formação cidadã dos sujeitos, leva-se 4) BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: 1988. Disponível em: . Acesso em: 10 fev. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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em conta uma gama de variáveis, dentre elas os princípios da proteção e defesa civil e a Educação Ambiental, como ressalta a Lei nº 12.608/12, que dispõe sobre a Política Nacional de proteção e Defesa Civil.5 Ainda, nesse tocante que, na atualidade, a “informação” se confunde com a “formação”.6 O tempo da informação é rápido e em pouco tempo se torna obsoleto. Já o processo de formação envolve outro tempo, aquele da reflexão. Assim entendemos que o processo de “formação” é muito mais produtivo para formar cidadão, por exigir um tempo considerável, requerer críticas e pensar o mundo sob um olhar diferente. Por outro lado, mesmo a informação sendo efêmera e correndo o risco de logo cair no esquecimento da sociedade, ela compõe o processo de formação dos sujeitos. Assim, o ato de formar um cidadão exige muitos esforços, desde os da família como o do professor. Para o professor o caminho vai desde criar vínculos afetivos com o aluno a formar a criticidade do mesmo. Nesse processo o papel do professor é fundamental, pois é ele que dará os devidos direcionamentos aos alunos, os quais foram, provavelmente, incorporados em seus anos de formação acadêmica e/ou continuada. Nesse caminho Milton Santos retrata o papel que a educação deveria ter na formação cidadã: “A Educação não tem como objetivo real armar o cidadão para uma guerra, a da competição com os demais. Sua finalidade, cada vez menos buscada e menos atingida, é a de formar gente capaz de se situar corretamente no mundo e de influir para que se aperfeiçoe a sociedade humana como um todo.”7 Ser cidadão, porém, não significa somente lutar por direitos. Lutar por um mundo cidadão implica em cumprir com os deveres pelo qual somos incumbidos dentro da nossa sociedade, do nosso lugar de vivência, nosso meio de ação. Nessa direção, Marcos Santana assim preconiza: “Ser cidadão é ter consciência de que é sujeito de direitos. Direitos à vida, à liberdade, à proprieda5) BRASIL. Lei nº 12.608, de 10 de abril de 2012. Institui a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil - PNPDEC; dispõe sobre o Sistema Nacional de Proteção e Defesa Civil - SINPDEC e o Conselho Nacional de Proteção e Defesa Civil - CONPDEC; autoriza a criação de sistema de informações e monitoramento de desastres; altera as Leis nos 12.340, de 1o de dezembro de 2010, 10.257, de 10 de julho de 2001, 6.766, de 19 de dezembro de 1979, 8.239, de 4 de outubro de 1991, e 9.394, de 20 de dezembro de 1996; e dá outras providências. 2012. Disponível em: . Acesso em: 02 abr. 2014. 6) CARLOS, Ana Fani Alessandri (Org.). A geografia na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1999. 7) SANTOS, Milton. O espaço do cidadão. 4. ed. São Paulo: Nobel, 1998, p. 126. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Wagner Scopel Falcão m Ítalo Severo Sans Inglez

de, à igualdade de direitos, enfim, direitos civis, políticos e sociais. Mas este é um dos lados da moeda. Cidadania pressupõe também deveres. O cidadão tem de ser cônscio das suas responsabilidades enquanto parte integrante de um grande e complexo organismo que é a coletividade, a nação, o Estado, para cujo bom funcionamento todos têm de dar sua parcela de contribuição. Somente assim se chega ao objetivo final, coletivo: a justiça em seu sentido mais amplo, ou seja, o bem comum.8” Assim, evidenciamos a importância de se voltar à educação para a formação da cidadania. Ser cidadão vai além de cumprir com os direitos e os deveres que o Estado propõe. Exercer a cidadania é lutar pelos direitos que lhe cabe, por uma sociedade mais justa e igualitária, pela preservação de um meio ambiente de qualidade e pela construção de um mundo mais ético nas instâncias em que atua objetivando a proteção dos direitos humanos. A cidadania necessita da participação social para assegurar sua concretização, dinamismo, crescimento e maturação. Em outras palavras, para que deixe de ser apenas uma ideia ou consciência de diretos passiva e assuma um caráter ativo de construção e materialização de conquistas requer também a participação contínua a fim de se alimentar e se manter viva evitando-se, assim, a perda ou regressão de direitos já reconhecidos socialmente.

2) A Educação Ambiental A Educação Ambiental, como campo de atividade e de saber, já nasce como um fenômeno complexo e multidimensional, que reúne contribuições de diversas disciplinas e matrizes político-pedagógicas e filosóficas de diversos atores e movimentos sociais. 9 Esse campo da Educação Ambiental, se comparada a outros da educação, pode ser considerado recente, pois, de acordo com a literatura estudada, começou a ser pensado com mais força no final do século XX, mais especificamente em meados da década de 1960, início da década de 1970. Foi na busca de respostas teóricas e práticas de enfrentamento da crise am8) SANTANA, Marcos Silvio de. O que é cidadania. [S.I.]: Artigos Jurídicos, [200-]. Disponível em: . Acesso em: 7 out. 2008. 9) LIMA, Gustavo Ferreira da Costa. Educação Ambiental no Brasil: Formação, identidades e desafios. Campinas: Papirus, 2011, p. 100. Obra dedicada ao Instituto Terra

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biental que sempre se expôs a questão de como a educação poderia ser um instrumento para criar e promover valores, saberes, sensibilidade e atitudes favoráveis à preservação do meio ambiente. Segundo Lima10, “Os primeiros analistas da questão ambiental contemporânea consideravam que, ao lado de outras iniciativas políticas, jurídicas, institucionais, econômicas e tecnológicas, a educação tinha um importante papel a cumprir na mudança das mentalidades em relação à problemática ambiental.” Nessa perspectiva, a atuação de organismos internacionais como a Organização das Nações Unidas - ONU e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura - UNESCO contribuíram para a constituição do campo da Educação Ambiental, pois passaram a criar diretrizes para a abordagem e estudos dessa área de conhecimento.

2.1) Breve Histórico Sobre A Educação Ambiental 150

Podemos observar a grande influência que organismos internacionais como a ONU e a UNESCO tiveram para a criação e o fortalecimento da Educação Ambiental em âmbito mundial. De acordo com o Portal MEC11, foi na década de 1960 que houve a criação de grupos para se debater sobre a importância desse tema. O Conselho para a Educação Ambiental, fundado no Reino Unido, e o Clube de Roma, que publicou em 1972 o relatório “Os Limites do Crescimento Econômico”, foram os primeiros grupos surgidos com foco na importância sobre a Educação Ambiental. Na década de 1970 houve a primeira Conferência das Nações sobre o Ambiente Humano, realizada em Estocolmo, na qual foi constituída a Declaração de Estocolmo. Neste documento, foram descritos 7 (sete) tópicos e 26 (vinte e seis) princípios. O sexto tópico da Declaração diz: “Chegamos a um momento da história em que devemos orientar nossos atos em todo o mundo com particular atenção às consequências que podem ter para o meio ambiente. Por ignorância ou indiferença, podemos causar danos imensos e irreparáveis ao meio ambiente da Terra do qual dependem nossa vida e nosso bem-estar. 10) Idem. 11) BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Um Pouco da História da Educação Ambiental. Brasília: MEC/SECADI. Disponível em: . Acesso em: 10 de abr. 2014. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Ao contrário, com um conhecimento mais profundo e uma ação mais prudente, podemos conseguir para nós mesmos e para nossa posteridade, condições melhores de vida, em um meio ambiente mais de acordo com as necessidades e aspirações do homem [...] Para chegar à plenitude de sua liberdade dentro da natureza, e, em harmonia com ela, o homem deve aplicar seus conhecimentos para criar um meio ambiente melhor.12” Ainda na Declaração de Estocolmo, no princípio 19 (dezenove): “É indispensável um esforço para a educação em questões ambientais, dirigida tanto às gerações jovens como aos adultos e que preste a devida atenção ao setor da população menos privilegiado, para fundamentar as bases de uma opinião pública bem informada, e de uma conduta dos indivíduos, das empresas e das coletividades inspirada no sentido de sua responsabilidade sobre a proteção e melhoramento do meio ambiente em toda sua dimensão humana. É igualmente essencial que os meios de comunicação de massas evitem contribuir para a deterioração do meio ambiente humano e, ao contrário, difundam informação de caráter educativo sobre a necessidade de protegê-lo e melhorá-lo, a fim de que o homem possa desenvolver-se em todos os aspectos.13” Neste contexto, impulsionada pela Conferência de Estocolmo, a importância da Educação Ambiental cresceu em âmbito mundial e, consequentemente, outros eventos e mais debates sobre o assunto começaram a acontecer. Em 1975 a UNESCO realizou em Belgrado o Encontro Internacional em Educação Ambiental. Foi nesse encontro que surgiu o Programa Internacional de Educação Ambiental - PIEA, no qual foram formuladas orientações que abordavam a Educação Ambiental de forma continuada, multidisciplinar, integrada às diferenças regionais e voltada para os interesses nacionais. Ainda na década de 1970, a UNESCO realizou no ano de 1977 a Conferência Intergovernamental de Educação Ambiental em Tbilisi, na Geórgia, ex-URSS, onde os objetivos, as características da Educação Ambiental e as estratégias no plano nacional e internacional foram delineados. Novamente a UNESCO, dessa vez em conjunto com o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente - PNUMA, realizou na Costa Rica o Seminário de Educação Ambiental para América Latina, em 1979. Nas décadas de 1980 e 1990 ocorreram inúmeras ações e congressos que ti12) ONU, Organização das Nações Unidas. Conferência das Nações Unidas, Estocolmo, 1972. Declaração da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano. Estocolmo: ONU, 1972. Disponível em: . Acesso em: 19 fev. 2014, p. 2. 13) Idem, p. 6. Obra dedicada ao Instituto Terra

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nham em suas pautas a Educação Ambiental. Entre os eventos realizados podemos citar o Congresso Internacional sobre Educação e Formação Relativas ao Meio Ambiente, em Moscou no ano de 1987. Este congresso discutiu sobre importância da formação de profissionais nas áreas formais e não formais na Educação Ambiental e na da mesma nos currículos de todos os níveis. Em 1992, aconteceu a Conferência ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida também como Rio 92 ou ECO 92, onde o Ministério da Educação do Brasil - MEC realizou um evento que discutiu sobre os resultados das experiências nacionais e internacionais de Educação Ambiental e debateu sobre metodologias e currículos na educação. Nos anos 2000, a Assembleia Geral da ONU, XIV Reunião do Foro de Ministros de Meio Ambiente da América Latina e Caribe e as XII Jornadas Pedagógicas de Educação Ambiental também discutiram sobre temas relevantes à Educação Ambiental. No Brasil, ocorreram algumas discussões sobre a questão da Educação Ambiental, porém esses debates não tinham tanta ênfase como em outros países. O crescimento desse campo, em território brasileiro, ganhou impulso apenas a partir da década de 1980.

2.2) Debates sobre a Educação Ambiental em um Contexto Nacional

Foi a partir da década de 1980, principalmente após a redemocratização do país e com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que foram tomadas várias medidas pelo governo brasileiro que parametrizaram e encaminharam o campo da Educação Ambiental como conhecemos atualmente. De acordo com Arruda (2001, apud LOUREIRO, pág. 87), “No Brasil, em particular, a Educação Ambiental se fez tardiamente. Apesar da existência de registros de projetos e programas desde a década de setenta, é em meados da década de oitenta que esta começa a ganhar dimensões públicas de grande relevância, até mesmo com sua inclusão na Constituição Federal de 1988. Dentre as ações anteriores, é interessante lembrar as primeiras medidas governamentais promovidas pela extinta Sema, que realizou cursos de ecologia para profissionais do ensino fundamental, e, entre 1986 e 1990, esta, em conjunto com a Capes, CNPq, UnB e Pnuma, o primeiro formato de curso de especia-

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lização em Educação Ambiental do país.14” Um marco nacional anterior à Constituição Federal ocorreu em 1987, quando o Conselho Federal de Educação definiu, por meio do Parecer 226, que a Educação Ambiental tinha caráter interdisciplinar, oficializando a posição do governo acerca do debate comum na época, principalmente entre as secretarias estaduais e municipais de Educação, se esta deveria ser inserida no ensino formal como uma disciplina ou não, apesar de todas as orientações internacionais serem refratárias a qualquer tentativa de torná-la uma disciplina específica.15 Em 1997, ocorreu a I Conferência Nacional de Educação Ambiental que elaborou um documento nacional, conhecido como a Declaração de Brasília, em que constam grandes temas com seus problemas e recomendações. Foram categorizados em Educação Ambiental e as vertentes do desenvolvimento sustentável, Educação Ambiental formal, Educação Ambiental no processo de gestão ambiental, Educação Ambiental e políticas públicas, e Educação Ambiental, ética e formação da cidadania.16 Um ano antes, em 1996, a consolidação de uma nova LDBEN trouxe a importância da Educação Ambiental para a formação cidadã, tornando-a elemento obrigatório aos currículos ensino fundamental e médio no país (Art. 26, § 7o).17 A partir desse contexto, foi realizado um movimento em prol da construção de um novo currículo para a educação básica brasileira, tomando como base esse “novo” momento que a sociedade brasileira estava passando, após uma década de reabertura democrática, da instauração da nova Constituição Federal e da criação da LDBEN. Com isso, foram criados os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN para o Ensino Fundamental, que visavam “ampliar e aprofundar um debate educacional que envolva escolas, pais, governos e sociedade e dê origem a uma transformação positiva no sistema educativo brasileiro”18. Eles foram propostos em áreas curriculares (Língua Portuguesa, Matemática, Ciências, Naturais, 14) LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 87. 15) Idem. 16) Idem, p. 92. 17) BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. 1996. Disponível em: . Acesso em: 10 de abr. 2014. 18) BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília: MEC/SEF, 1998, p. 5.

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História, Geografia, Arte, Educação Física e Língua Estrangeira) e em temas de interesses sociais que perpassam as áreas, como Ética, Orientação Sexual, Pluralidade Cultural, Saúde, Trabalho, Consumo e Meio Ambiente. Para os temas gerais foi criado o documento PCN – Temas Transversais, que discute sobre Educação Ambiental, dentre os demais temas. Nesse contexto, a Educação Ambiental é discutida a partir de uma perspectiva de uso e escassez dos recursos naturais da Terra, sendo em grande parte utilizados pelas indústrias, bem como a degradação dos ambientes urbanizados, colocando em xeque o modelo de desenvolvimento vigente. Além disso, debate sobre o momento vivido e sobre a crise ambiental versus crise civilizatória. O documento propõe ainda a educação como elemento essencial para a transformação da consciência ambiental a partir da relação escola-comunidade 19. No ano de 1999 foi sancionada a lei n° 9.795, de 27 de abril, que instituiu a Política Nacional de Educação Ambiental. Nesta lei, observamos artigos importantes que servem de base para a implementação e entendimento do campo da Educação Ambiental no Brasil, na qual a Educação Ambiental passa a ser entendida como “uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal” (Art. 10º). 20 A Lei 9.795/99 entende a Educação Ambiental como “os processos por meio dos quais o indivíduo e a coletividade constroem valores sociais, conhecimentos, habilidades, atitudes e competências voltadas para a conservação do meio ambiente, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida e sua sustentabilidade” (Art. 1º)21, sendo “um componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não formal” (Art. 2º)22. Quanto aos princípios e objetivos da Educação Ambiental no Brasil, a Lei de 1999 assim discorre:23 “Art. 4o São princípios básicos da educação ambiental: I - o enfoque humanista, holístico, democrático e participativo; II - a con19) BRASIL. Ministério da Educação (MEC). Parâmetros Curriculares Nacionais: Temas transversais. Brasília: MEC/SEF, 1998. 20) BRASIL. Lei nº 9.795, de 27 de abril de 1999. Dispõe sobre a educação ambiental, institui a Política Nacional de Educação Ambiental e dá outras providências. 1999. Disponível em: . Acesso em: 18 abr. 2014. 21) Idem. 22) Idem. 23) Idem. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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cepção do meio ambiente em sua totalidade, considerando a interdependência entre o meio natural, o socioeconômico e o cultural, sob o enfoque da sustentabilidade; III - o pluralismo de ideias e concepções pedagógicas, na perspectiva da inter, multi e transdisciplinaridade; IV - a vinculação entre a ética, a educação, o trabalho e as práticas sociais; VI - a permanente avaliação crítica do processo educativo;  VIII - o reconhecimento e o respeito à pluralidade e à diversidade individual e cultural”. “ Art. 5o São objetivos fundamentais da educação ambiental: I - o desenvolvimento de uma compreensão integrada do meio ambiente em suas múltiplas e complexas relações, envolvendo aspectos ecológicos, psicológicos, legais, políticos, sociais, econômicos, científicos, culturais e éticos; II - a garantia de democratização das informações ambientais; III - o estímulo e o fortalecimento de uma consciência crítica sobre a problemática ambiental e social; IV - o incentivo à participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania; V - o estímulo à cooperação entre as diversas regiões do País, em níveis micro e macrorregionais, com vistas à construção de uma sociedade ambientalmente equilibrada, fundada nos princípios da liberdade, igualdade, solidariedade, democracia, justiça social, responsabilidade e sustentabilidade; VII - o fortalecimento da cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos para o futuro da humanidade”. Em 2001 foi criado o Sistema Brasileiro de Informação em Educação Ambiental e Práticas Sustentáveis (Sibea), coordenado pelo Ministério do Meio Ambiente, em parceria com instituições de ensino superior, ONGs e redes, tinha por finalidade organizar, sistematizar e difundir as informações produzidas em Educação Ambiental e articular ações governamentais que se encontram fragmentadas24.

3) As Tecnologias da Informação e Comunicação (Tics) e a Educação Ambiental no Cotidiano Escolar

É no contexto do mundo capitalista contemporâneo que se relacionam os processos de ensino-aprendizagem promovidos nas escolas. Através da interação entre indivíduos se torna possível conquistar as habilidades necessárias para 24) LOUREIRO, Carlos Frederico B. Trajetória e fundamentos da educação ambiental. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2004, p. 94. Obra dedicada ao Instituto Terra

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que se possa fazer uso dos recursos tecnológicos de modo eficiente. As abordagens do processo de ensino-aprendizagem, em geral, convergem para interatividade como fator importante para produção de conhecimentos. Logo, as relações estabelecidas entre indivíduo-indivíduo e indivíduo-meio permitem que sejam geradas experiências que podem se transformar em conhecimento.25

3.1) A Terceira Revolução Industrial e as Tics na Sala de Aula

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As revoluções tecnológicas por que passamos recentemente, em especial a partir da metade do século passado – período da Terceira Revolução Industrial26 –, trouxeram muitas mudanças ao cotidiano das pessoas, a partir do surgimento e utilização das TICs, o que “[...] continua mudando a forma como nos comunicamos e a maneira como vivemos”.27 O geógrafo Milton Santos, exemplificando a amplitude que essas técnicas recentes têm alcançado nas sociedades, afirma: “Na história da humanidade é a primeira vez que tal conjunto de técnicas envolve o planeta como um todo e faz sentir, instantaneamente, sua presença. Isso, aliás, contamina a forma de existência das outras técnicas, mais atrasadas. As técnicas características do nosso tempo, presentes que sejam em um só ponto do território, têm uma influência marcante sobre o resto do país, o que é bem diferente das situações anteriores. Por exemplo, a estrada de ferro instalada em regiões selecionadas, escolhidas estrategicamente, alcançava uma parte do país, mas não tinha uma influência direta determinante sobre o resto do território. Agora não. A técnica da informação alcança a totalidade de cada país, direta ou indiretamente.28” Define-se aqui como Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs) 25) FALCÃO, Wagner Scopel. As TICs na sala de aula: o software Google Earth como possibilidade para o ensino de Geografia. 2014. 52 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Especialização em Informática na Educação) – Centro de Educação a Distância do Ifes, Instituto Federal do Espírito Santo, Serra, 2014. 26) A Terceira Revolução Industrial é chamada também de Revolução Técnico-científico Informacional ou Globalização. 27) FÁVARO, Rutinelli da Penha; NUNES, Vanessa Battestin. Os projetos de aprendizagem e as TICs. In: NOBRE, Isaura Alcina Martins et al. (Org.). Informática na educação: um caminho de possibilidades e desafios. Serra: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, 2011, p. 174. 28) SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento crítico à consciência universal. 14. ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 25-26. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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todo o desenvolvimento tecnológico decorrente da Terceira Revolução Industrial que trouxe uma nova configuração aos modos pelos quais os seres humanos se comunicam, como as inovações tecnológicas ou aperfeiçoamento das tecnologias pré-existentes. Segundo Canto e Almeida “Cada vez mais as novas tecnologias de informação e comunicação têm sido incorporadas às práticas da sociedade contemporânea. Nossas relações sociais e manifestações culturais são, hoje, intensamente mediadas pelos dispositivos digitais”.29 Dentre esses dispositivos digitais podem ser citados a televisão, o computador, a internet, os tablets, os aparelhos telefônicos fixos e móveis, os aparelhos de som, os aparelhos de reprodução e gravação de fitas cassetes, DVDs e BluRays, os quadros digitais, e muitos outros existentes no dia a dia das sociedades. A escola tem um papel fundamental nesse movimento, pois atua como agente formador de cidadãos, que adquirem conhecimentos críticos ao longo de processos de interação com os demais sujeitos da aprendizagem, bem como o meio educacional. Nessa direção, a escola tem a função de permitir que os indivíduos que estão inseridos em tais processos saibam usar os recursos tecnológicos de maneira consciente e em favor da sociedade. Pereira reforça a importância de se discutir o uso das tecnologias nas escolas: “Hoje, escola, família, grupos sociais e meios de comunicação são compreendidos como importantes espaços educativos e socializadores. Isso ressalta a importância de haver, dentro das escolas, das famílias e das demais instituições sociais, espaços de reflexão a respeito do papel político, cultural e econômico das mídias. As tecnologias de informação e comunicação mudaram nossas vidas, e por isso cada vez mais pessoas têm passado a se preocupar em mudar a vida das mídias.30” Caldas, Nobre e Gava corroboram com o pensamento anterior, discutindo desafios sobre como utilizar essas novas tecnologias nas escolas, como o computador. Os autores afirmam que “[...] temos por meio das TICs um universo de recursos disponíveis na internet e que favorecem a aprendizagem, se bem explorados é claro, por meio da cooperação, colaboração, pesquisa etc”.31 29) CANTO, Tânia Seneme do; ALMEIDA; Rosângela Doin de. Mapas feitos por não cartógrafos e a prática cartográfica no ciberespaço. In: ALMEIDA, Rosângela Doin de (Org.). Novos rumos da cartografia escolar. São Paulo: Contexto, 2011, p. 148. 30) PEREIRA, Silvio da Costa. Mídia e Educação no contexto escolar. 2008, p. 1. Disponível em: . Acesso em: 28 jun. 2013. 31) CALDAS, Wagner Kirmse; NOBRE, Isaura Alcina Martins; GAVA, Tânia Barbosa Salles. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Pontuschka, Paganelli e Cacete (2009) afirmam que é papel fundamental da escola dialogar com as tecnologias existentes no mundo atual, para uma leitura do mundo mais crítica, mais consciente: “Diante do avanço tecnológico e da enorme gama de informações disponibilizadas pela mídia e pelas redes de computadores, é fundamental saber processar e analisar esses dados. A escola, nesse contexto, cumpre papel importante ao apropriar-se das várias modalidades de linguagens como instrumentos de comunicação, promovendo um processo de decodificação, análise e interpretação das informações e desenvolvendo a capacidade do aluno de assimilar as mudanças tecnológicas que, entre outros aspectos, implicam também novas formas de aprender.32”

3.2) A Educação Ambiental por meio das Tics: Algumas Possibilidades

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Como já mencionado, as Tecnologias da Informação e Comunicação estão presentes no cotidiano de nossa sociedade. Assim, utilizar-se delas para usos com finalidades educativas pode torná-las potencializadoras de aprendizagens. A Terceira Revolução Industrial possibilitou ao mundo muitos avanços tecnológicos. Por outro lado, ela aumentou significativamente a degradação ambiental a nível global, através da crescente emissão de gases poluentes à atmosfera, do desmatamento acelerado, do consumo exagerado e sua consequente grande produção de lixo entre outros. Assim, se faz necessário discutir sobre essas questões relevantes nas escolas, bem como já nos alertou alguns organismos internacionais, como a ONU e a UNESCO, e como rege a legislação nacional. No caso da Educação Ambiental, aproveitar-se das tecnologias desenvolvidas pela atual Revolução Industrial para questioná-la é um passo importante para a construção da cidadania. As formas pelas quais são produzidas precisam ser urgentemente interrogadas a fim de que novos processos sejam desenvolvidos em pról do meio ambiente. Uso do computador na educação: desafios tecnológicos e pedagógicos. In: NOBRE, Isaura Alcina Martins et al. (Org.). Informática na educação: um caminho de possibilidades e desafios. Serra: Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Espírito Santo, 2011, p. 37. 32) PONTUSCHKA, Nídia Nacib; PAGANELLI, Tomoko Iyda; CACETE, Núria Hanglei. Para ensinar e aprender Geografia. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2009, p. 261-262. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Nesse contexto, múltiplas são as possibilidades de uso das TICs para as discussões sobre Educação Ambiental nas escolas. As músicas, os filmes e documentários, os computadores, os quadros digitais, os aparelhos projetores, os aparelhos telefônicos móveis, o uso de imagens orbitais etc. são ferramentas que por eles as questões ambientais podem ser trabalhadas objetivando a formação da cidadania discente. Em seguida, serão discutidos, por meio de alguns exemplos, como as músicas e os vídeos podem contribuir para as discussões sobre Educação Ambiental no contexto escolar.

3.2.1) As Músicas Quem não se recorda das aulas nas décadas de 1980 e 1990 quando a professora ou o professor ao discutir sobre o meio ambiente começava a aula com a música “Planeta Água” de Guilherme Arantes ou então “Aquarela” de Toquinho? Essas nossas memórias se fazem possíveis, pois a música é um elemento presente em nosso cotidiano e que, de alguma forma, essas aulas foram marcantes para nós. A música, nesses momentos que mais uma vez acabamos de recordar, foi uma ferramenta de aprendizagem efetiva, já que aprendemos ou, ao menos, nos lembramos das aulas. Diversas são as possibilidades do uso dos diferentes tipos de músicas nas aulas. Escolhemos, aqui, dois exemplos de músicas que discutem sobre as questões ambientais e que podem ser discutidas com alunos de Ensino Básico ou Superior. As letras das músicas abrem margem para amplas discussões interdisciplinares.

Garças de Jacarenema – Casaca33 O que será de mim, O que será de nós, Quando chegar o fim da tarde E ninguém perceber? Estão dormindo em outro canto 33) CASANOVA, Renato.  Garças de Jacarenema. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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E não vão mais voltar Esse sonho é um pesadelo Quero acordar Quero acordar... Me tira dessa guerra Me leva com você Pelo céu azul, me mostre a Natureza Em suas asas brancas Sinto um poema Eu vejo a vida Eu vejo o verde em Jacarenema Tenha consciência, meu irmão Não me leve a mal Cuide da beleza que adormece Em nosso manguezal 160

As garças do Jucu Pelo céu se vão Formando uma nuvem de paz As garças do Jucu Pelo céu se vão Formando uma nuvem de paz A música Garças de Jacarenema, da banda capixaba Casaca, discorre sobre o desmatamento da Mata Atlântica que ocorre constantemente na Reserva Ecológica de Jacarenema, localizada às margens do rio Jucu, no município de Vila Velha – ES. A extração de areia, a retirada de madeira e o fogo colocado na mata são alguns dos motivos que tem levado ao desmatamento da região, e a consequente migração das garças, como nos aponta a música. O segundo exemplo de música, e que possui seu viés no consumismo promovido pelo mundo globalizado, se chama “3ª do Plural”, da banda Engenheiros do Hawaii.

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3ª Do Plural - Engenheiros do Hawaii34 Corrida pra vender cigarro Cigarro pra vender remédio Remédio pra curar a tosse Tossir, cuspir, jogar pra fora Corrida pra vender os carros Pneu, cerveja e gasolina Cabeça pra usar boné E professar a fé de quem patrocina Eles querem te vender Eles querem te comprar Querem te matar (de rir) Querem te fazer chorar Quem são eles? Quem eles pensam que são? Quem são eles? Quem eles pensam que são?

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Corrida contra o relógio Silicone contra a gravidade Dedo no gatilho, velocidade Quem mente antes diz a verdade Satisfação garantida Obsolescência programada Eles ganham a corrida Antes mesmo da largada Eles querem te vender Eles querem te comprar Querem te matar (a sede) 34) GESSINGER, Humberto.  3ª do Plural. Disponível em: . Acesso em: 16 abr. 2014.

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Eles querem te sedar Quem são eles? Quem eles pensam que são? Quem são eles? Quem eles pensam que são? Vender, comprar, vendar os olhos Jogar a rede... contra a parede Querem te deixar com sede Não querem te deixar pensar Quem são eles? Quem eles pensam que são? Quem são eles? Quem eles pensam que são? 162

Quem são eles? A música tem seu foco na obsolescência programada ou planejada, uma das características do capitalismo atual, globalizante. A obsolescência programada consiste no ato vender e de consumir aquilo que não se precisa, que é supérfluo (consumismo), por meio de propagandas abusivas ou excessivas, da venda casada de mercadorias, da “necessidade” de se manter na moda, ou da venda de produtos com um prazo de “vencimento” pré-determinado, como os eletrônicos, para que logo novos sejam consumidos. O autor deixa em destaque a terceira pessoal do plural: “Eles”. “Quem são eles?” e “Quem eles pensam que são?” são questões que podem ser debatidas com os alunos ao longo da(s) aula(s).

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putadores (Internet), e que se trabalhados de maneira crítica podem formar uma visão diferenciada dos alunos sobre o meio ambiente. Um exemplo de filme que discute sobre o consumismo no mundo atual se chama “O Diabo Veste Prada35”, produzido em 2006. O filme é uma adaptação do livro de mesmo nome escrito por Lauren Weisberger. Este filme discute sobre o poder de grandes marcas, principalmente do ramo de vestuário, produzindo e reproduzindo a moda e o consumismo pelo mundo. Outro longa-metragem que discute sobre o capitalismo atual e as desigualdades por ele produzidas se chama “O Preço do Amanhã36”. Com o filme, produzido em 2011, podem ser discutidas algumas questões atuais relacionando o trabalho, o capital, o tempo, o consumo e os modos de vida em diferentes classes sociais. O filme “Lixo Extraordinário37” é outra opção. Sua história se passa no Jardim Gramacho, um dos maiores aterros sanitários do país, localizado no município do Rio de Janeiro. Com ele, pode ser discutido sobre o cotidiano da população marginalizada que vive do lixo e a grande produção desses resíduos em uma metrópole global. O documentário de Annie Leonard, “A História das Coisas38”, é um excelente vídeo que relata as cinco principais etapas do processo produtivo no mundo globalizado: extração, produção, distribuição, consumo/consumismo e geração de lixo. A partir do vídeo é possível desenvolver uma visão mais ampla da nossa forma de consumo no mundo capitalista atual e da degradação ambiental produzida por nossos modos de vida. O vídeo “Você sabia? Sobre o mundo em que vivemos39”, foi produzido pelos alunos da turma M04-2014 do curso técnico em Eletrotécnica do Instituto Federal do Espírito Santo, campus Vitória, sob orientação do professor de Geografia Eder Lira. O vídeo discute sobre a produção industrial no mundo atual, tendo como um dos focos suas consequências para os seres humanos e para o meio ambiente. 35) THE DEVIL Wears Prada. Direção: David Frankel. Produção: Wendy Finerman: Fox Filmes, 2006.

4.2.2) Os Vídeos

36) IN TIME. Direção: Andrew Niccol. Produção: Andrew Niccol e Eric Newman: Fox Filmes, 2011.

Desenvolver o sendo crítico sobre as questões ambientais é formar cidadãos, e os audiovisuais são instrumentos importantes e presentes no cotidiano dos alunos. Na atualidade existe uma gama enorme de vídeos, sendo filmes longa-metragem ou curta-metragem, documentários, desenhos animados, propagandas comerciais entre outros, muitos dos quais disponíveis na rede mundial de com-

37) WASTE Land. Direção: Lucy Walker. Produção: Angus Aynsley e Hank Levine. Downtown Filmes, 2010.

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38) STORY of Stuff. Direção: Louis Fox. Produção: Annie Leonard: 2005. 39) VOCÊ sabia? Sobre o mundo em que vivemos. Direção e produção: discentes da turma M04-2014, Ifes, campus Vitória. Orientação: Eder Lira. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Conclusão

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A educação é muito importante para a formação de cidadãos plenos, assim como rege a Constituição Federal de 1998, pois possibilita ao aluno conhecer o meio, a realidade em que vive, podendo contribuir para o aumento de uma visão crítica do mundo em que vivem. Nisso ela pode ajudá-los a se formarem verdadeiros cidadãos plenos, não para servirem como robôs a serviços do capital, e sim como indivíduos preparados criticamente para o mercado de trabalho e também com um poder de escolha efetivo, promovendo em seus cotidianos uma efetiva Educação Ambiental. Nessa direção, é possível afirmar que na segunda metade do século passado, durante o boom da Terceira Revolução Industrial, ocorreu a nível global um avanço nas discussões sobre a Educação Ambiental no mundo, promovidos principalmente pela ONU. No contexto brasileiro, essas discussões se deram principalmente ao final do século, em especial após a ECO 92. Na atualidade, a questão da Educação Ambiental a nível nacional é definida e regulamentada pelas leis nº 9394/96, nº 9795/99 e nº 12.608/12. A partir da primeira destas leis, a LDBEN, foram criados os documentos PCNs para o Ensino Fundamental, que foi um passo importante para esse então novo currículo, em especial, ao discutir sobre as questões relativas à Educação Ambiental e o papel da escola, dos docentes e dos discentes nesse contexto. Por fim, é possível afimar que a partir do uso consciente das TICs nas escolas há uma multiplicidade de opções pelo qual podem ser trabalhados os conceitos relativos à Educação Ambiental com os alunos. Os filmes e as músicas aqui citados são apenas alguns exemplos de uso das TICs nas aulas pelos professores. É possível inferir que muitas outras aprendizagens podem ser elaboradas a partir do uso orientado ou problematizado das TICs pelo professor em conjunto com os alunos, em especial, para se discutir as urgentes questões sobre necessidade da preservação ambiental para a proteção dos direitos humanos.

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A Teoria da Injustiça Ambiental como Ocultamento da Ocorrência do Racismo Ambiental na Sociedade Brasileira Helena Carvalho Coelho1 Faculdade de Direito de Vitória Lorena Ferreira Carpes2 Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 Da sociedade de risco. 2. Injustiça Ambiental e Racismo Ambiental. 2.1 Breve Histórico do Desenvolvimento das Teorias de Injustiça e Racismo Ambiental. 2.2 Da Injustiça Ambiental. 2.3 Do Racismo Ambiental. 2.4 Da Correlação dos Conceitos e da Opção Pelo Estudo a Partir do Racismo Ambiental. Conclusão

1) Graduada em Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Cursou um semestre letivo na Universidad de Castilla-La Mancha, campus Toledo, Espanha. Pós-graduanda em Direito Ambiental na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Integrante do grupo de pesquisa “BIOGEPE” – Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão em Políticas Públicas, Direito à Saúde e Bioética- da FDV coordenado pela professora doutora Elda Coelho de Azevedo Bussinguer. E-mail: [email protected]. 2)  Graduada em Engenharia Ambiental pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Cursou um semestre letivo na University of Pittsburgh, Estados Unidos. Graduanda em Direito na Faculdade de Direito de Vitória (FDV). Integrante do grupo de pesquisa “Invisibilidade social e energias emancipatórias em Direitos Humanos” da FDV coordenado pela professora pós-doutora Gilsilene Passon Picoretti Francischetto. E-mail: [email protected].

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Introdução

A desigualdade social está na gênese da história do Brasil, desde a colonização, e se agravou sobretudo com o advento das relações comerciais e com a consolidação do capitalismo através do acúmulo de capitais e concentração de renda. Essa desigualdade se reflete também na relação da população com o meio ambiente. O racismo ambiental é identificado por meio de políticas públicas e industriais que impõem aos grupos sociais de cor e de baixa renda, por força do poder econômico, maior risco ambiental.3 O Movimento de Justiça Ambiental foi criado nesse contexto com o objetivo de evitar tais práticas discriminatórias por parte do governo e das grandes empresas. Inicialmente, nos Estados Unidos e, posteriormente, difundiu-se para outros países. O presente trabalho visa a analisar o histórico do movimento de justiça ambiental, bem como objetiva explorar os conceitos de racismo e injustiça ambiental e relacioná-los, com o intuito de entender essa aplicação no contexto brasileiro. 166

1) Da Sociedade de Risco A sociedade de risco delineia-se em uma paradoxal catástrofe, diante de enormes avanços tecnológicos, rapidez na comunicação, em que o longe torna-se perto e, ao mesmo tempo, há aceleração das desigualdades sociais. Assim, evidenciam-se a exploração dos miseráveis e abusos com grupos que formam minorias. Nesse sentido, descreve Ulrich Beck4: “Com a ameaça, dissolvem-se as antigas urgências, e paralelamente amplia-se a política dirigista do estado de exceção, que da circunstância iminente extrai suas ampliadas competências e possibilidades de intervenção. A partir do momento em que o perigo se converte em normalidade, ela assume uma forma firmemente institucionalizada. “[...] A Sociedade de risco não é, portanto, uma sociedade revolucionária, mas mais do que isto: uma sociedade catastrofal. Nela, o estado de exceção ameaça converter-se em normalidade.” (grifo nosso) As diversidades trazidas pelos avanços tecnológicos relacionados com a ex-

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plosão demográfica e com o aumento substancial do consumo trouxeram grandes consequências: por um lado, desenvolvimento econômico com avanços sociais em alguns países, permitindo maior distribuição de renda e emprego; por outro lado, retrocessos ambientais, decorrentes da produção sem o devido controle, que geram passivos ambientais. Nesse sentido aduzem Sarlet e Fensterseifer5: “Assim os avanços científicos e tecnológicos operados pela ciência especialmente a partir da ‘revolução científica’ dos séculos XVI e XVII [...], a despeito dos notáveis progressos que propiciou, paralelamente serviram (e ainda servem) de instrumentos de intervenção no meio natural e, consequentemente, de degradação e esgotamento dos recursos naturais, na medida em que a Natureza é tratada – do ponto de vista filosófico – como uma simples máquina, destituída de qualquer valor intrínseco”. Isso nos permite entender melhor a complexidade da sociedade atual, a qual deve atender, ao mesmo tempo, a todos os setores, quais sejam, os sociais, os econômicos e os ambientais. No auge da globalização ainda é extremamente complicado o controle de determinadas situações, em especial, daquelas advindas de problemas ambientais, tal qual descreve Ulrich Beck6: “Os ‘paradigmas’ de desigualdade social estão sistematicamente relacionados a fases específicas do processo de modernização. A distribuição e os conflitos distributivos em torno da riqueza socialmente produzida ocuparão o primeiro plano enquanto países e sociedades [...] o pensamento e a ação das pessoas forem dominados pela evidência da carência material, pela ‘ditadura da escassez’. [...] Paralelamente, dissemina-se a consciência de que as fontes de riqueza estão ‘contaminadas’ por ‘ameaças colaterais’. Isto, de forma alguma, é algo novo, mas passou despercebido por muito tempo em meios aos esforços para superar a miséria [...] Argumentando sistematicamente, cedo ou tarde na história social começam a convergir na continuidade dos processos de modernização as situações e os conflitos sociais de uma sociedade ‘que distribui riqueza’ com os de uma sociedade ‘que distribui riscos’. ” Em relação à situação da sociedade brasileira, Ricardo Abramovay7 traz os seguintes dados: “O caso do Brasil talvez seja o mais emblemático nesse sentido. A renda per capita das famílias correspondentes à base dos 10% mais po5) SARLET, Ingo Wolfgang; FERNSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Meio Ambiente. 2. ed. rev. e atualizada. São Paulo: Editora dos Tribunais, 2012. p. 33.

3) RHODES, Edwardo Lao. Environmental justice in America a new paradigm. Bloomington: Indiana University Press, 2003. p.6

6) BECK. Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p.24-25.

4) BECK. Ulrich. Sociedade de Risco: Rumo a uma outra modernidade. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 96.

7) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. São Paulo: Editora Abril, 2012. p. 43

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bres da pirâmide social aumentou 120% desde o fim de 1993 até 2008. [...] Entre 2005 e 2011 nada menos que 64 milhões de brasileiros mudaram sua faixa de renda para cima. Nesse período, a quantidade de pobres cai de 51% para 24% da população e a classe média salta de 34% para 54% dos brasileiros”. Disto é possível aferir algumas conclusões: há melhor e maior distribuição de renda, assim como há mais consumidores, logo aumenta-se a cada dia a produção de lixo, exige-se cada vez mais, a produção de bens de consumo e gera-se uma enorme dificuldade de controle da poluição. Naomi Klein8 alerta para os problemas gerados pelas “zonas verdes” em que classifica como um novo modelo de apartheid do desastre, em que aponta, mais uma vez, a capacidade financeira como determinante à sobrevivência: “A antevisão de um futuro coletivo de apartheid do desastre, no qual a sobrevivência é determinada pela capacidade de pagar pelo escape [...] Não é que eles precisam acreditar que há uma rota de fuga do mundo que estão criando, apenas. É que a Revelação é uma parábola para o que eles estão construindo aqui embaixo – um sistema que convida à destruição e ao desastre e depois oferece helicópteros privados para leva-los, junto com seus amigos, rumo à segurança divina”. Sem dúvida, os problemas ambientais ensejam na necessidade de aplicação de princípios, do direito internacional, de doutrinas e de todos os meios capazes de colmatar lacunas que surgem cotidianamente em uma sociedade global. O desafio é implantar um desenvolvimento sustentável em uma sociedade de consumo, de riscos e de desigualdades. Urge a necessidade de inversão de prioridades, de uma nova cultura, uma cultura verde, em que mais é menos. Nesse ínterim, Ricardo Abramovay9 levanta pertinente questionamento: “Quanto é suficiente? [...] É verdade que os caminhos trilhados até aqui permitiam inegáveis vitórias na luta contra a pobreza. Mas será que aí se encontram as melhores possibilidades de compatibilizar o funcionamento do sistema econômico com o preenchimento das necessidades básicas no respeito à manutenção dos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas?” (grifo nosso) Necessário, pois, rever os paradigmas do consumo. Diante de uma era de globalização insustentável - para Vivian Rodrigues Mattos10, uma era sem vol8) KLEIN, Naomy. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2008. p. 467. 9) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. São Paulo: Editora Abril, 2012. p. 57. 10) MATTOS, Viviann Rodrigues. O trabalho na era da globalização: passos para a escravidão. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2014. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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ta, em que seguimos a passos largos para à escravidão -, o fim da humanidade estaria traçado na lógica da produção. Sobre essa reflexão, Ricardo Abramovay11 afere que: “[...] É necessário lembrar também que o bom desempenho na ecoeficiência dos países da OCDE durante o século 20 não se apoia apenas em seus inegáveis ganhos tecnológicos. Muitas de suas atividades tipicamente industriais foram transferidas para países emergentes e, antes de tudo, para a China. Essa transferência produtiva das atividades tipicamente industriais acaba por obscurecer a própria contabilidade de fluxos materiais nos países mais ricos, assim como sua responsabilidade pela emissão de gases de efeito estufa: sabe-se que a China tornou-se recentemente o maior emissor do planeta. Mas, se for descontado o que ela exporta (ou seja, se a responsabilidade for atribuída aos consumidores), as emissões chinesas caem nada menos do que um terço do total. [...]” (grifo nosso) Assim, para melhor visualização do problema exposto, tem-se que a transferência de indústrias poluidoras de países desenvolvidos para países subdesenvolvidos acarreta duas principais consequências: a) auxílio de cumprimento de metas pelos países desenvolvidos; b) aumento dos problemas relacionados à saúde pública nos países emergentes. Esta é mais uma manifestação do apartheid do desastre, nas palavras de Naomi Klein12, em referência direta aos problemas ambientais existentes no capitalismo. A partir da análise da sociedade de risco e de como esse modelo econômico afeta determinadas minorias, apresentaremos, no próximo capítulo, a teoria da injustiça e do racismo ambiental.

2) Injustiça Ambiental e Racismo Ambiental

2.1) Breve Histórico do Desenvolvimento das

Teorias de Injustiça e Racismo Ambiental

11) ABRAMOVAY, Ricardo. Muito Além da Economia Verde. Editora Abril, São Paulo: 2012. p. 115. 12) KLEIN, Naomy. A Doutrina do Choque: a ascensão do capitalismo do desastre. Trad. Vânia Cury. Rio de Janeiro: Nova Fronteira. 2008. p. 467. Obra dedicada ao Instituto Terra

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A desigualdade entre os seres humanos teve origem, dentre outras formas, pela conquista e pela ocupação de terras estrangeiras. A conquista gerou uma justificativa generalizada da desigualdade entre os povos. “O conceito de ‘raça’ estabeleceu uma justificação para a subordinação permanente de outros indivíduos e povos, que eram temporariamente sujeitos pelas armas, pela conquista, pela destruição material e cultural, ou seja, pela pobreza. ”13 A ideologia cientificista do século XIX converteu a desigualdade temporária (cultural, social e política) em permanente (biológica). Apesar da justificativa biológica não ter mais legitimidade científica, a suposta inferioridade cultural permanece, passando a ser a justificativa do padrão do tratamento desigual. Em referência às origens do racismo Guimarães14 assim se posiciona: “O racismo, portanto, origina-se da elaboração e da expansão de uma doutrina que justificava a desigualdade entre os seres humanos (seja em situação de cativeiro ou de conquista) não pela força ou pelo poder dos conquistadores (uma justificativa política que acompanhara todas as conquistas anteriores), mas pela desigualdade imanente entre as raças humanas (a inferioridade intelectual, moral, cultural e psíquica dos conquistados ou escravizados). [...] Esta doutrina justificava pelas diferenças raciais a desigualdade de posição social e de tratamento, a separação espacial e a desigualdade de direitos entre colonizadores e colonizados, entre conquistadores e conquistados, entre senhores e escravos e, mais tarde, entre os descendentes destes grupos incorporados num mesmo Estado nacional”. O racismo, contudo, apresenta características diversas nos Estados Unidos e no Brasil. Tal distinção é importante para se observar as formas pelas quais se manifesta o racismo ambiental em ambos os países e serão retratadas superficialmente, por não serem o foco do presente trabalho. O racismo, nos Estado Unidos, é bi-racial. Na lógica preponderante à estrutura legal e social norte-americana, os indivíduos têm sido historicamente ou negros ou brancos. No Brasil, por sua vez, é multirracial: há um espectro de distinções raciais.15 Os Estados Unidos, ao se constituírem como Estado de direito e ao justifi13) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.104, fev. 1999. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1724.pdf >. Acesso em: 18 abr. 2014. 14) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.104, fev. 1999. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/v14n39/1724.pdf >. Acesso em: 18 abr. 2014. 15) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é Válido? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana 1992, Rio de Janeiro. p.49-50. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/ uploads/contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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carem a desigualdade apenas a partir de suas características permanentes (força, ousadia, ambição, perseverança, etc.) que surgem em situações de competição em mercados livres, juntamente com a resistência da população branca em aceitar a completa igualdade de direitos dos ex-escravos, acabou facilitando a aceitação de uma doutrina racista para justificar a restrição dos direito dos negros. Um mesmo Estado de direito abrigou temporariamente, portanto, uma dualidade de ordem jurídica nos Estados Unidos.16 No Brasil, a temática se desenvolveu de forma distinta. O racismo está presente nas práticas sociais e nos discursos (um racismo de atitudes), mas não é reconhecido pelo sistema jurídico e é negado pelo discurso não-racialista da nacionalidade. Após a abolição da escravatura, em 1888, a dualidade de tratamento entre brancos e negros é estendida ao sistema de clientelismo e colonato, que substitui a escravidão.17 As liberdades e os direitos constitucionalmente outorgados a todos não são garantidos nas práticas sociais, predominando a discriminação e a desigualdade de tratamento. As elites rejeitaram o racismo, transformando-o em não racismo e a miscigenação cultural e biológica, em ideais nacionais para a integração de todos os indivíduos no Estado-nação. Os brancos, no Brasil, foram definidos de modo a abarcar todos os mestiços mais próximos das características somáticas europeias e todos que usufruem dos privilégios da cidadania.18 As teorias de injustiça ambiental e racismo ambiental encontram como seu marco teórico as décadas de 1970/1980 nos Estados Unidos, a partir da constatação de que haveria uma coincidência entre os atingidos ambientais e a disposição de resíduos perigosos inerente de lixos tóxicos. Assim, o Movimento de Justiça Ambiental cresceu em diversos lugares com movimentos sociais diferentes, sendo, portanto, difícil identificar uma data ou evento específico que tenha dado origem ao movimento.19 O protesto de afro-americanos contra um despejamento tóxico em Warren Country, na Carolina do Norte em 1982, é considerado por muitos como um dos marcos desse movimento, por tomar proporções nacionais. 16) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.106, fev. 1999. 17) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.107, fev. 1999. 18) GUIMARÃES, Antônio Sério Alfredo. Combatendo o Racismo: Brasil, África do Sul e Estados Unidos. Revista Brasileira de Ciências Sociais, v. 14. n. 39, p.107, fev. 1999. 19) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000. p. 19. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Essa oposição culminou em uma campanha de desobediência civil não violenta e em mais de 500 prisões.20 Alguns ativistas americanos nativos e outros consideram, no entanto, que o primeiro movimento de justiça ambiental surgiu na América há 500 anos, com a invasão dos Europeus, e perdura até os dias de hoje.21 O Movimento de Justiça ambiental foi estruturado nacionalmente nos Estados Unidos a partir do programa dos “17 princípios’ elaborado em 1991, na Cúpula dos Povos de Cor pela Justiça Ambiental”.22 O meio acadêmico foi uma importante contribuição para o esse movimento. No início dos anos 60, pesquisas revelaram que os riscos ambientais têm um impacto desproporcional em pessoas de cor e baixa renda. Robert Bullard, estudando padrões do uso da terra em Houston no final dos anos 70, descobriu que os lixões tinham um impacto desproporcional nos afro-americanos. Essa pesquisa conduziu ao trabalho pioneiro de Bullard na área.23 Os estudos se intensificaram nos Estados Unidos no início da década de 80, quando, o termo racismo ambiental foi desenvolvido por Chavis24. Constatou-se que os riscos ambientais se distribuem desigualmente: pessoas pobres e de cor sofrem uma maior carga de poluição do que pessoas mais abastadas e brancas. Há, todavia, que se estabelecer as diferenças entre as teorias e o porquê da opção pelo conceito de racismo ambiental, haja vista existir uma confusão teórica na utilização dos conceitos de justiça e de racismo ambiental. Nesse sentido, trabalharemos cada um separadamente a seguir. 20) COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF CHRIST. TOXIC WASTES AND RACE In The United States. A National Report on the Racial and Socio-Economic Characteristics of Communities with Harzardous Waste Sites.1987. Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2014. 21) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the Rise of the Environmental Justice Movement. 1.ed. New York: NYU Press. 2000. p. 19-20. 22) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. v.3, n.1, jan./ abril 2008. p.13 23) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000. p. 24. 24) O termo racismo ambiental foi desenvolvido no relatório “toxic wastes and race in The United States”. COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF CHRIST. TOXIC WASTES AND RACE In The United States. A National Report on the Racial and Socio-Economic Characteristics of Communities with Harzardous Waste Sites.1987. Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2014. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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2.2) Da (In)Justiça Ambiental Para tratar de injustiça ambiental, necessário definir, primeiramente, justiça ambiental e desvelar as discussões acerca da definição do termo. Segundo Acselrad25, justiça ambiental seria uma ressignificação entre os termos “justiça social” e “meio ambiente”, a partir do contraponto entre duas teorias antagônicas, a visão utilitária e a razão cultural. A visão utilitária26 é composta por uma noção de poluição democrática “não propensa a fazer distinção de classe”, sob uma ótica do mercado, da produção em série sob o modelo fordista e dos “proprietários”. Em contraponto à visão utilitária, surge a razão cultural27, como uma forma de resistência dos movimentos sociais, por meio da desmistificação, em especial, da noção de “poluição democrática”, demonstra, portanto, a lógica de produção e como isso afeta os atingidos por impactos ambientais, a poluição é seletiva e excludente. Assim, para Acselrad28, “os riscos ambientais, nessa óptica, são diferenciados e desigualmente distribuídos, dada a diferente capacidade de os grupos sociais escaparem aos efeitos das fontes de tais riscos”. No mesmo sentido, Bullard29 apresenta a noção de “anatomia do racismo ambiental”, assim expõe que “[...] algumas comunidades são rotineiramente intoxicadas enquanto o governo finge ignorar. A legislação ambiental não tem beneficiado de maneira uniforme todos os segmentos da sociedade”. Discurso que será aqui apropriado para complementar à ideia de razão cultural. Em tal contexto, surge a noção de justiça ambiental inicialmente nos Estados Unidos, como já demonstrado, no ano de 1980, tendo como grandes 25) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p.108. Disponível em: < http://www.scielo.br/ pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 26) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/ pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 27) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/ pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 28) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 108. Disponível em: < http://www.scielo.br/ pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 29) BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism – Voices from the Grassroot. Trad. Regina Domingues. Boston: South End Press, 1996. Obra dedicada ao Instituto Terra

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expoentes Robert Bullard e Benjamin Chavis. Chavis30, contudo, traz para os dias atuais tal perspectiva e como a noção de justiça se disseminou entre os países, em especial, aqueles maiores atingidos por danos ambientais. Outrossim, o mesmo autor acrescenta que: “A luta pela justiça ambiental se intensificou em comunidades que se tornaram “sacrifícios ambientais”. A luta pela justiça ambiental agora se expandiu para além das fronteiras dos Estados Unidos, uma vez que as ameaças se multiplicam no Terceiro Mundo. Muitos dessas ameaças estão além do controle das nações mais pobres do mundo. Resíduos tóxicos, pesticidas banidos, baterias “recicladas”, sucatas são rotineiramente enviadas para as nações de Terceiro Mundo por corporações multinacionais. Além disso, as atrocidades das políticas ambientais nessas empresas, quando operam no Terceiro Mundo, são bem documentadas.” Para Carlos Peralta31, o conceito de justiça ambiental: “Tem um caráter aglutinador, integrando as dimensões ecológica, ética, social e econômica, as quais envolvem conflitos ambientais. A justiça ambiental enfrenta o dilema entre a realidade da natureza e a realidade da sociedade da segunda modernidade regida pela ciência e pelas relações econômicas”. Especificamente no Brasil, o Movimento de Justiça Ambiental32 trouxe importantes definições sobre os temas aqui analisados e conceituou justiça ambiental como sendo “O conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, suporte uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas de operações econômicas, de políticas e programas federais, estaduais e locais, bem como resultantes da ausência ou omissão de tais políticas”. Em referência à aplicabilidade da teoria da justiça ambiental no contexto brasileiro, Herculano33 defende que se trata de estudo extremamente pertinente em função das desigualdades inerentes a sociedade brasileira, embora tal tema ainda seja “incipiente”, e contextualiza: “Os casos de exposição aos ris30) CHAVIS, Benjamin Prefácio. In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism: Voices from the Grassroots. Boston: South End Press, 1993. p.4. 31) PERALTA, Carlos E. A justiça ecológica como novo paradigma da sociedade de risco contemporânea. Revista Direito Ambiental e sociedade, v.1, n. 1, p. 256, jan/jun. 2011. 32) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.2, jan/ abril. 2008. 33) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p. 5, jan/ abril. 2008. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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cos químicos são pouco conhecidos e divulgados, à exceção do estado de São Paulo, tendendo a se tornarem problemas crônicos, sem solução. Acrescentese também que, dado o nosso amplo leque de agudas desigualdades sociais, a exposição desigual aos riscos químicos fica aparentemente obscurecida e dissimulada pela extrema pobreza e pelas péssimas condições gerais de vida a ela associadas. Assim, ironicamente, as gigantescas injustiças sociais brasileiras encobrem e naturalizam a exposição desigual à poluição e o ônus desigual dos custos do desenvolvimento”. Complementarmente, a Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental entendeu por Injustiça Ambiental “o mecanismo pelo qual sociedades desiguais destinam a maior carga dos danos ambientais do desenvolvimento a [...] grupos raciais discriminados, populações marginalizadas e mais vulneráveis”.34 Nos resta, então, discutir a temática do racismo ambiental, com objetivo de enfatizar as diferenças conceituais e justificar a escolha adotada neste trabalho.

2.3) Do Racismo Ambiental

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A divisão social em classes, a segregação das minorias e o “anti-status” são explicados por Bourdieu35 pela noção de que “uma classe social nunca é definida somente por sua situação e por sua posição numa estrutura social [...]; ela deve também muitas de suas propriedades ao fato de que os indivíduos que a compõem entram deliberadamente ou objetivamente em relações simbólicas que, expressando as diferenças de situação e de posição segundo uma lógica sistemática, tendem em transmutá-las em distinções significantes”. Tal sistemática de exclusão deve ser aplicada à hipótese de racismo ambiental. Esse termo foi cunhado originalmente no relatório “Toxic Wastes and Race in The United States” por Benjamin F. Chavis Jr.36, a partir de demandas dos movimentos sociais nos Estados Unidos.

34) Declaração de Lançamento da Rede Brasileira de Justiça Ambiental, 2001, Niterói. Disponível em: . Acesso em: 10 abr. 2014. 35) BOURDIEU, Pierre. Condição de classe e posição de classe. In: AGUIAR, Neuma (org.). Hierarquias em classes. Rio de Janeiro, 1974. 36) CHAVIS, Benjamin. Prefácio. In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism: Voices from the Grassroots. Boston: South End Press, 1993. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Tais movimentos, chamados por Henri Acselrad37 de “ações coletivas”, dividiram-se em dois principais momentos, o subjetivista e o objetivista. No último, “manifesta-se a constituição de uma força coletiva que se opunha a uma prática que lhes aparecia como de despossessão ambiental e de imposição do poder decisório de terceiros sobre os atributo qualitativos de seu ambiente”. Já o primeiro tratou-se de uma radicalização da luta, em que criaram-se os termos “racismo ambiental”, “insight”, e “denunciou-se igualmente a traição das promessas do sonho americano”; buscava-se, assim, “a igualdade substantiva de condições materiais de existência não medidas diretamente pelo mercado.” A importância trazida por tais movimentos é reconhecida por Acselrad38. Entretanto, destaca a preponderância dos resultados trazidos pela corrente objetivista, posto que, a partir de estudos evidencia a “objetividade da desigualdade do poder” e como “a variável racial adquire, no caso, relevância maior do que a coincidência entre a localização de grupos pobres e a localização de fontes poluentes”. O movimento subjetivista, por sua vez, teve como marco a proposição de uma solidariedade interlocal e internacional, justificada como “forma de evitar a exportação da injustiça ambiental e de dificultar a mobilidade de capital, o qual tende [...] a abandonar áreas de maior organização política e dirigir-se para áreas com menor nível de organização e capacidade de resistência”. O caso de Kattleman City, Estados Unidos, em 1992, é extremamente relevante por ser uma das primeiras lutas definidoras do Movimento de Justiça Ambiental. Nesse caso, relatado por Cole e Foster39, houve uma tentativa de instalação de um incinerador de resíduos tóxicos pela empresa Chem Waste a 4 milhas da comunidade de Kattleman City, onde 95% da população eram latinos e 40% falavam apenas em espanhol. Ainda assim, o relatório de impacto ambiental foi disponibilizado apenas em inglês para a comunidade. A comunidade lutou arduamente pela não instalação do empreendimento, e o caso tomou proporções nacionais, até que, em 1993, a Chem Waste anunciou sua desistência de instalar o incinerador. A temática do racismo levanta questões sobre a ocorrência do mesmo na 37) ACSELRAD, Henri. Meio ambiente e Justiça – estratégias argumentativas e ação coletiva. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2014. p. 5-6. 38) ACSELRAD, Henri. Meio ambiente e Justiça – estratégias argumentativas e ação coletiva. Disponível em: . Acesso em: 11 abr. 2014. p. 5-8. 39) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000, p. 1-9. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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população brasileira. O racismo encontra-se fortemente presente na nossa sociedade e se manifesta de forma diferente do racismo dos Estados Unidos, como já foi abordado previamente. Em relação ao conceito de racismo Chavis40 apresenta que é o: “Preconceito racial acrescido de poder. O racismo é o uso intencional ou não intencional do poder para isolar, separar e explorar os outros. O uso do poder é baseado na crença de uma origem na superioridade racial, identidade ou supostas características raciais. O racismo confere certos privilégios e defende os grupos dominantes, que em retorno sustentam e perpetuam o racismo. Ambos consciente e inconscientemente, o racismo é reforçado e mantido pelas instituições legais, culturais, religiosas, educacionais, econômicas, políticas, ambientais e militares das sociedades. O racismo é mais do que uma atitude pessoal; é uma forma institucionalizada dessa atitude”. Além das relações de poder existentes, o “racismo é a forma pela qual desqualificamos o outro e o anulamos como não semelhante. ”41 O nosso racismo não nos deixa perceber a pobreza e as dificuldades de enorme parcela da população brasileira que sofre com a ausência das políticas sociais de amparo, com a baixa escolaridade, com as condições precárias de moradia e as dificuldades de acesso a um sistema de saúde digno e com um salário irrisório. “Naturalizamos tais diferenças, imputando-as a ‘raças’. Colocando o outro como inerentemente inferior, culpado biologicamente pela própria situação, nos eximimos de efetivar políticas de resgate, porque o desumanizamos.”42

40) “Racism is racial prejudice plus power. Racism is the intentional or unintentional use of power to isolate, separate and exploit others. This use of power is based on a belief in superior racial origin, identity or supposed racial characteristics. Racism confers certain privileges on and defends the dominant group, which in turn sustains and perpetuates racism. Both consciously and unconsciously, racism is enforced and maintained by the legal, cultural, religious, educational, economic, political, environmental and military institutions of societies. Racism is more than just a personal attitude; it is the institutionalized form of that attitude.” COMMISSION FOR RACIAL JUSTICE UNITED CHURCH OF CHRIST. Toxic Wastes and Race In The United States. A National Report on the Racial and Socio-Economic Characteristics of Communities with Hazardous Waste Sites.1987. Disponível em: . Acesso em: 05 mar. 2014. 41) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.17, jan./ abr. 2008 42) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.17, jan./ abr. 2008. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Já em relação às especificidades do racismo ambiental, Herculano43 defende que: “O conceito diz respeito às injustiças sociais e ambientais que recaem de forma desproporcional sobre etnias vulnerabilizadas. O racismo ambiental não se configura apenas por meio de ações que tenham uma intenção racista, mas igualmente por meio de ações que tenham impacto racial, não obstante a intenção que lhes tenha dado origem. Diz respeito a um tipo de desigualdade e de injustiça ambiental muito específico: o que recai sobre suas etnias, bem como sobre todo grupo de populações ditas tradicionais – ribeirinhos, extrativistas, geraizeiros, pescadores, pantaneiros, caiçaras, vazanteiros, ciganos, pomeranos, comunidades de terreiro, faxinais, quilombolas etc. – que têm se defrontado com a ‘chegada do estranho’, isto é, de grandes empreendimentos desenvolvimentistas – barragens, projetos de monocultura, carcinicultura, maricultura, hidrovias e rodovias – que os expelem de seus territórios e desorganizam suas culturas, seja empurrando-os para as favelas das periferias urbanas, seja forçando-os a conviver com um cotidiano de envenenamento e degradação de seus ambientes de vida”. Chavis44, por sua vez, noutra vertente, define racismo ambiental como: “[...] a discriminação racial nas formulações de políticas ambientais. É a discriminação racial na aplicação das leis e regulamentos. É a discriminação racial no alvo deliberado de comunidades de cor para disposição final de tóxicos e a localização de indústrias poluidoras. É a discriminação racial na sanção oficial da presença de venenos e poluentes que ameaçam a vida em comunidades de cor. E, é a discriminação racial na história de exclusão de pessoas de cor dos principais grupos ambientais, tomadas de decisão do conselho, comissões, e corpos regulatórios”. As populações de cor são frequentemente preteridas quando há a instalação de algum empreendimento que vai afetar significativamente a qualidade ambiental de onde vivem. Não são consultadas se têm alguma objeção e não têm acesso a dados do empreendimento. 43) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente, v.3, n.1, p.16. jan./ abr. 2008. 44) “Environmental racism is racial discrimination in environmental policymaking. It is racial discrimination in the enforcement of regulations and laws. It is racial discrimination in the deliberate targeting of communities of color for toxic waste disposal and the siting of polluting industries. It is racial discrimination in the oficial sanctioning of the life-threatening presence of poisoned and pollutants in communities of color. And, it is racial discrimination in the history of excluding people of color from the mainstream environmental groups, decisionmaking boards, commissions, and regulatory bodies.” CHAVIS, Benjamin. Prefácio. In: BULLARD, Robert. Confronting Environmental Racism: Voices from the Grassroots. Cambridge: South End Press, 1999, p.3. Tradução livre. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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O governo exerce papel fundamental na ocorrência do racismo ambiental nessas comunidades. A omissão no atendimento à legislação ambiental ocorre para atender a interesses políticos e econômicos. Afirmam Cole e Foster45 que “[...] uma vez que muitas das tomadas de decisões ambientais são estruturadas por instituições legais, é importante entender maneira com que as leis ambientais podem, ao mesmo, tempo contribuir com a injustiça vivida em tantas comunidades e também mitiga-las. Associado ao papel do governo, as indústrias também agem de forma a fomentar essa política de segregação, a qual, segundo Bullard46, foi apelidada, nos Estados Unidos, de NIMBY, de “not in my backyard”, ou seja, não no meu quintal, o que ocasionaria um deslocamento das indústrias poluidoras para o “quintal dos pobres”. Há, assim, a prevalência de um tratamento desigual entre países e territórios. Acselrad47 caracteriza esse fenômeno pela adoção de um “duplo padrão – a adoção de critérios ambientais distintos por uma mesma empresa em diferentes pontos do planeta – é a expressão chamada de ‘chantagem locacional’. ” Um acontecimento emblemático citado por Bullard48 foi a declaração, em 1991, de Lawrence Summers, economista chefe do Banco Mundial - que incentivou a transferência de indústrias poluentes para países subdesenvolvidos: “1. A mensuração dos custos da poluição prejudicial à saúde depende do lucro embutido no crescimento da morbidade e mortalidade (...) a lógica econômica que sustenta o deslocamento do lixo tóxico para países com menores salários é perfeita e deveríamos assumir isto; 2. Os custos da produção tendem a ser não -lineares, já que os incrementos da poluição tem custo muito baixo; 3. A reivindicação de um meio ambiente limpo, seja por razões estéticas ou de saúde, tem probabilidade de ser maior nas faixas maior de renda (...) Enquanto a produção é móvel, o consumo de ar saudável não é comercializável.” Com intuito de verificar como esse fenômeno ocorria no Brasil, Tânia

45) COLE, Luke W.; FOSTER, Sheila R. From the Ground Up: Environmental Racism and the Rise of the Environmental Justice Movement. New York: NYU Press. 2000, p. 11. 46) BULLARD, Robert. Environmental justice: strategies for building healthy and sustainable communities. In: II WORLD SOCIAL FORUM, Fev. 2002, Porto Alegre. 47) ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p. 113. Disponível em: < http://www.scielo.br/ pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 48) BULLARD, Robert. (org). Confronting Environmental Racism – Voices from the Grassroot. Trad. Regina Rodrigues. Boston: South End Press, 1996. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Pacheco49 desenvolveu um Mapa do Racismo Ambiental no Brasil, para acompanhamento das ações lesivas à comunidade, sua denúncia e a busca de alternativas a este tipo de opressão “ao delinear os conflitos em que essas comunidades estão envolvidas, bem como os impactos ambientais e suas consequências sobre a saúde coletiva, o mapa tem como principal objetivo romper com a invisibilidade dessas situações e suas causas. ”50  O mapa51 pretende, a longo prazo, “contribuir para o fortalecimento da luta das comunidades atingidas e para a redução das vulnerabilidades socioambientais resultantes de um modelo de desenvolvimento socialmente injusto e ambientalmente insustentável.” Por sua vez, Acselrad52 desenvolveu um estudo, em conjunto com Haroldo Torres, em que se destaca o fato de serem recentes as pesquisas no Brasil acerca da coincidência entre as áreas habitacionais e a degradação ambiental. No mesmo sentido, o sociólogo Torres Marques53 desenvolveu a expressão “hiperperiferia”, que evidencia tal cruzamento de dados. Contudo, o que a teoria do racismo ambiental busca evidenciar é que, por trás das questões de desigualdade e má distribuição de renda, encontra-se a problemática da divisão social pela “cor” e que isto está intrínseco em determinadas sociedades, como ficou claro, por exemplo, nos Estados Unidos. Assim, embora os estudos ainda sejam incipientes no Brasil, de acordo com

49) HERCULANO, Selene. O clamor por justiça ambiental e contra o racismo ambiental. Revista de Gestão Integrada em Saúde do Trabalho e Meio Ambiente. v.3, n.1, p. 17, jan/ abr. 2008. 50) PACHECO, Tânia. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde Ambiental no Brasil: Ferramenta dos movimentos sociais nas lutas territoriais. Combate Racismo Ambiental. Blog de Tania Pacheco. Abr. 2011. Disponível em: < http://racismoambiental.net.br/2012/04/ mapa-da-injustica-ambiental-e-saude-no-brasil-ferramenta-dos-movimentos-sociais-nas -lutas-territoriais/> Acesso em: 24 abr. 2014. 51) PACHECO, Tânia. Mapa da Injustiça Ambiental e Saúde Ambiental no Brasil: Ferramenta dos movimentos sociais nas lutas territoriais. Combate Racismo Ambiental. Blog de Tania Pacheco. Abr. 2011. Disponível em: < http://racismoambiental.net.br/2012/04/ mapa-da-injustica-ambiental-e-saude-no-brasil-ferramenta-dos-movimentos-sociais-nas -lutas-territoriais/> Acesso em: 24 abr. 2014. 52) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52 53) MARQUES, E. TORRES, H. Reflexôes sobre a hiperperiferia: novas e velhas faces da pobreza no entorno metropolitano, Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, n.4, 2001, p.52. Disponível em: < http://www.anpur.org.br/revista/rbeur/index.php/rbeur/ article/viewFile/57/41 >. Acesso em: 20 mar. 2014 Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Acselrad54, “não há dúvida de que o locus por excelência da evidenciação da injustiça ambiental está exatamente nos contextos intra-urbanos”, nesse sentido, conclui que, “com os resultados encontrados, pode-se constatar que a raça, no Brasil, também constitui uma variável importante em termos de distribuição da ‘desproteção ambiental’. ” Embora, o autor advirta que não teria, a partir desses dados, segurança para afirmar que tal problemática significaria “racismo ambiental” nos moldes do americano. No tópico a seguir, trabalharemos a inter-relação entre os dois conceitos e as justificativas pela escolha do termo racismo ambiental.

2.4) Da Correlação dos Conceitos e da Opção Pelo Estudo a Partir do Racismo Ambiental

O termo injustiça ambiental é tratado como uma afronta a um conjunto de princípios que asseguram que nenhum grupo de pessoas, sejam grupos étnicos, raciais ou de classe, sofra com riscos ambientais, ausência de políticas públicas e deslocamento de empresas poluidoras para áreas periféricas. O significado disso, contudo, expõe um ocultamento do preconceito que tem como origem a diferença de cor, pois separa em categorias para sujeição dos passivos ambientais, dando-se mais ênfase à divisão de classes, que na verdade a gênese da segregação encontra-se na cor. Tânia Pacheco55 traz uma importante reflexão a respeito da conceituação dos termos, pois adverte que o racismo é “uma questão que transcende a cor”, afirmando, ainda, que, “entre nós, diferentes populações economicamente vulnerabilizadas são igualmente alvo de preconceito e, mesmo quando não recebem rótulos obviamente racistas, são tratados como não cidadãos”. Embora a mesma autora admita que a expressão recebe críticas tanto de marxistas quanto dos próprios integrantes do movimento negro, há que se acrescentar, aqui, a crítica realizada pelos liberais a qualquer forma de es54) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52. 55) PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor. O presente artigo foi escrito, na sua forma original, para ser apresentado no I Seminário Cearense contra o Racismo Ambiental, realizado em Fortaleza, no final de 2006. Cumprida a sua finalidade, foi revisto e é agora apresentado em sua versão definitiva. Disponível em: http://justicaambiental.org.br/projetos/clientes/noar/noar/UserFiles/17/File/ DesInjAmbRac.pdf. Acesso em: 20/04/2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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tratificação que facilite a caracterização de uma poluição que não seja democrática, como apontado por Acselrad56 ao tratar do empasse entre a visão utilitária e a razão cultural. Mesmo assim, o uso da denominação racismo ambiental tem, de fato, grande carga simbólica. Em uma sociedade desigual e com graves problemas no enfrentamento da desigualdade racial, de certa forma, é desafiadora e imponente, pois desvela a essência que vivemos de uma sociedade racista. Posto isto, de acordo com Iara Vicente57: “Conceitos como o de racismo ambiental trazem uma contribuição efetiva para a sociologia pois dialogam com duas esferas da privação humana: as hierarquias de classe e o preconceito. É a partir da investigação desta intersecção entre situação objetiva de classe e a posição diacrítica, levando em conta as lutas simbólicas que são travadas ao decorrer dos processos históricos, que podemos nos aproximar do que significa a dominação do capital hoje.” Para ilustrar a importância da utilização do termo, Acselrad58 exemplifica o problema da identificação racial, em verdade, da auto identificação, por meio da pesquisa acerca da cor realizada pelo IBGE. Essa pesquisa é feita de forma auto declaratória, na modalidade de entrevista. Deste modo, não há uma exatidão entre a pesquisa e os resultados encontrados, até por haver um subjetivismo em tal questão. Porém, mesmo assim, Acselrad59 constatou que a maioria da população que sofria com o cruzamento dos dados referentes aos danos ambientais e a falta de acesso às condições básicas de saúde, saneamento e água potável se autodeclara de “pele parda e negra”. Nos Estados Unidos, em razão da diferenciação entre brancos e negros, o termo racismo ambiental é explícito e, portanto, mais facilmente identificado. No Brasil, em função de uma maior miscigenação, a utilização do termo “in56) Esse conceito é decorrente da análise de Acselrad sobre a razão cultural em contraponto com a visão utilitária. ACSELRAD, Henri. Ambientalização das lutas sociais – o caso do movimento por justiça ambiental. Estudos Avançados 24, 2010. p.108. Disponível em: < http://www.scielo.br/pdf/ea/v24n68/10.pdf > Acesso em: 10 abr. 2014. 57) VICENTE, Iara. A cor do risco: O racismo ambiental como categoria de estratificação social. GT15. Disponível em: http://actacientifica.servicioit.cl/biblioteca/gt/GT15/GT15_ VicenteI.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014. 58) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52. 59) ACSELRAD, Henri; MELLO, Cecília Campello do A.; BEZERRA, Gustavo das Neves. O que é justiça ambiental. – Rio de Janeiro: Garamond, 2009. p. 47-52. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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justiça ambiental” levaria a crer que tal preconceito existe, preponderantemente, devido a diferenças de classes sociais, e não da cor. Tal acepção, contudo, é falaciosa, uma vez que o racismo é velado no Brasil. Segundo Skidmore60, a “‘democracia racial’ do Brasil não existe.” Ainda segundo Skidmore61, “Era a falta de educação, cuidados de saúde, moradia decente — em suma, era a pobreza que atrasava os brasileiros não -brancos, assim ditava o argumento. Essa estratificação, por sua vez, não era primordialmente um resultado da raça. Era consequência do subdesenvolvimento brasileiro, da armadilha de pobreza na qual a maioria da população, branca e não-branca, definhava. De acordo com essa análise, amplamente partilhada pela elite brasileira, a raça era uma variável subordinada na determinação da estratificação social. E a classe, não a raça, tornou-se a explicação -padrão que a elite brasileira usou para explicar a persistente miséria na qual os pesquisadores patrocinados pela UNESCO encontraram a maioria dos brasileiros não-brancos”. A classe social tornou-se, portanto, justificativa para a miséria da população não-branca, em detrimento da raça. O termo “racismo ambiental”, por sua vez, diz respeito à discriminação racial nas formulações de políticas ambientais, na localização de indústrias poluidoras e disposição final de resíduos tóxicos. Pacheco62 complementa sobre a distinção dos conceitos de racismo ambiental e injustiça ambiental: “Quando se fala de Justiça Ambiental está implícito, nessa expressão, o conceito de ‘social’, inerente à essência da Justiça em si. Da mesma forma, quando falamos de Racismo Ambiental, não descartamos em nenhuma hipótese o combate ao chamado racismo institucional ou à forma como ele se manifesta nas nossas vidas e no nosso dia-a-dia: o preconceito. Muito ao contrário, o que procuramos é expor melhor essa chaga, dissecar essa ferida purulenta e denunciá-la como parte de um todo que deve ser comba60) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é Válido? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana, Rio de Janeiro. Abr, 1992. p.53. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/ uploads/contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014. 61) SKIDMORE, Thomas E. EUA Bi-racial vs. Brasil Multirracial: O Contraste ainda é Válido? In: Conferência sobre Racismo e Relações Raciais nos Países da Diáspora Africana, Rio de Janeiro. Abr, 1992. Disponível em: < http://www.novosestudos.org.br/v1/files/uploads/ contents/68/20080625_eua_multirracial.pdf> Acesso em: 18 abr. 2014. 62) PACHECO, Tania. Desigualdade, injustiça ambiental e racismo: uma luta que transcende a cor. Disponível em: http://justicaambiental.org.br/projetos/clientes/noar/noar/UserFiles/17/File/DesInjAmbRac.pdf. Acesso em: 20 abr. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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tido e derrotado, se desejamos um mundo novo – ético, justo e democrático.” Portanto, o conceito de “racismo ambiental” não se limita ao preconceito racial, sendo muito mais abrangente. Ocorre que sua utilização tem um caráter simbólico importante para a realidade brasileira. A nomenclatura “racismo ambiental”, em detrimento da “injustiça ambiental”, apresenta-se, pelo exposto, como ferramenta importante para que haja a visibilidade, conscientização e enfrentamento dos problemas inerentes a segregação racial – haja vista que estudos demonstrados neste trabalho evidenciam ser o fator social mais relevante para a constatação da segregação, muito maior, inclusive, que a divisão entre a renda ou classe social.

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Conclusão

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O presente artigo buscou confrontar os conceitos de racismo ambiental com o de injustiça ambiental e tentar entendê-los a partir da realidade brasileira. Primeiro foi importante esclarecer as diferenças conceituais entre os termos, visto que o liame existente entre os mesmos é, por muitas vezes, tênue e, até mesmo, passa despercebido. Porém, é exatamente na etapa de diferenciação, que a carga simbólica se apresenta. Desta forma, a partir dos estudos, tanto da doutrina brasileira e do contexto histórico do Brasil quanto da doutrina estrangeira, que foi possível averiguar a importância da utilização de um termo e não de outro. Isto porque, enquanto o termo injustiça ambiental mostra-se amplo abarcando toda e qualquer forma de injustiça, o racismo ambiental busca destacar que antes de tudo a desigualdade racial é apresentada como fator predominante de exclusão social e, com ênfase para o caso brasileiro, necessita de maior destaque, para que seja desvelada. Destaca-se, por fim, que conforme apresentado por Tania Pacheco, o racismo ambiental não exclui as diversas outras formas de injustiça ambiental, a importância de sua utilização está na carga simbólica e nos resultados que podem ser trazidos a partir da consciência da realidade racista enfrentada e a todo tempo velada, até mesmo como uma forma de resistir aos ocultamentos propostos pelos críticos neoliberais, por meio da visão utilitária, e anulação dos movimentos socioambientais.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Função Socioambiental das contratações públicas: O Estado como ator da sustentabilidade Elizabeth de Mello Rezende Colnago1 Polícia Militar do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 O Estado como Consumidor: Um Elemento a mais da Eficiência da Atividade Pública. 2 O Estado

na Posição de Consumidor Sustentável: Adequação a um Projeto de

Sociedade Sustentável. 3 Os Princípios da Administração Pública

na Perspectiva da Sustentabilidade: A Legalidade e a Eficiência com

o Fim de Reduzir Impactos Ambientais Negativos. 4 A Instrução Normativa e a Contribuição para a Função Socioambiental nas Contratações Públicas do Berço ao Túmulo. Conclusão

1) Advogada e Administradora de Empresas, Pós-Graduada em Direito Processual Civil, Mestre em Ciências Sociais, Professora de Direito Administrativo da Polícia Militar do Espírito Santo.

