Direitos Humanos, Paulo Duarte, Rinocerontes

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Publicação do Instituto Estudos Direito e Cidadania (IEDC) Versão eletrônica da revista está disponível em www.reid.org.br Envio de artigos [email protected]

Edição Especial

Dr. Rômulo Gonçalves: Verdade e Acesso à Informação como Direitos Humanos Agosto 2012

REID é uma publicação quadrimestral (junho, outubro, fevereiro) do Instituto de Estudos de Direito e Cidadania (IEDC). Os artigos e resenhas enviados a REID são submetidos ao Conselho Editorial, que se reserva o direito de sugerir ao autor modificações de forma, com o objetivo de adequar o artigo às dimensões da revista ou ao seu padrão editorial e gráfico. A publicação de um artigo não exprime endosso do Conselho a todas as afirmações feitas pelo autor. No que se refere aos direitos autorais, a Revista REID utiliza a licença Creative Commons 2.5 para a publicação de seus artigos. Isso significa que os artigos podem ser copiados e distribuídos, contanto que atribuído crédito à Revista.

EDITORAS Inês Virgínia Prado Soares Sandra Akemi Shimada Kishi EDITORES-ADJUNTOS Gustavo Seferian Scheffer Machado José Carlos Callegari CONSELHO EDITORIAL Adilson Paulo Prudente do Amaral Filho Adriana Zawada Mello Blanca Lozano Cutanda Bruno Campos Silva Carlos Alberto de Salles Christian Courtis Daniel Sarmento Evanson Chege Kamau Everson Paulo Fogolari Fabiana Saenz Flávia Moreira Guimarães Pessoa Flávia Piovesan Geisa de Assis Rodrigues Gerd Winter João Bosco Araújo Fontes Jr. João Luís Nogueira Matias

José Adércio Leite Sampaio José Roberto Pimenta Oliveira John Bernhard Kleba Juliana Santilli Lília Maia de Morais Sales Ligia Maria Rodrigues Carvalheiro Marcelo Buzaglo Dantas Marcus Orione Gonçalves Correia Nelson Nery Junior Oscar Vilhena Paulo Affonso Leme Machado Rebecca Purdom Renata Porto Adri Sandra Cureau Sérgio Salomão Shecaira Solange Teles da Silva Tullio Scovazzi Uendel Ugatti Virgílio Afonso da Silva Walber de Moura Agra Walter Claudius Rothenburg EDITORAÇÃO Darcy Rudimar Varella

Revista Internacional de Direito e Cidadania / Instituto Estudos Direito e Cidadania – Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, agosto 2012. – Erechim, RS : Habilis, 2012. v. ; 18 x 26cm Quadrimestral ISSN 1983-1811 1. Direito 2. IEDC C.D.U.: 340 Catalogação na fonte: bibliotecária Sandra M. Milbrath CRB 10/1278

www.iedc.org.br

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www.habiliseditora.com.br

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Sumário

5

COLABORADORES

Sumário

7

APRESENTAÇÃO

9

A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de caráter pessoal, mas de interesse público Claúdio Chequer

17

OBSERVAÇÕES SOBRE O MANDATO LEGAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE DO BRASIL Eduardo González

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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E SIGILO: DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE? Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira Emilio Peluso Neder Meyer

41

Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153 Evorah Lusci Costa Cardoso Luís Fernando Matricardi Rodrigues

57

UMA LEITURA JURÍDICO-FILOSÓFICA DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NO PERÍODO DITATORIAL DE 1964-1968 Ivan Cláudio Marx

73

O STF E O DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS PÚBLICOS Larissa Batista Vasconcelos Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves

3

Sumário

85

Crimes da ditadura E aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros Luiz Flávio Gomes Valerio de Oliveira Mazzuoli

103

Memória, Verdade e Senso Comum Democrático: Distinções e aportes do “direito à memória e à verdade” para a substancialização democrática Marcelo D. Torelly