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Introdução

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O presente artigo é uma reflexão dos principais questionamentos que envolvem a função socioambiental nas múltiplas relações que se criaram entre o Estado e o complexo social para se alcançar o objetivo “desenvolvimento sustentável”. Toda a atuação do Estado deve garantir resultados econômicos, reduzir o impacto ambiental e melhorar o seu relacionamento com a sociedade. E para alcançar esse objetivo deve ter visão ampliada na função socioambiental dos contratos, para dar ênfase a esse novo modelo, que tem por estratégia a mudança de agenda na gestão do negócio público, incluindo simultaneamente a responsabilidade do Estado como um ator da sustentabilidade, para reforçar os laços do Estado com a sociedade e a natureza. A proteção ao meio ambiente contemporânea surge, principalmente, com a degradação ambiental provocada por diferentes atividades humanas, e o ritmo da contínua expansão dos problemas ambientais, têm sido na atualidade objeto de inúmeros debates. Tais desafios vêm apontando para a necessidade de se pensar o desenvolvimento mais eficaz ecologicamente entre a proteção da pessoa humana e o respeito ao meio ambiente. O tema não se esgota aqui, ele é complexo e os desafios continuarão para novos debates, pois a noção de desenvolvimento sustentável não evidencia a possibilidade ecológica de generalização dos padrões de consumo do Estado e das sociedades atuais, mas deve reforçar uma mudança dos valores éticos, pautados na solidariedade como forma de preservar os níveis de bem estar material, que consequentemente passará por uma mudança nesses padrões de consumo, reforçando a ideia de bem estar social. Dessa forma, a autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de fundamental importância à nova realidade social e econômica.

1) O Estado como consumidor- um elemento a mais da eficiência da atividade pública

O encontro do Estado de Direito e do Estado Social implica efeitos sobre a racionalidade interna do sistema político, em que a interferência do Estado nas relações jurídicas entre os particulares faz prevalecer o interesse do bem-comum e da redução das desigualdades sociais. Considerando isso, a liberdade de contratar está atrelada aos fins sociais do contrato, como está, assim, disposto no Código Civil Brasileiro: “A liberdade de contratar será Direitos Humanos e Meio Ambiente

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exercida em razão e nos limites da função social do contrato”2. Não é diferente a realidade brasileira, em relação às transformações que ocorreram na sociedade do final do século XX e início do século XXI, para as relações jurídicas que sofreram um processo de transformação socioeconômico, num contexto de desindustrialização e de urbanização inéditos na história brasileira. Um exemplo a ser citado é o caso específico do processo de desenvolvimento da Região Metropolitana de Vitória como forma de integrar essa área na economia internacional. Para alguns autores, isto vem acentuar as desigualdades sociais sem, contudo, deixar de trazer os impactos positivos como aponta Mattos: “[...] sobre a economia capixaba considerando apenas os fatores positivos como sua localização geográfica e condições naturais privilegiadas, como a implantação dos grandes empreendimentos industriais ligados ao mercado internacional e com os investimentos em infraestrutura portuária e ferroviária, que criaram uma base industrial, o que possibilitou a inserção do Espírito Santo na nova lógica de desenvolvimento [...] a mundialização e a reestruturação devem ser vistos como processos contraditórios, contendo dinâmicas de homogeneização e de singularização territorial, o que equivale dizer que as condições econômicas, sociais, institucionais e culturais são fatores importantes nas estratégias de localização das empresas e causam impactos, nem sempre positivos, nas questões sociais.3” Assim, no campo de novos conflitos sociais, onde a mundialização intensificou o processo de migração do campo para a cidade, novos efeitos sociais surgiram com a vulnerabilidade de parte da população, com restrições de acesso às condições mínimas de bem-estar e cidadania, gerando relações jurídicas das mais diversas e perversas, num contraponto à logica de mercado, gerando nova realidade contratual. Não persistindo mais o dogma da vontade em que as partes contraentes eram consideradas formalmente iguais. O regime contratual é concebido com o poder de autorregulamentação dos interesses privados, observada a função social, face as “[...] transformações das relações jurídicas na sociedade do século XX, o incremento da industrialização e o surgimento do consumo de massa trouxeram um novo fundamento à ideia de justiça contratual”4. 2) Art. 421. In: BRASIL. Código Civil. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Institui o Código Civil. Disponível em: . 2002. 3) MATTOS, R. F. S. Expansão urbana, segregação e violência: um estudo sobre a Região Metropolitana da Grande Vitória. Vitória: EDUFES, 2011, p. 115-116. 4) LOREIRO, L. G. Teoria geral dos contratos no novo código civil. São Paulo: Método, 2002, p. 44. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Dessa forma, a autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de fundamental importância à nova realidade social e econômica. E outra não é a interpretação da norma contida no dispositivo legal, o “artigo 421”, do atual Código Civil Brasileiro, em que relaciona a “Função Social” com a preocupação do bem -estar coletivo. Em outras palavras, essa relação tem como finalidade precípua a harmonização dos interesses individuais com a nova ordem econômica e social dentro dos princípios da justiça social. Mas a função social não é definida no artigo acima citado, passando a ser interpretada em outros dispositivos do mesmo diploma legal. Mais especificamente, isto vai ocorrer quando é fixada a importância do elemento moral e da equidade nas relações entre os contratantes, traduzidas pela probidade e boa-fé, que devem guardar os contratantes em suas relações contratuais como previsto no artigo 422 que assim determina, “[...] os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”5. Para entendermos o conceito de contrato, é preciso que se entenda a função econômica do contrato. Esta última está sendo, diariamente celebrada, seja comprando um bilhete de passagem num coletivo, seja comprando um lápis e, até mesmo, ao ofertar um presente ou ainda usufruir o meio ambiente com responsabilidade para que a futura geração possa usufruir de forma equânime. Um contrato natural, uma nova relação do ser humano com a natureza, com a previsão das mudanças e transformações do mundo que nos cerca, percebendo a natureza como um sujeito que interage, ou seja, um sujeito de direito, enseja uma responsabilidade neste plano contratual. E, neste novo plano contratual: “[...] os direitos humanos ganham uma ‘tonalidade verde’ que sugere a luta do ambientalismo para adicionar aos direitos humanos o direito a um ambiente seguro e saudável, de maneira a incluí-lo numa lista de conquistas formalmente estabelecidas.6” O contrato é explicado tanto no plano da sociologia como no plano da economia. Afinal, vivemos em sociedade, somos limitados e precisamos das relações de troca para poder sobreviver, embora haja contrato a um interesse, ainda que não patrimonial. Sendo assim, o “contrato, portanto, é um conceito jurídico que exprime uma realidade econômica subjacente na vida cotidiana da sociedade”7.

Nessa concepção, o contrato é uma operação econômica, vinculado a princípios e regras de direito, muitas vezes, complexos e entendido a partir da ideia de circulação de riquezas, de um fator social e econômico, o que exprime uma realidade de interesses mútuos. É, assim, um critério objetivo, sendo uma operação econômica ou não econômica. Na função econômica, ele se refere somente a um bem material, mas “[...] implica em circulação de riqueza, atual ou potencial transferência de riqueza de um sujeito para outro”8. Com relação à ideia de riqueza, cabe lembrar que, mesmo a promessa em benefício de terceiros, representa um contrato, como o contrato de promessa de compra e venda. O contrato implica ainda a função social, destinado à circulação de riqueza com segurança, vinculado ao desenvolvimento econômico de cada sociedade, época e em cada mercado. Transforma-se e se adequa. Mas não perde sua função primordial, que é a liberdade, para não ser instrumento que sirva de dominação dos mais fortes em detrimento dos mais fracos. Confirma-se o princípio da autonomia da vontade “[...] não mais em termos absolutos e ilimitados, mas sujeitas a limites impostos pela lei, por decisões judiciais e por atos administrativos que procurem assegurar o interesse preferencial da sociedade”9. Na função social do contrato, o legislador previu a mesma pretensão quanto à função social da propriedade, para garantir-lhe o equilíbrio, preservando o interesse da sociedade, e não o individual. É uma característica marcante à realidade contemporânea, em prevalência aos direitos coletivos sobre os individuais, “[...] sem perda, porém, do valor fundante da pessoa humana”10. Assim, a função social do contrato, volta-se para os fundamentos e objetivos da República, que se constitui em Estado Democrático de Direito, com princípios basilares, os quais estão contidos nos artigos 1° e 3° da Constituição Federal de 1988. Estes princípios orientam toda e qualquer operação econômica, ante a não violação da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, da equidade, da solidariedade e da produção de riquezas. Em interpretação a essas normas, tem-se que, se a operação econômica, revestida em contrato, violar um desses fundamentos e objetivos constitucionais, não será cumprida a sua função social. Dessa forma, “[...] a liberdade contratu-

5) Art. 422. In: BRASIL, 2002.

8) LOUREIRO, 2002, p. 49.

6) TAVOLARO, 2001, p. 180.

9) LOUREIRO, 2002, p. 50.

7) LOUREIRO, 2002, p. 48.

10) LOUREIRO, 2002, p. 53.

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al só pode ser exercida em consonância com os fins sociais do contrato, o que implica a supremacia dos princípios da boa-fé e da equidade”11. Nesse mesmo sentido, verificamos mudanças conferidas ao Estado, mesmo composto por seu governo soberano, que surgem naturalmente, deparando-se com o Estado de Direito, este organizado conforme seus ditames constitucionais, e que se submete às leis que cria. À medida em que o Poder Público se organiza, cria um aparelhamento complexo para cuidar de seus serviços e dar consecução aos seus objetivos, por meio da “Administração Pública”. Cabe lembrar que “[...] o verbo administrar indica gerir, zelar, enfim uma ação dinâmica de supervisão. O adjetivo pública pode significar não só algo ligado ao Poder Público, como também à coletividade ou ao público em geral”12. Assim, em sentido objetivo, consiste na própria atividade administrativa exercida pelo Estado, por seus órgãos e seus agentes, caracterizando a função administrativa. Em sentido subjetivo, vamos encontrar o conjunto de agentes, órgãos e pessoas jurídicas que executam as atividades administrativas. A esse aparelhamento complexo organizado pelo Estado, que se traduz em Administração Pública, tanto pode desenvolver por si mesmo as atividades administrativas que têm, constitucionalmente, a seu encargo por meio da “Administração Direta”13. Ou por meio de uma “Administração Indireta”14 que será prestada através de outros sujeitos. Portanto, segundo José dos Santos Carvalho Filho, sendo qual for “[...] à hipótese de administração da coisa pública (res publica), é inafastável a conclusão de que a destinatária última dessa gestão há de ser a própria sociedade, ainda que a atividade beneficente, de forma imediata, o Estado”15. Como a liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato, nos contratos administrativos não será diferente. Posto

11) LOUREIRO, 2002, p. 53-54. 12) CARVALHO FILHO, J. S. Manual de Direito Administrativo. 22 ed., ver. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011, p. 9. 13) Administração Direta – órgãos e agentes que compõem o sistema federativo (União, Estados, Distrito Federal e Municípios). Desempenham a atividade administrativa de forma centralizada. 14) Administração Indireta – algumas pessoas jurídicas (entidades) incumbidas de executar a função administrativa (autarquias, sociedade de economia mista, empresas públicas e fundações públicas). Desempenham a função administrativa de forma descentralizada. 15) CARVALHO FILHO, 2011, p. 9. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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que seja regido por suas ‘cláusulas e pelos preceitos de direito público’16, são aplicados, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado. Em tese de doutorado, Rabelo defende que “[...] prevalece para o Contrato Administrativo uma vontade de característica nitidamente normativa, que cumpre o mesmo papel da vontade individualmente considerada”17. Consequentemente, observa-se os reflexos do Código Civil nos contratos administrativos. Esses últimos são regidos pela Lei 8.666/93, que passou a regulamentar o artigo 37, inciso XXI, da Constituição Federal de 1988, mas com observação a um conjunto de formalidades. Dentre essas formalidades, não se pode olvidar que a função social ou extraeconômica nas contratações públicas ou administrativas “[...] tornam-se um meio não apenas de satisfazer necessidades imediatas do Estado. Passam a ser um instrumento de incentivo e fomento a atividades reputadas como socialmente desejáveis”18. Além do que, as ideologias contemporâneas pregam a redução do aparato estatal, seguindo a linha de ampliação da eficiência na utilização de recursos públicos. Dessa forma, temos que a Administração Pública, direta e indireta, de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, em suas relações contratuais, deve, obrigatoriamente, observar os princípios constitucionais essenciais para garantir a honestidade na gestão da coisa pública e responsabilizar seus gestores que se afastarem dessas diretrizes obrigatórias. A previsão do artigo 37 da Carta Magna de 1988 consagra normas básicas regentes da Administração Pública e proclama os princípios da Legalidade, Impessoalidade, Moralidade, Publicidade e Eficiência, como pilares de sua sustentação. A Norma superior deixou expressos os princípios a serem observados, consagrando o princípio da “Legalidade”, como diretriz básica da conduta dos agentes administrativos, determinando de forma mais rigorosa e especial, que toda e qualquer atividade administrativa implica autorização da lei. E não é diferente após séculos de evolução política, a criação do Estado 16) Conceitua-se contrato administrativo como um tipo de avença travada entre a Administração e terceiros na qual, por força de lei, de cláusulas pactuadas ou do tipo do objeto, a permanência do vínculo e as condições preestabelecidas assujeitam-se a cambiáveis imposições de interesse público, ressalvados os interesses patrimoniais do contratante privado. 17) R  ABELO, M. A. Substantividade, função social e boa-fé na valoração do contrato administrativo. Tese (Doutorado em Direito Administrativo). Belo Horizonte: UFMG, 2006, p. 40. 18) JUSTEM FILHO, M. Comentários à lei de licitações e contratos administrativos. 13 ed. São Paulo: Dialética, 2009, p. 12. Obra dedicada ao Instituto Terra

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de Direito está aí consagrado, já que o Estado submete-se a própria lei que cria, não havendo margem de liberdade na atuação de seus agentes. Inexiste a incidência de sua vontade subjetiva; já que executor do direito, que atua sem finalidade própria; mas em respeito ao interesse imposto pela lei, preservando a ordem pública. Todavia, em nova concepção contemporânea, a submissão da Administração ao Direito, deixa revelar uma margem de liberdade na atuação de escolha na prática de atos administrativos por seus agentes, de forma discricionária, mas com previsão na lei, para a melhor atuação possível com a possibilidade de valoração da conduta. O princípio da legalidade implica que “[...] na administração pública só é permitido fazer o que a lei autoriza, diferentemente da esfera particular, em que será permitida a realização de tudo que a lei não proíba”19. O Principio da “Impessoalidade”, no rol do artigo 37 da CRFB/88 volta-se nas palavras de Carvalho Filho, “[...] exclusivamente para o interesse público, e não para o privado, vedando-se, em consequência, sejam favorecidos alguns indivíduos em detrimento de outros e prejudicados alguns para favorecimento de outros”20. O interesse público é a única “finalidade” na atuação administrativa, já que se encontra no campo de incidência do princípio da isonomia e da legalidade. A administração pública deve atuar ajustando-se as regras de Direito, segundo a meta principal é atingir o alvo “interesse público”, em que a igualdade é mandamento e respeito constitucional, para a função administrativa, sob pena de “desvio de finalidade”, “[...] que ocorre quando o administrador se afasta do escopo que lhe deve nortear o comportamento – o interesse público”21. O artigo 37 ainda se referiu ao princípio da Moralidade, ou da “ética” que todo administrador público não deve dispensar em sua conduta, distinguindo o que é honesto do que é desonesto, onde o constituinte teve a pretensão de coibir a improbidade no âmbito da administração pública. A moralidade incide tanto nas relações entre Administração e administrados e nas relações entre a Administração e seus agentes que a integram, como forma de pressuposto de validade de todo ato praticado. E pressupõe a proporcionalidade entre os meios e os fins a atingir, na

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prática de todo e qualquer do ato administrativo, e, quando atuar, sem observar a forma legal, em desrespeito à moralidade administrativa: “[...] enquadra-se nos denominados atos de improbidade, previstos pelo art. 37, § 4°, da Constituição Federal, e sancionados com a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação da lei.22” O princípio da “Publicidade” inserido, também, pelo comando constitucional, indica que, se deve dar divulgação oficial aos atos praticados pela Administração Pública, em Diário Oficial ou por edital afixado no lugar próprio para divulgação de atos públicos, para conhecimento do público em geral, segundo Alexandre de Moraes. O ato administrativo, após sua publicidade, dará início a produção dos efeitos desejados, ensejando a transparência administrativa, posto que não maneja interesses, poderes ou direitos pessoais, conforme preceito da impessoalidade, pois conforme um dos seus fundamentos, previsto no artigo 1°, parágrafo único da Constituição Federal de 1988, que assim dispõe: “[...] todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”23. Neste sentido, o povo é titular do poder e deve ter conhecimento de todos os atos praticados, já que pode deter o controle da legitimidade da conduta dos agentes que praticarem os atos. Aqui ainda se insere a eficiência, que deve ser aferida pelos cidadãos. Carvalho Filho, informa que: “[...] é importante que não se deixe de fora o registro de que o princípio da publicidade deve submeter-se todas as pessoas administrativas, quer as que constituem as próprias pessoas estatais, quer aquelas outras que, mesmo sendo privadas, integram o quadro da Administração Pública, como é o caso das entidades paraestatais (empresas públicas, sociedades de economia mista e fundações públicas).24” Por fim, como último princípio inserido no texto do artigo 37, em 1988, pela Emenda Constitucional n. 04, denominada Reforma Administrativa, temos o princípio da eficiência, que se volta para a qualidade, na prestação do serviço público. Segundo Alexandre de Moraes, o administrador público precisa ser eficiente e impõe à Administração Pública direta e indireta: “[...] a persecução do bem comum, por meio do exercício de suas competências de forma imparcial,

19) MORAES, A. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 4 ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 793.

22) MORAES, 2004, p. 795.

20) CARVALHO FILHO, 2011, p. 17.

23) Art. 1º. In: BRASIL, 1988.

21) CARVALHO FILHO, 2011, p. 18.

24) MORAES, 2004, p. 795.

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neutra, transparente, participativa, eficaz, sem burocracia e sempre em busca da qualidade, primando pela adoção de critérios legais e morais necessários para melhor utilização possível dos recursos públicos, de maneira a evitar desperdícios e garantir uma maior rentabilidade social.25” A qualidade do serviço prestado se inclui em todos os serviços prestados pela Administração, quer direta ou indireta, quer por seus delegados, sendo que o cerne do princípio, é a procura da produtividade e economicidade, reduzindo desperdícios de dinheiro público. Na linha de interpretação do citado acima quanto à forma de “produtividade e economicidade”, a eficiência deve ser compreendida tanto qualitativa como quantitativamente. Ela tem uma relação estreita com o Direito do Consumidor, na medida em que a sociedade, por meio da prestação de serviços públicos, se caracteriza como usuária e consumidora destes, fazendo com que a eficiência seja um elemento indispensável no fornecimento dos bens e serviços pela Administração Pública. Com relação à Administração Pública, a Emenda Constitucional n. 04/98, como proposta da citada “Reforma Administrativa”, considera, para o princípio da eficiência, “resultado” como sendo o sinônimo de qualificação, produtividade, profissionalização para o novo servidor público. Este princípio resguarda os direitos e garantias fundamentais, preconizados pelo Estado de Direito e que foram ao encontro do Estado Social. Ainda, ele preconiza que haja uma obrigação de cuidado do patrimônio público com “efetividade”26 no trato da prestação de serviços qualitativos à coletividade. É nesse item, especificamente, que o Estado como consumidor, então, se depara com a questão sustentável, que foi inserida pela Instrução Normativa N. 1, de 19 de Janeiro de 2010 da SLTI/MP27 28. Esta instrução prima pela efetividade na aquisição de bens ou contratação de serviços quando, através dela, 25) MORAES, 2004, p. 799. 26) Efetividade não se confunde com eficácia e eficiência. Efetividade é voltada para os resultados obtidos com as ações administrativas. 27) Art. 1º. In: BRASIL. Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão. Instrução Normativa n. 01, de 19 de janeiro de 2010. In: Instruções Normativas. 2010. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2012. 28) Nos termos do art. 3º da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, as especificações para a aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica, e fundacional deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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a sustentabilidade nos contratos administrativos passa, assim, a ser um elemento a mais da eficiência da atividade pública. Portanto, o Estado como um dos atores da sustentabilidade deve cumprir a função socioambiental nos contratos administrativos, fazendo prevalecer o interesse do bem-comum e a redução das desigualdades sociais. A autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de fundamental importância à nova realidade social, econômica e ambiental. Além disto, o Estado, como consumidor, passa a observar as normas contidas no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, Lei 8078/1990. A referida lei estabelece normas de proteção e defesa do consumidor, da ordem pública e interesse social nos termos do artigo 5° (Dos direitos e deveres individuais e coletivos), inciso XXXII, artigo 170, inciso V da Constituição Federal de 1988 (Dos princípios gerais da atividade econômica). Em seu artigo 2º, esta lei define o consumidor como sendo toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. E, assim, no parágrafo único deste mesmo artigo, a lei detalha que “consumidor” pode ser compreendido como sendo a coletividade de pessoas mesmo que indetermináveis; o que leva a abranger nessa expressão a Administração Pública. Como organização política que é, o Estado atua, perante a sociedade, por meio da organização da Administração Pública. Consequentemente, o Estado é apreendido como sendo ele um consumidor de acordo com a referida lei. Isto implica para tanto que, em todo o processo da compra pública, incluindo a tríade “necessidade/planejamento/execução”, deve estar sendo considerado o padrão sustentável imposto pela Instrução Normativa citada acima. E isto, desde o momento em que o processo licitatório é deflagrado até a sua execução. Ou seja, o princípio da sustentabilidade deve ser, primeiramente, considerado na elaboração criteriosa do edital, com descrição específica do objeto quanto a sua real necessidade, das exigências que beneficiem a organização, sem prejudicar a sociedade e o meio ambiente29. E, neste sentido, a Administração Pública tem o dever de acompanhar o cumprimento das obrigações previstas no contrato, fiscalizando se, de fato, elas estão sendo executadas. A fiscalização é uma das “cláusulas exorbitantes”30 que, sendo inserida no contrato, passa a garantir que sejam observados os três pilares da sustentabilidade, quais sejam, o econômico, o social e o ambiental. Observados na fiscalização, as consequências negativas serão evitadas no mo29) MEDAUAR, 2012, p. 660. 30) Cláusulas Exorbitantes são as prerrogativas especiais conferidas à Administração na relação do contrato administrativo em virtude de sua posição de supremacia em relação à arte contratada. Obra dedicada ao Instituto Terra

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mento da execução do contrato, em benefício da sociedade e do meio ambiente. Os contratos públicos cumprem a função social como nos contratos particulares. No caso dos contratos públicos, são inseridos cláusulas de privilégios que os diferencia do particular, que bem demonstra sua superioridade em face da outra parte contratante, em atendimento ao interesse da coletividade. Segundo Carvalho Filho: “[...] constituem verdadeiros princípios do direito público, e, se antes eram apenas enunciadas pelos estudiosos do assunto, atualmente transparecem no texto legal sob a nomenclatura de “prerrogativas” (art. 58 do estatuto). São esses princípios que formam a estrutura do regime jurídico de direito público, aplicável basicamente aos contratos administrativos (art. 54, Estatuto).31” O Estatuto ao qual se refere Carvalho Filho na citação acima é a lei que estabelece normas gerais sobre licitações e contratos da Administração Pública. De acordo com ela, a Administração, por meio das cláusulas chamadas “exorbitantes” (impostas pelo Poder Público), tem a possibilidade de assegurar a própria viabilidade econômica da contratação administrativa. Essas cláusulas são um poder-dever da Administração Publica, pois, segundo Marçal Justem Filho, “[...] A Administração dispõe de um poder jurídico, que lhe é outorgado não no interesse próprio – mas para melhor realizar um interesse indisponível”32. Em relação à função socioambiental dos contratos administrativos, na criação de uma política de Contratações Públicas, as prerrogativas especiais levarão em consideração os critérios de sustentabilidade, ou seja, critérios fundamentados no desenvolvimento econômico e social, bem como no respeito ao meio ambiente. Para Veiga e Cechin, no entanto, nos estudos com foco na dimensão econômica estão raramente explicitados os impactos ambientais e sociais causados pela atividade econômica. Afinal, “[...] o individualismo metodológico da teoria econômica ignora sistematicamente a natureza hierárquica dos sistemas sociais e ecológicos”33. A Instrução Normativa parece não estar privilegiando essa visão convencional da atividade econômica a ser praticada pelo Estado, através da função socioambiental de seus contratos administrativos. Frente a um Estado consumidor, este ator deve buscar sempre, em suas relações contratuais, a conservação das espécies vivas em especial a humana, como finalidade do agir econômi31) CARVALHO FILHO, 2011, p. 174. 32) JUSTEM FILHO, 2009, p. 708. 33) VEIGA, J. E. (org.). Economia socioambiental. São Paulo: SENAC, 2009, p. 10. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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co 34. Para tanto, a perspectiva ecológica do processo econômico deve ser levada em conta. Afinal, como ressalta Da-Silva-Rosa: “[...] o processo econômico de transformação pode ser visto como um processo natural, típico da espécie humana. De maneira análoga ao que se passa na natureza, o processo econômico se compõe de três etapas ou atividades: (1) o consumo de recursos; (2) a sua transformação em produtos pelas diferentes etapas, e (3) a devolução (o feedback) dos dejetos no meio próximo.35” Se o Estado tomar em conta o acima citado, o que parece ser o caso através da dita Instrução Normativa, ele passa a não ser mais um consumidor, mas um consumidor sustentável, respondendo, inclusive, os compromissos do Brasil assumidos nas conferências onusianas sobre meio ambiente e desenvolvimento. Cabe ressaltar, ainda, que está em tramitação na Câmara Federal o Projeto de Lei 3.899/12, que vai instituir a Política Nacional de Estímulo à Produção e Consumo Sustentável, cujo objetivo é incentivar a adoção de práticas sustentáveis e priorizar “[...] nas aquisições e contratações governamentais, produtos reciclados e recicláveis; e a bens, serviços e obras que considerem critérios compatíveis com padrões de consumo social e ambientalmente sustentáveis”36. Deve ser pensado no “decréscimo” do ritmo de exploração dos recursos naturais, renováveis ou não, isto é, práticas de consumo e ações socioambientais menos intenso da natureza, com recursos mais econômicos.

2) O Estado na posição de consumidor sustentável: adequação a um projeto de sociedade sustentável

Como é cediço, o Estado, sendo uma organização política, atua perante a sociedade por meio da organização da Administração Pública, e, segundo José Afonso Silva define que a organização administrativa do Estado federativo é complexa quando aponta que: “[...] a função administrativa é institucionalmente imputada a diversas entidades governamentais autônomas, que, no caso brasileiro, estão expressamente referidas no próprio art. 37, de onde decorre a 34) DA-SILVA-ROSA & VEIGA, 2009, p. 32. 35 ) DA-SILVA-ROSA & VEIGA, 2009, p. 33. 36) BRASIL. Câmara dos Deputados. Projeto de Lei nº 3.899/2012. Institui a Política Nacional de Estímulo à Produção e ao Consumo Sustentáveis. Disponível em: . Acesso em: 10 dez. 2012. Obra dedicada ao Instituto Terra

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existência de várias Administrações Públicas: a federal (da União), a de cada Estado (Administração Estadual), a do Distrito Federal e a de cada Município (Administração Municipal ou local), cada qual submetida a um Poder político próprio, expresso por uma organização governamental autônoma.37” Destarte, a Administração Pública exerce sua atividade por meio de agentes e tem a natureza de um “múnus público”38. Isto é, a de um encargo de defesa, conservação e aprimoramento dos bens, serviços e interesses da coletividade. Nesse sentido, todo agente do poder assume, para com a coletividade, o compromisso de bem servi-la, porque outro não é o desejo do povo. Assim, os fins perseguidos pela Administração Pública resumem-se no objetivo do Estado Democrático de Direito. Este é a síntese da organização social, a fim de satisfazer o bem-estar comum da coletividade e que deve administrar com “eficiência toda a vida pública”39. É essa supremacia de interesse que vai dar margem a que a sustentabilidade seja inserida no âmbito das contratações públicas feitas pelo Estado, seja em níveis federal, estadual ou municipal. O alicerce da sustentabilidade na referida instrução normativa tem por objeto, reduzir o consumo de água e energia; a diminuição do impacto ambiental; a geração de resíduos; a toxicidade nos bens e insumos, além de fomentar políticas públicas voltadas à proteção do meio ambiente.

3) Os princípios da Administração Pública na perspectiva da sustentabilidade: A legalidade e a eficiência com o fim de reduzir impactos ambientais negativos

Em relação ao uso racional de recursos públicos, o Estado quando atua como consumidor, não é um mero comprador. Pauta sua conduta na observação do princípio da Legalidade e Eficiência, em consonância com os demais princípios basilares, expressos no artigo 37 da Constituição Federal de 1988. Essa observação deve ser feita da forma mais racional possível. Entre os princípios basilares, estes dois são ressaltados aqui porque ambos se conectam com o paradigma da sustentabilidade a partir da Instrução Normativa 01/2010. 37) SILVA, J. A. Direito Administrativo. 23 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 67. 38) CARVALHO FILHO, 2011, p. 527. 39) Princípio basilar da Administração Pública, inserido pela EC n. 19/98 ao artigo 37 da CF/88. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Ou seja, eles passam a ser observados nas contratações administrativas no sentido de se aplicar a legislação ambiental em vigor, antes de qualquer atividade a ser exercida (isso é, desde um projeto básico, aos procedimentos licitatórios até a escolha da melhor proposta); e, até mesmo, na execução contratual, evitando, assim, um impacto negativo das contratações públicas. Essa é uma recente abordagem sobre compras públicas, as quais devem contribuir para a sustentabilidade do desenvolvimento, que passou a ser regulamentada pelo artigo 3° da Lei de Licitações e Contratos no âmbito da Administração Pública, pela Instrução Normativa Nº 1, de 19 de Janeiro de 2010 da SLTI/MP. Assim, nas contratações administrativas anteriores a IN acima, a “Eficiência” pautava-se em comprar mais rápido e melhor; pelo menor custo possível. Ou seja, ela era compreendida numa perspectiva economicista. Com a entrada em vigor da dita Instrução, a noção de eficiência toma uma outra dimensão, na medida em que, devido a IN, ela se insere no paradigma da sustentabilidade. É a densificação da eficácia. Com a nova política, o uso do poder de compra do Estado deve observar critérios sustentáveis, pautando as comprar públicas em segmentos estratégicos e relevantes, com vistas ao desenvolvimento econômico e social ecologicamente sustentável. Dessa forma, este ator busca responder ao anseio social em favor de uma sociedade sustentável e aos compromissos ambientais assumidos pelo Estado brasileiro no cenário internacional. Quanto ao princípio da “Legalidade”, o Estado, enquanto agente público, só faz o que a lei autorizar ou determinar, estando vinculado aos seus mandamentos, observando as suas diretrizes, não tendo, portanto, total liberdade de ação. À exceção de quando a própria lei lhe der margem de liberdade para agir, no que ele, mesmo assim, estará no cumprimento da legislação. Considerando a IN, o Estado, no cumprimento da lei, tem que passar a considerar os critérios de sustentabilidade ambiental como estão dispostos na IN com o fim de reduzir impactos ambientais negativos. Para o caso das obras sustentáveis, devem ser observados a redução do consumo de energia e água e o uso de tecnologias e materiais ambientalmente sustentáveis. No caso das compras de bens e serviços, devem ser observadas características quanto à eco eficiência dos produtos a serem adquiridos e de serviços a serem contratados. Dessa forma, o Estado-Administração, nas licitações e contratações públicas tem o dever de realizar este procedimento com eficácia e não simplesmente com eficiência ou mera legalidade. Deve adaptar-se ao sistema normativo em consonância com o “principio positivo da sustentabilidade multidimensional”40. 40) FREITAS, J. Sustentabilidade: direito ao futuro. 2 ed., Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 241. Obra dedicada ao Instituto Terra

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4) A instrução normativa e a contribuição para a função

socioambiental nas contratações públicas do berço ao túmulo

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Ante a inserção da “promoção do desenvolvimento nacional sustentável”, a IN abrange, em seu artigo 1º (nos termos do artigo 3º da Lei nº 8.666/93), as especificações para a aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entidades, tanto da administração pública federal direta e indireta. Estes deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas. Está, assim, visualizado o paradigma da sustentabilidade pelo viés da eficiência pública como, também, o uso do poder de compra do Estado, que tem por objeto a prestação de serviços públicos com padrão de excelência e qualidade ambiental. Visa, ainda, a operosidade da atuação da administração pública. Como dito anteriormente, existem diferentes razões para introduzir critérios ambientais a fim de buscar a compatibilidade ou coerência do conteúdo das normas. Afinal, não se pode esquecer que a própria Constituição Federal de 1988 coloca o direito de todos os cidadãos ao meio ambiente saudável e que esta deixa evidente a necessidade de se respeitar os tratados internacionais, compromissos assumidos pelo Estado. Isto é lembrado por Eros Grau quando afirma que: “A lei pode, sem violação do princípio da igualdade, distinguir situações, a fim de conferir a uma tratamento diverso do que atribui a outra. Para que possa fazê-lo, contudo, sem que tal violação se manifeste, é necessário que a discriminação guarde compatibilidade com o conteúdo do princípio.41” Sendo assim, não se está violando o princípio da igualdade entre os licitantes. A sustentabilidade como uma temática contemporânea que ganha força no cenário nacional através desta IN, quando ela se torna um elemento da eficiência na atividade pública. E, nesse padrão de excelência, qualidade e operosidade, um dos critérios adotados pela IN em seu artigo 10 é de que: “[...] os órgãos e entidades da Administração Pública Federal direta, autárquica e fundacional, quando da formalização, renovação ou adiantamento de convênios ou instrumentos congêneres, ou ainda de contratos de financiamento com recursos da União, ou com recursos de terceiros tomados com o aval da União, deverão inserir cláusulas que determine à parte ou partícipe a observância do disposto 41) BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI N. 3.070-RN. In: Informativo STF. n. 493, 2007. Disponível em: . Acesso em: 20 jun. 2012. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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nos artigos 2º ao 6º desta Instrução Normativa, no que couber”.42 A intenção do legislador é no sentido de que as especificações para a aquisição de bens, contratação de serviços e obras por parte dos órgãos e entidades da administração pública federal direta, autárquica e fundacional, deverão conter critérios de sustentabilidade ambiental, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas. Como indicadores de Sustentabilidade, preconizados pela Instrução Normativa n. 01/2010, tem-se o ciclo de vida dos produtos. Isso consiste no exame do ciclo de vida de um produto, processo, sistema ou função, procurando identificar o seu impacto ambiental, no transcurso de sua existência, que inclui desde a extração do recurso natural, seu processamento para a transformação em produto, transporte, consumo/uso, reutilização, reciclagem, até a disposição final. É comum utilizar a expressão “do berço ao túmulo”43. Esse ciclo de vida consiste na entrada de materiais (consumo), processos de produção e condições, sua entrega, uso e descarte final. Ou seja, a sustentabilidade deverá estar garantida em toda a execução do contrato, constatando-se que a seriedade e concretude da proposta vencedora, atende aos critérios de sustentabilidade. Assim, especialmente no artigo 2º da citada IN, encontra-se um princípio de suma importância, que é o da competitividade. Esse princípio é efetivado quando na fase externa do certame, é dada a divulgação oficial, para convocar maior número de participantes. Esses participantes irão oferecer propostas que sejam vantajosas para a Administração Pública. Estamos falando do instrumento convocatório, ou seja, do edital de licitações que deve apresentar itens com as exigências de natureza ambiental de forma a não frustrar o seu caráter competitivo. A competividade deve garantir ampla participação, com disputa ética, em todas as fases seguintes ao do edital no referido certame licitatório, possibilitando a classificação das propostas apresentadas e que devem estar em conformidade com os itens do edital. Dentre as propostas classificadas, que terá maior número possível de concor42) BRASIL, 2010. 43) Será entendido como ciclo de vida, ou seja, estágios do processo de produção e comercialização, desde a origem dos recursos naturais no meio ambiente, até a disposição final dos resíduos de materiais após o uso, passando pelo beneficiamento, transportes, estocagens, processamento, manutenção e outros estágios intermediários. Por isso, esse conceito também é conhecido pela expressão do berço ao túmulo (cradle to grave), o berço é o meio ambiente de onde são extraídos os recursos naturais que serão transformados e o túmulo é o próprio meio ambiente enquanto destino final dos resíduos de produção e consumo que não foram reusados ou reciclados pelos sistemas produtivos. Obra dedicada ao Instituto Terra

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rentes, uma será escolhida na “fase do julgamento das propostas”44, demonstrando a viabilidade técnica, econômica e ambiental para garantir o cumprimento das obrigações contratuais. Dessa maneira, essas cláusulas ou condições que estabeleçam requisitos mínimos para a participação no certame, consideradas necessárias à garantia da execução do contrato, segurança e a perfeição do objeto licitado, regularidade do fornecimento e à sustentabilidade, não restringirá seu caráter competitivo, e não é um óbice para a Administração Pública. Muito pelo contrário, ao inserir tais requisitos, estará atendendo e viabilizando o que determina a IN para as compras, obras e serviços, com critérios objetivos de sustentabilidade ambiental. É nesta fase do julgamento das propostas, nas licitações que utilizem como critério de julgamento “a de melhor técnica e preço”45, que o edital deve estabelecer os critérios objetivos de sustentabilidade para a avaliação e classificação das propostas, como determina o artigo 3° e seguintes da IN. Insta salientar, que a interpretação do princípio do desenvolvimento nacional sustentável, inserido na Lei 8.666/93 deve ser para todos os “tipos de licitação”, quando do julgamento das propostas, e que o edital deve incluir critérios objetivos de sustentabilidade, pois em todos os contratos, deve ser cumprida a sua função socioambiental. Dito isso, a IN ao incluir o princípio nacional do desenvolvimento sustentável, na Lei 8.666/93 às contratações públicas, teve como regra geral e objetiva aos contratos públicos, prever que as empresas contratadas e o próprio Estado adotarão práticas de sustentabilidade na execução dos serviços, com a redução do consumo de água e energia, da emissão do impacto ambiental, da geração de resíduos, da toxidade nos bens e insumos. E, principalmente, fomentar políticas públicas voltadas para a proteção do meio ambiente. Nesses casos, as chamadas “licitações sustentáveis”, procedimento administrativo que antecede a celebração dos futuros contratos socioambientais, ao classificar a “[...] proposta mais vantajosa para a Administração e a promoção 44) A lei 8.666/93 tem como fase interna da licitação, a fase dita burocrática, que vai da abertura do procedimento até a elaboração do edital de convocação. E como fase externa que vai da publicação do edital até a adjudicação e homologação da proposta vencedora. 45) Segundo Justem Filho, em comentário a lei de licitações e contratos (p. 594) a definição do tipo de licitação produz reflexos não apenas sobre o julgamento das propostas. O próprio procedimento licitatório, em toda a sua fase externa, variará consoante o tipo de licitação. Uma licitação de técnica e preço se distinguirá de uma de menor preço já no ato convocatório, pois dele deverão constar as exigências técnicas, etc. (art. 45 da Lei 8.666/93). Art. 3°. In: BRASIL, 1993. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do desenvolvimento nacional sustentável”46, certamente irá selecionar a proposta que melhor atenda ao interesse público, que tem uma finalidade específica e própria, que é a satisfação das necessidades coletivas, que é um dos traços que os distinguem dos contratos de direito privado. Busca-se por meio de critérios objetivos, previamente estabelecidos em lei, a promoção do meio ambiente ecologicamente equilibrado, que é um direito fundamental, com adequada e vantajosa qualificação de propostas oferecidas, para a promoção da função socioambiental dos contratos administrativos. Portanto, considerando o desenvolvimento sustentável, e uma visão consumerista estatal, em relação às atividades públicas, torna-se cada vez mais necessário, além dos princípios fundamentais da Administração Pública, o respeito a princípios do meio ambiente estabelecidos no Artigo 225 da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, na Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), na Instrução Normativa n. 01/2010 e na Lei de Licitações e Contratos (Lei 8.666/93). E, conforme o comando constitucional do artigo 225, em seu caráter fundamental, tem-se por escopo a realização da sustentabilidade e de uma ordem social justa, inseridos como elemento fundante da ordem econômica ao Poder Público e não só à coletividade. A IN passa a contribuir para a sustentabilidade das licitações e contratações públicas, e no cenário atual, esse desenvolvimento nacional sustentável deve ser reconstruído com base em regulamentação de instrumentos legais para que se tenha uma gestão eficiente e eficaz nas atividades administrativas, primeiro passo para começarmos a internalizar a cultura da sustentabilidade. Portanto, para que se conquiste uma gestão eficiente nas questões de contratos socioambientais, como “[...] obtenção de resultados e processos compatíveis com os objetivos fundamentais”47, ou seja, com os objetivos da Constituição Federal, deve ser estruturada com uso de novas estratégias, e com responsabilidade por parte do Poder Público, principalmente em relação às empresas contratadas para atenderem as atividades típicas da administração pública. Com essa nova perspectiva, passa-se a reconstruir e reproduzir os sistemas ecologicamente sustentáveis, na condução de políticas públicas destinadas a promoção dos ajustes necessários entre economia e meio ambiente, já que novos conceitos, novos métodos, novos princípios e novos instrumentos farão bases estruturantes desta relação, ou seja, prática da solidariedade 46) Art. 3°. In: BRASIL, 1993. 47) FREITAS, 2012, p. 242. Obra dedicada ao Instituto Terra

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pelo Poder Público que visem à diminuição da exploração da natureza e à proteção da espécie humana. Os recursos naturais são finitos e a natureza como limite da economia trata-se de uma questão fundamentalmente ética nas interpretações de Cechin em que: “[...] Georgescu propôs um programa de austeridade, um freio ao crescimento, para ser aplicado primeiro às economias avançadas [...] a razão de proteger o meio ambiente é proteger a espécie humana. As sociedades que estão por vir precisarão de um suporte de recursos naturais para ter qualidade de vida.”48 Isto é, ética fundada na perspectiva de políticas públicas destinadas a promoção dos ajustes necessários entre economia e meio ambiente.

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Conclusão

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A insustentabilidade do desenvolvimento surge quando a racionalidade econômica deixou de considerar a natureza como elemento na esfera da produção, gerando uma crise ambiental. A conservação do meio ambiente vem demandando alterações significativas nos usos dos recursos naturais, impondo ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-la face à complexidade dos conflitos surgidos. Destarte, a análise dos principais questionamentos que envolvem meio ambiente, sustentabilidade e as contratações administrativas como uma nova forma de ação do Estado capitalista em favor de um projeto de sociedade sustentável teve por finalidade demonstrar a necessidade de adoção da sustentabilidade nas práticas públicas administrativas. Nesse contexto, se incluem práticas com responsabilidade ética e espera-se a implementação da multidisciplinariedade para compatibilizar meio ambiente, desenvolvimento e a responsabilidade social, inclusive pelo Poder Público, como fomentador de atividades administrativas. Com isto, o Estado vem assumir novas estratégias que busquem a diminuição da degradação ambiental por meio de planos de ação de consumo sustentável através de suas contratações, com critérios e contínuo planejamento, pesquisas e processos tecnológicos, buscando-se maior eficiência e efetividade em suas inter-relações particulares a cada nova dimensão. A reflexão, ao longo do ensaio, foi de que se deve exigir do Poder Público 48) CECHIN, 2010, p. 210. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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o dever jurídico-constitucional de proteção ao meio ambiente, em suas contratações públicas, para que se configure a ordem constitucional ambiental buscando a maior efetividade em suas atividades. Admite-se que o dever da administração pública é o de incluir e prever, em suas contratações, cláusulas que contemplem a sustentabilidade para a promoção do desenvolvimento nacional. O Estado passa a ser visto como um consumidor que, através de suas compras públicas, pode fomentar um processo produtivo ecologicamente sustentável e socialmente mais justo. Com esse enfoque o Estado deve observar, em suas contratações administrativas, a adequada e vantajosa qualificação de propostas oferecidas, dentro de critérios previamente estabelecidos na lei, demonstrando a função socioambiental dos futuros contratos administrativos para garantir mais eficiência do desenvolvimento em termos sustentáveis. Ao Estado promotor e condutor de uma gestão moderna a um desenvolvimento sustentável está na hora de reavaliar seu procedimento administrativo licitatório, passando a uma visão consumerista, ao incluir, nas suas contratações, a sustentabilidade que, consequentemente, irá agregar valor de eficiência ambiental. O Estado é um dos atores na efetivação de um projeto a uma sociedade sustentável, objetivando a prestação de serviços públicos com padrão de excelência e qualidade ambiental, visando, ainda, a operosidade da atuação da administração pública. E esse mesmo Estado é responsável por uma movimentação considerável de recursos naturais, considerando os processos de extração ou fabricação, utilização e descarte dos produtos e matérias-primas. Como consumidor ou empreendedor, possui papel estratégico na revisão de padrões de consumo e na adoção de novos paradigmas. O Estado como consumidor, então, se depara com a questão da sustentabilidade que foi inserida pela Instrução Normativa n. 01, de 19 de Janeiro de 2010 da SLTI/MP. Esta instrução prima pela efetividade na aquisição de bens ou contratação de serviços quando, através dela, a sustentabilidade nos contratos administrativos passa, assim, a ser um elemento a mais da eficiência da atividade pública. Portanto, o Estado, como um dos atores da sustentabilidade, deve cumprir a função socioambiental nos contratos administrativos, fazendo prevalecer o interesse do bem-comum e a redução das desigualdades sociais. A autonomia de vontade ou liberdade de contratar é de fundamental importância à nova realidade social, econômica e ambiental. Destarte, para se compreender um Estado socioambiental, tem-se por meta as novas estratégias para a sustentabilidade do desenvolvimento que requer o enfrentamento de desafios novos e emergentes a fim de alcançar um justo equilíbrio entre as necessidades econômicas, sociais e de meio ambiente das Obra dedicada ao Instituto Terra

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gerações presentes e futuras. Em outras palavras, é necessário promover a harmonia de tais necessidades com a natureza, a lógica da natureza. E como nova gestão estratégica da sustentabilidade, para que esteja o Estado apto, em termos socioambientais, a escolher dentre as propostas apresentadas, a mais vantajosa em termos de custos e benefícios em seus certames. Finalmente, este posicionamento do Estado brasileiro pode ser compreendido como sendo a sua contribuição a um projeto de sociedade sustentável. É dentro deste contexto que se discutiu a ideia do “Estado como consumidor sustentável” para atender aos critérios de sustentabilidade impostos pela legislação brasileira.

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Gestão democrática das águas no Brasil: um caminho rumo ao desenvolvimento sustentável Mariana de Siqueira1 Universidade Federal do Rio Grande do Norte

Sumário: Introdução: da finitudadeda água À sua tutela. 1 Panorama Geral da Gestão das Águas Nacionais. 2 A Constituição, o Meio Ambiente e a Tutela Sustentável das Águas. 3 Educação Ambiental,

Democracia e Gestão Descentralizada dos Recursos Hídricos. Conclusão

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1) Professora efetiva da UFRN. Mestre em Direito Constitucional pela UFRN. Doutoranda em Direito pela UFPE. Advogada. Vice-Presidente da Comissão de Ensino Jurídico da OAB-RN. E- mail: [email protected]

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Introdução: Da Finitude da Água à sua Tutela

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A água, recurso natural indispensável à vida humana na Terra, tem ocupado papel de destaque nos debates geopolíticos contemporâneos. Por inexistir proporcionalidade entre a demanda por água doce no mundo e a sua distribuição geográfica ao longo da superfície terrestre, as preocupações com a eficiente gestão desse recurso crescem ano após ano. Acresça-se a isso a crise que a assola em termos de poluição, resultado de sua má utilização pelo homem nos últimos séculos. Dados estatísticos revelam que do total de água existente na Terra apenas 0,6 % encontra-se sob a forma de água doce, estando o restante distribuído da seguinte forma: 97,2% sob a forma salgada, 2,1 % na neve e gelo, e 0,1% sob a forma de vapor d’água.2 Diante das limitações quantitativas do recurso, sua má distribuição geográfica, constante poluição e crescente demanda mundial por seu uso, especialmente para fins de consumo humano, geração de energia elétrica, agricultura e indústria, a Organização das Nações Unidas resolveu declarar os dez anos compreendidos entre 2005 e 2015 como “Década Internacional de Ação Água para a Vida”. O Brasil, no cenário hídrico descrito, ocupa posição de destaque, em especial por concentrar aproximadamente 13% da água doce superficial do planeta. Apesar da abundância do recurso em âmbito geral nacional, internamente e por região especificamente a distribuição de água doce ainda é desigual, ficando o percentual de cerca de 80% situado em região de baixa concentração populacional, a região Amazônica. 3 Além da questão da má distribuição, as águas nacionais são acometidas pelo problema da poluição. Em monitoramento de qualidade da água datado de 2006 foi possível constatar que as regiões metropolitanas vivem situação crítica, sendo a baixa ou péssima qualidade de suas águas, na maioria das vezes, decorrente do lançamento de resíduos de esgotos. Esse é, inclusive, um dos grandes fatos causadores da poluição das águas nacionais, pois apenas 47% das cidades brasileiras possuem rede coletora de esgoto e apenas 18% dos esgotos recebem tratamento.4 2) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://rash.apanela.com/tf/IEEE/rev806.pdf Acesso em 20 de abril de 2014, p. 5.

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Diante de sua essencialidade e do contexto que a circunda, por afetar diferentes searas de interesse da sociedade e dos Estados (econômica, social, ambiental etc.), os países do globo costumam determinar normativamente diretrizes básicas para as formas de utilização de sua rede hídrica. É exatamente nesse contexto que surge o tema da gestão do uso da água. A gestão dos recursos hídricos corresponde ao direcionamento dado, dentro do território de determinado país, às ações desenvolvidas em torno de seus recursos hídricos, sejam essas ações públicas ou privadas, legislativas, administrativas ou jurisdicionais. O Brasil, relativizando o privilégio de possuir água em abundância em seu território, durante longos anos se manteve carente de uma política capaz de estabelecer as diretrizes básicas para adequada utilização das águas nacionais, apenas dando o primeiro passo significativo nesse sentido na década de trinta, através da criação da Diretoria de Águas. De lá até aqui alguns anos se passaram e hoje, disciplinando os recursos hídricos brasileiros, a sua natureza jurídica e gestão, destacam-se a Constituição Federal de 1988, por sua supremacia e força normativa, e a Lei n.º 9.433 de 1997, por especificamente tratar do tema das águas. O presente artigo, atentando para a relevância da água e de sua eficiente gestão, se foca em um aspecto específico atinente a essa realidade e dotado de amparo normativo expresso: a gestão democrática dos recursos hídricos. Por gestão democrática dos recursos hídricos deve se entender a sua administração realizada por atores diversos, inclusive usuários e comunidades afetadas. Mencionando a existência dessa gestão e a explicando, o artigo enxerga na educação ambiental verdadeiro caminho viabilizador de uma maior e mais eficiente participação popular na gestão das águas nacionais. Com uma maior e mais informada participação popular, acredita ser possível concretizar a sustentabilidade na gestão hídrica brasileira. Para o desenvolvimento do tema, o trabalho se inicia com a presente introdução e posterior exposição do breve panorama histórico da gestão das águas no país. Após isso, trata da tutela constitucional das águas e do meio ambiente e finaliza os escritos com narrativa a respeito da educação ambiental, democracia, sustentabilidade e gestão descentralizada dos recursos hídricos.

3) BRASIL, Balanço das águas 2013. Disponível em: http://www.ana.gov.br/AcoesAdministrativas/balancoDasAguas/balancoDasAguas2013.pdf. Acesso em 20 de abril de 2014.

1) Panorama geral da gestão das águas nacionais

4) BRASIL, Plano Nacional de Recursos Hídricos. 2006, Disponível em: www.mma.gov.br. Acesso em 25 de abril de 2014, p. 62.

A gestão dos recursos hídricos, como narrado na introdução do presente traba-

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lho, corresponde ao direcionamento dado, dentro do território de dado país, às ações desenvolvidas em torno de seus recursos hídricos, sejam essas ações públicas ou privadas, legislativas, administrativas ou jurisdicionais. O Brasil iniciou a sua mais intensa história em torno da gestão de seus recursos hídricos na década de 30, através da criação da Diretoria de Águas, vinculada ao Ministério da Agricultura. Em 1934, com o advento do Decreto 24.643, foi criado o Código de Águas, vigente até a presente data e responsável por instituir um modelo de gestão pautado nos tipos de uso da água. Zilda Borsoi e Solange Torres, estudando o tema, relatam que o histórico da gestão dos recursos hídricos no país pode ser divido em três momentos distintos: burocrático; econômico-financeiro e de integração participativa. 5 Segundo as autoras, o período burocrático, iniciado na década de 30, vinculava à gestão o cumprimento estrito de variadas normas atinentes à temática hídrica; era o Poder Público o único apto a decidir as questões dessa seara e, na maior parte das situações, o responsável por resolver os conflitos que surgiam com a edição de novas regras. Preponderava a pluralidade normativa, a centralização decisória e a pouca eficiência da gestão, especialmente no que tange à capacidade de adaptar-se às mudanças internas e externas.6 O segundo período, por elas batizado de “econômico-financeiro” e iniciado na década de 40, não se pautava apenas na necessária observância das normas existentes, ia além, sendo também marcado por uma atuação mais positiva e prestacional do Estado. O Poder Público fez uso de mecanismos financeiros para promoção de seus fins desenvolvimentistas e se focou no planejamento do direcionamento dos investimentos e do uso da bacia. Destacaram-se, enquanto instrumentos utilizados pelo Poder Público em tal período, os investimentos realizados em setores considerados relevantes (irrigação, energia, saneamento etc.) e a busca por um desenvolvimento integral da bacia. Esse momento, ainda que dotado de deficiências, na medida em que priorizava certos setores, permitia o planejamento do uso da bacia e dos investimentos. Pecou, todavia, por privilegiar em excesso searas espe-

5) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf Acesso em 20 de abril de 2014, p. 9 - 11. 6) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20 de abril de 2014, p. 09 - 10. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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cíficas, não possibilitando a ótima utilização social e econômica da bacia. 7 Com a observância, na década de oitenta, de que o setor de energia elétrica era o que mais intensamente atuava no âmbito da gestão, obtendo grande parte das informações sobre a bacia e pleiteando normas que lhe fossem atinentes e benéficas, foram iniciados debates mais intensos, públicos e privados, em torno da gestão dos recursos hídricos nacionais. 8 Contornos mais claros sobre a gestão foram exigidos, especialmente no âmbito do domínio dos recursos hídricos e de sua competência legislativa. 9 Com a evolução de alguns comitês de bacias, a conclusão de estudos as envolvendo, a classificação das águas nacionais, tudo isso ainda na década de 80 e, por fim, com o advento da Constituição Federal de 1988, consolidaram-se as bases para inserção de um novo modelo de gestão de recursos hídricos no país: o modelo sistêmico de integração participativa.10 O novo modelo instituído não apenas se pautava na observância das normas, como fazia o modelo burocrático da década de 30, não só dava privilégios para aspectos econômicos e para determinados setores considerados relevantes, como fazia o modelo econômico-financeiro; ia além, atentando também para aspectos sociais e ambientais essenciais. A Constituição de 1988, por seu viés democrático e foco na sustentabilidade ecológica, teve papel normativo de destaque na consolidação dessa novel essência hídrica. Diante da relevância do texto constitucional na conformação do novo modelo hídrico nacional, o ponto seguinte se dedica ao estudo de seu conteúdo, com foco especial no tema do presente artigo.

7) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20 de abril de 2014, p. 09-10. 8) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdf. Acesso em 20 de abril de 2014, p. 10-11. 9) MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico ambiental dos recursos hídricos. São Paulo: Editora de Direito, 2001, p. 205. 10) BORSOI, Zilda Maria Ferrão. TORRES, Solange Domingos Alencar. A política de recursos hídricos no Brasil. Disponível em: http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/ sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimento/revista/rev806.pdfAcesso em 20 de abril de 2014, p. 10. Obra dedicada ao Instituto Terra

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2) A Constituição, o meio ambiente e a tutela sustentável das águas

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Do constitucionalismo clássico do século XVIII à contemporaneidade, a Constituição vivenciou modificações inúmeras em face de fenômenos históricos, políticos e econômicos dos mais diversos, tendo o mais recente deles se estruturado como fruto da Segunda Guerra Mundial. A partir de então, a Constituição passou a ocupar o centro do ordenamento jurídico, interferindo diretamente em sua interpretação, construção e aplicação. É o que hoje se convenciona denominar de “neoconstitucionalismo”, fenômeno marcado, dentre outras características, pela filtragem constitucional de todo o Direito. É com a Constituição de 1988 que o Direito brasileiro vivencia verdadeiramente uma situação de constitucionalização, pois dentre as constituições da história do Brasil é a ela que de fato se entrega a posição de centralidade no Direito nacional. Para Barroso: “Sob a Constituição de 1988, o direito constitucional no Brasil passou da desimportância ao apogeu em menos de uma geração.” 11 Democrática e analítica, a Constituição Federal de 1988 pioneiramente dedicou um Capítulo inteiro à disciplina do meio ambiente, seus recursos e proteção, entregando aos cidadãos papel de destaque na defesa dos recursos naturais. Com a Constituição de 1988, o meio ambiente ecologicamente equilibrado passou a ser qualificado como bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, sendo dever de todos e do Poder Público tutelá-lo, não só em benefício das presentes, mas também em prol das futuras gerações. A tutela ambiental explicitamente constante no art. 225, caput, da Constituição Federal de 1988, apontou mais à frente no texto constitucional na qualidade de princípio da Ordem Econômica Constitucional. A consagração da defesa do meio ambiente junto à ordem econômica constitucional gera espaço para o reconhecimento de um elemento normativo implícito: o desenvolvimento sustentável. Como o meio ambiente possui recursos limitados e escassos, reconhece o constituinte que ao desenvolvimento econômico devem ser acrescidas a preservação dos recursos naturais e a busca do bem estar social. É exatamente ai que nasce constitucionalmente o embasamento para o reconhecimento do princípio do desenvolvimento sustentável. 11) BARROSO, Luis Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito: o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil. Disponível em: www.direitodoestado.com. br. Acesso dia 22 de abril de 2013. p. 3- 4. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Se o desenvolvimento sustentável é rumo para todas as atividades econômicas efetuadas em âmbito nacional, também o será para as atividades relacionadas aos recursos hídricos. Ao Estado, desse modo, não basta prover acesso à agua com universalidade, é preciso também fazê-lo na perspectiva da sustentabilidade. Quanto aos recursos hídricos especificamente, estabeleceu a Constituição Federal de 198812 modificações no âmbito de sua titularidade13, considerando -os de domínio público. No que tange à gestão, determinou o texto constitucional ser da União a competência para instituir o sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos (SNGRH) e definir critérios de uso e outorga. 14 Em quase nove anos da publicação da Constituição, mais precisamente em 08 de janeiro de 1997, foram instituídos, pela União, conforme os ditames constitucionais, a política nacional de recursos hídricos e o sistema nacional de seu gerenciamento, ambos exteriorizados nos dizeres da Lei nº.9.433. 15 Inspirando-se em regras e princípios já consagrados na seara internacional16, visando otimizar o uso das águas nacionais e, ainda, pautando-se não apenas em aspectos econômicos, mas também em aspectos sociais e ambientais, a Lei nº. 9433 de 1997 trouxe, em seu art. 1º17, como fundamentos da política nacional dos recursos hídricos, os seguintes elementos: a) domínio público da água, b) água como recurso limitado e com valor econômico, c) uso prioritário, na escassez, para consumo humano e dessedentação de animais, d) gestão viabilizadora do uso múltiplo das águas, e) bacia hidrográfica como unidade territorial para implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e atuação do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos; e f ) gestão descentralizada dos recursos hídricos. Esse último, por sua essencialida12) Para visualizar o tratamento constitucional dado aos recursos hídricos nacionais recomendase a leitura dos seguintes dispositivos: Art. 20, § 1º; Art. 21, XIX; Art. 23, XI; Art. 49, XVI e Art. 231, § 3º. 13) Art. 20, III. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014. 14) Art. 21, XIX. BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014. 15) MUSETTI, Rodrigo Andreotti. Da proteção jurídico ambiental dos recursos hídricos. São Paulo: Editora de Direito, 2001, p. 206. 16) O princípio do desenvolvimento sustentável é exemplo de tal inspiração. 17) Art. 1º, I a VI. BRASIL, Lei nº. 9.433 de 1997. Disponível em: www.planalto.gov.br. Acesso em 25 de abril de 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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de para o presente trabalho, será analisado no ponto a seguir. A Política Hídrica Nacional, em sua conformação atual, almeja assegurar às presentes e futuras gerações a disponibilidade da água necessária em níveis satisfatórios e em padrões de qualidade compatíveis com as espécies de uso da água; o uso racional e integrado dos recursos hídricos evitando eventos hidrológicos críticos, sejam esses naturais ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais, e buscando o desenvolvimento sustentável. 18 Visando melhor consolidar a Política Nacional de Recursos Hídricos, o Governo Federal decretou, em 22 de março de 2005, a Década Brasileira da Água. Em seu art. 2º, a normativa em questão expõe os objetivos para a década: “A Década Brasileira da Água terá como objetivos promover e intensificar a formulação e implementação de políticas, programas e projetos relativos ao gerenciamento e uso sustentável da água, em todos os níveis, assim como assegurar a ampla participação e cooperação das comunidades voltadas ao alcance dos objetivos contemplados na Política Nacional de Recursos Hídricos ou estabelecidos em convenções, acordos e resoluções, a que o Brasil tenha aderido.”19 Nota-se, através do texto do decreto, o destaque dado aos temas do desenvolvimento sustentável e da participação das comunidades na gestão hídrica nacional, ambos elementos também ressaltados na Lei 9433 de 1997. Dentro desse contexto de mais intensa tutela da água, em 30 de janeiro de 2006 foi aprovado pelo Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH) o Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), fruto de amplo debate político e social descentralizado e pautado em informações técnicas relevantes. O plano possibilitou a determinação de perspectivas e ações hídricas para o país até o ano de 2020, estando, desse modo, ainda em vigor.20 Importante se faz expor, ao se considerar um PNRH elaborado com a visão futura de mais de uma década de vigência, que o seu texto e conteúdo não são estáticos e imutáveis, a própria normativa que o circunda prevê revisões periódicas em seu conteúdo, tendo a primeira delas ocorrido em 2010 e com objetivo principal de avaliar os cinco anos iniciais de sua implementação. A revisão 18) Art. 2º. BRASIL, Lei 9.433, de 8 de janeiro de 1997. Disponível em: www.planalto.gov.br Acesso em 25 de abril de 2014. 19) BRASIL, Decreto de 22 de março de 2005. Disponível em: www.cnrh.gov.br. Acesso em 01 de maio de 2014. 20) SIQUEIRA, Mariana de. O Planejamento Hidrológico no Brasil. In: IRUJO, Antonio Embid. SILVEIRA NETO, Otacílio dos Santos. XAVIER, Yanko Marcius de Alencar. (Org.) O direito de águas no Brasil e na Espanha: um estudo comparado. Fortaleza: Konrad Adenauer, 2008, p. 203-207. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do Plano é teorizada para se estruturar de forma dinâmica, transdisciplinar e aberta à ampla participação dos sujeitos interessados. Destacam-se, ai, os temas da democracia, descentralização na gestão e, ainda, da educação ambiental, todos tratados no ponto seguinte.

3) Educação ambiental, democracia e gestão descentralizada dos recursos hídricos

A educação, direito fundamental de ordem social, vem prevista no texto constitucional em desdobramentos específicos diversos, a exemplo daquele atinente ao seu viés ambiental. A Constituição, no capítulo responsável por tratar do meio ambiente, estabelece como dever do Poder Público a promoção da educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente. Nota-se, no trabalho do constituinte, a preocupação com a educação ambiental em viés escolar e formal, mas também de modo geral e em ambiente físico externo à escola. Infraconstitucionalmente, visando dar concretude e efetividade ao texto da Constituição, aponta a Lei 9.795 de 1999, responsável por dispor sobre a educação ambiental e instituir a Política Nacional de Educação Ambiental. A lei em questão, seguindo a linha constitucional, trata não apenas da educação ambiental formal escolar, mas também da educação ambiental informal. A educação escolar formal é aquela desenvolvida em sala de aula, no ambiente escolar. A educação ambiental não formal, por sua vez, corresponde às ações e práticas educativas voltadas à sensibilização da coletividade sobre as questões ambientais, sua organização e participação na defesa da qualidade do meio ambiente. O fomento à educação ambiental formal e não formal, conforme texto expresso legal, objetiva desenvolver uma visão global do meio ambiente, democratizar as informações ambientais, estimular a cooperação entre as diversas regiões do País; fomentar e fortalecer a integração com a ciência e a tecnologia; estimular consciência crítica sobre a problemática ambiental e social; incentivar a participação individual e coletiva, permanente e responsável, na preservação do equilíbrio do meio ambiente, entendendo-se a defesa da qualidade ambiental como um valor inseparável do exercício da cidadania; e fortalecer a cidadania, autodeterminação dos povos e solidariedade como fundamentos para o futuro da humanidade. Dos objetivos da educação ambiental mencionados, três se conectam de modo mais direto e imediato ao tema da gestão descentralizada as águas nacioObra dedicada ao Instituto Terra

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nais: a democratização das informações ambientais, o incentivo à participação cidadã ambiental e o fortalecimento da cidadania. Com a efetivação dos objetivos destacados poderá ser viabilizada uma maior e mais eficiente participação popular na gestão das águas nacionais. A divulgação e acesso às informações ambientais e a demonstração da relevância da tutela ambiental cidadã parecem abrir verdadeiro e eficiente caminho rumo ao fomento de uma maior participação dos cidadãos, usuários e comunidades afetadas na gestão das águas nacionais, gestão essa hoje já descentralizada. A descentralização da gestão dos recursos hídricos, fundamento da Política Nacional dos Recursos Hídricos, implica na delegação do poder decisório sobre os recursos hídricos; mais precisamente no que tange às decisões político -administrativas, de forma a permitir a oitiva de variadas opiniões: usuários, comunidades e Poder Público. Com a participação de sujeitos variados e a exposição de interesses diversos em torno da gestão das águas de determinada bacia, maior viabilidade existirá para a efetivação de uma gestão sustentável de águas em seu âmbito. Com uma mais intensa e consciente participação cidadã na gestão das águas, com a dialeticidade dos debates daí advinda, abrir-se-á espaço para a concretização da sustentabilidade hídrica nacional. As bacias hidrográficas são as unidades de referência para a gestão das águas no país e por determinação normativa recebem a atuação de Comitês de Bacias. Os Comitês são órgãos de consulta e deliberação, a serem compostos internamente de forma heterogênea. Participarão dos comitês membros da sociedade civil, poder público e usuários das águas. Discorrendo sobre a gestão descentralizada das águas pelos Comitês de Bacias, expõem Fabiana Barbi e Pedro Jacobi: “Trata-se de uma concepção de gestão pública colegiada, com negociação sociotécnica, através dos CBHs, na qual a legislação de recursos hídricos reserva à sociedade civil uma responsabilidade central na condução da política e da gestão desses recursos. Cabe aos usuários da água organizar-se e participar ativamente dos comitês, defender seus interesses quanto aos preços a serem cobrados pelo uso, assim como sobre a aplicação dos recursos arrecadados e sobre a concessão justa das outorgas dos direitos de uso. Convém observar que isto implica em complexos processos de negociações e resoluções de conflitos diversos.”21 Essa ideia de gestão hídrica descentralizada e democrática se coaduna em perfeição com a essência da Constituição de 1988. A Constituição, fruto de um processo democrático de elaboração, é responsável por trazer formalmente

ao território nacional o atual modelo de Estado Democrático de Direito ou de Estado Constitucional Democrático. Em seu art. 1º, Parágrafo Único, consagrando a soberania popular, diz “Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”22. O Estado conformado pelo texto de 88, dentre outras características, possui poderes a serem exercidos de forma limitada, reconhece direitos fundamentais variados aos cidadãos e consagra a ideia de democracia mista, de forma a viabilizar a participação popular nas decisões políticas fundamentais. Sendo o povo o titular da soberania, nada mais razoável que lhe permitir participar ativamente de algumas das decisões antes tomadas exclusivamente no âmbito da Administração Pública. É o que se costuma denominar de “democratização da Administração’, caminho de exteriorização da democracia participativa23. O que se busca com a democratização da Administração não é o fim da tradicional democracia representativa ou a presença constante e absoluta da população em toda e qualquer decisão administrativa, o que se objetiva é a existência da democracia participativa em hipóteses específicas, dotadas de amparo normativo prévio, com foco especial nas decisões de impacto local, de modo a fortalecer a soberania popular constitucionalmente consagrada e a aproximar a Administração dos cidadãos. Apesar de relevante e de normativamente amparada, indispensável se faz dizer aqui que a gestão descentralizada das águas nacionais pode levar à problemática do conflito de interesses entre os gestores plurais que a exercem. Desse modo, para que a ideia de descentralização da gestão funcione adequadamente no universo prático, é necessário que sejam bem delineados os temas atinentes a cada espécie de gestor (comunidades, Poder Público, usuários).24 Por fim, convém ressaltar o papel instrumental da educação ambiental na eficiente gestão descentralizada das águas. Mais conscientes das questões ambientais, da relevância e especificidades ligadas às águas, os sujeitos poderão ocupar mais ativamente e com maior lucidez os espaços democráticos que lhes são reservados na gerência das águas brasileiras.

21) BARBI, Fabiana. JACOBI, Pedro Roberto. Democracia e participação na gestão dos recursos hídricos no Brasil. Rev. Katál. Florianópolis v. 10 n. 2 p. 237-244 jul./dez. 2007, p. 241.

24) CAUBERT, Christian Guy. A água, a lei, a política... E o meio ambiente? Curitiba: Editora Juruá, 2004, p 152.

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22) Art. 1º, Parágrafo Único. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil, de 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao.htm Acesso em 25 de abril de 2014. 23) OLIVEIRA, Gustavo Justino de. Administração Pública democrática e a efetivação dos direitos fundamentais. Disponível em: http://www.conpedi.org.br/manaus/arquivos/ anais/bh/gustavo_justino_de_oliveira.pdf Acesso em 12 de abril de 2013, p.4.

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Conclusão

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O presente artigo buscou oferecer uma visão geral acerca da gestão dos recursos hídricos no país, focando-se mais detalhadamente no tema de sua descentralização. A gestão descentralizada das águas foi, portanto, o seu ponto principal de análise. No texto, foi ressaltado o papel da educação ambiental como instrumento fomentador da participação popular na gestão hídrica, bem como a conexão existente entre essa participação e a concretização do desenvolvimento sustentável. Os embasamentos constitucionais do tema foram apontados, assim como os seus desdobramentos infraconstitucionais. O incremento e a intensificação de meios de promoção da educação hídrica e ambiental de todos aqueles que já participam ou dos que podem via a participar da gestão descentralizada das águas no país são entendidos no presente trabalho como caminhos imprescindíveis à eficiência do sistema de tutela das águas. Ressalte-se que o uso das águas nacionais deve pautar-se na sustentabilidade, os debates e estudos já realizados para fins de elaboração dos variados documentos hídricos brasileiros devem ser mantidos e propagados, com destaque para um novo enfoque de caráter educativo. O Poder Público é peça fundamental na concretização desse enfoque. Há de ser ressaltada, também, a necessidade de maior consolidação da legislação hídrica brasileira, bastante recente e pouco divulgada no universo jurídico. O sistema de gestão dos recursos hídricos, a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Plano Nacional de Recursos Hídricos, apesar de muito relevantes, de se pautarem na descentralização e democratização e estarem diretamente ligados à vida de todos os cidadãos brasileiros, ainda são pouco conhecidos e divulgados. O Brasil iniciou tardiamente o seu caminhar rumo à tutela mais completa e eficaz das águas nacionais, muito ainda há de ser feito nesse sentido, a sustentabilidade hídrica parece ser um dos grandes desafios desse século e a educação ambiental caminho essencial a ela conectado.

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O controle das áreas contaminadas: o respeito ao direito de se viver em um ambiente saudável Vanessa de Fátima Terrade1 Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Sumário: Introdução. 1 A fragilidade dos solos. 2 A reação dos estados à sensibilidade dos solos. 3 Uma caso de justiça ambiental.

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1) Doutoranda em direito público na Universidade Paris 13-PRES Sorbonne-Paris Cité; Mestre em direito ambiental pela Universidade Paris 1 – Panthéon-Sorbonne; Professora de direito administrativo na PUC-Minas – Serro

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Introdução

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O Brasil, assim como diversos outros países, vem enfrentando um sério problema chamado “áreas contaminadas”2. A forma como esse problema se apresenta hoje em dia, e reflexo da postura desinteressada que o Estado adotou durante anos, em relaçao ao meio ambiente, e, em especial a um dos recursos naturais: os solos. Tendo sido os mesmos vistos como uma grande massa negra capaz de tudo suportar. O direito internacional3 que tanto impulsiona a consciência de necessidade de proteção do meio ambiente pelos Estados, não se ocupava dos solos. Para o direito internacional, os solos não apresentariam riscos de ocasionar poluições internacionais, como o ar ou a água, os quais se descolam levando à poluição para além das fronteiras. Desta forma, o direito internacional considerava os solos como um problema de cada país em si. O direito nacional por sua vez, na sua maioria, compreendia que os solos estavam enquadrados dentro do direito civil, por serem parte do direito de propriedade, competindo ao dono desta se ocupar da sua qualidade e preservação. Além do mais, assim como o direito internacional, o direito nacional também não via os solos como recursos naturais “sensíveis” tal como a o ar e água, que remetem as suas poluições para os “4 cantos”. Em grosso modo, os solos foram vistos como recursos rígidos, fortes, sendo mais um problema do seu proprietário do que do Estado ou das organizações internacionais. (Prieur, 1995) A grande questão, e que agora, os solos decidiram mostrar a sua “sensibilidade”, Eles decidiram escancarar a poluição suportada durante tanto tempo. E o mais interessante, para não se dizer o mais caótico, é que o espelho que muitas vezes refletiu e ainda continua a refletir essa “sensibilidade” é o ser humano, mais especialmente, a saúde humana. 2) Art. 3º, II, da Lei 12.305/2010 Art. 3o Para os efeitos desta Lei, entende-se por: (...) II - área contaminada: local onde há contaminação causada pela disposição, regular ou irregular, de quaisquer substâncias ou resíduos; 3) É importante mencionar que a Declaração de Limoges I de 1990 - França, documento preparado em atenção aos debates a serem realizados na Conferência do Rio de 1992, dedicou a Recomendação nº 8 para apresentar argumentos sobre a necessidade de proteção dos solos. Em seguida, a Agenda 21, texto resultante da Conferência de 1992, ao dedicar um capítulo à agricultura, outro à luta contra a desertificação e a seca, outro ao gerenciamento dos recursos terrestres e o capítulo 7 ao desenvolvimento sustentável dos assentamentos humanos, alertou a comunidade internacional sobre a necessidade de proteção dos solos e os reflexos dos mesmos ao bem estar do ser humano. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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1) A fragilidade dos solos A constatação da contaminação dos solos nos Estados Unidos, na década de 70, foi um dos primeiros sinais de alerta sobre o quanto os solos são sensíveis e de como essa sensibilidade pode causar danos a saúde humana. O caso, que ganhou repercussão internacional, é conhecido como “Love Canal”. No final do século XIX houve um projeto de se construir um canal para ligar à parte baixa a parte alta do rio Nicarágua. O projeto foi abandonado, e entre os anos de 1920 e 1953, a escavação que havia sido feita para a construção do canal, foi usada como depósito de lixo tóxico por indústrias e pelo Exército norte-americano. Em seguida, esse “depósito” foi coberto com terra e vendido à Coordenação de Educação de Niagara Falls ao preço simbólico de 1 dólar (GIBBS, 1998). Casas começaram a serem construídas nos arredores do canal, e uma escola primária foi construída bem encima do depósito. As famílias, de classe média, e em sua maioria, negras, não sabiam onde estavam indo morar, mas o Estado sabia bem encima do que ele estava urbanizando. Em 1978 o caso foi descoberto, a partir da constatação de doenças nos moradores, em especial, nas crianças. As doenças constatadas eram de ordem neurológica, problemas renais, além de abortos e má-formação de recém nascidos, e do risco de câncer. A catástrofe de Love Canal pode ser resumidamente apresentada pelo fato de “moradores de um conjunto habitacional de classe média baixa descobriram que suas casas estavam erguidas sobre um canal que havia sido aterrado com dejetos químicos industriais e bélicos.” (HERCULANO, 2001, p. 215) Do outro lado do mundo, em especial, na França, uma das grandes amostras da sensibilidade dos solos foi com a constatação de câncer em seis crianças de uma escola maternal na cidade de Vincennes, a escola “Franklin-Roosevelt”. Uma usina química da Kodak foi desativada, em 1986, e no local da mesma e nos seus arredores, formam construídas casas e a escola maternal. A doença das crianças chamou a atenção dos professores e dos moradores que solicitaram a realização de estudos do solo. (OGE, 2004) Voltando para a América, agora para o Sul, no Brasil, o caso que primeiro nos chamou a atenção foi o da “Cidade dos Meninos”4 no estado do Rio de Janeiro. Uma fábrica de pesticidas e o Instituto de Malariologia funcionam em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, nas dependências do Colégio interno para crianças carentes, chamado de “Cidade dos Meninos”. Durante os 4) ACP nº 97.0104992-6, 7ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro. Obra dedicada ao Instituto Terra

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anos 80, o governo parou de fabricar produtos contra a malária e começou a exportá-los, fechando as portas do instituto e da fábrica de pesticidas. Os resíduos dessa produção continuaram no local: “Cidade dos Meninos é uma área de domínio da União com aproximadamente 19,4 milhões de metros quadrados, localizada no município de Duque de Caxias, no estado do Rio de Janeiro. Nessa área, existem aproximadamente 750 famílias expostas a uma contaminação ambiental por organoclorados abandonados no local desde 1965 quando foi desativada uma fábrica de produção de Hexacloroxiclohexano (HCH) e manipulação de outros organoclorados”.5 Nós sabemos bem, que o fato de existir uma legislação ambiental portando obrigações a um particular, não significa que o mesmo as respeitará. E, exatamente, por está razão, que o Estado se encontra diante do dever de exercer o poder de polícia, e de controlar as atividades exercidas pelos particulares. A questão é que se não existirem políticas públicas voltadas para esse controle, o resultado será o abandono de áreas contaminadas ao final de uma exploração industrial. E essa é uma grande curiosidade do caso da “Cidade dos meninos”, no qual o próprio Estado, na figura do Ministério da Educação e Saúde6, abandonou o solo contaminado, sem tomar a menor precaução para impedir os reflexos dessa poluição sobre a saúde humana. Tanto é que na década de 80 pesticidas que ficaram na cidade dos meninos eram vendidas na feira do município pelos moradores da região, de acordo com reportagens dos jornais da época. Somado a esse caso, outros também tiveram grande repercussão, como o caso em Santo Amaro da Purificação, no Estado da Bahia, quando uma cidade inteira foi contaminada por metais pesados, descartados inadequadamente por uma indústria. Além de vários casos no Estado de São Paulo: “Condomínio Residencial Barão de Mauá”- ABC Paulista, o condomínio tinha 6.000 mil moradores vivendo encima de um solo contaminado por lixo industrial; “Condomínio Recanto dos Pássaros”, em Paulínia, famílias viviam em uma área que não foi despoluída adequadamente ao final da atividade industrial, estando o solo e os lençóis freáticos contaminados por Hexaclorobenzeno (PCB). Em Cubatão, resíduos de uma indústria química forma enterrados clandestinamente, posteriormente, uma comunidade se instalou no local e passou a ali desenvolver atividade agrícola.

Recentemente, foi mostrado nos noticiários, uma contaminação na cidade de Volta Redonda/RJ, pela Companhia Siderúrgica Nacional. Não que o caso seja recente, na realidade, o nosso despertar é que risca de ser recente, despertado somente a cada novo caso de áreas contaminadas. O desfecho desse caso, segundo o INEA7 – Instituto Estadual do Meio Ambiente informou a retirada imediata de 750 pessoas que residiam na área. Todos esses casos possuem duas semelhanças imediatamente detectáveis: foram causados por poluição de resíduos industrial, em especial por resíduos químicos e todos contaram com danos a saúde humana para serem descobertos. As causas desses problemas são várias, e, sobretudo são históricas. Elas são decorrentes de indústrias que fecharam as portas sem realizarem a reabilitação da área, indústrias que realizaram uma reabilitação “insuficiente” ou indústrias que utilizarem o meio ambiente como lixeira, livrando-se dos seus resíduos sólidos em depósitos clandestinos, que ficaram abandonados, ou que posteriormente foram vendidos com toda a sua poluição “escondida”. E a isso, some-se o problema da falta de controle em relação ao parcelamento, a reutilização dos solos. Além de pensar nas causas, e preciso se pensar, também, na remediação e nesse ponto, outro aspecto preocupante e o próprio exercício de direito ao acesso à justiça que as vítimas de poluição dos solos enfrentam por questão de provas. A dificuldade dos peritos em provarem nos autos que a doença ocasionada adveio dos resíduos industriais que se encontravam nos solos ou de conseguir provar que a indústria se servia dos produtos que geram os resíduos impo-se como um obstáculo à efetivação da justiça para várias famílias. Um exemplo disso é o caso da Usina Kodak, durante a lide, não foi possível provar que o câncer desenvolvido pelas crianças estava ligado aos resíduos que a usina deixou no solo. Um relatório do governo francês, de 2000, teve uma importância primordial à favor da empresa, ao concluir pela ausência de relação: não é possível se falar em super-exposição a produtos, que hoje em dia são conhecidos como potencialmente cancerígenos, ligados ou não à atividade anterior. (tradução livre)8

5) http://www.geoprocessamento.icict.fiocruz.br/svs/dsast/cidadedosmeninos/index.html - site do Ministério da Saúde destinado a informar sobre o caso e sobre as ações tomadas para se chegar a uma solução.

7) http://www.inea.rj.gov.br

6) Ministério extinto, sendo substituído na lide pelo Ministério da Saúde. Direitos Humanos e Meio Ambiente

8) Rapport du 14 juin 2000: “il n’est pas mis en évidence de surexposition à des produits actuellement connus comme potentiellement cancérigènes, liés ou non à l’activité industrielle antérieure.” Obra dedicada ao Instituto Terra

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2) A reação dos Estados à sensibilidade dos solos

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Legislar em proteção aos solos pode ser uma tarefa muito difícil para os países, principalmente para um país com um território tão grande quanto o Brasil. As dificuldades para a regulamentação dos solos não é só de ordem jurídica, e também, de ordem técnica, de se conhecer a fundo, as características físicas de cada tipo de solo que forma um país com tantas diversidades geológicas. O que tem impulsionado a proteção dos solos é o fato de se saber, que a contaminação deles pode representar riscos para a poluição das águas e para o exercício de outras atividades econômicas. O que faz com que os solos sejam abordados em especial, pela legislação das águas, da agricultura, da mineração, de loteamento urbana. Sendo raras e escassas as leis específicas em proteção aos solos. A lei francesa de 19 de dezembro de 1917 relativa aos estabelecimentos perigosos, insalubres ou incômodos, apresentava disposições relativas a poluição e ao controle das mesmas em direção aos solos. Prevendo, inclusive, que tais estabelecimentos, fossem eles industriais ou comerciais, deveriam ser mantidos longe de áreas residenciais. A lei de 19 de julho de 1976 (lei 76-663) e o seu decreto 77-1133 apresentam a obrigação de reabilitação do solo a um estado, que não representará nenhum risco para a saúde humana, nem para o meio ambiente. Essa lei trouxe disposições tão importantes sobre a obrigação de despoluição, que são aplicadas até hoje no país. Apesar das conclusões do Relatório do governo sobre a escola em Vincennes, que não demonstrou relação entre as doenças e os resíduos contidos no solo, paradoxalmente, a França adotou uma “resposta” ao caso, a Lei nº 2003-699, relativa a prevenção de riscos tecnológicos e naturais e a reparação dos danos9 e o seu decreto 2005-1170. Essa nova legislação estabeleceu a obrigação de que aquele que pede uma licença para desenvolver uma atividade industrial, apresente junto com o seu pedido de licença um plano para a reabilitação do solo, conforme o uso futuro do terreno. Esse planejamento sobre o uso futuro do terreno10 deve ser aprovado pelo proprietário do terreno (caso não sejam a mesma pessoa), pelo prefeito e pelo chefe do executivo da região

9) Lei nº 2003-699, de 30 de julho de 2003, conhecida como “Loi Bachelot” – lei Bachelot. 10) Article L512-6-1 du Code de l’environnement – Essa lei, foi codificada no Código do meio ambiente francês, sendo que essa disposição sobre o “acordo” trazida na Lei de 2003, encontra-se atualmente no artigo L512-6-1 do Código do meio ambiente. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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onde a atividade será desenvolvida (“le préfet”11). A jurista especialista em direito dos solos, Pascale Steichen (STEICHEN, 2006) apresenta esta lei como um grande avanço na legislação Francesa, por colocar em evidencia dois atores fundamentais da reabilitação dos solos: o prefeito, o qual deverá atuar em prol dos interesses da coletividade, e o proprietário, que terá a oportunidade de se manifestar em defesa da sua propriedade. No momento deste “acordo” sobre o uso futuro da área, os documentos de urbanismos em vigor nessa época não serão necessariamente observados, conforme se desprende da leitura do artigo 512-6-1, alínea 3: “No entanto, caso a reabilitação prevista em aplicação a alínea precedente seja manifestamente incompatível com a utilização futura da zona e dos terrenos situados aos arredores, em função dos documentos de urbanismo em vigor na data em que o solicitante apresenta ao administrador a sua decisão de encerrar a sua atividade. O Administrador, após a manifestação dos interessados da alínea primeira, pode fixar outras obrigações complementares que permitam uma utilização coerente do sítio com dos documentos de urbanismo. (tradução livre)”12 As grandes críticas feitas por Steichen em relação a essa lei é que, apesar dos seus avanços, nem ela, nem o seu decreto integram o risco de poluição no ciclo de vida da empresa, além, da falta de apreciação dos documentos urbanísticos no momento da fixação da utilização futura do sítio. Em outras palavras, o que a França faz, atualmente, é informar ao solicitante de uma atividade econômica, quanto as medidas que ele deverá adotar para proceder a reabilitação do solo. Assim, ao final da atividade econômica, não haverão “surpresas” quanto as dificuldades técnicas para a realização da reabilitação e quanto ao custo da mesma. De tal forma, que o chefe do executivo da região,“Le prefet”, no caso de atividades mais poluidoras e degradadoras do meio ambiente13, deverá levar em consideração para conceder a autorização, as 11) Cada região da França possui o seu representante , “Le prefet”. Dentro da repartição de competência, o prefeito de uma cidade se ocupa das questões ligadas ao tratamento de resíduos, enquanto que o chefe do executivo de cada região é a autoridade competente pela autorização de instalação de uma atividade industrial na sua região. 12) Article 512-6-1, al. 3  : “Toutefois, dans le cas où la réhabilitation prévue en application de l’alinéa précédent est manifestement incompatible avec l’usage futur de la zone, apprécié notamment en fonction des documents d’urbanisme en vigueur à la date à laquelle l’exploitant fait connaître à l’administration sa décision de mettre l’installation à l’arrêt définitif et de l’utilisation des terrains situés au voisinage du site, le préfet peut fixer, après avis des personnes mentionnées au premier alinéa, des prescriptions de réhabilitation plus contraignantes permettant un usage du site cohérent avec ces documents d’urbanisme.” 13) Diferente do que dispõe a Lei brasileira nº 12.3057/2010 no seu artigo 13. Obra dedicada ao Instituto Terra

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condições financeiras do solicitante e a apresentação de garantias financeiras. No Brasil, pode-se dizer que essa obrigação de proteção e de reabilitação dos solos remonta da década de 70, com o Decreto-lei 1.413/75, decreto que dispõe sobre o controle da poluição do meio ambiente provocada por atividade industrial. “Através do Decreto-lei número 1.413, de 14 de agosto de 1975, o governo brasileiro estabeleceu obrigação às indústrias instaladas ou a se instalarem de promover medidas necessárias e prevenir e corrigir inconvenientes e prejuízos de poluição e contaminação do meio ambiente, de forma que o Poder Público deve exigir a apresentação de projeto específico quanto à destinação dos resíduos. (CASTRO, 2003, p. 114)” Em seguida, veio a Lei 6.803/80, portando diretrizes básicas para o zoneamento industrial, dividindo-as em zonas de uso estritamente industrial destinadas, preferencialmente, à localização de estabelecimentos industriais cujos resíduos sólidos, líquidos e gasosos, ruídos, vibrações, emanações e radiações possam causar perigo à saúde, ao bem-estar e à segurança das populações, mesmo depois da aplicação de métodos adequados de controle e tratamento de efluentes; zonas de uso predominantemente industrial destinam-se, preferencialmente, à instalação de indústrias cujos processos, submetidos a métodos adequados de controle e tratamento de efluentes, não causem incômodos sensíveis às demais atividades urbanas e nem perturbem o repouso noturno das populações e zonas de uso diversificado destinadas à localização de estabelecimentos industriais, cujo processo produtivo seja complementar das atividades do meio urbano ou rural que se situem, e com elas se compatibilizem, independentemente do uso de métodos especiais de controle da poluição, não ocasionando, em qualquer caso, inconvenientes à saúde, ao bem-estar e à segurança das populações vizinhas. 14 Somente, em 2010, veio a ser criada a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, com a Lei 12.305/2010, regulamentada pelo Decreto 7.404/2010. O capítulo IV dessa lei é dedicado aos considerados resíduos perigosos15, que são os responsáveis pelo surgimento de áreas contaminadas. Essa lei apresenta duas disposições que merecem destaque, em relação aos resíduos perigosos: A 1ª sobre a necessidade de comprovação de capacidade técnica e econômica: “Art. 37 - A instalação e o funcionamento de empreendimento ou atividade que gere ou opere com resíduos perigosos somente podem ser autorizados ou licenciados pelas autoridades competentes se o responsável comprovar,

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no mínimo, capacidade técnica e econômica, além de condições para prover os cuidados necessários ao gerenciamento desses resíduos”. (BRASIL, 2010) A 2ª sobre a contratação de seguro de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente e á saúde pública: “Art. 40 - No licenciamento ambiental de empreendimentos ou atividades que operem com resíduos perigosos, o órgão licenciador do Sisnama pode exigir a contratação de seguro de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente ou à saúde pública, observadas as regras sobre cobertura e os limites máximos de contratação fixados em regulamento. (BRASIL, 2010)”. Essa capacidade econômica e o seguro de responsabilidade são instrumentos de garantia para o Estado frente aos devedores insolventes, os quais devem ser somados ao da perícia, ao das provas como inibidor do acesso à justiça. Alguns países discutem, também, como forma de combate ao devedor insolvente, a criação de fundo de recuperação ao solo e de indenização das vítimas. Em termos de política pública, merece destaque a política de gestão de solos poluídos instituída na França com a trilogia: conhecer, agir, prevenir. Para conhecer, foi criado no início da década de 90, um sistema de inventários. Na realidade, a França, realiza o inventário a partir de duas bases de controle, uma da poluição atual - Basol16, e outra que e o rastreamento da poluição “histórica” - Basias17. Esse último registrou em 1993, 553 solos poluídos ou potencialmente poluídos. Em 1994, no mesmo inventário, foram registrados um total de 669 áreas nessa classificação. A circular de 28 de janeiro de 1993 relativa a reabilitação dos solos poluídos por atividades industriais constou o registro de 553 sítios em 31 de dezembro de 1992. O registro desses sítios e solos poluídos em 1994 foi de 669. (Tradução livre)18 Esses foram os dados oficiais do governo, publicados por meio de circulares, enquanto, que renomados pesquisadores franceses, como o geólogo Fréderic Ogé, pesquisador do CNRS19 publicaram outros, em um mapa da França, nomeado “Les dossiers secrets de la santé publique”, no qual constam mais de 250.000 antigos terrenos industriais que podem representar riscos para a saúde humana. De acordo com esses pesquisadores, o Estado tem pleno co16) http://basol.ecologie.gouv.fr/ 17) http://basias.brgm.fr/

14) Art. 2º, 3º e 4º da Lei 6.803/80

18) STEICHEN, 1994, p. 17 : “La circulaire du 28 janvier 1993 relative à la réhabilitation des sols pollués par des activités industrielles en avait recensé 553 au 31 décembre 1992. Le recensement des sites et sols pollués de 1994 en a fait apparaître 669.”

15) Artigo 1º da Lei

19) CNRS é o órgão nacional de pesquisa, equivalente ao Capes no Brasil.

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nhecimento da existência dessas áreas, mas ele prefere ocultar informações à população, falando somente dos casos confirmados e mais graves, para evitar alarmes.20 O registro exatos dessas áreas que representam riscos para a saúde humana, é dificultado pela ausência de definição jurídica de solos poluídos. O que acaba possibilitando que os Estados trabalhem com a noção de “solos potencialmente poluídos” e que deixem de atuar em situações eminentes, por não considerarem serem o caso de “solos potencialmente poluídos”. Essa e, também, a política empregada pelo Brasil para conhecer. Em 2002, foi adotada a Resolução CONAMA 313, dispondo sobre a criação de um sistema de Inventário Nacional de Resíduos Sólidos Industriais. Essa Resolução embora tenha a sua importância, “ficou no ar”, pelo mesmo problema que existe na França e no mundo, o de se chegar a uma conclusão sobre o conceito jurídico de solo poluído. Em 2009, foi adotada a Resolução CONAMA Nº 420, de 29 de dezembro de 2009, sobre a qualidade dos solos e o gerenciamento ambiental de áreas contaminadas. Dentre as ações para o gerenciamento, consta a implantação de um Banco de Dados Nacional sobre Áreas Contaminadas21. Esse banco de dados será formado a partir de relatórios que serão publicados pelos órgãos ambientais estaduais ao IBAMA. Os relatórios serão sobre áreas contaminadas identificadas, constando as características hidrogeológicas e hidrológicas da área, as atividades poluidoras ativas ou inativas e as características das fontes poluidoras. A Resolução fixa o ano de 2013, dezembro, para que sejam apresentados pelos órgãos ambientais dos estados os valores específicos de referência da qualidade dos solos.22 Esses valores é que permitem a avaliação da qualidade do solo, quanto à presença de substâncias químicas.23 São eles que permitirão, ao Brasil, de chegar a um conceito de solos poluídos, partindose da premissa de que poluição é: “(...) a introdução, pelo homem, diretamente ou indiretamente, de substâncias ou de energias no meio ambiente, que tragam prejuízos para a saúde humana, que prejudiquem os recursos biológicos e ao ecosistema ecológico, portando danos ou impedindo a utilização legítima e natural do ambiente. (Tradução livre)24”

Em São Paulo, estado com, supostamente, o maior índice de áreas contaminadas pela indústria, vemos reações a nível estadual. Uma delas foi a obrigação de averbação no registro de imóvel, no Estado de São Paulo, caso o imóvel esteja em área contaminada segundo exame do CETESB – Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental. Esse avanço decorreu da ação conjunta do Ministério Público de São Paulo e da CETESB, em consulta formulada a Corregedoria-Geral da Justiça: “O Ministério Público do Estado de São Paulo e a CETESB formularam consulta à CorregedoriaGeral da Justiça a respeita da viabilidade de recepção e arquivamento nas Serventias de Registro de Imóveis do Estado de São Paulo do “Cadastro de Áreas Contaminadas”, elaborada pela CETESB, no sentido de que todas as certidões emitidas pelos oficiais registradores apontem, quando solicitado, o fato de o imóvel correspondente estar situado em área identificada como contaminada. (SIRVINSKAS, 2009, p. 385)” A decisão Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo, Processo CG nº 167/2005, pautou-se no dever da administração pública em dar amplitude as informações ambientais e a “Segurança jurídico-registral” sobre a contaminação.25 “Essa decisão foi um grande avanço no Estado de São Paulo, uma vez que há muitas áreas, já mapeadas pela CETESB, contaminadas. Tal fato poderá evitar a aquisição de áreas para habitação, por exemplo, o que coloca em risco a saúde da população. Assim, quem as adquirir deverá realizar a descontaminação para dar-lhes o destino pretendido. Registre-se, por fim, que tanto a contaminação como a descontaminação poderão ser declaradas pela CETESB e levadas ao registro imobiliário para averbação. (SIRVINSKAS, 2009, p. 386)” Tal disposição ganhou previsão legal, com a Lei estadual nº 13.577/09, a qual dispõe sobre diretrizes e procedimentos para a proteção da qualidade do solo e gerenciamento de áreas contaminadas. Sendo a área classificada pelas autoridades competentes, como contaminada, deve o responsável legal pela área, providenciar, no prazo de cinco dias, a averbação na matrícula do imóvel.26 A lei apresenta, também, instrumentos para a proteção da quali-

20) Segundo esse dossiê, dentre essas áreas constam solos que são suporte de prédios luxuosos em Paris.

l’homme, directement ou indirectement, de substances ou d’énergies dans l’environnement, qui entraînent des conséquences préjudiciables de nature à mettre en danger la santé humaine, à nuire aux ressources biologiques et aux écosystèmes écologiques, à porter atteinte aux agréments ou à gêner les autres utilisations légitimes de l’environnement ».

21) Art. 38, §3º da Resolução. 22) Artigo 8º da Resolução 23) Artigo 7º da Resolução

25) Tal disposição foi incluída na lei estadual de gerenciamento de áreas contaminadas, Lei 13.577/09.

24) Recommandation du 14 novembre 1974, du Conseil de l’OCDE  : «  l’introduction, par

26) Art. 24, III da Lei.

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dade dos solos, para a reabilitação, além de dispor sobre o cadastramento de áreas contaminadas no Estado. Atualmente, existe mesmo um projeto de Diretiva européia27 sobre os solos. Dentre as ações previstas para lutar contra a contaminação desse recurso, consta a adoção de um sistema de inventario a nível europeu, demonstrando. O que parece indicar que o sistema de inventários é visto como um passo significativo em reação as áreas contaminadas. O controle de áreas contaminadas, por meio de inventários ou de bancos de dados, mostra-se a melhor solução, somado ao zoneamento urbano. Desde 1979, a Lei 6.766 sobre parcelamento do solo, proíbe, no seu artigo 3º, parágrafo único, inciso II, que seja realizado o parcelamento dos solos em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde humana, sem que sejam previamente saneados. “O Poder Público não acompanha a velocidade do surgimento de parcelamentos do solo, estabelecendo-se verdadeiro caos social com a construção de casas sobre depósitos de lixo urbano e às vezes, industrial e até de serviços de saúde. Apesar da proibição de parcelamento do solo em terrenos que tenham sido aterrados com material nocivo à saúde, sem que sejam previamente saneados, é comum a instalação deles nesses locais, até porque se tornam terras baratas e acessíveis às camadas mais pobres da população, justamente as mais suscetíveis às doenças em função da má alimentação, má vestimenta e praticamente nenhuma assistência médica.” (CASTRO, 2003, p. 113) Grupos de defesa do meio ambiente até tentam redigir projetos de lei tornando obrigatório a analise geológica e o geotécnica do solo, antes da aprovação de loteamentos residenciais, mas não passam de propostas sem serem tomadas a sério pela administração pública. “Alguns ambientalistas do ABC, preocupados com a possibilidade de outras áreas estarem, contaminadas, não só no ABC como em todo o Brasil, estão apresentando neste seminário uma proposta de projeto de lei que determine ao empreendedor de todo e qualquer loteamento, análise do solo tanto geológica quanto geotécnica, já que para uma zona industrial se transformar em zona residencial em qualquer município brasileiro, não é difícil, pois basta a vontade política de um prefeito, ou vereadores e ainda os empreendedores, portanto, há que se criar mecanismos legais que cerquem de exigências qualquer novo empreendimento. (CONTRERAS, 2004, p. 272)”. O fato de conhecer, de cadastrar as áreas contaminadas ou potencialmen 27) O Parlamento europeu se viu diante do mesmo problema técnico enfrentado pelo Brasil, para legislar sobre solos: as variedades físicas dos solos.

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te contaminadas, não se mostra suficiente. A melhor solução seria a de tornar obrigatório o estudo do solo antes da realização de construções para moradia e para “estabelecimentos sensíveis”, como as escolas maternais e primária, além da prevenção por meio de técnicas de tratamento dos resíduos gerados durante a produção industrial, fazendo valer a velha premissa de “melhor remediar”. Sendo este último aspecto medida obrigatória após a adoção da Lei 12.305/2010 instituidora da Política Nacional de Resíduos Sólidos.

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Conclusão: Um caso de Justiça Ambiental

Quando se ouve falar desses casos de áreas contaminadas e das conseqüências que essa poluição representa para a saúde humana, duas questões se colocam: qual o problema, ou quais sãos as falhas na legislação, na fiscalização ambiental desses países, para permitir que casos como esses aconteçam e que se repitam; quais as ações governamentais para impedir o surgimento de novas vítimas. “Love Canal” significou respostas para esses e para outros questionamentos. Ele representou uma modificação na legislação dos Estados Unidos, sendo hoje apontado como uma amostra da força da sociedade civil organizada e do movimento negro. Love Canal é sinônimo de uma luta pelo direito ao meio ambiente saudável para todas as raças e para todas as classes sociais. Ele aponta para o dever de se dividir as externalidades negativas ambientais das atividades econômicas, e não de concentrá-las sobre as classes sociais mais baixas. Esse movimento contra o “racismo ambiental”28 tornou-se símbolo para a busca por justiça ambiental29. A Justiça ambiental possui duas significações: a de acesso à justiça em matéria de meio ambiente; e a de que todas as classes sociais habitem em um ambiente ecologicamente equilibrando. Concerne o nosso trabalho, a segunda significação, essa da justiça ambiental como “busca de equidade material na distribuição dos espaços ambientais, especialmente na sua utilização para fins de habitação.” (FIGUEIREDO, 2010, p. 328) Esse conceito de “Justiça ambiental” foi reconhecido em 1994 pela Agência Americana de Proteção do meio ambiente – EPA30, sendo criado, posteriormente um órgão de equidade ambiental dentro da Agencia. A partir de então, os Estados Unidos tornaram obrigatório o emprego da justiça ambiental em 28) « Environmental racism” 29) « Environmental Justice » 30) « Environmental Protection Agency” Obra dedicada ao Instituto Terra

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todas as políticas e programas adotados no país. (Gobert, 2010) Não basta legislar, ou se tentar legislar como a maioria dos países vem fazendo. É preciso encontrar mais respostas para esses casos, soluções para essas controvérsias técnicas que dificultam os solutos jurídicos. Entender que essa questão que começaria com a proteção de um recurso natural, vai muito além. Ela apresenta empecilhos à segurança jurídica, em razão dos problemas de pericias, do fato do poluidor desconhecido e dos devedores insolventes. Representa ameaça a direitos fundamentais, à saúde, à moradia e a propriedade. No caso específico do Brasil, esses casos todos além de se chocarem com a garantia desses direitos fundamentais, soam em dissonância com o compromisso do país em constituir uma sociedade justa e igualitária, em promover o bem estar de todos, e em garantir que a ordem econômica assegure a todos existência digna.31

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31) Artigos 3º e 170 da Constituição Federal de 1988. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir Gilmar Alves Batista1 Defensoria Pública do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Aspectos Históricos da Formação da Sociedade Brasileira. 2 Dos problemas enfrentados. 3. Do Saneamento Básico. 3.1 Direito Fundamental. 3.2 Dever do Estado. 4 Por que existe a Defensoria Pública? 5 O Papel da Defensoria Pública em Razão da Mutação Social. 6 O Saneamento Básico como Direito a ser Garantido Pela Defensoria Pública. Conclusão

1) Defensor Público-Geral do Estado do Espírito Santo. Especialista em Direito Público e mestrando em criminologia.

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Introdução

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Nos últimos anos, a civilização tem passado por transformações de toda ordem. O planeta terra, cada vez mais, sofre com as interferências do homem no meio ambiente. A cada ano surge uma doença diferente, uma catástrofe avassaladora e os problemas decorrentes da falta de cuidado com o meio ambiente são sentidos por todos. No Brasil a situação não é diferente. Entra ano e sai ano, a situação é a mesma. As enchentes já fazem parte do calendário das pessoas e os hospitais são lotados por doentes dos mais variados tipos. Apesar de todo esse alarde, o mínimo não tem sido feito para amenizar esse grave dilema que enfrentamos. Grande parte desses problemas enfrentados está relacionada à falta de saneamento básico. Inobstante ser a sétima economia mundial, o Brasil, no quesito saneamento básico, pode ser comparado aos países subdesenvolvidos. As políticas públicas de saneamento básico não tem tido o foco que merece na agenda administrativa brasileira. Prova disso é que somente após 19 (dezenove) anos da Constituição Federal de 1988 surgiu a Lei 11.445 regulamentando o setor. Todavia, inúmeros dispositivos normativos, constitucionais e infraconstitucionais, asseguram o direito ao saneamento básico, à infraestrutura urbana e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. É fato: O cidadão brasileiro tem direito ao saneamento básico. Aliás, esse é um direito humano essencial para gozar plenamente a vida e todos os outros direitos humanos nos termos da Resolução da ONU A/RES/64/292. Também é fato que quem mais sofre com a falta de saneamento básico no Brasil é a população carente. Ou seja, as pessoas que são usuárias em potencial dos serviços oferecidos pela Defensoria Pública. Daí fica a pergunta: O que a Defensoria Pública pode fazer para mudar essa triste realidade em nosso país?

1) Aspectos Históricos da Formação da Sociedade Brasileira A origem colonial brasileira está calcada no extrativismo e no escravismo. Nosso colonizador não tinha a intenção de formar aqui um novo país ou nação, tinha apenas o intuito de explorar ao máximo os recursos naturais e humanos. “O que o português vinha buscar era, sem dúvida, a riqueza, mas riqueza que custa ousadia, não riqueza que custa trabalho. A mesma, em suma, que tinha Direitos Humanos e Meio Ambiente

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acostumado a alcançar na Índia com as especiarias e os metais preciosos. Os lucros que proporcionou de início, o esforço de plantar a cana e fabricar o açúcar para os mercados europeus, compensavam abundantemente esse esforço – efetuado, de resto, com as mãos e os pés dos negros – mas era preciso que fosse muito simplificado, restringindo-se ao necessário às diferentes operações”.2 Foi balizado no intuito explorador, do trabalho escravo e do lucro, que o Brasil colônia atingiu o sucesso empresarial, que alcançou em determinado momento o ápice mundial. Contudo, o contraste entre o desenvolvimento econômico e a pobreza da maioria da população já era um atributo da nação brasileira. Na caminhada evolutiva do Brasil encontramos na sequência o fenômeno da urbanização, pois com a crise no sistema colonial houve uma mudança na economia que favoreceu o crescimento urbano, tendo em vista que grande parte da mão-de-obra utilizada no campo mudou-se para a cidade na busca de um destino melhor.3 Desta forma, as pessoas que moravam no campo, a maioria descendentes de escravos, objetivando a inserção no mercado de trabalho e melhores condições de vida, passaram a edificar favelas nos morros das cidades, sem observar nenhum regulamento urbanístico. A urbanização no Brasil está ligada ao processo de industrialização. Segundo MUKAI, os efeitos da Revolução Industrial chegaram ao Brasil com algum atraso, e a urbanização acelerada, bem como suas consequências também chegaram aqui após alguns anos de influência que exerceram nos países desenvolvidos.4 Realça-se, todavia, que o aceleramento da urbanização brasileira chegou aliado com o desenvolvimento econômico do país como um fenômeno irreversível. O II Congresso Brasileiro de Serviço Social, em seus anais, deixou consignado:5 “O mencionado fenômeno da industrialização, auxiliado pelo desenvolvimento dos meios de transportes, provocam violentas modificações nas antigas e equilibradas relações, entre o meio rural e o meio urbano. A intensa urbanização, fenômeno consequente do primeiro e que significa a criação de novas áreas urbanas e intensificação do gênero urbano da vida de todas as áreas já existentes, é acontecimento típico da era que se seguia à Revolução 2) HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1976, p. 18. 3) OLIVEN, Ruben George. Urbanização e mudança social no Brasil. 2. Ed. Petrópolis: Vozes, 1982. 4) MUKAI, toshio. Direito urbano-ambiental brasileiro. 2. Ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 47. 5) Ibidem, p. 48. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir

Industrial. Da necessidade de impedir o aparecimento inevitável de inúmeros males, ligados a esse crescimento desordenado, começou a surgir uma especialização nova que visa não só ordenar a cidade, mas agora com uma preocupação de maior alcance, qual seja a de disciplinar e conseguir estabelecer técnicas de intervenção no processo de ocupação de espaço.” Com o crescimento populacional e a falta de planejamento das cidades, o problema da segregação se intensificou. A política de investimento público ou privado foi voltada para determinados locais, valorizando-os com a disponibilização de saneamento básico, transporte, asfalto e segurança, ao passo que pouco ou nenhum investimento foi destinado às áreas periféricas. Quem possuía recursos escolheu os locais com maior infraestrutura, sendo a periferia reservada à população menos abastada. E assim, historicamente, foram estruturadas as cidades brasileiras.

2) Dos Problemas Enfrentados 236

O crescimento desordenado das cidades redundou em diversos problemas de ordem urbanística e ambiental. O Brasil não se preparou para o crescimento da população que se alojou nos morros, na beira dos rios e na periferia. O impacto brutal de tudo isso recai sobre o meio ambiente: A maior parte da população brasileira não é assistida por redes de esgotos e carece da distribuição de água potável. As residências lançam seus esgotos, sem nenhum tratamento, direitamente nos mananciais de águas potáveis. Os reflexos da ausência de uma política pública voltada para o saneamento básico são sentidos nos hospitais públicos. A constatação que se faz é que convivendo com o esgoto a céu aberto as pessoas ficam doentes. O despejo do esgoto nos rios impede a preservação das nascentes e desequilibra o meio ambiente. A água doce, uma das principais riquezas mundial, está ameaçada e, mesmo num país com recursos abundantes como o Brasil, a falta de água potável já é sentida pela população. Todo esse contexto está afetando a saúde do brasileiro de várias formas, sendo pela ingestão direta de água contaminada, ou na sua utilização na preparação de alimentos, na higiene pessoal, na agricultura, na higiene do ambiente, nos processos industriais ou atividades de lazer. Mesmo recebendo medicamentos seguros e eficazes no tratamento de doenças, o contato com o esgoto e com a água contaminada prolifera os mais diversos tipos de vírus, parasitas e bactérias patogênicas, que são as principais Direitos Humanos e Meio Ambiente

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fontes de morbidade e mortalidade, sendo responsáveis pela maioria dos casos de enterites, diarreias, viroses, doenças endêmicas ou epidêmicas. Destarte, para alcançar melhorias na rede pública de saúde será preciso equilibrar a relação do homem com o meio ambiente. Quanto melhor o equilíbrio ambiental, melhor será a saúde e qualidade de vida das pessoas. Mas o que se percebe é que a política nacional está voltada para o atendimento médico, colocando em segundo plano os meios de prevenção. Talvez, os rumos dos investimentos em saneamento básico fossem outros, se os mais atingidos também fosse outras pessoas: as que fazem parte da elite desse país. Contudo, de qualquer maneira, é preciso equilibrar os investimentos no setor e buscar o crescimento sustentável, onde a população carente possa ter acesso à moradia digna, com acesso a infraestrutura básica, como esgoto, água, ruas pavimentadas e energia elétrica.

3) Do Saneamento Básico 237

3.1) Direito Fundamental O direito ao saneamento básico, à infraestrutura urbana e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado tem base na Constituição Federal6 e nas Legislações Federais nº 10.257/2001, 6.938/1981 e 11.445/2007. Sem dúvida, o saneamento ambiental, dia após dias, ganha espaço nas preocupações sociais. O meio ambiente ecologicamente equilibrado é um bem comum do povo e essencial à qualidade de vida, razão pela qual cabe ao Poder Público, bem como à coletividade, preservá-lo para a presente e futuras gerações. Para atingir o objetivo da preservação ambiental, estabelecido na Constituição Federal brasileira, uma meta primordial necessita de superação: Garantir saneamento básico para todos os brasileiros. 6) Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. § 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes,é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Obra dedicada ao Instituto Terra

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A falta do saneamento básico afeta a dignidade do ser humano com o meio natural e, por isso, viola o princípio constitucional da dignidade da pessoal humana. Ligado diretamente às condições de sobrevivência e de saúde do ser humano, os serviços de saneamento básico é determinante para as relações do homem com o meio ambiente. Em razão disso, a política nacional de saneamento básico, estabelecida na Lei nº 11.445/2007, determina que o saneamento básico engloba serviços, infraestruturas e instalações operacionais de: abastecimento de água potável; esgotamento sanitário; limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos; drenagem e manejo das águas pluviais urbanas. Destarte, o saneamento básico tem como objetivo promover a melhoria das condições de saúde e a qualidade de vida da população. Por esta razão, deve ser encarado como um direito fundamental social, cujo constituinte, embora não o tenha previsto expressamente na Constituição Federal, implicitamente o garantiu por derivação do princípio constitucional da dignidade da pessoal humana. Afinal, o constituinte brasileiro inseriu uma cláusula aberta quando tratou do regime dos direitos fundamentais no § 2º do artigo 5º, da Constituição Federal, admitindo como fundamentais os direitos decorrentes dos princípios e do regime constitucional, bem como aqueles previstos em tratados internacionais. Desta forma, podem ser considerados direitos fundamentais, mesmo que não previstos na Constituição, aqueles que, materialmente, fossem dotados da mesma dignidade.7 É o caso do saneamento básico. Embora não haja dispositivo constitucional inserindo o saneamento básico no rol dos direitos fundamentais, existem vários textos constitucionais que, interpretados em conjunto, com sistematicidade e unidade, levarão à conclusão da existência desse direito fundamental de forma implícita na Constituição Federal.8

3.2) Dever do Estado A universalização do saneamento básico tem destaque especial e decisivo na consolidação dos direitos sociais e na garantia da dignidade da pessoa humana nos termos da Constituição brasileira, como forma de conceder condições mínimas à população brasileira como o direito à saúde e ao bem estar social. 7) OLSEN, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível.Curitiba: Juruá, 2010, p. 46. 8) Direito das Futuras gerações. ---Vitória: Cronograma, 2013, p. 189. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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O saneamento básico serve como ferramenta concretizadora dos objetivos previstos no artigo 3º da nossa Constituição, notadamente por diminuir a desigualdade existente entre o pobre e o rico em nosso país. Em virtude dessa característica específica, é possível afirmar que o direito ao saneamento básico conta com uma estrutura jurídica capaz de obrigar o Poder Público ao seu devido cumprimento. Não há mais espaço para questionamento de sua fundamentalidade no sistema jurídico brasileiro, o saneamento é um direito básico do cidadão. E, como direito fundamental social, o Estado deve prestá-lo adequadamente a toda população.9 No entanto, o Brasil apresenta enorme déficit de saneamento básico e como a sua implantação requer planejamento e investimentos de recursos financeiros, e o Poder Público não dá sinais visíveis que vai colocar em prática a legislação existente que regulamenta o setor, será preciso que instituições como a Defensoria Pública adotem medidas concretas para efetivar esse direito da população. A geração da infraestrutura de saneamento demanda planejamento de longo prazo e dispêndio de muitos recursos financeiros, por essa razão não dá pra aguardar mais longos anos, na esperança de que o poder público coloque em prática uma política de saneamento básico que atenda os anseios da população. Destarte, entra ano e sai ano e o poder público vem se escusando de democratizar o saneamento básico alegando a falta de recursos financeiros. É certo que os recursos financeiros são finitos, no entanto, é importante fazer a diferenciação do que não é possível por insuficiência de recursos e o que não é possível porque os recursos, que inicialmente eram suficientes, foram transferidos e investidos em outras prioridades. Nesse ponto, a tão evocada discricionariedade administrativa deve ser avaliada em consonância com os princípios e os comandos constitucionais. A Constituição Federal fornece parâmetros para a aplicação dos recursos, de modo que a avaliação alocativa dos meios deverá ser norteada para atingir minimamente os fins por ela estabelecidos.10 Sendo assim, a insuficiência ou a inexistência de recursos financeiros deve ser concretamente demonstrada pelo Poder Público, não se admitindo a utilização dessa afirmativa de modo genérico para justificar a omissão na efetivação de direitos fundamentais. Neste diapasão, sabendo que a efetivação dos direitos fundamentais depende da distribuição dos recursos públicos e da política de investimento para 9) STJ – 1ª turma – Recurso Especial nº 575998/MG – Min. Rel. Luiz Fux – DJ:16/11/2004. 10) Olsen, Ana Carolina Lopes. Direitos fundamentais sociais: efetividade frente à reserva do possível.Curitiba: Juruá, 2010, p. 210. Obra dedicada ao Instituto Terra

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cada setor, a discricionariedade administrativa deve ser concebida somente quando atendidas as normas constitucionais que estabelecem as prioridades na alocação de recursos, pois todos os direitos fundamentais estabelecidos na Constituição Federal devem ser efetivamente respeitados.

4) Porque Existe a Defensoria Pública?

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A formação social brasileira foi construída culturalmente pela ideia escravagista, que além de ter redundado na tardia abolição da escravatura, também acentuou a violência contra a população negra explorada pelos escravagistas, vez que de uma hora para outra os negros foram liberados sem nenhum plano de inserção social. De acordo com cada região do país o problema do negro variava. A opção pelo trabalho do imigrante e as poucas oportunidades oferecidas aos negros resultaram em uma profunda desigualdade social da população negra. 11 As mudanças advindas da abolição afetaram desastrosamente a formação das cidades brasileiras. Uma chaga que o Brasil carrega até os dias de hoje. Imensas levas de colonos – brancos, negros e mestiços – saíram do campo para as periferias das cidades, passando a viver e morar em condições sub-humanas, formando os chamados “cinturões de miséria”.12 As cidades brasileiras não estavam preparadas para receber o quantitativo de pessoas advindas do meio rural, que acabaram formando as atuais favelas, que sofrem das mais diversas estruturas urbanas, dentre elas o saneamento básico. E é essa grande massa formada em nosso país pelo histórico de exclusão social, que a Defensoria Pública tem o dever legal de defender.

5) O Papel da Defensoria Pública em Razão da Mutação Social Em razão da hipossuficiência da população brasileira, a Defensoria Pública tem uma missão de alta magnitude constitucional. No Brasil, o efetivo “acesso à Justiça” passa necessariamente pela Defensoria Pública, em razão do grande

Gilmar Alves Batista

contingente populacional pobre, marginalizado e excluído.13 Como responsável pelo acesso à Justiça da maioria da população brasileira, a Defensoria Pública é também garantia constitucional de promoção dos direitos fundamentais, instrumento de legitimação do Estado Democrático de Direito, de cunho intervencionista. Neste contexto é que está inserida a grande missão da Defensoria Pública, como instituição responsável pela efetivação do acesso à Justiça em sua acepção ampla, incluindo a justiça social. Para tanto, a Instituição precisa garantir a produção e a hermenêutica dos direitos fundamentais em consonância com o modelo de Estado Social e Democrático, provedor e transformador de direitos.14 Tradicionalmente a Defensoria Pública patrocinou os direitos individuais. Todavia, com a mudança das necessidades do cidadão, a Instituição assumiu outras atribuições para atingir os objetivos que deram ensejo à sua existência. A atual Defensoria Pública, além de patrocinar os direitos individuais da grande massa populacional, também passou a tratar de direitos coletivos e metaindividuais. A Lei 11.448/2007 adequou a legislação à nova realidade da Defensoria Pública, ao incluir a instituição em segundo lugar no rol dos legitimados para propor a ação civil pública. Com isso, a Defensoria Pública passou ter ainda mais importância para a sociedade brasileira, ao titularizar também a defesa dos direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos, quando o resultado da demanda beneficiar os grupos de pessoas marcados pela nota da hipossuficiência, seja ela econômica, técnica ou organizacional. Em decorrência da evolução social e do próprio aprimoramento da visão sobre o direito fundamental à assistência jurídica integral e gratuita, a Defensoria Pública vem passando por mudanças de perfis na sua autuação. Os anseios da sociedade atualmente são outros. A instituição, atualmente, é procurada pela população objetivando acesso à assistência social, saúde, educação, habitação, segurança, emprego e à justiça, o que provocou, naturalmente, um alargamento no âmbito de atuação da Defensoria Pública, que passou a demonstrar atribuição constitucional para atuar em diversas áreas e em defesa dos mais diversos grupos sociais. Tendo-se em conta a missão primordial da Defensoria Pública, de prestar assistência jurídica integral à população carente desassistida, e considerando grande parte dos brasileiros vive na pobreza, a tutela do mínimo existencial

11) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2011. p. 142.

13) Ibidem, p. 303.

12) Ibidem, p. 143.

14) Artigo 3º-A da Lei Complementar 80/94.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

Obra dedicada ao Instituto Terra

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir

passou ser um dos focos de atuação da Instituição. E, como a instituição tem como objetivo a redução das desigualdades sociais, a erradicação da pobreza é a meta principal da Defensoria Pública. “Na verdade, a Defensoria Pública é a única estrutura estatal destinada expressamente a trabalhar juridicamente para garantir redução das desigualdades sociais, através da prestação da assistência jurídica integral e gratuita”.15

6) O Saneamento Básico como Direito a ser Garantido Pela Defensoria Pública

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A sociedade brasileira apresenta uma das maiores desigualdades sociais do mundo, sendo uma marca dessa desigualdade a falta de saneamento básico para toda população. Pode-se dizer que a população brasileira sofre de racismo ambiental, já que grande parte da população suporta de algum modo um impacto ambiental negativo muito maior que as outras pessoas.16 A falta de saneamento básico no Brasil está diretamente ligada às camadas mais pobres da população, calcada numa sociedade excludente, racista e classista, onde o princípio da igualdade de todos perante à lei é mera retórica formal. Sob esse aspecto, cabe a Defensoria Pública agir estrategicamente na luta em prol da implantação de uma política de saneamento básico para todos os cidadãos, reduzindo assim essa desigualdade latente entre pobres e ricos. No entanto, para que isso seja possível, além da estratégia, a Defensoria Pública deve adotar um modelo mais proativo com foco na identificação dos casos mais graves que demandam a atuação Institucional. Cumpre salientar que a Defensoria Pública está dotada dos instrumentos necessários à efetivação do direito ao saneamento básico. A Instituição dispõe de atribuições para atuar na educação em direitos, na defesa individual e coletiva dos direitos dos cidadãos. Portanto, identificando os casos em que a 15) Roger, Franklin, Princípios institucionais da defensoria pública, Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 317. 16) “O tratamento desigual em relação aos grupos ambientalmente excluídos é vergonhoso. Seja pela atitude permissiva do poder público ao não impedir que estes grupos sejam diretamente afetados por empreendimentos poluidores, seja pela omissão com a ausência de políticas públicas eficazes no combate a injustiça ambiental, seja pelo descumprimento do princípio da informação, seja pela inexistência de efetiva participação dos interessados –afetados – nos atos decisórios, seja pela falta de acesso aos recursos naturais, como é o caso dos nordestinos e a falta de água.” (Direito das Futuras gerações. ---Vitória: Cronograma, 2013, p. 215). Direitos Humanos e Meio Ambiente

Gilmar Alves Batista

população carece dos instrumentos básicos de saneamento, cabe à Defensoria Pública intermediar o diálogo entre o Estado e a Sociedade, visando resguardar os direitos dos seus assistidos. O que não se pode admitir, diante de todos os avanços conquistados pela Defensoria Pública, é que nos dias atuais sejam os grupos vulneráveis obrigados a arcar com as gravosas consequências de uma política pública elitizada, por falta de voz, ou por falta de interlocução com as autoridades públicas. Este distanciamento entre a população carente e o poder público, e a existência de uma grande massa populacional excluída, são os fundamentos de existir da Defensoria Pública.17 Portanto, a Defensoria Pública, além de se organizar para a propositura das ações coletivas visando à implantação de uma política de saneamento básico voltada para a população carente e para a incorporação efetiva desta questão ambiental na concretização da democracia em nosso país, deve defender também os interesses individuais que tenham nítido reflexo em relação ao tema ora tratado, sem prejuízo das atividades educativas e formadoras de opinião. Nunca é tarde lembrar que a qualidade de vida está ligada diretamente à dignidade da pessoa humana e ao desenvolvimento social sustentável, de modo que a falta de saneamento básico, além causar diversos tipos danos ambientais e afetar a saúde de uma pluralidade de pessoas, atinge fortemente, por questões obvias, os mais necessitados. Destarte, sendo justamente a defesa das camadas mais pobres da sociedade brasileira a razão de existir da Defensoria Pública, a Instituição deve agir sempre objetivando propiciar, através da educação em direitos e da propositura das medidas judiciais e extrajudiciais cabíveis, um desenvolvimento social mais justo, baseado na premissa de que os serviços essenciais, como o saneamento básico, precisam ser oferecidos a toda população e não apenas a uma parte elitizada da sociedade.

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Conclusão

A missão principal da Defensoria Pública é prestar assistência jurídica integral e gratuita à população carente e desassistida do nosso país. Por tal razão, brevemente, fizemos um esboço da formação das cidades brasileiras, demonstrando que a nossa sociedade apresenta elevado grau de desigualdade 17) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2011. p. 303. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Saneamento Básico: Direito do Cidadão que a Defensoria Pública tem o Dever Legal de Garantir

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social. O povo brasileiro possui uma elite dominante que se formou dentro da cultura escravagista e que dela herdou o desrespeito aos pobres.18 As cidades brasileiras foram construídas sob a perspectiva da segregação. As localidades com infraestrutura são reservadas aos mais abastados e a periferia, os morros e as favelas destinados aos pobres. Com efeito, diante do histórico apresentado, a grande maioria da população brasileira ainda convive com esgoto a céu aberto e com a falta de água potável para o consumo. Logicamente que a população mais afetada pela falta de saneamento básico é a população pobre desse país. As consequências advindas da falta de saneamento básico são variadas e vão além dos danos ambientais, envolvendo a questão da saúde pública, haja vista que são fatores determinantes na proliferação de diversos tipos de doenças. Realça-se que mesmo sendo o saneamento básico um direito do cidadão – podendo ser considerado, inclusive, um direito fundamental social – o Estado brasileiro tem se omitido da consecução de seu dever de agir positivamente para disponibilizar a todas as pessoas esse serviço público essencial à dignidade da pessoa humana. Por todo o exposto, é de grande importância o papel da Defensoria Pública como instrumento influenciador e de efetivação da política pública envolvendo o saneamento básico. Para tanto, a Instituição precisa adotar uma política institucional mais proativa, visando identificar as pessoas ou os grupos de pessoas que necessitam da intervenção dos Defensores Públicos. E uma vez constatada a ausência de infraestrutura básica de saneamento, caberá à Defensoria Pública agir, orientando os assistidos quanto aos seus direitos, cobrando do poder público a implantação dos serviços e prestando assistência jurídica integral na forma da lei.

18) Souza, Fábio Luís Mariani de. A Defensoria Pública e o acesso à justiça penal. Porto Alegre: Núria Fabris Ed., 2011. p. 327. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas, ordenamento do território e protecção da orla costeira Carla Amado Gomes Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

“Come gather ‘round people Wherever you roam And admit that the waters Around you have grown And accept it that soon You’ll be drenched to the bone If your time to you Is worth savin’ Then you better start swimmin’ Or you’ll sink like a stone For the times they are a-changin’”

Bob Dylan, The times they are a-changin’ (1964) Sumário: Introdução: As múltiplas estratégias face às alterações

climáticas. 1 Alterações Climáticas e Orla Costeira: Planos para quê?

1.1 Poocs. 1.2 Pgris. Conclusão: Prevenção e Responsabilização

em Tempos de Inclemência Climática: Um Mar de Incertezas.

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Os tempos estão a mudar: alterações climáticas, ordenamento do território e protecção da orla costeira

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Introdução:

as múltiplas estratégias face às alterações climáticas

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No passado dia 9 de Janeiro de 2014, o Ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, em visita à costa de Ovar, uma das muitas zonas flageladas pela onda de tempestades deste Inverno1, constatou que “a mudança climática, infelizmente, não é ficção científica, não é matéria para daqui a 20, 30 anos. Está a ocorrer”. E Portugal, um país com mais de dois terços da sua costa voltados para o Atlântico tem, nos últimos anos, sentido particularmente os riscos dessa contiguidade. Tal circunstância levou à aprovação de medidas de prevenção da erosão e de contenção da força das marés em Planos de Ordenamento da Orla Costeira (POOCs), em instrumentos como o Programa Finisterra (2002-2004), o Plano de Acção para o Litoral 2007-2013 ou a Estratégia Nacional para a Gestão Integrada da Zona Costeira, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros 82/2009, de 8 de Setembro2. Todos registaram tão baixo índice de concretização que, em 2012, foi lançado um novo Plano de Acção de Protecção e Valorização do Litoral 2012-2015, já sob o pano de fundo da Estratégia Nacional de adaptação às alterações climáticas3, adoptada pela Resolução do Conselho de Ministros 24/2010, de 1 de Abril4. 1) Cuja causa directa foi uma situação de NAO (North Atlantic Oscilation) positiva, ou seja, uma anormal diferença de pressões barométricas entre a Depressão da Islândia e o Anticiclone dos Açores, que gerou condições climáticas especialmente quentes e húmidas, favorecendo a formação de tempestades marítimas. 2) Refira-se ainda o Programa Polis — Programa de Requalificação Urbana e Valorização Ambiental de Cidades, aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 26/2000, de 15 de Maio, no qual se incluíam algumas medidas de requalificação de zonas (urbanas) costeiras. 3) Para uma análise das políticas de adaptação às alterações climáticas logo na sequência da emissão da Estratégia referida no texto, veja-se o relatório da Comissão para as alterações climáticas, publicado sob a égide da Agência Portuguesa de Ambiente em Junho de 2010 — Ponto da situação das políticas de alterações climáticas em Portugal, Fórum para as Alterações Climáticas 2010. 4) Este documento, que se assume como eminentemente programático, parte de um conceito de adaptação importado dos trabalhos do Painel das Nações Unidas para as alterações climáticas (IPCC), desdobrável em três dimensões: “«Adaptação»: é um ajustamento nos sistemas naturais ou humanos como resposta a estímulos climáticos verificados ou esperados, que moderam danos ou exploram oportunidades benéficas. Podem ser distinguidos vários tipos de adaptação: «Adaptação antecipatória»: Medidas tomadas antes dos impactes das alterações climáticas serem observados. Também referida como adaptação proactiva; «Adaptação autónoma»: Medidas tomadas, não como resposta consciente a estímulos climáDireitos Humanos e Meio Ambiente

Carla Amado Gomes

Em razão da natureza transversal e transnacional da questão das alterações climáticas, a União Europeia, no âmbito do seu comprometimento nesta frente de luta ambiental, aprovou a Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas5, da qual nos permitimos reproduzir aqui alguns passos que sintetizam o presente estado de coisas: “A temperatura do território terrestre europeu durante a última década (20022011) foi, em média, 1,3 °C superior à do nível pré-industrial, o que significa um aumento mais rápido do que o da média mundial. Intensificaram-se alguns fenómenos meteorológicos extremos, com maior frequência de vagas de calor, incêndios florestais e secas na Europa meridional e central. Prevê-se o agravamento da precipitação e das inundações na Europa do norte e do nordeste, com um risco acrescido de invasão e erosão da orla costeira. A intensificação destes fenómenos é suscetível de acentuar a magnitude das catástrofes, causando significativas perdas económicas, problemas de saúde pública e mortalidade. Os impactos variam de um ponto para outro na UE, consoante as condições climáticas, geográficas e socioeconómicas. Todos os Estados-Membros estão expostos às alterações climáticas. Todavia, algumas regiões estão mais em risco do que outras. São particularmente vulneráveis a bacia mediterrânica, as zonas montanhosas, as zonas densamente povoadas em leitos de cheia, as zonas costeiras, as regiões ultraperiféricas e o Ártico. Acresce que três quartos da população europeia vivem em zonas urbanas, frequentemente mal equipadas para a adaptação e expostas a vagas de calor, inundações e subida dos níveis do mar. Muitos setores económicos dependem diretamente das condições climáticas e estão já a enfrentar o impacto das alterações climáticas em domínios como a agricultura, a silvicultura, o turismo de praia e de neve, a saúde e as pescas. São também afetados serviços fundamentais, como o abastecimento de energia e de água. Os ecossistemas e os serviços por eles prestados estão a sofrer os impactos adversos das alterações climáticas, o que acelera o declínio da biodiversidade e reduz a sua capacidade para amortecer fenómenos naturais extremos. As alterações climáticas terão consequências na disponibilidade de recursos naturais básicos (água, solo), ticos, mas que são desencadeadas por alterações ecológicas em sistemas naturais e por alterações de mercado e de bem-estar em sistemas humanos. Também referida como adaptação espontânea; «Adaptação planeada»: Medidas que resultam de decisão política deliberada, baseadas na consciência de que as condições se alteraram ou estarão prestes a alterar-se, e que são necessárias para regressar a, ou manter, um estado desejado”. 5) Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas, Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao Comité das Regiões - COM(2013) 216 final, pp. 2-4. Obra dedicada ao Instituto Terra

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conduzindo a mudanças significativas nas condições para a agricultura e a produção industrial em algumas zonas. (…) A ausência de medidas ou o atraso na sua tomada poderão colocar a coesão da UE sob pressão. Prevê-se também que o impacto das alterações climáticas agrave as diferenças sociais no seio da União. Temos de prestar especial atenção aos grupos sociais e regiões mais expostos e já desfavorecidos (devido, p. ex., a más condições de saúde, rendimentos baixos, alojamento inadequado, falta de mobilidade) Estima-se que o custo mínimo da não-adaptação às alterações climáticas varie entre 100 mil milhões de euros por ano em 2020 e 250 mil milhões em 2050, para o conjunto da UE. Entre 1980 e 2011, as perdas económicas diretas na UE devidas a inundações ultrapassaram 90 mil milhões de euros. Prevê-se que este montante se agrave, porquanto o custo anual dos danos causados por cheias fluviais está estimado em 20 mil milhões de euros na década de 2020 e em 46 mil milhões de euros na década de 2050. O custo social das alterações climáticas pode também ser considerável. Ao longo do período 1980-2011, as inundações causaram mais de 2500 mortes e afetaram mais de 5,5 milhões de pessoas na UE. Se não se tomarem mais medidas de adaptação, o número de mortes pelo calor poderá sofrer um acréscimo anual de 26 000 na década de 2020, ascendendo a 89 000 na década de 2050. Embora não exista nenhuma análise abrangente dos custos da adaptação na UE, estima-se que as medidas adicionais de proteção contra inundações se cifrem em 1,7 mil milhões de euros por ano na década de 2020, valor que aumentará para 3,4 mil milhões na década de 2050. Essas medidas podem ser bastante eficazes, pois, por cada euro gasto na proteção contra inundações, poderemos evitar seis euros de custos de danos”6. A União Europeia demonstra uma particular preocupação com os custos das alterações climáticas, financeiros, económicos e sociais. Por seu turno, a Estratégia de Hyogo, documento forjado no seio das Nações Unidas, que pretende estabelecer um programa de acção mundial de prevenção e minimização dos riscos de catástrofes naturais, muito agravados precisamente pelas profundas mutações dos padrões climáticos a que vimos assistindo nas últimas décadas, elegeu cinco áreas de intervenção para o decénio 2005/20157: i) Enquadramento jurídico da prevenção de catástrofes no plano organizacional, 6) Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas, pp. 2-4. 7) Sobre a Estratégia de Hyogo, veja-se Carla AMADO GOMES, A gestão do risco de catástrofe natural. Uma introdução na perspectiva do Direito Internacional, Capítulo I da obra Direito(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra, 2012, pp. 15 segs, 56-59. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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legal e político; ii) Avaliação, gestão, monitorização e alerta precoce de riscos naturais; iii) Investigação científica e educação; iv) Redução de factores de potenciação do risco natural; v) Prontidão para a resposta emergencial e reforço da capacidade de recuperação. No âmbito desta comunicação e atendendo às particulares circunstâncias climatéricas que têm caracterizado os últimos meses, gostaríamos de tecer algumas considerações sobre a protecção do litoral contra a inclemência das marés, aludindo, por um lado, a instrumentos de planeamento como os POOCs e os planos de gestão do risco de inundações como metodologias de prevenção de danos às pessoas e ao ambiente (1.) e, por outro lado, reflectindo sobre as consequências do agudizar dos fenómenos climáticos no plano dos deveres de protecção e compensação dos poderes públicos (2.).

1) Alterações climáticas e orla costeira: planos para quê? Conforme se pode ler no ponto 2 do Plano de Acção de Protecção e Valorização do Litoral 2012-2015, “O litoral português enfrenta atualmente, numa extensão considerável, uma ameaça significativa decorrente dos fenómenos de erosão costeira, galgamento/inundação, instabilidade das arribas e movimentos de massa de vertente. Cerca de 1/4 da sua extensão mostra tendência para erosão ou erosão confirmada, independentemente de se tratar costa baixa ou alcantilada, rochosa ou arenosa (…). A perda de território e propriedade e a destruição ou danificação das infraestruturas existentes (de proteção costeira ou edifícios) em determinados pontos da orla costeira, bem como a ocorrência irregular e descontínua de movimentos de massa nas arribas em praias com uso balnear, têm contribuído para o aumento das situações de risco para as pessoas e bens instalados nestas áreas, por vezes com implicações graves no que se refere à sua segurança. A gestão dos riscos inerentes à evolução do litoral será uma questão de ainda maior importância num futuro cada vez mais próximo devido aos impactos das alterações climáticas, designadamente a subida do nível médio do mar e a modificação do regime de agitação marítima, da sobre-elevação meteorológica e da precipitação. Neste cenário, segundo os dados constantes do Projeto SIAM II - Alterações Climáticas em Portugal. Cenários, Impactos e Medidas de Adaptação (2006), são expectáveis alterações no balanço sedimentar que se podem traduzir no estabelecimento ou variação da intensidade da erosão e na modificação da frequência e intensidade das inundações costeiras. Os impactos dessas alterações ao nível económico, social e ambiental serão variáveis e irão depender fortemente das características Obra dedicada ao Instituto Terra

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geológicas, morfológicas e padrões de ocupação existentes na faixa costeira nacional”. Partindo deste diagnóstico, esta Estratégia vai lançar as directrizes de revisão dos POOCs actualmente em vigor, tendo em particular atenção o enquadramento de medidas de prevenção e mitigação de riscos para o ambiente advenientes do incremento da força das tempestades marítimas e da subida do nível das águas. O documento considera prioritárias, por ordem decrescente, as seguintes tipologias de intervenção (ponto 3.1.): “Defesa Costeira e Zonas de Risco – sempre que sejam detetados riscos passíveis de porem em causa a segurança de pessoas e bens localizados na faixa costeira; Estudos, Gestão e Monitorização – de forma a suportar e fundamentar tecnicamente as ações e intervenções previstas e garantir a sua adequabilidade face aos processos e mecanismos evolutivos presentes na faixa costeira; Planos de Intervenção e Projetos de Requalificação – intervenções de requalificação e de valorização da orla costeira previstas em Plano de Ordenamento da Orla Costeira, designadamente planos de praia e ações enquadradas em Unidades Operativas de Planeamento e Gestão, e ainda outras integradas nas operações Polis”. O primeiro tipo de intervenção é claramente reactivo e emergencial; o segundo, de avaliação, gestão e pós-avaliação dos riscos, é funcional ao terceiro, de planificação. À sustentação científica e técnica das medidas de gestão do risco deve ser dedicada particular atenção quer, de uma banda, em razão da incerteza que ainda divide os cientistas sobre os possíveis e prováveis impactos do aquecimento global no comportamento das correntes oceânicas8, quer, de outra banda, em virtude dos custos, económicos, sociais e mesmo ambientais que tais medidas podem acarretar. A prevenção tem que obedecer a uma lógica de integração (não transferir riscos de umas zonas para outras) e de durabilidade (assegurar a eficiência das medidas, de um

8) N  este momento, um conjunto considerável de cientistas inclina-se para associar o aumento de temperatura no Ártico (três vezes mais intenso do que a média global) e a alteração da corrente de jacto (jet stream). Como se pode ler na Caixa explicativa da Visão (Clima : isto é só o começo, na Visão de 20 de Fevereiro de 2014, p. 61 – por Luís Ribeiro), «como a corrente de jato é causada pelo choque entre o ar frio do Ártico e o ar relativamente quente das latitudes médias, uma aproximação das duas temperaturas enfraquece os ventos da tropopausa, que passam a desviar-se  das altas pressões em vez de atravessá-las, tornando o percurso muito mais sinuoso do que habitualmente e esticando-se para sul ». Mas estamos ainda longe de um consenso, como sublinha Filipe Duarte Santos, afirmando que « the jury is still out there ». Veja-se também o artigo Is Weird Winter Weather Related to Climate Change?, da autoria de Fred Pearce, disponível em http://e360.yale.edu/feature/is_weird_winter_weather_related_to_climate_change/2742/ Direitos Humanos e Meio Ambiente

Carla Amado Gomes

ponto de vista de análise custo-benefício)9 no médio/longo prazo. A prognose cientificamente apoiada constitui a grande arma dos instrumentos de gestão do risco de alterações climáticas, numa tentativa de reduzir a enorme álea de incerteza que rodeia a evolução dos cenários naturais com um custo economicamente aceitável. Como se refere na Estratégia, a abordagem e as medidas em concreto “devem ser ajustadas convenientemente ao contexto geológico e morfológico da faixa costeira portuguesa e ao padrão de ocupação e usos nela existente. A opção por uma ou outra aproximação deve assentar no conhecimento técnico disponível, decorrente de estudos técnicos prévios e da experiência acumulada, dos resultados das ações de monitorização já desenvolvidas e em curso em alguns troços costeiros, e ainda, crescentemente, em análises de custo/benefício” (ponto 4.). A elaboração dos planos de gestão do risco de inundações (=PGRI), criados pelo DL 115/2010, de 22 de Abril, em transposição da directiva 2007/60/ CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, assenta em metodologia semelhante. Com efeito, a sua aprovação é precedida de uma avaliação preliminar dos factores de risco das regiões historicamente sujeitas a inundações e de uma projecção estimada dos efeitos destes fenómenos num futuro dominado pela instabilidade climática. Analisemos sumariamente as potencialidades de POOCs e PGRIs face aos riscos de subida do nível das águas e de tempestades que ameaçam o litoral português.

1.1) POOCs Conforme pode ler-se no Preâmbulo do DL 159/2012, de 29 de Junho, os POOCs são planos especiais de ordenamento do território, nos termos do artigo 42º/3 do DL 380/99, de 22 de Setembro (com última alteração pelo DL 2/2011, de 6 de Janeiro: Regime jurídico dos instrumentos de gestão territorial = RJIGT), e do artigo 3º/1 do DL 159/201210. O DL 159/2012 9) Para uma já longa história de instrumentos de gestão de riscos na orla costeira, Carla AMADO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E um dia a falésia veio abaixo… Risco de erosão da orla costeira, prevenção e responsabilização, in Revista do CEDOUA, in Revista do CEDOUA, nº 24, 2009, pp. 15 segs. 10) Refira-se que o DL 159/2012 revoga o DL 309/93, de 2 de Setembro (alterado pelos DLs 218/94, de 20 de Agosto; 151/95, de 24 de Junho, e 113/97, de 10 de Maio) - primitivo regime dos POOCs - e procede à unificação dos regimes sancionatórios previstos nos DLs 218/95, de 26 de Agosto, e 96/2010, de 30 de Julho. Obra dedicada ao Instituto Terra

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traça o quadro de elaboração e implementação dos POOCs, estabelecendo também um regime sancionatório unitário aplicável às infracções praticadas na orla costeira (a qual compreende uma zona terrestre de proteção e uma zona marítima de proteção) - artigos 1º/1 e 2, 8º e 9º. A Lei da Água (Lei 58/2005, de 29 de Dezembro, alterada pelos DLs 245/2009, de 22 de Setembro, e 60/2012, de 14 de Março) salienta identicamente a importância dos POOCs enquanto documentos que reflectem « opções estratégicas para a proteção e integridade biofísica, a valorização dos recursos naturais e a conservação dos valores ambientais e paisagísticos, configurando tais instrumentos como um elemento fundamental na proteção, preservação e gestão dos recursos hídricos » (Preâmbulo do DL 159/2012). O risco que os POOCs se destinam a gerir reside fundamentalmente na « perigosidade resultante da ocorrência de fenómenos de erosão costeira, galgamento, inundação, instabilidade das arribas e movimentos de massa de vertente quando associada a uma determinada tipologia e densidade de ocupação humana » (artigo 2º/k) do DL 159/2012)11. O grau de risco é apurado através de uma equação que envolve três componentes (Anexo II, 2.): a) Vulnerabilidade (susceptibilidade ao fenómeno); b) Exposição (pessoas e bens expostas ao fenómeno); e c) Perigosidade [Severidade (intensidade do fenómeno) x probabilidade (frequência do fenómeno)]. O Capítulo III do DL 159/2012 tem por epígrafe “Mecanismos de prevenção associados ao risco”. Os artigos 14º a 17º incidem fundamentalmente 11 ) Esta tipologia de riscos encontra-se desenvolvida no Anexo II: “1. Para efeitos de avaliação e monitorização das situações de risco no litoral, consideram-se as seguintes tipologias de risco associadas à evolução e dinâmica do litoral: a) Erosão costeira, traduzida pelo recuo da linha costa (perda de área emersa do território), e que inclui: i) Amputamento e recuo dos sistemas dunares frontais; ii) Redução da largura e perda volumétrica da praia emersa - incluindo a dinâmica sazonal; iii) Recuo linear e paralelo em arribas talhadas em materiais brandos; b) Galgamento e inundação costeira; c) Movimentos de massa de vertente em arribas, e que inclui: i) Queda de blocos; ii) Deslizamentos; iii) Tombamentos; d) Fenómenos de instabilidade em arribas, e que inclui: i) Fendas de tração paralelas a face talude; ii) Erosão diferencial; iii) Inclinação negativa da arriba; iv) Blocos em consola em situação próxima do equilíbrio limite; v) Erosão marinha de sopé (sapas/subescavações de sopé); vi) Fraturação pouco espaçada ». Direitos Humanos e Meio Ambiente

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sobre deveres de informação sobre os riscos associados às zonas costeiras, sobretudo a praias, cujos usos de lazer as tornam particularmente apetecíveis ao público, agravando o factor “exposição”. Mas os riscos podem ser tão elevados que impliquem interdição de uso, circulação, sobrevoo, podendo gerar proibições quer de actividades de lazer, quer de actividades económicas (como concessões de praia ou actividades piscatórias). O agravamento ou aligeiramento dos deveres de prevenção está intrinsecamente ligado a operações de monitorização que permitam analisar dinamicamente a evolução dos factores de risco, que hão-de ser avaliados zona a zona, POOC a POOC12. O quadro de medidas de prevenção e adaptação é pelo menos teoricamente e parcialmente adequado13 e serviu de directriz aos nove POOCs aprovados para o território continental e aos três aprovados para a Região Autónoma dos Açores14. No entanto, na prática, o índice de concretização dos investimentos que servem de sustentáculo às acções de prevenção e adaptação previstas é mui12) Com uma exemplificação visual deste tipo de operações, v. Celso PINTO, Monitorização das zonas costeiras: exemplos e aplicação na gestão do risco em litoral de arriba e arenoso, in Actas do Seminário Ambiente Urbano e Riscos, AML, Lisboa, 2013, pp. 196 segs. 13) Como se observou em texto anterior (Carla AMADO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E um dia a falésia veio abaixo…, cit.), os POOCs, pela sua aplicação territorial circunscrita à orla costeira (e por isso abstraindo de causas de fragilização que podem encontrar-se no interior), não abarcam a totalidade das medidas necessárias à prevenção do risco litoral. 14) L  istando os POOCs desde o mais antigo ao mais recente : > Cidadela – S. Julião da Barra (Resolução do Conselho de Ministros 123/98, de 19 de Outubro, com Declaração de Rectificação 22-H/98, de 30 de Novembro; alterado pela Resolução do Conselho de Ministros 82/2012, de 3 de Outubro); > Sines – Burgau (Resolução do Conselho de Ministros 152/98, de 30 de Dezembro); > Caminha – Espinho (Resolução do Conselho de Ministros 25/99, de 7 de Abril); > Burgau – Vilamoura (Resolução do Conselho de Ministros 33/99, de 27 de Abril); > Sado – Sines (Resolução do Conselho de Ministros 136/99, de 29 de Outubro; alterado pela Resolução do Conselho de Ministros 108/2007, de 17 de Agosto); > Ovar – Marinha Grande (Resolução do Conselho de Ministros 142/2000, de 20 de Outubro; alterado pela Resolução do Conselho de Ministros 76/2005, de 21 de Março), > Alcobaça – Mafra (Resolução do Conselho de Ministros 11/2002, de 17 de Janeiro) > Sintra- Sado (Resolução do Conselho de Ministros 86/2003, de 25 de Junho), > Vilamoura – Vila Real de Santo António (Resolução do Conselho de Ministros 103/2005, de 27 de Junho); a Resolução do Conselho de Ministros 78/2009, de 2 de Setembro, aprovou o Plano de Ordenamento do Parque Natural da Ria Formosa e determinou a derrogação de algumas normas do POOC Vilamoura – Vila Real de Santo António); > Ilha Terceira (aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional 1/2005/A, de 15 de Fevereiro); > Ilha S. Miguel troço Feteiras – Fenais da Luz - Lomba de S. Pedro (aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional 6/2005/A, de 17 de Fevereiro); > Ilha de S. Jorge (aprovado pelo Decreto Regulamentar Regional 24/2005/A, de 26 de Outubro). Obra dedicada ao Instituto Terra

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to baixo, como se pode comprovar pela análise dos vários quadros descritivos das acções compreendidas na Estratégia de Valorização do Litoral 2012/201515. A alegada falta de visão integrada foi outra das falhas da elaboração da primeira geração de POOCs, gerando transferência de riscos entre diferentes áreas esta uma das razões que justifica, por exemplo, a fusão dos POOCs Sintra-Sado, Sado-Sines e Sines-Burgau num único e novo POOC: Espichel-Odeceixe16. Uma outra crítica, movida por Fernando VELOSO17, aponta a necessidade de introduzir nos POOCs instrumentos mais flexíveis, que permitam fazer face, de forma célere, ao agravamento das condições climáticas e à ocorrência de eventos climáticos extremos (como as tempestades Hercules e Stephanie, que assolaram a costa portuguesa), tais como a delimitação de zonas adjacentes, a identificação de zonas naturais “tampão”, ou a implementação de uma rede eficaz de pré -alertas, planos de evacuação e de contingência18. A Quercus, por seu turno, aponta a falta de entrosamento da política de gestão da orla costeira com a Estratégia de adaptação às alterações climáticas, lamentando a ausência de uma visão sustentada do uso e ocupação do litoral em prol de uma postura demasiado imediatista e serva dos interesses de lazer e de negócio, e pouco virada para o incremento da resiliência da zona costeira - a que acresce a sobrecarga de obras de infraestruturas como grandes barragens, cuja existência reduz a descarga de sedimentos na foz dos rios. A Quercus critica, sobretudo, a inexistência de cartas de risco do litoral, que impedem uma estratégia evolutiva e eficiente do combate à crescente força do mar, sublinhando a inoperância de acções puramente reactivas e pontuais, como “a alimentação artificial de praias e dunas ou a instalação de esporões e quebra-mares, soluções com efeitos de curto prazo (2 a 5 anos) e com custos elevados a longo prazo (entre 200 a 500 euros anuais por metro quadrado, envolvendo a instalação e a manutenção)”19. 15) Veja-se o ponto 8 (pp. 33 segs) da Estratégia: 8.1. Defesa costeira e zonas de risco; 8.2. Estudos, gestão e monitorização; 8.3. Planos de intervenção e projectos de requalificação; 8.4. Acções Polis. 16) Determinada pelo Despacho da Secretária de Estado do Ordenamento do Território e das Cidades nº 7734/2011, de 20 de Maio (in DR, II, de 23 de Maio de 2011, pp. 20359-20360). 17) Fernando VELOSO, A gestão da zona costeira portuguesa, in Revista da Gestão Costeira Integrada, 2007/2, pp. 83 segs. 18) Q uanto a planos de emergência, rege a Lei 27/2006, de 3 de Julho (Lei de Bases da Protecção Civil), onde se prevê a existência de planos de prevenção e de emergência, de âmbito nacional, regional, distrital e municipal (cfr. o artigo 50º). 19) Zona costeira necessita de intervenções urgentes para resultados a longo prazo: Quercus não quer 300 milhões euros deitados ao mar - disponível em http://www.quercus.pt/comuniDireitos Humanos e Meio Ambiente

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Em jeito de balanço, poderíamos dizer que o POOC, pela sua sustentação técnico-científica, pela sua atenção a aspectos especificamente relacionados com a dinâmica da zona litoral (entrelaçadamente, no contexto dos procedimentos de revisão, com o Plano de Acção de Protecção e Valorização do Litoral 2012-2015), pela sua vocação de durabilidade, tem inegável potencial enquanto metodologia de gestão do risco. A esta aptidão de partida acresce, desde 2007 e sempre que aplicável20, o cruzamento com a avaliação ambiental estratégica, através da prognose ínsita no Relatório Ambiental em que esta assenta. O que se verifica na realidade é, contudo, desencorajante, um tanto pelo insuficiente nível de concretização, outro tanto em razão da dificuldade de acertar com as medidas mais idóneas num quadro de crescente incerteza científica sobre a evolução dos fenómenos atmosféricos, maxime tempestades marítimas21 - registando-se uma tendência topicamente reactiva e falha de visão integrada, no espaço e no tempo22.