115

Esquecer é começar a morrer Paulo Sérgio Pinheiro

123

177

Nem só de contracheques vive a transparência pública Aureo Marcus Makiyama Lopes

183

Processo dos Rinocerontes e outros: o acervo de Paulo Duarte e a importância de conhecer a Verdade sobre os acontecimentos na USP durante a ditadura militar Inês Virgínia Prado Soares Pedro Paulo A. Funari

193

Um enfrentamento necessário: Pensando a Comissão Nacional da Verdade e o caso da USP Juliana Moura Bueno

Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição Roberta Cunha de Oliveira

197

137

Por uma Comissão da Verdade da USP Fórum Aberto pela Democratização da USP

Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição Sandra Akemi Shimada Kishi

153

O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da comunicação social e política no Brasil Vitor S. L. Blotta

165

Ditadura militar de 64 intervém em Goiás: história de um herói anônimo na defesa dos estudantes e presos políticos Wagner Gonçalves

4

A negação do mal. Verdade, mentira e os dilemas do Direito Penal Marcos Zilli

205

207

Da memória do passado à luta do presente

211

Entrevista - Fórum Aberto pela Democratização da USP para o Jornal da Filosofia da USP

217

nORMAS PARA PUBLICAÇÃO

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Colaboradores

COLABORADORES

AUREO MARCUS MAKIYAMA LOPES Procurador da República. Currículo lattes em http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4208734H6 CLAÚDIO CHEQUER Procurador da República, Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro ¨C UERJ e Coordenador Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Redentor/ Itaperuna. EDUARDO GONZÁLEZ Diretor do Programa Verdade e Memória do Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ). EMILIO PELUSO NEDER MEYER Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do IDEJUST ¨C Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição. EVORAH LUSCI COSTA CARDOSO Mestre e Doutora em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).

INÊS VIRGÍNIA PRADO SOARES Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É pesquisadora do “Laboratório de Arqueologia dos Trópicos” do MAE/USP. Membro do IDEJUST e Vicepresidente do IEDC. Procuradora da República em São Paulo.

Ivan Cláudio Marx Procurador da República em Uruguaiana-RSBrasil, doutorando pela Universidad del Museo Social Argentino, com Postítulo en Derechos Humanos y Procesos de Democratización, na Universidad de Chile, de março a julho de 2011. Texto escrito em junho de 2008. JULIANA MOURA BUENO Estudante graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo. LARISSA BATISTA VASCONCELOS Advogada formada pela Universidade de São Paulo. LUÍS FERNANDO MATRICARDI RODRIGUES Mestrando em Direito pela Universidade de Munique (LMU). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado. LUIZ FLAVIO GOMES Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e codiretor da LivroeNet. Foi promotor de justiça (1980-1983), juiz de direito (1983-1998) e advogado (1999-2001). MARCELO ANDRADE CATTONI DE OLIVEIRA Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor Associado II da Faculdade de Direito da UFMG. Estágio Pós-Doutoral em Teoria e Filosofia do Direito pela Università degli studi di Roma TRE. Membro Diretor do IDEJUST ¨C Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição.

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Colaboradores

MARCELO D. TORELLY Mestre e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direitos Humanos e Processos de Democratização pela Universidade do Chile. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com aperfeiçoamento em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha). Atualmente é Coordenador Geral de Memória Histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Membro Diretor da rede de estudos IDEJUST (Internacionalização do Direito e Justiça de Transição), sediada no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, em cogestão com a Comissão de Anistia. MARCOS ZILLI Professor Doutor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do Forum for International Criminal and Humanitarian Law. PAULO SÉRGIO PINHEIRO Presidente da comissão independente internacional de investigação da ONU sobre a República Árabe da Síria, Genebra PEDRO PAULO A. FUNARI Professor Titular do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Coor­denador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp.