1.2) PGRIs O « último grito » em sede de gestão do risco de inundações são os planos de gestão do risco de inundação. Os PGRIs constituem, como se observou, resultado da transposição de uma directiva da União Europeia. Com efeito, a estreita ligação entre aquecimento global e intensificação, da cadência e da magnitude, de eventos climáticos extremos, levou a União Europeia a reflectir sobre a necessidade de criar instrumentos que permitam salvaguardar interesses vitais dos cidadãos, bem como interesses colectivos como o ambiente, o património cultural, a boa gestão urbanística. Saliente-se, por decisivo, que o Tratado de Lisboa veio incorporar no Tratado sobre o funcionamento da União Europeia um título dedicado a uma nova política de coordenação de esforços em sede de protecção civil perante a ocorrência de catástrofes naturais (Título XXIII)23. cados/2014/janeiro/3269-zona-costeira-necessita-de-intervencoes-urgentes-para-resultadosa-longo-prazo-quercus-nao-quer-300-milhoes-euros-deitados-ao-mar 20) Carla AMADO GOMES, Introdução ao Direito do Ambiente, 2ª ed., Lisboa, 2014, pp. 170-172. 21) Cfr. supra, nota 8. 22) Já assim se concluía em Carla AMADO GOMES e Heloísa OLIVEIRA, E um dia a falésia veio abaixo…, cit. 23) Sobre esta nova política europeia, veja-se Francisco PAES MARQUES, A prevenção e Obra dedicada ao Instituto Terra

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Terá sido esta a alavanca para a União começar a ponderar a definição de um quadro normativo geral de prevenção de catástrofes naturais. Com efeito, na Communication from the Commission to the European Parliament, the Council, the European Economic and Social Committee and the Committee of the regions24, a Comissão lançou as bases de uma abordagem europeia à problemática da prevenção de desastres naturais e humanos (“natural and man-made disasters”). Nesta Comunicação - e na sequência das directrizes da Estratégia de Hyogo (2005/2015) - enfatiza-se o imperativo de elaborar cartas de risco para definir um zoneamento de áreas de risco natural no território da União, bem como a conveniência de desenvolver estudos científicos no campo das alterações climáticas e dos sistemas de alerta precoce, e de os tornar acessíveis às entidades com responsabilidades na área da prevenção e aos peritos da matéria de gestão de riscos naturais. O Conselho Europeu de Ministros da Justiça e Assuntos internos, reunido em Bruxelas em Novembro de 2009, retomou a questão. As Council Conclusions on a Community framework on disaster prevention within the EU 2979th Justice and Home Affairs Council meeting enfatizam a lógica dual em que deve assentar a prevenção de catástrofes no plano europeu: responsabilidade nacional e solidariedade da União (cf. o ponto 16 das Conclusões). Estas Conclusões incluem um conjunto de convites aos Estados, dos quais destacamos um, no sentido de, até final do ano de 2011, desenvolverem, ao nível nacional, procedimentos de análises de risco que incluam projecções incorporando o cenário de alterações climáticas nos seus territórios e de comunicarem os resultados à Comissão. No mais, exortam à comunicação de riscos à população, à partilha de informação, à criação de estruturas coordenadas de prevenção de riscos, ao tratamento de dados estatísticos de eventos naturais extremos, bem assim como dos seus efeitos sociais, económicos e ambientais. A directiva 2007/60/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 23 de Outubro, sobre avaliação e gestão do risco de inundações, foi o mais concreto resultado, até agora, da percepção da urgência de identificação de causas e estabelecimento de medidas de prevenção adequadas. A directiva distingue entre avaliação de risco - traduzida na elaboração de cartas de zonas inundáveis e de cartas de inundações (artigo 6) -, e gestão do risco de inundações - baseada nos objectivos definidos no nº 2 do artigo 7: “redução das potenciais consequências gestão de catástrofes no Direito da União Europeia, in Direito(s) das catástrofes naturais, coord. de Carla Amado Gomes, Coimbra 2012, pp. 141 segs. 24) Rectificação 7075/1/09 REV 1 - anula e substitui a Comunicação COM (2009) 82 final, de 23 de Fevereiro de 2009. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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prejudiciais das inundações para a saúde humana, o ambiente, o património cultural e as actividades económicas, e, se forem consideradas adequadas, em iniciativas não estruturais e/ou na redução da probabilidade de inundações”25. O diploma nacional de transposição - DL 115/2010, de 2 de Abril dá corpo à figura dos PGRIs, planos sectoriais que “abrangem os aspectos da gestão dos riscos de cheia e inundações provocadas pelo mar, centrandose na prevenção, protecção e preparação, incluindo sistemas de previsão e de alerta precoce, tendo em conta as características de cada bacia ou sub-bacia hidrográfica” (artigo 9º/4). Deve assinalar-se que, em Portugal, a preocupação com a prevenção do risco de cheias já vem desde 1971, data em que o DL 468/71, de 5 de Novembro, criou a figura das zonas adjacentes (de terrenos ameaçados pelo mar ou pelas cheias), integrando-as no domínio público hídrico e sujeitando os terrenos em causa a restrições de utilidade pública. O regime da Reserva Ecológica Nacional, uma década mais tarde, veio perseguir intuito similar, considerando as zonas ameaçadas pelas cheias como áreas de risco. Acresce que o DL 364/98, de 21 de Novembro, incumbiu os municípios mais castigados por cheias (desde 1967) cujo território se não encontrasse abrangido por zonas adjacentes, de elaborar cartas de zonas inundáveis que deveriam ficar sujeitas a restrições de edificação. Deve também dar-se nota da Estratégia Nacional de Conservação da Natureza e da Biodiversidade, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros 152/2001, de 11 de Outubro, cujo ponto 26, exclusivamente dedicado à política para o litoral e para os ecossistemas marinhos, refere como um dos objectivos a consideração da elaboração de uma Carta de risco do litoral. Por fim, a Lei da Água (Lei 58/2005, de 29 de Dezembro) impôs a obrigação de demarcação das zonas inundáveis nos instrumentos de planeamento dos recursos hídricos e de gestão territorial, devendo estas zonas ser classificadas nos termos da Lei da Titularidade dos Recursos Hídricos (Lei 54/2005, de 15 de Novembro) e sujeitar-se às restrições previstas nesta lei. Assim, a legislação de 2010 veio fundamentalmente integrar a figura do PGRIs no quadro da gestão das bacias hidrográficas, visando congregar esforços no sentido de uma compatibilização e concertação de objectivos dos instrumentos já existentes (cfr. o artigo 12º do DL 115/2010, sobre articulação de instrumentos) e, sobretudo, da sujeição dos procedimentos de revisão dos planos de gestão das bacias hidrográficas aos critérios do novo di25 ) Mais desenvolvidamente sobre esta directiva, Carla AMADO GOMES, Catástrofes naturais e acidentes industriais graves na União Europeia: a prevenção à prova nas directivas Seveso, in O Direito, 2011/III, pp. 459 segs. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ploma. Trata-se de um procedimento trifásico que envolve a elaboração, pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA, I.P.), através de serviços desconcentrados,26 e com o apoio da novel Comissão Nacional da Gestão dos Riscos de Inundações, de cartas de zonas inundáveis para áreas de risco (artigo 7º do DL 115/2010), de cartas de riscos de inundações (artigo 8º do DL 115/2010), e de PGRIs (artigo 9º do DL 115/2010), sempre precedida de uma avaliação preliminar (a cargo da APA: artigo 5º do DL 115/2010). Ou seja, numa primeira fase, de avaliação preliminar, sinalizam-se as áreas atreitas a inundações “com base em informações disponíveis, incluindo registos e estudos, acessíveis e fiáveis, sobre a evolução a longo prazo, nomeadamente do impacto das alterações climáticas na ocorrência de inundações” (artigo 5º/2 do DL 115/2010); numa segunda fase, esse levantamento vai ser vertido para as cartas de zonas inundáveis (onde se descreve os cenários possíveis em termos de intensidade dos fenómenos “recorrendo a informação hidrometeorológica, nomeadamente precipitações, caudais e marcas de cheia, associados a fenómenos extremos, ou outros tipos de registo de eventos históricos extremos” - artigo 7º/3), e para as cartas de risco de inundações, nas quais se complementa a descrição dos cenários possíveis com a previsão de potenciais consequências (artigo 8º do DL 115/2010); e, numa terceira fase, a sinalização de causas e consequências vai ficar plasmada no PGRI para cada região hidrográfica, no qual relevarão especialmente os aspectos relacionados com: “a) Os custos e benefícios; b) A extensão das inundações; c) As vias de evacuação das águas e as zonas com potencialidades de retenção de águas das cheias, como as planícies aluvionares naturais; d) Os objectivos ambientais estabelecidos no artigo 45º da Lei da Água; e) A gestão dos solos e das águas; f) O ordenamento do território; g) A afectação dos solos; h) A conservação da natureza; i) A navegação e as infra-estruturas portuárias” (artigo 9º/3 do DL 115/2010). Uma visão desapiedada tenderá a considerar que estes PGRIs constituem mais um tipo de planos para entreter técnicos, acrescendo a vários outros « sinalizadores » do risco de inundações pré-existentes. Uma abordagem menos céptica poderá encontrar alguma mais valia nos PGRIs, nomeadamente na 26) O diploma refere as Administrações de Região Hidrográfica como entidades competentes; porém, por força da alteração introduzida pelo DL 130/2012, de 22 de Junho, estes organismos desapareceram, sendo as suas competências assimiladas pela APA (cfr. o artigo 7º/1 da Lei 58/2005, na redacção dada pelo DL 130/2012, além do artigo 2º/3 do DL 56/2012, de 12 de Março, que aprova a orgânica da APA, no qual se pode ler que “Para a prossecução das atribuições da APA, I. P., enquanto autoridade nacional da água, funcionam, a nível regional, serviços desconcentrados, cuja circunscrição territorial é definida nos estatutos da APA, I. P., sendo dirigidos por administradores regionais cargos de direcção intermédia de 1.º grau”. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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metodologia de avaliação do risco que lhes está subjacente a qual, por um lado, se destaca da mera análise estatística a partir de registos históricos - abrindo margem de ponderação a possibilidades de ocorrência e não só a probabilidades27 - e, por outro lado, introduz uma ponderação conjunta de factores ambientais, sociais e económicos, assumindo claramente a lógica do custo-benefício nas operações de gestão do risco. Acresce a vocação tridimensional dos PGRIs, concordante com os princípios da Estratégia de Hyogo, de « prevenção, protecção e preparação », estreitamente associada à criação de um Sistema de Vigilância e Alerta de Recursos Hídricos, que constitui um sistema de previsão e alerta de inundações (cfr. os artigos 9º/4 e 11º/3 do DL 115/2010). Deve apontar-se, todavia, quatro aspectos menos positivos neste quadro normativo: i) que a APA poderá prescindir da avaliação preliminar e da elaboração das cartas previstas no diploma para a elaboração dos planos de gestão de risco de inundações, desde que a informação levantada ao abrigo da legislação anterior forneça “um nível de informação equivalente aos requisitos estabelecidos” no novo regime (artigo 17º do DL 115/2010) - aproveitamento que se compreende no plano da economia de meios, e que a directiva 60/2007/CE autoriza, mas que pode reduzir a eficácia do planeamento ; ii) que a ponderação dos efeitos das alterações climáticas na avaliação preliminar é meramente facultativa, só se tornando obrigatória nas reavaliações o que nos parece uma visão pouco ambiciosa, face à emergência climática que vivemos (cfr. o artigo 5º/4 do DL 115/2010) ; iii) que o diploma autolimita os resultados das acções de prevenção do risco de inundações quando, no Anexo, Parte A, I-5, estabelece que as medidas preventivas deverão ser, « preferencialmente, medidas não estruturais, ou seja, medidas que não impliquem a construção de diques ou outras obras de contenção que obrigam a custos de manutenção elevados » - perspectiva que nos parece redutora e mesmo desnecessária em face do critério da ponderação « custo-benefício » ínsito no artigo 9º/3/a) do DL 115/2010 ; iv) que a avaliação preliminar deveria estar concluída até 22 de Dezembro de 2011 (artigo 15º/1 do DL 115/2010), cenário que se não verificou - sublinhe-se que o prazo fixado no artigo 7/5 da directiva 60/2007/CE para entrada em vigor destes planos é Dezembro de 2015. Na verdade, tal avaliação prelimi27) Cfr. o artigo 5º/4/e), que aponta para, na avaliação preliminar a longo prazo, se considerar o impacto das alterações climáticas, com toda a incerteza que tal prognose envolve, bem assim como o artigo 7º/1/a), onde se admite a ponderação de um cenário de « baixa probabilidade de ocorrência » ou de eventos extremos. Obra dedicada ao Instituto Terra

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nar só terá ficado concluída em Março de 2013, o que atrasou todo o restante procedimento, bem assim como as datas das reavaliações a que alude o artigo 16º do diploma, as quais deverão ter em conta as interferências das alterações climáticas no risco de inundações tanto na costa como em leitos fluviais - ou seja, o mapeamento do risco de inundações no território português com base numa metodologia de prognose adequada à aleatoriedade das alterações climáticas ainda não existe…

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Conclusão: Prevenção e responsabilização em tempos de inclemência climática: um mar de incertezas

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A prevenção de eventos climáticos extremos coloca problemas agudos do ponto de vista da responsabilidade dos poderes públicos relativamente à previsão da sua ocorrência e à mitigação dos seus efeitos. Com a criação de modelos de previsão do clima, o que tradicionalmente se considerava “actos de Deus”, eventos irresistíveis e imprevisíveis - que no Direito da responsabilidade se enquadram na causa excludente da força maior - entra progressivamente para um campo de previsibilidade tendencial, mesmo que a causalidade humana, pelo menos directa, não se verifique. Assim, é verdade que o clima está cada vez mais imprevisível, mas é também certo que a consciência dessa imprevisibilidade gera deveres de prevenção antecipados, não puramente reactivos mas proactivos, redutores da vulnerabilidade e geradores de resiliência28. Ou seja, quanto mais consciência se tem dos efeitos potencialmente lesivos dos eventos climáticos, maior responsabilidade se tem na sua minimização, e a falta de certeza não deve impedir a adopção de medidas de prevenção relativas aos riscos antecipáveis e mitigáveis por recurso às melhores técnicas disponíveis, ponderando os custos sociais e financeiros previsíveis. É importante frisar que as medidas de mitigação não se reconduzem a acções, jurídicas e materiais de redução do risco - v.g., proibição de edificação em zonas de rebentação; construção de diques de contenção de rios ou ondas - mas também a difusão tempestiva, clara e completa de informação sobre os comportamentos a evitar ou a adoptar pela população em caso de eclosão do risco para salvaguarda de vida e património - v.g., simulacros, sinais de perigo, sistemas de alerta precoce. 28) Cfr. o Global Assessment Report on Disaster Risk Reduction 2011 - Revealing Risk, Redefining Development, 1.4. Climate change adaptation - disponível em http://www.preventionweb.net/english/hyogo/gar/2011/en/home/intro_1.4.html Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Não espanta, por isso, que a Corte de Estrasburgo tenha já condenado Estados (mais concretamente, o Estado russo) por défice de medidas de mitigação de efeitos de eventos climáticos, nos casos Boudaïeva e outros vs Rússia (2008)29, e Kolyadenko e outros vs Russia (2012). No primeiro, a Corte afirmou a necessidade de observância de deveres de prevenção do risco natural (no caso, relativamente à população de uma localidade situada no sopé de uma encosta sazonalmente exposta a enxurradas), tendo condenado o Estado russo por omissão grave de condutas materiais de minimização do risco e por grave défice de cumprimento de deveres de informação à população. No segundo, a Corte Europeia dos Direitos do Homem condenou o Estado russo por défice de medidas de prevenção de inundações provocadas por sobredescarga de um reservatório que deveria ter sido descarregado periodicamente em anos anteriores. Em Portugal, os auxílios emergenciais a populações castigadas por eventos extremos (mini-tornados ; cheias ; incêndios) têm aplacado exigências mais frequentes de cumprimento de deveres de prevenção de riscos naturais30. Há, no entanto, uma decisão que consideramos curiosa, que se prende com deslizamento de rochas numa estrada em ravina da ilha da Madeira, na qual, apesar de o Governo regional ter feito prova da sinalização do risco de queda de pedras da encosta que ladeia a estrada, bem como do cumprimento de acções de fiscalização para controlo do estado da encosta, o Tribunal Administrativo Central Sul confirmou a efectivação de responsabilidade por facto ilícito deduzida por um particular cujo veículo sofreu danos em virtude da queda de uma pedra sobre o vidro dianteiro da viatura. A condenação deu-se com base no instituto da culpa in vigilando (hoje, objecto de expresso acolhimento no artigo 10º/3 do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro), mas o grau de prova do cumprimento dos deveres de diligência foi de tal forma elevado que a decisão mais

29) Por nós analisado em Carla AMADO GOMES, A gestão do risco de catástrofe natural…, cit., pp. 65-67. 30) Vejam-se, a título de exemplo e com regimes muito diversificados: o DL 20/96, de 19 de Março (regula o Sistema Integrado de Protecção contra as Aleatoriedades Climáticas); o DL 339/97, de 4 de Dezembro (fundo especial de emergência destinado ao apoio, a fundo perdido, à rápida normalização das condições de vida das populações afectadas dos distritos de Beja, Évora e Faro, pelos temporais de Outubro e Novembro de 1997); o DL 112/2008, de 1 de Julho (conta de emergência titulada pela Autoridade Nacional de Protecção Civil para fazer frente a situações de catástrofe ou calamidade); o DL 225/2009, de 14 de Setembro (cria o Fundo de Emergência Municipal) ; ou a Resolução do Conselho de Ministros 2/2010, de 13 de Janeiro (fundo especial de emergência destinado a apoio das populações dos distritos de Leiria, Lisboa e Santarém, por temporais ocorridos em Dezembro de 2009). Obra dedicada ao Instituto Terra

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parece ter-se fundado numa lógica de responsabilidade objectiva31. Os particularismos dos casos de responsabilidade, em geral, e os contornos deste caso (desde logo por se reportar a um território insular com especiais características), em especial, não permitem fazer extrapolações para a nossa temática - nem as recomendam, de resto. Transformar toda a actividade de vigilância de coisas e actividades perigosas em domínio de responsabilidade pública objectiva é um caminho indesejável, juridicamente - porque banaliza o instituto -, financeiramente - porque transforma as entidades públicas em seguradoras universais - e mesmo politicamente falando - porque, ao absolutizar um direito à segurança, pressupõe uma postura altamente paternalista do Estado. Hipótese de contornos diversos é aquela que deu aso à condenação do Estado por facto ilícito, na sequência de danos provocados a uma habitação, licitamente construída na faixa litoral, em virtude da construção de um esporão de contenção do mar que agudizou a erosão costeira e deixou desprotegida a habitação. Os autores terão logrado fazer a prova da causalidade inequívoca entre o facto - erosão aguda - e o dano - desprotecção da casa através da junção de um parecer técnico, subscrito por dois professores universitários, que alertava, aquando da construção do esporão, para o risco, elevado, de desgaste súbito da costa por força daquela estrutura32. Outros exemplos, mais problemáticos, colocar-se-ão em cenários de incerteza, no quadro dos quais a Administração optou por uma solução que apresentava riscos mas também vantagens, escolhida entre várias tecnicamente possíveis e identicamente válidas, com base em diferente posicionamento científico33. Cremos que, a resulta31) Acórdão do TCA-Sul, de 7 de Abril de 2011, proc. 02749/07. Em termos idênticos, cfr. o Acórdão do STA, I, de 22 de Junho de 2010 (proc. 0279/10), onde se admitiu haver responsabilidade por culpa in vigilando da EP - Estradas de Portugal S.A. pela queda de um pinheiro na faixa de rodagem e destruição de um veículo, por a empresa não ter demonstrado que agira com a diligência devida na detecção da fragilidade da árvore, e isto apesar de esta ter tombado na sequência de uma forte intempérie. Ao contrário, em Acórdão de 11 de Março de 2010 (proc. 070/10), o mesmo STA eximiu de responsabilidade in vigilando um município que, apesar de não ter conseguido fazer prova nos autos de ter agido com a diligência exigível num caso de fiscalização do estado de algumas árvores da via pública, viu acolhida a tese da causalidade alternativa, por ter ficado provado que a árvore centenária que caiu sobre uma mulher e a deixou severamente incapacitada teria tombado de qualquer modo, dadas as condições atmosféricas anormalmente adversas que se fizeram sentir na noite da véspera da queda - ver também, na mesma linha, o Acórdão do STA, de 9 de Julho de 2009 (proc. 01103/08).

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rem danos causalmente filiáveis na solução adoptada, a via de imputação mais adequada será a da compensação por facto lícito, uma vez que, não havendo défice de ponderação de circunstâncias relevantes (uma vez que as teorias que suportavam as várias opções técnicas possíveis eram identicamente credíveis), afastamo-nos no domínio da responsabilidade por facto ilícito - e, como observámos supra, não nos parece que estejamos no contexto da responsabilidade in vigilando. A compensação por facto lícito está, como se sabe, limitada pelos pressupostos do artigo 16º da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro - o que torna esta via bastante aleatória. A resposta dos poderes públicos envolve, na realidade, problemas bem mais agudos em cenários de morfologia do território altamente mutante, que dificilmente serão enquadráveis nos parâmetros da responsabilidade civil. É verdade, por um lado, que o TJUE já se pronunciou no sentido de sobre o Estado-membro recair uma verdadeira obrigação de aprovação de plano (de emergência; de redução de emissões poluentes) sempre que a sua omissão provocar um risco iminente para a saúde das pessoas34; todavia, a discricionariedade de planeamento de que gozam os poderes públicos - palpável na bastante flexível solução de declaração de ilegalidade por omissão de norma, prevista no artigo 77º do CPTA - deixa dúvidas quanto à operacionalidade desta via. Por outro lado, a « normalização » da instabilidade climática e dos fenómenos extremos que acarreta pode gerar, da parte dos tribunais, decisões de repartição do risco entre entidades públicas e particulares - recorde-se a decisão do Conselho de Estado francês, de 2 de Outubro de 2002, sobre responsabilidade do Estado por emissão de licença de construção em zona ainda sem plano de cheias e danos no imóvel edificado na sequência de inundações, na qual o Tribunal considerou terem os titulares da licença contribuído para os danos, por haver consciência de que a zona era, de há muito, vulnerável a alagamentos em determinadas alturas do ano e em certos contextos atmosféricos35.

32) Sentença do TAF do Porto, de 24 de Novembro de 2008, proc. 194/96.

34) Cfr. o acórdão do TJUE de 25 de Julho de 2008 (proc. C-237/07) - no qual o TJUE afirmou que, nos termos da directiva 96/62/CE do Conselho, de 27 de Setembro, relativa à avaliação e gestão da qualidade do ar ambiente, o Estado-membro tem o dever de elaborar planos de redução de emissões em zonas em que estas ultrapassem os valores-limite e que o cidadão residente tem o direito de exigir da Administração a aprovação e implementação destes planos, valendo-se do efeito directo vertical dessas normas -, e o Acórdão de 15 de Setembro de 2011 (proc. C-53/10) - onde a Corte do Luxemburgo vincou a obrigatoriedade de ponderação de aspectos de risco no exercício da competência de licenciamento urbanístico, mesmo na ausência de diploma nacional de transposição da directiva Seveso II, e o direito dos particulares a exigir da Administração tal ponderação).

33) Várias situações reais foram apresentadas na reportagem Alerta vermelho, da autoria de José Manuel Levy, visionada na RTP1, no dia 9 de Março de 2014.

35) Cfr. a anotação ao aresto de Clotilde DEFFIGIER, La responsabilité du fait de la délivrance du permis de construire en zone inondable, in AJDA, 2003/3, pp.143-147.

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Acrescem à dificuldade de enquadrar situações de alegada omissão de medidas de prevenção contra fenómenos climáticos extremos através do instituto da responsabilidade civil, de uma banda, a incerteza que rodeia as circunstâncias de facto e a sua dinâmica - que torna complexa a tarefa de caracterização da ilicitude para efeitos de responsabilização por facto ilícito (cfr. o artigo 7º do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro); e, de outra banda, a massificação dos danos, que agudiza a tarefa de qualificação dos prejuízos como « especiais e anormais », para os efeitos de compensação por facto lícito nos termos do artigo 16º do regime aprovado pela Lei 67/2007, de 31 de Dezembro36. De todo o modo, cremos que a magnitude da tarefa de prevenção de danos às pessoas e património na faixa litoral em face da inclemência climática crescente leva a conceber um de dois cenários - se não mesmo um só (o segundo) no médio prazo: a) A construção de grandes diques de contenção em certas zonas da costa, com todo o impacto visual e eventualmente ambiental que acarreta37; ou b) A deslocalização dos residentes nas zonas de maior risco38, bem como o resgate de concessões de exploração de bares e restaurantes em praias sugadas pelo mar. Deve sublinhar-se que, neste segundo cenário, haverá factores de ponderação a ter em conta, como o título de ocupação, o tempo de ocupação, a tolerância ou intolerância das autoridades para com as situações - ou seja, cumprirá distinguir-se entre residentes com título válido ou clandestinos, qualificação que fará variar a resposta indemnizatória/compensatória39, bem como, quanto

às concessões, imperativo se revelará aferir o tempo de duração da concessão e ponderar do índice da sua rentabilização para efeito de cálculo da compensação financeira a atribuir ao concessionário40. Qualquer uma destas vias envolve financiamento avultado - além de uma cuidadosa gestão das sensibilidades sociais. A União Europeia, na Comunicação da Comissão ao Parlamento Europeu, ao Conselho, ao Comité Económico e Social europeu e ao Comité das Regiões sobre a Estratégia da UE para a adaptação às alterações climáticas41, recomenda a disponibilização dos Fundos do Programa LIFE42 para apoiar as medidas de adaptação às alterações climáticas no período 2013/2020 (cfr. o ponto 4.1., Acção 2)43. O documento frisa mesmo que “Um acesso melhorado ao financiamento será um fator básico para a construção de uma Europa climaticamente resiliente”, que se traduz desde logo

36) Sobre este regime, veja-se Carla AMADO GOMES, A compensação administrativa pelo sacrifício: reflexões breves e notas de jurisprudência, in Estudos em homenagem ao Prof. Doutor Jorge Miranda, IV, Lisboa, 2012, pp. 151 segs.

41) COM (2013) 216 final, de 16 de Abril de 2013.

37) Reportando-se à situação no Reino Unido, Mark STALLWORTHY (Sustainability, coastal erosion and climate change: an environmental justice analysis, in JEL, 2006/3, pp. 357 segs, 359 segs) assinala os custos, financeiros e ambientais das grandes estruturas de defesa, contrapondo-os aos custos sociais do deslocamento de poopulações. 38) Sendo certo que podemos estar desde logo a pensar em edificações situadas em área anteriormente integrante de domínio privado e que, por força do avanço do mar (e do concomitante recuo da linha de preia mar), passou a integrar domínio público marítimo - reclamando compensação por facto lícito ao proprietário a expropriar. Para uma análise de uma situação deste tipo, veja-se o Parecer do Conselho Consultivo da PGR P000102006 (nº convencional PGRP00002742), de 17 de Janeiro de 2008 - disponível em http://www.dgsi.pt/pgrp.nsf/0/90edf6fa5047cc51802570ff00603e19?OpenDocument. 39) Veja-se, por exemplo, o Acórdão do STA, de 18 de Março de 2003 (proc. 01219/02), no qual se apreciou a legalidade da demolição de uma casa clandestina em zona protegida, negando o direito do dono a ser indemnizado em razão da situação ilícita em que se encontrava ; ou o Direitos Humanos e Meio Ambiente

Acórdão do TCA-Sul, de 7 de Abril de 2011, proc. 02749/07, no qual o Tribunal recusou procedência a um recurso no qual os recorrentes pretendiam ser indemnizados pelo Estado em razão da paralisação de uma obra em área urbana em faixa de risco litoral por ordem da CCDR, caracterizando a ilicitude da actividade edificatória porque filiada em uma licença nula. 40) Esta segunda situação levanta questões complexas, na medida em que a resolução do contrato deve-se não a imperativos subjectivos de interesse público, mas a alteração das circunstâncias fácticas que constituem base do negócio - sendo certo que relativamente a concessões mais recentes, será difícil falar em imprevisibilidade das circunstâncias geradoras da alteração… Ou seja, no plano do Código dos Contratos Públicos, a resolução pela primeira via tem a solução indemnizatória prevista no artigo 334º; já a resolução pela segunda via, parece deixar o concessionário totalmente desprotegido, nos termos do artigo 335º/1 (embora em caso de modificação, o artigo 314º/2 do mesmo Código aceite a atribuição de “uma compensação financeira segundo critérios de equidade”). 42) O programa LIFE para o período 2014-2020 foi adoptado pelo Regulamento (UE) 1293/2013, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Dezembro (sobre o estabelecimento de um programa de acção para o ambiente e para o clima, revogando o regulamento (CE) 614/2007. Este regulamento disponibiliza um orçamento para o período 2014-2020, de 3.4 biliões de euros (cfr., em especial, os artigos 15 e 16) — disponível em http://ec.europa.eu/environment/life/funding/lifeplus.htm 43) “Ação 2: Disponibilizar fundos do LIFE em apoio à criação de capacidades e intensificar as medidas de adaptação na Europa (2013-2020): A Comissão promoverá a adaptação, em especial nos seguintes domínios vulneráveis: - gestão transfronteiriça de cheias, promovendo acordos de colaboração com base na Diretiva Inundações; - gestão transfronteiriça do litoral, com ênfase nos deltas densamente povoados e nas cidades costeiras (…); A Comissão apoiará o estabelecimento de avaliações da vulnerabilidade e de estratégias de adaptação, incluindo as de natureza transfronteiriça. A Comissão promoverá a sensibilização para a adaptação, incluindo indicadores e comunicação e gestão de riscos”. Obra dedicada ao Instituto Terra

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num aumento de 20% da despesa relacionada com o clima no Quadro de Financiamento plurianual 2014/2020 (ponto 5.2.). Estes fundos serão decisivos para apoiar medidas de prevenção sustentada dos riscos de erosão e inundação na orla costeira portuguesa. Neste momento, em Portugal, estão a ser implementadas medidas de emergência, de eficácia e oportunidade altamente duvidosa (porquê invocar a preparação da época balnear em Fevereiro/Março como justificativo de injecção de areias nas praias, mais a mais quando a época de tempestades parece ainda não estar fechada?), financiadas pelo Programa Operacional “Valorização do Território”, programa ao abrigo do objectivo de convergência, financiado pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) e pelo Fundo de Coesão. Sublinhe-se que um dos objectivos estratégicos deste programa é a prevenção, gestão e monitorização dos riscos naturais e tecnológicos, aí residindo o seu terceiro eixo prioritário ao qual estão afectos cerca de 11,5% do financiamento total44. O financiamento da União Europeia será certamente decisivo para a boa implementação de medidas de adaptação às alterações climáticas no plano costeiro. O recurso a um fundo de assistência foi, de resto, a fórmula encontrada no contexto de Quioto, com a criação do Green Climate Fund (aprovado em Copenhaga, na COP de 2009, e efectivamente criado na COP de 2010, realizada em Cancun) para apoiar acções de adaptação e mitigação em Estados menos desenvolvidos - sendo certo que este Fundo (que implica uma recolha de 100 biliões de dólares por ano até 2020, de duvidosa proveniência) assenta no princípio das responsabilidades comuns mas diferenciadas (cfr. o princípio 7 da Declaração do Rio de Janeiro), numa dimensão mais política do que a da solidariedade europeia. No entanto, o sucesso da actuação dos Estadosmembros passa por utilizar os recursos financeiros de forma sustentável e integrada, com base na melhor informação científica disponível e por recurso às melhores técnicas, numa lógica custo imediato + benefício de longa duração o que, em tempos de incerteza climática, se reconhece tarefa árdua. Faro, Março de 2014

44) Conforme pode ler-se no documento referenciado, « O objectivo específico é o aumento da capacidade do sistema nacional de protecção civil a fim de cobrir todo o território e o desenvolvimento de um sistema nacional de prevenção, gestão e monitorização de riscos naturais e tecnológicos. Para este fim, serão construídos dois sistemas, o sistema nacional de gestão de emergência e o sistema de prevenção dos riscos, e realizadas intervenções de combate à erosão e de defesa costeira, bem como de reabilitação de locais contaminados (solos, minas, etc.) ». Direitos Humanos e Meio Ambiente

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais: O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional? Orlindo Francisco Borges1** Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: Introdução. 1 Princípio da Soberania Sobre os Recursos

Naturais e a Responsabilidade de não Causar Danos ao Ambiente de

Outros Estados e Áreas Fora de sua Jurisdição. 2 Princípio da Prevenção e o Precautionary Approach no Direito Internacional Ambiental. 3

Notas Sobre a Experiência Colombiana (Tij, Equador X Colômbia) –

Responsabilidade Internacional por Danos ao Meio Ambiente e à Saúde Pela Pulverização Aérea de Herbicidas (Glifosato).

4 Ainda Sobre a

Colômbia: Abertura para o Reconhecimento de Crimes Internacionais por

Violações ao Direito Humanitário. 5 Para Além da Prevenção: O Dever de

Reparação e a Abertura para o Surgimento de Demandas Internacionais

1) ** Advogado, sócio da Lube, Diogo, Borges & Oliveira Sociedade de Advogados, e Professor de Direito Ambiental; Mestre e Doutorando em Ciências Jurídico-Ambientais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL); Especialista em Direito Internacional e Comunitário do Ambiente pela FDUL e em Direito Ambiental e Urbanístico pela Faculdade de Direito de Vitória (FDV); Aperfeiçoamento em Direito do Petróleo e Gás Natural pela SINERGIAS (RJ/ES); Membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB/ES; Pesquisador convidado (gäste) do Abteilung fur ausländisches und internationales Strafrecht da Georg-August-Universität Göttingen (Alemanha) e visiting scholar da Human Rights Consortium, da School of Advanced Study - University of London (Inglaterra). Membro do Grupo de Pesquisa (CNPq) Hermenêutica Jurídica e Jurisdição Constitucional (FDV). Contato: [email protected].

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais: O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional?

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Introdução

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A questão da regulação e o controle do uso de herbicidas é uma temática de fundamental relevância em matéria ambiental para o Brasil, haja vista a representatividade do agronegócio para a economia nacional e a demanda deste setor para o uso em larga escala destes defensivos, capazes de ocasionar sérios impactos à saúde e ao meio ambiente. Em recentíssimos casos no contencioso nacional envolvendo a matéria, vê-se a atuação do Ministério Público Federal (DF) no ajuizamento de duas ações civis públicas, objetivando: “(1) compelir a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) a reavaliar a toxidade de 8 (oito) ingredientes ativos publicados na Resolução ANVISA RDC nº 10/2008 (parationa metílica, lactofem, forato, carbofurano, abamectina, tiram, paraquate e glifosato), bem como determinar à União, por meio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que suspenda os registros de produtos que tenham tais substâncias como princípio ativo, até que seja realizada a reavaliação, pela ANVISA, sobre a toxicidade daqueles ingredientes ativos, em razão das próprias informações trazidas por aquela autarquia federal no sentido de que as referidas substâncias apresentam-se nocivas à saúde humana; e (2) determinar à União, por meio do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), que suspenda o registro dos agrotóxicos que contenham o herbicida 2,4-D em suas formulações, enquanto a ANVISA não divulgar os resultados conclusivos acerca da reavaliação toxicológica do 2,4-D e que, por meio da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio), a União seja proibida de liberar a comercialização de sementes transgênicas tolerantes ao 2,4-D enquanto, mais uma vez, a ANVISA não finalizar a reavaliação toxicológica do referido princípio ativo”2. Trata-se, portanto, de duas ações voltadas a uma mesma finalidade: suspender a comercialização de herbicidas que tenham como princípio ativo substâncias que necessitam de uma reavaliação de sua toxicidade, segundo informações do próprio órgão regulador nacional (ANVISA) acerca de sua nocividade à saúde humana. Paralelamente a isso, pugnou-se pela proibição da comercialização de sementes transgênicas de milho e soja tolerantes a um desses princípios ativos3, 2) A íntegra das iniciais disponível em: . Acesso em: 27 mar. 2014. 3) Tendo em vista que o CTNBio liberou a comercialização de sementes de soja e milho geDireitos Humanos e Meio Ambiente

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haja vista que a liberação comercial de organismos geneticamente modificados (OGMs) resistentes a estes agrotóxicos funcionaria como fator multiplicador da comercialização de substâncias perigosas no Brasil, colocando virtualmente em risco os direitos fundamentais da população, nomeadamente, à saúde, à alimentação adequada, à biodiversidade dos biomas nacionais e ao meio ambiente equilibrado e saudável (arts. 6º, 194, 196 e 225 da Constituição da República). Logo, vê-se nesse litígio um sério conflito entre o dever de prevenção e os interesses econômicos nacionais, uma vez que, dentre as substâncias listadas, incluem-se dois dos principais herbicidas utilizados no país: o glifosato (v.g Round Up) e o 2,4-D (v.g Tordon), tidos como principais responsáveis pelos altos índices da agricultura no país, em especial, nas exportações de milho e soja. A despeito dos altos rendimentos que o agronegócio obteve, verifica-se na literatura científica que estes mesmos agentes são reconhecidos como sendo os principais causadores de envenenamento no campo4: “A exposição a pesticidas tem sido fonte de muitos problemas de saúde, agudos e crônicos, na população rural, principalmente nos países em desenvolvimento. Para se ter uma idéia dos efeitos sobre o homem, foi realizada uma caracterização dos envenenamentos por exposição aguda a pesticidas agrícolas utilizados no estado de Mato Grosso do Sul, entre 1992 e 2002, verificando-se um total de 1.355 casos involuntários (acidental ou profissional). A maioria destes ocorreu com homens em idade variando de 15 a 49 anos (55,1%), sendo que 13% do total de envenenamentos levaram ao óbito. Deste montante, 14,6% (41 indivíduos) sofreram envenenamento pela exposição à combinação dos herbicidas 2,4 D + picloran (ex. de nome comercial Dontor, Tordon, dentre outros). O glyphosate (ex. de nome comercial Glifos, Roundup, dentre outros), o segundo mais freqüente herbicida envolvido no envenenamento [...]” Inegável, portanto, a relevância desta temática para o Direito Ambiental brasileiro, sobretudo, no que diz respeito à aplicação do princípio da prevenção para a proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado e para a sadia qualidade de vida da população, além de trazer a possibilidade de avanços jurisprudenciais na questão da regulamentação da comercialização de OGM’s no pais. Todavia, essa questão não diz respeito somente ao Brasil, havendo ao fundo destas discussões, importantes elementos do Direito internacional neticamente modificadas, resistentes a substâncias como o 2,4-D, o glifosato, o glufosinato de amônio DAS-68416-4, o glufosinato de amônio DAS-44406-6 e outros herbicidas. 4) MARCONDES DE MOURA, Mônica Accaui. Impacto de herbicidas em recursos hídricos. In: Revista Tecnologia & Inovação Agropecuária. Jun/08. Disponível em: , p.144. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Ambiental, muitas vezes esquecidos quando da análise de temas como este. Em especial, as discussões que decorrem da relação transnacional envolvendo tais impactos (princípio da ubiquidade) e a jurisprudência do contencioso internacional aplicável a tais situações. Por conta disso, em vez de enfrentarmos os pontos comuns da doutrina acerca da matéria, tais como a relação entre meio ambiente e saúde como direitos fundamentais e a exigibilidade de análise toxicológica prévia para a comercialização de produtos supostamente perigosos em atendimento ao princípio da prevenção/precaução, etc..., já abordados na inicial das aludidas demandas, propomos uma discussão desfocada destas questões, ligada diretamente ao contencioso internacional ambiental em situação equivalente a essa, como é o caso da Pulverização Aérea de Herbicidas (glifosato) pela Colômbia, submetido ao TIJ e os seus efeitos para o Brasil que, nessa oportunidade, vem discutindo o uso e comercialização desta mesma substância em território nacional. Tendo em vista que os danos ambientais não respeitam fronteiras; a facilidade de dispersão de substâncias que carecem de regulação/exames de toxicidade para outros Estados; o fato dos principais produtores nacionais de soja e milho estarem situados em zona de fronteira; e a existência de casos no contencioso internacional ambiental envolvendo a contaminação por glifosato no Tribunal Internacional de Justiça, o presente estudo se propõe a analisar a situação brasileira frente aos princípios da prevenção e da proibição de causar danos a zonas fora de sua jurisdição, a partir da jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça.

1) Princípio da soberania sobre os recursos naturais e

a responsabilidade de não causar danos ao ambiente de outros estados e áreas fora de sua jurisdição

O princípio da soberania estatal sobre os recursos naturais e a responsabilidade de não causar danos ao ambiente de outros Estados e áreas fora de sua jurisdição forma, junto com o princípio do poluidor-pagador, a base da responsabilização internacional por atos lesivos ao ambiente natural. O conteúdo normativo deste princípio decorre da própria lógica na qual se desenvolve o Direito Internacional do Ambiente, que é a busca do ponto de equilíbrio entre dois objetivos fundamentais que apontam para direções opostas: de um lado a soberania dos Estados na exploração dos recursos naturais Direitos Humanos e Meio Ambiente

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sitos em seu território; e do outro, o dever de não causar danos ao ambiente. O princípio 21 da Declaração de Estocolmo5 buscou abalizar esses interesses com o seguinte dispositivo: “Em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de direito internacional, os Estados têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos em aplicação de sua própria política ambiental e a obrigação de assegurar-se de que as atividades que se levem a cabo, dentro de sua jurisdição, ou sob seu controle, não prejudiquem o meio ambiente de outros Estados ou de zonas situadas fora de toda jurisdição nacional”. Esse princípio veio adotar em 1972 o teor de um costume internacional já reconhecido em sede jurisprudencial desde a década de 1940, como pôde ser observado no célebre caso Trail Smelter, onde litigaram em um painel arbitral os EUA e o Canadá acerca da responsabilização por danos transfronteiriços causados pela poluição atmosférica proveniente da fundição Trail, situada na fronteira entre os países. Nesse leading case do Direito Internacional do Ambiente, foi reconhecida a responsabilização de um Estado pela comprovação do uso abusivo de instalações citas em seu território que tenham causado prejuízos a um terceiro Estado (poluição com efeitos graves à sua população) 6. Em 1992 a Declaração do Rio de Janeiro (ECO92), por meio de seu princípio nº 2, veio acrescentar o termo “políticas de desenvolvimento” ao princípio 21 da Declaração de Estocolmo, invertendo a lógica ecocêntrica presente no primeiro instrumento declaratório para a colocação do homem no centro da problemática ambiental: “Os Estados, de acordo com a Carta das Nações Unidas e com os princípios do direito internacional, têm o direito soberano de explorar seus próprios recursos segundo suas próprias políticas de meio ambiente e de desenvolvimento, e a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou seu controle não causem danos ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional 7”. Destes dois instrumentos, portanto, se extrai esse binômio: soberania estatal sobre os recursos naturais sitos em territórios sob sua jurisdição/responsabilidade de não causar danos ao ambiente de outros Estados ou áre5) ONU, Declaração de Estocolmo de 1972. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2013. 6) AMADO GOMES, Carla. Apontamentos sobre a protecção do ambiente na jurisprudência internacional. In: _____; Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente, Lisboa: AAFDL, 2008, pp. 367 et ss., p. 376/378. 7) ONU, Declaração do Rio de Janeiro de 1992. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2013. Obra dedicada ao Instituto Terra

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as fora de sua jurisdição. A sua aplicação foi inexoravelmente reconhecida enquanto um princípio de Direito Internacional do Ambiente pelo TIJ no caso dos Ensaios Nucleares em 1996 8. Com base na primeira parte do princípio, cada Estado será soberano para explorar os seus recursos naturais, conforme as suas políticas internas de proteção ambiental e desenvolvimento. Essa exploração, todavia, não poderá redundar em danos ambientais para além de suas fronteiras. Sem embargo, conforme explica LOUREIRO BASTOS 9 de forma mais minuciosa, a primeira parte deste princípio acaba por representar uma série de direitos e deveres aos Estados, podendo se reconhecer, enquanto direitos: (a) o direito de dispor livremente de seus recursos naturais (leia-se, aqueles sitos no território sob sua jurisdição); (b) o direito de explorar livremente os seus recursos naturais; (c) o direito de recuperar o efetivo controle sobre os seus recursos e ser compensado por eventuais danos provocados aos mesmos; (d) o direito de se utilizar destes recursos em prol do desenvolvimento nacional; (e) o direito de gerir estes recursos em conformidade com a suas diretrizes ambientais; (f ) no caso de recursos naturais transfronteiriços, o direito à uma partilha eqüitativa de seus benefícios; (g) o direito de regular o investimento estrangeiro para a exploração destes recursos; (h) o direito de expropriar ou nacionalizar o investimento estrangeiro conforme o interesse nacional; (i) o direito de resolver sob sua jurisdição as disputas que digam respeito ao uso/exploração destes re8) “Also cited were Principle 21 of the Stockholm Declaration of 1972 and Principle 2 of the Rio Declaration of 1992 which express the common conviction of the States concerned that they have a duty “to ensure that activities within their jurisdiction or control do not cause damage to the environment of other States or of areas beyond the limits of national jurisdiction”. These instruments and other provisions relating to the protection and safeguarding of the environment were said to apply at all times, in war as well as in peace, and it was contended that they would be violated by the use of nuclear weapons whose consequences would be widespread and would have transboundary effects […]The Court recognizes that the environment is under daily threat and that the use of nuclear weapons could constitute a catastrophe for the environment. The Court also recognizes that the environment is not an abstraction but represents the living space, the quality of life and the very health of human beings, including generations unborn. The existence of the general obligation of States to ensure that activities within their jurisdiction and control respect the environment of other States or of areas beyond national control is now part of the corpus of international law relating to the environment”. In: TIJ, Advisory opinion on the legality of the threat or use of nuclear weapons, 8. jul. 1996. Disponível em: . Acesso em: 24 fev. 2013, pp. 19/20. 9) LOUREIRO BASTOS, Fernando. A Southern African Approach to the Permanent Sovereignty over Natural Resources and Common Resource Management Systems. In: International Conference on Permanent Sovereignty over Natural Resources: Development of a Public International Law Principle and Its Limits, 30 jan./01 fev. 2013, Universität Siegen. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2013, p. 4. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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cursos. Já no que tange aos deveres, cabe aos Estados: (a) exercer a sua soberania em prol do desenvolvimento nacional e bem estar de sua população; (b) respeitar o direito e interesses das comunidades indígenas; (c) cooperar com o desenvolvimento internacional; (d) zelar pela conservação e uso racional destes recursos; (e) a partilha eqüitativa no uso dos recursos transfronteiriços; (f ) respeitar o Direito Internacional e tratar o investidor estrangeiro com justiça e razoabilidade; (g) respeitar as obrigações decorrentes do seu direito de expropriar ou nacionalizar o investimento estrangeiro. Para além dos efeitos internos que esta soberania transmite, a segunda parte do princípio, estabelece os freios desse direito de auto-exploração. Freios estes, que se fundamentam no princípio geral de boa vizinhança (art. 74 da Carta do ONU), pelo qual os Estados têm a obrigação de não permitir o uso de seu território para a violação do direito de outros Estados10. Nico SCHRIJVER11, explica que ao longo dos anos este princípio sofreu forte influência dos Direitos Humanos, do Direito Internacional Privado, no que tange à regulação dos investimentos estrangeiros e do Direito do Mar. Todavia, com o desenvolvimento do Direito Internacional do Ambiente, sobretudo, com as idéias de desenvolvimento sustentável e equidade intergeracional, este princípio seguiu novos rumos, no sentido de que a soberania dos Estados não se presta mais para o livre gozo dos recursos sitos em seu território. Nesse caso, ele também se apresenta como fonte de responsabilidades e obrigações em nível internacional, bem como no desenvolvimento de outras questões como as noções de uso partilhado de recursos transfronteiriços e de patrimônio e interesses comuns da humanidade. Diante do conhecimento geral de que os danos ambientais não respeitam fronteiras, a segunda parte deste princípio ganha relevo, não só por estabelecer um dever de cuidado para com os vizinhos, de modo a impulsionar políticas domésticas de gestão e controle de riscos ambientais, mas por reconhecer a possibilidade de responsabilização de um Estado por uma falha neste dever de cuidado.

10) SANDS, Philippe; PEEL, Jacqueline; FABRA, Adriana; MACKENZIE, Ruth. Principles of International Environmental Law, 3ª ed., Cambridge: Cambridge Press, 2012, p. 197. 11) SCHRIJVER, Nico J. Permanent Sovereignty over Natural Resources. In: Max Planck Encyclopedia on Public International Law, 2010. Disponível em: . Acesso em: 8 mar. 2013, § 24. Obra dedicada ao Instituto Terra

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2) Princípio da prevenção e o precautionary approach no Direito Internacional Ambiental

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O princípio da prevenção está intimamente relacionado com o princípio da soberania estatal sobre os recursos naturais, uma vez que esta soberania deverá se pautar de acordo com uma política de prevenção de danos ambientais, justamente a se evitar a ocorrência de danos transfronteiriços capazes de ensejar uma responsabilização internacional. A adoção destas políticas em sede interna (prevenção) e internacional (prevenção e cooperação) tem por objetivo reduzir, limitar e/ou controlar atividades potencialmente poluidoras. Nessa linha de raciocínio, o princípio da prevenção, junto com o precautionary approach (precaução), podem ser reconhecidos como os sustentáculos da política de gestão de risco nas modernas sociedades. O princípio da prevenção, no plano internacional, por exemplo, teve o seu reconhecimento tanto convencional quanto consuetudinário. Além disso, foi positivado no âmbito comunitário europeu e internamente em diversos países ao longo do globo, dentre os quais se insere o Brasil12. No plano convencional internacional, Fernando da Silva SUORDEM 13 elenca inúmeros instrumentos normativos preventivos, dos quais Carla AMADO GOMES 14 destaca alguns que tratam acerca da proibição de poluição transfronteiriça: a Convenção sobre Alto-Mar, assinada em Genebra em 1958 (art. 25/1); a Convenção de Montego Bay, de 1982 (art. 194/2), bem como as Convenções sobre a interdição de utilização de técnicas de modificação do ambiente com fins militares ou hostis, de 1977; a Convenção para a proteção da camada de ozônio, de 1985, e a Convenção sobre alterações climáticas, de 1992. Em todos estes instrumentos há a convocação dos Estados para a proteção de seus recursos naturais por meio da adoção de técnicas de prevenção de lesões irreversíveis e com consequências de nível global. 12) BORGES, Orlindo Francisco. Gestão de riscos no mar e a sua efetividade diante de danos ambientais anônimos envolvendo hidrocarbonetos: uma análise comparada dos sistemas brasileiro e português. Relatório apresentado ao mestrado científico em Ciência Jurídico -Ambientais da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa - FDUL (2010/2012) para a disciplina de Direito Constitucional e Administrativo do Ambiente “sem fronteiras”, ministrada pelo prof. Dr. Vasco Pereira da SILVA, 2011, p. 14. 13) SUORDEM, Fernando da Silva. O princípio da separação dos poderes e os novos movimentos sociais, Coimbra: Coimbra, 1995, pp. 241 et ss. 14) AMADO GOMES, Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente: em especial os actos autorizativos ambientais, Coimbra: Coimbra, 2000, p. 23. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Consuetudinariamente, tal princípio foi concebido por meio da sólida construção de jurisprudência do Tribunal Internacional de Justiça (TIJ), que entendeu pelo direito de intervenção do Estado costeiro em matéria ambiental nos limites de sua zona econômica, a fim de prevenir atuações lesivas ao ambiente marítimo que possam redundar em efeitos nocivos ao meio ambiente natural sito em seu território 15. O precautinary approach, por sua vez, fez a sua primeira aparição internacional na Segunda Conferência Ministerial do Mar do Norte, em 1987, sobre poluição marítima e depois ganhou ampla projeção, tendo sido destacado na Declaração da Conferência Governamental de Bergen sobre Desenvolvimento Sustentado (1990); no princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro; no art. 3º, da Convenção-Quadro sobre alterações climáticas da ONU; e no parágrafo 22.5, da Agenda 2116. Ambas as normas estão voltadas ao afastamento do perigo/risco para a segurança das gerações futuras. Nesse sentido, para uma separação entre ambos os institutos, a doutrina tem feito distinção entre “defesa contra um perigo” e “evitação de um perigo”, como adverte OSSEMBÜHL17: “A prevenção pressupõe a previsibilidade do perigo, enquanto a precaução visa antecipar o surgimento de um perigo, a fim de o evitar”. Enquanto na prevenção enfrentam-se perigos existentes, a precaução obriga a adoção de medidas que se antecipem ao perigo hipotético (risco) 18. A inteligência destas normas parte do fato de que as agressões ao meio ambiente são, em regra, de difícil ou impossível reparação, de maneira que se torna forçosa uma atuação pró-ativa e de segurança, voltada para se evitar que o dano ocorra, haja vista que, uma vez constatado, será quase impossível o seu retorno ao status quo ante. Contudo, é importante frisar que a idéia de precaução não tem por finalidade imobilizar as atividades humanas, não se trata de um “antes prevenir do que remediar a qualquer custo”, como adverte Cass R. SUNSTEIN

15) AMADO GOMES, Carla. Apontamentos sobre a jurisprudência ambiental internacional. In: _____; Elementos de apoio à disciplina de Direito Internacional do Ambiente... ob. cit., pp. 367 et ss. 16) AMADO GOMES, Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente… ob. cit., p.30. 17) OSSEMBÜHL, Fritz. Vorsorge als Rechtsprinzip im Gesundheits – Arbeits- und Umweltschutz, in Neue Zeitschrift für Verwaltung, Heft 3, 1986, p. 162 apud AMADO GOMES, Carla. A prevenção à prova no Direito do Ambiente… ob. cit., p. 34. 18) Idem, p. 34 Obra dedicada ao Instituto Terra

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, haja vista que a adoção de tal princípio para todas as suas possibilidades (todos os riscos imagináveis) resultaria em sua inoperatividade 20. Isso porque, segundo o autor, há uma tendência mundial em seguir a idéia da precaução. Isso se dá muitas vezes, de maneira impensada, cujos mecanismos cognitivos são identificados pela economia comportamental como sendo fruto da “aversão à perda”, do “mito da natureza benigna”, da “heurística da disponibilidade”, da “negligência da probabilidade”, bem como da “negligência do sistema” 21. Partindo dessas premissas, adverte-se que a utilização em larga escala dessa norma (em sua concepção forte) poderá resultar em inação, o que não é desejável por qualquer ordenamento jurídico. Essa abertura presente na norma precaução ((i) variabilidade de conteúdo; (ii) oscilação quanto a definição dos pressupostos de sua aplicação - pelas diferentes capacidades dos Estados na avaliação dos riscos; nos diferentes graus de gravidade exigidos do dano imediato; na necessidade de ponderação de interesses políticos, econômicos e ambientais) acaba por retirar-lhe a normatividade internacional 22, não lhe sendo reconhecida a natureza de princípio de Direito Internacional do Ambiente, apesar de sua ampla receptividade nacional e caráter programático no estabelecimento de políticas de gestão de riscos 23: Portanto, resgatando-se a essência da idéia de precaução (logicamente, den19

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19) SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. In: Interesse Público, n.37, São Paulo: Notadez, mai.-jun., pp. 119/173, 2006, p. 168. 20) No mesmo sentido, Vasco Pereira da SILVA, ao defender inadequada a recondução da idéia de precaução enquanto um princípio in dúbio pro natura, por representar uma carga excessivamente inibidora, uma vez que o “risco zero” em matéria ambiental é inexistente. Cfr. SILVA, Vasco Pereira da. Como a Constituição é verde: os princípios fundamentais da Constituição Portuguesa do Ambiente, Lisboa: AAFDL, 2001, p. 19; SILVA, Vasco Pereira da. Verde cor de Direito: Lições de Direito do Ambiente, Coimbra: Almedina, 2003, pp. 69/70. 21) Sobre o assunto, veja-se SUNSTEIN, Cass R. Para além do princípio da precaução. In: Interesse Público... ob. cit., pp. 119/172. 22) Nesse sentido, por todos, Carla AMADO GOMES: “A diferente formulação da equação de precaução condena a ambição de assunção do estatuto de princípio (de Direito Internacional), na medida em que não se consegue impor com um significado unívoco. Ora, por mais vago que um princípio, por definição, seja, tem que reunir um núcleo mínimo de elementos que veiculem a sua aplicação homogénea a um conjunto similar de situações; deve, “numa perspectiva material, prescrever um comportamento determinado aos destinatários”; enfim, tem que ser normativo. A deriva formulativa da noção de precaução leva a que se entreveja nesta um “simples objectivo programático, que indica uma direcção mas não fixa uma regra”. In: AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente, Lisboa: AAFDL, 2006, p. 183. 23) AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente... ob. cit., pp. 181/183. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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tro de sua perspectiva realista), qual seja a necessidade da imediata implementação de medidas de prevenção na potencialidade de graves danos ambientais ou à saúde humana, a palavra de ordem no sistema de Direito Ambiental condiz com esse adágio, “não postergar”. Daí, a necessidade de uma interpretação correta deste dispositivo, sob pena de desvirtuar toda a atuação da tutela ambiental nas atuais sociedades do risco. Em razão disso, acredita-se não ser necessário o tratamento destes “princípios” de maneira autônoma. Isso porque, ambos os entendimentos convergem para um significado comum que é o de se evitar perigos ao ambiente, não importando para este fim se tais perigos sejam imediatos ou mediatos. Nesse sentido, concorda-se com as observações de Vasco Pereira da SILVA 24, em que, melhor do que uma separação entre os institutos como princípios distintos e autônomos é a construção de uma noção ampla de prevenção - ou uma prevenção alargada 25. O princípio da prevenção, portanto, exige a adoção de instrumentos preventivos voltados ao controle e gestão de riscos ambientais, no sentido de zelar pela não ocorrência de danos ambientais com efeitos para além de sua jurisdição. Embora o art. 2º da ECO92 não estabeleça quais as due diligences que os Estados devam tomar, é amplamente reconhecida a necessidade de adoção dos instrumentos previstos nos artigos 17, 18 e 19 da ECO92, ou seja, a necessidade de adoção de estudos de avaliação prévia de impactos ambientais (AIA) das atividades potencialmente poluidoras desenvolvidas em seu território e a cooperação internacional, no sentido de notificar e apresentar informações relevantes aos Estados vizinhos acerca de potenciais emergências naturais e outros efeitos adversos que possam sofrer por atividades desenvolvidas em seu território 26. 24) SILVA, Vasco Pereira da. Como a Constituição é verde... ob. cit., pp. 17/19. 25) Também nesse sentido, Carla AMADO GOMES: “A atitude preventiva — que está sempre subjacente à ideia de precaução —, fundamental num domínio em que os danos têm, muitas vezes, carácter irreversível, não deixa de imperar, contudo, por força do já consagrado princípio da prevenção”. In: AMADO GOMES, Carla. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente... ob. cit., pp. 184; SADELEER, Nicolas de. The principles of prevention and precaution in international law: two heads of the same coin? In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG, David M.; MERKOURIS, Panos (eds.), Research Handbook on International Environmental Law, Northampton: Edward Elgar, pp. 182 et ss., 2010, pp. 182/197. 26) ELIAS, Olufemi. Environmental impact assessment. In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG, David M.; MERKOURIS, Panos (eds.), Research Handbook on International Environmental Law, Northampton: Edward Elgar, pp. 227 et ss., 2010, pp. 227/228. Nesse sentido, o autor: “[i]t would be hard for a State to argue that it had acted in due diligence if it had not even studied what the impacts of the proposed project on another state’s environment would be. Hence, should significant harm occur to the affected state, the source state has breached the no-harm principle”. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Outras obrigações podem decorrer de instrumentos internacionais setoriais ratificados27, incluindo a previsão de sanções pela não adoção das medidas estabelecidas, dando ao princípio da prevenção um extenso corpus 28. Em se tratando de situações em que haja um conflito armado, nacional ou internacional, o princípio da prevenção é reconhecido pela norma nº 44 de direito costumeiro identificada pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha (CICV) em seu estudo sobre os costumes reconhecidos no Direito Humanitário Internacional 29: “Norma 44. Os métodos e meios de guerra devem ser utilizados tendo devidamente em conta a necessidade de proteger e preservar o meio ambiente natural. Na condução das operações militares, terão de ser tomadas todas as precauções exequíveis para não causar danos acidentais ao meio ambiente ou reduzi-los, pelo menos, tanto quanto possível. A falta de certeza científica dos efeitos de certas operações militares sobre o meio ambiente não isenta as partes num conflito de tomar tais precauções”. Esse entendimento decorre da jurisprudência do TIJ nos casos GabčíkovoNagymaros e Ensaios Nucleares, quando reconheceram a prevenção como elemento essencial a ser observado para a proteção do ambiente, tanto em tempos de paz como em conflitos armados. Ele também encontra fundamento na prática interna dos países e nas orientações presentes em seus manuais militares, com o escopo de demonstrar que o dever de proteção do ambiente não é rela27) Inter alia: “the marine environment (for instance, UNCLOS, 1982: Articles 194(1)(2), 195, 192, 196, 204, 207, 208, 209, 210, 211, 212), the management of high seas fisheries (for instance, Article 5 of the 1995 UN Fish Stocks Agreement), the protection of rivers (for instance, Article 21 of the 1997 New York Convention on the Law Relating to the Use of International Watercourses for Purposes other than Navigation), climate (for instance, UNFCCC, 1992: Articlle 3(3)), the ozone layer (for instance, Article 2(2)(b) of the 1985 Vienna Convention for the Protection of the Ozone Layer), waste management (for instance, Article 4(2)(c) of the 1989 Basel Convention on the control of the Transboundary Movements of Hazardous Wastes and their Disposal), biodiversity (for instance, Article 14 of the 1992 CBD), vulnerable ecosystems such as the Antarctic and the Alps (for instance, Article 3(2) of the 1991 Madrid protocol on the Environmental Protection to the Antarctic Treaty, Article 2 of the Salzburg Convention on the Protection of the Alps), transboundary environmental risk assessment (for instance, the 1991 Espoo Convention on Environmental Impact Assessment in a Transboundary Context; Article 3(1) of the 1992 Helsinki Convention on the Transboundary Effects of Industrial Accidents)”. SANDS, Philippe; et al. Principles of International Environmental Law… ob. cit., pp. 201/202. 28) SADELEER, Nicolas de. The principles of prevention and precaution in international law: two heads of the same coin? In: FITZMAURICE, Malgosia; ONG, David M.; MERKOURIS, Panos (eds.), Research Handbook on International Environmental Law... ob. cit., p. 183. 29) HENCKAERTS, Jean-Marie. Estudo sobre o Direito Internacional Humanitário Consuetudinário: uma contribuição para a compreensão e respeito do direito dos conflitos armados. Disponível em: . Acesso em: 13 fev. 2013, p. 21. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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tivizado dentro de um contexto de conflito armado. Em não se tratando de um alvo militar, ele deverá ser protegido e medidas deverão ser tomadas com vistas a prevenir a ocorrência de danos colaterais e acidentais com graves efeitos ao ambiente advindos de operações militares 30. Logo, independentemente de se tratar de tempos de paz ou conflitos armados, há a obrigação do Estado na adoção de medidas preventivas a se evitar a ocorrência de danos ambientais. A sua ausência ou a adoção de medidas deficitárias (em desconformidade com os procedimentos instituídos) poderão redundar em responsabilização internacional, podendo o gestor público encarregado desse munus, vir figurar como responsável solidário do particular que realizou um evento de significativo impacto ambiental.

3) Notas sobre a experiência colombiana (TIJ, Equador x Colômbia) – Responsabilidade internacional por danos ao meio ambiente e à saúde pela

pulverização aérea de herbicidas (glifosato) A Colômbia detém hoje uma das maiores concentrações de plantio de folha de coca (Erythoxylum coca) e papoula (Papaver somniferum) do mundo, utilizados para a produção de narcóticos, como a cocaína e o ópio. Em combate a essa realidade, o país adotou uma série de medidas. Dentre elas, a pulverização aérea de herbicidas sobre os plantios para a sua destruição 31. Um dos principais fundamentos para o uso dos herbicidas é o combate aos grupos guerrilheiros das Fuerzas Armadas Revolucionarias de Colombia (FARC) e do Ejercito de Liberación Nacional (ALN), que se utilizam do narcotráfico para o financiamento de suas atividades no conflito armado em que o país se encontra 32. 30) HENCKAERTS, Jean-Marie; DOSWALD-BECK, Louise. Customary International Humanitary Law: Rules, Vol. I, 4ª ed., Cambridge; ICRC; Cambridge Press, 2009, p. 149/161. 31) A Colômbia é o único país no mundo a se utilizar da técnica de pulverização aérea de herbicidas como estratégia de combate ao narcotráfico. Cfr. WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of fumigation in Colômbia, 2009, p. 10. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2013. 32) LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary Problems: University of Iowa College of Law, Vol. 19, pp. 491 et ss., 2010, pp. 491/493. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Nesse sentido, inclusive, a Corte Constitucional colombiana reconheceu que o país está envolvido em um conflito armado interno, sendo-lhes aplicável o disposto no PACG II, sem violação de sua soberania interna 33. Em 1984, o governo do país consultou um grupo de especialistas de seu Instituto Nacional de Saúde para a análise dos potenciais riscos que a pulverização de herbicidas poderia trazer para a população. Os especialistas se opuseram ao uso desta política, em especial, a emissão de glifosato, pelo fato de ainda não possuírem na época conhecimentos mais detidos sobre os seus efeitos sobre humanos 34. Em 2000, após a adoção do “Plano Colômbia” pelo ex-presidente Andrés PASTRANA ARANGO, que tinha por objetivos (i) reduzir a produção de drogas ilícitas, em especial a cocaína, em 50% dentro de 6 anos e; (ii) e o desenvolvimento da segurança no país, por meio da retomada de áreas controladas pelos grupos armados da guerrilha; a pulverização aérea de herbicidas pelo governo, que já vinha sendo feita desde meados da década de 80, aumentou exponencialmente no país com o apoio financeiro dos EUA, que investiu entre 2000 e 2007, 6 bilhões de dólares no projeto, dos quais 458 milhões de dólares foram destinados à estratégia com herbicidas 35. Apesar da redução da violência local, os esforços para a diminuição do plantio de coca não obtiveram êxito. Estudos mostram que em 1999, a área abrangida pelas plantações de coca no país era de 122.500 hectares, dos quais 43.426 foram objeto da política de pulverização. Em 2007, todavia, apesar área pulverizada abranger 153.133 hectares, a área de plantio de coca passou de 136.200 33) COLOMBIA. Sentencia No. C-225/95, Corte Constitucional. 18 mai. 1995, Disponível em: . Acesso em: 20 fev. 2013. 34) “Glyphosate: Its aerial use for the eradication of crops of marihuana and coca is not recommended. The data obtained in animal experimentation show low acute toxicity; its acute toxicity in humans is little known. In the literature reviewed there is no information concerning chronic toxicity in humans. Neither is there information with respect to its mutagenic and tetragenic effects [...]” In: Administrative Tribunal of Cundinamarca, Colombia, Second Section, Subsection “B”, 13/6/2003, “Claudia Sampedro y Hector Suarez v. Ministry of Environment and Others” (Col.), p. 15 apud TIJ, Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Aplication Instituting Proceedings. 31 mar. 2008. Disponível em: . Acesso em: 06 fev. 2013. 35) USA GOVERNMENT ACCOUNTABILITY OFFICE, Pub. n. GAO-09-71, Plan Colombia: Drug reduction goals were not fully met but security has improved; U.S. Agencies need more detailed plans for reducing assistance (28), 2008. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2013; LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary Problems... ob. cit., p. 492. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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hectares, em 2000, para 167.000 hectares em 2007, tendo aumentado em 15% as áreas plantadas e em 4% a produção de cocaína36. Durante anos de ação, sérios impactos foram sentidos local e internacionalmente. Relatórios desenvolvidos por ONG’s apontam para os malefícios causados ao ambiente e às populações atingidas, incluindo, além dos prejuízos materiais obtidos com a destruição de plantações de outras culturas lícitas e a perda de certificações internacionais decorrentes da contaminação do solo e da água pelos agentes pulverizados, o registro de doenças e até mortes37. Além dos males conhecidos do glifosato que, de acordo com os relatórios da Organização Mundial da Saúde (OMS) 38, incluem diarréia, vômitos, dores no estômago e irritação na pele e olhos, novos estudos têm relacionado outros problemas de saúde à exposição de pessoas aos agentes herbicidas, como a infertilidade e abortos39. Ocorre, todavia, que os herbicidas pulverizados no país possuem outras substâncias combinadas com o glifosato, não informados pelo 36) Idem. 37) “Examples of individuals and community groups affected by these sprayings abound. When María Chirimía, Pedro Quintero and César Vargas, three Eperara Siapidaara indigenous children all under the age of ten, died in April 2004, their community in Nariño claimed that the deaths were the result of aerial spraying in the region that made the children sick and caused illnesses in at least 15 other people. Because the complaint was not investigated in a timely manner, it was impossible to verify the community’s claims. Additionally, spraying in the area continued without consultation with the community. Similarly, early in 2005, crop dusters blanketed part of the Kogui Malayo Arhuaco indigenous reserve located in the Sierra Nevada de Santa Marta in the North without previous consultation with the community. That spraying campaign destroyed food crops and contaminated water resources that were vital to the community. These damages have not been compensated. Finally, in May and June of 2005, many farms in Cauca in the Southeast, most of which had support from the US Agency for International Development and the United Nations Office on Drugs and Crime, were sprayed. Subsequent inspections by local officials found that 90 percent of the sprayed farms grew only legal crops. The majority raised fruits, vegetables and export crops like organic, fair-trade coffee, and many had attained expensive organic certifications to sell their harvest on the international market. These stories are just a few examples of harmful effects that have occurred during the past six years of aerial spraying. In addition, the glyphosate mixture being sprayed harms the environment by destroying natural forests and food crops.” Cfr. AIDA, Alternative Development Strategies in Colombia: The Need to Move Beyond Illicit Crop Spraying. Publicado em 28 ago. 2006. Disponível em: . Acesso em: 07 fev. 2013. 38) WHO/FAO. Data sheets on pesticides n.91: Glyphosate (Doc. WHO/PCS/DS/96.91). Disponível em: . Acesso em 07 de fev. 2013. 39) RICHARD, Sophie; et al. Differential Effects of Glyphosate and Roundup on Human Placental Cells and Aromatase. In: Environmental Health Perspective, Vol. 113, pp. 716 et ss., 2005, p. 720. Obra dedicada ao Instituto Terra

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governo, o que impossibilita uma verificação mais acurada de sua toxicidade 40. Em 2007, o Equador, preocupado com os efeitos nocivos da pulverização de herbicidas na zona de sua fronteira com a Colômbia, convidou a Comissão de Direitos Humanos da ONU para uma visita de avaliação dos danos à saúde física e mental de sua população. Instituída a missão, foram visitados o Equador e a Colômbia nos meses de maio e setembro de 2007, tendo sido editada a “Nota preliminar sobre a missão ao Equador e à Colômbia” adicionada ao Relatório Especial sobre o direito de toda pessoa desfrutar dos mais altos níveis de saúde física e mental da Comissão 41. Neste relatório preliminar, todavia, não foram realizados testes. Ele se limitou a apontar os posicionamentos distintos de ambos os Estados sobre a certeza científica dos efeitos nocivos dos agentes químicos 42. Diante das infrutíferas tentativas de composição amigável para que a Colômbia deixasse de pulverizar seus herbicidas na região da fronteira equatoriana e prestasse informações detalhadas da composição dos agentes químicos lançados, em 2008 o Equador ajuizou uma ação contra a Colômbia perante o Tribunal Internacional de Justiça da ONU (TIJ) 43. Dentre os seus pedidos, requereu: (i) a declaração de que a Colômbia violou uma obrigação de Direito Internacional ao causar ou permitir o contato de herbicidas tóxicos no território equatoriano que causaram danos à saúde humana, à propriedade e ao meio ambiente; (ii) que a Colômbia o indenize pelos danos causados por tal prática, 40) WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of fumigation in Colômbia… ob. cit., pp. 9/10. 41) “In May 2007, the United Nation’s special rapporteur on the right to health stated that ‘(t) here exists credible and trustworthy evidence that aerial fumigation with glyphosate along the Colombia-Ecuador boarder damages the physical healthy’ of the population”. Cfr. EL COMERCIO. Relator de la ONU pide a Colombia suspender fumigaciones en frontera ecuatoriana. 18 mai. 2007, apud WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of fumigation in Colômbia… ob. cit.,, p. 6. 42) CDH, Informe del Relator Especial sobre el derecho de toda persona al disfrute del más alto nivel posible de salud física y mental: Nota preliminar sobre la misión al Ecuador y Colombia (Doc. A/HRC/7/11/Add.3), 4 mar. 2007. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2013.  43) Apesar de o TIJ ser detentor de uma Câmara Permanente especializada para assuntos ambientais desde 1993 (art. 26(1), do Estatuto do TIJ), esta questão não foi levada para a mesma. Isso se deve ao fato que, pelo art. 91(1) das Regras do TIJ, para que um caso seja submetido a uma câmara especializada há a necessidade de consenso entre as partes, o que nos leva a questionar o interesse dos Estados em resolver questões ambientais por meio de uma Corte especializada. Cfr. BORGES, Orlindo Francisco. Conflitos de Jurisdição no contencioso internacional ambiental... ob. cit., p. 13. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Orlindo Francisco Borges

incluindo-se, em particular, (a) as mortes e os danos causados à saúde humana pela pulverização dos herbicidas, (b) os danos à propriedade e aos meios de sustento de sua população, (c) os danos ambientais e recursos naturais perdidos com o evento, (d) os custos de monitoramento e prevenção dos riscos adotados; (e) e quaisquer outras perdas e danos relacionados ao evento; (iii) que a Colômbia respeite a sua soberania e integridade territorial no sentido de tomar todas as medidas necessárias para prevenir que os herbicidas utilizados em seu território não atinjam o Equador44. Recebido o caso pela Corte, não foi proferida uma decisão de mérito sobre o caso. Após a expedição de 3 ordens, todas concedendo prazos para a apresentação de provas e respectivas contestações para uma melhor elucidação dos fatos e evidências 45, dado o alto caráter científico da demanda, as partes celebraram um acordo, fazendo com que o caso fosse retirado do tribunal em 13 de setembro de 2013, com base no art. 89, do Estatuto do TIJ 46. Em seus termos, foi estabelecida a criação de uma zona de exclusão entre os países em que a Colômbia se comprometeu a não realizar operações com herbicidas. Paralelamente a isso, foi criada uma Comissão Mista de acompanhamento/monitoramento para que as operações realizadas fora dessa zona não atinjam a área demarcada e, consequentemente, não afetem o Equador. Nessa senda, apesar da inclinação do TIJ para um alargamento do princípio da prevenção (para os casos de incerteza científica), por conta do acordo realizado, deixou o TIJ de avançar na matéria, embora, pelos termos do acordo, vê-se a concordância da Colômbia em não afetar o território equatoriano.

44 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Aplication Instituting Proceedings… ob. cit., p. 26. 45 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order fixing of time-limits: Memorial and Counter-Memorial. 30 mai. 2008. Disponível em: ; TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order fixing of time-limits: Reply and Rejoinder. 25 jun. 2010. Disponível em: ; TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Extension of of time-limits: Rejoinder. Disponível em: . Acesso em: 08 fev. 2013. 46 )  TIJ. Aerial herbicide spraying (Ecuador v. Colombia), Order Removal from list. 13 set. 2013. Disponível em: < http://www.icj-cij.org/docket/files/138/17526.pdf>. Acesso em: 30 abr. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais: O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional?

4) Ainda sobre a Colômbia: Abertura para o

reconhecimento de crimes internacionais por violações ao Direito Humanitário 47

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Como se pode observar, reconhecidos os riscos causados ao ambiente e à saúde da população vizinha à zona afetada, medidas civis foram tomadas perante o TIJ. Isso não impede, todavia, que medidas criminais também sejam perquiridas em sede do Tribunal Penal Internacional (TPI), uma vez que tanto o Estatuto de Roma, quanto o Protocolo Adicional à Convenção de Genebra II (PACG II), reconhecem como crime de guerra (em conflitos armados não-internacionais) os ataques direcionados à população civil em geral e àqueles que não participem diretamente das hostilidades (art. 8º(2) e, I, do Estatuto de Roma e art. 4º(1) do PACG II), causando-lhes danos à sua saúde física e mental (art. 4º(2) a c/c art. 13, do PACG II) e destruindo lavouras e outros bens indispensáveis à sua sobrevivência (art. 8º(2) b, II, do Estatuto de Roma e art. 14, do PACG II). Nesse pormenor, importante destacar algumas peculiaridades que deverão ser observadas no caso para que se possa sustentar uma denúncia nesse sentido. Inicialmente, se faz importante esclarecer que a proibição penal do plantio de coca na Colômbia se dá apenas para quem detém mais do que 20 plantas, sendo reconhecida a licitude de seu cultivo para além dessa quantidade em comunidades indígenas, que atribuem um caráter sagrado e medicinal para a planta 48. Nessa senda, a realidade local possui uma gama de situações: (a) plan47) Acerca da discussão de crimes internacionais ambientais, Cfr. BORGES, Orlindo Francisco. “Esverdeando” o Estatuto de Roma: Uma análise da tutela do ambiente pelo Tribunal Penal Internacional. FDUL: Lisboa, 2013. 48) “When Colombia ratified the U.N. Convention Against Illicit Traffic in Narcotic Drugs and Psychotropic Substances on June 10, 1994, it included a formal declaration stating that the criminalization of coca cultivation -must be harmonized ... taking into account the rights of the indigenous communities. In deciding that the declaration to the Convention was valid under Colombian law, the Constitutional Court stated that Colombia recognizes the difference between the coca leaf and cocaine, and that indigenous communities use the coca leaf in ways that do not have negative effects. The means employed by the government to fight drug trafficking should be sensitive to the cultural identity of the indigenous communities that the constitution protects. In 2003, the Constitutional Court reiterated that indigenous communities had the right to maintain coca plantations because coca is a sacred plant for some indigenous populations; it is important for their livelihood as well as for cultural and medicinal purposes” Cfr. LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary Problems... ob. cit., p. 498. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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tios lícitos cultivados por civis; (b) plantios ilícitos cultivados por civis, cooptados ou não pelas forças revolucionárias; (c) plantios cultivados diretamente pelas forças armadas; (d) cultivos lícitos indígenas. Assim, ainda que os ataques se direcionassem apenas e tão somente aos plantios de coca no país, não houve uma distinção dos plantios lícitos dos ilícitos, já demonstrando, em um primeiro momento, a ocorrência de ataques direcionados a alvos civis 49. Além disso, é o conceito de “participação direta nas hostilidades” que se apresenta como o elemento essencial na distinção dos objetivos militares dos civis para fins de aplicação dos dispositivos supramencionados. Nesse contexto, os fazendeiros que cultivam coca poderão ser qualificados como participantes diretos nas hostilidades, de acordo com as regras de direito humanitário internacional? Tendo em vista o posicionamento adotado pelo ICTY no caso Galić, não. Nesse caso, “participação direta nas hostilidades” foi definida como a prática de atos de guerra que, por sua natureza ou propósito, estejam voltados a causar um dano pessoal ou material às forças armadas inimigas. Nesse sentido, o plantio de coca desenvolvido no país, embora possa ser apontado como uma das formas de financiamento das atividades armadas locais, não poderá ser considerada como participação direta nas hostilidades, justamente por não possuir esse condão lesivo à parte inimiga. Na mesma linha argumentativa, o Interpretive guidance on the notion of Direct Participation in Hostilities, editado pelo CICV, reconheceu que estão protegidos pelo direito costumeiro como alvos civis aqueles que trabalham os prestam serviços enquanto particulares para as forças armadas (v.g civis que trabalham dentro de uma fábrica de armas) 50. Ora, ainda que os fazendeiros locais venham a comercializar as folhas de coca cultivadas diretamente com as forças armadas revolucionárias, isso não 49)“There is no evidence that the Colombian government is making any attempts to find out which fields are being used by armed groups in order to show that the coca fields it targets for fumigation are military objectives. In fact, the government failed to consult with indigenous populations about fumigations, which is a violation of domestic law. The Constitutional Court, recognizing this failure in 2003, ordered the government to consult effectively and efficiently with indigenous populations about coca eradication. By its failure to consult them and determine if the fields are linked to the armed conflict, Colombia is failing in its obligations to distinguish between military and civilian objectives. Before spraying areas, the government should, at the very least, attempt to make inquiries about the fields and assess whether they belong to the armed groups or to civilians”. Cfr. LANDEL, Morgane. Are aerial fumigations in the context of the war in Colombia a violation of the rules of International Humanitarian Law? In: Transnational Law and Contemporary Problems... ob. cit., p. 508. 50) MELZER, Nils. Interpretive Guidance on Notion of Direct Participation in Hostilities under International Humanitarian Law. Genebra: ICRC, 2009. Disponível em: . Acesso em: 21 fev. 2013. p. 39. Obra dedicada ao Instituto Terra

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faz com que tais fazendeiros sejam reconhecidos pelo Direito Humanitário Internacional como participantes diretos, a torná-los um alvo militar justificado. Ainda que consideremos apenas a destruição das plantações ilícitas, as mesmas também não poderão ser consideradas um objetivo militar, uma vez que não trazem vantagem direta no conflito. A sua destruição teria apenas o condão de diminuir uma das supostas fontes de renda adotadas pelas forças armadas inimigas. Não obstante, como demonstrado acima, desde a implantação desta política de pulverização, os cultivos não reduziram, muito pelo contrário, além de aumentarem se diversificaram para outras áreas, restando clara a ausência de proporcionalidade no ataque, caso se reconhecesse tais alvos como sendo um objetivo militar. Dessa forma, os ataques feitos por meio da pulverização de herbicidas sobre os plantios de coca, ainda que ilícitos - por redundar em danos físicos e mentais a pessoas não participantes diretas das hostilidades, bem como por destruir os plantios lícitos - poderá ser entendido como uma violação ao art. 8º(2) e, I, do Estatuto de Roma. Essa possibilidade se potencializa após recentes descobertas sobre o uso de substâncias inflamáveis e corrosivas no composto pulverizado que são proibidas pelo mercado 51. Logo, além de militarmente injustificáveis, as substâncias lançadas contra a sua própria população são tóxicas e ilícitas. Outra forma de responsabilização penal ambiental também pode ser investigada com base no art. 7º(1) d, do Estatuto de Roma, que reconhece como crime contra a humanidade a transferência forçada de pessoas por meio de atos coercitivos 52. Nesse caso, os atos coercitivos para o deslocamento das pessoas, 51) Em matéria publicada pelo jornal colombiano El Espectador, registrou-se o fato dos rótulos dos produtos adquiridos e utilizados no país no ano de 2011 terem sido “inexplicavelmente adulterados” para atender os requisitos de uso no país quando, na verdade, continham substâncias inflamáveis e corrosivas proibidas em solos norte-americano e europeu. Informou-se, ainda, que os EUA retirariam o seu apoio ao Plano Colômbia se o país persistisse na aquisição de herbicidas ilegais. Desde 2010 os EUA não compram diretamente herbicidas para o programa colombiano. Cfr. MARÍN CORREA, Alexander. El glifosato chino de la policía. In: EL ESPECTADOR. 26 ago. 2012. Disponível em: . Acesso em: 07 de fev. 2013. 52) Christopher HALL explica que a transferência forçada de pessoas se distingue da deportação apenas terminologicamente para distinguir os casos em que há a remoção de pessoas de um país para outro daqueles em que o deslocamento ocorre dentro do mesmo Estado. Na prática, os elementos de ambos os crimes são os mesmos. Cfr. HALL, Christopher K. Crimes against humanity - par.1(d). In: TRIFFTERER, Otto (ed.), Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court… ob. cit., pp. 194/195. Nesse sentido, se posicionou o ICTY no caso Milosevic com base nos precedentes Sismic e Nicolic: “the values protected by both crimes are substantially the same, namely ‘the right of the victim to stay in his or Direitos Humanos e Meio Ambiente

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seria a degradação do ambiente e dos meios de subsistência das comunidades civis atingidas 53. Nesta segunda hipótese, destaca-se o caso das comunidades de Nariño e Putumayo, que segundo estudos da Consultoria para los Derechos Humanos y el Desplazamiento (CODHES), já registravam em conjunto o deslocamento de 65.000 pessoas no ano de 2004. Neste mesmo estudo, que identifica a pulverização de herbicidas como a 2ª principal causa de deslocamento forçado no país, há o registro de que os dados relativos a esta forma de deslocamento são manipulados negativamente. Isso porque, os órgãos oficiais de assistência às pessoas deslocadas não oferecem auxílio às vítimas que declarem terem sido deslocadas pela pulverização, contribuindo, dessa forma, para as cifras negras envolvendo as vítimas da ação com herbicidas 54. her home and community and the right not to be deprived of his or her property by being forcibly displaced to another location” In: Prosecutor v. Milosevic, IT-02-54-T, Trial Judgment, 16 jun. 2004, §69 apud HALL, Christopher K.Crimes against humanity - par.1(d). In: TRIFFTERER, Otto (ed.), Commentary on the Rome Statute of the International Criminal Court… ob. cit., p. 195. 53) “Fumigations destroy licit and illicit crops alike, exacerbating poverty and hunger, and worsening displacement in the country with the largest displaced population in the world (According to the CODHES, Consultoria para los Derechos Humanos y el Desplazamiento, there are currently four million internally displaced individuals in Colombia)”. WITNESS FOR PEACE. An exercise in futility: Nine years of fumigation in Colombia… ob. cit., p. 9. 54) “En el caso específico de las fumigaciones, pudimos comprobar que existe um subregistro total del fenómeno, ya que las entidades encargadas de recibir las declaraciones y valorarlas para decidir si ingresan o no al sistema de registro estatal, excluyen a personas que se desplazan por efectos de la aspersión aérea. En otras palabras, se les niega el reconocimiento ofi cial de la vulneración de sus derechos y, por tanto, de la atención del Estado y el derecho a la reparación. En entrevistas con funcionarios y organizaciones que tienen trabajo con desplazados, la misión comprobó que el sistema único de registro no ingresa desplazados por fumigaciones, aún más, que hay irregularidades en la toma de la declaración en las que se evidencia que en casos no relacionados con fumigaciones, se manipula la entrevista para llegar a la conclusión de uma relación causal entre el desplazamiento y la aspersión aérea, para así rechazar los casos, principalmente los que provienen de Putumayo. Por ejemplo, se les pregunta ¿de donde viene? Al responder de Putumayo le preguntan ¿viene por fumigaciones? Si responde que no y refiere hechos como combates o amenazas, piden constancia de esas amenazas directas (cartas) y los combates generalmente no se aceptan como causal, a menos que sea un desplazamiento masivo en el que esté afectada toda la comunidad. En otros casos le preguntan ¿pero, en Putumayo están fumigando? Si la persona responde afirmativamente, se le excluye del registro y en la carta de respuesta aparece que las fumigaciones “no se encuentran em las estipulaciones de la ley 387 o no están contempladas como causas del desplazamiento. [...] A pesar de lo anterior, las organizaciones que trabajan la línea jurisprudencial con personas desplazadas que no han podido ingresar al sistema de registro único, afirman que de cada 5 personas no registradas, 2 vienen por fumigaciones: esa es la razón del rechazo. Esto significa que el gobierno desconoce su responsabilidad como agente causante de desplazamiento, así como el derecho de las personas afectadas por fuObra dedicada ao Instituto Terra

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O Uso de Herbicidas e a Violação de Direitos Humanos por Impactos Ambientais: O que o Brasil Pode Aprender a Partir da Experiência Jurisdicional Internacional?

Desse modo, verifica-se que em uma política voltada ao combate aos guerrilheiros narcotraficantes da Colômbia, o Estado tem se utilizado de meios desproporcionais aos objetivos militares pretendidos, podendo os agentes por detrás desse aparato organizacional ser alvo de investigação tanto do cometimento de um crime de guerra, quanto um crime contra a humanidade. Isso porque, o governo local dentro de um contexto de conflito armado: (i) utiliza substâncias tóxicas (proibidas) nocivas à saúde e ao ambiente; (ii) dirigidas à população em geral, uma vez que não distingue as culturas lícitas das ilícitas tidas como objeto de intervenção; (iii) destruindo bens civis (plantações de outras culturas e as culturas lícitas não distinguidas) e; (iv) promovendo o deslocamento interno de sua população.

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Conclusão: Para além da prevenção: O dever de reparação e a abertura para o surgimento de demandas internacionais 288

Tendo por base o caso da Pulverização Aérea de Herbicidas, em que a Colômbia foi demandada pelo uso de glifosato na fronteira com o Equador, acompanhado da consolidação do entendimento que o Tribunal Internacional de Justiça possui sobre a aplicação dos princípios da prevenção e da responsabilidade de não causar danos a terceiros Estados/áreas fora de jurisdição, temse para o Brasil algumas questões que merecem especial atenção com o desenrolar dessas ações civis públicas movidas pelo Ministério Público Federal, para além dos impactos econômicos advindos da suspensão da comercialização destes produtos e da potencial responsabilização por danos causados à população com o uso destas substâncias, diante da confirmação de sua toxicidade. No Direito Internacional Ambiental, vê-se uma clara abertura virtual de potenciais litígios em zonas de fronteira agrícola com outros países latinos em que o Brasil poderá ser demandado (destaque para a Bolívia, Paraguai, Uruguai e Argentina), não apenas pelo uso de substâncias cuja toxicidade não

Orlindo Francisco Borges

foi atestada pelo órgão regulador nacional, como pela distribuição de sementes (OGM’s) resistentes a princípios ativos não atestados, capazes de incentivar o uso de substâncias potencialmente tóxicas e, por sua vez, afetar diretamente a saúde e o meio ambiente não só de suas populações, mas dos países vizinhos. Como observado pelo princípio da prevenção, a ausência ou a adoção de medidas deficitárias (em desconformidade com os procedimentos instituídos para o afastamento do perigo à saúde e ao meio ambiente: leia-se, o controle da comercialização dos herbicidas conforme os exames de toxicidade) poderão redundar em responsabilização internacional, podendo o gestor público encarregado desse munus (União Federal), vir a figurar como responsável solidário do particular que realizou um evento de significativo impacto ambiental e à saúde da população. Não obstante, pelo princípio da soberania sobre os recursos sitos em seu território e da responsabilidade de não causar danos a terceiros Estados e zonas fora de sua jurisdição, verifica-se a imposição de um dever de cuidado para com os Estados vizinhos, de modo a impulsionar políticas domésticas de gestão e controle de riscos ambientais (instrumentos de prevenção) e reconhecer a possibilidade de responsabilização de um Estado por uma falha neste dever de cuidado capaz de gerar danos a terceiros Estados. Logo, a não adoção de medidas preventivas e de controle acerca do uso e comercialização destas substâncias ou mesmo a permissão da continuidade de sua comercialização depois de atestada a ausência de certeza quanto ao atendimento dos padrões exigidos, abre espaço não apenas para a reparação de eventuais danos em foro nacional como, se vir a atingir zonas fora de jurisdição nacional, impingir uma responsabilidade internacional do país. Nesse último caso, poder-se-ia justificar a jurisdição do TIJ, de modo que o mesmo poderá vir a ser provocado a se manifestar e a avançar no mérito em relação aos pontos que o caso da Pulverização Aérea de Herbicidas na Colômbia deixou em aberto por conta de sua resolução pelas vias negociais: o papel da aplicação do princípio da prevenção diante de incerteza científica (precautionary approach) no Direito Internacional do Ambiente.

migaciones a la reparación y mantiene invisibilizada la magnitud del desplazamiento en las zonas donde aplica su política de seguridad. ACNUR por ejemplo, habla de un subregistro de 4 mil a 8 mil personas en Nariño. También signifi ca que casi la mitad de las personas que no se registran están desplazadas por efecto de las fumigaciones”. Cfr. CODHES, Informe de la mision de observacion sobre los efectos del Plan Colombia en los departamentos de Nariño y Putumayo, frontera colomboa-ecuatoriana. Dez. 2004. Disponível em: . Acesso em: 23 fev. 2013, pp. 122/123 Direitos Humanos e Meio Ambiente

Obra dedicada ao Instituto Terra

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Em Defesa da Igualdade de Responsabilização Penal entre Pessoas Jurídicas de Direito Público e de Direito Privado Renata Machado Saraiva1 Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Sumário: Introdução. 1 A previsão normativa no Brasil – Constituição Federal/88 e Lei nº 9.605/98. 2 A jurisprudência brasileira. 3. A abordagem doutrinária. 3.1 Contrapondo argumentos avessos à responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público. 3.2 Outros

problemas da responsabilização penal diferenciada entre entes coletivos

públicos e privados: (1) O desequilíbrio concorrencial (2) O estímulo a relações simuladas e (3) Os casos de monopólio do Estado. Conclusão

1) M  estranda em Direito Ambiental pela Faculdade de Direito da Universidade de

Lisboa, possui especialização em Direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É atuante na advocacia criminal em Porto Alegre/RS. Contato: [email protected]

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Em Defesa da Igualdade de Responsabilização Penal entre Pessoas Jurídicas de Direito Público e de Direito Privado

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Introdução

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Em meio a (ainda muito) polêmica responsabilidade penal de entes coletivos, convém delimitar a quais órgãos e sob que justificativas a norma penal se destina. Se tomarmos como premissa a possibilidade de incriminação penal de pessoas coletivas (superados ou negligenciados os obstáculos teóricos contrários, como a aplicação do princípio da culpabilidade) restará ainda por saber exatamente contra que entes a imputação penal é legítima e necessária. Neste contexto, é evidente que a penalização recai sobre as pessoas jurídicas da iniciativa privada, pois foi justamente nestas que se espelhou o modelo de organização que tenta justificar o ingresso do instituto na teoria e na prática penal. Especificamente, falamos de um contexto organizacional complexo, hierarquizado, com distribuição de tarefas e de informações, características comuns nas sociedades empresárias. Contudo, devemos atentar para o fato de que também no setor público inúmeros órgãos, na execução de suas tarefas, adotam modelos muito próximos àqueles das organizações privadas, especialmente quando com elas concorrem, adotando condutas potencialmente danosas a bens juridicamente tutelados, como é o exemplo do meio ambiente. Se partirmos da afirmação, portanto, de que o Estado, e qualquer uma de suas manifestações jurídicas, pode praticar condutas ilícitas, ou seja, pode apresentar um agir criminoso, justificaremos a análise da sua possível incriminação penal. Enquanto esta hipótese é textualmente rechaçada em muitos cenários normativos – como em Portugal2, por exemplo - a 2) A partir da última reforma do Código Penal Português (lei 59/2007, de 4 de setembro), há expressa exclusão da responsabilidade penal de entes públicos. O legislador português, especificando os atingidos pela norma (art. 11.º do Código Penal), restringiu a responsabilização penal-ambiental a rol taxativo de entidades, deixando de fora, inclusive, aquelas privadas instrumentalmente utilizadas pelo Estado na execução de serviços públicos. Sobre o tema, vide: SERRA, Teresa. Responsabilidade penal das pessoas colectivas. Artigo de opinião publicado no seminário Expresso, de 29/09/2007. Disponível em > Acesso em abril de 2014. Outros exemplos: (i) Na lei penal da Espanha, tradicionalmente rígida quanto ao princípio societas delinquere non potest, a partir da LO 5/2010 introduziu no Código Penal a responsabilidade criminal de pessoas jurídicas (art. 31.bis), com previsão elencada de penas (art. 33.7). O art. 31.5 expressamente excluiu a responsabilização do Estado e equiparados, sob os argumentos de potestades públicas de soberania e/ou de prestação de servicios de interés económico general, exceto quando entidades criadas no intuito de iludir a eventual responsabilidade penal. Sobre o tema, vide MUÑOZ CONDE, Francisco; LÓPEZ PEREGRÍN, Carmen/ GARCÍA ÁLVARES. Manual de derecho penal médio ambiental. Valencia: Tirant lo blanch, 2013.pp. 240/241. (ii) Na Itália a responsabilidade penal (formalmente: amministrativa per reato) foi incorporada no ordenamento pelo Decreto- Legislativo 231 de 8 de junho de 2001, que no seu art.1, commi 1 e 2., também exclui, além das instituições que desenvolvem atividades de Direitos Humanos e Meio Ambiente

Renata Machado Saraiva

Constituição Federal brasileira de 1988, e a Lei dos Crimes Ambientais (9.605/98) não preveem qualquer exclusão. Na verdade, o legislador brasileiro, baseando-se numa política criminal expansiva de tutela de bens difusos, previu a responsabilidade penal ambiental ampla de entes coletivos, sem qualquer especificação quanto à sua natureza. A falta de determinação expressa do texto legal relegou à jurisprudência, caso a caso, o esclarecimento sobre os destinatários da norma. Contudo, e apesar da importância prática desta tarefa atribuída ao Judiciário, são raros os julgados sobre a matéria, e raríssimas as condenações penais contra entes coletivos públicos. Na doutrina, como costuma ser, encontramos escritos a favor e contra a responsabilidade de entes coletivos de direito público, sendo que os principais argumentos contrários resumem-se em quatro questionamentos: (1) Tendo os entes públicos como fim primeiro e permanente a busca do “interesse público”, podem se beneficiar de conduta criminosa, preenchendo, assim, um dos critérios formais de responsabilização penal de pessoas coletivas? (2) Se o ius puniendi é exclusividade do Estado, como se justifica a sua autorregulação/autopunição? (3) O Juiz quando condena criminalmente o Estado está se declarando integrante de um órgão “criminoso”? (4) As penas hoje previstas são adequadas às pessoas jurídicas de direito público? E neste caso, toda condenação criminal contra um órgão público é revertida em desfavor da sociedade, inviabilizando sua aplicação? A busca destas respostas é também a questão de fundo deste estudo, e o que garante a importância do recorte na teoria da responsabilização penal dos entes coletivos, com foco na esfera pública e naqueles entes privados dotados de prerrogativas públicas. O que nos impulsiona, de início, é saber que, para além das características peculiares aos entes públicos, o papel que ocupam (e que devem ocupar) na tutela dos direitos fundamentais exige do direito um olhar diferenciado. O Estado, assim, assumindo atividades potencialmente perigosas ao meio aminteresse constitucional, o Estado e entes equiparados que exerçam poderes públicos. Vide: RIONDATO, Silvio. Sulla responsabilità penali degli amministratori di società pubbliche, et de publica societate quae delinquere potest In Rivista Trimestrale di diritto penale dell’economia. anno XVIII.n.3.lugl-sett/05. CEDAM, 2005. p.791. (iii) Na França, a partir da lei 92-683, de 22 de julho de 1992, também o Estado foi excluído da responsabilização penal dos entes morais, conforme o art. 121-2, assim como as coletividades territoriais (municípios, departamentos e regiões), a menos que exerçam serviços públicos delegáveis. Vide: PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes Morales de droit public: fondements et champs d’application In Revue des societes,1993. p. 261. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Em Defesa da Igualdade de Responsabilização Penal entre Pessoas Jurídicas de Direito Público e de Direito Privado

biente e em contextos concorrenciais com a inciativa privada, se por um lado torna suas tarefas públicas mais eficientes, por outro, tem de revalidar constantemente a sua cota de responsabilidade naquilo que lhe é mais caro: os representados, na perspectiva dos seus interesses e principalmente dos seus direitos.

1) A Previsão Normativa no Brasil – Constituição Federal/88 e Lei N. 9.605/98

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O mandado de incriminação de pessoas jurídicas surgiu no Brasil de carona com a constitucionalização do meio ambiente como direito fundamental, assim explicitado no art. 225 da Carta Republicana (1988): “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações (…)”, indicando no seu correspondente § 3º que “(…) as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”. Esta “consolidação democrática - política e do acesso à justiça”3 - de tutela do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado deu-se após um longo período de hibernação letárgica, pois da promulgação da Lei de Política Nacional do Meio Ambiente (1981) até a reforma constitucional (1988) não houve outra lei em matéria ambiental no país. Ademais, a constitucionalização caracterizou um verdadeiro paradigma de legalidade ambiental, pois antes dela as normas protetivas estavam distribuídas em leis infraconstitucionais4. 3) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição brasileira. In CANOTILHO, J.J.Gomes; LEITE, José R. Morato. Direito Constitucional Brasileiro.3.ed.São Paulo: Saraiva, 2010.p. 87. 4) Em 1934 surge o primeiro Código Florestal, (Decreto 23.793) substituído em 1965 pela vigente lei 4.771. No mesmo ano é promulgado o Código de Águas (Decreto 24.643) e em 1938, o Código de Pesca, (Decreto 794, substituído pelo hoje em vigor Decreto-lei 221/67). Em 1967 o Decreto-lei 248 cria a Política Nacional de Saneamento Básico e, na mesma data, o Decreto-lei 303 cria o Conselho Nacional de Controle da Poluição Ambiental, junto ao Ministério da Saúde. Todavia, em 1967, com a aprovação da lei 5.318 que criou a Política Nacional de Saneamento Básico ambos decretos foram revogados. Só em 1973 novo órgão é criado, a chamada SEMA – Secretaria Especial de Meio Ambiente – a partir do Decreto n. 73.030 – junto a qual funcionava o Conselho Consultivo do Meio Ambiente – CCMA. Em 1975 dois diplomas legais importantes são expedidos: o Decreto-lei 1.413, sobre controle Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Já a constitucionalidade, tomando o lugar da legalidade, cunhou com o signo verde todo o ordenamento, as searas civil, administrativa e penal, os setores públicos e privados. Apesar da clara escolha político-criminal pela responsabilização das pessoas jurídicas, não foram poucas as ressalvas doutrinárias quanto à adoção do instituto (até hoje ressonantes5), inclusive sobre qual modelo de previsão normativa deveria ser utilizado: se a tendência de integração dos tipos a Códigos Penais; ou se através de uma legislação mosaico, com tipificações distribuídas em leis setoriais. Optou-se pela forma segmentada, com o advento tardio – 10 (dez) anos após a promulgação da Constituição de 1988 – da lei 9.605/1998. Considerada por alguns como a pior lei já elaborada no país, a lei dos crimes ambientais mostra-nos um excesso de tecnicidade e de brechas dogmáticas invencíveis, como a tipificação de condutas de mera desobediência, de condutas de bagatelas e de condutas de mero desrespeito a normas regulamentares, sem falar no injustificado excesso de tipos de perigo abstrato. Tudo isto gerando apenas “resultados latentes”6, ou seja, sem efetivo aumento na proteção do ambiente. Dentre estas “brumas” da lei 9.605/98 está o art. 3º: “(...) as pessoas jurídicas serão responsabilizadas administrativa, civil e penalmente conforme o disposto nesta lei, nos casos em que a infração seja cometida por decisão de seu representante legal ou contratual, ou de seu órgão colegiado, no interesse ou benefício da sua entidade” . O artigo regulamentou o disposto na Constituição (art. 225, § 3º) e introduziu a responsabilidade penal de pessoas jurídicas no país, independentemente das sanções direcionadas às pessoas físicas. E se por um lado a lei penal foi da poluição, e o Decreto 76.389, especificamente sobre a poluição industrial. Em 1976 surge a Portaria do Ministério do Interior n. 13 que classificou as águas nacionais interiores, de acordo com parâmetros de consumo, bem como dispôs sobre formas de controle de poluição. Apenas como referências, em 1940 o Código Penal é promulgado prevendo crimes como o do artigo 271, que tipificava, no âmbito da tutela ambiental, a poluição de água potável. 5) Em posicionamento contrário à interpretação constitucional pela possibilidade de responsabilização penal de pessoas jurídicas, vide, por exemplo, REALE JUNIOR, Miguel. A responsabilidade penal da pessoa jurídica. In PRADO, Luiz Regis; DOTTI, René Ariel (cords). Responsabilidade penal da pessoa jurídica – em defesa do princípio da imputação penal subjetiva.4.ed.(rev). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.pp. 353-355./BITENCOURT, Cezar Roberto; MONTEIRO, Luciana de Oliveira. Crimes contra a ordem tributária. São Paulo: Saraiva, 2013. pp.249-259. 6) Como denuncia MIGUEL REALE JÚNIOR em prefácio à obra de HELENA LOBO DA COSTA, que se posiciona no mesmo sentido. Vide: COSTA, Helena Lobo. Proteção penal ambiental – viabilidade, efetividade – tutela por outros ramos do Direito. São Paulo: Saraiva, 2010. Obra dedicada ao Instituto Terra

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minimamente clara em indicar critérios objetivos (i. por decisão de representante legal ou contratual, ou do órgão colegiado; ii. no interesse ou benefício da entidade), por outro lado, deixou em aberto a quem se destinava, precisamente, quais as pessoas jurídicas estavam sujeitas à incriminação penal. Lembremo-nos que a organização administrativa é dividida no Brasil entre uma administração direta (União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios) e outra indireta (autarquias, fundações e agências reguladoras) 7. Havendo, ainda, as empresas paraestatais que dispõem de capital público, parcial - sociedades de economia mista - ou exclusivo – e as empresas públicas, que mantêm personalidade de direito privado, pois criadas para a consecução de atividades econômicas alheias à administração pública.8 Apesar desta multifacetada organização político-administrativa, a lei penal não esclareceu a quais entes coletivos destinava-se e, assim, coube à doutrina e à jurisprudência a tarefa de fazê-lo. As pessoas jurídicas de direito privado por evidente estavam incluídas na descrição da norma. Já às pessoas jurídicas de direito público restou o limbo hermenêutico. 296

2) A Jurisprudência Brasileira Enquanto o Superior Tribunal de Justiça há bastante tempo decide sobre a responsabilidade penal de pessoas jurídicas9, o Supremo Tribunal Federal, órgão responsável pelo controle de constitucionalidade no país, apenas no ano de 2012 posicionou-se sobre a matéria – inclusive para relativizar a Teoria da Dupla Imputação até então aplicada pelo primeir10. Contudo, até hoje nenhum dos Tribunais Superiores pronunciou-se especificamente sobre a possibilidade

7) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público por dano ambiental. In VILELA, Gracielle; RIEVERS, Marina (orgs). Direito e meio ambiente – reflexões atuais. Belo Horizonte: Fórum, 2009.p. 329. 8) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.3.ed.Rio de Janeiro: Campus Jurídico, 2011.p.187. 9) Vide, por exemplo: Recurso Especial 610114/RN, Rel. Min. Gilson Dipp, Quinta Turma, j. 17/11/2005. 10) Recurso Extraordinário em Agravo Regimental 62858/RS, Rel. Min. Dias Toffoli, j.17/02/2012. Com publicação no informativo do Supremo Tribunal Federal n. 639. Reafirmando este posicionamento no ano seguinte em Agravo Regimental em Recurso Extraordinário 548181/PR, Rel. Min. Rosa Weber, Primeira Turma, j.14/05/2013. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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de incriminar penalmente pessoas jurídicas de direito público.11 Nos julgados dos tribunais de segundo grau, embora não encontremos condenação contra o Estado ou ente equiparado, alguns trechos merecem destaque. Vejamos. Em âmbito federal, a extração de recursos minerais para uso em obras públicas sem licença ambiental, como na construção de estradas, é objeto recorrente dos recursos encaminhados por municípios aos tribunais regionais12. O entendimento adotado por maioria é de atípica da conduta de extração do minério sem licença ambiental pelo órgão público, desde que comprovado o objetivo de uso em função do interesse público, como por exemplo na construção de vias para trafegabilidade. A permissibilidade legal estaria disposta no parágrafo único do art. 2º (Código de Minas), introduzido pela lei 9.827/9613. No julgamento de um destes casos, refere o voto divergente que a licença ambiental exigida no art. 55 da lei 9.605/98 está relacionada ao preceito constitucional do art. 225, e que toda a atividade que se utiliza de recursos ambientais (como a construção de estradas) exige licença, emitida por órgão competente. Por este argumento concluiu o magistrado: “(...) não percebo existir princípio, norma ou preceito legal, com aptidão para afastar a responsabilidade criminal do agente público ou político – tampouco do Município – que utiliza substância mineral pertencente à União, quanto a eventuais infrações ambientais decorridas dessa conduta”. 14 11) Apenas de forma muito sutil o tema já foi tratado pelo Superior Tribunal de Justiça, sem qualquer aprofundamento, no curso de outros debates, como no caso do Recurso Especial 929664/SC, no qual a Min. Laurita Vaz simplesmente menciona a complexidade da matéria, sem desenrolar qualquer conclusão. Recurso Especial 929664/SC, Rel. Min. Laurita Vaz, decisão monocrática de 01/02/11. 12) Neste caso a extração (de cascalho) deu-se em área de Unidade de Conservação Ambiental (Área de Relevante Interesse Ecológico – ARIE – Serra da Abelha), causando dano concreto ao ambiente: TRF4 – PIMP 2007.04.00.020334-3, Rel. Des. Néfi Cordeiro. j. 18/09/08. Outros exemplos: TRF4, Apelação Criminal 2003.72.02.000245-9/SC, Sétima Turma, Des. Rel. Taadaqui Hirose, j. 21/11/2006; TRF4, Ação penal n. 200004010891195, 4a Seção, Des. Rel. José Luiz Borges Germano da Silva, j/ 17/06/2004; TRF4, Inquérito n. 200204010372656, 4a Secção, Des. Rel. Vladimir Passos de Freitas, j. 18/12/2002. 13) “(…) Parágrafo único. O disposto neste artigo não se aplica aos órgãos da administração direta e autárquica da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, sendo-lhes permitida a extração de substâncias minerais de emprego imediato na construção civil, definidas em Portaria do Ministério de Minas e Energia, para uso exclusivo em obras públicas por eles executadas diretamente, respeitados os direitos minerários em vigor nas áreas onde devam ser executadas as obras e vedada a comercialização.” 14) Tribunal Regional Federal da 4a Região (TRF4), Inquérito Policial 2007.04.00.009259-4/ RS, Rel. Des. Néfi Cordeiro, j. 18/07/2008. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Apesar do voto pela possível incriminação do município nos casos em que há dano ambiental, a matéria atinente à extração de minérios é pacificada no sentido de desnecessidade da licença de extração quando está em jogo a persecução do interesse público. Em outro caso, o mesmo tribunal recebeu denúncia criminal contra todos os sócios de uma empresa coureira, mais a prefeitura municipal, mais o atual e os dois ex-prefeitos. Estes últimos e o órgão público teriam permitido a manutenção de vala de curtume (resíduo da produção coureira) fora dos limites da respectiva licença ambiental, incidindo nas omissões previstas no art. 68, caput, da lei 9.605/98. Inclusive porque suas condutas estavam em desconformidade com os pareceres técnicos que alertavam a poluição do solo em razão dos hidrocarbonetos liberados na vala pelo curtume. Ainda em fase de instrução, em dezembro de 2011 a peça acusatória foi recebida, o que nos que demonstra, pelo menos em termos de legitimidade processual, a aceitação da Corte (Tribunal Pleno do TRF da 4ª Região) pela responsabilização dos entes coletivos de direito público. 15 Em outro caso, estando sob análise o recebimento de denúncia por crime de dano (art. 40, lei 9.605/98) contra o prefeito e os dois ex-prefeitos do município de São José do Barreiro, por terem, em tese, escavado 200 metros cúbicos de terra do Parque Nacional da Serra da Bocaina (unidade de conservação de proteção integral), para depósito em leito de estrada. Em voto vencido, diz a Desembargadora que “(...) a despeito da controvérsia, filio-me ao entendimento que admite a prática de crime ambiental por pessoa jurídica de direito público, estando abrangida esta hipótese pelo art. 3º da lei 9.605/98 (...)”. Estava em caso a possibilidade de conversão do julgamento em diligência para aditamento da denúncia, diante da ausência de indícios mínimos de autoria. Por inépcia, contudo, a inicial não foi recebida16. Anos antes a mesma Corte decidiu em sentido oposto ao analisar a competência da justiça federal em procedimento que investigava crimes em área de proteção permanente (art. 48, lei 9.605/9817),especificamente, o reservatório artificial que abastecia a Usina Hidrelétrica de Água Vermelha: “(…)Descabe o argumento do recorrido de que os órgãos públicos têm o dever de fiscaliza15) Ação penal n.º 2009.04.00.002578-4/RS, TRF4, 4a Seção, Des. Rel. Sebastião Ogê Muniz.

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ção e atuação preventiva na preservação ambiental e, por esse motivo, também devem ser réus em eventual ação penal. O dever do Estado de fiscalizar e preservar o ambiente não implica que as pessoas jurídicas de direito público figurem no pólo passivo do processo penal. De qualquer modo, nada impede que eventual atuação dolosa ou culposa dos agentes estatais seja apurada, até porque a investigação dos fatos ainda está em andamento (…)”18. Nos tribunais regionais estaduais também é frequente o posicionamento contrário à sanção criminal de entes de direito público. Vejamos dois exemplos ilustrativos do Tribunal de Justiça do Paraná. Em inquérito policial, o município de União da Vitória, juntamente com o prefeito, foram investigados pela prática de destruição de vegetação em área protegida (art. 38 e 41 da lei 9.605/98). À parte dos fatos, o relator discorreu sobre a impossibilidade de punição criminal das pessoas jurídicas da administração direta, detentoras de capacidade política, como no caso dos municípios. Para tanto, referiu como ilógico “(...) sustentar que a prática de crimes ambientais possa ser realizada no ‘interesse’ ou em ‘benefício público’ da coletividade”. Disse, ainda, que conceber “(...) a possibilidade da existência de interesse estatal ou benefício público com o cometimento de uma infração (...) será negar o próprio Estado Democrático de Direito”. Argumentou com base na exclusiva titularidade estatal do ius puniendi que “(...) não há como admitir-se que o Estado seja auto-responsabilizado penalmente”. E como terceiro argumento, referiu a impossibilidade de aplicação das penas previstas às pessoas jurídicas como sanções penais ao Estado: (i) o eventual pagamento de multa seria revertido em favor do próprio ente, num tipo de remanejo orçamentário; (ii) as penas restritivas de direitos não poderiam ser impostas diante dos princípios da continuidade e da eficiência do serviço público, e diante do prejuízo que a suspensão parcial ou total destas atividades acarretaria à comunidade. Nestes termos, o julgado conclui quanto à responsabilidade penal que “(...) na esfera pública somente é razoável permitir seu alcance às pessoas jurídicas de direito público que operem como entidades autônomas e tenham atividade comercial, a exemplo das empresas públicas, as quais, circunstancialmente, podem ter interesses comerciais conflitantes com os interesses da sociedade”. Restando para os demais casos, apenas as penas das pessoas físicas envolvidas.19 O mesmo tribunal rejeitou denúncia contra o município de Faxinal que

16) TRF3, Inquérito Policial nº 0001286-55.2009.4.03.6118/SP (2009.61.18.001286-5/SP, Des. Relator Carlos Muta, publicado em 17/02/2012.

18) TRF3, Recurso em Sentido Estrito n. 00015659620044036124, Quinta Turma, Des. Relator Andre Nabarrete, j. 10/10/2005.

17) “Art. 48: Impedir ou dificultar a regeneração natural de florestas e demais formas de vegetação: Pena - detenção, de seis meses a um ano, e multa”;

19) Tribunal de Justiça do Paraná (TJPR) – Inquérito Policial 7565039 PR 0756503-9, Segunda Câmara Criminal, Rel. Des. José Maurício Pinto de Almeida, j. 28/03/2011.

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descrevia crime contra floresta de preservação permanente, sob o argumento da impossibilidade de responsabilização penal do ente público. “Entendeu-se que em casos de dano ambiental, os responsáveis penais são os agentes que autorizam a prática do ato e que, se admitida a responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público, haverá punição da sociedade e dos municípios como um todo, uma vez que a própria coletividade arcaria com as despesas”.20 Nesse breve apurado de exemplos pincelados da jurisprudência, o que percebemos é que, seguindo o branco legislativo da lei 9.605/98 e da Constituição (art. 225, § 3º), a questão sobre quais entes coletivos podem ser autores de delitos está longe de ser solucionada pelo Judiciário. A falta de julgados que se debrucem sobre o tema (conforme pesquisas virtuais21), especialmente nos Tribunais Superiores, é resultado tanto do receio dos acusadores em investigar e denunciar órgãos públicos, quanto das inúmeras hipóteses de arquivamento dos processos sem julgamento de mérito, por questões meramente processuais, o que impede que a matéria seja debatida pelos Julgadores e, quiçá, solucionada.

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3) A Abordagem Doutrinária 3.1) ContrapoNDO argumentos avessos à responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público

A partir dos textos normativos e da jurisprudência, em ajuste com algumas posições doutrinárias, podemos deduzir quatro argumentos que colocam em xeque a responsabilidade penal de entes coletivos públicos: (a) o interesse público como fim presente em todo o agir dos entes públicos ou dotados de prerrogativas públicas; (b) a exclusividade do ius puniendi estatal impeditiva de uma autoincriminação; (c) a estigmatização das sanções penais; (d) e a inadequação das penas previstas às pessoas coletivas quando aplicadas a entes públicos. A análise de cada um destes argumentos deve ser feita em duas perspecti20) TJPR – Recurso em Sentido Estrito 3085370 PR 0308537-0, Segunda Câmara Criminal, Rel. Juiz Conv. Rui Portugal Barcellar Filho, j. 16/11/2006. 21)Em site eletrônico que agrega a jurisprudência unificada de todos Tribunais Federais do país, e também no site de pesquisa ampla de jurisprudência , não se encontrou qualquer julgado que condenasse criminalmente pessoas jurídicas de direito publico. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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vas distintas: com relação aos entes coletivos de natureza pública e com relação aos entes coletivos dotados de poderes públicos. Os entes coletivos de natureza privada, ainda que em alguns casos disponham exclusiva ou parcialmente de capital público22, fogem do debate proposto, porque ao não se confundirem com o Estado em suas funções, são abarcados pela teoria geral da responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Assim, verificando em que consiste o primeiro argumento contrário à punição criminal de entes coletivos públicos, autores como GUILHERME PURVIN DE FIGUEIREDO e SOLANGE TELLES23 e JORGE DOS REIS BRAVO24, referem que estes sujeitos são caracterizados pelo fim que perseguem, ou seja, toda a sua “conduta” rege-se pela prossecução de um “interesse público”25, e em respeito ao princípio de legalidade que orienta e legitima a ação administrativa pública, somente as atividades “que o direito descreve ou consente”26 prestam à sua persecução. Diante desta perspectiva, é evidente o paradoxo quando a mesma conduta que persegue o “interesse coletivo” pode ser caracterizada como criminosa. Contudo, a expressão “interesse público” não se reveste de sentido “mágico” ou oco que possa justificar qualquer comportamento da Administração

22) No Brasil, a Petrobrás e o Banco do Brasil são exemplos de sociedades de economia mista. Portanto, embora parte do seu capital seja público, sua natureza é de direito privado. 23) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público na Lei 9.605/98 In Revista Brasileira de Ciências Criminais. ano 7. n.25 (jan-mar/99).1999. p. 132. 24) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos – ensaio sobre a punibilidade de pessoas colectivas e entidades equiparadas. Coimbra: Editora, 2008.p.179. 25) Neste sentido, os dizeres de MARCELLO CAETANO quando dos seus comentários sobre a contratação pública: “Mas temos sempre posto em relevo que o interesse público não é um interesse que possa considerar-se próprio da Administração, de que ela disponha como um particular dispõe aquilo que só a ele diz respeito: por isso distinguimos já, nas pessoas jurídicas de direito público, entre os seus interesses pessoais de conservação e expansão, e os transpessoais, que são do público, ou, se se preferir, da colectividade (...) O interesse público é, em relação à Administração, uma ideia transcendente, que não depende dela, pelo contrário, exerce sobre ela o seu império. Desde que a colectividade exija, por virtude de transformações económicas, técnicas, morais ou simplesmente políticas, que os serviços administrativos tomem outro rumo, o caráter instrumental destes, como meios directos ou indirectos de satisfação das necessidades colectivas, impõem adaptação”. Vide: CAETANO, Marcello. Princípios fundamentais do Direito Administrativo.Coimbra: Almedina, 1996. p. 183. 26) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin/ SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (...).p.131. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Pública27, exige na verdade, bastante esforço por parte dos operadores jurídicos na sua delimitação. Se é certo que só na lei está a base desta interpretação28, “(...) nem o legislador está completamente ‘livre’ para definir sozinho estes conteúdos; menos ainda o Executivo e o Judiciário na hora de sua atualização”. Logo, a ideia de “interesse público” pressupõe uma tarefa permanente de atualização, de ponderação29. Na temática ecológica, não há dúvidas que esta ponderação envolve a prevenção e na punição de danos ambientais30. E vejamos que não se trata de mera intuição, mas sim de mandamento constitucional31. Como direito fundamental, o meio ambiente ecologicamente equilibrado demanda um dever-agir protetivo por parte dos indivíduos, da sociedade e do Estado, nas suas diversas ramificações (art. 225, CF), e como missão de natureza pública, afirma-se como substrato do que se desenha por interesse público, traduzindo a prática de ações, jurídicas e materiais, que visem à tutela ambiental32. Ademais, mesmo que o Estado e seus entes equiparados nunca estejam originariamente inclinados ao cometimento de crimes, fato é que em inúmeras situações os praticam. Especialmente quando atuam em contextos férteis à produção de danos/perigos ambientais e quando estão em debate outros interesses (também sociais)33. Assim, seja como agente direto (Estado-Empreendedor, envolvido na construção de empreendimentos hidrelétricos, hidroviários, rodoviários, de aeroportos, de portos, etc.); seja como degradador-conveniente (quando apoia/ legitima projetos que agridem o ambiente, como na expedição de licenças e de autorizações); seja como degradador-omisso (descumprindo ou negligencian27) KRELL, Andreas. Interesse publico (primário) e interesses difusos no direito ambiental In Revista de Direito Ambiental.ano 2011.n.63.p.14. 28) SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt. Interesse público, legalidade e mérito. Coimbra: Dissertação de Doutoramento em ciências político-econômicas da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 1955.p.82. 29) KRELL, Andreas. Interesse público (primário) e interesses difusos no direito ambiental (…).p.28. 30) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público (...).p.332. 31) Na Constituição brasileira de 1988, vide os artigos. 23 e 225. 32) GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de protecção do ambiente. Coimbra: Editora, 2007.p.131. 33) Como nos casos acima referidos em que os Municípios escavam recursos minerais para utilizá-los na construção de estradas, ou seja, para obras de interesse público. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do sua tarefa fiscalizadora de cumprimento da lei ambiental34), o Estado pode cometer (e comete) crimes ecológicos. Notemos que um dos requisitos à punição de pessoas coletivas é que o ilícito ocorra em “benefício do órgão”. Segundo GUILHERME PURVIN afirmar esta possibilidade seria como “(...) negar o próprio Estado Democrático de Direito”, porque o Estado jamais se beneficiaria de um crime. O julgado referido na nota de rodapé 20 apontava no mesmo sentido. Segundo este raciocínio, quando for identificada a prática criminosa do órgão com poderes públicos, os agentes envolvidos é que devem ser punidos porque agiram no desvio de suas finalidades35, não o órgão, pois jamais seria beneficiado com a conduta ilícita. Acontece que se analisarmos os demais julgados indicados concluiremos, ao contrário, que é sim possível um órgão público se beneficiar de situações criminosas. O que ocorre tanto pelo desvio de finalidades públicas, quanto na má escolha das alternativas disponíveis, quando é preterido o ambiente a outros interesses, tanto na destinação diversa de verbas angariadas para fins ambientais, como quando o Estado não é preventivo e não dimensiona tecnicamente suas condutas (não promove estudos de impacto ambiental ou licenciamentos ambientais, por exemplo). No fundo, se dos particulares são exigidas incontáveis condutas preventivas e protetivas sob pena da resposta criminal, não nos soa correto que o Estado e seus entes equiparados, especialmente aqueles de natureza privada com prerrogativas públicas, sejam penalmente eximidos destas obrigações. Nem enten34) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição brasileira. (...).p.135. 35) Como ensina ROGÉRIO SOARES, em algumas situações, os agentes públicos poderão atuar em benefício dos órgãos, mas em situações de falsa necessidade pública, quando o agente mal avalia os interesses propostos pelo legislador (convencido “da presença da uma necessidade pública real, e, todavia, querer usar os poderes concretos que por esse facto a lei pôs ao seu alcance, para conseguir um resultado diferente da satisfação do interesse público”). O poder público aqui atua fora dos seus fins, ainda que dentro dos limites da lei. Ou, ainda, num contexto de desvio de poder (“(…) se se demonstrar que a Administração se serviu dos poderes discricionários para prosseguir interesses (público ou privados) diferentes daqueles que a lei tinha em vista ao concederlhe tal competência discricionária o tribunal anulará o acto praticado por desvio de poder subjetivo. A dificuldade neste caso reside, porém, na prova de que a Administração se motivou por interesses diferentes daqueles que, segundo a lei, a deveriam animar”). Nota-se que o desvio de poder ocorreria quando o agente (i) mal julgando um fim ilegal como legal, por ele se guiasse; e também quando (ii) sabendo da ilegalidade do fim, adotasse-o. Pois o que está em jogo no fundo é a não consecução pelo ente coletivo do interesse específico típico, a não realização do fim da norma. Vide: SOARES, Rogério Guilherme Ehrhardt. Interesse público, legalidade e mérito. (...).pp.168-177. Obra dedicada ao Instituto Terra

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demos que os agentes públicos ajam de maneira criminosa e estejam legalmente escudados pela imunidade do respectivo ente ou pela dificuldade de provar a individualização da conduta, barreira típica em contextos complexos como aqueles das organizações coletivas, públicas ou privadas.36 Significa dizer que o Estado e seus órgãos têm a obrigação de sopesar a questão ambiental nas suas escolhas, justamente em nome do interesse público, o que “(...) desde logo estabelece um dos maiores argumentos favoráveis a responsabilização”37 do Estado e de seus agentes quando atuam em confronto com o ambiente. Reverberando a ideia de que “(...) responsabilizar penalmente todas as pessoas de direito público não é enfraquecê-las, mas apoiá-las no cumprimento de suas finalidade”38, digamos do próprio interesse público. Nas últimas décadas modificaram-se a função pública e a maneira como as tarefas públicas são executadas, tanto na forma quanto no conteúdo. A diferença funcional entre a função pública e a função privada, e a diferença orgânica entre um órgão público e um órgão privado não justificam em si qualquer diferença no tratamento jurídico. Especialmente no âmbito das responsabilidades. Tanto o direito público quanto o direito privado evoluíram no sentido de ampliar os deveres dos sujeitos/órgãos públicos e, no mesmo compasso, aumentar a proteção dos cidadãos39, do que a função e a natureza orgânica destes entes não bastam mais à exclusão de responsabilidades criminais, embora se mantenham como critérios de caracterização e que, em análise com o todo, devem ser levados em conta. É nisto, especialmente, que falha o argumento apontado. O segundo argumento declara que o poder de punir exclusivo do Estado não permite sua autoincriminação. Argumento, no todo, mitigado em relação aos entes de direito privado com prerrogativas públicas. Segundo Sérgio Salomão SHECAIRA, esta seria inclusive a justificativa mais sólida contra a 36) Sobre modelos de edificação da responsabilidade criminal de pessoas colectivas que dispensam “a imputação de um fato ilícito criminal a algum membro dos órgãos sociais, ou até a algum trabalhador subordinado, para fundar a responsabilidade criminal da própria pessoa colectiva”, vide MENDES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente. MENDES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente?Lisboa: Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 2000.pp.22-24. 37) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público (...).p.332. 38) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 18.ed. rev, atual e ampl. São Paulo: Malheiros, 2010.p.747. 39) VERVAELE, J. A. E. La responsabilidad de y en el seno de la persona jurídica en Holanda. Matrimónio entre pragmatismo y dogmática jurídica. In Revista de Derecho Penal y Criminología.2.v.n.1.1998.p.182. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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incriminação dos entes estatais, pois “(...) tendo o Estado o monopólio do direito de punir, não deve sancionar-se a si próprio, perspectiva muito exagerada que levaria a ideia às raias do absurdo”40. Também assim são as palavras de Jorge dos REIS BRAVO, “(...) o Estado enquanto, aparelho politicamente legitimado para deter o monopólio do ius puniendi, converter-se-ia – admitindo-se a sua punibilidade – em órgão auto sancionador, o que seria de todo inédito, revelando de uma de contornos inexplicáveis”41. O argumento nos indica, todavia, uma ideia antiquada de sacralização do Estado42 como insuscetível de correções, especialmente quando a própria lei, emanada do Estado pelo Legislativo, é constantemente sujeita ao controle de constitucionalidade43 pelo Judiciário. O fundamento se choca, ainda, com o comando constitucional de ampla proteção do meio ambiente como direito fundamental, ou seja, como limite ao próprio poder de polícia.44 45 No caso brasileiro, a Constituição traduz em dever de punir todas as condutas atentatórias ao meio ambiente, inclusive na seara penal, “(...) daí que ao Estado não resta mais do que uma única hipótese de comportamento: na formulação de políticas públicas e em procedimentos decisórios individuais, optar sempre, entre as várias alternativas viáveis ou possíveis, por aquela menos gravosa ao equilíbrio ecológico, aventanda, inclusive, a não ação ou a manutenção da integridade do meio ambiente pela via de sinal vermelho ao empreendimento proposto. É desse modo que há de ser entendida a determinação constitucional de que todos os órgãos públicos levem em consideração o meio 40) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.186. 41) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos (...).p.181. 42) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.747. 43) PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes Morales de droit public: fondements et champs d’application In Revue des societies,1993. p.18. 44) “(...) mas também porque os direitos e liberdades fundamentais participam agora, do próprio conceito de ordem pública e constituem limite essencial e intrínseco a toda actividade de polícia”. Vide: GOMES, Carla Amado. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador (...).p.249. 45) Sobre a modificação da intervenção estatal diante da “questão ecológica”: “A complexidade e dinâmica das situações sobre que o Estado tem de intervir por força da ‘questão ecológica’, a dimensão de acaso instalada na acção e a falta de confiança nas relações de causalidade introduziram incerteza na acção estadual. A simplicidade do Estado tradicional, em especial, o seu modelo de polícia regulativa e de direito de polícia, que suportava a acção administrativa agressiva, mostra-se incapaz de fazer frente à realidade”, vide GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente. Coimbra: Almedina, 2007.p.245. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ambiente em suas decisões (art. 225, caput e parágrafo 1º, CF), imbuindo cada uma das suas missões primárias – não por opção, mas por obrigação – da tutela ambiental. No Brasil, o desvio deste dever caracteriza improbidade administrativa e infrações penais e administrativas”46. Sendo assim o próprio Estado de Direito só se perfectibiliza se for permeável, se subordinar-se à lei e também ao controle da sua legalidade, o que traduz invariavelmente um controle jurisdicional, e intitula o Estado e seus entes derivados como “sujeitos”47 de direito. Esta submissão do Estado ao direito ocorre em três planos distintos: “autonomia dos cidadãos juridicamente reconhecida através de liberdades e direitos fundamentais perante o Estado; Estado criado como pessoa jurídica e, logo, detentora de direitos e deveres no seu relacionamento com os cidadãos; organização do poder do Estado fundada na divisão de poderes e no estabelecimento do seu funcionamento segundo normas jurídicas com vista a melhor garantir as liberdades e os direitos fundamentais dos cidadãos”48. Não fosse assim, sentido algum teria a reconhecida autonomia dos tribunais, submetendo à Justiça Estado e cidadãos49. O argumento, como antecipado, falha nestes aspectos. Da mesma lógica do segundo argumento surge o terceiro: a estigmatização da pena criminal. Segundo Sérgio SHECAIRA, pudesse o juiz condenar o Estado e seus órgãos assumiria que ele mesmo (juiz) integra um Estado criminoso.50 Guilherme PURVIN entende como incongruente conceber o Estado como delinquente quando, na verdade, se trata do guardião da paz pública51. No âmbito do direito civil esta costumava ser justamente a tese de defesa do Estado quando acusado da prática de danos aos cidadãos52. A hipótese é hoje 46) BENJAMIN, Antônio Herman. Constitucionalização do Ambiente e Ecologização da Constituição brasileira. (...).p.95. 47) SILVA, Vasco Pereira da. Em busca do acto administrativo perdido. Coimbra: Almedina, 1996. 48) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.279. 49) MANUEL CAVALEIRO DE FERREIRA, Apud SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal das entidades públicas – da inconstitucionalidade dos nºs 2 e 3 do artigo 11 do Código Penal.in Separata de Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Sérvulo Correia, Coimbra: Editora, 2010.p.71. 50) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.186. 51 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (...).p.132. 52 ) Sobre a Responsabilidade Civil dos Poderes Públicos, em resumo: “A responsabilidade do Direitos Humanos e Meio Ambiente

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totalmente superada pela doutrina e pela jurisprudência, inclusive com a responsabilidade objetiva do Estado em algumas situações de risco ambiental. A ideia de ouro é: o Estado de Direito responde por seus atos53. Admitir o Estado, ou qualquer ente público, como penalmente responsável não faz do órgão um “delinquente”. E mais: “(...) a existência de um Estado criminoso, que pratica um ilícito criminal, não transforma a totalidade dos funcionários públicos em agentes criminosos”54. Santiago MIR PUIG diz que a função do direito é a de “(…) asegurar la existencia de la sociedad y sus intereses”, sendo que a isto contribui o direito penal “interponiendo los medios más enérgicos para evitar las conductas que comprometen de forma más grave aquellos fines sociales”55. Logo, e desde já de um ponto de vista da política criminal, é necessária a punição das pessoas jurídicas públicas quando agem de forma comprovadamente ilícita56. Nunca quisemos o mercado empresarial formado por “criminosos” e nem por isto deixamos de considerar as pessoas jurídicas da iniciativa privada passíveis de resposta penal. Portanto a lógica do terceiro argumento não se sustenta, pois não é o rótulo que a sanção carrega que determina sua (des)necessidade, mas antes, a necessidade ou não está imbricada na demanda qualitativa e quantitativa de proteção que exige o bem jurídico alvo da norma. Nesse sentido, num Estado fundado em garantias57, é incorreta e antiquada Estado e restantes entidades públicas é hoje um elemento essencial e estruturante do sistema de proteção constitucional, comunitária e internacional do particular perante os poderes públicos, constituindo não só uma garantia institucional, como um verdadeiro direito fundamental, directa e imediatamente invocável pelos particulares. Trata-se de uma forma adicional de tutela dos direitos fundamentais dos cidadãos, para além das formas de tutela primária, como seja o mecanismo da fiscalização da constitucionalidade”. Vide: FONSECA, Guilherme da; CAMARA, Miguel Bittencourt da. A responsabilidade civil dos poderes públicos – a responsabilidade do legislador, do ‘juiz’ e da administração pública – a ação contra o Estado. Coimbra: Editora, 2013.p.72. Ainda sobre o tema, vide os argumentos de Etienne Picard: PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes morales de droit public (...).pp.1/2. 53 ) CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estado de Direito – cadernos democráticos.n.7.Lisboa: Gradiva, 1999.pp.67/68. 54 ) M  ACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.746. 55 ) MIR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal – colección maestros de derecho penal, n.5.2.ed.Buenos Aires: B de F Editorial, 2007.p.52. 56 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal (...).p.70. 57 ) CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2013.p.248. Obra dedicada ao Instituto Terra

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a concepção do direito penal como “marca” estigmatizante58 do sujeito (pessoa física ou jurídica). Se a penalização se justifica contra alguns entes coletivos, no mínimo é porque os resultados que podem dar causa são potencialmente danosos a bens juridicamente protegidos e de relevante interesse social, sendo inaceitável que se ponha de lado contra aqueles de direito público, em razão das características do agente (pessoa física/jurídica, de natureza pública/privada). Especialmente quando este sujeito-agente, Estado e equiparados, tem a obrigação constitucional de agir de forma ambientalmente exemplar, e se submete aos olhos fiscalizadores dos cidadãos. Por fim, como quarto argumento contrário à responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público deparamo-nos com a inaplicabilidade das penas previstas em lei59. Na nossa visão, trata-se de argumento consistente, não só porque enfrenta as dificuldades de efetivação das funções da pena, como também porque identifica que, em havendo responsabilização penal do Estado, tanto os danos quanto as sanções penais serão revertidos contra a sociedade. Segundo acentuam Sérgio Salomão SHECAIRA e Édis MILARÉ60, “(...) ou a pena é inócua, ou então, se executada, prejudicaria a própria comunidade beneficiária do serviço público”61. Também Etiénne PICARD, em artigo paradigmático sobre a questão, é enfático ao denominar de “effet boomerang” este repasse aos cidadãos dos efeitos da condenação penal do Estado.62 A sociedade seria duplamente prejudicada, não só pela ação/omissão danosa como também pela pena imposta. Entretanto, olhando a fundo, notamos que a isto se assemelham os casos de responsabilidade das pessoas jurídicas em geral, quando, por exemplo, são repassadas as sanções (especialmente pecuniárias) impostas na sentença penal aos sócios/acionistas e estes, de fato, não são culpados e nem participaram dos atos criminosos. Esta semelhança de cenários demonstra a dificuldade de

58 ) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público (...).p.341. 59 ) Ilustrativamente, vale referir o trabalho acurado sobre as penas impostas pela lei espanhola às pessoas coletivas In SILVA SÁNCHEZ, Jesús-María; MONTANER FERNÁNDEZ, Raquel Los delitos contra el medio ambiente. Barcelona: Atelier libros jurídicos, 2012. 60 ) MILARÉ, Édis. A nova tutela penal do ambiente In Revista de Direito Ambiental. ano.4. n.16, out/dez, 1999.p.101. 61 ) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.187. 62 ) PICARD, Etienne, La responsabilité pénale des personnes morales de droit public (...).p.18. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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adaptação do instituto aos esquadros da teoria penal63, não se tratando de especificidade dos órgãos públicos, mas sim da já reconhecida dificuldade de aplicação de princípios basilares (como é o caso do princípio da culpa64 65) ao instituto da responsabilidade penal de pessoas jurídicas. Ao afirmarmos que os efeitos da sentença penal significam danos à sociedade, restará por saber: 1) Se sempre que houver uma sanção penal haverá um consequente repasse à sociedade; 2) Se sim, se será sempre um repasse danoso; 3) Em sendo danoso, se é preferível a punição apenas dos agentes públicos quando uma conduta de dano/ameaça ao meio ambiente for comprovada. Pelo exame das hipóteses de pena e também em conformidade com os argumentos acima traçados, nos parece que sancionar penalmente um órgão público, uma vez que haja a incriminação penal contra pessoas jurídicas privadas, é medida que se impõe inclusive em benefício da sociedade. Explicamos. As possíveis penas imputáveis no Brasil aos entes coletivos estão descriminadas nos artigos 21, 22, 23 e 24 da lei 9.605/98. Esquematicamente são de cinco tipos: (i) a multa; (ii) restritivas de direitos (suspensão parcial ou total de atividades; interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade; proi63 ) Nesse sentido: GÁNDAJA, Beatriz Vallejo de la. El sujeto del derecho penal económico y la responsabilidade penal y sancionatória de las personas jurídicas: derecho vigente y consideraciones ‘de lege ferenda’. in BACIGALUPO, Enrique (director). Curso de Derecho Penal Económico. Barcelona: Marcial Pons, 1998.p.57. 64 ) Sobre o tema, vide o posicionamento de PAULO DE SOUSA MENDES, ainda antes da Reforma do Código Penal português, com referências às teorias desenvolvidas sobre o instituto. MENDES, Paulo de Sousa. Vale a pena o direito penal do ambiente?(...).pp.19-25. 65 ) GÓMES-JARA DÍEZ, adotando modelo construtivista que busque funcionalmente equivaler a culpabilidade empresarial à individual, ainda que distintas, aponta a problemática: “Dentro os diferentes problemas que apresenta a instauração de um modelo de responsabilidade penal empresarial, a determinação da culpabilidade empresarial goza de uma posição privilegiada. Não em vão a impossibilidade de compatibilizar o princípio da culpabilidade com a organização empresarial se mostrou o bastão irredutível da doutrina tradicional, tendo inclusive afirmado que o princípio ‘societas delinquere non potest’foi imposto como expressão do princípio: não há pena sem culpabilidade”. Pode-se, então constatar a existência de vários autores que, apesar de não terem grandes problemas com as outras categorias do crime, demonstram dúvidas quando ao princípio da culpa se referem”. GÓMEZ-JARA, Carlos Díez. A repsonsabilidade penal da pessoa juridical e o dano ambiental – a aplicação do modelo construtivista de autorresponsabilidade à Lei 9.605/98.trad. Cristina Reindolff da Mota. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.p.35. Ainda: “Contudo, para além da assunção da teoria da ficção ou da teoria da realidade como fundamento da natureza jurídica das pessoas colectivas, os problemas em relação à atribuição de responsabilidade penal são derivados dos limites estabelecidos pelo princípio da personalidade da pena e, em decorrência, pelo princípio da culpabilidade (...)” In CARVALHO, Salo de. Penas e medidas de segurança no direito penal brasileiro. (...).p.275. Obra dedicada ao Instituto Terra

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bição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações); (iii) prestação de serviços à comunidade; (iv) extinção ou dissolução; (v) divulgação da sentença condenatória; Sobre a pena de multa, Guilherme PURVIN66 diz que impô-la ao Estado, em nome do Estado, é mero remanejo orçamentário e como o montante sairia dos cofres públicos, o pagamento se resumiria numa prestação paga pela sociedade por um dano também por ela sofrido. Primeiro, por sabermos das homéricas disputas que envolvem a destinação de verbas dentro das esferas administrativas, é inquestionável o caráter sancionador que recairia sobre um órgão que, podendo se beneficiar de determinada destinação orçamentária (por parte do governo central, por exemplo), não o fosse sob a justificativa de mau uso/desvio de finalidade do interesse público. Corroborando este entendimento, apontamos a lei complementar 101/00 (sobre responsabilidade fiscal) que no artigo 51, parágrafo 2º, proíbe os entes de direito público de receber transferências voluntárias e contratar operações de crédito quando houver irregularidade comprovada na administração pública, Depois, frisamos que na responsabilidade civil do Estado a indenização devida é sempre suportada pela própria comunidade (porque paga com dinheiro dos cofres públicos), o que não serve nem de longe de justificativa à não perquirição estatal neste campo jurídico. Advertimos, ainda, que o fato da pena de multa transcender o ente, comunicando-se com seus representados, também ocorre nos casos das pessoas jurídicas de direito privado. Hoje todo o custo com o passivo ambiental decorrente da publicidade com produtos e serviços “verdes”, das licenças ambientais, dos estudos prévios de impacto, das autorizações ambientais exigidas e, até, das multas, são valores comumente incorporados ao preço final dos produtos/serviços e, portanto, repassados aos consumidores. Ainda que aqui sejam consumidores “voluntários” e naquela primeira hipótese, contribuintes-vinculados, o fato se repete. Ademais, na grande maioria dos casos tanto a poluição (externalidade negativa67) quanto o perigo de danos ao ambiente são mais desvantajosos à sociedade do que o valor pago através da multa. Indo além, num contexto hipotético de pouca transparência na destinação das verbas públicas e de acentuada desconfiança dos particulares na atuação dos órgãos públicos, a 66 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (...).p.133. 67 ) GARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.158. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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imposição de multa predestinada ao Estado serviria inclusive como orientação de parte de suas contribuições à causa ambiental, o que, ao fim, minimizaria os danos sofridos pela sociedade. Já quanto às penas restritivas de direitos argumenta-se que não poderiam ser aplicadas a quem têm por fim originário a sua prestação, forte no princípio de continuidade e da eficiência do serviço público. Ou seja, as atividades estatais não podem ser interrompidas porque representam a própria tarefa pública. Logo, quando uma pena restritiva de direitos impõe o embargo de obra ou a interrupção de atividade, em linhas gerais, interromperia a execução do serviço social. Acontece que as penas restritivas de direitos devem ser adaptadas à atividade debatida. Porque quando falamos em punir um ente coletivo de direito público pressupomos que a atividade por ele exercida tenha violado ou viole um bem ecológico juridicamente protegido. Ou seja, pressupomos que a atividade revestida de poder público tenha/esteja prejudicando a sociedade através do ambiente. Nestes casos, suspender ou interditar é ato obrigatório, sem impedimento algum que o ente público siga suas atividades/obras regulares. O mesmo se daria na proibição de contratação com o poder público. Um ente equiparado ao Estado não poderia ser tolhido da sua capacidade de prossecução do interesse público. Todavia, as contratações entre órgãos públicos são variadas (recursos, subvenções, doações) e abarcam muitos interesses próprios da organização, como no caso de financiamentos específicos para obras, especialmente em épocas de eleição. Seria o caso de admitir esta sanção contra o Estado e os demais entes públicos pelo não repasse, por exemplo, de benefícios por parte do governo central para um município, desde que mantidos os repasses para saúde, educação, segurança pública, ou seja, desde que mantida a autossuficiência básica do órgão estatal68. Com relação à prestação de serviços à comunidade, o argumento contrário à sanção dos entes coletivos públicos circunscreve-se à sua própria função. Guilherme PURVIN diz que os deveres estatais de proteção ambiental não poderiam ser considerados substrato da pena69. Quer dizer que quando o Judiciário manda um órgão do Executivo custear programas e projetos ambientais, recuperar áreas degradadas, promover a manutenção de espaços públicos, contribuir com entidades ambientais, ou seja, que atue 68 ) MENDES, Samuel Santos Felisbino. A responsabilidade penal da pessoa jurídica de direito público (...).p.337. 69 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (...).p.134. Obra dedicada ao Instituto Terra

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da forma descrita na lei ambiental, gera uma intromissão de poderes. Contudo, são discutidos aqui casos em que um ente coletivo, devendo agir num sentido predeterminado por lei, e de maneira que não agrida o meio ambiente (norma constitucional) atua em sentido oposto ou desvirtuado. Logo, a determinação de prestação de serviço à comunidade seria sim possível, mas nunca poderia ultrapassar os deveres impostos pela lei que, restringindo-se à prevenção de danos, à reposição ou à compensação ambiental. Não se trataria de ingerência entre poderes, mas do cumprimento da própria norma (constitucional) em benefício da sociedade e do ambiente (interesse público). Por fim, quanto à possibilidade de extinção ou dissolução das pessoas jurídicas de direito público a regra de que são entes criados por lei e que só podem ser extintos por lei, jamais por decisão judicial, fica prejudicada nos casos de privatização do serviço público, quando os entes de natureza privada estão meramente instrumentalizados na atividade administrativa, mas não foram criados por lei. Nas demais situações, em se tratando de entes de natureza formaljurídica pública, não poderia jamais ser aplicada.70 Frisamos, ainda, que a pena de divulgação da sentença condenatória é pedra angular do sistema de responsabilidade penal de entes coletivos71, repousando sua eficácia no abalo da imagem do órgão. Neste domínio, a divulgação de sentença condenatória contra um ente público cumpre papel ainda mais especial porque serve à fiscalização dos cidadãos quanto à gestão dos interesses e bens coletivos pela administração pública, especialmente nos casos de turismo ecológico, por exemplo, ou de entes direcionados à proteção ambiental72. 70 ) Germano MARQUES DA SILVA advogando expressamente pela possibilidade de responsabilizar penalmente as concessionárias de serviços públicos (art. 11.º, b) do Código Penal) e outras entidades que exerçam prerrogativas de poderes públicos (art. 11.º, c) do Código Penal), refere como “(...) razoável que às entidades públicas empresariais não seja aplicável a pena de dissolução, porventura também a multa, e as penas acessórias previstas pelas alíneas b/ a e/ do art. 90.º-A do Código, já consideramos não haver razão para que não possam ser responsabilizadas criminalmente e lhes possam ser aplicadas as penas substitutivas da multa e as penas acessórias de injunção judiciaria e publicidade da decisão condenatória”, vide: SILVA, Germano Marques da. Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes. Lisboa/São Paulo: Verbo, 2009.p.214. 71 ) SHECAIRA, Sérgio Salomão. Responsabilidade penal da pessoa jurídica.(...).p.118. 72 ) Na Holanda, a responsabilidade dos entes coletivos é reconhecida há algum tempo (introduzida no Código Penal desde 1976) e de forma bastante ampla, incluindo o Estado. Segundo VERVAELE, na exposição de motivos do Código Penal holandês, é referido expressamente que “(...) no es prudente excluir las actividades punibles (de las empresas) de los órganos o instituciones de Derecho publico, porque esto podría considerarse injusto, es decir, contrario al principio de igualdad (…)” (p.177). São julgamentos paradigmáticos, apesar do tempo transcorrido, aqueles dos municípios de Urk (1992) (Tribunal Supremo, de 8 de julho de 1992, Direitos Humanos e Meio Ambiente

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A partir deste sucinto exame sobre penas, estamos de acordo que o direito penal “(…) no sólo debe ofrecer garantías al individuo, sino también su protección frente al delito, es un postulado que ha de seguir defendiendo en un régimen político al servicio del ciudadano”73. Em expressão máxima de um Estado Democrático no qual a sociedade detenha meios transparentes, isonômicos e eficazes de impor limites à ação Estatal, seja na sua face punitiva, seja como agente interventor econômico, seja como agente degradador do ambiente. Motivo pelo qual a mera previsão inadequada ou imperfeita de penas não acarreta a sua impossibilidade de aplicação, quanto menos a sua desnecessidade. Especialmente quando se verifica que o Estado e seus entes equiparados podem cometer e repetidamente cometem ilícitos, notadamente num cenário político-criminal que pune as pessoas jurídicas de direito privado. Caberá ao juiz, identificado o dano/a ameaça adaptar as hipóteses de pena às pessoas jurídica de direito público74, na medida da legalidade. Como a pena imposta nestes casos sempre pesará na sociedade, ainda que minimamente, nunca deverá ser mais agressiva do que o próprio dano já causado. O julgaNJ 1993,12) e de Vlissingen (1995), em que os municípios foram condenados por organizar leilões públicos de peixadas violando as quotas de pesca estabelecidas na lei. A conduta criminosa não ocorreu no decurso da gestão de tarefa pública, como é evidente, mas sim de uma prática meramente comercial, o que serviu de justificativa ao tribunal superior (Tribunal Supremo) para manter as condenações de primeiro grau, que no caso de Vlissingen havia sido estabelecida em 16 mil florins. Já o caso Volkel (Tribunal de ‘s-Hertogenbosch, 1 de fevereiro de 1993, NJ 1993, 257), tratou de sistemático derramamento de querosene no solo do aeroporto da base militar da cidade, pelo vazamento de tanques de combustível das aeronaves oficiais, em verdadeira omissão por parte das autoridades públicas para com o ambiente. A lei do solo determinava obrigação preventiva expressa contra as contaminações deste tipo, ponderando, que em caso de dolo comprovado, não se trataria de mera contravenção, mas sim de crime. O Ministério da Defesa justificava seu descuido sob a alegação de que a atividade exercida no aeroporto era de interesse público. Nos primeiros eventos identificados pelas autoridades fiscalizadoras, o processo penal pode ser evitado mediante acordos com a acusação (transações), mas diante da reincidente omissão e da constante afetação ao ambiente, a ação penal foi intentada e o Tribunal de primeira instância condenou simbolicamente o município. Significa dizer, o tribunal não impôs qualquer pena além da publicação da condenação “por desnecessidade de punição” (BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos (...).p.182). O Estado recorreu da sentença, evidenciando o desconforto com a publicação. O Tribunal Superior, entretanto, acolhendo os argumentos da defesa, considerou a sentença condenatória nula justamente na parte em que declarava a responsabilidade penal do ente público (Tribunal Supremo, de 25 de janeiro de 1994, NJ 1994, 598 (C) MenR 1994 - Del. Vliegbasis Volkel). Segundo o acórdão, os atos do Estado se supõem dirigidos para a defesa do interesse geral, e com isto foi reconhecida a imunidade penal absoluta no âmbito jurisprudencial aos entes coletivos públicos. 73 ) M  IR PUIG, Santiago. Introducción a las bases del derecho penal (...).p.107. 74 ) M  ACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro (...).p.746. Obra dedicada ao Instituto Terra

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dor levará em conta, ainda, os demais interesses em causa (interesses públicos de extrema relevância), bem como as alternativas ao alcance do ente coletivo público que não a conduta equivocada escolhida. Assim, realizará o julgador a diferenciação necessária e realista entre os entes públicos e privados, considerando peculiaridades contextuais, orçamentárias, funcionais e orgânicas, sem, contudo, imunizar qualquer um deles, o que é claramente contrário ao mandado constitucional de proteção ambiental ampla, e dissonante dos demais institutos jurídicos, como o da responsabilidade civil.

3.2) Outros problemas da responsabilização penal

diferenciada entre entes coletivos públicos e privados: (1) o desequilíbrio concorrencial (2) o estímulo a relações simuladas e (3) os casos de monopólio do Estado

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O tratamento diferenciado da lei penal em relação aos entes coletivos, a partir dos critérios de sua natureza (pública ou privada) ou de suas funções (prerrogativas de poderes públicos) traz outros problemas para além daqueles acima identificados. O primeiro foi desenvolvido de forma irretocável por Teresa SERRA e diz respeito ao papel do Estado de agente econômico ativo, especialmente em contextos concorrenciais com a iniciativa privada. Os órgãos públicos em inúmeras realidades superam a característica de instrumentos do Estado na persecução do interesse público75 e atuam como reais interventores comerciais, industriais, econômicos. Estes novos fins e estas novas modalidades do ente estatal (direta ou indiretamente) suscitam a questão “(...) se, na medida em que intervém em plano de igualdade – real ou virtual -, com os cidadãos, não deverá beneficiar do mesmo estatuto jurídico destes, quando surja um litígio (...)” 76. Teresa SERRA lembra que “(...) esta participação na actividade econômica, não raras vezes em concorrência com entidades privadas (como sucede ainda actualmente na banca, no sector financeiro e nos transportes, por exemplo) cria um

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risco óbvio da práctica de infrações para as quais está cominada uma pena” 77. São domínios férteis à prática de crimes, como no caso das atividades potencialmente perigosas ao ambiente. Ressalta a autora que “(...) foi certamente a importância da actividade económica do Estado e demais pessoas colectivas públicas que levou o legislador a sujeita-las também ao direito da concorrência, em igualdade de circunstâncias com o setor privado e cooperativo”78, o que por analogia de contextos justificaria sua incriminação no domínio ambiental, pois as questões que abarca estão diretamente relacionadas aos custos de mercado (externalidades ambientais) e à dimensão concorrencial que a internalização destes custos gera. Como segundo problema, ao discriminar os entes coletivos em razão da natureza, pública e privada, a lei penal incentiva um agir contrário ao interesse público. Vejamos como. Uma primeira hipótese trazida pela Teoria da Gestão Pública identifica casos em que o interesse público é capturado pelo interesse privado79, sem dispor o Estado de mecanismos eficazes para se proteger desta captura. Segundo revela, uma visão “desassombrada do Estado” permitiria vê-lo, “na crueza da realidade dos fatos”, como campo fértil aos interesses privados80. De fato, não são poucas as denúncias neste sentido, sendo permanente a busca por mecanismos transparentes de fiscalização e de orientação da administração pública para além da norma. Quando a lei penal isenta principalmente os órgãos privados dotados de poderes públicos e criminaliza entes coletivos da iniciativa privada, incentiva uma relação promíscua de captura de interesses, de busca do agente privado pela “carapuça” da lei penal que dispõem os órgãos públicos. Simula o ente privado situações que lhe permitam livremente perquirir seus interesses – privados – revestidos em “poderes públicos”. Isentar a tutela penal dos entes coletivos de direito público significa, no nosso sentir, um abandono da proteção ambiental a este jogo econômico81. Também originária da análise econômica do Direito, a Teoria da Agência82 77 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal (...).p.70. 78 ) SERRA, Teresa; SÁNCHEZ, Pedro Fernández. A exclusão de responsabilidade criminal (...).p.70. 79 ) G  ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.223.

75 ) FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin; SILVA, Solange Teles da. Responsabilidade penal das pessoas jurídicas de direito público (...).p.135. 76 ) BRAVO, Jorge dos Reis. Direito Penal dos Entes Colectivos (...).p.173. Direitos Humanos e Meio Ambiente

80 ) G  ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.223. 81 ) G  ARCIA, Maria da Glória F. P. D. O lugar do direito na proteção do ambiente (...).p.245. 82 ) Associando a Teoria da Agência com a contratação pública vide: RAIMUNDO, Miguel Obra dedicada ao Instituto Terra

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identifica casos em que há uma relação juridicamente legítima entre um sujeito denominado “principal” impossibilitado de concretizar determinado fim, busca a sua realização através de outro sujeito denominado “agente”. Esta teoria tem o mérito de demostrar que o “agente”, ainda que se justifique na relação por otimizar os fins do sujeito “principal” (Estado ou órgão equiparado – para tornar mais eficiente a administração pública), age em alguns casos em nome de seus próprios interesses, pois não só dispõe do poder de diligência da atividade, que é justamente o que motiva a relação, como ainda domina as informações relacionadas. Haverá nestes casos uma assimetria de informações entre o “agente” e o “principal” e a partir daí um desvirtuamento do que justifica a relação jurídica entre ambos (o fim do “principal”), o que direcionaria a prestação tão somente à realização dos interesses do “agente”, sem que o “principal” sequer se dê por conta, pois desinformado e impossibilitado de sabê-lo. Acreditamos que quando a lei isenta os entes imbuídos de poderes públicos da persecução penal e, por outro lado, criminaliza os entes coletivos da esfera privada, estimula que estes últimos transformem-se em “agentes” (pessoa jurídica privada que se revestirá de prerrogativas públicas), relacionando-se com um principal-Estado diante da possibilidade de ludibriar a administração pública na realização de interesses, no fundo, exclusivamente privados. Por fim, há casos em que o Estado detém o monopólio de uma atividade potencialmente perigosa (conforme art. 177 da CF83). Excluir a responsabiliAssis. A formação dos contratos públicos – uma concorrência ajustada ao interesse público. Lisboa: AAFDL, 2013.p.362. 83 ) Art. 177. Constituem monopólio da União: I - a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos fluidos; II - a refinação do petróleo nacional ou estrangeiro; III - a importação e exportação dos produtos e derivados básicos resultantes das atividades previstas nos incisos anteriores; IV - o transporte marítimo do petróleo bruto de origem nacional ou de derivados básicos de petróleo produzidos no País, bem assim o transporte, por meio de conduto, de petróleo bruto, seus derivados e gás natural de qualquer origem; V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados. V - a pesquisa, a lavra, o enriquecimento, o reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios e minerais nucleares e seus derivados, com exceção dos radioisótopos cuja produção, comercialização e utilização poderão ser autorizadas sob regime de permissão, conforme as alíneas b e c do inciso XXIII do caput do art. 21 desta Constituição Federal. § 1º O monopólio previsto neste artigo inclui os riscos e resultados decorrentes das atividades nele mencionadas, sendo vedado à União ceder ou conceder qualquer tipo de participação, em espécie ou em valor, na exploração de jazidas de petróleo ou gás natural, ressalvado o disposto no art. 20, § 1º. § 1º A União poderá contratar com empresas estatais ou privadas a realização das atividades previstas nos incisos I a IV deste artigo observadas as condições estabelecidas em lei. § 2º A lei a que se refere o § 1º disporá sobre: I - a garantia do fornecimento dos derivados de Direitos Humanos e Meio Ambiente

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dade dos entes coletivos públicos nestes casos significaria, em última instância, endossar uma lacuna na tutela penal de determinados bens ambientais. Permitir a resposta penal dos entes públicos, uma vez aceita contra os entes privados, é uma forma de transparecer e de direcionar a boa administração pública, quiçá de prevenir condutas corruptas, e, em qualquer caso, de valorizar a ética ambiental. Porque ainda que a sociedade seja indiretamente prejudicada com estas condenações, no limite da sanção estipulada, ela será direta e amplamente afetada pelo descaso dos órgãos públicos com o ambiente, em algumas situações ilimitadamente. Fato que o direito penal não pode ignorar.

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Conclusão

Do apanhado acima, concluímos que na marcha da responsabilização penal, a marca é da cautela no que se refere às pessoas coletivas de direito público. Pontuamos, ainda, que: 1. No Brasil, nem a Constituição (art. 225, caput e parágrafo 3º) e nem a lei 9.605/98 diferenciaram os entes coletivos a que a tutela penal se destina. Com isto, deixaram a segurança jurídica de lado. O branco normativo deu margem a diferentes posicionamentos na jurisprudência e na doutrina. E como são poucos os julgados que tratam a matéria (sendo certo que os tribunais superiores sequer se manifestaram sobre o tema), não encontramos nenhuma sentença condenatória contra entes públicos, já que as sanções penais são direcionadas apenas às pessoas jurídicas de direito privado ou, no limite, àquelas que atuam em nome do poder público. 2. Na doutrina, boa parte dos autores é contrária à diferenciação de tratamento penal entre organismos públicos e privados, especialmente no caso petróleo em todo o território nacional; II - as condições de contratação; III - a estrutura e atribuições do órgão regulador do monopólio da União; § 2º - A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional. § 3º A lei disporá sobre o transporte e a utilização de materiais radioativos no território nacional. § 4º A lei que instituir contribuição de intervenção no domínio econômico relativa às atividades de importação ou comercialização de petróleo e seus derivados, gás natural e seus derivados e álcool combustível deverá atender aos seguintes requisitos: I - a alíquota da contribuição poderá ser: a) diferenciada por produto ou uso; b) reduzida e restabelecida por ato do Poder Executivo, não se lhe aplicando o disposto no art. 150,III, b; II - os recursos arrecadados serão destinados: a) ao pagamento de subsídios a preços ou transporte de álcool combustível, gás natural e seus derivados e derivados de petróleo; b) ao financiamento de projetos ambientais relacionados com a indústria do petróleo e do gás; c) ao financiamento de programas de infra-estrutura de transportes. Obra dedicada ao Instituto Terra

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de entes empresariais com prerrogativas públicas. Isto porque, as formas de atuação do Estado, a gestão de suas tarefas, e até mesmo a configuração e a administração de seus custos (eficiência administrativa) o aproximaram exatamente dos órgãos privados. 3. Na base da incriminação penal-ambiental de pessoas jurídicas está a busca da proteção eficaz do meio ambiente, englobando todos os potenciais degradadores. Neste domínio, tanto empresas da iniciativa privada quanto órgãos do Estado, e ele mesmo, são interventores ecológicos constantes, especialmente quando atuam em contextos mercadológicos e econômicos nos quais há evidente perigo ao meio ambiente. Em outras situações os órgãos com poderes públicos concorrem com a iniciativa privada, cujo passivo ambiental representa custo altíssimo. Logo, qualquer diferenciação simplificada entre os entes públicos e privados pela norma penal seria injusta e desigual. 4. Os argumentos trabalhados, contrários à incriminação de órgãos públicos, não inovam nas barreiras típicas à responsabilidade penal de pessoas jurídicas em geral. Assim, nenhum dos argumentos identificados na doutrina e na jurisprudência convenceu-nos da desnecessidade de punição dos entes coletivos públicos, uma vez aceita a responsabilidade penal dos privados, especialmente quando se identificam, orgânica e funcionalmente, e, ainda mais, quando com eles concorrem em incontáveis nichos de mercado. Da sua análise traçamos as seguintes ponderações: 4.1. primeiro argumento: a constante realização do interesse público direciona ao tratamento idêntico dos entes coletivos, pois a proteção contra danos ao meio ambiente é substrato evidente do interesse social. Comprovamos que o dano ambiental pode ser revertido em benefício dos órgãos públicos, na minimização de custos, de tempo ou de esforços dos agentes, quando houver destinação diversa de verbas predirecionadas a programas ecológicos, e até mesmo quando o ambiente for preterido a outro bem de interesse social. 4.2. segundo argumento: o poder estatal de punir não impede que o Estado fiscalize e sancione suas condutas, mas antes a formatação do Estado de Direito impõe uma constante resposta deste por seus próprios atos e por suas responsabilidades. Este segundo argumento inclusive foi utilizado durante anos para justificar a não responsabilização civil do Estado, hoje amplamente aceita na doutrina e na jurisprudência. 4.3. terceiro argumento: a legitimidade da pena contra os entes coletivos está na identificação fática e jurídica - provas de materialidade e autoria do crime contra o ambiente - independentemente das características dos autores (pessoas físicas/jurídicas, de direito público/privado). Logo, quando um juiz condena o Estado – campo objetivo de análise - não assume com isto que faça Direitos Humanos e Meio Ambiente

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parte de um órgão “criminoso” - campo subjetivo de análise. 4.4. quarto argumento: as penas hoje previstas às pessoas jurídicas (multa, restritiva de direitos - suspensão parcial ou total de atividades, interdição temporária de estabelecimento, obra ou atividade -, proibição de contratar com o Poder Público, bem como dele obter subsídios, subvenções ou doações, e a prestação de serviços à comunidade) devem ser moldadas aos entes públicos. O que poderia ser feito, enquanto não tisnado em lei, pelo próprio julgador no caso concreto, nos seguintes moldes: A) Tanto o dano causado pelo agir criminoso do órgão público, quanto os efeitos da correlata sanção penal seriam revertido à coletividade. Entretanto, o custo da poluição, por exemplo, é maior e mais imprevisível do que os custos de eventual e delimitada multa. Neste sentido, as penas aplicadas não deveriam ser mais gravosas do que os danos causados pela conduta ilícita; B) A publicação da sentença é das penas que mais preocupam os órgãos públicos, especialmente aqueles voltados à questão ambiental e que dependem (economicamente) da sua boa imagem, como no caso dos destinos turísticos ambientais, por exemplo. A condenação publicada contribuiria, também, à fiscalização da gestão pública. C) Diante de uma possível condenação, todos os interesses sociais em conflito necessariamente deveriam ser avaliados, bem como as alternativas de conduta do órgão público, se existiram ou não, aplicando-se uma regra de proporcionalidade à decisão. D) A pena de extinção não seria adaptável aos órgãos públicos, pois somente podem ser extintos por lei, exceção feita àqueles com natureza privada e prerrogativas públicas. 5. Há situações nas quais o interesse público é preterido a interesses políticos ou privados, em benefício do próprio ente público, são casos em que diferenciar a aplicação da lei serve de incentivo a simulações, como apontado pela Teoria da Gestão Pública - interesses privados capturam o interesse público, não podendo o Estado “proteger-se” - e pela Teoria da Agência - entes privados buscam relações promíscuas com os órgãos públicos em busca de isenção normativa, ainda que sejam relações juridicamente legitimadas. E ainda nos casos de monopólio do Estado sob um elemento ambiental, quando a isenção normativa se traduziria em desproteção absoluta deste bem específico. 6. Por fim, se realmente acreditamos num estágio de educação/conscientização ecológica enraizada em todos os ângulos da sociedade (dos indivíduos ao Estado), os largos passos caberão justamente aos sujeitos com poderes públicos – porque constitucionalmente legitimados e obrigados - sendo verdadeiros exemplos, e cunhando, não só os seus fins (interesse público), mas especialmente os meios escolhidos para atingi-los (tarefas públicas) com a marca das reais demandas sociais, incluído aí, inegavelmente, o cuidado com o que sobrou deste nosso planeta. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Causas Excludentes de Nexo Causal: Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro Camila Pedroni Ribeiro1 Faculdade de Direito de Vitória Cristina Grobério Pazó2 Faculdade de Direito de Vitória

Sumário: Introdução. 1 Ponderações sobre Meio Ambiente e

Direito Ambiental. 1.1 Dano ao Meio Ambiente. 2 Responsabilidade civil. 2.1 Responsabilidade subjetiva e objetiva.