SANDRA AKEMI SHIMADA KISHI Procuradora Regional da República, mestra em direito ambiental, pesquisadora sobre acesso à sociobiodiversidade na Universidade de Bremen/ Alemanha em parceria com a Fundação de Pesquisa Alemã (DFG), 2008-2010, Vice-Presidente do IEDC ¨C Instituto Estudos Direito e Cidadania e coordenadora da Revista Internacional de Direito e Cidadania (REID). VALERIO DE OLIVEIRA MAZZUOLI Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP. Professor Adjunto (na Graduação e no Mestrado) de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdade de Direito da UFMT. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABDC). Advogado e parecerista. VITOR S. L. BLOTTA Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. E-mail: [email protected] WAGNER GONÇALVES Subprocurador-Geral da República aposentado. Atualmente é Assessor da Comissão Nacional da Verdade.

ROBERTA CUNHA DE OLIVEIRA Mestranda no Programa de Pós ¨C Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, linha de criminologia; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ CAPES; integrante do grupo de pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição ¨C PUCRS; integrante do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição/ Idejust. Email: [email protected].

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APRESENTAÇÃO Revista Internacional de Direito e Cidadania – REID número especial Rio + 20 É com imensa alegria que apresentamos a REID ESPECIAL DR. RÔMULO GONÇALVES, que versa sobre a Verdade e o Acesso à Informação como direitos humanos. A consolidação da democracia na sociedade brasileira contou com incansáveis lutas de profissionais do direito, ainda que num difícil contexto de desaparecimentos, torturas, abusos e outras violências no período ditatorial. A escolha de Rômulo Gonçalves para nomear esta edição especial vem da defesa intransigente deste advogado aos estudantes goianos acusados de crime contra a famigerada segurança nacional, durante a ditadura militar (1964-1985). Era numa época em que reinava o medo, com frequentes cenas de violência contra os estudantes e com advogados sendo presos em flagrantes forjados juntamente com seus clientes. Um pouco da trajetória deste advogado está descrita em artigo que integra esta edição, de autoria de Wagner Gonçalves. Nada mais justo que esta REID especial (www.reidespecial.org. br) sobre verdade e acesso à informação, lançada em 11 de agosto de 2012, renda homenagens e reconhecimento a esta nobre e corajosa advocacia de Rômulo Gonçalves em prol do ser humano e da liberdade, assim como aos milhares de estudantes, vítimas de atrozes violências, que tanto contribuíram com seus espíritos incansáveis de renovação e liberdade para a transição democrática alcançada no país. A vontade de dedicar uma edição inteira ao tema da Verdade e do acesso à informação não é de agora. Em 2008, logo no primeiro ano da REID (www.reid.org.br), com o propósito de lançamento de uma Revista para festejar os 15 anos de existência do IEDC, completados em 2009, convidamos renomados pesquisadores para escreverem sobre este assunto. Naquele momento, a justificativa para uma publicação era a percepção de que passados trinta anos do início da transição para a democracia (considerada a Lei de Anistia de 1979 como o marco), os desafios e as perspectivas no alcance de resultados mais adequados aos valores democráticos ainda exigiam um maior envolvimento dos juristas, dos profissionais e acadêmicos que atuam na defesa dos direitos humanos e de toda a sociedade civil. Neste contexto, o livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro (KISHI, Sandra e SOARES, Inês Virginia - coord, Editora Forum, 2009) instigou o interesse e reflexões sobre a matéria e a equipe que integra o IEDC ficou com a impressão de ter contribuído nas reflexões doutrinárias sobre o assunto. A publicação deste livro adiou nosso projeto de uma REID especial para o tema. Mas continuávamos a pensar em números especiais para a REID, com temas atuais e palpitantes no cenário brasileiro e mundial. Nessa linha editorial, a primeira edição especial da REID foi lançada em 2011, como marco do Ano Mundial da Biodiversidade. Intitulada REID Biodiversidade, esta revista teve a dedicada coordenação de Solange Teles da Silva. Agora, num cenário diferente, com avanços significativos no Brasil no campo da justiça de transição, temos a alegria de lançar o segundo número especial- a REID Especial Dr. Rômulo Gonçalves: Verdade e Acesso à Informação como Direitos Humanos. Esta publicação não apenas resgata

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e realiza um projeto sonhado pelo IEDC - Instituto de Estudos Direito e Cidadania como também comemora os 4 anos de existência da REID. Além disso, também festeja o início dos trabalhos de José Carlos Callegari e Gustavo Seferian como Editores da REID nos próximos dois anos (biênio 2012-2014). Neste momento, aproveitamos para expressar, mais uma vez, nossa gratidão aos que contribuíram para a publicação dessa REID Especial e também das edições regulares da REID, principalmente aos autores dos artigos, à equipe que presta consultoria à Revista, bem como aos membros do Conselho Editorial, aos associados do Instituto de Estudos Direito e Cidadania -IEDC e ao Banco do Nordeste. Por fim, queremos deixar registrada nossa mais terna emoção pelo privilégio de inaugurar e levar adiante, por dois biênios, a Revista REID. Desde a idealização desse importante projeto pela diretoria do IEDC, sabíamos que a sua implementação e continuidade seria gratificante, mas que não seria nada fácil. No entanto, a possibilidade de divulgar conhecimento acadêmico sobre direitos humanos na internet era uma ideia que nos fascinava. Passados quatro anos, nosso sentimento é de que cumprimos, da melhor forma que podíamos, essa missão. Inês Virginia Prado Soares e Sandra Shimada Akemi Kishi Editoras da REID (biênios 2008-2010;2010-2012)

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A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de Artigo caráter pessoal, mas de interesse público

A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de caráter pessoal, mas de interesse público Claúdio Chequer (1)

RESUMO: Direito à informação no Brasil e a necessidade de fazer uma correta ponderação entre princípios constitucionais levando-se em consideração o ideal democrático traçado pelo Constituinte Originário. Palavras-chave: Direito à informação. Ponderação de princípios constitucionais. Democracia. Interpretação dos direitos fundamentais. ABSTRACT: Law, the fundamental right to freedom of speech in Brazil and the need of making the right balancing procedure between the constitutional principles taking into account the democratic ideal delineated by the Originary Constituent. Keywords: Law, the fundamental right to freedom of speech in Brazil. Ponderation in the constitutional principles. Democracy. Interpretation of the fundamental rights.

Em 18 de novembro de 2011, no Brasil, foi publicada a Lei n° 12.527, com previsão de entrada em vigor para o dia 18.5.2012, portanto, ainda em vacatio legis. Apesar de a publicação desta lei se caracterizar como enorme avanço na efetivação do direito fundamental à informação e se materializar como uma importante conquista da

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Cláudio Chequer é procurador da República, Doutor em Direito Público pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e Coordenador Acadêmico do Curso de Direito da Faculdade Redentor/Itaperuna.

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Chequer, C.

sociedade, gerando importantes obrigações para o poder público, algumas observações críticas ao ato normativo analisado precisam ser traçadas. Essa lei, que vem sendo chamada de lei de acesso às informações públicas, sucedeu o Projeto de Lei da Câmara – PLC n° 41/2010 e seu substitutivo, apresentado este pelo Senador Fernando Collor, e manteve, integralmente, a Seção V do PLC citado, intitulada “Das Informações Pessoais”. Nesse ponto, a lei em questão merece ser criticada em razão da incompatibilidade da essência dos dispositivos inseridos nesta Seção V (arts. 31 e seguintes) com os propósitos democráticos objetivados pelo Constituinte Originário. O artigo 31 do PLC 41/2010, redação que foi mantida integralmente no Substitutivo identificado acima e também na lei ora analisada, afirma que “o tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais” No parágrafo primeiro do artigo mencionado, há afirmação no sentido de que “as informações pessoais, a que se refere este artigo, relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem (inciso I) terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem. A partir da leitura do inciso II de tal dispositivo, objetiva o legislador infraconstitucional a permitir a divulgação desse tipo de informação ou permitir seu acesso por terceiros apenas nos casos previstos em lei ou diante do consentimento expresso da pessoa a que elas se referirem, impondo responsabilidade à pessoa que tiver acesso a essas informações fora das hipóteses mencionadas acima. Em seu parágrafo 3°, o mencionado dispositivo legal pretende autorizar o acesso a esse tipo informação, sem necessidade de consentimento expresso da pessoa a que ela se referir, apenas quando essa informação for necessária (i) à prevenção e diagnóstico médico para a utilização 10