3 Responsabilidade

civil no Direito Ambiental. 3.1 Princípios do Direito Ambiental.

3.1.1 Princípios da Prevenção e da Precaução. 3.1.2 Princípio do poluidor-pagador. 3.2 Responsabilidade objetiva. 4 Excludentes da responsabilidade civil no Direito Ambiental. Conclusão

1) Graduanda do 9º período do curso de Direito da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, nº 779, Santa Lucia, Vitória – ES, CEP 29056-919. 2) Doutora em Direito pela Universidade Federal de Goiás – UFG. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Graduada em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo – UFES. Professora da Faculdade de Direito de Vitória – FDV. E-mail: [email protected]. Endereço: Rua Juiz Alexandre Martins de Castro Filho, nº 779, Santa Lucia, Vitória – ES, CEP 29056-919.

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Causas Excludentes de Nexo Causal: Aplicabilidade no Direito Ambiental Brasileiro

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Introdução

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O meio ambiente está intimamente ligado à relação do homem e dos outros animais com a natureza. O meio ambiente é o local onde se desenvolve a vida humana, a partir das relações do homem com os outros animais e com o próprio meio ambiente. De acordo com essa noção, a lei 6.938 de 1981, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, definiu, para seus fins, o meio ambiente como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Por isso, é importante sua proteção, para que todos possam ter qualidade de vida. Entretanto, a relação do homem com o meio ambiente pode se dar de maneira desordenada, de forma a alterá-lo significativamente, inclusive provocando danos. É a partir desta ideia que surge a noção de responsabilidade civil por dano ambiental. A Carta Magna de 1988 trouxe, no artigo 225, §3º, a previsão de reparação de danos causados ao meio ambiente, bem como de sanções aos infratores que praticarem condutas consideradas lesivas ao meio ambiente. No mesmo sentido, a lei 6.938, trouxe, anteriormente, a reparação e a indenização dos danos causados não só ao meio ambiente, mas a terceiros também, independentemente da existência de culpa. A partir disso, fica claro que a intenção do legislador é a ampla proteção ao meio ambiente, atribuindo, inclusive, a responsabilidade civil objetiva ao causador do dano ambiental, ou seja, “não se pergunta a razão da degradação para que haja o dever de indenizar e/ou reparar”3. A concepção de responsabilidade civil objetiva é pautada na teoria do risco, o que significa dizer que, simplesmente porque a atividade tem a probabilidade de causar danos, quem exerce a atividade perigosa deve assumir seus riscos e reparar os danos decorrentes de tal atividade. A teoria do risco possui algumas subdivisões, quais sejam: risco-proveito, risco profissional, risco excepcional, risco criado e risco integral. De acordo com algumas dimensões da teoria do risco, seria possível a aplicação das excludentes de responsabilidade e de acordo com outras não haveria essa possibilidade. Tais excludentes, no âmbito da responsabilidade civil objetiva, podem abranger o campo do dano, do nexo causal, da ilicitude do ato ou, ainda, da prescrição, de forma que, se aplicadas, ocorrerá a exclusão da responsabilidade civil. 3) MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito ambiental brasileiro. 21. ed. rev., ampl. e atual., de acordo com as leis 12.651/2012 e 12.727/2012 e com o decreto 7.830/2012. São Paulo: Malheiros Editores, 2013. p. 404. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Dito isto, surge o seguinte questionamento: é possível a aplicação das excludentes de responsabilidade civil por dano ambiental? O objetivo desta pesquisa é verificar a aplicabilidade das excludentes, apresentando solução coerente com a legislação nacional e adequada à importância do meio ambiente ecologicamente equilibrado para garantir a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações.

1) Ponderações Sobre Meio Ambiente e Direito Ambiental O termo “meio ambiente” é bastante amplo e gera diversas discussões, como o âmbito de sua abrangência e até mesmo se sua denominação está correta de acordo com as normas da língua portuguesa. Luís Paulo Sirvinskas4 e José Afonso da Silva5 são dois dos doutrinadores que entendem que a palavra “ambiente” está inserida no conceito de “meio”, de forma que a expressão “meio ambiente” resultaria em pleonasmo, que é a repetição de palavras com o mesmo sentido. Marcelo Abelha Rodrigues entende em sentido contrário à maior parte da doutrina. Segundo o referido autor: “Porquanto as palavras ‘meio’ e ‘ambiente’ signifiquem o entorno, aquilo que envolve, o espaço, o recinto, a verdade é que quando os vocábulos se unem, formando a expressão ‘meio ambiente’, não vemos aí uma redundância como sói dizer a maior parte da doutrina, senão porque cuida de uma entidade nova, autônoma e diferente dos simples conceitos de meio e ambiente. O alcance da expressão é mais largo e mais extenso do que o de simples ambiente”6. Entendemos ser correto o apontamento de Rodrigues, pois a expressão “meio ambiente” tem conotação diferente de quando os dois termos que a compõem são utilizados isoladamente. Entretanto, apesar da divergência apontada, fato é que essa expressão é “consagrada na língua portuguesa e pacificamente utilizada pela doutrina, pela

4) SIRVINSKAS, Luís Paulo. Manual de direito ambiental. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 123. 5) DA SILVA, José Afonso. Direito ambiental constitucional. 6. ed. atual. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. p. 19. 6) RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005. p. 64. Obra dedicada ao Instituto Terra

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lei e pela jurisprudência de nosso país”7. Contudo, essa conclusão não torna o uso isolado dos termos “meio” e “ambiente” errado. Feita essa explicação, passamos agora a analisar o conteúdo da expressão “meio ambiente”. A lei 6.938 definiu, em seu artigo 3º, o “meio ambiente” como: “o conjunto de condições, leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas”. Luis Paulo Sirvinskas8 entende que o conceito desse dispositivo legal não é adequado, pois é restrito ao meio ambiente natural, de forma que não abrange todos os bens jurídicos protegidos pelo direito ambiental. Deste modo, é correto o apontamento de José Afonso da Silva9 no sentido de que o “meio ambiente” é “a interação do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas”. Dessa forma, o conceito de “meio ambiente” abrange: o meio ambiente natural, que é integrado pela atmosfera, pelo solo, pela fauna e outros elementos naturais; o meio ambiente cultural, integrado por bens de natureza material e imaterial de valor histórico, artístico, paisagístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico; o meio ambiente artificial, que é formado pelas edificações, equipamentos e alterações provocadas pelo homem; e meio ambiente do trabalho, é formado pelas condições relacionadas ao local de trabalho do homem10. Alguns doutrinadores ainda defendem a inclusão de uma nova classe, que é o meio ambiente genético, como é o caso de Celso Antonio Pacheco Fiorillo11, que entende devida a proteção ambiental do patrimônio genético em decorrência do que dispõe o artigo 225, §1º, II e V, da CF. Tal posicionamento é bastante coerente com a atualidade, já que a engenharia genética está em constante e rápida evolução, permitindo inclusive a utilização de gametas conservados em bancos genéticos para a criação de seres vivos. Assim, essa classificação direciona a formulação de normas que regulam 7) MILARÉ, Édis. Direito do ambiente: a gestão ambiental em foco – doutrina, jurisprudência, glossário. 7. ed. rev., atual. e reform. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 142-143. 8) SIRVINSKAS, 2013, p. 123. 9) DA SILVA, 2007, p. 20. 10) SIRVINSKAS, op. cit., p. 124. 11) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 13. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 83-84. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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a relação do homem com o meio ambiente e de normas que visam a proteção deste. É a partir dessas normas que surge a ideia de direito ambiental, que é bem definido por Édis Milaré12 como o “complexo de princípios e normas coercitivas reguladoras das atividades humanas que, direta ou indiretamente, possam afetar a sanidade do ambiente em sua dimensão global, visando à sua sustentabilidade para as presentes e futuras gerações”. Sirvinskas13 acrescenta que o direito ambiental “é a ciência jurídica que estuda, analisa e discute as questões e os problemas ambientais e sua relação com o ser humano, tendo por finalidade a proteção do meio ambiente e a melhoria das condições de vida do planeta”. Neste sentido, a tutela do meio ambiente pelo direito ambiental pode ser feita de forma preventiva ou repressiva. Na esfera preventiva, o Estado estabelece padrões e regras a serem seguidos, como é o caso, por exemplo, das medidas previstas nos incisos do artigo 225, §1º, da CF. Já na esfera repressiva, o Estado atua, por exemplo, impondo responsabilidades administrativas e penais, independentemente da obrigação de reparar eventuais danos causados, como prevê o artigo 225, §3º, da CF. Portanto, o direito ambiental é a disciplina jurídica estabelecida pelo homem que trata de sua relação com o meio ambiente, bem como de sua proteção, atuando nas esferas preventiva ou repressiva.

1.1) Dano ao Meio Ambiente Diante da importância do meio ambiente, são necessárias normas disciplinando o dano ambiental. Usualmente, o dano é visto como o resultado de uma conduta que diminua o valor de determinado bem jurídico. Na seara do direito ambiental, a noção de dano é bastante abrangente, em decorrência da amplitude do próprio conceito de meio ambiente. Em virtude disso, é difícil apontar um conceito para o que seja dano ambiental. Nem a lei, nem a Constituição estabeleceram o que é o dano ambiental, justamente por causa de sua amplitude. Entretanto, a lei 6.938, de 1981, anterior à atual Constituição, estabeleceu dois conceitos que auxiliam seu entendimento. São eles: degradação da qualidade ambiental e poluição. Segundo o artigo 3º da referida lei, a degradação da qualidade ambiental é 12) MILARÉ, 2011, p. 1062. 13) SIRVINSKAS, 2013, p. 105. Obra dedicada ao Instituto Terra

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a “alteração adversa das características do meio ambiente” e a poluição é a “degradação da qualidade ambiental resultante de atividades que direta ou indiretamente: a) prejudiquem a saúde, a segurança e o bem-estar da população; b) criem condições adversas às atividade sociais e econômicas; c) afetem desfavoravelmente a biota; d) afetem as condições estéticas ou sanitárias do meio ambiente; e) lancem matérias ou energia em desacordo com os padrões ambientais estabelecidos”. A partir desses conceitos, Édis Milaré14 oferece um conceito didático para o dano ambiental. Segundo o autor, “dano ambiental é a lesão aos recursos ambientais, com consequente degradação – alteração adversa ou in pejus – do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida”. Já Luís Paulo Sirvinskas15 entende que dano ambiental é “toda agressão contra o meio ambiente causada por atividade econômica potencialmente poluidora, por ato comissivo praticado por qualquer pessoa ou por omissão voluntária decorrente de negligência”. Nos filiamos à ideia de Milaré, no sentido de que o dano é a alteração danosa do equilíbrio ecológico e da qualidade de vida, independentemente de ser em decorrência de atividade econômica, pois qualquer pessoa pode praticar a conduta danosa, inclusive pela simples conduta de jogar lixo na rua. Esse dano, como foi visto, afeta o meio ambiente e, consequentemente, o ser humano. O homem pode ser atingido de duas formas: como parte da coletividade ou individualmente. A coletividade é atingida pela simples lesão ao patrimônio ambiental, já que o meio ambiente é indivisível, de forma que as pessoas lesadas são indeterminadas ou indetermináveis, restando configurado, neste caso, o dano ambiental coletivo. Já o dano ambiental individual ocorre quando a conduta lesiva atinge interesses, patrimônio ou saúde de certa pessoa ou de um grupo determinado ou determinável16. Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala17 entendem que o dano tem conceituação ambivalente, justamente por causa desta capacidade de atingir interesses individuais e coletivos, concomitante ou isoladamente. Dito isto, é importante destacar que o dano é elemento e fundamento da

responsabilidade civil, pois é o prejuízo que enseja o direito de reparação ou de ressarcimento, como será visto mais à frente. Ao dano ambiental também pode ser aplicada a bipartição do direito civil: dano patrimonial e dano moral ou extrapatrimonial. O dano patrimonial atinge o patrimônio, constituído de bens corpóreos ou de direitos, que podem ser apreciados economicamente18. No direito ambiental, portanto, é relativo “à restituição, à recuperação ou à indenização do bem ambiental lesado”19. Já o dano moral relaciona-se a lesões a direitos da personalidade do indivíduo, de forma que não tem conteúdo pecuniário e nem pode ser traduzido economicamente20. A responsabilização civil em decorrência de dano moral ambiental é aplicada no direito brasileiro e pode ser observada na jurisprudência, como, por exemplo, no trecho abaixo referente a acórdão de Recurso Especial 1374342/MG, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão, do STJ: “CIVIL. RECURSO ESPECIAL. RESPONSABILIDADE CIVIL. ROMPIMENTO DE BARRAGEM. “MAR DE LAMA” QUE INVADIU AS RESIDÊNCIAS. TEORIA DO RISCO INTEGRAL. NEXO DE CAUSALIDADE. SÚMULA N. 7/STJ. DANO MORAL IN RE IPSA. CERCEAMENTO DE DEFESA. VIOLAÇÃO AO ART. 397 DO CPC. INOCORRÊNCIA. [...] 5. Na hipótese, a autora, idosa de 81 anos, vendo o esforço de uma vida sendo destruído pela invasão de sua morada por dejetos de lama e água decorrentes do rompimento da barragem, tendo que deixar a sua morada às pressas, afetada pelo medo e sofrimento de não mais poder retornar (diante da iminência de novo evento similar), e pela angústia de nada poder fazer, teve ofendida sua dignidade, acarretando abalo em sua esfera moral [...]”21. Assim, fica claro que a responsabilidade civil pode ser constatada havendo dano ambiental individual ou coletivo, moral ou patrimonial.

14) MILARÉ, 2011, p. 1119.

19) LEITE; AYALA, op. cit., p. 94.

15) SIRVINSKAS, 2013, p. 255. 16) MILARÉ, op. cit., p. 1120-1121. 17) LEITE, José Rubens Morato; Ayala, Patryck de Araújo. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial – teoria e prática. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. p. 92. Direitos Humanos e Meio Ambiente

18) CAVALIERI FILHO, Sergio. Programa de responsabilidade civil. 9. ed. rev. e ampl. São Paulo: Atlas, 2010. p. 73. 20) GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil. v. 3, 11. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 105. 21) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 1374342/MG. Disponível em: . Acesso em: 14 abr. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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2) Responsabilidade Civil

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A responsabilidade pode ser pensada como uma forma de reparar algo ou alguma situação modificada indevidamente e que acarretou prejuízo a um indivíduo. Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves22, “destina-se ela a restaurar o equilíbrio moral e patrimonial provocado pelo autor do dano”. Assim, podese entendê-la como uma solução para amenizar ou resolver algum fato danoso. Percebe-se, então, que, em regra, a responsabilidade deriva da violação de outro dever. Neste sentido, Sergio Cavalieri Filho faz uma diferenciação entre obrigação e responsabilidade para melhor definir este instituto. Segundo o autor23, “obrigação é sempre um dever jurídico originário; responsabilidade é um dever jurídico sucessivo, consequente à violação do primeiro”. Rui Stoco24 entende que a responsabilidade civil envolve “o dano, o prejuízo, o desfalque, o desequilíbrio ou descompensação do patrimônio de alguém”, pois sem o dano, não há que se falar em responsabilidade. A responsabilidade civil tem cunho reparatório e é caracterizada por ser essencialmente patrimonial25, pois sujeita o infrator “ao pagamento de uma compensação pecuniária à vítima, caso não possa repor in natura o estado anterior das coisas”26.

2.1) Responsabilidade Subjetiva e Objetiva A responsabilidade civil pode ser classificada como subjetiva e objetiva. De acordo com uma concepção clássica, a culpa é inerente à ideia de responsabilidade e constitui um de seus elementos caracterizadores, de forma que, sem ela, não há que se falar em responsabilização27. Essa é a teoria subjetiva ou teoria da culpa, que está prevista no artigo 186 22) GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro: responsabilidade civil. v. 4. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 19. 23) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 2. 24) STOCO, Rui. Tratado de responsabilidade civil: doutrina e jurisprudência. 8. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011. p. 141.

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do Código Civil de 2002, cuja redação é a seguinte: “Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito”. Da redação deste artigo, é possível extrair os elementos necessários para caracterizar a responsabilidade subjetiva. São eles: conduta omissiva ou comissiva, dano, nexo de causalidade entre a conduta e o dano e a culpa lato sensu. Por outro lado, segundo a teoria objetiva há possibilidade de se responsabilizar sem culpa, como prevê o artigo 927, parágrafo único, do CC: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem”. O referido artigo traz duas hipóteses em que há a responsabilidade sem culpa: os casos regulados por lei e quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implica risco para os direitos de outrem. Dessa forma, pode-se dizer que, para haver responsabilidade objetiva, são necessários os mesmos elementos da modalidade subjetiva, com exceção da culpa. Assim, passa-se a analisar cada um destes elementos. A conduta, como elemento da responsabilidade, pode ocorrer por ação ou omissão e deve ser voluntária. A ação advém de comportamento positivo ou “movimento corpóreo comissivo”28. Já a omissão é a abstenção de agir ou comportamento negativo, que adquire importância quando pensada sob a ótica daqueles que têm o dever de agir em determinadas situações para impedir a ocorrência do resultado danoso29. O próximo elemento da responsabilidade civil subjetiva é o dano. Podese dizer que o dano, além de ser elemento, é fundamento da responsabilidade civil, pois sem ele não haveria necessidade de reparar ou ressarcir, já que não haveria prejuízo. Sergio Cavalieri Filho30 conceitua o dano como “a subtração ou diminuição de um bem jurídico, qualquer que seja sua natureza, quer se trate de um bem patrimonial, quer se trate de um bem integrante da própria personalidade da vítima, como a sua honra, a imagem, a liberdade, etc.”. A partir deste conceito, é possível extrair que o dano não é necessariamente causador de redução patrimonial, mas também pode abranger as lesões relativas à personalidade do indivíduo. Assim, convém fazer uma divi-

25) GONÇALVES, op. cit., p. 44

28) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 24.

26) GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013. p. 53.

29) Ibid., p. 25.

27) GONÇALVES, op. cit., p. 48.

30) Ibid., p. 73.

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são entre dano patrimonial e dano moral. O dano patrimonial é aquele que causa diminuição no patrimônio, abrangendo lesões a bens corpóreos e a direitos que possam ser apreciados economicamente. O agravo pode ser atual, chamado também de dano emergente, ou futuro, quando frustra expectativa de lucro, configurando o lucro cessante31. O dano moral, ao contrário do patrimonial, não tem conteúdo pecuniário, nem pode ser reduzido a um valor monetário, pois afeta a esfera dos direitos da personalidade, o que acaba por ocasionar grande dúvida na quantificação do dano, para fins de reparação civil32. Outro elemento da responsabilidade civil é o nexo causal. Este elemento desempenha papel de conector entre a conduta ilícita e o dano, pois ele tem a função de comprovar que o dano foi ocasionado em decorrência da conduta ilícita do agente33. O último elemento é a culpa, que é conceito amplo, podendo abranger a culpa em sentido estrito e o dolo. É conceituada muito bem, por Rui Stoco, como a: “[...] expressão da consciência e vontade dirigidas a um fim perseguido e querido, embora ilícito, como o descumprimento de um dever de cuidado ou de diligência em razão de açodamento, de desídia ou de imperfeição técnica, ainda que sem intenção de prejudicar34”. Nesse sentido, podemos estabelecer três elementos essenciais para configurar a culpa em sentido amplo: comportamento voluntário do agente, previsibilidade do resultado e violação de dever de cuidado. A partir dessas noções, é preciso diferenciar o dolo e a culpa em sentido estrito. O dolo se refere à vontade do agente em produzir o resultado danoso, ofendendo dever preexistente35 ou ainda pode ser conceituado como a violação intencional do dever jurídico, de acordo com Carlos Roberto Gonçalves36. O Código Penal, em seu artigo 18, I, faz referência ao dolo dividindo-o em duas modalidades: dolo direto e dolo indireto. O dolo é direto quando o agente tem como intenção determinado resultado e este resultado se realiza na prática. Quanto ao dolo indireto, pode ser dividido em alternativo, quando o agente

age desejando qualquer dos resultados de sua conduta e em eventual, quando o agente prevê possível consequência de sua conduta, mas mesmo assim age sem se importar com o resultado37. Já a culpa stricto sensu pode ser definida como a conduta inadequada, por causa de negligência, imprudência ou imperícia, que causa dano previsível de forma não intencional38. Dessa forma, negligência, imprudência e imperícia são formas de exteriorização da conduta culposa39. Negligência é a não observância do dever de cuidado, é a falta de atenção, que normalmente ocorre por omissão quando o agente deveria agir. A imprudência é a falta de cautela ao agir, ou seja, caracteriza-se comumente por conduta comissiva. Por último, a imperícia significa a falta de habilidade para a realização de atividade técnica, podendo ocorrer por ação ou omissão40. Estes foram os elementos da responsabilidade civil subjetiva, que também estão presentes na responsabilidade civil objetiva, exceto o elemento culpa. Esse é o grande diferencial entre as duas modalidades. A responsabilidade objetiva visa proteger algumas situações que a subjetiva não alcança, deixando a vítima em desamparo. Dessas situações, surgiu a teoria do risco, para justificar a responsabilização sem culpa. Cavalieri Filho41 entende que risco é perigo de dano, é probabilidade de dano, de forma que aquele que exerce atividade de risco deve responder objetivamente se causar dano. No contexto da teoria do risco, foram criadas algumas modalidades ou subespécies para tentar explicar quando e como o risco seria utilizado para responsabilizar civilmente alguém. Dentre essas teorias, as principais são: risco -proveito, risco profissional, risco excepcional, risco criado e risco integral. A teoria do risco-proveito sustenta que deve ser responsabilizado aquele que ganha proveito com a atividade danosa, cabendo à vítima provar o ganho obtido pelo agente. Essa teoria merece crítica, pois o fato de a vítima ter provar o ganho do agente acaba prejudicando-a, já que pode encontrar dificuldades em produzir provas, assim como ocorre na responsabilidade subjetiva, tornando difícil a reparação42.

31) Ibid., p. 73-74.

37) STOCO, op. cit., p. 174.

32) GAGLIANO; PAMPLONA FILHO, 2013, p. 105.

38) Ibid., p. 157.

33) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 47.

39) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 37.

34) STOCO, 2011, p. 157.

40) STOCO, op. cit., p. 158.

35) STOCO, op. cit., loc. cit..

41) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 142.

36) GONÇALVES, 2013, p. 53.

42) Ibid., p. 143.

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Semelhante à anterior, a teoria do risco profissional baseia-se na ideia de que o responsável é aquele que desenvolve atividade ou profissão com fins lucrativos, e delas decorre o dano43. Já o risco excepcional, como o próprio nome diz, é extraordinário, vai além da atividade comum da vítima e exatamente por submeterem a coletividade a esses riscos é que deve ser atribuída a responsabilidade objetiva44. Outra é a tese do risco criado, que tem como adepto Caio Mário da Silva Pereira45. Segundo ele, “aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo”. Assim, se o risco é criado pela atividade exercida pelo agente, cabe a responsabilidade objetiva. Por fim, a modalidade do risco integral baseia-se na tese de que basta o dano para haver responsabilidade. Essa teoria mais radical pode ser criticada pelo fato de que, segundo ela, há responsabilização até em situações em que inexiste o nexo causal, como nas hipóteses de caso fortuito e força maior, que são excludentes de responsabilidade civil. É por isso que essa teoria só é adotada em alguns casos no direito brasileiro46.

3) Responsabilidade Civil no Direito Ambiental De início, é certo que os danos causados ao meio ambiente têm repercussão jurídica tripla, termo utilizado por Édis Milaré47 para definir o âmbito jurídico afetado em caso de dano ambiental. Essa constatação é feita a partir da leitura do artigo 225, §3º, da CF, que estabelece a responsabilização do infrator nas esferas penal, administrativa e civil, alternativa ou cumulativamente. Neste tópico será analisada a responsabilidade civil e a forma como ela se relaciona com o direito ambiental, incluindo os princípios do direito ambiental que orientam a responsabilização, bem como a teoria adotada pelo direito brasileiro para responsabilização civil por dano ambiental. 43) STOCO, 2011, p.187. 44) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 144. 45) PEREIRA apud CAVALIERI FILHO, 2010, p. 144. 46) CAVALIERI FILHO, op. cit., p. 145. 47) MILARÉ, 2011, p. 1130. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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3.1) Princípios do Direito Ambiental Conquanto uma série de princípios orientem o direito ambiental, serão tratados somente alguns deles neste tópico, cujo conteúdo tenha relação com o instituto da responsabilidade civil.

3.1.1) Princípios da Prevenção e da Precaução Estes princípios são comumente utilizados como sinônimos pelos juristas, entretanto, os dois termos diferenciam-se etimologicamente. De acordo com Milaré48, enquanto prevenção significa chegar antes, antecipar-se no tempo, com finalidade conhecida, precaução sugere cuidado antecipado com o desconhecido. Nesse sentido, o autor entende que a prevenção abarca a precaução. José Rubens Morato Leite e Patryck de Araújo Ayala49 chamam o princípio da prevenção de ação preventiva e a diferenciam do princípio da precaução, na medida em que aquela exige a eliminação dos perigos comprovados e esta não necessita de comprovação absoluta de um nexo causal para que haja ação para eliminação de possíveis danos ao meio ambiente. Esse entendimento é claramente baseado na disposição do princípio 15 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cuja redação é a seguinte: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estado, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça a danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicamente viáveis para prevenir a degradação ambiental”50. Essa diferenciação também é feita por Édis Milaré, cujo entendimento é de que o princípio da prevenção é aplicado “quando o perigo é certo e quando se tem elementos seguros para afirmar que uma determinada ativi-

48) Ibid., p. 1069. 49) LEITE; AYALA, 2012, p. 52-53. 50) ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração do Rio de Janeiro de 1992 – Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Disponível em: . Acesso em: 5 mar. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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dade é efetivamente perigosa”51. Por outro lado, o princípio da precaução deve ser invocado quando a informação científica é incerta, mas haja indicação de que os efeitos sobre o ambiente como um todo podem ser “potencialmente perigosos e incompatíveis com o nível de proteção escolhido”52. O nível de proteção deve ser entendido como a abrangência da intervenção do Estado nas questões ambientais, que varia de acordo com o local. Assim, o princípio da precaução está em constante desenvolvimento, já que a todo momento novas tecnologias surgem e, com elas, surgem também novas ameaças.

3.1.2) Princípio do Poluidor-pagador

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O princípio do poluidor-pagador estabelece que o poluidor deve reparar o dano que causar ao meio ambiente. É claro que a indenização não substitui o que foi alterado e, muitas vezes, não repara os danos causados, mas é importante por seu conteúdo pedagógico, funcionando como forma de evitar que ocorram novos danos53. No mesmo diapasão, este princípio não deve ser interpretado no sentido de que aquele que indeniza ou repara o dano está livre para danificar o meio ambiente, porque a coletividade é titular do bem ambiental, o que significaria pagar para utilizar o bem de todos, como demonstra Marcelo Abelha Rodrigues: “Muitas vezes tomado como ‘pago para poder poluir’, o princípio do poluidor pagador passa muito longe deste sentido, não só porque o custo ambiental não encontra valoração pecuniária correspondente, mas também porque a ninguém poderia ser dada a possibilidade de comprar o direito de poluir, beneficiandose do bem ambiental em detrimento da coletividade que dele é titular”54. Ao contrário, este princípio busca a internalização do déficit ambiental por aquele que utiliza o meio ambiente em seu proveito, buscando-se, com isso, evitar a socialização do dano causado ao meio ambiente55. A reparação do dano causado deve ser integral, de forma que o sistema 51) MILARÉ, 2011, p. 1070. 52) Ibid., p. 1071. 53) SIRVINSKAS, 2013, p. 144.

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jurídico nacional não aceita norma que disponha em sentido contrário ou limite a indenização, devendo ser considerada inconstitucional, nos dizeres de Édis Milaré56. Caso não seja possível restaurar o estado original da coisa, o ressarcimento deve ser feito em espécie, cujo valor deve ser depositado no fundo para o meio ambiente57, que pode ser de âmbito federal, estadual ou municipal, a depender de seu alcance. Este princípio é claramente adotado pelo direito brasileiro, com previsão no artigo 4º, VI, da lei 6.938, que dispõe que o poluidor tem a obrigação de recuperar ou indenizar os danos causados, e no artigo 225, § 3º, da CF, que dispõe que os infratores estão sujeitos a sanções penais e administrativas, além de serem obrigados a reparar os danos causados. Além disso, o princípio do poluidor-pagador também foi adotado no princípio 16 da Declaração do Rio de Janeiro de 1992, na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, cuja redação é a seguinte: “As autoridades nacionais devem procurar promover a internacionalização dos custos ambientais e o uso de instrumentos econômicos, tendo em vista a abordagem segundo a qual o poluidor deve, em princípio, arcar com o custo da poluição, com a devida atenção ao interesse público e sem provocar distorções no comércio e nos investimentos internacionais” (grifo nosso). Os princípios da prevenção, da precaução e do poluidor-pagador, abordados acima, baseiam a aplicação da responsabilidade civil no direito brasileiro e participam de sua concretização, pois é com base neles e na importância do bem protegido que se encontra a justificativa para a aplicação da responsabilidade.

3.2) Responsabilidade Objetiva A responsabilidade civil por danos ambientais tem previsão no artigo 14, §1º, da lei 6.938, segundo o qual o poluidor é obrigado a reparar, independentemente de culpa, os danos causados ao meio ambiente e a terceiros afetados por sua atividade. Posteriormente, e no mesmo sentido, a Constituição Federal de 1988 dispôs no artigo 225, §3º, que o infrator, pessoa física ou jurídica, está sujeito às sanções penal e administrativa, independentemente da obrigação de reparar o dano. Dessa forma, o infrator pode, ao mesmo tempo, responder por crime

54) RODRIGUES, 2005. p. 190.

56) MILARÉ, 2011, p. 1252.

55) RODRIGUES, 2005. p. 190.

57) SIRVINSKAS, 2013, p. 144.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

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ambiental, por infrações administrativas e, ainda, reparar os danos causados ao ambiente e a terceiros que também sejam afetados. Dessa forma, percebe-se que a responsabilidade civil adotada pelo direito ambiental brasileiro é a responsabilidade objetiva e “independe, pois, da existência de culpa e se funda na ideia de que a pessoa que cria o risco deve reparar os danos advindos de seu empreendimento”58, bastando que estejam presentes apenas os elementos: ação ou omissão do agente, dano e nexo de causalidade. Assim, a prova da responsabilidade se torna de mais fácil obtenção, sem a comprovação da culpa, com o intuito de “serem protegidos bens de alto interesse de todos e cuja lesão ou destruição terá consequências não só para a geração presente, como para a geração futura”59.

4) Excludentes de Responsabilidade Civil no Direito Ambiental

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Em sede de responsabilidade civil por dano ambiental, de acordo com previsão expressa no artigo 14, §1º, da lei 6.938, é incontestável, portanto, que a modalidade adotada pelo direito brasileiro é a objetiva. Contudo, não há previsão legal ou consenso doutrinário sobre qual das vertentes da teoria do risco deve ser adotada. Tal fato enseja situações controvertidas nos casos concretos, como a possibilidade de aplicação ou não das excludentes de responsabilidade civil, de modo que uma análise das diversas correntes adotadas pelos doutrinadores e pela jurisprudência se faz imprescindível. Sirvinskas, ao tratar do tema, concorda com o posicionamento de que a responsabilidade objetiva, prevista na lei 6.938, foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988. O referido autor ainda complementa que essa modalidade não admite qualquer excludente de responsabilidade60. Dessa forma, Sirvinskas é adepto à parte da doutrina que entende pela adoção da teoria do risco integral, teoria esta que não admite alegação das excludentes de responsabilidade civil para eximir a responsabilidade do causador do dano. Da mesma maneira, Sérgio Cavalieri Filho entende pela adoção da teoria do risco integral e argumenta que esta teoria pode ser extraída do texto constitucional e a partir do sentido teleológico da lei 6.938, ou seja, pela 58) GONÇALVES, 2013, p. 87. 59) MACHADO, 2013, p. 405. 60) SIRVINSKAS, 2013, p. 263-266. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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finalidade da lei, isto porque: “Se fosse possível invocar o caso fortuito ou a força maior como causas excludentes de responsabilidade civil por dano ecológico, ficaria fora da incidência da lei, a maior parte dos casos de poluição ambiental, como a destruição da fauna e da flora causada por carga tóxica de navios avariados em tempestades marítimas; rompimento de oleoduto em circunstâncias absolutamente imprevisíveis, poluindo lagoas, baías, praias e mar; contaminação de estradas e rios, atingindo vários municípios, provocada por acidentes imponderáveis de grandes veículos transportadores de material poluente e assim por diante”61. Observa-se a adoção da teoria do risco integral em grande parte da jurisprudência pátria, incluindo o Superior Tribunal de Justiça, como no exemplo a seguir: “DIREITO AMBIENTAL E PROCESSUAL CIVIL. DANO AMBIENTAL. LUCROS CESSANTES AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA INTEGRAL. DILAÇÃO PROBATÓRIA. INVERSÃO DO ÔNUS PROBATÓRIO. CABIMENTO. 1. A legislação de regência e os princípios jurídicos que devem nortear o raciocínio jurídico do julgador para a solução da lide encontram-se insculpidos não no códice civilista brasileiro, mas sim no art. 225, § 3º, da CF e na Lei 6.938/81, art. 14, § 1º, que adotou a teoria do risco integral, impondo ao poluidor ambiental responsabilidade objetiva integral. Isso implica o dever de reparar independentemente de a poluição causada ter-se dado em decorrência de ato ilícito ou não, não incidindo, nessa situação, nenhuma excludente de responsabilidade. Precedentes. 2. Demandas ambientais, tendo em vista respeitarem bem público de titularidade difusa, cujo direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é de natureza indisponível, com incidência de responsabilidade civil integral objetiva, implicam uma atuação jurisdicional de extrema complexidade. 3. O Tribunal local, em face da complexidade probatória que envolve demanda ambiental, como é o caso, e diante da hipossuficiência técnica e financeira do autor, entendeu pela inversão do ônus da prova. Cabimento. 4. A agravante, em seu arrazoado, não deduz argumentação jurídica nova alguma capaz de modificar a decisão ora agravada, que se mantém, na íntegra, por seus próprios fundamentos. 5. Agravo regimental não provido”62. A adoção da teoria do risco integral no âmbito da responsabilidade civil por 61) CAVALIERI FILHO, 2010, p. 154. 62) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Agravo regimental em recurso especial nº 1412664/SP. Disponível em: . Acesso em: 22 abr. 2014. Obra dedicada ao Instituto Terra

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dano ambiental merece críticas. Tratando-se de responsabilidade civil na modalidade objetiva, devem estar presentes seus elementos: conduta comissiva ou omissiva, dano e nexo de causalidade. Ao negar a incidência de excludentes de responsabilidade civil que rompem com o nexo causal, estar-se-ia permitindo a responsabilização sem a presença de um dos elementos: o nexo causal. Outra crítica à adoção dessa teoria é que ela é extremada, exatamente por não admitir excludentes de responsabilidade em nenhuma hipótese. Se por um lado isso é importante para garantir o meio ambiente ecologicamente equilibrado, por outro lado, em caso de dano, não há prestígio para aquele que tomou várias providências para evitar danos, como “o cumprimento de todas as exigências, a busca do constante desenvolvimento tecnológico inovador, o exame das necessidades coletivas das populações, atual e futura”63. Por outro lado, Carlos Roberto Gonçalves entende que podem ser aplicadas as excludentes que rompem com o nexo causal, justamente por faltar um dos elementos da responsabilidade civil, como se pode perceber no trecho: “parece-nos, todavia, que tais excludentes devem ser admitidos, uma vez que não afastam a culpa do poluidor, mas afetam o nexo causal, rompendo-o”64. Neste sentido entendeu o STJ no Recurso especial nº 620872/DF: “PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA. NEXO DE CAUSALIDADE AFASTADO PELO TRIBUNAL DE ORIGEM. REEXAME DE MATÉRIA FÁTICO-PROBATÓRIA. IMPOSSIBILIDADE. SÚMULA 7/STJ. RECURSO ESPECIAL NÃOCONHECIDO. 1. O Tribunal de origem, ainda que considerando a responsabilidade objetiva para os danos causados ao meio ambiente, afastou expressamente o nexo causal entre a ação do recorrido e os prejuízos causados ao meio ambiente. 2. Portanto, a eventual análise da pretensão recursal, especificamente quanto à responsabilidade do referido condomínio pelo dano ambiental causado na área litigiosa, com a consequente reversão do entendimento exposto pelo Tribunal de origem, exigiria o reexame de matéria fático-probatória, o que não é admitido em sede de recurso especial, nos termos da Súmula 7/STJ. 3. Recurso especial não-conhecido”65. 63) CASTRO, Guilherme Couto de. A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 118. 64) GONÇALVES, 2013, p. 90. 65) BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso especial nº 620872/DF. Disponível em: . Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Apesar de não ter conhecido do recurso, por não se tratar de hipótese de rediscussão do mérito, o acórdão abordou a necessidade do nexo causal para configurar a responsabilidade civil por dano ambiental, da mesma maneira que decidiu o Tribunal a quo (Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios). Há quem entenda, ainda, que a análise deve ser feita a partir do caso concreto, sob a perspectiva do risco ao qual a atividade expôs o meio ambiente e a sociedade. Neste sentido, Maria Luiza Machado Granziera, observa que o agente não pode ser responsabilizado se o dano foi decorrente de fato totalmente imprevisto e cujos efeitos não era possível evitar, afastando implicitamente a teoria do risco integral, que não admite nenhuma excludente de responsabilidade66. Em direção similar, Machado67 discorda da adoção ilimitada do caso fortuito e da força maior, excludentes de responsabilidade civil, pois não haveria análise dos efeitos causados pelo fato decorrente da natureza. Assim, tratandose de responsabilidade objetiva, o referido autor entende que deve ser averiguada a ausência de previsibilidade e as medidas tomadas para evitar os efeitos do fato “sem se levar em conta a diligência dos atos do devedor, pois a ocorrência da responsabilidade independe de sua culpa”68. Esse posicionamento parece ser um meio termo entre a adoção da teoria do risco integral e a aplicação ilimitada das excludentes de responsabilidade civil que rompem o nexo de causalidade. Diante do que foi exposto, parece-nos importante pensar em uma teoria que proteja o meio ambiente, levando em conta sua importância, e ao mesmo tempo não contrarie a legislação nacional. Analisando-se o conjunto de normas vigentes no país, a partir de uma interpretação teleológica, é possível apreender que o legislador teve a intenção de dar a maior proteção possível ao meio ambiente, com a adoção da responsabilidade civil objetiva. No entanto, a aplicação dessa modalidade de responsabilidade civil não deve ser radical, no sentido de aceitar a responsabilização mesmo faltando os elementos necessários para sua caracterização, quais sejam: conduta, dano e nexo causal. Acesso em 24 abr. 2014. 66) GRANZIERA, Maria Luiza Machado. Direito ambiental. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Atlas, 2011. p. 687. 67) MACHADO, 2013, p. 421. 68) Ibid., p. 422. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Dessa maneira, não seria possível a adoção da teoria do risco integral. Entendemos, portanto, pela possibilidade da utilização das excludentes de responsabilidade civil que rompem o nexo causal, como o caso fortuito, a força maior, o fato de terceiro e a culpa exclusiva da vítima, pois, nestes casos, faltaria um dos elementos necessários para configurar a responsabilidade civil objetiva.

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Conclusão

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Diante do que foi apresentado neste estudo, restou clara a importância que o meio ambiente tem em sua relação com o homem, cabendo a este o papel de defendê-lo e preservá-lo. Dessa forma, a responsabilidade civil por dano ambiental assume importante papel de prevenir e reparar danos ao meio ambiente. É diante deste cenário que o questionamento inicial que deu origem a esta pesquisa é tão importante, pois, mesmo com a omissão do legislador, é imprescindível saber se é possível a utilização de excludentes de responsabilidade civil com o intuito de ver a responsabilidade civil afastada. A aceitação ou a negação do uso dessas excludentes ocasiona diversas consequências no mundo jurídico. Tal questão, portanto, deve ser tratada de forma a observar os princípios de direito ambiental, bem como os princípios constitucionais ambientais, tendo como norte o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Não obstante, o instituto da responsabilidade civil, assim como seus elementos, não pode ser desprezado ou ignorado para proteger o meio ambiente a todo e qualquer custo. Dessa forma, a partir da análise do ordenamento jurídico brasileiro como um todo sistemático, parece-nos que não foi a intenção do legislador permitir o uso das excludentes de responsabilidade civil como regra geral, diante da ampla proteção dada ao meio ambiente. Entretanto, consideramos correta a utilização das excludentes que rompem o nexo causal, justamente pela ausência de um dos elementos caracterizadores da responsabilidade civil.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Tutela do Meio Ambiente do Trabalho nos Planos Internacional e Interno Lívia Gaigher Bósio Campello1* Faculdade Estácio de Sá em São Paulo Carlos Walter Marinho Campos Neto2** Universidade de São Paulo

Sumário: Introdução. 1 A questão ambiental. 2 Regime de Proteção do Meio Ambiente do Trabalho. 3 Responsabilidade Objetiva do Empregador no Meio Ambiente Laboral. 4 Ação Civil Pública por Danos ao Meio Ambiente Laboral. Conclusão

1) * Doutora em Direito das Relações Econômicas e Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Professora da Estácio de Sá – São Paulo e do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu - Mestrado da Unimar. Advogada em São Paulo. E-mail: [email protected]. 2) ** Mestrando em Direito Internacional pela USP. Advogado. E-mail: [email protected].

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Tutela do Meio Ambiente do Trabalho nos Planos Internacional e Interno

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Introdução

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Se o Direito do Trabalho trata da condição jurídica dos trabalhadores, regendo as relações jurídicas entre empregados e empregadores, e o Direito Ambiental trata da proteção do meio ambiente, bem como de disciplinar o comportamento a ele relacionado, o Meio Ambiente do Trabalho pode ser posicionado como pertencente a um campo comum ao Direito Ambiental e ao Direito do Trabalho, na medida em que lida com a qualidade do meio ambiente onde são exercidas atividades laborais. É sabido que no mundo do trabalho atual existem dois objetivos que adquirem cada vez maior protagonismo: que o trabalho a ser prestado pelos trabalhadores seja “justo” e “digno”; e que o desenvolvimento socioeconômico, a que se aspira com a organização e prestação de tal trabalho, seja “sustentável”, o que deve ser entendido como a busca do progresso econômico – sempre necessário – sem menosprezo algum à qualidade de vida nem deterioração do meio ambiente. Com esta perspectiva, este estudo pretende demonstrar como ocorre a integração do meio ambiente, enquanto conteúdo essencial do trabalho digno e do desenvolvimento sustentável, no Direito do Trabalho. Mais especificamente, almeja explicar como o direito ao meio ambiente do trabalho equilibrado está protegido no ordenamento jurídico internacional e brasileiro, assim como o respectivo modo pelo qual essa tutela pode ser exigida. Nesse passo, no primeiro capítulo será apresentada a evolução da questão ambiental, imposta pela conscientização, ao longo da segunda metade do século XX, quanto à existência de uma crise de dimensões planetárias. Em seguida, será estudado o regime de proteção do meio ambiente do trabalho, composto de direitos e obrigações constitucionais, infraconstitucionais e internacionais. A partir daí, discutir-se-á a natureza da responsabilidade dos agentes causadores de danos ao meio ambiente do trabalho. Por fim, analisar-se-á a Ação Civil Pública trabalhista como principal instrumento jurídico de proteção do ambiente laboral.

1) A questão ambiental Decerto, o declínio da qualidade de vida nas cidades avultou-se com as crescentes taxas de urbanização provocadas, mormente, pela Revolução Industrial. Em 1845, Friedrich Engels, na obra “A situação da classe trabalhadora na Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Inglaterra” (“Die Lage der Arbeitenden Klasse in England”, 1845), registrou que, em bairros operários da época, já se constatava o barulho contínuo e insuportável, a água contaminada e os cortiços insalubres como fatores de degradação do meio ambiente. Diante disso, Ronaldo Coutinho ressalta que “como o proletariado foi durante muito tempo a exclusiva vítima da degradação ambiental, essa questão foi acobertada pelo silêncio histórico”. 3 A chamada “crise ambiental” se impôs intensamente preocupante nas três últimas décadas do século passado, quando a situação ecológica adquiriu proporções exponenciais e dimensão planetária.4 Em 1968, havia sido criado o Clube do Roma, que reunia pedagogos, cientistas, economistas entre outros para debater sobre a crise e o futuro da humanidade. Em seu primeiro relatório, em 1972, The Limits to Growth, apresentou dados de um cenário catastrófico de como seria o planeta se permanecessem os padrões de desenvolvimento vigentes. Nos termos do relatório: “1. Se as atuais tendências de crescimento da população mundial, industrialização, poluição, produção de alimentos, e esgotamento dos recursos continuarem inalteradas, os limites do crescimento neste planeta serão alcançados algum dia dentro dos próximos cem anos. O resultado mais provável será um declínio súbito e incontrolável na população e na capacidade industrial. 2. É possível alterar essas tendências de crescimento e estabelecer uma condição de estabilidade ecológica e econômica que seja sustentável a longo prazo. O estado de equilíbrio global poderia ser concebido de modo que as necessidades materiais básicas de cada pessoa na Terra fossem satisfeitas e cada pessoa tivesse a mesma oportunidade de realizar seu potencial humano individual.”5 3) COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Direito Ambiental das Cidades: Questões teóricometodológicas. In: COUTINHO, Ronaldo do Livramento; ROCCO, Rogério (orgs.). O Direito Ambiental das Cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 21. 4) Em 26 de janeiro de 1971, na conferência The Necessity of Social Control, István Mészáros afirmou: “Há dez anos a ecologia podia ser tranquilamente ignorada ou desqualificada como totalmente irrelevante. [...] As pessoas deveriam esquecer tudo sobre as cifras astronômicas despendidas em armamentos e aceitar cortes consideráveis em seu padrão de vida, de modo a viabilizar os ‘custos de recuperação do meio ambiente’: isto é, em palavras simples, os custos necessários à manutenção do atual sistema de expansão da produção de supérfluos”. MÉSZÁROS, István. Para além do capital. São Paulo: Ed. Unicamp/Boitempo, 2002. 5) MEADOWS, Donella H. et al. The Limits to Growth: A Report to the Club of Rome, 1972. Disponível em: http://www.clubofrome.org/?p=1161. Acesso em 03.02.2014. No original, em inglês: “1. If the present growth trends in world population, industrialization, pollution, food production, and resource depletion continue unchanged, the limits to growth on this planet will be reached sometime within the next one hundred years. The most probable result will be a rather sudden and uncontrollable decline in both population and industrial capacity. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Já no segundo relatório, Mankind at Turning Point, em 1974, foram destacados dois desníveis em nosso planeta, um entre o desenvolvimento humano e a natureza, e outro, entre o número de ricos e pobres, propondo-se desenvolvimentos diferenciados a depender das especificidades e das diversidades de cada região. “5.1 Se o padrão histórico de desenvolvimento for mantido, e as hipóteses mais favoráveis ​​em relação ao aumento da população forem adotadas, a desproporção entre a renda média per capita do mundo desenvolvido e a da América Latina aumentará de 5 – 1 para 8 para 1 nos próximos 50 anos. A situação é pior em relação ao Sul da Ásia e à África Tropical. 5.2 Um possível passo para a redução da diferença seria um contínuo auxílio em forma de investimento nas regiões carentes: isso implicaria em uma substantiva perda per capita anual para as regiões desenvolvidas, mesmo para alcançar uma proporção de 3 para 1 na América Latina, e melhorias correspondentes em outras regiões subdesenvolvidas. O custo seria 50% maior se o início do programa de ajuda fosse postergado por ​​ 25 anos; por outro lado, se uma ajuda maciça for fornecida nos próximos 25 anos, o custo para o mundo desenvolvido pode ser reduzido à metade. Ações rápidas custam apenas um quinto do que ações finais, e, além disso, poderia tornar possível a completa autossuficiência das regiões em desenvolvimento até o final do século. 5.3 O mundo industrializado só pode garantir tempo para desenvolver fontes alternativas de energia usando quase a totalidade das reservas de petróleo. Isso antecipa a fonte de energia mais eficiente e conveniente, precisamente quando as nações em desenvolvimento mais precisam dela. Segue-se que mesmo os auxílios em forma de investimentos maciços não são, por si só, suficientes.”6 2. It is possible to alter these growth trends and to establish a condition of ecological and economic stability that is sustainable far into the future. The state of global equilibrium could be designed so that the basic material needs of each person on earth are satisfied and each person has an equal opportunity to realize his individual human potential.” 6) MESAROVIC, Mihajlo; PESTEL, Eduard. Mankind at the turning point: The second report to the Club of Rome, 1974. Disponível em: http://aei.pitt.edu/42190/1/A6277res.pdf. Acesso em 03.02.2014. No original, em inglês: “5. Problems of the developing regions: 5.1. If the historical pattern of development is maintained, and the most favourable assumptions about population increase are adopted, the disproportion between average per capita incomes in the developed world and Latin America will increase from 5:1 to 8:1 in the next 50 years. The position is worse in South Asia and Tropical Africa. 5.2 One possible step to narrow the gap would be continuous investment aid in the needy regions: this would involve a substantial annual per capita loss to the developed regions even to achieve a ratio of 3:1 in Latin America and corresponding improvements in other undeDireitos Humanos e Meio Ambiente

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O terceiro relatório, Reshaping the international order (RIO), foi publicado em 1977, e foca nas bases técnicas e científicas do crescimento econômico necessário ao bem estar presente e futuro da população mundial. São identificados as questões consideradas mais problemáticas, dentre elas a explosão demográfica, a escassez de alimentos, os danos à integridade ambiental e a iminência do colapso do sistema financeiro mundial. Dentre as propostas apresentadas pelo Relatório, voltadas a um crescimento do sistema econômico global mais harmonioso e igualitário, está a redução dos danos ambientais causados pela expansão da produção mundial, por meio de intensa pesquisa relacionada a formas alternativas de energia e à reciclagem de resíduos, bem como pela adaptação dos estilos de vida.7 A questão ambiental avulta definitivamente a partir dos relatórios de preparação para a Conferência de Estocolmo, em 1972, representando a valorização política do meio ambiente em nível internacional.8 Assim, no âmbito da Organização das Nações Unidas (ONU), a realização da I Conferência Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, em Estocolmo, de 5 a 16 de junho de 1972, acarretou reconhecimento mundial para a importância da discussão e da mobilização voltadas à preservação ambiental e ao equilíbrio ecológico global. Os principais resultados desse encontro foram a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNUMA e a Declaração sobre o Meio Ambiente Humano, também conhecida como Declaração de Estocolmo, que contém 26 princípios referentes a comportamentos e responsabilidades destinados a nortear as questões ambientais.9 veloped regions. The cost would be 50% greater if the commencement of the aid programme were delayed for 25 years; if on the other hand massive aid is provided in the next 25 years, the cost to the developed world might be more than halved. Early action costs only one fifth as much as late action; in addition, it could make possible the complete self-sufficiency of the developing regions by the end of the century. 5.3 The industrialised world can only secure time to develop alternative energy sources by using nearly the entire oil reserves; this effectively preempts the most efficient and convenient energy source precisely when the developing nations need it most. It follows that even massive investment aid is not, by itself, sufficient.” 7) TINBERGEN, Jan. Reshaping the international order (RIO). Futures, v. 8, n. 6, 1976, pp. 553-556. 8) COUTINHO, Ronaldo do Livramento. Direito Ambiental das Cidades: Questões teóricometodológicas. In: COUTINHO, Ronaldo do Livramento; ROCCO, Rogério (orgs.). O Direito Ambiental das Cidades. Rio de Janeiro: DP&A, 2004, p. 21. 9) Dentre os princípios enumerados na referida Declaração, destaque-se: Princípio 4 - O Homem tem a responsabilidade especial de preservar e administrar judiciosamente o patrimôObra dedicada ao Instituto Terra

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A institucionalização da questão ambiental adquiriu novos contornos com a elaboração e divulgação, em 1987, do “Nosso futuro comum”, como é mais conhecido o relatório da Comissão Especial criada pela Assembleia Geral da ONU, sob a presidência da então primeira-ministra da Noruega, Gro Brundtland, o qual, em termos gerais, propõe estratégias ambientais de longo prazo para alcançar o desenvolvimento sustentável. Pela primeira vez foi usado o conceito de “desenvolvimento sustentável”, definido pela Comissão como o “desenvolvimento que atende às necessidades das gerações atuais sem comprometer a capacidade de as futuras gerações terem suas próprias necessidades atendidas”. Desse modo, o Relatório Brundtland reforçou uma visão crítica do modelo de desenvolvimento adotado pelos países industrializados, e reproduzido pelas nações em desenvolvimento, incompatível com a dimensão ambiental emergente. Maristela Bernardo10 anota que “a Constituição brasileira, por exemplo, nos seus dispositivos ambientais, filia-se diretamente ao Relatório Brundtland e foi seu produto normativo mais imediato e bem-sucedido, servindo de modelo para outros países”. Nesse diapasão, o advento da Constituição Federal brasileira de 1988, à guisa do movimento constitucionalista moderno e de proposições dos documentos internacionais, tratou o tema do meio ambiente de maneira inédita e significativa ao dedicar o Capítulo VI do Título VII, sobre a “Ordem Social”, considerado o fulcro normativo da questão ambiental. Além deste capítulo, o inciso VI do artigo 170 eleva o meio ambiente à condição de princípio da “Ordem Econômica”, Capítulo I do Título VII, restando certo que a exploração dos recursos ambientais necessários ao desenvolvimento econômico do país deve ser pautada pelos mandamentos do desenvolvimento sustentável, em oposição a um desenvolvimento econômico desenfreado, sem limites.

2) Regime de proteção do meio ambiente do trabalho O direito ao meio ambiente sadio é classificado como um direito humano pertencente à chamada terceira geração/dimensão, representativa dos direitos dinio representado pela flora e fauna silvestres, bem assim o seu habitat, que se encontram atualmente em grave perigo, por uma combinação de fatores adversos. Em consequência, ao planificar o desenvolvimento econômico, deve ser atribuída importância à conservação da natureza, incluídas a flora e a fauna silvestres. 10) BERNARDO, Maristela. Impasses sociais e políticos em torno do meio ambiente. In: Sociedade e Estado, Brasília, n. 1, jan./jun., 1996, p. 161. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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fusos. Esses são direitos voltados para o ser humano enquanto gênero, ou seja, a humanidade, reconhecendo necessidades e anseios comuns a todos os indivíduos. Como leciona Vladmir Oliveira da Silveira, a terceira geração dos direitos humanos sintetiza os direitos da primeira (direitos humanos individuais) e da segunda (direitos humanos coletivos) gerações sob o viés da solidariedade, fundados sob uma nova concepção de Estado, de ordem internacional e de relacionamento entre os povos voltados não apenas ao acréscimo de novos direitos, mas à realização efetiva dos direitos anteriores.11 Portanto, enquanto direito de terceira geração, a proteção do meio ambiente resulta do interesse na sobrevivência e no bem-estar da espécie humana. Decerto que, dentre as pretensões relacionadas ao bem-estar do ser humano e à sua dignidade, está a de que lhe seja proporcionado um meio ambiente do trabalho sadio e seguro. No plano internacional, cumpre mencionar algumas Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), dentre elas a Convenção 148/77, que dispõe sobre a proteção dos trabalhadores contra os riscos provenientes da contaminação do ar, do ruído e das vibrações no local de trabalho; a Convenção 155/81, que consolida proposições relativas à segurança, à higiene e ao meio ambiente do trabalho; e a Convenção 161/85, que fixa orientações sobre a implantação de serviços de saúde no trabalho.12 Sobre a Convenção 148/77, possui a característica de ser o primeiro documento a proteger não apenas a higiene no trabalho mas também a saúde dos trabalhadores. Isso trouxe evolução em alguns aspectos. Primeiro, a mudança do objeto de proteção que passa a se referir à saúde. Assim, por exemplo, os riscos do ruído abrangem qualquer som que possa provocar não apenas uma consequência pontual, como a perda da audição, mas também engloba a ideia mais ampla de que é nocivo para saúde. Os riscos que podem prejudicar a saúde dos trabalhadores são mais amplos, visto que a legislação não se preocupa unicamente com os efeitos intrínsecos dos meios de produção, que provocam imediatamente a lesão ou acidente, mas também outros tal como a contaminação em geral que pode alterar o estado de saúde dos trabalhadores. Posteriormente, a Convenção 155/81 veio a integrar definitivamente as noções tradicionais de segurança e higiene no trabalho à ideia de proteção do meio ambiente do trabalho. Ratificada pelo Brasil em 1992, a Convenção 11) SILVEIRA, Vladmir da; ROCASOLANO, Maria Mendez. Direitos humanos: conceitos, significados e funções. São Paulo: Saraiva, 2010, pp. 177-180. 12) A Convenção 148 foi ratificada em 14/01/1982; a Convenção 155 o foi em 18/05/1992; e a Convenção 161, em 18/05/1990. Obra dedicada ao Instituto Terra

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155 provê sobre o desenvolvimento, pelos países, de uma Política Nacional de Saúde, Segurança e Meio Ambiente do Trabalho, incluindo local de trabalho, ferramentas, máquinas, agentes químicos, biológicos e físicos, operações e processos, as relações entre trabalhador e o meio físico, entre outros assuntos correlacionados. Como ressalta Francisco Péres Amorós, a Convenção 155/81 representou um importante avanço na consolidação da saúde no trabalho como objeto de proteção, tendo sido a primeira a utilizar o conceito de “meio ambiente do trabalho”13. Em 2006, a OIT aprovou a Convenção 187, com a ideia central de promover a melhoria contínua da segurança e da saúde no trabalho. O instrumento visa à instituição de uma cultura de prevenção ininterrupta, de modo a reduzir sistematicamente as estatísticas acidentárias. A Convenção, contudo, ainda não foi adotada pelo Brasil.14 No Brasil, o cerne do tratamento ambiental constitucional se encontra no artigo 225, que determina a todos um: “[...] meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. Esse importante ditame constitucional evoca a atuação conjunta e coordenada de todas as esferas estatais, ao incumbir ao Poder Público, enquanto expressão genérica designativa de todos os entes territoriais públicos, o dever de proteger e defender o meio ambiente conjuntamente com a sociedade civil. Esta, por conseguinte, não deve se eximir de seu importante papel dentro da atual ótica de promoção da cidadania ambiental. Pela leitura do artigo 225 da Constituição, o ser humano também deve ser considerado na sua qualidade de trabalhador, pois no seu labor submetese diariamente a um ambiente que deve proporcionar-lhe qualidade de vida sadia, por meio do controle de agentes degradadores que afetam a sua saúde. Focado no objetivo de salvaguardar o homem no seu ambiente de traba-

13) AMORÓS, Francisco Pérez. Derecho del Trabajo y medio ambiente: unas notas introductorias. Gaceta Laboral, v. 16, n. 1, p. 93-128, 2010, p. 100. Em suas palavras, “El Convenio 155/1981 sin derogar y/o revisar los anteriores textos sobre el mismo tema (Art. 22), aportó un serio avance en orden a consolidar la salud en el trabajo como objeto de protección, pues este texto normativo se refiere también al “medio ambiente en el trabajo”, progresión que ya se deduce de la simple lectura de su título (recordemos su rezo: “sobre seguridad y salud de los trabajadores y medio ambiente de trabajo”) y se confirma en su contenido.” 14) Informação disponível em: http://www.ilo.org/dyn/normlex/en/f ?p=NORMLEXPUB:11300:0::NO:11300:P11300_INSTRUMENT_ID:312332:NO Direitos Humanos e Meio Ambiente

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lho, Celso Fiorillo15 conceitua o meio ambiente do trabalho como: “[...] o local onde as pessoas desempenham suas funções laborais, sejam remuneradas ou não, cujo equilíbrio está baseado na salubridade do meio e na ausência de agentes que comprometam a incolumidade físico-psíquica dos trabalhadores, independente da condição que ostentam (homens ou mulheres, maiores ou menores de idade, celetistas, servidores públicos, autônomos etc.)”. Não há como dissociar a realidade do trabalho humano da lógica da atividade econômica que, por sua vez, afeta o meio ambiente. A tensão entre esses interesses, isto é, o das atividades econômicas e o da proteção ambiental, deve ser equilibrada de modo que esteja assegurada a vida digna para todos. A dignidade da pessoa humana é um valor absoluto e qualificado como um dos fundamentos da República, nos termos estabelecidos pelo artigo 1°, inciso III da Constituição. Sobre a dignidade humana, explica Ingo Sarlet16 que, independente de circunstâncias concretas, é qualidade inerente a todos os seres humanos. Diz o autor que: “[...] tem-se por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e corresponsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos.”17 Eros Grau afirma que, além de ser fundamento da República Federativa do Brasil, a dignidade da pessoa humana é o fim que se deve ser observado pela ordem econômica comandada pelo artigo 170 e incisos, condicionando, assim, toda a atividade econômica.18 No caput do art. 170 da Constituição está estabelecido que a ordem econômica tem como um dos seus fundamentos a valo15) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, pp. 22-23. 16) SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 1998, p. 104. 17) SARLET, Ingo Wolfgang. As dimensões da dignidade da pessoa humana: construindo uma compreensão jurídico-constitucional necessária e possível. In SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Dimensões da dignidade: ensaios de filosofia do Direito e Direito Constitucional. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2005, p. 37. 18) GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988. São Paulo: Melhoramentos, 2010. p.198. Obra dedicada ao Instituto Terra

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rização do trabalho humano e a finalidade de assegurar a todos uma existência digna. Nesse sentido, a valorização do trabalho humano como um dos fundamentos da ordem econômica implica garantir as condições essenciais a sua dignidade, como as formas adequadas de trabalho relativas à saúde e à segurança. Sobre a relação da saúde e da proteção do trabalhador com a questão ambiental, que permitiu a construção do conceito de meio ambiente do trabalho, leciona Francisco Pérez Amorós: “O conceito de ambiente de trabalho [...] é claramente reunidor de diferentes aspectos, abrangendo não apenas condições “clássicas”, como o comprimento da jornada, a remuneração salarial e a higiene industrial, mas também acomoda a saúde laboral e, por derivação, as condições gerais de vida dos trabalhadores, uma vez que estas estão sujeitas àquelas; mas é mais, o respeito ao ambiente de trabalho assim configurado, para ser autêntico, exige a qualidade do meio ambiente, visto que a sua deterioração afeta negativamente a saúde e a vida. (Tradução nossa) 19”. De fato, não há como deixar de vislumbrar o meio do ambiente do trabalho em conjunto com os aspectos do indivíduo trabalhador, totalmente inserido no meio onde sua força de trabalho interatua e intervém. A dignidade do trabalhador é uma garantia fundamental que deve ser preservada, e o meio ambiente laboral é local em que devem estar asseguradas as bases dignas para manutenção de uma sadia qualidade de vida. Referência específica sobre o meio ambiente do trabalho na Constituição pode ser encontrada no artigo 200, inciso VIII, segundo o qual “ao sistema único de saúde compete, além de outras atribuições, nos termos da lei: [...] VIII – colaborar com a proteção do meio ambiente, nele compreendido o do trabalho”. Obviamente que, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, estão previstas medidas que possibilitam a redução dos riscos inerentes ao trabalho. A Constituição Federal ainda estabelece que são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, nos termos do artigo 7º, inciso XXII. Sobre esse preceito, assim 19) “El concepto de ambiente de trabajo [...] es claramente omnicomprensivo de distintos aspectos, pues abarca, no sólo las “clásicas” condiciones de trabajo, tales como la duración de la jornada, la remuneración salarial, incluso la higiene industrial, sino que también da cabida a la salud laboral, y por derivación, incluye también las condiciones de vida del trabajador en general, pues éstas están supeditadas a aquéllas; pero es más, el respeto del ambiente laboral así configurado, para ser auténtico, exige calidad del medio ambiente, tanto porque el deterioro del mismo afecta negativamente a la salud y vida.” AMORÓS, Francisco Pérez. Derecho del Trabajo y medio ambiente: unas notas introductorias. Gaceta Laboral, v. 16, n. 1, 2010, pp. 15-16. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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se manifesta o professor Celso Antonio Pacheco Fiorillo: “Mais do que mera hipótese de proteção dos trabalhadores, o dispositivo ilumina todo um sistema normativo que hoje se encontra delimitado de forma mais profunda nas Cartas Magnas e mesmo em legislação infraconstitucional. Tendo como destinatários pessoas indeterminadas, a regra de redução dos riscos inerentes ao trabalho está plenamente adaptada aos fundamentos da República Federativa do Brasil (art. 1º) que ao indicar os valores sociais do Trabalho e da livre-iniciativa não se olvidou também em destacar a dignidade da pessoa humana como regra fundamental, o que significa de outro modo afirmar que todos os cidadãos, pouco importando ser pessoas determinadas ou indeterminadas, terão asseguradas condições de trabalho adequadas, evitando-se e mesmo minimizando riscos inerentes às diferentes funções exercidas.20” No âmbito da legislação infraconstitucional ambiental, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, Lei 6.938/81, ao definir poluição, nos termos do seu artigo 3°, inciso IV, realça-a como degradação que resulte de atividade que prejudique a saúde, a segurança e o bem-estar da população. Nesse sentido, como explica Norma Padilha21, as doenças profissionais, ou seja, aquelas desencadeadas pelo exercício do trabalho peculiar a determinada atividade, bem como, as doenças do trabalho, adquiridas em função das condições em que o trabalho é realizado, não podem ser consideradas apenas para fins previdenciários, mas também deve ser aplicado o regime ambiental. A Consolidação das Leis Trabalhistas – CLT22, no Capítulo V de seu Título II, dispõe especificamente sobre a “segurança e medicina do trabalho”, estabelecendo a necessidade de inspeção prévia das instalações onde ocorrem as atividades laborais e a possibilidade de interdição ou embargo dos estabelecimentos, serviços ou equipamentos que representem risco grave e iminente ao trabalhador.23 A CLT ainda traz diversas outras previsões específicas, como quanto à manutenção pelos empregadores de serviços especializados em segurança e medicina do trabalho; o fornecimento de equipamentos de proteção individual; a realização de exames médicos regulares; a segurança das instalações, dos equipamentos e das atividades; a iluminação e o conforto térmico no 20) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Os sindicatos e a defesa dos interesses difusos no processo civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995. p. 96 21) PADILHA, Norma Sueli. Fundamentos constitucionais do Direito Ambiental Brasileiro. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. 22) Decreto-lei n.º 5.452, de 1º de maio de 1943. 23) Artigos 160 e 161 da CLT. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ambiente de trabalho; a movimentação, armazenagem e manuseio de materiais; a prevenção da fadiga dos empregados; etc.24 A fiscalização do cumprimento das normas de segurança e medicina do trabalho, conforme o artigo 156 da CLT, cabe às Delegacias Regionais do Trabalho, que são dotadas de poder para, diante do descumprimento, adotar medidas e impor penalidades. Nos termos do artigo 161 da CLT, o Delegado Regional do Trabalho pode interditar um estabelecimento, serviço ou equipamento, ou embargar uma obra, caso laudo técnico demonstre haver “grave e iminente risco ao trabalhador”. O artigo 200 incumbe ao Ministério do Trabalho o estabelecimento de disposições complementares a tais normas. Nesse sentido, a Portaria n.º 3.214/7825 aprova diversas Normas Regulamentadoras (NRs), também relativas à segurança e medicina do trabalho. A NR-6, por exemplo, complementa o artigo 166 da CLT, trazendo a definição de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) em seu item 6.1. Em relação aos EPIs, cabe informar que o item 4.12 da NR-4 orienta sua utilização somente quando não for possível eliminar completamente os riscos à saúde e à integridade do trabalhador. Também é digna de nota a NR-926, que obriga os empregadores a elaborar e implementar um Programa de Prevenção dos Riscos Ambientais (PPRA), com fins de “antecipação, reconhecimento, avaliação e consequente controle da ocorrência de riscos ambientais existentes ou que venham a existir no ambiente de trabalho”. Além da CLT e das NRs, a Lei Orgânica da Saúde27, que dispõe sobre a promoção, proteção e recuperação da saúde, bem como sobre a organização e o funcionamento dos serviços correlatos, traz previsões quanto à proteção e a saúde do meio ambiente do trabalho.28 Vale também mencionar as disposições encontradas na Lei sobre os Planos de Benefícios da Previdência Social, quanto à definição de acidente de trabalho e sua relação íntima com a qualidade do meio ambiente do trabalho.29 24) Artigos 162 a 200 da CLT. 25) Portaria do Ministério do Trabalho e Emprego n.º 3.214 de 8 de junho de 1978. 26) Alterada pela Portaria da Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho n.º 25 de 1994. 27) Lei n.º 8.080, de 19 de setembro de 1990. 28) Seu artigo 3º apresenta o trabalho como um fato determinante e condicionante para a saúde. O artigo 6º, §3º, incisos I e V, fala sobre os riscos de acidentes de trabalho e suas vítimas. Os artigos 6º, incisos I e V, 13, incisos II e VI, e 16, inciso II, alínea “a” incluem no campo de atuação do Sistema Único de Saúde a saúde do trabalhador e do meio ambiente do trabalho. 29) Lei n.º 8.213, de 24 de julho de 1991, artigos 19 e 20. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Tais instrumentos cumprem a determinação do artigo 7º, inciso XXII, da Constituição da República, que estabelece como um direito dos trabalhadores urbanos e rurais a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança.

3) Responsabilidade objetiva do empregador no meio ambiente laboral

Conforme a definição dada por Tércio Sampaio Ferraz Júnior, a responsabilidade objetiva ocorre quando “[...] a prestação se exige não porque pela sua ação o sujeito se compromete ou porque dela resultou um dano, mas porque há um risco potencial na situação”30. Tal reponsabilidade objetiva, fundada no risco, originou-se da dificuldade de comprovação em juízo da culpabilidade do agente em relações jurídicas complexas, como são as empregatícias, diante do desequilíbrio de poder ali existente. Assim, busca-se fundamentar a responsabilidade – e, consequentemente, justificar a indenização – não mais por conta de culpa do agente, como ocorre na responsabilização subjetiva, mas pelo risco produzido por determinada atividade pela qual ele é responsável. No tocante ao sistema brasileiro ambiental, o primeiro texto a instituir a responsabilidade objetiva ambiental foi o Decreto 79.347 de 1977, fruto da Convenção Internacional sobre Responsabilidade Civil por Poluição de Mar por Óleo, de 20 de novembro de 1969. Seguidamente sobreveio a Lei 6.453, também de 1977, que trouxe, no seu artigo 4°, a caracterização da responsabilidade civil objetiva em detrimento de danos nucleares. Enfim, em 1981 foi promulgada a Lei 6.938, que criou a Política Nacional do Meio Ambiente. Seu artigo 14, § 1° determina a responsabilização dos causadores de danos ao meio ambiente, “independentemente da existência de culpa”. Insta mencionar o artigo 15 da mesma Lei, que estabelece pena de reclusão e multa ao agente que tão-apenas causar ou agravar perigo à “incolumidade humana, animal ou vegetal”. A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 recepcionou a Lei 6.938/81 e deixou intacta a responsabilização objetiva do causador do dano ambiental. O artigo 225, §3º, da Carta Magna, ao prever a reparação dos danos ocasionados por condutas e atividades lesivas ao meio ambiente, 30) FERRAZ JÚNIOR, Tércio Sampaio. Introdução ao estudo do direito. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1994. Obra dedicada ao Instituto Terra

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nada fala em comprovação de dolo ou culpa. Sobre aplicação da responsabilidade ambiental objetiva em relação aos danos causados ao meio ambiente do trabalho, Sebastião Geraldo de Oliveira ressalta que o artigo 200, VIII, da Constituição da República, ao incluir o local de trabalho no conceito de meio ambiente, permite a interpretação de que os danos causados pelo empregador ao meio ambiente do trabalho devam ser ressarcidos sem a necessidade de demonstração da culpa do agente ou da ilicitude de sua conduta, isto é, bastando constatar o dano e o nexo causal.31 A responsabilidade objetiva ainda se encontra explicitamente estabelecida em outros instrumentos esparsos do ordenamento jurídico brasileiro, tais como: Lei 7.092/83, que trata dos danos decorrentes de transporte rodoviário; Lei 7.542/86, sobre a responsabilidade de danos à segurança de navegações, a terceiros e ao meio ambiente; Lei 7.661/88, sobre danos aos recursos naturais e culturais da zona costeira; Lei 7.802/89, que trata de danos à saúde das pessoas e ao meio ambiente; Lei 7.805/89, sobre danos causados ao meio ambiente, decorrentes de atividades mineradoras; Lei 8.171/91, por danos causados ao meio ambiente, decorrentes de atividades agrícolas; Lei 8.974/95, sobre atividades decorrentes de biogenética.

4) Ação Civil Pública por danos ao meio ambiente laboral O termo “ação civil pública” foi primeiramente mencionado no artigo 3º, inciso III, da Lei Orgânica Nacional do Ministério Público (Lei Complementar federal nº. 40, de 13-12-81). A expressão, porém, veio a ser consagrada na Lei n°. 7.347/85, que cuidou da defesa do meio ambiente, do consumidor e de valores culturais. A ação civil pública é instrumento processual de ordem constitucional adequado para reprimir ou impedir danos ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, e por infrações da ordem econômica. Sua natureza pode ser condenatória, cautelar, de execução, constitutiva ou meramente declaratória. A ação civil pública visa proteger os interesses de natureza metaindividual, compreendidos os difusos, os direitos coletivos e os direitos individuais homogêneos32. Os direitos difusos são os de natureza indivisível de titulares indeter31) OLIVEIRA, Sebastião Geraldo de. Indenizações por acidente do trabalho ou doença ocupacional. 2. ed. São Paulo: LTr, 2006, p. 95. 32) A Lei 8.078/90, em seus artigo 81, parágrafo único, incisos I, II e III, traz as definições dos Direitos Humanos e Meio Ambiente

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minados, ligados por circunstâncias de fato; já os direitos coletivos são aqueles também de natureza indivisível, mas de titulares pertencentes a uma mesma categoria, grupo ou classe; enquanto que os direitos individuais homogêneos são divisíveis, de titulares determinados, mas decorrentes de origem comum. Como leciona Celso Antonio Pacheco Fiorillo33, em se tratando de direito individual homogêneo, o legitimado para a ação civil pública age como legitimado extraordinário, pleiteando em nome próprio direito alheio.34 A não adoção, pelo empregador, das medidas de prevenção a acidentes de trabalho previstas na legislação (CLT e Normas Regulamentadoras) configura uma violação de interesse difuso, caso em que pode-se requerer a promoção adequada do meio ambiente do trabalho, como pela instalação de equipamentos de segurança específicos. O interesse difuso é constatado na medida em que o bem jurídico é indivisível e os titulares são indeterminados. Todos os trabalhadores de determinada empresa, presentes e futuros, e mesmo os indivíduos que não são empregados encontram-se sujeitos às suas condições ambientais: prestadores de serviço, visitantes, a comunidade vizinha etc. Comungam tão somente de uma circunstância de fato, qual seja, a de convivência dentro ou no entorno de determinado estabelecimento empresarial. A Constituição Federal de 1988 conferiu ao Ministério Público legitimidade para a propositura da ação civil pública, “para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”, nos termos do artigo 129, inciso III. Tal legitimidade, contudo, é concorrente, conforme indica o próprio texto constitucional, no §1º do articonceitos de direito difuso, direito coletivo e direito individual homogêneo. 33) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, pp. 5-10. 34) A jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho é pacífica em aceitar a propositura de ação civil pública em defesa de direito individual homogêneo, como é possível aduzir de trecho de Acórdão do Tribunal superior do Trabalho: “O Ministério Público pode agir como substituto processual em nome da sociedade na defesa de -interesses ou direitos individuais homogêneos-. Para tanto, é necessário que esteja presente a relevância social, bem como a adequação com o desempenho de sua função institucional. A relevância social é auferida conforme a natureza do dano (saúde, segurança e educação públicas). Já a compatibilidade com a função institucional encontra amparo quando o direito ou interesse relaciona-se com a ordem jurídica, com o regime democrático, interesses sociais e individuais indisponíveis, conforme disposto no art. 127 da Constituição Federal.” (TST RR 559 559/2002-05103-00.6, Relatora: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 14/10/2009, 5ª Turma. No mesmo sentido: TST AIRR 1277/2000-014-04-40.3, Relator: Luiz Philippe Vieira de Mello Filho, Data de Julgamento: 04/11/2009, 1ª Turma; e TST RR 1575/2003-00322-00.0, Relatora: Kátia Magalhães Arruda, Data de Julgamento: 18/11/2009, 5ª Turma). Obra dedicada ao Instituto Terra

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go 129, e o artigo 5º a Lei 7.347/85, que estabelece como demais legitimados a Defensoria Pública, os entes públicos e as associações cujas finalidades institucionais incluam o tema em questão, dentre as quais estão os sindicatos. O artigo 1º, inciso I, da Lei 7.347/85 estabelece a adequação da ação civil pública na proteção do meio ambiente, no qual se inclui o meio ambiente do trabalho. Dessa forma, tanto o Ministério Público do Trabalho quanto os sindicatos, no desempenho de suas funções de proteção – o Ministério, a da ordem jurídica e dos interesses sociais coletivos; e os sindicatos, os interesses de determinada categoria de trabalhadores, encontram-se legitimados para propor a ação civil pública trabalhista, e devem fazê-lo quando identificada a violação de direitos, com o objetivo de obrigar o empregador a cumprir as normas trabalhistas de segurança, higiene e medicina do trabalho, mediante a implementação de medidas individuais e coletivas de adequação e proteção, sob pena de multa diária. Ao Ministério Público do Trabalho é reservada, ainda, no plano administrativo, a possibilidade de instauração de inquérito civil, em que ocorrerá a análise e apuração de fatos, visando à prevenção e à regularização da atividade empresarial nociva ao meio ambiente do trabalho. Na ação civil pública trabalhista em que o autor é outro legitimado que não o Ministério Público do Trabalho, é obrigatória sua participação como custos legis, a fim de garantir o cumprimento dos interesses coletivos a que o órgão se destina a proteger, sob pena de nulidade do processo, conforme dispõe o artigo 5º, §1º, da Lei 7.347/85. Sua intimação compete à autoridade judiciária, cabendo ao Ministério quaisquer poderes que lhe seriam destinados caso fosse o propositor da ação. Vale salientar que, ainda que a ação civil pública trabalhista tenha sido proposta por uma entidade sindical, o inquérito civil compete exclusivamente ao órgão ministerial.35 A propositura da ação civil pública para a defesa da qualidade do meio ambiente do trabalho está diretamente relacionada ao princípio da prevenção. Tal princípio retira sua importância do fato de que os danos ambientais, inclusive ao ambiente de trabalho, são, muitas vezes, irreversíveis e irreparáveis. Ele consta do Princípio 15 da Declaração do Rio de 199236, e foi adotada pelo tex-

to constitucional brasileiro, que em seu artigo 225 estabelece o dever de defesa e preservação do meio ambiente37. Vale lembrar que, como mencionado anteriormente, a legislação infraconstitucional relacionada à proteção do meio ambiente do trabalho prevê mecanismos jurídicos específicos para a prevenção de danos à saúde e à integridade do trabalhador, como a interdição de estabelecimentos, serviços e equipamentos, ou embargo de obras, que representem risco grave e iminente ao trabalhador.38 A competência da Justiça do Trabalho para julgar violações à saúde e segurança do meio ambiente do trabalho pode ser depreendida do artigo 114 da Constituição da República.39 Contudo, a utilização da ação civil pública trabalhista era inexpressiva até a entrada em vigor da Lei Complementar 75/9340, que, em seu artigo 83, inciso III, estabelece ser competência do Ministério Público do Trabalho “promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantido”. Tais “interesses coletivos” devem ser interpretados de forma abrangente, compreendendo o direito difuso ao meio ambiente do trabalho de qualidade, bem como os direitos individuais homogêneos a ele relacionados.41

35) LEAL JÚNIOR, João Carlos; FREITAS FILHO, Julio Cesar de. Da ação civil pública em matéria trabalhista. Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 30, n. 2, 2011, p. 103.