única e exclusivamente para o tratamento médico, quando a pessoa estiver física ou legalmente incapaz; (ii) à realização de estatísticas e pesquisas científicas de evidente interesse público ou geral, previstos em lei, sendo vedada a identificação da pessoa a que as informações se referirem; (iii) ao cumprimento de ordem judicial; (iv) à defesa de direitos humanos; (v) à proteção do interesse público e geral preponderante. Em seu parágrafo 4°, o artigo 31 afirma ainda que “a restrição de acesso à informação relativa à vida privada, honra e imagem de pessoa não poderá ser invocada com o intuito de prejudicar processo de apuração de irregularidades em que o titular das informações estiver envolvido, bem como em ações voltadas para a recuperação de fatos históricos de maior relevância”. Desta forma, pela leitura dos dispositivos legais, torna-se fácil identificar a preocupação que o legislador teve com as informações pessoais e com a necessidade de tutelar, de forma intensa, a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, restringindo o direito à liberdade de expressão e informação nestes casos. A premissa que se extrai da leitura dos dispositivos trazidos a lume é a seguinte: em regra, caracterizando-se a informação como de caráter pessoal e se a sua exposição for capaz de causar danos à vida privada, à honra, à imagem das pessoas, o direito fundamental à liberdade de expressão e informação deve ser restringido independentemente de a informação ser de interesse público ou não. Excepcionalmente, nos casos expressamente elencados pelo legislador, poderá ser observado o acesso à livre informação. Diante desta premissa, o ônus argumentativo para se ter acesso à liberdade de expressão e informação, nessas situações, é daquele que tem o objetivo de mostrar como existente a situação excepcional. Se desejamos obter uma informação de caráter pessoal, cuja revelação pode causar prejuízos à intimidade, vida privada, honra ou imagem das pessoas, teremos que demonstrar a existência de uma das situações excepcionais previstas pelo legislador. A incompatibilidade da fixação dessa premissa com o objetivo democrático abraçado pelo Constituinte Originário, entretanto, é

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A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de caráter pessoal, mas de interesse público

evidente, podendo ser identificada a partir do aprofundamento em torno de questões filosóficas que fundamentam a liberdade de expressão ou informação. Com esse objetivo, várias são as teorias que procuram explicar o motivo por que a liberdade de expressão e informação deve ser considerada um direito fundamental. A maioria dessas teorias, entretanto, enqua­­ dra-se numa ou noutra de duas grandes categorias. Na primeira, a liberdade de expressão e informação tem uma importância meramente instrumental; trata-se de um meio para a realização de um fim importante. A segunda classe de fundamentos da liberdade de expressão e informação pressupõe que ela é importante por si só, não somente pelas consequências que esse direito pode acarretar. Para esses últimos, a liberdade de expressão e informação é capaz se apresentar como um valor intrínseco, um bem independente, um fim; alternativamente, seu exercício pode ser considerado como condutor para o desenvolvimento de indivíduos mais reflexivos e maduros e, portanto, beneficiar toda a sociedade. Todo homem, no desenvolvimento de sua personalidade, tem o direito de formar sua própria opinião, estabelecer suas crenças, cultivar seus pensamentos e ideais, tendo, por consequência, o direito de expressar esses direitos. Do contrário, eles seriam de pouca ou nenhuma importância. A expressão é parte integral do desenvolvimento de idéias, da exploração mental e da autoafirmação. O poder para realizar sua potencialidade como ser humano começa nesse ponto, não podendo ser frustrado. Portanto, a supressão de crença, opinião, expressão e informação é, na verdade, um afronto à dignidade humana, uma negação da essencial natureza do homem, valor esse que impõe que o homem seja colocado no centro de toda a ordem jurídica. Para os que entendem que a liberdade de expressão e informação é meio para a realização de algo importante (um fim), temos que destacar as seguintes teorias: (i) a da busca da verdade, (ii) a democrática e (iii) a da estabilidade social.