39) A Súmula n.º 736 do Supremo Tribunal Federal consolida esse entendimento: “Compete à Justiça do Trabalho julgar as ações que tenham como causa de pedir o descumprimento de normas trabalhistas relativas à segurança, higiene e saúde dos trabalhadores.”

36) Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, adotada na Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, tendo se reunido no Rio de Janeiro, de 3 a 14 de junho de 1992. Princípio 15: “Com o fim de proteger o meio ambiente, o princípio da precaução deverá ser amplamente observado pelos Estados, de acordo com suas capacidades. Quando houver ameaça de danos graves ou irreversíveis, a ausência de certeza científica absoluta não será utilizada como razão para o adiamento de medidas economicaDireitos Humanos e Meio Ambiente

mente viáveis para prevenir a degradação ambiental.” 37) Artigo 225 da CRFB/88: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.” 38) Em relação ao rito processual da ação civil pública trabalhista, a Justiça do Trabalho reconhece no princípio da prevenção o fundamento da tutela inibitória antecipada, pela qual são determinadas medidas voltadas a impedir a prática, continuação ou repetição de violação à saúde e à integridade do trabalhador no ambiente de trabalho (Nesse sentido: TRT-10, RO 01970-2009-011-10-00-8 Relator: Mário Macedo Fernandes Caron, Data de Julgamento: 01/06/2011, 2ª Turma; TRT-24 MS 01527-2007-007-24-00-0 (RO), Relator: Nicanor de Araujo Lima, Data de Julgamento: 24/09/2008, 7ª Vara do Trabalho de Campo Grande/ MS; TRT-23 - MT 01088.2009.008.23.00-9 RO, Relator: Tarcísio Valente, Data de Julgamento: 14/12/2010, 1ª Turma, Data de Publicação: 24/01/2011

40) Lei complementar nº 75, de 20 de maio de 1993, que dispõe obre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União. 41) LEAL JÚNIOR, João Carlos; FREITAS FILHO, Julio Cesar de. Da ação civil pública em matéria trabalhista. Semina: Ciências Sociais e Humanas, v. 30, n. 2, 2011, p. 98. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Conclusão

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A preocupação com a qualidade do meio ambiente do trabalho vai além de questões específicas e particulares da relação empregatícia, alcançando uma preocupação mais abrangente que se traduz na qualidade de vida de todos aqueles envolvidos na atividade laboral, principalmente em relação à sua saúde e segurança. Por intermédio do trabalho, realizado em condições de liberdade, igualdade, segurança e dignidade, que os seres humanos têm condições de enfrentar a pobreza e relacionarem-se com a sociedade e o meio ambiente de uma maneira verdadeiramente sustentável. Nesse sentido, o Direito do Trabalho pode e se coaduna com a efetiva proteção do meio ambiente, e isto está comprovado pelas normas internacionais e estatais próprias do ordenamento jurídico laboral e ambiental. No Brasil, a Constituição Federal reconhece, como parte integrante do meio ambiente, o meio ambiente do trabalho. Ao mesmo tempo, estabelece os valores sociais do trabalho como princípios fundamentais da República, fundando a ordem econômica na valorização do trabalho humano e na defesa do meio ambiente. Dessa forma, é possível depreender do texto constitucional que um meio ambiente verdadeiramente equilibrado sustentável só é alcançado se o ambiente no qual as atividades laborais são desempenhadas se mostrar sadio e seguro. Isso porque o desenvolvimento do ser humano, objetivo último das normas ambientais, está intimamente relacionado e depende da existência de condições dignas de trabalho. A proteção ao meio ambiente do trabalho se confunde com direitos fundamentais/humanos como o direito à saúde e à segurança, denunciando a natureza sincretista dos direitos difusos de terceira geração, os direitos de solidariedade. As previsões encontradas na CLT e nas Normas Regulamentadoras do Ministério do Trabalho, bem como em dispositivos esparsos de outras leis infraconstitucionais, cumprem a determinação constitucional de estabelecer a redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança, como um direito dos trabalhadores urbanos e rurais. Por sua vez, a atuação preventiva do poder de polícia da Administração Pública se mostra imprescindível, a fim de evitar o dano ao meio ambiente do trabalho, que, como qualquer outro dano ambiental, pode ser irreversível. Enquanto bem difuso, o meio ambiente do trabalho merece a mesma proteção conferida pela legislação brasileira às demais manifestações do meio ambiente, o que inclui a responsabilização objetiva dos agentes violadores das regras garantidoras de sua saúde e segurança, independente do fator culpabiliDireitos Humanos e Meio Ambiente

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dade. A Ação Civil Pública trabalhista representa o grande instrumento para a defesa em juízo da saúde e da segurança do meio ambiente laboral, ou seja, nas hipóteses em que o interesse não é de natureza individual. Reveste-se de relevância o papel do Ministério Público do Trabalho, que, mesmo quando não atua como propositor da ação, o faz como custos legis, devendo desempenhar igualmente sua função de defesa dos interesses sociais indisponíveis, dentre os quais destacam-se aqui o equilíbrio, a sustentabilidade, a saúde e a segurança do meio ambiente do trabalho.

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Ensaio sobre a função de garantia dos juízes e tribunais em matéria ambiental Hermes Zaneti Jr.1 Ministério Público do Estado do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 Direitos Fundamentais como Limites e

Vínculos no Modelo do Constitucionalismo Garantista: O Conceito

Formal e Material do Direito Fundamental ao Meio Ambiente.

1.1

Constitucionalismo Garantista e a Constituição Brasileira como

Constituição de Terceira Geração. 1.2 Direito de Propriedade V Direito

Urbanístico-Ambiental: Conceito Formal de Meio Ambiente. 1.3 O

Conceito Material/Substancial de Direito Urbano-Ambiental: Posição

Jurídica Dinâmica que Garante Permissões Especiais de Aproveitamento.

2 O Direito Fundamental ao Meio Ambiente Urbano e o Postulado Hermenêutico “In Dubio Pro Natura”: Ônus Argumentativo Pro

Ambiente. 3 A Teoria dos Precedentes como Mecanismo de Controle das Decisões Judiciais por Déficit de Fundamentação (Disfunção

Argumentativa): Limites e Vínculos ao Ativismo Judicial. Conclusão

1) Especialista em Direito Urbano Ambiental FMP/RS. Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Pós-doutorado pela Università degli Studi di Torino/IT. Promotor de Justiça MPES. Membro da ABRAMPA.

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Introdução

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Os juízes e tribunais podem decidir contra ou de forma indiferente ao direito fundamental ao meio ambiente e ao direito urbano-ambiental expressamente previsto na Constituição e nas leis alegando aplicar o princípio da proporcionalidade ou razoabilidade, interpretando cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados para privilegiar os interesses dos poderes políticos (governo) ou econômicos (mercado/privado)? Este estudo visa a crítica em matéria de interpretação/aplicação do direito no Estado Democrático Constitucional a partir da premissa de que a Constituição e as leis ambientais brasileiras são ativistas em matéria ambiental, fornecendo, na maior parte dos casos o modelo a ser seguido pelo legislativo, pelos órgãos da administração pública e pelos tribunais, se confrontadas ao art. 225 da CF/88. Isso porque os precedentes jurisprudenciais devem ser vinculados à Constituição e a lei escrita, em uma grade dogmática de aplicação/interpretação do direito, restringindo assim o ativismo judicial contra a tutela ambiental, fenômeno muito comum em nossos dias, especialmente através da indevida aplicação do “princípio” da proporcionalidade e das cláusulas gerais, tanto no direito material quanto no direito processual, que se dá em sentido frontalmente contrário ao indicado pelo legislador e pela Constituição, consequentemente, em forma degenerada de exercício arbitrário da jurisdição que deveria garantir os direitos fundamentais. Exemplo dessa nefasta utilização retórica e retrógrada da teoria dos princípios é a ponderação de direitos e interesses para privilegiar o aspecto econômico da livre iniciativa e da propriedade privada mediante as conhecidas teorias do fato consumado (v.g. o direito de manter construções em contrariedade com o plano direito municipal, as normas edilícias e as normas ambientais, em matéria urbanística-ambiental) e do periculum in mora (in)reverso (v.g. a não concessão de tutelas antecipadas para preservação do bem jurídico ambiental em razão do perigo/risco de dano material ao patrimônio do investidor ou empresário). Trata-se de um fenômeno conhecido em todo mundo de apropriação do direito e da racionalidade à lógica de mercado, pervertendo o “nunca mais” representado pelos direitos fundamentais como limites e vínculos das liberdades do poder político (governo) e dos poderes de mercado (economia), em um propenso relativismo moral e jurídico que atua em prol da face selvagem destes poderes, aquela não-regulada pelo direito e, portanto, à margem do Estado Constitucional. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Assim, pretendemos contribuir ao debate apresentando um modelo de constitucionalismo fortíssimo, de inspiração na teoria garantista de Luigi Ferrajoli, que pode apresentar validamente limites e vínculos à degeneração do direito pelos poderes selvagens da política e da economia2. Não obstante, dedicaremos um pequeno espaço a descrição dos direitos subjetivos coletivos como direitos fundamentais, demonstrando, a partir do caso paradigmático do direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, sua qualidade de posição jurídica dinâmica, ao mesmo tempo direito e dever, social e liberal, coletivo e individual, que permite especiais permissões de aproveitamento. Em continuidade, iremos analisar a teoria da interpretação/aplicação do direito como forma de controle das decisões judiciais e do ativismo judicial contra ou indiferente ao meio ambiente. Procurando conceituar a função do princípio in dubio pro natura como limite e vínculo da interpretação/aplicação judicial, portanto, como metanorma de aplicação do direito, ou, postulado normativo aplicativo para resolução das colisões entre direitos fundamentais (modelo combinado de regras, princípios e postulados). Neste caminho iremos demonstrar a existência de um ônus argumentativo pro ambiente em abstrato pelo texto da Constituição Federal Brasileira, decorrente não só da posição constitucional do art. 225 da CF/88, mas também, da permeabilidade da matéria ambiental em todo o texto constitucional, especialmente nos capítulos dedicados à ordem econômica (art. 170, inc. VI) e urbanística (art. 182). Ao final, iremos apontar os meios de atuação efetiva e proveitosa do Ministério Público e dos demais legitimados às ações coletivas no tocante a impugnação das decisões judiciais que não mostrarem fundamentação racional de acordo com o direito fundamental ao meio ambiente. A relevância acadêmica do tema reside na necessidade de construir uma teoria sólida e fornecer instrumentos para impor aos juízes e tribunais a ob2) Para a correta compreensão dos direitos fundamentais como limites e vínculos aos poderes políticos e do mercado conferir a extensa obra de Luigi Ferrajoli, em especial: Luigi Ferrajoli. Por Uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto Alegre: 2011; Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 03-40; Luigi Ferrajoli. Diritto e ragione: Teoria del Garantismo Penale, 8ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2004; Luigi Ferrajoli. Il costituzionalismo di terza generazione. L’esperienza europea e quella latino-americana a confronto. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. (Conferência proferida em Florianópolis, 26.11.2009); Luigi Ferrajoli. Per un Pubblico Ministero come Istituzione di Garanzia. Questioni di Giustizia: 2012, p. 31/45; Luigi Ferrajoli. Poteri Selvaggi. La Crise della Democrazia Italiana. Roma/Bari: Laterza, 2012; Luigi Ferrajoli. Principia Iuris: Teoria del Diritto e Teoria della Democrazia. Roma/Bari: Laterza, 2007; Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista come Modelo Teorico e come Progetto Politico. Roma/Bari: Laterza, 2013. Obra dedicada ao Instituto Terra

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servância da vinculatividade fortíssima da constituição e das leis em matéria ambiental e da fundamentação racional ambientalmente adequada de suas decisões, inclusive no que diz respeito aos precedentes dos tribunais, em especial o Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça, cortes supremas responsáveis respectivamente pela interpretação da norma constitucional e da norma infraconstitucional, a fim de evitar danos ambientais às presentes e futuras gerações chancelados pelo Poder Judiciário que se perenizam no tempo independentemente da reversão jurídica futura nas instâncias extraordinárias. Isso porque, no atual quadro da história de nosso país, a teoria dos princípios e o uso das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados tem sido deturpados em favor de interpretações jurídicas tendencialmente ativistas em prol dos interesses imediatos e econômicos com prejuízo das funções e dos processos ecológicos essenciais tutelados pelo direito (art. 225, § 1º, inc. I da CF/88). A histórica construção dos direitos fundamentais como limites e vínculos permite aos juristas a reconstrução atual do direito ambiental e do direito urbanístico ambiental como formas de controle das distorções argumentativas representadas por essas decisões, na maior parte das vezes, ausentes de fundamentação jurídica adequada, por deficiência de justificação interna (lógica formal) e externa (lógica-argumentativa, questões de fato e de direito).3 O constitucionalismo fortíssimo defendido aqui adota as premissas dos quatro postulados do modelo garantista (MG): legalidade, completude deôntica, jurisdicionalidade/justicialidade e acionabilidade,4 devidamente adap3)  Jerzy Wróblewski. “Legal Decision and its Justification”. Logique et Analyse. n. 14. Bruxelles: Centre National de Recherches de Logique, 1971; Jerzy Wróblewski. The Judicial Application of Law. Dordrecht: Kluwer Academic Publishers, 1992; Robert Alexy. Teoría de la Argumentación Jurídica. Trad. Manuel Atienza e Isabel Espejo, 2ª ed. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, 2007, p. 213 e ss. “La giustificazione in forma sillogistica – afferma Wróblewski – è una giustificazione interna, poiché non prova la fondatezza delle premesse. Il ruolo della giustificazione esterna è, naturalmente, di primaria rilevanza, ma essa non può essere spiegata mediante strumenti logico-formali. Di conseguenza, il ruolo della logica informale, o logica dell’argomentazione, non risulta affatto minacciato dall’uso della giustificazione sillogistica. Al contrario, quest’ultimo tipo di giustificazione può servire da argomento per sostenere il ruolo decisivo delle valutazione e delle scelte nella determinazione delle premesse delle decisioni giudiziali” Pierluigi Chiassoni. La Giurisprudenza Civile: Metodi d’Interpretazione e Tecniche Argomentative. Milano: Giuffrè, 1999, p. 157, com referências ao trabalho de P. Comanducci. Assaggi di Metaetica, pp. 195/209. 4) Luigi Ferrajoli define o modelo garantista (MG) como o modelo teórico adequado ao constitucionalismo garantista baseado em quatro princípios ou postulados, dois vinculados às garantias primárias, dois vinculados às garantias secundárias: a) princípio da legalidade (em sua dupla versão: legalidade lata, formal ou legal, também denominada mera legalidade; legalidade estrita, substancial ou constitucional); b) princípio da completude deôntica (consistente na obrigação de introdução dos deveres correspondentes aos direitos fundamentais como garantias Direitos Humanos e Meio Ambiente

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tadas ao constitucionalismo brasileiro que se apresenta híbrido entre common law e civil law5. Nesse sentido, vale relembrar a importância da revisão do dogma da separação de poderes em prol de uma separação entre funções de governo e funções de garantia, conforme a proposta de Luigi Ferrajoli,6 na qual o Poder Judiciário atua como garantia de segundo grau (postulado da jurisdicionalidade/judicialidade), movimentado pelo Ministério Público ou outro legitimado (postulado da acionabilidade), igualmente instituições de garantia de segundo grau, para defesa da integridade dos direitos fundamentais, revisando, igualmente, a proibição da utilização dos precedentes judiciais como fontes formais do direito, em prol de sua utilização em conformidade com as leis e a Constituição.7 primárias, através de normas e instituições públicas de garantia, desvinculadas das funções de governo, destinadas a sua obediência – limites dos direitos de liberdade - e satisfação – prestações dos direitos sociais). Garantias primárias. c) princípio da jurisdicionalidade (se existem garantias primárias deve existir uma jurisdição como garantia secundária que possa corrigir a sua não efetivação ou efetivação insatisfatória por omissão ou comissão); d) princípio da acionabilidade (se existe uma jurisdição devem existir órgãos públicos voltados a satisfação das garantias primárias por via da judicialização das ações próprias a corrigir os atos omissivos ou comissivos dos poderes públicos e privados que atentem contra as garantias primárias), ver Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista come Modelo Teorico e come Progetto Politico, § 2.1, no prelo, gentilmente cedido pelo autor. Existe tradução para o português em andamento. 5) Cf. Hermes Zaneti Júnior. A Constitucionalização do Processo: O Modelo Constitucional da Justiça Brasileira e as Relações entre Processo e Constituição. São Paulo: Atlas, 2014 (segunda edição, revista, ampliada e modificada, da tese de doutorado, Hermes Zaneti Júnior. Processo Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007). 6) Sobre o tema, para aprofundar essas questões, Luigi Ferrajoli, Principia Iuris: Teoria del Diritto, p.869 e ss. 7)  A teoria dos procedentes tem chamado muita atenção nos últimos anos, atraindo uma série de novos estudos ligados a superação da antiga dicotomia civil law/common law entre precedentes vinculantes e precedentes persuasivos. Para uma leitura adequada desta teoria cf. Thomas Bustamante; Carlos Bernal Pulido (eds.). On the Philosophy of Precedent: Proceedings of the 24th World Congress of the International Association for Philosophy of Law and Social Philosophy,Beijing, 2009, vol. III. Stuttgart/Sinzheim: Franz Steiner Verlag/Nomos, 2012; Neil MacCormick; Robert S. Summers (eds.). Interpreting precedents: a comparative study. Sudbury, MA: Dartmouth Publishing Company, 1997.Entre outras obras individuais, vale citar: Nicola Picardi, La Giurisdizione all’Alba del Terzo Millennio. Milano: Giuffrè, 2007; Id. Appunti sul precedente giudiziale, cit., p. 201-208, com tradução para o português, Nicola Picardi. “Notas sobre o precedente judicial”. Trad. Hermes Zaneti Jr. In: Nicola Picardi. Jurisdição e Processo. Org. e Revisor Carlos Alberto Alvaro de Oliveira. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 145-155; Marino Bin. Il Precedente Giudiziario: Valore e Interpretazione. Milano: CEDAM, 1995. No brasil: Thomas da Rosa de Bustamante. Teoria do Precedente Judicial: A Justificação e a Aplicação de Regras Jurisprudenciais. São Paulo: Noeses, 2012; Luiz Guilherme Marinoni. Precedentes Obrigatórios. São Paulo: RT, 2010; José Rogério Cruz e Tucci. Precedente Judicial como Fonte Obra dedicada ao Instituto Terra

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Isso porque são exatamente os precedentes judiciais, aplicados como fechamento racional do ordenamento jurídico, decididos nos casos concretos mas de forma universalizável, que permitem a partir da garantia da segurança jurídica, da confiança legítima, da previsibilidade, da efetividade e da certeza, diminuir o espaço entre a previsão constitucional e legal e sua aplicação prática, implementando através do Judiciário as políticas públicas previstas abstratamente nos instrumentos legislativos direcionadas a efetivar os direitos fundamentais todas as vezes que as condutas comissivas ou omissivas, do mercado ou da administração pública, frustrarem os mandamentos constitucionais. Trata-se, portanto, de função típica do Poder Judiciário, pelo menos no modelo brasileiro que aceita a ampla judicial review, interpretar e garantir o direito em face dos atos desconformes dos demais poderes. Importante ressaltar a noção de princípios e o papel da interpretação/aplicação como forma de controle da discricionariedade judicial, ou seja, na origem a teoria dos princípios, é limitadora e vinculadora dos juízes e tribunais,8 e sua subversão, pela jurisprudência e pelo(s) assim chamado(s) movimento(s) (neo)constitucionalista, constitucionalismo principiológico ou panprincipialismo, em um modelo liberalista ou relativista do direito, representa o sentido contrário de retorno à arbitrariedade judicial do Estado pré-moderno ou neoliberal, conforme os valores sejam o arbítrio ou o mercado.9 Por essas razões, defenderemos aqui que o modelo de direito adotado pelo Estado Democrático Constitucional10 brasileiro é um modelo em que o ativismo é da Constituição Federal de 1988 e dos direitos fundamentais do Direito. São Paulo: RT, 2004. 8) Assim, “[...] a expressão ‘princípio jurídico’ tem tido uma presença frequente em decisões judiciais e na doutrina brasileira. A expressão foi popularizada entre os profissionais e teóricos do direito no Brasil a partir de uma leitura direta ou, frequentemente, indireta de autores como Ronald Dworkin e Robert Alexy. Ironicamente, um conceito que foi originalmente elaborado como uma forma de estabelecer critérios de racionalidade que limitam a discricionariedade judicial é mais comumente associado no Brasil a um instrumento que permite ao juiz mais liberdade em relação à lei e ao direito posto.” Claudio Michelon. “Princípios e Coerência na Argumentação Jurídica”. In: Ronaldo Porto Macedo Jr; Catarina Helena Cortada Barbieri. (coords.). Direito e Interpretação: Racionalidade e Instituições. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 261/262. No mesmo sentido, Pierluigi Chiassoni. Tecnica dell’Interpretazione Giuridica. Bologna: Mulino, 2007, p. 289. 9) Cf. Luigi Ferrajoli. La Democrazia Attraverso i Diritti: Il Costituzionalismo Garantista come Modelo Teorico e come Progetto Politico, passim. Existe tradução para o português em andamento. 10) Para o conceito de Estado Democrático Constitucional e suas implicações para o processo judicial cf. Hermes Zaneti Júnior. A Constitucionalização do Processo, op. cit., cap. 3. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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nela afirmados com força normativa, vinculante, aplicação direta e imediata, cabendo ao Poder Judiciário a sua garantia e não uma liberdade de interpretação que acaba resultando no “ativismo judicial pernicioso”, como nos casos agrupados em torno do conceito de “fato consumado” e “periculum in mora (in)reverso” com a consequente negativa de vigência da tutela ambiental constitucionalmente adequada.11 11) Isso porque, como se pode aferir de obiter dictum em julgamento da lavra do ministro Herman Benjamin não são os juízes que são ativistas no Brasil, em nosso país o ativismo é das leis e da Constituição; combatendo-se, isto sim, o ativismo judicial pernicioso que sob o falso pretexto da teoria dos princípios, flexibiliza as garantias constitucionais e legais asseguradas ao meio ambiente em prol de interesses imediatistas de lobbies de proprietários, grupos econômicos e políticos. REsp. nº 650.728/SC, rel. Min. Herman Benjamin, DJ sem grifos no original. No mesmo sentido, MOREIRA, Nelson Camatta; NEVES, Rodrigo Santos; BESSA, Silvana Mara de Queiroz; RUDIO, Alexsandro Broeto. Política de proteção do meio ambiente, expansão da exploração do petróleo e atuação do Poder Judiciário (ou ativismo judicial?). Revista de Direito Ambiental. vol. 65, p. 59, Jan, 2012, com importantes referências à contraposição entre Habermas e Dworkin no ponto, esclarecendo a postura de Lenio Luiz Streck e Antonie Garapon. Cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, cit., vol. I; DWORKIN, Ronald. O império do direito. Trad. Jéferson L. Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003; GARAPON, Antonie. O guardador de promessas. Lisboa: Instituto Piaget, 1998; STRECK, Lenio Luiz. A hermenêutica jurídica nos vinte anos da Constituição do Brasil. In: Moura, Lenice S. Moreira de (org.). O novo constitucionalismo na era pós-positivista: homenagem a Paulo Bonavides. São Paulo: Saraiva, 2009; RIGAUX, François. A Lei dos juízes. Lisboa: Instituto Piaget, 1997,

esp. p. 287/292. Citamos um excerto, com referência igualmente a Lenio Luiz Streck ao final: “A judicialização da política é a deliberação de questões de ordem política

por órgãos do Poder Judiciário, sem qualquer tendência política. Quando o Judiciário é provocado pelos jurisdicionados, não há opção do Estado-juiz em decidir ou não. Se o conteúdo da demanda, ou seja, se o pedido e a causa de pedir são relacionados a um direito fundamental, por exemplo, que não tem sido garantido pelo Estado, cabe o Judiciário se manifestar, a fim de garantir que o jurisdicionado tenha o seu direito reconhecido e cumprido por quem é obrigado.“O direito assume um caráter marcadamente hermenêutico”, explica Streck, em função “de um efetivo crescimento no grau de deslocamento do pólo de tensão entre os poderes de Estado em direção à jurisdição (constitucional), diante da impossibilidade de o legislativo (a lei) poder antever todas as hipóteses de aplicação e do caráter compromissório da Constituição, com múltiplas possibilidades de acesso à Justiça”, MOREIRA, Nelson Camatta; NEVES, Rodrigo Santos; BESSA, Silvana Mara de Queiroz; RUDIO, Alexsandro Broeto. Política de proteção do meio ambiente, expansão da exploração do petróleo e atuação do Poder Judiciário (ou ativismo judicial?), § 6. No mesmo sentido, cf., ainda, SANTANNA, Gustavo da Silva; HUPFEER, Haide Maria. Da impossibilidade do poder discricionário do intérprete para os hard cases no direito ambiental. Revista de Direito Ambiental, vol. 64, p. 117, out. 2011; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Deveres fundamentais ambientais – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Democracia participativa e participação pública como princípios do estado socioambiental de direito. Revista de Direito Ambiental, vol. 73, p. 47, jan, 2014, § 3.1; YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Ato jurídico perfeito, direito adquirido, coisa julgada e meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, vol. 66, p. 113, abr, 2012. Obra dedicada ao Instituto Terra

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1) Direitos fundamentais como limites e vínculos no modelo do constitucionalismo garantista: o conceito formal e material do direito fundamental ao meio ambiente

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O direito ambiental deve ser compreendido não mais como um ramo do direito administrativo, mas como normas jurídicas que formam um microssistema com lógica e princípios próprios, a partir da Constituição Federal de 1988 e dos tratados internacionais por ela recepcionados, caracterizado pela transversalidade dentro dos ramos tradicionais da ciência jurídica, a exemplo das disciplinas do direito constitucional ambiental, direito administrativo ambiental, direito penal ambiental, direito processual ambiental etc., uma intervenção que representa uma alteração das premissas tradicionais desses ramos para adequar o direito à função de regular e controlar os efeitos diretos e indiretos da ação humana no meio ambiente natural, artificial, do trabalho e cultural, promovendo o desenvolvimento sustentável (pilares econômicos, sociais e ambientais) para garantia do meio ambiente saudável para as presentes e futuras gerações humanas, assim como, a defesa dos bens ambientais como fim em si, assegurando a dimensão fundamental do meio ambiente junto ao valor fonte da dignidade da pessoa humana.12 12) As ideias aqui desenvolvidas são fruto da reflexão do autor a respeito dos temas tradicionais do biocentrismo e do antropocentrismo em relação a matéria ambiental, valorizando as premissas do debate podemos afirmar que as teses de que os direitos ambientais serão melhor defendidos se fragmentadas as perspectivas natural, artificial, cultural e laboral, bem como, a tutela do bem jurídico fundamental independentemente do reconhecimento de uma titularidade difusa do meio ambiente (macrobem ambiental) como um fim em si mesmo são agregadas e não conflitam com esta visão mais ampliativa, que no entendimento deste texto, resulta da interpretação harmônica dos dispositivos da Constituição Federal de 1988, portanto do direito positivo nacional brasileiro, uma vez que a Constituição deve ser compreendida em sua unidade, “a Constituição não se interpreta em tiras”. Para as posições debatidas conferir Carla Amado Gomes. Introdução ao Direito do Ambiente. Lisboa: AAFDL, 2012; Patrick de Araújo Ayala. Devido Processo Ambiental e Direito Fundamental ao Meio Ambiente. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011; Luigi Ferrajoli. “Por uma Carta dos Bens Fundamentais”. In.: Luigi Ferrajoli. Por Uma Teoria dos Direitos e dos Bens Fundamentais. Porto Alegre: 2011, p. 49-88; Patrícia Iglecias. Direitos Difusos e Coletivos: Direito Ambiental. São Paulo: RT, 2013, p. 17-26; Ana Maria Moreira Marchesan; Annelise Monteiro Steigleder; Sílvia Cappelli. Direito Ambiental. 7ª ed. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2013, p. 35-46, entre outros. Para uma aproximação do conceito adotado aqui de antropocentrismo alargado conferir: “o meio ambiente deve ser embasado em uma visão antropocêntrica alargada mais atual, que admite a inclusão de outros elementos e valores. Esta concepção faz parte integrante do sistema jurídico brasileiro. Assim, nesta concepção, entende-se que o meio ambiente deve ser protegido com vistas ao aproveitamento do homem, mas também com o intuito de preservar o sistema ecológico em si mesmo”. José Rubens Morato Leite. Dano Ambiental: Do Individual ao Coletivo Extrapatrimonial. São Paulo: RT, 2000, p. 95. Para a dimensão ecológica Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Por isto é fundamental sua compreensão a partir do regime jurídico característico dos direitos fundamentais, superando os regimes jurídicos de direito privado fortemente ligados à noção de disponibilidade plena, a exemplo do direito de propriedade, e de direito público, ao revés, ligados tradicionalmente e de forma indevida a uma supremacia do interesse público, geralmente vinculada aos interesses do Estado, pessoa jurídica (frutos de uma superada teoria subjetiva do interesse público), igualmente suplantada pela noção de deveres negativos e positivos impostos pela norma fundamental ambiental ao próprio Estado e aos particulares (art. 225, caput).13 Nesse sentido, em síntese, podemos resumir o direito fundamental ao meio ambiente como um direito de múltiplas funções, justamente caracterizado por uma multifuncionalidade pervasiva na sua interpretação e aplicação, que autoriza deduzir sua natureza jurídica e a possibilidade de ampla judicialização14 como forma de garantia dos patamares constitucionalmente e legalmente assegurados de tutela. A multifuncionalidade do direito fundamental ambiental implica no reconhecimento de sua dimensão objetiva e subjetiva, através da afirmação de direitos e deveres15 negativos ou defensivos, bem como, positivos ou prestacionais, que da dignidade da pessoa humana conferir Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª ed. revista e atualizada. São Paulo: RT, 2012, p. 59-91. 13) SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Deveres fundamentais ambientais – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012. 14) “(...) as normas constitucionais em matéria ambiental possuem eficácia plena, não podendo, em regra, ter sua aplicação integralmente condicionada à prévia regulamentação legal, gerando desde logo posições subjetivas e efeitos objetivos passíveis de uma “judicialização” por meio de todo o rol de ações constitucionais e outros instrumentos de tutela previstos no sistema jurídico-constitucional brasileiro, com destaque para a Ação Civil Pública e a Ação Popular.” Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente, p. 238. 15) Sobre os deveres ambientais afirma a doutrina: “Os deveres fundamentais de proteção do ambiente, de modo similar ao regime jurídico-constitucional dispensado ao próprio direito fundamental ao ambiente, podem apresentar cargas normativas tanto de conteúdo negativo ou defensivo, quanto positivo ou prestacional (...) vinculam juridicamente os particulares no sentido de exigir-lhes não apenas a adoção de medidas negativas, o que ocorre no caso de impedir o particular de realizar determinada atividade que, mesmo potencialmente, possa acarretar dano ambiental, como desmatar a área de mata ciliar ou despejar produto químico no córrego de um rio, como também medidas positivas (de cunho promocional) necessárias à salvaguarda do equilíbrio ecológico, como ocorre na hipótese de medidas voltadas à conservação do patrimônio ambiental ou à reparação de um dano ecológico”, Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos FundamenObra dedicada ao Instituto Terra

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permitem sua judicialização a partir da afirmação de pretensões decorrentes de posições jurídicas complexas, especiais permissões de aproveitamento da norma16, que autorizam a consecução de seus fins, quer em face dos poderes públicos, quer dos atores privados, sendo, a partir da interpretação e no contexto de significado da norma, garantida sua aplicação direta e imediata, com eficácia plena17 tais e Proteção do Ambiente, p. 183; SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Deveres fundamentais ambientais – a natureza de direito-dever da norma jusfundamental ambiental. Revista de Direito Ambiental, Vol. 67, p. 11, jul, 2012. Quanto aos direitos e deveres fundamentais implícitos, a exemplo do dever de solidariedade que dá azo à estrutura de tutela do direito ambiental, é bom ressaltar o papel que o STF vem exercendo na sua afirmação como norma cardinal do sistema: “especial obrigação – que incumbe ao Estado e à própria coletividade – de defendê-lo e de preservá-lo em benefício das presentes e futuras gerações, evitando-se, desse modo, que irrompam, no seio da comunhão social, os graves conflitos intergeracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade na proteção da integridade desse bem essencial de uso comum de todos quantos compõem o grupo social”. STF, Tribunal Pleno, ADI 3.540-1/DF, rel. Min. Celso de Mello, j. 01.09.2005.

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16) Deve-se eliminar no direito ambiental a visão clássica dos direitos subjetivos ligados ao exercício individual de seus titulares, poder da vontade ou interesse protegido, para adotarse uma postura dinâmica de direitos subjetivos funcionalizados à tutela do meio ambiente e da sadia qualidade de vida. “Contrapõem-se, tradicionalmente, duas definições de direito subjetivo: direito subjetivo como poder da vontade e direito subjetivo como interesse protegido... O vício metodológico está na crença de que um interesse tutelado pelo ordenamento seja finalizado em si mesmo.” Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direitos Civil Constitucional, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p.120. Não se tratam apenas de situações jurídicas complexas, mas de permissões especiais de aproveitamento normativamente previstas e funcionalizadas à finalidade de tutela definida na constituição. Assim, “ (...) permissão normativa de aproveitamento específico” António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro. Da Boa Fé no Direito Civil. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2007, esp. p. 662-670. Trata-se na verdade do exercício de verdeiros direitos-deveres, imperativos de tutela direcionados ao poder público e a sociedade, nos termos da norma constitucional. “Uma situação híbrida que não pode ser reconduzida às situações subjetivas tradicionalmente definidas ativas e passivas é a potestà (...) pátrio poder (...) tutela (...) curatela (...) figuras do pró-tutor (...) do síndico (...) configuram situações denominadas potestà. Esta constitui um verdadeiro ofício, uma situação de direito-dever: como fundamento da atribuição dos poderes existe o dever de exercê-los. O exercício da potestà não é livre, arbitrário, mas necessário no interesse de outrem ou, mais especificamente, no interesse de um terceiro ou da coletividade”. Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil: Introdução ao Direitos Civil Constitucional, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007. p. 129; Fernando Noronha. Direito das Obrigações. São Paulo: Saraiva, 2003, esp. p. 61-64. 17) Neste sentido, dando suporte aos conceitos de multifuncionalidade e explicitando o regime jurídico dos direitos fundamentais no Brasil é mais amplo do que nos estados europeus, a exemplo de Portugal, pois não diferencia entre direitos de liberdade e direitos sociais, cf. Ingo Wolfgang Sarlet. “Direitos sociais como direitos fundamentais: seu conteúdo, eficácia e efetividade no atual marco jurídico-constitucional brasileiro”. In: Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J..J. Gomes Canotilho. São Paulo: Coimbra; RT, 2009. p. 213-253. Ainda sobre a multifuncionalidade: “Verifica-se que o ambiente recebe um tratamento de duplo alcance. Ele adquire um relevo concomitantemente objectivo e Direitos Humanos e Meio Ambiente

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e cláusula pétrea, vedado portanto a sua supressão e o retrocesso social.18 Trata-se de reconhecer a estes direitos fundamentais, a estas posições jurídicas, todas as prerrogativas asseguradas aos tradicionais direitos fundamentais subjetivos individuais, porém agora dinamizadas e funcionalizadas pelo mar-

subjectivo – o de elemento institucional e organizatório e o de feixe de direitos fundamentais e de situações subjectivas conexas ou próximas. O ambiente surge a nível das tarefas fundamentais, de incumbências e de formas de organização do Estado [art. 9º, alínea e), desde logo] e a nível de direitos e deveres fundamentais (arts. 66º, 52º e 59º, principalmente). Mais do que noutras áreas, a multifuncionalidade ou multidimensionalidade torna-se aqui irrecusável. E quer uns aspectos quer outros têm de ser integrados, numa necessária elaboração sistemática, com os demais princípios e com as demais situações subjectivas. Por isso, pode aludir-se à presença no ordenamento português de uma verdadeira global e coerente, e não de simples pontualizações constitucionais, fragmentárias e assistemáticas.” Jorge Miranda, Manual de direito Constitucional – Direitos Fundamentais, op. cit, p. 536.. “Com esta estrutura bifronte, os direitos atinentes ao ambiente ficam sujeitos ora ao regime dos direitos, liberdades e garantias (...) ora aos direitos econômicos, sociais e culturais. E se só os primeiros são de aplicação imediata (...), nem por isso os segundos deixam de ter a proteção adequada na Constituição e na lei (...)”. Jorge Miranda. “A Constituição e o Direito do Ambiente”. In.: Idem. Escritos Vários sobre Direitos Fundamentais. Estoril: Princípia Editora, 2006. p. 324/325, sem grifo no original. Sobre o regime jurídico dos direitos fundamentais em Portugal conferir: “As normas que consagram direitos económicos, sociais e culturais são quase todas normas programáticas, conforme se sabe, e a inconstitucionalidade por omissão (art. 283º da Constituição) é a sua violação mais característica. Não deixa, porém, de se registar inconstitucionalidade por acção na hipótese de normas legais contrárias (designadamente por desvio de poder legislativo) e na hipótese de revogação (não, logicamente, de declaração de inconstitucionalidade) de normas legais destinadas a conferir exequibilidade às normas constitucionais (...)”. Jorge Miranda. Manual de Direito Constitucional – Direitos Fundamentais. 3ª ed. Coimbra: Coimbra, 2000, Tomo IV, p. 400, sem grifo no original. No mesmo sentido Carla Amado Gomes. Risco e modificação do acto autorizativo concretizador de deveres de proteção do ambiente. Dissertação de doutoramento em Ciências Jurídico-políticas (direito administrativo). Lisboa: Edição da autora, 2012 (disponível em pdf na internet). 18) “Por uma questão de justiça entre gerações humanas, a geração presente tem a responsabilidade de deixar, como legado às gerações futuras, pelo menos condições ambientais tendencialmente idênticas do que aquelas recebidas das gerações passadas, estando a geração vivente, portanto, vedada a alterar em termos negativos as condições ecológicas, por força do princípio da proibição de retrocesso socioambiental e do dever (do Estado e dos particulares) de melhoria progressiva da qualidade ambiental. No caso especialmente da legislação constitucional de proteção do ambiente, há que assegurar a sua blindagem contra retrocessos que a tornem menos rigorosa ou flexível, admitindo práticas poluidoras hoje proibidas, assim como buscar sempre um nível mais rigoroso de proteção, considerando especialmente o déficit legado pelo nosso passado e um “ajuste de contas” com o futuro, no sentido de manter um equilíbrio ambiental também para as futuras gerações. O que não se admite, até por um critério de justiça entre as gerações humanas, é que sobre as gerações futuras recaia integralmente o ônus do descaso ecológico perpetrado pelas gerações presentes e passadas.” Ingo Wolfgang Sarlet; Tiago Fensterseifer. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. 2ª ed. revista e atualizada. São Paulo: RT, 2012, 227/228. Obra dedicada ao Instituto Terra

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co constitucional, como garantia do “direito fundamental em sentido amplo”19. Portanto, o direito fundamental ao meio ambiente tem natureza jurídica de direito fundamental social e de liberdade, combinando as clássicas dimensões negativas e prestacionais. Não se restringe a esfera pública, mas alcança a esfera das relações privadas, para instituir limites (proibições de excesso) e vínculos (proibições de proteção insuficiente) aos poderes selvagens da política e do mercado, deveres para o Estado e para a coletividade. Sem os limites e vínculos das normas constitucionais não haveria respeito adequado ao direito ambiental e estes poderes avançariam até o extremo de liquidar nosso planeta20.

1.1 Constitucionalismo garantista e a Constituição Brasileira como constituição de terceira geração

O Brasil é considerado pela doutrina como um país de constitucionalismo de terceira geração21. Neste sentido, a doutrina explicita que o constitucionalismo 372

19) Na doutrina: “Para melhor compreensão da proposta de classificação, conveniente partir da premissa de que existe um direito fundamental em sentido amplo (o direito fundamental considerado como um todo), ou seja, o direito compreendido como complexo de posições jurídicas. Todavia, consideradas de modo individualizado, tais posições jurídicas assumem a condição de direitos subjetivos, cujo objeto é, neste sentido, mais determinado e poderá ser tanto negativo quanto positivo”, Ingo Wolfgang Sarlet, Luiz Guilherme Marinoni, Daniel Mitidiero. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: RT, 2012, p. 301. 20) “E’ del resto un dato di “esperienza eterna”, come scrisse Montesquieu, che i poteri, lasciati senza limiti e controlli, tendono a concentrarsi e ad accumularsi in forme assolute: a tramutarsi, in assenza di regole, in poteri selvaggi.” Luigi Ferrajoli. Poteri Selvaggi. La Crise della Democrazia Italiana. Roma/Bari: Laterza, 2012, p. X. Sobre os poderes selvagens da política e do mercado, caracterizados pela desregulamentação e ausência de limites e vínculos de direito, cf., ainda, Luigi Ferrajoli. Diritto e ragione: Teoria del Garantismo Penale, 8ª ed. Roma/ Bari: Laterza, 2004, § 62, p. 975-984; Luigi Ferrajoli. Principia Iuris: Teoria del Diritto e Teoria della Democrazia. Roma/Bari: Laterza, 2007, 3 Tomos, passim. 21) Luigi Ferrajoli. Il costituzionalismo di terza generazione. L’esperienza europea e quella latino-americana a confronto. Texto inédito, gentilmente cedido pelo autor. (Conferência proferida em Florianópolis, 26.11.2009); Luigi Ferrajoli. Per un Pubblico Ministero come Istituzione di Garanzia. Questioni di Giustizia: 2012, p. 31/45. A lição que pode ser extraída deste percurso é uma maior independência da dogmática latino americana em relação à dogmática européia: “Fino a qualche decennio fa i Paesi dell’America latina sono stati subalterni alle culture europea e statunitense: hanno copiato le loro costituzioni da quella degli Stati Uniti e i loro codici da quelli europei. Oggi quel rapporto si è capovolto. Le nuove costituzioni latinoamericane, nate o riformate dopo la fine delle dittature militari come radicali “mai più” alla perdita delle libertà e della democrazia, segnano l’inizio di una terza fase del costituzionalismo, dopo la prima fase, sette- e ottocentesca delle costituzioni liberali e flessibili, Direitos Humanos e Meio Ambiente

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de segunda geração surgiu mais recentemente a partir das constituições italiana e alemã do segundo pós-guerra como forma de resistência ao modelo totalitário instalado pelas degenerações políticas do fascismo e do nazismo que transformaram o princípio da legalidade em instrumento de dominação absoluta ao qual o constitucionalismo flexível e das cartas políticas do início do século, primeira geração, não conseguiu fazer frente. A lei encontra-se a partir de então submetida à constituição, como elemento de controle não mais apenas de sua dimensão formal, mas também substancial ou material, quer dizer, de conteúdo, firmando-se uma instância contramajoritária como garantia dos direitos fundamentais estabelecidos nas constituições rígidas com mecanismos de controle de constitucionalidade e tribunais constitucionais, instituindo-se um segundo modelo de constitucionalismo. Os modelos que vieram a seguir, influenciaram em muito o nosso constitucionalismo, a Constituição Portuguesa de 1976 e a Constituição Espanhola de 1978, firmam o início da formação do constitucionalismo de terceira geração, com ampliação do Estado Social, do catálogo de direitos e bens jurídicos tutelados, e instrumentos de fortalecimento dos direitos fundamentais. Mas é com a nossa Constituição Federal de 1988, que identificamos mais fortemente as seguintes marcas do emergente constitucionalismo de terceira geração: a) constituição rigidíssima, com o reconhecimento de cláusulas pétreas; b) controle de constitucionalidade por um tribunal independente e imparcial; c) ministério público para defesa dos direitos fundamentais como instituição de garantia, não mais apenas como órgão de acusação do direito penal; d) defensoria pública integral e gratuita (também chamada por Luigi Ferrajoli de ministério público de defesa); e) mandado de injunção e controle de constitucionalidade por omissão, para tratar das lacunas normativas decorrentes do desnível entre os compromissos constitucionais e as normas infraconstitucionais; f ) vinculações orçamentárias, que no Brasil se desenharam, neste primeiro momento, nos campos prioritários do direito à saúde e à educação. Neste cenário, a tarefa da doutrina brasileira é desenvolver dogmaticamente o conteúdo positivo já definido em nossa Constituição Federal. O papel do Ministério Público como instituição de garantia dos direitos fundamentais ficou assim claramente renovado e aprofundado, devendo intervir fortemente quando ocorram violações da lei e da constituição para além do e la seconda delle costituzioni rigide del secondo dopoguerra come quella italiana, quella tedesca e quella spagnola, che hanno arricchito il catalogo dei diritti con una lunga serie di diritti sociali. Possiamo ben chiamarle costituzioni di terza generazione a causa di taluni tratti comuni.” Idem, p. 32. Obra dedicada ao Instituto Terra

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processo civil clássico22 na defesa da indisponibilidade dos direitos fundamentais: “È sulla base di questo nuovo costituzionalismo che possono essere lette le nuove funzioni assegnate al pubblico ministero dalle nuove costituzioni latino-americane, e in particolare dalla Costituzione brasiliana che contiene le trasformazioni più originali e innovative di questa figura. Tutte queste nuove funzioni, che vanno ben al di là della tradizionale funzione della pubblica accusa, sono dettate dal paradigma costituzionale, cioè dai vincoli imposti alla sfera pubblica dai diritti fondamentali e dagli interessi collettivi costituzionalmente stipulati. Sono inoltre funzioni di garanzia di tali diritti e interessi che, ove questi siano presi sul serio, impongono un ripensamento teorico e un rafforzamento istituzionale dello stesso costituzionalismo, essendo tutte logicamente dettate dalla necessità di apprestare a loro sostegno un organo di garanzia in grado di azionarne la tutela. Precisamente, esse realizzano quello che a mio parere è un fondamentale postulato teorico dello Stato di diritto: il sistema delle garanzie giurisdizionali dei diritti – ove non si tratti di diritti patrimoniali disponibili, come avviene nel processo civile –, deve sempre essere integrato, oltre che da un giudice, da un organo in grado di attivarlo. Alla classica massima “ci sarà pure un giudice a Berlino!”, la logica del costituzionalismo garantista impone perciò che si aggiunga la massima “ci sarà pure un pubblico ministero a Berlino!” in grado di sollecitare, sempre e comunque, l’intervento di un giudice contro le violazioni delle leggi e della Costituzione.”23 Um sistema como o brasileiro, com um Ministério Público de garantia dos direitos fundamentais, instituição funcionalizada à acionar o Poder Judiciário quando estes direitos fundamentais são violados por comissão ou omissão, exige a diferenciação entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, direitos “de” propriedade, disponíveis, negociáveis e transigíveis, enquanto direitos patrimoniais, e, direitos “à” propriedade, indisponíveis, inegociáveis e intransigíveis, enquanto direitos fundamentais.

22) Para uma contundente crítica do paradigma processual clássico, inservível para a tutela coletiva e os desafios da tutela ambiental e da tutela do consumidor, cf. Antonio Herman Vasconcellos Benjamin. A Insurreição da Aldeia Global Contra o Processo Civil Clássico: Apontamentos sobre a Opressão e a Libertação Judiciais do Meio Ambiente e do Consumidor. In: Édis Milaré. Ação Civil Pública. Lei 7.347/85. Reminiscências e Reflexões Após dez Anos de Aplicação. São Paulo: RT, 1995. 23) Luigi Ferrajoli. Per un Pubblico Ministero come Istituzione di Garanzia. Questioni di Giustizia: 2012, p. 34/35. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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1.2 Direito de Propriedade v Direito Urbanístico-

Ambiental: Conceito Formal de Meio Ambiente

O conceito formal de direitos fundamentais é definido de forma a extremar os direitos fundamentais dos direitos patrimoniais. Na doutrina: “Propongo una definizione teorica, puramente formale o strutturale, di ‘diritti fondamentali’: sono ‘diritti fondamentali’ tutti quei diritti soggettivi che spettano universalmente a ‘tutti’ gli esseri umani in quanto dotati dello status di persone, o di cittadini o di persone capaci d’agire; inteso per ‘diritto soggettivo’ qualunque aspettativa positiva (a prestazioni) o negativa (a non lesioni) ascritta ad un soggetto prevista anch’essa da una norma giuridica positiva quale presupposto della sua idoneità ad essere titolare di situazione giuridiche e/o autore degli atti che ne sono esercizio”.24 O direito fundamental à propriedade encontra limitações na própria Constituição e nas leis que garantem sua função socioambiental. É portanto imprescindível reconhecer que assiste razão à Luigi Ferrajoli quando separa, desde a formação do conceito, os direitos à propriedade, considerados por ele direitos de liberdade civil; dos direitos de propriedade, compreendidos como direitos reais dos proprietários.25 Os primeiros são direitos fundamentais de cunho civil, conquistas seculares do desenvolvimento da nossa democracia e da ruptura com os regimes de servidão característicos dos feudos do Ancien Regime, que eram regimes absolutistas, nos quais a propriedade se limitava aos nobres e ao clero. O direito fundamental à propriedade é um direitos fundamental de liberdade e de autonomia, garantido a todos e a qualquer um, de forma a não se excluir a possibilidade da aquisição, do gozo, uso e fruição da propriedade por ninguém em uma democracia. Estes direitos à propriedade são universais e indisponíveis. Os segundos, os direitos “de” propriedade, também conhecidos como direitos reais de propriedade, são disponíveis e podem e devem ceder lugar aos direitos fundamentais em sentido contrário, justamente por não contarem com o mesmo regime jurídico de proteção. A associação dos direitos à propriedade aos direitos “de” propriedade foi uma operação de mistificação ideológica: “In questa prospettiva di bonifica concet24) Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 5 25) Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 03-40. Obra dedicada ao Instituto Terra

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tuale e linguistica, criticai infine l’uso promiscuo della parola per una simile congerie di figure eterogenee, ravvisandovi il veiculo di una secolare operazione di mistificazione cui hanno contribuito sia la tradizione liberale che quella socialista: la prima al fine di accreditare la proprietà come diritto dello stesso tipo dei diritti di libertà; la seconda al fine di screditare le libertà come dello stesso tipo della proprietà, mediante il disvalore associato alle situazioni di potere rappresentate dal diritto di proprietà e dagli altri diritti patrimoniali.”26 Versa a nossa Constituição Federal: “Art. 5º (...) XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; Art. 170. (...) II – propriedade privada; III – função social da propriedade; (...) VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. Art. 182 A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. (...) § 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor.” Esta compreensão foi adequadamente transcrita para o direito civil que regula o direito “de” propriedade. Versa o nosso Código Civil: “Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. (...) § 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” Ora, percebe-se claramente da leitura dos dispositivos que o ônus argumentativo previsto na Constituição Federal de 1988 é pró-ambiente, daí a configuração do princípio in dubio pro natura como um postulado interpretativo que iremos analisar mais adiante. O direito “de” propriedade não é um direito fundamental, apenas o direito à propriedade é um direito fundamental. O direito “de” propriedade somente pode ser exercido se respeitadas as exceções estruturais internas e limitações externas previstas expressamente na Constituição ou decorrentes implicitamente de sua interpretação. 26) Luigi Ferrajoli. Diritto e Ragione: Teoria del Garantismo Penale, 8ed. Roma/Bari: Laterza, 2004, p. 951. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Logo, não se pode cogitar de defesa do direito fundamental “à” propriedade quando se trata de defender o patrimônio particular de uma pessoa física ou jurídica sob a alegação de que o cumprimento dos deveres fundamentais estabelecidos na Constituição implicam custos. Os custos para efetivação do direito ambiental são decorrentes do compromisso constitucional do correto exercício do direito “de” propriedade com acordo aos deveres fundamentais ambientais impostos ao Estado e a coletividade. Os argumentos econômicos não justificam o déficit de tutela dos direitos fundamentais pois é da essência dos direitos fundamentais sua indisponibilidade, o que significa a impossibilidade de sua conversão em pecúnia.27 Portanto, do ponto de vista formal o conceito de direito fundamental ao meio ambiente deve ser compreendido como direito subjetivo universal que diz respeito a todos, sendo assim indisponível na sua essência.

1.3 O conceito material/substancial de direito urbanoambiental: posição jurídica dinâmica que garante permissões especiais de aproveitamento

Como vimos, a multifuncionalidade do direito fundamental ambiental implica, no reconhecimento de sua dimensão objetiva e subjetiva, através da afirmação de direitos e deveres negativos ou defensivos, bem como, positivos ou prestacionais, que permitem sua judicialização a partir da afirmação de pretensões decorrentes de posições jurídicas complexas e especiais permissões de aproveitamento da norma, que autorizam a consecução de seus fins, quer em face dos poderes públicos, quer dos atores privados, sendo, a partir da interpretação e no contexto de significado da norma, garantida sua aplicação direta e imediata, com eficácia plena. 27) A doutrina fala de quatro diferenças estruturais entre direitos fundamentais e direitos patrimoniais, entre as quais a indisponibilidade: a) os direitos fundamentais são “universais” e os direitos patrimoniais são “particulares”; b) ao direitos fundamentais são indisponíveis, inalienáveis, invioláveis, intransigíveis, personalíssimos, enquanto os direitos patrimoniais são disponíveis, alienáveis, transigíveis e negociáveis; c) os direitos fundamentais são normas (normas téticas), os direitos patrimoniais são predispostos por normas (normas hipotéticas); d) os direitos fundamentais são horizontais, criando obrigações de direito público, para o Estado, particulares e inclusive para o legislador, já os direitos patrimoniais são verticais, no sentido de que criam obrigações de tipo civil e predispõem um genérico dever de não lesão. Cf. Luigi Ferrajoli. Diritti Fondamentali. In.: Ermano Vitale (org). Diritti Fondamentali: Un Dibattito Teorico. 3ª ed. Roma/Bari: Laterza, 2008, p. 13. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Podemos conceituar os direitos fundamentais em sentido material a partir do trabalho de Giorgio Pino, o qual afirma: “[...] diritti fondamentali sono diritti soggettivi attribuiti, riconosciuti, istituiti, garantiti ecc., da norme fondamentali – da norme cui è riconosciuto, nella cultura giuridica di riferimento, carattere fondamentali. Dunque, affermare l’esistenza di un diritto fondamentali equivale ad affermare l’esistenza di norme giuridiche che positivizzano, riconoscono, attribuiscono ecc., quel diritto soggettivo, norme che, secondo la cultura giuridica di riferimento, hanno altresì una certa posizione all’interno di un sistema giuridico”.28 Ou seja, um conceito amplo de direitos fundamentais que, além de assegurar o seu caráter de direitos subjetivos e de normas jurídicas, parte da premissa que o ordenamento jurídico reconhece a estes direitos o papel de normas supraordenadas às demais normas do sistema de referência. Este conceito amplo, inclui a tutela ambiental natural, cultural, do trabalho e artificial, do chamado meio ambiente urbano, ou direito urbano-ambiental (área urbana e área rural das cidades), e que tem por fundamento o art. 2º, inc. I e art. 40, § 2º do Estatuto da Cidade. Vale a transcrição de passagem da doutrina que esclarece o ponto “Desta forma, a cidade, na concepção pré-contemporânea, correspondia ao urbano, excluindo-se do conceito campo, que se caracterizava como rural. Essa dicotomia está superada em razão da complexidade do modo de viver atual. Esta ideia de cidade, que representa a essência do conceito constitucionalmente adequado de cidades, e que pode ser encontrado no texto constitucional, conforme uma interpretação constitucionalmente adequada, está plasmada no Estatuto da Cidade, apontando de forma positiva um caminho para a simbiose dos conceitos Urbanismo e Meio Ambiente. [...] garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações.[artigo 2º, I, do Estatuto da Cidade] Este conceito de, que congrega Urbanismo e Meio Ambiente, direito à moradia e gestão democrática, define o perfil constitucional e expressa o direito fundamental à cidade que emerge da Constituição de 1988.”29 28) Giorgio Pino. Diritti e Interpretazione: Il Ragionamento Giuridico nell Stato Costituzionale. Bologna: Il Mulino, 201°, p. 15. 29) Andrea Teischmann Vizzotto; Vanêsca Buzelato Prestes. Direito Urbanístico. Porto Alegre: Verbo Jurídico, 2009, p. 28. Na doutrina, indicando como diretrizes básicas para o preenchimento do conceito de sustentabilidade urbano ambiental cf. Vanêsca Buzelato Prestes. Municípios e Meio Ambiente: A Necessidade de Uma Gestão Urbano-Ambiental. In.: VaDireitos Humanos e Meio Ambiente

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A tutela adequado do direito ao meio ambiente urbano, direito urbano-ambiental, está preocupada em garantir a sadia qualidade de vida para as presentes e futuras gerações, assegurada através do plano diretor, do Estatuto da Cidade e do direito administrativo urbanístico, em espacial o poder de polícia em matéria urbano-ambiental. Não atende a esta tutela a simples atuação a posteriori, após a consolidação dos danos, as chamadas áreas estabilizadas ou ocupação consolidada porque estas apresentam um “vício de sinalagma genético”, expressão adequada aos contratos entre particulares, mas não só, que aqui serve para demonstrar a quebra do pacto social de cumprimento dos deveres ambientais impostos ao Estado e à coletividade. Na verdade, como demonstra a doutrina, quanto ao exercício não autorizado de uma posição jurídica não se pode falar em fato consumado, situação consolidada ou em direito adquirido. No limite, o descumprimento dos deveres impostos pela norma poderá resultar na própria extinção da posição jurídica por exercício abusivo do direito, pois no Estado Democrático Constitucional, no marco dos direitos fundamentais, o não-direito não merece tutela.30 Segundo Menezes Cordeiro: “Parta-se do direito subjectivo, paradigma de posições jurídicas individuais. Qualquer atribuição jussubjectiva tem, subjacente, não só a situação do titular-beneficiário, mas a de outros membros do espaço jurídico. A concessão de uma permissão normativa específica de aproveitamento é, num ponto de vista ontológico não estereotipado, possivelmente, a cominação de deveres a outras pessoas – caso dos direitos relativos e de direitos absolutos que, implicando situações de conflito, pressuponham esquemas relativos para os dirimir, como sucede no caso típico da vizinhança – e, necessariamente, a colocação de não-permissões para todos os não-beneficiários. Toda a conjunção permissão-dever-não-permissão exprime uma regulação material querida, com efectividade, pelo Direito. Esta – e não um jogo formal de posições jurídicas envolvidas desenraizadas – concita o interesse e a preocupação do jurídico. A pessoa que, mesmo fora do caso nuclearmente exemplar do sinalagma, desequilibre, num processo prévio, a regulação material instituída, expressa, mas só em parte, no seu direito subjectivo, não pode, depois, pretender, como se nada houvesse ocorrido, exercer a posinêsca Buzelato Prestes. Temas de Direito Urbano-Ambiental. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006, p. 28-31. 30) No mesmo sentido, YOSHIDA, Consuelo Yatsuda Moromizato. Ato jurídico perfeito, direito adquirido, coisa julgada e meio ambiente. Revista de Direito Ambiental, vol. 66, p. 113, abr, 2012. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ção que a ordem jurídica lhe conferiu. Distorcido o equilíbrio de base, sofre-lhe as conseqüências. A nova situação criada altera a configuração da posição jurídica do exercente; no limite, pode ir até à extinção. Esta construção tem um espaço descritivo triplo de aplicação. Funciona perante prestações em sinalagma e, ainda, no campo contratual não sinalagmática, nos termos acima examinados; foi, aliás, esse sector, mais confinado, que permite, metodologicamente, abordar o tema pela via apropriada. Mas funciona, também, no campo não contratual. Impõe, aí, que quem tenha firmado um direito, formalmente correcto, numa situação jusmaterial que não corresponda à querida pela ordem jurídica não possa, em conseqüência disso, exercer a sua posição de modo incólume. As possibilidades de exercício são restringidas ou, até, suprimidas – com a extinção do direito implicado – por forma a recuperar o desiquilíbrio causado. Nesta leitura, o caso típico do direito indevidamente obtido ou, se se quiser, do chamado recurso ao próprio não-direito, torna-se inteligível. Deve, pois, considerar-se cada posição jussubjetiva sempre integrada no complexo regulatório a que pertença. O titular que, em comportamento prévio, altere a figuração do complexo em causa e pretenda, depois, contrapor o seu direito a actuações de outras pessoas, pode abusar do direito. Basta, para tanto, que tal contraposição, embora conforme com os aspectos formais da atribuição jussubjectiva, ultrapasse a realidade material de base, na sua nova compleição. Tente fazê-lo e pode-se contrapor-lhe a fórmula tu quoque: também ele cometeu prevaricação. Esta ordem de idéias permite ainda entender casos particulares de venire contra factum proprium que não são resolvidos de modo satisfatório, com recurso à confiança e de que é exemplo, já referido, o réu que, sucessivamente, alega a incompetência dos árbitros e o compromisso arbitral: a primeira conduta impede-o de vir acusar a outra parte de violar o compromisso em causa, pelas repercussões materiais que acarreta. Estas conclusões foram possibilitadas pelo ponderar da excepção do contrato não cumprido, filiada, historicamente, na bona fides. Pressupõem, além disso, conjunturas típicas de relação, que só em conjunções podem ser valoradas. No Direito português, a sua base legal reside no art. 334. e, dentro deste, na boa fé.”31 31) Menezes Cordeiro, Da Boa-Fé no Direito Civil, p. 851-852. Importante contudo citar Edésio Fernandes para a correta compreensão deste problema. Nem sempre a medida a ser adotada será a extinção total dos direitos surgidos do exercício abusivo de posições jurídicas, isto porque existem direitos fundamentais contrários que na prática precisaram ser adequados e sopesados sob pena de negar-lhe vigência. Isso porque: “A grande novidade da ordem jurídica brasileira, mas que ainda não foi totalmente compreendida, é que onde valores constitucionais forem incompatíveis e um tiver que prevalecer sobre o outro, medidas concretas tem que ser tomadas para mitigar ou compensar o valor afetado [...] Não há porque demonizar a Direitos Humanos e Meio Ambiente

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2) O direito fundamental ao meio ambiente

urbano e o postulado hermenêutico “in dubio pro natura”: ônus argumentativo pro ambiente

Segundo a doutrina e a jurisprudência contemporâneas o desequilíbrio constitucional em favor do meio ambiente, muito embora não se possa falar em primazia a fortiori de um direito fundamental sobre os demais, nem mesmo, sobre direitos fundamentais absolutos, em um Estado Constitucional, gera um postulado hermenêutico interpretativo denominado “princípio in dubio pro natura” ou “in dubio pro ambiente”. Na doutrina contemporânea a discussão sobre o modelo combinado de regras e princípios para a aplicação dos direitos fundamentais foi enriquecida pelo acréscimo dos postulados normativo-aplicativos de caráter hermenêutico, que visam a estruturar um procedimento argumentativo que dê suporte a aplicação do direito. Assim, a questão central dos ataques ao positivismo jurídico, que seria a liberdade do juiz, no aplicar a lei, nos chamados casos difíceis, usar de liberdade total, ou puro decisionismo, seria adequadamente limitada por procedimentos lógico-argumentativos capazes de reduzir este espaço de discricionariedade, fornecendo pautas argumentativas.32 É justamente no espaço de uma renovada hermenêutica jurídica, ciente da distinção entre texto e norma, da principialização das constituições contemporâneas e da necessidade de uma teoria da argumentação e de uma teoria dos precedentes judiciais adequada ao Estado Constitucional que se insere o princípio in dubio pro natura como postulado hermenêutico, para população ocupante de áreas de preservação ambiental: é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dos assentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo socioambiental criado ao longo de décadas no país. Para tanto, é preciso que se adote um conceito antropocêntrico de natureza, bem como que se tomem todas as medidas necessárias para a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal forma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto de vista socioambiental”. Edésio Fernandes. Preservação Ambiental ou Moradia? Um Falso Conflito. In.: Betânia de Moraes Alfonsin; Edésio Fernandes (orgs). Direito Urbanístico: Estudos Brasileiros e Internacionais. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 357-358. 32) Sobre a teoria dos princípios e seus desdobramentos para a dogmática jurídica dos direitos coletivos, com amplas referências bibliográficas a teoria de base em Robert Alexy, Ronald Dworkin e Humberto Ávila, cf. Fredie Didier Jr; Hermes Zaneti Jr. Curso de Direito Processual Civil – Processo Coletivo. 8ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013, especialmente a primeira parte do capítulo terceiro. Obra dedicada ao Instituto Terra

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completar o modelo combinado de direitos fundamentais em regras, princípios e postulados normativo-aplicativos (procedimentos).33 Este postulado implica em um ônus argumentativo maior para afastar a aplicação de uma norma protetiva de direito fundamental ambiental. Ao intérprete, em face da especial proteção constitucional deste bem jurídico, caberá nos casos difíceis (hard cases), nos quais venha a existir uma colisão entre o direito fundamental ao meio ambiente e outros direitos igualmente fundamentais, assegurar prima facie a tutela ambiental. Esta característica está bem marcada no texto constitucional, conforme já analisamos, na função socioambiental que cria limites externos, por exemplo, ao direito “de” propriedade. Na doutrina este postulado hermenêutico é utilizado para solucionar conflitos normativos, prevalecendo a legislação mais protetiva: “[...]deve-se aplicar o princípio in dubio pro natura, ou in dubio pro ambiente, aliado ao princípio da prevenção, prevalecendo a legislação que garanta a maior efetividade à tutela do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.”34 A competência legislativa (e administrativa) para a matéria ambiental é comum e concorrente, vale dizer, tanto União, Estados, Municípios e o Distrito Federal podem legislar, sendo certo, que deve ser aplicada à legislação que traga maior proteção ao bem ambiental, ou seja, aquela mais restritiva. Esta é a interpretação constitucionalmente correta que assegura o princípio in dubio pro natura ou pro ambiente. 33) Princípios e regras tem igual dignidade normativa e, ambos, podem ser expressos em textos de lei, inclusive no mesmo dispositivo de lei (Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais. Trad. Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008, cap. 2, p.50/84). A atividade interpretativa é já um juízo sobre a constitucionalidade da regra. No Estado Constitucional, o direito depende de um modelo combinado de regras, princípios e postulados normativo -aplicativos para sua correta compreensão e aplicação. Sobre o modelo combinado de regras e princípios e o duplo caráter das normas de direitos fundamentais cf. Robert Alexy. Teoria dos Direitos Fundamentais, p. 135/144; conferir, ainda, Robert Alexy. El Concepto y la Validez del Derecho. Barcelona: Madrid, 1997, no qual Robert Alexy defende um modelo de sistema jurídico de regras, princípios e procedimento (idem, p. 172/173). Sobre os postulados normativos cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 60 e 80 34) Marcelo Azevedo Mafra. O Novo Código Florestal e a Prevalência das Leis Estaduais e Municipais Mais Protetivas do Meio Ambiente. In: Gregório Assagra de Almeida; Jarbas Soares Júnior; Luciano Badini (coord.). Meio Ambiente. Belo Horizonte: Del Rey, 2013, p. 102. Este princípio, compreendido como uma interpretação à favor dos direitos fundamentais, já foi reconhecido também em outros países da américa latina, a exemplo da doutrina e jurisprudências argentinas, cf. Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 63/64 (caso “Mendoza”). Direitos Humanos e Meio Ambiente

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O postulado é igualmente reconhecido na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça em diversos precedentes, como metodologia para garantir a interpretação mais protetiva dirigida pragmaticamente a favorecer a eficácia prevista na essências das normas materiais e processuais de tutela ambiental, dos quais se transcreve o seguinte excerto da ementa: “ADMINISTRATIVO. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DESMATAMENTO EM ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE (MATA CILIAR). DANOS CAUSADOS AO MEIO AMBIENTE. BIOMA DO CERRADO. ARTS. 4º, VII, E 14, § 1º, DA LEI 6.938/1981, E ART. 3º DA LEI 7.347/1985. PRINCÍPIOS DO POLUIDOR-PAGADOR E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. REDUCTIO AD PRISTINUM STATUM. FUNÇÃO DE PREVENÇÃO ESPECIAL E GERAL DA RESPONSABILIDADE CIVIL. CUMULAÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER (RESTAURAÇÃO DA ÁREA DEGRADADA) E DE PAGAR QUANTIA CERTA (INDENIZAÇÃO). POSSIBILIDADE. DANO AMBIENTAL REMANESCENTE OU REFLEXO. ART. 5º DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIRO. INTERPRETAÇÃO IN DUBIO PRO NATURA. 1. Cuidam os autos de Ação Civil Pública proposta com o fito de obter responsabilização por danos ambientais causados por desmatamento de vegetação nativa (Bioma do Cerrado) em Área de Preservação Permanente. O Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais considerou provado o dano ambiental e condenou o réu a repará-lo, porém julgou improcedente o pedido indenizatório cumulativo. 2. A legislação de amparo dos sujeitos vulneráveis e dos interesses difusos e coletivos deve ser interpretada da maneira que lhes seja mais favorável e melhor possa viabilizar, no plano da ef icácia, a prestação jurisdicional e a ratio essendi da norma de fundo e processual. A hermenêutica jurídico-ambiental rege-se pelo princípio in dubio pro natura. 3. A jurisprudência do STJ está firmada no sentido de que, nas demandas ambientais, por força dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum, admite-se a condenação, simultânea e cumulativa, em obrigação de fazer, não fazer e indenizar. Assim, na interpretação do art. 3º da Lei 7.347/1985, a conjunção “ou” opera com valor aditivo, não introduz alternativa excludente. Precedentes da Primeira e Segunda Turmas do STJ. 4. A recusa de aplicação, ou aplicação truncada, pelo juiz, dos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum arrisca projetar, moral e socialmente, a nociva impressão de que o ilícito ambiental compensa, daí a resposta administrativa e judicial não passar de aceitável e gerenciável “risco ou custo normal do negócio”. Saem debilitados, assim, o caráter dissuasório, a força pedagógica e o objetivo prof ilático da responsabilidade civil Obra dedicada ao Instituto Terra

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ambiental (= prevenção geral e especial), verdadeiro estímulo para que outros, inspirados no exemplo de impunidade de fato, mesmo que não de direito, do degradador premiado, imitem ou repitam seu comportamento deletério. [...] Por isso, a simples restauração futura - mais ainda se a perder de vista - do recurso ou elemento natural prejudicado não exaure os deveres associados aos princípios do poluidor-pagador e da reparação in integrum. 6. A responsabilidade civil, se realmente aspira a adequadamente confrontar o caráter expansivo e difuso do dano ambiental, deve ser compreendida o mais amplamente possível, de modo que a condenação a recuperar a área prejudicada não exclua o dever de indenizar - juízos retrospectivo e prospectivo [...]”35 Em especial vale referir, como reforço da interpretação in dubio pro ambiente, ao princípio da congruência, o qual determina que entre os atos administrativos e legislativos obedeçam ao sentido protetivo da legislação de regência em matéria ambiental, quer seja esta constitucional ou lei infraconstitucional, mediante uma conformação adequada. O princípio da congruência está previsto expressamente na legislação argentina: “Nos conflitos ambientais, a Lei 25.675 prevê (art. 4): “A interpretação e aplicação da presente lei, e de toda outra norma através da qual se execute a política ambiental, estarão sujeitas ao cumprimento dos seguintes princípios: Princípio da congruência: a legislação provincial, municipal referida ao meio ambiente deverá ser adequada aos princípios e normas fixadas na presente lei; no caso de assim não ser, esta prevalecerá sobre toda outra norma que se lhe oponha”36. Como afirmou a doutrina: “Esta é uma regra de “precedência” lógica, que determina que, em caos de conflitos de fontes o juiz deve aplicar de modo prevalente a tutela ao bem ambiental”.37 Trata-se de norma coerente com a teoria da argumentação jurídica porque fornece pautas interpretativas para a escolhas das premissas que irão fundamentar a justificação da decisão legislativa, administrativa e especialmente judicial, em caso de inobservância pelo poder legislativo e administrativo.