A primeira teoria mencionada acima vincula a principal finalidade da liberdade de expressão e informação com a busca da verdade, sendo representada por um de seus totens, a metáfora do marketplace of ideas. Esse entendimento surgiu a partir do voto particular formulado pelo magistrado Oliver Wendell Holmes na decisão proferida pela Suprema Corte dos Estados Unidos no julgamento do caso Abrams v. United States(2), embora haja autores que se manifestam no sentido de atribuir aos escritos de John Stuart Mill a origem dessa doutrina, havendo ainda quem afirme que esse entendimento já havia sido levantado dois séculos antes por Jonh Milton, em sua Areopagítica (de 1644). Para os partidários desse entendimento, apenas um debate aberto de ideias pode possibilitar a descoberta da verdade e, apesar de alguns pós-modernistas questionarem sobre a existência real de uma verdade na atualidade, no presente contexto, “[...] a verdade é concebida como algo relativo, que só pode ser avaliado pelo mercado contra o pano de fundo de um encontro livre e aberto entre diferentes opiniões.”(3) Para os teóricos que vinculam a liberdade de expressão e informação como meio para a democracia, esse direito fundamental é concebido como uma consequência do sistema democrático de tomada de decisões uma vez que contribui para a formação da opinião pública acerca de debates públicos. Esse argumento foi exposto primeiramente por Spinoza, em seu Theologico-Political Treatise (1670), sendo apresentado judicialmente pelo Justice Brandeis J, da Suprema Corte dos EUA, no caso Whitney v. California.(4) Nos EUA, esse argumento tem sido particularmente associado ainda aos escritos de Alexander Meiklejohn e Owen Fiss, autores que afirmam que o primeiro propósito da Primeira Emenda da Constituição Americana é proteger o direito de todos os cidadãos para que eles possam ter acesso às publicações políticas, participando, assim, efetivamente da democracia. Por fim, podemos ressaltar os autores que entendem que a liberdade de expressão e informação é um direito fundamental em razão

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de determinar a manutenção da balança entre a estabilidade e a mudança da sociedade. Entendem que a liberdade de expressão e informação se apresenta como uma condição essencial para garantir a estabilidade governamental, pois um estado formado com base na ampla liberdade de expressão e informação é mais forte e, portanto, está menos sujeito a convulsões sociais do que um estado autoritário, que impõe seu poder com base na repressão, no ressentimento e no medo. A abertura do diálogo fortalece o Estado e torna a sociedade mais coesa, já que suprimir a discussão cria um impossível julgamento racional. Além disso, essa restrição é apropriada para ser ineficaz. Apesar de ela poder frustrar mudanças sociais, ao menos de forma temporária, não pode erradicar o pensamento ou a crença, as convicções, nem pode promover a lealdade ou a unidade. Manifestam os partidários desse entendimento no sentido que a liberdade de expressão e informação irá produzir mais estabilidade e menos violência pelo menos por dois motivos. Primeiro, pessoas tendem a confiar muito mais num governo que está disposto a ouvir e a considerar amplamente a extensão dos argumentos. Se as pessoas enxergarem o governo como irracional, arbitrário ou fechado, certamente elas acreditarão que esses governos em geral e seus líderes em particular não são dignos de confiança. Por consequência, o respeito pelas leis irá diminuir de forma considerável. Segundo, se os indivíduos têm oportunidade para fazer objeções à política governamental, tendo liberdade para estabelecer suas posições e para persuadir outras pessoas a adotá-las, depois que o processo se tornar lei, esses indivíduos, provavelmente, em razão de sua participação no processo político, estarão mais inclinados a obedecer a essas leis, ainda que elas sejam contrárias às suas perspectivas. Esses indivíduos reconhecerão tal tratamento como adequado, em conformidade com regras racionais de uma vida social. Após a análise de todas as doutrinas, parece-nos mais acertado defender uma natureza multifuncional para a liberdade de expressão, uma vez que todos esses bons argumentos se complementam e justificam a liberdade de ex12