35) REsp 1145083/MG, Rel. Ministro Herman Benjamin, segunda turma, julgado em 27/09/2011, DJe 04/09/2012. 36) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 70-71. 37) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 71. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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3) A teoria dos precedentes como mecanismo de controle das decisões judiciais por déficit de fundamentação (disfunção argumentativa): limites e vínculos ao ativismo judicial

“[...] le vere ‘corte di precedente’ sono le corti supreme.” (Michele Taruffo). 38 “A realidade atual é que frente ao pluralismo de fontes, a coerência do sistema não é “a priori”, como ocorria no século XIX, que o legislador elaborava um código de regras jurídicas harmonizadas entre si. Hoje em dia, a coerência é “a posteriori”, e já não é tarefa do legislador, senão do juiz, quem deve decidir um caso levando em conta diversas normas localizadas em diversas fontes que deve fazer “dialogar”. (Ricardo Lorenzetti). 39 A teoria dos precedentes é uma teoria para um modelo de cortes supremas40. Somente em um ordenamento jurídico que reconheça o papel das 38) Michele Taruffo. Precedente e Giurisprudenza. Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Milano: Giuffrè, 2007, p. 718. O tema das cortes supremas é tratado por Daniel Mitidiero. Cortes Superiores e Cortes Supremas: Do Controle à Interpretação, da Jurisprudência ao Precedente. São Paulo, RT, 2013. Projetos internacionais de estudos de teoria sobre a interpretação das leis e a interpretação dos procedentes, desenvolvidos pelo grupo autodenominado Bielefelder Kreis, adotaram a premissa da “operative interpretation” e da “interpretation in the Higher Courts” justamente pela importância das cortes de vértice em um sistema racional de aplicação da justiça. Cf. 39) Ricardo Luis Lorenzetti. Teoria Geral do Direito Ambiental, trad. Fábio Costa Morosini e Fernanda Nunes Barbosa. São Paulo: RT, 2010, p. 70. 40) As cortes supremas se diferenciam das cortes superiores por uma série de razões. São características das cortes supremas, cortes de interpretação e precedentes, a função proativa, a nomofilaquia recursal e a unidade da interpretação do direito através dos precedentes, a igualdade perante o direito e a segurança jurídica como cognoscibilidade normativa, com eficácia para o futuro, conforme a clássica expressão de Chiovenda, o recurso é compreendido como ius constitutionis. As cortes superiores, cortes de controle e jurisprudência, por outro lado, são cortes reativas, voltadas para o interesse das partes, ius litigatoris, objetivando a igualdade perante a lei mediante a formação de jurisprudência não obrigatória, sendo a segurança jurídica como prévia determinação do sentido normativo, com eficácia para o passado. O modelo brasileiro não é ainda totalmente um modelo de cortes supremas, aproximando-se mais de um modelo de cortes superiores, defasado em muitos sentidos perante os desafios contemporâneos e o avanço da ciência jurídica. Mas algumas reformas já indicam a adoção progressiva de um modelo de cortes supremas para o brasil, a exemplo do CPC projetado. Para a sistematização adotada aqui conferir Daniel Mitidiero. Cortes Superiores e Cortes Supremas, passim. Na doutrina cf., ainda, “Il primo modelo è quello di una Corte Suprema dotata di una funzione di controllo della legittimità allo stato puro, ossia di interpretazione della legge in generale […] Il secondo modello è quello di una Corte di terza istanza, che è suprema perchè si trova al vertice del sistema delle impugnazioni, ma svolge il controllo di legittimità sulla sentenza impugnata pronunciando sul merito della controObra dedicada ao Instituto Terra

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cortes supremas como tribunais de vértice poderá desenvolver uma teoria adequada dos precedentes apta a atingir seus objetivos básicos (racionalidade, confiabilidade, segurança jurídica, certeza e efetividade) e suas características essenciais (universabilidade, normatividade, vinculatividade, estabilidade horizontal e vertical). Demonstramos até aqui que o direito urbano-ambiental e o direito ambiental são direitos fundamentais, conferindo posições jurídicas judicializáveis de cunho negativo e prestacional, direitos e deveres, de aplicação direta e imediata. Demonstramos, ademais, que em um Estado Democrático Constitucional a argumentação jurídica exerce um papel relevantíssimo para a realização dos objetivos definidos nas normas constitucionais e que no direito brasileiro o legislador constituinte estabeleceu um ônus argumentativo em favor do meio ambiente, que pode ser bem traduzido na fórmula síntese “in dubio pro natura”, como postulado normativo-aplicativo que dirige a solução de conflitos e colisões entre normas em matéria ambiental e outros direitos fundamentais, especialmente os direitos “de” propriedade, que não se configuram como direitos fundamentais, mas sim como direitos disponíveis, particulares, indenizáveis e negociáveis, portanto, de menor proteção pelo paradigma constitucional. Não obstante a prática cotidiana tem demonstrado que o raciocínio judicial dos julgadores ainda não está preparado para a aplicação destas premissas, muito embora elas tenham sido reconhecidas pelas cortes de vértice brasileiras, o Supremos Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, tendo força de precedentes judiciais. Em parte isto se deve a uma inadequação da aplicação da jurisprudência no Brasil à teoria dos precedentes. Uma adequada teoria dos procedentes não se versia[...] Una seconda distinzione attiene appunto al modo in cui viene svolta la funzione di controllo della legittimità […] . In questa situazione l’interpretazione della norma effettuata in occasione di quel caso particolare è rivolta prevalentemente al futuro, ossia ai futuri casi identici o analoghi, e il suo scopo principale consiste allora nello stabilire un criterio valido per la decisione di questi casi futuri. Si può dire allora che la funzione della Cassazione è orientata verso la creazione di precedenti diretti ad influenzare la giurisprudenza successiva (dei giudici di merito ma anche della stessa Cassazione). Può darsi invece che il controllo verta soltanto sulla legalità della specifica decisione impugnata. In questa situazione il caso particolare non è paradigma di nulla e – così dire – rappresenta solo se stesso. Il giudizio di legittimità effettuato dalla Cassazione si volge allora solo al passato, poiché interessa solo la fattispecie che si è già verificata ed è già stata decisa da altri giudici, ed è finalizzato a scoprire ed eliminare gli errori eventualmente commessi da costoro nell’applicazione di una norma al caso concreto. Qui si tratta, esclusivamente, di controllo in senso proprio, centrato essenzialmente sulla adeguatezza dell’interpretazione della norma alle specifiche esigenze decisorie del singolo caso”. Michele Taruffo. Il Vertice Ambiguo: Saggi sulla Cassazione Civile. Bologna: Il Mulino, 1991, p. 11-12. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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reduz as súmulas vinculantes, sua base está na racionalidade do ordenamento jurídico, na confiabilidade das decisões judiciais, na certeza, na segurança jurídica e na efetividade proporcionadas pelos precedentes como forma de complementação do ordenamento. Uma adequada teoria dos precedentes auxiliaria a implantação do modelo de cortes supremas para os tribunais brasileiros ao mesmo tempo que possibilitaria a confiabilidade das decisões em matéria ambiental e urbanístico-ambiental implementando as regras e princípios definidos na lei e na Constituição brasileiras com reforço de sua eficácia. Isso porque, como se pode aferir de texto em julgamento da lavra do ministro Herman Benjamin não são os juízes que são ativistas no Brasil, em nosso país o ativismo ambiental é das leis e da Constituição. Constitui, ao contrário, ativismo judicial pernicioso, aquele que sob o falso pretexto da teoria dos princípios, flexibiliza as garantias constitucionais e legais asseguradas ao meio ambiente em prol da interpretação restrospectiva, da manutenção do status quo ou de interesses imediatistas de proprietários, grupos econômicos ou políticos, vinculados às maiorias de ocasião, direitos patrimoniais e disponíveis na maior parte dos casos. Vale a transcrição: “Como ocorre em todos os campos da regulação jurídica do comportamento humano, nem sempre as alterações legislativas refletemse, imediata ou integralmente, na percepção popular. Persiste ordinariamente a prática de condutas à moda antiga, mesmo quando já banidas pelo Direito mais recente. É a conhecida resistência do Ancien Régime às transformações legislativas, dissonância entre a lei e seus destinatários que persiste, não obstante a solidez dos argumentos científicos e éticos que inspiraram o legislador.”[...]“No Brasil, o juiz não cria obrigações de proteção do meio ambiente. Elas jorram da lei, após terem passado pelo crivo do Poder Legislativo. Daí não precisarmos de juízes ativistas, pois o ativismo é da lei e do texto constitucional. Ao contrário de outros países, nosso Judiciário não é assombrado por um oceano de lacunas ou um festival de meias-palavras legislativas. Se lacuna existe, não é por falta de lei, nem mesmo por defeito na lei; é por ausência ou deficiência de implementação administrativa e judicial dos inequívocos deveres ambientais estabelecidos pelo legislador”.41 Analisemos portanto dois problemas comuns no direito brasileiro, que acontecem na vida prática em muitos casos em que se trata de direito urbanístico-ambiental e direito ambiental: o chamado periculum in mora (in)reverso e as denominadas situações jurídicas consolidadas ou teoria do fato consumado em matéria ambiental. 41) REsp. nº 650.728/SC – Rel. Min. Herman Benjamin, sem grifos no original. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Em diversos julgados podemos observar a tese do periculum in mora (in)reverso como forma de impedir a tutela antecipada do meio ambiente. Estes precedentes normalmente levam em consideração questões patrimoniais, tais como o prejuízo econômico do empreendedor ou o direito de propriedade. Devem ser consideradas as questões jurídicas que estão subjacentes a esta aplicação equivocada do preceito legal. Ora, é sabido que nos casos de tutela antecipada haverá sacrifício de uma das pretensões antagônicas e que o direito determina para evitar o chamado dano marginal decorrente do tempo do processo até que ocorra a prevalência do bem jurídico mais relevante42; isso porque toda decisão causa prejuízo à parte ex adversa; contudo, os prejuízos causados pela antecipação de tutela implicam em responsabilização objetiva do requerente, sendo este um órgão do Estado, como o Ministério Público ou os órgãos de tutela ambiental, não há risco de insolvência; por fim, não há, de rigor, irreversibilidade, mas sim consequências econômicas que como vimos acima estão ligadas à tutela do direito “de” propriedade, negociável, disponível e transigível, e, portanto, não nuclear ao direito fundamental “à” propriedade. Para fins de tutela antecipada deve ser aferido o caráter irreversível do eventual dano ou lesão ao meio ambiente como prioritário em relação as equações de caráter econômico. Assim, assiste razão na jurisprudência que afirma: “o valor atribuído pelo ordenamento constitucional e legal aos bens jurídicos em confronto e também o caráter irreversível, já não do que o juiz dá, mas do que se deixa de dar, ou seja, a irreversibilidade da ofensa que se pretende evitar ou mesmo da ausência de intervenção judicial de amparo.” 43 Outro é o entendimento a respeito do fato consumado. Muito embora esta teoria tenha um forte apelo para a “razoabilidade” as cortes superiores brasileiras são unânimes em proclamar a sua excepcionalidade e a não validade desta a partir de decisões tomadas em caráter precário. Decidiu o Supremo Tribunal Federal em matéria ambiental que “A teoria do fato consumado não pode ser invocada para conceder direito inexistente sob a alegação de consolidação da situação fática pelo decurso do tempo.”44

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Tratam-se de dois casos em que se percebe claramente que a aplicação do princípio in dubio pro natura como filtro hermenêutico prima facie em prol do meio ambiente afastaria tanto do ponto de vista material quanto processual decisões iníquas e incapazes de tutelar os bens jurídicos ambientais e urbano-ambientais aos quais a constituição determinou prioridade, especialmente por que destes bens depende a vida e a qualidade de vida das presentes e futuras gerações.

H

Conclusão

O ativismo judicial não virtuoso contra a lei e a Constituição no direito ambiental e urbanístico-ambiental deve ser combatido, afirmando-se os limites e vínculos decorrentes da disciplina legal e constitucional do direito fundamental ambiental.

A partir das premissas, constadas no texto, da judicilização ampla dos direitos fundamentais ambientais e urbanístico-ambientais, mediante o reconhecimento de seu regime jurídico de direitos negativos ou de liberdade e positivos ou prestacionais, da reconhecida precedência prima facie destes direitos em relação aos direitos “de” propriedade, deve ser aplicado o postulado hermenêutico in dubio pro natura como ônus argumentativo pro ambiente e a teoria dos precedentes judiciais como forma de unificação do direito em prol da defesa deste bens jurídicos essências à sadia qualidade de vida.

42) Na doutrina, esclarecendo as origens da expressão “dano marginal” e apontando na direção de uma nova conformação dogmática para a tutela antecipada cf. Daniel Mitidiero. Antecipação da Tutela: Da Tutela Cautelar à Técnica Antecipatória. São Paulo: RT, 2013. 43) AgRg no Ag 736.826/RJ, Rel. Ministro Herman Benjamin, segunda turma, julgado em 12/12/2006, DJ 28/11/2007 p. 208. 44) Ag. Reg. RE 609.748/RJ, rel. min. Luiz Fux, 23/08/2011; Precedentes citados: RE 275.159, rel. min. Ellen Gracie, Segunda Turma, DJ 11.10.2001; RMS 23.593/DF, rel. min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJ de 02/02/01; RMS 23.544-AgR, rel. min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJ 21/06/2002. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Obra dedicada ao Instituto Terra

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Definição do Modelo Brasileiro de Legitimidade Ativa Ad Causam nas Demandas Coletivas Ambientais: Substituição Processual Márcia Vitor de Magalhães e Guerra1 Universidade Federal do Espírito Santo

Sumário: Introdução. 1 A Insuficiência do Modelo do Cpc e a

Necessidade de Reformulação de Antigos Conceitos à Luz do Processo

Coletivo Para Construção do Modelo Brasileiro. 2 Substituição

Processual: A Relação Entre Interesse Processual e a Legitimação

na Visão do Cpc Tradicional (Crítica da Doutrina Majoritária).

3 Substituição Processual: A Relação Entre Interesse Processual

e Legitimação nas Ações Coletivas Ambientais. Conclusão

1) Mestre em Direito Processual Civil pela Universidade Federal do Espírito Santo. Email: [email protected]

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Definição do Modelo Brasileiro de Legitimidade Ativa Ad Causam nas Demandas Coletivas Ambientais: Substituição Processual

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Introdução

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A ruptura do paradigma da supremacia de leis reinante no século XIX impõe a necessidade de uma reanálise de antigos conceitos do direito processual, tradicionalmente voltados à tutela de interesses individuais das partes, para adequá -los ao novo modelo que hoje se apresenta sintonizado com o direito material. Essa mudança se reflete na produção normativa que, sensível às novas exigências da sociedade de massa, impõe a criação de técnicas processuais voltadas à efetivação de garantias fundamentais. O desenvolvimento da tutela dos direitos coletivos ambientais certamente denota o escopo que o processo, através das ações coletivas, passa a ter, voltado não somente ao interesse das partes, mas à realização do bem comum. Ou seja, o processo coletivo ambiental surge nesse cenário como importante instrumento de efetivação de objetivos constitucionais. Não se pode olvidar que a Constituição da República alçou o meio ambiente como um bem de interesse difuso, o que amplia a necessidade de se construir cada vez mecanismos para efetivação desse direito constitucional. Com efeito, face à sociedade moderna, na qual se avolumam conflitos massificados, eis que surge a necessidade de se criarem instrumentos que viabilizem a tutela desses novos direitos, em geral, de titularidade indeterminada ou de difícil determinação, em conformidade a um novo processo civil, pautado nos valores constitucionais. Nessa novel perspectiva, observam-se que antigos institutos, moldados de acordo com a tradicional visão processual, calcados na cultura individualista e formal do processo, precisam ser revisitados, de modo a trazer para o processo coletivo técnicas que possibilitem o seu sucesso. Dentre estes institutos, que merecem uma nova roupagem frente à tutela jurisdicional coletiva, encontra-se o objeto da presente pesquisa, o instituto da legitimidade ad causam. Objetiva-se com o presente escrito expor como o conceito jurídico da legitimidade ativa nas ações coletivas ambientais sofreu e vem sofrendo influência a partir do surgimento dos novos direitos da coletividade e a necessidade de se efetivá-los.

Direitos Humanos e Meio Ambiente

Márcia Vitor de Magalhães e Guerra

1) A Insuficiência do Modelo do Cpc e a Necessidade de

Reformulação de Antigos Conceitos à Luz do Processo Coletivo Para Construção do Modelo Brasileiro

No Brasil, o movimento pela tutela coletiva suscita-se, na década de 70, a partir dos estudos acadêmicos realizados na doutrina italiana notadamente por parte dos professores2 Barbosa Moreira, Ada Pellegrini Grinover e Waldemar Mariz de Oliveira. A doutrina italiana, com efeito, influenciou sobremaneira os estudos do direito coletivo no ordenamento brasileiro. Na década de 703, com destaque para os congressos de Pavia e Salermo, foi que o direito coletivo italiano ganha relevo, em especial com trabalhos de autores como Vicenzo Vigoritti e Mauro Cappelletti4. Em 1974, no IX Congresso Internacional da Academia Internacional de Direito Comparado, do qual resultou seu célebre trabalho intitulado Formações 2) Explica Mafra Leal que “Na verdade, o que aconteceu no Brasil foi uma ‘revolução’ de professores e profissionais de Direito que, estudando autores estrangeiros, principalmente italianos, passaram a reivindicar um tratamento processual no Brasil de conflitos meta-individuais, embora socialmente não houvesse manifestações e pressões visíveis para tal, por falta de consciência político-jurídica de grupos, pela debilidade organizacional da sociedade civil brasileira e pela repressão política vivida no País durante pelo menos duas décadas. Conf. LEAL, Márcio Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p. 184. 3) O movimento na Itália foi impulsionado pela polêmica decisão, proferida pelo Conselho de Estado , em 1973, a qual reconheceu a legitimidade da associação ambientalista Italia Nostra. Na ocasião, a entidade impugnou ato da província de Trento que teria autorizado a construção de uma rodovia próximo ao lago do Tovel Conf. MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.98-120. 4) Mauro Cappelletti, no relatório geral do Projeto Florença, publicado na década de 70, enumera três soluções para o problema do acesso à justiça as quais intitulou ondas renovatórias: a primeira onda foi 1) a assistência judiciária seguida da 2) representação dos interesses difusos, sendo a mais recente o 3) novo enfoque de acesso à justiça. Conf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor. Trad. Ellen Gracie Northfleet, 2002, p. 49-67. O autor aborda ainda os problemas relacionados ao acesso à justiça para tutela dos direitos coletivos nos seguintes escritos: CAPPELLETTI, Mauro. “Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil”. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977; CAPPELLETTI, Mauro. Tutela dos interesses difusos. Porto Alegre: Ajuris, março, 1985; CAPPELLETTI, Mauro. O Acesso dos consumidores à justiça. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, abr-jun, 2001; CAPPELLETI, Mauro. Acesso à justiça e a função do jurista. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 2001. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Definição do Modelo Brasileiro de Legitimidade Ativa Ad Causam nas Demandas Coletivas Ambientais: Substituição Processual

Sociais e Interesses Coletivos diante da Justiça Civil, já ressaltava Mauro Cappelletti a necessidade de se superar a tradicional dicotomia entre direito público-privado5 na solução das lides que passaram a marcar a sociedade contemporânea. Nessa esteira, defendia uma reformulação6 dos institutos processuais, dentre os quais a legitimação coletiva, de modo a torná-los mais adequados à tutela desses novos direitos. O modelo de representação dos direitos supraindividuais, inicialmente calcado no modelo tradicional, sem dúvida, na esteira do que afirmava o autor italiano, consistia um obstáculo organizacional à garantia do acesso à justiça.7 Do mesmo modo, o comparecimento em juízo de todos aqueles considerados titulares dos direitos difusos ou coletivos mostrava-se inviável. Faziase imperiosa a construção de um modelo de representatividade dos direitos dos membros ausentes, de modo que se viabilizasse a participação de um ente em juízo que fosse capaz de promover a tutela adequada e efetiva dos direitos dos membros ausentes. A regra contida no art. 6º do vigente Código de Processo Civil8, construí394

5) “A summa divisio aparece irreparavelmente superada diante da realidade social de nossa época, que é infinitamente mais complexa, mais articulada, mais ‘sofisticada’ do que aquela simplista dicotomia tradicional. Nessa época, já tivemos oportunidade de ver, traz prepotentemente ao palco novos interesses ‘difusos’, novos direitos e deveres que, sem serem públicos no senso tradicional da palavra, são, no entanto, coletivos: desses ninguém é ‘titular’, ao mesmo tempo que todos os membros de um dado grupo, classe ou categoria, deles são titulares.” Conf. CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 135. 6) “Eis, portanto, porque os milenares princípios de defesa e de contraditório se revelam insuficientes diante das mutantes exigências da sociedade contemporânea. Tal insuficiência, por outro lado, não significa abandono, mas superação. É necessário superar sistemas de um garantismo processual de caráter meramente individualístico [...]. Em seu lugar, deve nascer um novo e mais adequado tipo de garantismo, que eu gostaria de definir como ‘social’ ou ‘coletivo’, conceito não somente para a salvaguarda dos indivíduos em um processo individualístico, mas também para a salvaguarda dos múltiplos e extremamente importantes novos grupos e ‘corpos intermediários’ que também reclamam acesso à justiça para a tutela dos seus interesses.” Conf. CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 154. Conf. ainda do mesmo autor Vindicating the public interest through the courts. In CAPPELLETTI, Mauro. The judicial process in comparative perspective. Clarend Press Oxford, 1998, p. 304. 7) Acorde-se sobre o assunto que Cappelletti já indagava: “A quem pertence o ar que respiro?” Conf. CAPPELLETTI, MAURO. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, jan-mar, 1977, p. 135; CAPPELLETTI, Mauro. Vindicating the public interest through the courts. In CAPPELLETTI, Mauro. The judicial process in comparative perspective. Clarend Press Oxford, 1998, p. 273 8) Art. 6. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do numa base individualista de litígios, vincula a legitimidade ativa à afirmação da titularidade da relação jurídica material discutida no processo (legitimidade ordinária), salvo em casos de expressa autorização legal (legitimidade extraordinária). Assim, em se tratando de direitos coletivos, no qual se inclui em regra o direito ao meio ambiente hígido, cuja titularidade difusa é a marca da sua definição e, considerando que, à época, não havia legislação própria que regulasse a matéria, restava patentemente prejudicada a utilização da precitada norma em sua visão clássica. A doutrina, diante desse quadro, buscou soluções para que pudesse ser definida a legitimidade coletiva, por meio de sugestões como a legitimação concorrente e disjuntiva dos co-titulares agindo em juízo isoladamente ou mediante o direito à formação de litisconsórcio voluntário; legitimação de pessoas jurídicas (sociedades, associações) cujo fim institucional consistisse na defesa do interesse em litígio; legitimação do Ministério Público, dentre outros9. Em 1981, representando um claro avanço no tema, entra em vigor a lei que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente (Lei 6.938/81), responsável pela legitimação do Ministério Público para propositura de ação de responsabilidade civil por danos causados ao meio ambiente.10 Kazuo Watanabe criticava a omissão quanto à possibilidade de tutela de direitos coletivos perante o Judiciário. Sugeriu, assim, independentemente das alterações legislativas que se impunham necessárias, uma interpretação extensiva do art. 6º do CPC, que fosse consoante às necessidades práticas de acesso à justiça e que permitisse às associações, bem como a outros corpos intermediários, o ajuizamento de demandas em prol da sociedade. Defendia, portanto,

por lei. 9) Conf. MOREIRA, José Carlos Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 198-199; GRINOVER, Ada Pellegrini. A problemática dos interesses difusos. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 38-45; WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 90-97; OLIVEIRA Jr., Waldemar Mariz. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 17-23. 10) Art. 14, § 1º. Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente. Obra dedicada ao Instituto Terra

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a natureza ordinária da legitimação ativa desses entes.11 Essa necessidade de se flexibilizar a interpretação do art. 6º também foi encampada por Barbosa Moreira12 que vislumbrava a tutela de direitos difusos por pessoa física a partir do art. 892, 1ª parte do CC/16 (atual 260 CC/02), tendo em vista a indivisibilidade de tais direitos; sugestão que se assemelhava à prevista na doutrina italiana. 13 Frente às soluções que se apontavam hábeis à resolução da problemática da titularidade ativa da demanda coletiva, dentre as quais a instituição de legitimação concorrente e disjuntiva dos co-titulares, a legitimação de pessoas jurídicas (sociedades e associações) e a legitimação de órgãos públicos, concluía Barbosa Moreira, seguindo Mauro Cappelletti, que proceder à combinação de tais soluções representaria, com grande probabilidade, a melhor forma de se atingir resultados mais positivos.14 11) WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos: a legitimação para agir. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p.90.

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12) O autor trata a questão da legitimidade nas ações coletivas como um dos pontos sensíveis da problemática processual dos interesses coletivos ou difusos. Conf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A proteção jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord.). A tutela dos interesses difusos. São Paulo: Max Limonad, 1984, p. 99. 13) Conf. MOREIRA, Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 201. Segundo o autor, “[...] será talvez possível, em determinados casos, contornar o óbice do art. 6º, do Código de Processo Civil, desde que se reconheça que neles o que se põe em jogo é algo distinto da mera soma dos interesses individuais: um interesse geral da coletividade, qualitativamente diverso e capaz de merecer tutela como tal.” Idem, p. 203. 14) Solução a que Mauro Cappelletti denominou de mista ou plúrima. Conf. CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. Trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002, p. 65-66, e que BARBOSA MOREIRA chamou de eclética. Ressalte-se que, a despeito de não utilizar o termo plúrima ou mista, tal solução já vinha sugerida por Mauro Cappelletti em trabalho anterior. Conf. CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. Revista de processo, ano 2, n. 5. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 143-145. Observa ainda José Carlos Barbosa Moreira “que estas soluções [conceder legitimação a entes privados e públicos] não se excluem reciprocamente a priori e admitem, pelo menos em tese, combinações de diversos tipos e graus. Como todas apresentam, ao lado de possíveis vantagens, manifestos inconvenientes, quando as examinamos em separado, é justamente por meio de tais combinações que se pode, com toda probabilidade, alcançar resultados mais positivos.” BARBOSA MOREIRA, José Carlos. La iniciativa em la defensa judicial de los intereses difusos y colectivos (um aspecto de la experiência brasileña). In Temas de direito processual civil:quinta série. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 165. Antes mesmo, já afirmava José Carlos Barbosa Moreira que Direitos Humanos e Meio Ambiente

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E essa foi, de fato, implantando-se inicialmente um modelo de legitimidade ope legis, a solução encontrada pelo legislador brasileiro15, ao prever, na Lei 7.347/85 e na Lei 8.078/90, um amplo rol de legitimados16, indo ao encontro do que se denominou de universalização do processo e da jurisdição17 e, certamente, contribuiu, e ainda contribui, para o fomento da democracia participativa no Estado Democrático de Direito “que se manifesta na estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos possibilidades efetivas de aprendizado da democracia, de participação nos processos decisórios, de exercício do controle crítico nas divergências de opinião e da produção de inputs políticos democráticos.”18 A opção legislativa brasileira, em sede de tutela coletiva, ao pré-definir os entes aptos à propositura das demandas, implicou o abandono do critério da titularidade do direito pleiteado e concedeu a tais entes uma legitimação processual extraordinária.19 Instituiu-se, desse modo, um modelo de legitimidade extraordinária por

“As soluções ‘quimicamente puras’, aqui como alhures, parecem insatisfatórias.” Conf. MOREIRA, Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 199. 15) Álvaro Luiz V. Mirra observa que o legislador, ao optar por essa legitimação, privilegiou a participação judicial semidireta. “Isso porque [...] atribuiu-se a iniciativa da ação civil pública apenas a determinados ‘grupos ou instituições sociais secundários’ – no caso, o Ministério Público e as associações civis ambientalistas -, que se encontram [...] em posição intermediária entre os cidadãos e os representantes eleitos pelo povo. Afastou-se, com isso, a participação direta das pessoas individualmente consideradas, as quais não tiveram reconhecida sua legitimidade ativa para a causa.” Conf. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública em defesa do meio ambiente: a representatividade adequada dos entes intermediários legitimados para a causa. In MILARÉ, Édis (Coord.) A ação civil pública após 20 anos: efetividade e desafios. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 42. 16) Solução consagrada em nossa Constituição Política no art. 109, § 1º. 17) DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 4ª ed. São Paulo, Malheiros, 1994, p. 304. 18) SOARES, Mário Lúcio Quintão. Processo constitucional, democracia e direitos fundamentais. In Jurisdição Constitucional e Direitos Fundamentais. SAMPAIO, José Adércio Leite (Coord.), Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 407; ZANETI Jr., Hermes. Processo constitucional. O modelo constitucional do processo civil brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 60-61. 19) No entanto, conforme se demonstrará logo mais a frente, a natureza jurídica da legitimidade nas ações coletivas, se ordinária ou extraordinária ou ainda se autônoma para condução do processo, ainda é assunto discutido pela doutrina. Vide infra p. 14, notas 35-37. Obra dedicada ao Instituto Terra

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meio da técnica da substituição processual20, autônoma, assim entendida por se tratar de legitimidade que “confere ao respectivo titular [do direito] a possibilidade de atuar em juízo com total independência em relação à pessoa que ordinariamente seria legitimada, e em posição análoga à que a esta caberia se ordinário fôsse o critério adotado pela lei para definir a situação legitimante” (sic) e exclusiva, no sentido de que sua atuação exclui a do titular do direito como parte principal, “tornando-lhe a presença irrelevante e, mais do que isso, insuficiente para a regular instauração do contraditório.” 21 Em sede de ações coletivas, em que se incluem as coletivas ambientais, com efeito, a regular observância do contraditório prescinde a presença dos titulares do direito deduzido em juízo, ou daqueles cujos interesses contrariam-se com os da demanda, até pela impossibilidade lógica de se chamar a juízo, em litisconsórcio necessário, todos aqueles que tenham tido ou venham a ter sua esfera de direito atingida pelo resultado da lide. Imagine se fosse necessário chamar a lide todas comunidades ribeirinhas que viessem a ser atingidas, por exemplo, pela contaminação de um rio e imagine ainda a problemática se tal rio cortasse mais de um estado. Ressalte-se que o entendimento quanto à natureza da legitimidade nas ações coletivas: se ordinária, extraordinária ou autônoma para condução do processo, ainda padece de divergências entre os que debatem o assunto, não sendo objeto deste trabalho. O presente escrito funda sua pesquisa na corrente que acolhe a teoria da legitimação extraordinária por substituição processual como a melhor forma de garantir uma efetiva e adequada tutela dos direitos coletivos lato sensu. E esse foi, de fato, o posicionamento encampado pelo Supremo Tribunal Federal, recentemente confirmando no RE n. 214668, no qual o Supremo reconheceu a atuação dos sindicatos como substitutos processuais na tutela dos direitos e interesses coletivos ou individuais das categorias que representam. 22 20) A teoria da substituição processual será mais profundamente abordada nos itens 1.2.1 e 1.2.3. 21) Trata-se de classificação elaborada por BARBOSA MOREIRA. A legitimação extraordinária, segundo o autor, pode ser classificada como autônoma ou subordinada. Será subordinada quando “apenas o titular da própria situação jurídica objeto do Juízo pode ajuizar o pedido, ou só contra ele pode dirigir-se a demanda. A presença do legitimado ordinário é, assim, indispensável à regularidade do contraditório.” A legitimidade autônoma, por sua vez, pode ser exclusiva ou concorrente. Conf. BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista dos Tribunais, São Paulo: RT, ano 58, Junho, vol. 404, 1969, p. 10-11. 22) Conf. RE n. 214668/ES, tribunal pleno, Min. Relator Carlos Velloso, julgado em 12/06/2006, Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Nesse sentir, acolhe-se ainda a doutrina capitaneada por Arruda Alvim que considera a legitimação como decorrente do ordenamento, de modo a admitir a substituição processual por determinado ente ainda que este não venha expressamente elencado num rol taxativo de legitimados em abstrato, mas a partir de uma interpretação sistemática.23 Com efeito, a leitura do ordenamento a partir da Constituição permite afirmar que o substituto processual não é somente aquele definido pela lei, mas também pelo magistrado que o determina, no caso concreto, por meio do controle da legitimação adequada, em conformidade com as premissas do ordenamento jurídico, inclusive a da necessidade de garantir a tutela jurisdicional adequada. Sob tal entendimento defende-se configurada a legitimidade ativa para a propositura de uma lide coletiva ambiental a partir do ordenamento como um todo e não somente a partir de autorização de uma norma legal específica. O modelo brasileiro adotou ainda uma legitimidade concorrente e disjuntiva24, a saber, um modelo de legitimidade no qual a atuação de um ente não exclui a de outro e ocorre independentemente de autorização ou anuência dos demais. É possível a todos os legitimados, de modo concorrente, habilitar-se à ação coletiva ambiental, desde que preenchidos os requisitos legais. Nesses termos, considerando que os entes legitimados agem na tutela de direitos pertencentes a uma coletividade e, portanto, na tutela de direitos alheios, sua atuação representa os anseios da sociedade. Nessa qualidade, atuam, ou no mínimo deveriam necessariamente atuar, no papel de autênticos porta-vozes da população. Disso se extrai a importância e a necessidade de se proceder ao controle dessa atuação, pelo que se denominou de representação adequada, instituto largamente aplicado no modelo de litígio coletivo norte-americano e que o Brasil, não obstante com algumas resistências, vem buscando implementar, em uma clara evolução do modelo de legitimação ope legis para o modelo ope judicis25. DJ 24/08/2007. Conf. ainda RE n. 193.503/SP, RE n. 193.579/SP, RE n. 208.983/SC, RE n. 210.029/RS, RE 211874/RS, RE n. 213.111/SP, rel. orig. Min. Carlos Velloso, rel. p/ o acórdão Min. Joaquim Barbosa, julgados em 12.6.2006, DJ 24/08/2007. 23) “A palavra lei, no art. 6º, deve ser entendida como sistema, no que se compreende decreto, lei complementar, etc.” ARRUDA ALVIM, Código de processo civil comentado. São Paulo: RT, 1975, p. 426. 24) Q uanto à atecnicidade do termo utilizado pela doutrina, bem observa Antonio Gidi que “Em vernáculo, ‘disjuntivo’ quer significar a proposição composta de dois predicados, sendo que apenas um deles pode ser atributo do sujeito com exclusão do outro. É o ‘ou-excludente’ da Lógica Formal.” GIDI, Antonio. Coisa julgada e litispendência em ações coletivas. São Paulo: Saraiva, 1995, p.38, nota 91. 25) Nesse sentido, afirmam Hermes Zaneti Jr. e Fredie Didier Jr. que: “Hoje, na jurisprudência, Obra dedicada ao Instituto Terra

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Ressalte-se que essa é uma tendência que vem sendo vislumbrada não somente no Brasil, mas também em vários países de tradição da civil law, conclusão essa extraída do Relatório Geral26 sobre as novas tendências em tema de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas dos países de civil law elaborado no âmbito do XIII Congresso Mundial de Direito Processual, realizado em Salvador, Bahia, no ano de 2007. Trata-se a representação adequada, em linhas gerais, de requisito necessário ao regular desenvolvimento da ação coletiva ambiental, consubstanciada na análise de determinadas características, atinentes aos legitimados e aferíveis pelo magistrado durante todo o iter processual, necessárias para demonstrar, no caso concreto, se os legitimados se apresentam habilitados a

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começa a perseverar o controle judicial da adequada legitimação, seguindo a tendência dos ordenamentos modernos de acompanhar , pelo juiz, a adequada representação das partes envolvidas. Portanto, correta a doutrina ao afirmar que a legitimação no Brasil não se limita ao legislador, ocorrendo também o controle ope judicis. Um dos casos em que esse controle tem se mostrado mais rigoroso é na legitimação do Ministério Público.” Conf. ZANETI Jr., Hermes; DIDIER Jr., Fredie. Curso de direito processual civil. Processo coletivo, vol 4, 3ª ed. Salvador: Juspodvum, 2008, p. 354. Do mesmo modo, assinala Marcelo Vigliar que “Fizemos uma suposta adesão ao denominado sistema ope legis crendo que, apenas por pertencermos à família jurídica do civil law, a previsão legal de um rol de legitimados bastaria à solução do problema. Puro engano. A jurisprudência (bastante expressiva) , formada ao longo desses 20 anos de prática de processos coletivos, que versa a condição do legitimado ativo, não me deixa mentir nem exagerar. [...] Estivéssemos num sistema ope legis (nunca estivemos porque ele é impraticável), e não se discutiria tanto, em juízo, a preliminar da legitimação ativa.” Conf. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Defendant class action brasileira: Limites propostos para o ‘Código de Processos Coletivos’. In GRINOVER, Ada Pellegrini; MENDES, Aluisio G. de Castro; WATANABE, Kazuo. Direito Processual Coletivo e o anteprojeto do Código Brasileiro de Processos Coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 313. Registrem-se aqui as críticas lançadas por Antonio Gidi quanto ao termo ope judicis utilizado pela doutrina porque, segundo explica “tanto no direito brasileiro como no direito norte-americano, é a lei escrita (e não o juiz) que determina quem tem e quem não tem legitimidade para propor uma demanda coletiva:um ente coletivo nas demandas coletivas brasileiras, um membro do grupo típico e adequado nas demandas coletivas norte -americanas.” Conf. Conf. GIDI, Antonio. Rumo a um Código de Processo Civil Coletivo. A codificação das ações coletivas no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 87. Tratase, contudo, de observação que vai de encontro ao proposto na presente pesquisa, eis que, conforme já defendido, entende-se aqui que a legitimação decorre do ordenamento e não somente da lei, podendo o magistrado, no caso concreto, aferir a legitimidade a determinado ente ainda que ausente previsão de lei, bem como afastá-la por considerá-la inadequada e desconforme aos princípios da tutela jurisdicional coletiva, por meio do que se denominou de legitimação conglobante. 26) Conf. GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazuo; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil Law e common Law. Uma análise de direito comparado. Tema n. 5. Novas tendências em matéria de legitimação e coisa julgada nas ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 250. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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uma atuação adequada e eficiente dos interesses da sociedade. Tal modelo de legitimidade mostra-se de fundamental importância para a maior efetividade do direito ambiental na medida em que torna a lide mais adequada aos anseios dos que representam.

2) Substituição Processual: A Relação Entre Interesse Processual e a Legitimação na Visão do Cpc

Tradicional (Crítica da Doutrina Majoritária).

Ressalte-se, inicialmente, que o conceito de interesse de agir, como condição da ação, não deve ser confundido com o de interesse substancial, material na lide. Este tem caráter substancial e primário e aquele, secundário e instrumental27. Essa distinção, todavia, nem sempre se mostra clara na doutrina. Por vezes, os conceitos se confundem, levando doutrina28 e jurisprudência, em algumas situações, a exigirem interesse material na causa para a configuração do interesse para agir. Rodrigo da Cunha L. Freire observa que, fruto dessa confusão conceitual, fala-se atualmente em interesse de agir metaindividual. Segundo o autor, o interesse de agir não pode ser qualificado como metaindividual, somente o interesse substancial29. Segue concluindo que “O que se pode discutir é a presença do interesse de agir em ação que visa a proteção de interesse substancial individual, estando pendente ação para defesa de interesse substancial metaindividual, com causa de pedir correspondente à daquela.”30 Fundado no binômio31 necessidade e utilidade da tutela jurisdicional, o in27) OLIVEIRA, Waldemar Mariz. Substituição processual. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1971, p. 32; DIDIER Jr., Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação. O juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 281. 28) MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 287-290. 29) LIMA FREIRE, Rodrigo da Cunha. Condições da ação. Enfoque sobre o interesse de agir. 3ª ed. são Paulo: RT, 2005, p. 164 30) LIMA FREIRE, Rodrigo da Cunha. Condições da ação. Enfoque sobre o interesse de agir. 3ª ed. são Paulo: RT, 2005, p. 164. 31) Assim, trazida a demanda a juízo, “o Estado-juiz verifica, em juízo sucessivo,: a) se há realObra dedicada ao Instituto Terra

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teresse de agir, segundo a doutrina tradicional, “é o elemento material do direito de ação”; trata-se de “um interesse processual, secundário e instrumental com relação ao interesse substancial primário: tem por objeto o provimento que se pede ao juiz como meio para se obter a satisfação de um interesse primário lesado pelo comportamento da parte contrária, ou, mais genericamente, pela situação de fato objetivamente existente.”32 Trata-se, desse modo, de instituto que traz uma vinculação direta e pessoal com o titular do direito pleiteado33, mas que com ele não se confunde. Em razão dessa vinculação, reconhece-se na doutrina a dificuldade em se separar o interesse processual da legitimidade para agir.34 Enquanto o primeiro consubstancia-se na relação entre a necessidade e o bem da vida apto a satisfazê-la, o segundo relaciona-se à necessidade de se descobrir, in concreto, quem pode mover a demanda e em face de quem pode ser movida. Fazendo alusão a ambos os institutos, Cândido Rangel Dinamarco afirma que a legitimidade se absorve no interesse de agir, já que a falta daquela implica inutilidade do provimento jurisdicional. Para o autor, a ilegitimidade ad causam é, assim, “um destaque negativo do requisito do interesse de agir, cuja concreta ” 35 ocorrência determina a priori a inexistência deste. mente a necessidade concreta de tutela apontada pelo demandado; b) se o provimento reclamado (bem processual – provimento solicitado) seria realmente apto ou adequado para debelar aquela necessidade. portanto, havendo juízo negativo em uma dessas situações (falta de necessidade ou falta de adequação), o Estado entende inexistir interesse, justamente porque inútil seria o provimento solicitado.” Conf. ABELHA RODRIGUES, Marcelo. Manual de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141. 32) LIEBMAN, Enrico Tullio. Manual de direito processual civil. Rio de Janeiro: Forense, 1984, p. 206/207. 33) Na verdade, como bem ressalta Marcelo Abelha, “enquanto a necessidade põe o juiz em contato com o direito material, a adequação o põe em contato com o direito processual, qual seja o uso adequado das regras de processo (processo, provimento e procedimento) estabelecidas pelo legislador. Isso tem repercussão na decisão proferida pelo magistrado e conduz, na verdade, à dissociação entre esses dois aspectos do interesse, para colocar a verificação da necessidade da tutela dentro de aspectos atrelados ao mérito e à verificação da adequação da tutela dentro dos pressupostos do processo.” Conf. ABELHA RODRIGUES, Marcelo. Manual de direito processual civil. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 141. 34) Conf. ARMELIN. Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1979, p. 106. Para o autor, “A distinção entre a legitimidade ad causam e o interesse de agir, posto que factível, não apresenta a facilidade e a tranqüilidade de seu destaque da possibilidade jurídica do pedido. Isso em razão não só dos proteiformes contornos do interesse de agir, como também pelas características de ambos os institutos constituírem-se em pressupostos genéricos dos atos processuais.” Idem, p. 106. 35) DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de direito processual civil. T. 2, 4ª ed. São Direitos Humanos e Meio Ambiente

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Ainda que se reconheça a dificuldade em se dissociar legitimidade ad causam e o interesse de agir, a distinção se impõe, eis que em determinadas situações é possível que se visualize claramente a existência da legitimidade destacada do interesse. Nesse sentido, expõe Donaldo Armelin que se faz possível, por exemplo, a satisfação do bem da vida por meio da atuação do Judiciário sem que o titular da pretensão seja legitimado a tanto, como ocorre nos casos de legitimação extraordinária. De fato, quando se está diante de legitimação extraordinária (substituição processual), ou seja, quando o autor pleiteia, em nome próprio, direito alheio, a distinção dos institutos mostra-se mais clara. Isso em razão da regra geral consubstanciada no art. 6º do CPC segunda a qual somente aquele que se afirma titular do direito pode em sua defesa demandar. Afirma José Augusto Delgado, que “A exceção [à regra do art. 6º] não atinge de modo profundo o princípio geral, pois este, na verdade, se apresenta como o mais correto, em face do legislador deixar a cada pessoa a iniciativa de reivindicar em juízo os seus direitos.” Nesses casos, continua o autor, facilmente se verifica “a presença de um interesse conexo da parte processual com o da parte material [...]. Esse liame é ditado pela norma positiva, conforme já afirmado no art. 6º, em haver a restrição de só ser admitida a substituição processual quando a própria lei reconhecer ao terceiro uma condição especial para demandar direito alheio.” 36 Com efeito, a atuação do substituto processual não depende da vontade do substituído, titular da relação jurídica deduzida em juízo, eis que a legitimidade do substituto é originária, ou seja, “ela não deriva de uma outra legitimação potencial do titular do direito material.” Ao mesmo tempo em que “é acessória Paulo: Malheiros, 2004, p. 308. 36) DELGADO, José Augusto. Aspectos controvertidos da substituição processual. Revista de Processo, n. 47. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jul-Set, 1987, p. 7-8. Para um estudo da substituição processual, conf. ainda BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais. Ano 28, vol. 404, 1969. Segundo o autor, embora a doutrina, em geral, trate como substituição processual todos os casos de legitimidade extraordinária, a denominação é mais adequada aos casos de legitimação extraordinária autônoma exclusiva porque, somente nesses casos, é que há, na verdade, uma substituição legal do legitimado ordinário pelo legitimado extraordinário. Idem, p. 12. Recorde-se que, mesmo antes da promulgação da LACP, em 1985, a doutrina já defendia uma interpretação extensiva do art. 6º do CPC, de modo a permitir a tutela de interesses coletivos por entidades associativas. Nesse sentido, conf. WATANABE, Kazuo. Tutela jurisdicional dos interesses difusos; A legitimação para agir. Revista de Processo, n. 34. São Paulo: Revista dos Tribunais; BARBOSA MOREIRA, Barbosa. A tutela jurisdicional dos interesses coletivos ou difusos. In MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ou instrumental, pois tem ela por escopo provocar, do órgão da jurisdição, uma decisão sôbre o mérito da relação jurídica do substituído.”37 No entanto, ressalta Waldemar Mariz de Oliveira, que muitos são os autores que levam em consideração o interesse do substituto para que se configure o interesse de agir. Citando Francesco Carnelutti e Piero Calamandrei, na doutrina italiana, e José Frederico Marques e João Bonumá, no Brasil, afirma que, segundo esses autores, para que o substituto processual conduza o processo, necessário que tenha interesse pessoal no resultado da demanda. Esse modelo de análise das condições da ação trazido pelo CPC tradicional, baseado na titularidade do direito material e, por conseguinte, no interesse pessoal no resultado da lide, não se mostra adequado ao modelo coletivo ambiental. 38 Importante, nesse ponto, faz-se a observação de Teori Albino Zavascki ao defender que “os objetivos perseguidos na ação coletiva são visualizados não propriamente pela ótica individual e pessoal de cada prejudicado, e sim pela perspectiva global, coletiva, impessoal, levando em consideração a ação lesiva do causador do dano em sua dimensão integral.”39 Já defendia, nesse sentido, Waldemar Mariz de Oliveira40 ao afirmar que tal exigência [de demonstrar interesse pessoal na causa] limita a incidência do dispositivo, tão elementar no processo coletivo atual. O autor cita, como exemplo, a atuação do Ministério Público que litiga em prol do interesse público primário, jamais buscando interesse próprio. Certamente o parquet não atua no processo coletivo na busca de um interesse próprio, mas de um interesse público primário tutelável por um 37) OLIVEIRA, Waldemar Mariz de. Substituição Processual. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1971, p. 132. Conclui o autor que “é justamente por fôrça dêsse caráter inquestionável de acessoriedade ou de instrumentalidade que as causas responsáveis pela extinção do direito de ação do substituído produzem, igualmente, a extinção do direito de agir do substituto [...]” (sic) p. 132-133 38) “A desconexão entre titularidade da pretensão material e o poder de agir em Juízo, no ambiente dos conflitos metaindividuais, deve-se à dessubstantivação que caracteriza esses interesses de largo espectro social, levando a que os clássicos trinômios ‘necessidade-utilidade -adequação’ da ação proposta e interesse de agir ‘real-pessoa-atual’, devam passar por uma releitura e alguma adaptação.” Conf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 394-395. 39) ZAVASCKI, Teori Albino. Processo Coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 229. 40) OLIVEIRA, Waldemar Mariz de. Substituição Processual. Revista dos Tribunais: São Paulo, 1971, p. 134 Direitos Humanos e Meio Ambiente

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grupo determinado, determinável ou indeterminável de pessoas que não possui legitimação coletiva. No mesmo sentido, Fredie Didier Jr.e Hermes Zaneti Jr. assim se posicionam sobre o tema: “[...] a substituição processual independe da existência ou não de um específico interesse processual ou material do substituto: o que se deve averiguar é a existência de um interesse processual na solução do conflito, sem relacioná-lo à figura do substituto processual. A possibilidade jurídica do pedido e o interesse de agir devem ser examinados em relação à situação jurídica litigiosa posta em juízo, não sendo relevante a informação sobre quem seja o substituto processual41”. Assim, do mesmo modo que o instituto da legitimidade ad causam merece revisitação à luz do novo modelo de processo coletivo, denota-se que o conceito de interesse de agir também merece reanálise.

3) Substituição Processual: A Relação Entre Interesse

Processual e Legitimação nas Ações Coletivas Ambientais.

A compreensão do interesse processual42 na tutela coletiva ambiental, assim como se dá com a legitimação ativa, não pode tomar como parâmetro essencial a titularidade do direito subjetivo protegido. Com efeito, o assunto, em sede de direito coletivo, deve ser revisto de modo a receber tratamento adequado haja vista a omissão legislativa no trato da questão. A problemática ganha contornos especiais, sobretudo, pelo fato de se estar diante de direitos coletivos ambientais, em sentido lato, o que demanda a presença de um representante em juízo desses direitos, que não necessariamente o titular individual do direito, mas um representante adequado. Ademais, “os 41) DIDIER, Fredie; ZANETI Jr., Hermes. Curso de direito processual civil. Processo coletivo. 3ª Ed. Salvador: Podivm, vol 4, 2008, p. 230. 42) Teori Albino Zavascki faz alusão ao requisito da pertinência temática, exigível a alguns entes legitimados, como uma questão ligada ao interesse de agir. Não é essa a linha de entendimento proposto no presente trabalho, que traz o requisito da pertinência temática como questão relacionada ao controle judicial da adequada legitimidade conforme oportunamente será demonstrado. Tal observação seria adequada ao nosso sistema caso este se assemelhasse ao norte-americano cujo instituto da legitimidade encontra-se atrelado ao do interesse processual, ao que a doutrina denominou de standing. Vide infra. Conf. ZAVASCKI, Teori Albino. Processo coletivo. Tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2ª Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 77. Obra dedicada ao Instituto Terra

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interesses difusos, por definição, não constituem uma situação diferenciada ou de privilégio individual, cuja violação ou ameaça possa fazer emergir uma sanção previamente estabelecida em lei e que se possa fazer valer em juízo.”43 44 Nesses casos, como seria possível determinar o interesse de agir de um legitimado em uma ação coletiva ambiental? Rodolfo de Camargo Mancuso, analisando o assunto, expõe a necessidade de se sistematizar um novo tipo de interesse processual, priorizando-se não mais seu caráter pessoal e direto, mas seu caráter relevante e legítimo. Assim leciona que: “[...] é sensível que a personificação do interesse, isto é, seu caráter direto e pessoal, que o torna afetado a um titular, vai se esmaecendo, para dar lugar ao reconhecimento de um novo tipo de interesse processual, surgido a partir de dados objetivos, da realidade exterior. Assim, em certas ações populares ou nas class actions tem-se por relevantes e suficientes para caracterizar o interesse de agir certos fatos objetivos como a condição de eleitor ou cidadão, ou o fato de “habitar certa região onde o que prevalece é a relevância social do interesse. 45 Destarte, o interesse processual passa agora a ser visto sob a ótica da necessidade de tutela de interesses legítimos e socialmente relevantes, ou seja, a necessidade de uma tutela jurisdicional efetiva passa a ser vista a partir do direito que se pretende tutelar e não a partir da titularidade desse mesmo direito. Rompe-se a tradicional estrutura processual e faz com que as hipóteses em que legitimidade e interesse eram antes usualmente coincidentes, passem a ser exceções, “porque aqui [no processo coletivo] o poder de agir não 43) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. Conceito e legitimação para agir. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 164. Conf. ainda MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 106. 44) José Marcelo Menezes Vigliar observa ainda que “[...] se fosse possível a exigência da demonstração do interesse de cada um dos interessados [dentro da sistemática da tutela coletiva], jamais haveria a apreciação do mérito, porque, além da dificuldade prática de se viabilizar essa tarefa, encontraríamos alguns titulares que poderiam alegar que, do seu ponto-de-vista, a defesa em juízo do interesse transindividual ofendido (como o meio ambiente) não faria a menor diferença. Esse fato comprometeria a própria presunção (iure et de iure) que o legislador cria, para que certos interesses/direitos sejam defendidos em juízo, quando não observadas as vedações existentes no direito material. VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 65. 45) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos. Conceito e legitimação para agir. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1991, p. 120. Conf. ainda MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Tutela judicial do meio ambiente: reconhecimento de legitimação para agir aos entes naturais? Revista de processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 13, n. 52, 1988, p. 61 Direitos Humanos e Meio Ambiente

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é exercido por quem se afirma titular do interesse metaindividual, mas por quem o texto de regência credencia como um adequado representante, seja de toda a sociedade, no caso dos interesses difusos, seja de parte dela (um grupo, categoria ou classe), no caso dos coletivos em sentido estrito, ou ainda de um expressivo número de sujeitos, cujas posições estão uniformizadas, por conta de uma unitária situação legitimante.”46 Importante é ressaltar que a jurisprudência muitas vezes não traz a distinção dos institutos com clareza e, não raro, confunde-os. No julgamento do Resp n. 818725/SP47, a 1ª Turma do STJ entendeu que, no caso em estudo, a ação popular, ajuizada com o objetivo de suspender o pagamento do estacionamento rotativo no Município de Tatuí/SP, por envolver relação de consumo, deveria ser extinta pela ausência de interesse de agir do autor (pela inadequação da via eleita), bem como por falta de legitimidade ativa eis que o cidadão não é parte legítima a demandar coletivamente direitos do consumidor. Com efeito, buscar tutela de direitos do consumidor, pertencentes a uma coletividade, por meio de ação popular implica a inafastável conclusão da inadequação da via eleita, eis não ser esse o escopo da ação popular, portanto, carente o autor da ação de interesse de agir. No entanto, não significa dizer que o cidadão não disponha de legitimidade. O cidadão é parte legítima a propor ação popular, desde que o faça dentre dos parâmetros legais. Elton Venturi48 leciona que o interesse processual nas lides coletivas é ínsito, presumido. Isso porque o legislador, ao previamente elencar os entes legitimados a demandar ações coletivas, incutiu-lhes, de forma implícita, um interesse processual Ricardo Negrão, seguindo o mesmo entendimento, afirma que “O interesse de agir, enquanto demonstração da necessidade jurídica leva, assim, a considerações de ordem objetiva: a lei teria, em tese, demonstrado os casos em que se entende ‘implícito’ esse interesse, para beneficio do interesse social.”49 Ocorre que, mesmo que consideremos que o instituto em referência mere46) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 394. 47) Conf. Resp n. 818725/SP, Min. Relator LUIZ FUX, PRIMEIRA TURMA, Julgado em 15/05/2008. Publicado em 16/06/2008. 48) VENTURI, Elton. Processo civil coletivo. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 229-230. No mesmo sentido, VIGLIAR, José Marcelo Menezes. Tutela jurisdicional coletiva. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2001. p. 65. 49) NEGRÃO, Ricardo. Ações coletivas. Enfoque sobre a legitimidade ativa. São Paulo: Leud, 2004, p. 154. Obra dedicada ao Instituto Terra

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ça tratamento peculiar em sede de direitos coletivos ambientais, sua aplicação ainda se mostra presente, de modo que afirmar que sua incidência ocorre sempre de modo presumido pode fazer com que algumas situações jurídicas tornem-se descobertas de fundamento. Rodolfo de Camargo Mancuso traz o exemplo da atuação em juízo do CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), autarquia legitimada à propositura das ações coletivas, ex vi do art. 3º da Lei 8.884/94 e art. 5ª da Lei 7.347/85 c/c art. 82, III, da Lei 8.078/90. Sua atuação, a depender do caso concreto, pode carecer de interesse de agir quando a lesão ou ameaça ao interesse que se pretende tutelar possa ser prevenida ou sanada em sede administrativa.50 Debate ainda o autor paulista acerca da possibilidade de um ente da administração pública, detentor do poder de polícia, valer-se de ação civil pública para obtenção de providências materiais alcançáveis mediante sua atuação direta (poder-dever) sem que houvesse a necessidade de intervenção do Judiciário. Essa é uma questão que, de fato, não se resume à garantia de acesso à justiça, mas envolve o Princípio da Separação dos Poderes e o interesse de agir, na medida em que se verifica, no caso em análise, a desnecessidade e de se movimentar o aparato jurisdicional, eis que o ente público dispõe de instrumentos próprios e hábeis a alcançar o mesmo resultado pretendido mediante a ação judicial. Além disso, não pode a atuação judicial operar “como um álibi para o administrador leniente, ou omisso, que prefere deixar o caso sub judicie.”51 Situações como esta, no entanto, devem ser analisadas com cautela. Tratase, com efeito, de situação em que, não obstante presente a legitimidade ad causam, o interesse restaria prejudicado eis que pressupõe a necessidade de ingresso ao Judiciário. Contudo, ressalte-se, mais uma vez, que tal aferição não pode ocorrer em abstrato, mas antes avaliada em cada caso concreto, sopesadas a urgência de cada situação bem como a relevância social do direito em questão. 50) “[...] v.g. [com a aplicação do] art. 52 daquela lei, autorizando o ‘Secretário da SDE ou o Conselheiro Relator, por iniciativa própria ou mediante provocação do Procurador-Geral do CADE adotar medida preventiva, quando houver indício ou fundado receio de que o representado, direta ou indiretamente, cause ou possa causar ao mercado lesão irreparável ou de difícil reparação ou torne ineficaz o resultado final do processo’; ainda dispõe o § 1º desse artigo que nessa hipótese será ‘determinada a imediata cessação da prática e ordenará, quando materialmente possível , a reversão à situação anterior, fixando multa diária nos termos do art. 25’. 51) MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada. Teoria geral das ações coletivas. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. P. 396. Direitos Humanos e Meio Ambiente

Márcia Vitor de Magalhães e Guerra

Atento a necessidade de se desvincular o interesse de agir ao interesse material específico, Álvaro Luiz Valery Mirra52 observa que questões como “Qual o interesse de um determinado Estado-membro da Federação no ajuizamento de demanda para a reparação de danos causados por poluição de rio que não banha o seu território?” ou “Qual o interesse de certa associação de defesa do meio ambiente sediada em determinada localidade, ou criada para atuar na proteção de determinado ecossistema ou bem ambiental específico, na propositura de ação civil pública de responsabilidade por danos a bem ambiental diverso ou situado em região distante?” ou ainda “Qual o interesse de determinada sociedade de economia mista atuante na área do controle da poluição ambiental para mover ação civil pública ambiental em defesa de espécies da fauna ameaçadas de extinção?” não são úteis na aferição da presença do interesse de agir, já que, na verdade, trata-se de questões relacionadas ao interesse material na ação, elemento integrante, segundo o autor, da legitimação para agir e relacionado à identificação da representatividade adequada do autor53. Com efeito, não se mostra a solução mais técnica concluir pela ausência de interesse processual54 quando se está diante de demanda, ajuizada por Estadomembro da Federação, que vise à reparação de danos causados por poluição de rio que não banha o seu território. No entanto, concluir que o precitado exemplo se refere ao interesse material do autor na ação, interesse este que integraria o instituto da legitimação para agir, significa aplicar, no âmbito processual coletivo, os mesmos institutos moldados à luz do direito processual tradicional. A presença de interesse material na causa55 denota titularidade do direito e 52) MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 220. 53) “Quando se indaga se um determinado Estado-membro ou Município nele situado podem propor ação civil pública de responsabilidade por danos ambientais ocasionados em outro Estado-membro, o que se pretende discutir, rigorosamente, é a legitimidade, para a causa em questão, dessas pessoas jurídicas de direito público, como entes representativos dos interesses da coletividade na preservação da qualidade ambiental.” Conf. MIRRA, Álvaro Luiz Valery. Ação civil pública e a reparação do dano ao meio ambiente. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 221. 54) Em sentido contrário, conf. MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. 13 ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 287. 55) No mesmo sentido, abordando el dereho de amparo e a ação popular argentina, Gozaíni leciona que, por se tratar de ações que representam garantias instrumentais de acesso à jurisdição e que tutelam direitos abstrativamente considerados, não se exige que tais direitos possuam titularidade específica ou a presença de um interesse pessoal ou de um dano efetivamente comprovado por parte daquele que apresenta a demanda. Conf. GOZAÍNI, Osvaldo Alfredo. El dereho de amparo. 2ª ed. Argentina: Depalma, 1998, p. 109 (tradução livre). Obra dedicada ao Instituto Terra

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subjetivação da ação, situações que não se verificam em sede de diretos coletivos. Por isso, mais adequado que se posicione essas indagações como critérios identificadores da representação adequada do autor, aferíveis pelo magistrado no curso da ação, de modo que se assegure uma tutela adequada e eficaz àqueles indivíduos que não se puderam fazer presentes na ação. Ressalte-se que esse posicionamento já vem sendo defendido por Ada Pellegrini Grinover56 que afirma haver a necessidade de se demonstrar a prevalência dos interesses comuns, bem como a superioridade da tutela coletiva nas as ações que visem à tutela de direitos individuais homogêneos. Segundo a autora, a origem comum do direito pode não ser suficiente para caracterizar sua homogeneidade. Assim, para que se possa aferir se os direitos individuais são, efetivamente, homogêneos por sua origem comum, leva-se em conta o critério da “prevalência da dimensão coletiva sobre a individual”57 Ou seja, inocorrendo essa prevalência das questões comuns, os direitos mostrar-se-iam heterogêneos e, portanto, careceria à tutela coletiva possibilidade jurídica do pedido. O segundo requisito exigido pela autora é o da superioridade da tutela coletiva, em relação à individual, analisado, segundo ela, sob dois aspectos: o do interesse de agir e o da efetividade do processo. Nessa esteira, “Se o provimento jurisdicional resultante da ação civil pública em defesa de direitos individuais homogêneos não é tão eficaz quanto aquele que derivaria de ações individuais, a ação coletiva não se demonstra útil à tutela dos referidos interesses. E, ademais, não se caracterizaria como a via adequada à sua proteção.”58

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Conclusão

Conclui-se, portanto, que o instituto da legitimação para agir, atualmente detentor de uma conceituação fundada na visão tradicional do direito processual civil, vinculada à titularidade do direito material, demanda atualização constitucional. A leitura do ordenamento a partir da Constituição da República permite afirmar que o substituto processual não é somente aquele definido pela lei, mas também pelo magistrado que o determina, no caso concreto, por meio do controle da legitimação adequada, em conformidade com as premissas do ordenamento jurídico, inclusive com a da necessidade de garantir a tutela jurisdicional adequada.

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56) GRINOVER, Ada. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006, p. 195. 57) GRINOVER, Ada. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006, p. 195. 58) GRINOVER, Ada Pellegrini. Da class action for damages à ação de classe brasileira: os requisitos de admissibilidade. In GRINOVER, Ada Pellegrini (Coord). O processo. Estudos e pareceres. São Paulo: DPJ, 2006, p. 196. Direitos Humanos e Meio Ambiente

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A proteção do meio ambiente ecologicamente equilibrado na Constituição Federal de 1988 Fernando Carlos Dilen da Silva1 Faculdade São Geraldo Paulo Roberto Ulhoa2 Faculdade São Geraldo

Sumário: Introdução. 1 A sustentabilidade como fundamento e proteção do patrimônio ambiental. 2 Problematizando a defesa do patrimônio ambiental. 3 A proteção do patrimônio ambiental do Estado do Espírito Santo. 4 Instrumento de defesa do patrimônio público ambiental. Conclusão

1) Mestre em História Social das Relações Políticas (UFES); Professor da Faculdade São Geraldo; Procurador do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo 2) Mestre em Direito pela UFMG; Coordenador do Curso de Direito da Faculdade São Geraldo; Diretor da ABDH; Advogado e Consultor Jurídico.

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Introdução

O objetivo do presente artigo é buscar fundamentos teóricos a fim de fundamentar a nova conformação jurídica da proteção do patrimônio ambiental brasileiro ocorrida na Constituição de 1988 bem como os autores e instrumentos judiciais e administrativos para a sua operacionalização.

1) A sustentabilidade como fundamento da proteção do patrimônio ambiental

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Para a correta compreensão da proteção do patrimônio ambiental e a sua constitucionalização na atual Constituição, preliminarmente se faz necessário compreender o princípio da sustentabilidade como norte histórico que permitiu sua posterior concretude constitucional. Inicialmente empregada na Conferência de Estocolmo em 1972, o Princípio da Sustentabilidade ou Desenvolvimento Sustentável foi sendo aprimorado com as inserções das dimensões econômicas, social e ecológica em seus dispositivos, onde se analisava a demanda econômica juntamente com uma abordagem social e ecológica, considerada como dimensão agregadora. Diferentemente da visão utilitarista, econômica ou liberal, onde se entendia a economia unicamente como fonte de maiores ganhos com menor investimento, o Princípio do Desenvolvimento Sustentável começou a ser visto como a necessidade de adaptação da produção econômica e do consumo a novas exigências mais amplas, relacionando-o com a manutenção dos recursos naturais. Esta nova noção induziu diversos Estados, dentre eles o Brasil, a aplicar em suas políticas públicas tais direcionamentos, tendo reflexo direto na elaboração da lei federal 6.938, denominada de Política Nacional de Meio Ambiente, abrindo assim espaço para a futura constitucionalização do direito ambiental. Referida legislação infraconstitucional buscou fomentar novas práticas de produção de serviços ambientais que também assegurassem a conservação e a restauração dos ecossistemas, em nível infraconstitucional, mas já indicando a futura necessidade de sua inserção constitucional.

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2) Problematizando a defesa do patrimônio ambiental Em decorrência do Princípio do Desenvolvimento Sustentável, também considerado uma das expressões de materialização e proteção aos direitos humanos, restou inevitável, durante a Assembléia Constituinte de 1986 a 1988 a constitucionalização do direito ambiental, seguindo assim a tendência mundial assinalada, em especial nas novas constituições de características programáticas, com programas sociais analíticos. O professor Antônio Herman Benjamim3 descreve alguns benefícios de tal constitucionalização, dentre os quais destacamos a proteção ambiental como direito fundamental, ganhando em caráter formal eficácia normativa constitucional, a par da já reconhecida configuração de direitos humanos. Com efeito, tais proteções foram incluídas na atual Constituição no artigo 225, gerando a mudança do paradigma da legalidade ambiental para a constitucionalidade ambiental, quando o legislador constituinte declara o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sendo considerado direito fundamental de terceira dimensão com aplicabilidade imediata, com todas as características inerentes aos direitos humanos como historicidade, universalidade, irrenunciabilidade, inalienabilidade, limitabilidade e imprescritibilidade, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF 101, assim transcrita na parte aqui referenciada: EMENTA: ARGÜIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL: ADEQUAÇÃO, OBSERVÃNCIA DO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE. ARTS, 170, 196 E 225 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA, CONSTITUCIONALIDADE DE ATOS’ NORMATIVOS PROIBITIVOS DA IMPORTAÇÃO DE PNEUS USADOS, RECICLAGEM DE PNEUS USADOS: AUSÊNCIA DE ELIMINAÇÃO TOTAL DE SEUS EFEITOS. NOCIVOS À SAÚDE E AO MEIO AMBIENTE EQUILIBRADO. AFRONTA AOS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA SAÚDE E DO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO. COISA JULGADA COM CONTEÚDO EXECUTADO OU EXAURIDO: IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO. DECISÕES JUDICIAIS COM CONTEÚDO INDETERMINADO NO TEMPO: PROIBIÇÃO 3) BENJAMIM. Antonio Herman de Vasconcellos. O Meio Ambiente na Constituição Federal de 1988. In: Informativo Jurídico da Biblioteca Ministro Oscar Saraiva, v. 19, n. 1, jan./ jun. 2008.

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DE NOVOS EFEITOS A PARTIR DO JULGAMENTO. ARGUIÇÃO JULGADA PARCIALMENTE PROCEDENTE. (...) 4. Princípios constitucionais (art. 225) a). do desenvolvimento sustentável e b) da equidade e responsabilidade intergeracional. Meio ambiente ecologicamente equilibrado: preservação para a geração atual e para as gerações futuras. Desenvolvimento sustentável: crescimento econômico com garantia paralela e superiormente respeitada da saúde da população, cujos direitos devem ser observados em face das necessidades atuais e daquelas previsíveis e a serem prevenidas para garantia e respeito às gerações futuras. Atendimento ao princípio da precaução, acolhido constitucionalmente, harmonizado com os demais princípios da ordem social e econômica. (Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 101. Relatora Ministra Carmen Lúcia, Data julgamento 24.06.2009). Desta maneira, a Constituição da Federal de 1988 elevou em nível constitucional a proteção ambiental já positivada na lei 6.938/81, protegendo bens ambientais de natureza material e imaterial considerados individual ou conjuntamente. Ademais, a Carta Magna também determinou o dever de toda a comunidade na proteção e promoção do patrimônio ambiental brasileiro, elencando instrumentos de ação de forma não taxativa (ação civil pública, ação popular, mandado de segurança, dentre outras formas de acautelamento e preservação), o que consagrou em definitivo o patrimônio ambiental como bem comum de uso coletivo. O patrimônio público ambiental teve a sua concretude normativa constitucional com outros princípios tais como: Princípio do Direito Humano Fundamental; Princípio da Responsabilidade; Princípio Democrático; Princípio do Equilíbrio; Princípio da Precaução; Princípio do Limite; Princípio da Prevenção; Princípios do Usuário Pagador e do Poluidor Pagador, todos transcritos no artigo 225 da Constituição Federal. Deve ser registrado que quando se faz referência ao patrimônio ambiental como bem público, o mesmo deve ser caracterizado como bem de uso comum do povo, buscando enquadrá-lo corretamente na classificação doutrinária acerca do assunto. A propósito, bens públicos são todos os bens móveis ou imóveis pertencentes às pessoas jurídicas de direito público, aqui consideradas as entidades federativas e suas respectivas entidades da Administração Indireta como autarquias e fundações públicas. O artigo 66 do Código Civil classifica os bens públicos como: bens públicos de uso comum, bens de uso especial e bens dominicais, sendo considerado o patrimônio ambiental como bem público os de uso comum aqueles destinados ao uso coletivo, os quais podem ser aproveitados por todos os indivíduos. Faz-se necessária tal classificação para registrar a própria indisponibilidade Direitos Humanos e Meio Ambiente

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do patrimônio ambiental por parte do Estado, já que a sua utilização, na doutrina humanística universal, o classifica como bem de interesse difuso de terceira geração ou dimensão, emergindo assim o interesse de todos em sua preservação, incluindo entidades privadas que se disponham a fazê-lo, como adiante veremos. Desta maneira, fica evidenciada a obrigação do Poder Público em defender e preservar o meio ambiente, por meio de entidades ou órgãos administrativos especializados em tal finalidade.

3) A proteção do patrimônio ambiental do Estado do Espírito Santo

Não obstante a obrigação existente em nível federal e também municipal, no Estado do Espírito Santo a proteção ao meio ambiente também ocorre no âmbito da Secretaria Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos, bem como por meio das entidades de execução de tais políticas públicas como é o caso do Instituto Estadual de Meio Ambiente e Recursos Hídricos. Referida autarquia estadual foi criada pela lei complementar 248 de 28 de junho de 2002, tendo como objetivos o planejamento, coordenação, execução, fiscalização e controle das atividades de meio ambiente, dos recursos hídricos estaduais e dos recursos naturais federais, cuja gestão tenha sido delegada pela União. Ao lado das entidades citadas, o Estado do Espírito Santo também atua na proteção ao meio ambiente por intermédio da Secretaria de Agricultura, que também possui entidade autárquica vinculada de execução de políticas ambientais por meio do Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal (IDAF). O pré-citado Instituto foi criado pela Lei Complementar 81/1996 e constituído como pessoa jurídica de direito público, com autonomia patrimonial, técnica, financeira e administrativa, na forma do art. 1º da Lei Complementar 197/2001, que modernizou e reestruturou a autarquia, in verbis: “Art. 1º O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF, é uma autarquia, com personalidade jurídica de direito público interno, patrimônio próprio, com autonomia técnica, financeira e administrativa, vinculada a Secretaria de Estado da Agricultura – SEAG.” A propósito, evidenciando o caráter de agência autônoma em face do Estado do Espírito Santo, o Tribunal de Justiça possui entendimento pacificado quanto à personalidade jurídica própria do IDAF: EMENTA: APELAÇÃO CÍVEL - EXECUÇÃO FISCAL - AUTO DE INFRAÇÃO LAVRADO PELO Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (IDAF) Obra dedicada ao Instituto Terra

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AUTARQUIA ESTADUAL - PERSONALIDADE JURÍDICA AUTÔNOMA - ILEGITIMIDADE DO ESTADO DO ESPÍRITO SANTO PARA figurar no pólo ativo de execuções fiscais baseadas em títulos executivos lavrados pelo ente personalizado - RECURSO DESPROVIDO - SENTENÇA MANTIDA. 1 - O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (IDAF) é uma autarquia estadual e, por isso, possui personalidade jurídica autônoma. 2 - O Estado do Espírito Santo não possui legitimidade para figurar no polo ativo de executivo fiscal ajuizado com fundamento em título executivo decorrente de auto de infração emitido por autarquia estadual. Precedentes do e. TJ⁄ES. 3 - Recurso desprovido. Sentença mantida. (TJES, Classe: Apelação Civel, 24010124790, Relator: WILLIAM COUTO GONÇALVES, Órgão julgador: PRIMEIRA CÂMARA CÍVEL, Data de Julgamento: 29⁄03⁄2011, Data da Publicação no Diário: 08⁄04⁄2011) Dentre as finalidades do IDAF encontram-se a defesa do patrimônio ambiental, aqui considerado em seu sentido amplo de proteção sanitária, animal, vegetal e em especial das atividades com impacto florestal, conforme dispõe o art. 5º da mesma lei complementar: “Art. 5º O Instituto de Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo – IDAF, tem como finalidade institucional promover e executar as políticas de defesa sanitária; de inspeção de produtos de origem animal; de controle e fiscalização das atividades agropecuária, florestal, pesqueira e da fauna silvestre, dos recursos hídricos e dos solos, bem como executar as políticas agrária e cartográfica, no território estadual, competindo-lhe: (...) V – contribuir para a conscientização sobre a importância da conservação dos recursos florestais e recursos hídricos, do manejo adequado de agrotóxicos e solos, da defesa sanitária animal e vegetal; VI – promover e executar as atividades de educação sanitária animal e vegetal; VII - promover e executar as atividades de educação florestal, recursos hídricos e solos; VIII – difundir práticas educativas e preceitos legais relativos à proteção do meio ambiente da saúde da população; IX – desenvolver a educação ambiental e o fomento à investigação científica nas unidades de conservação e no seu entorno; X – promover a adoção de princípios e ações com vistas à preservação da fauna silvestre; XI – divulgar seus programas, atividades e resultados que auxiliem na consolidação de uma mentalidade conservacionista”. Por oportuno, devemos registrar a existência de outros órgãos igualmente legitimados à proteção ambiental, como o Ministério Público, a Defensoria Pública, o próprio Estado, além de entidades sem fins lucrativos e a própria sociedade civil organizada, constituindo assim a variada gama de autores legitimados para atuação na esfera do Estado do Espírito Santo.

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4) Instrumentos de defesa do patrimônio público ambiental Todos os atores citados possuem à sua disposição diversos instrumentos processuais de caráter administrativo ou judicial para procederem à defesa do meio ambiente, cuja finalidade inicial é a proteção dos seres humanos, aos bens imóveis e, ainda, à observância do direito material. Na doutrina de Édis Milaré4, tais instrumentos possuem como objetivo o pedido de providência jurisdicional que se formula para a proteção de determinado bem da vida. Dentre as diversas formas de proteção judicial do patrimônio ambiental, a mais utilizada é a Ação Civil Pública prevista em nível infraconstitucional na lei federal 7.347/85, com previsão expressa de proteção ao meio ambiente em seu artigo 1º, inciso I. Referida legislação possui um amplo rol de órgãos e entidades legitimados para a sua utilização como o Ministério Público, a Defensoria Pública (que deixa de ser um órgão de atuação restrita aos hipossuficientes no sentido econômico e passa também a ser órgão de defesa do interesse público coletivo e difuso), bem como as entidades públicas federativas como a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, incluindo assim as entidades da Administração Indireta. Confirmando que a defesa do patrimônio público não se restringe às entidades de direito público, a legislação também positiva a possibilidade de proteção ambiental a qualquer a associação ou fundação que tenha como objetivo institucional a proteção ao meio ambiente. Independentemente da variada gama de autores, o certo é que a Constituição também coloca posição de protagonismo na defesa do patrimônio ambiental pelo Ministério Público, conforme artigo 129, inciso III, da CRFB, no sentido de que em toda Ação Civil Pública deverá o órgão ministerial atuar, no mínimo, como fiscal da lei, dando continuidade às demandas judiciais em caso de eventual desídia dos demais autores legitimados. Assim, o órgão ministerial deve consolidar-se como instituição veiculadora de legítimas pretensões comunitárias e, dessa forma, de protagonista do processo realizador de políticas públicas. A finalidade da Ação Civil Pública é a de proteger o meio ambiente por meio de mandamentos judiciais condenatórios que consistem em uma pena 4) MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente: doutrina, pratica, jurisprudência, glossário. 2. ed. rev. atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. Obra dedicada ao Instituto Terra

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para promover a reparação do dano causado pelo agente poluidor, ou destruidor do meio ambiente. A jurisprudência pátria possui entendimento pacificado sobre o assunto: PROCESSO CIVIL. DIREITO AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA TUTELA DO MEIO AMBIENTE. OBRIGAÇÕES DE FAZER, DE NÃO FAZER E DE PAGAR QUANTIA. POSSIBILIDADE DE CUMULAÇÃO DE PEDIDOS ART. 3º DA LEI 7.347/85. INTERPRETAÇÃO SISTEMÁTICA. ART. 225, § 3º, DA CF/88, ARTS. 2º E 4º DA LEI 6.938/81, ART. 25, IV, DA LEI 8.625/93 E ART. 83 DO CDC. PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO, DO POLUIDOR-PAGADOR E DA REPARAÇÃO INTEGRAL. 1. A Lei nº 7.347/85, em seu art. 5º, autoriza a propositura de ações civis públicas por associações que incluam entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, ou a qualquer outro interesse difuso ou coletivo. 2. O sistema jurídico de proteção ao meio ambiente, disciplinado em normas constitucionais (CF, art. 225, § 3º) e infraconstitucionais (Lei 6.938/81, arts. 2º e 4º), está fundado, entre outros, nos princípios da prevenção, do poluidor-pagador e da reparação integral. 3. Deveras, decorrem para os destinatários (Estado e comunidade), deveres e obrigações de variada natureza, comportando prestações pessoais, positivas e negativas (fazer e não fazer), bem como de pagar quantia (indenização dos danos insuscetíveis de recomposição in natura), prestações essas que não se excluem, mas, pelo contrário, se cumulam, se for o caso. 4. A ação civil pública é o instrumento processual destinado a propiciar a tutela ao meio ambiente (CF, art. 129, III) e submete-se ao princípio da adequação, a significar que deve ter aptidão suficiente para operacionalizar, no plano jurisdicional, a devida e integral proteção do direito material, a fim de ser instrumento adequado e útil. 5. A exegese do art. 3º da Lei 7.347/85 (“A ação civil poderá ter por objeto a condenação em dinheiro ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer”), a conjunção “ou” deve ser considerada com o sentido de adição (permitindo, com a cumulação dos pedidos, a tutela integral do meio ambiente) e não o de alternativa excludente (o que tornaria a ação civil pública instrumento inadequado a seus fins). 6. Interpretação sistemática do art. 21 da mesma lei, combinado com o art. 83 do Código de Defesa do Consumidor (“Art. 83. Para a defesa dos direitos e interesses protegidos por este código são admissíveis todas as espécies de ações capazes de propiciar sua adequada e efetiva tutela.”) bem como o art. 25 da Lei 8.625/1993, segundo o qual incumbe ao Ministério Público “IV - promover o inquérito civil e a ação civil pública, na forma da lei: a) para a proteção, prevenção e reparação dos danos causados ao meio ambiente (...)”. 7. A exigência para Direitos Humanos e Meio Ambiente

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cada espécie de prestação, da propositura de uma ação civil pública autônoma, além de atentar contra os princípios da instrumentalidade e da economia processual, ensejaria a possibilidade de sentenças contraditórias para demandas semelhantes, entre as mesmas partes, com a mesma causa de pedir e com finalidade comum (medidas de tutela ambiental), cuja única variante seria os pedidos mediatos, consistentes em prestações de natureza diversa. 8. Ademais, a proibição de cumular pedidos dessa natureza não encontra sustentáculo nas regras do procedimento comum, restando ilógico negar à ação civil pública, criada especialmente como alternativa para melhor viabilizar a tutela dos direitos difusos, o que se permite, pela via ordinária, para a tutela de todo e qualquer outro direito. 9. Recurso especial desprovido. (STJ, REsp 625249/PR, rel: Min. LUIZ FUX, 1ª. T., j: 15/08/2006, DJ 31.08.2006 - p. 203) Além da Ação Civil Pública, a Constituição Federal também positiva a ação popular como meio de acesso à tutela jurisdicional, e visa à proteção do meio ambiente. Diferentemente da Ação Civil Pública, a Ação Popular aumenta em definitivo a possibilidade da proteção ao meio ambiente, na medida em que permite aos cidadãos em geral, a busca da proteção jurisdicional, para preservação de bem de interesse coletivo, nas brilhantes palavras do professor Celso Fiorillo5: “a ação popular presta-se à defesa de bens de natureza pública (patrimônio público) e difusa (meio ambiente), o que implica a adoção de procedimentos distintos. Com efeito, tratando-se da defesa do meio ambiente, o procedimento a ser adotado será o previsto na Lei Civil Pública e no Código do Consumidor, constituindo, como sabemos, a base da jurisdição civil coletiva. Por outro lado, tratando-se da defesa de bem de natureza pública, o procedimento a ser utilizado será o previsto na Lei nº 4.717/65”. Devemos salientar ainda a importância da participação do Poder Judiciário na proteção do meio ambiente, haja vista que também cabe ao Judiciário, na qualidade de uma das mais importantes expressões do poder público numa democracia com a igual incumbência de realizar valores constitucionais. Desta maneira, sem embargos dos diversos rótulos constitucionais para a proteção ao meio ambiente (ação civil pública, ação popular, dentre outros) o certo é que, uma vez provocado, cabe ao Poder Judiciário a concessão na medida e tempo adequados da proteção ambiental, seja observando o próprio conteúdo da proteção (tutela específica), que pode constituir numa obrigação de dar, fazer ou não fazer, com fundamento no artigo 461, caput, e §5, do CPC. 5) FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de Direito Ambiental Brasileiro. 9. ed. São Paulo, Saraiva, 2008. Obra dedicada ao Instituto Terra

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Conclusão

Não obstante a todos os atores legitimados, sistemas federais, estaduais, municipais instrumentos e mecanismos positivados pela Constituição Federal e legislação infraconstitucional, o sistema de proteção do meio ambiente alberga outras hipóteses eventualmente previstas em tratados e convenções internacionais, além de práticas ou costumes internacionais que eventualmente sejam incorporadas ao direito cogente (jus cogens) internacional. Esta absorção das normas de direito ambiental caracterizam o Princípio do “nível elevado de proteção”, motivo pelo qual não admitem eventual retrocesso em sua proteção e aumenta a necessidade de novos debates sobre tão intrigante tema por parte da Academia Brasileira de Direitos Humanos. Em arremate, podemos concluir que o direito à proteção ambiental num ambiente ecologicamente equilibrado é genuinamente um direito “de todos”, incluindo estrangeiros não residentes no Brasil, ou seja, de qualquer pessoa humana, que não se restringe ao meio ambiente natural, mas também o meio ambiente artificial, cultural, do trabalho e genético. 422

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