pressão e informação como direito fundamental, não sendo, pois, os argumentos instrumentais e constitutivos mutuamente exclusivos(5) e excludentes(6). Assim, todo o debate teórico em torno das propostas que objetivam demonstrar as justificativas filosóficas da liberdade de expressão acabam colaborando para o enriquecimento dessa liberdade, o que nos leva a crer que, apesar de uma teoria que envolva uma só direção não resolva o problema, podendo, sempre, ser criticada, a solução se encontra no somatório das propostas teóricas, apresentando a liberdade de expressão, desta forma, múltiplas justificações teóricas. Entendidos os fundamentos capazes de conceder à liberdade de expressão e informação o status de direito fundamental, torna-se necessário ressaltar que um desses fundamentos (especialmente o democrático) tem autorizado diversas cortes constitucionais mundo afora, tais como a Suprema Corte dos Estados Unidos, a House of Lords inglesa, entre outras, a tratar a liberdade de expressão e informação de forma heterogênea, considerando-a como um direito fundamental preferencial prima facie quando relacionada com assuntos de interesse público diante de um conflito com os direitos da personalidade.(7) Neste sentido, o PLC 41/2010, bem como o Substitutivo apresentado e a respectiva lei, parece ir de encontro a esse entendimento, devendo, pois, ser criticado. Nos casos em que existir interesse público na divulgação da informação, não podem os direitos da personalidade (intimidade, vida privada, honra e imagem) ser considerados como capazes de justificar, em regra, uma restrição integral à informação, como deseja a Lei n°12.527/11. Ao afirmar que informações pessoais, em regra, terão seu acesso restrito, o legislador ordinário está colocando os direitos da personalidade, numa situação de eventual conflito com o direito à liberdade de expressão e informação, em uma posição de abstrata superioridade hierárquica inadmissível para um país democrático. Na verdade, a liberdade de expressão e informação deve respeitar integralmente os direitos da personalidade desde que seja isso possível.

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A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de caráter pessoal, mas de interesse público

Muitas vezes, entretanto, em um caso concreto, o direito fundamental à liberdade e informação deverá ser deferido mesmo diante de potenciais (ou reais) ofensas ou restrições aos direitos da personalidade (desde que preservado o seu núcleo essencial). Em havendo um conflito entre esses dois direitos fundamentais, o direito à liberdade de expressão e informação deverá ser considerado, em casos envolvendo interesse público, como um direito fundamental preferencial prima facie, pois em um país que se pretende realizar como efetivamente democrático, o povo tem o direito de saber sobre todos os assuntos de interesse público e da forma mais ampla possível. A ideia central desse entendimento cingese no fato de que o cidadão tem direito a ser informado a respeito de fatos que, direta ou indiretamente, atingem-no(8), uma vez que só o cidadão bem informado está em “[...] uma situação de constituir o seu próprio juízo e de participar do processo democrático da maneira pretendida pela Constituição.”(9) O direito de saber não deve ser encarado apenas como um privilégio concedido pela sociedade, porém deve ser visto como uma necessidade imperiosa diante de um Estado que se pretende constituir como democrático.(10) Os cidadãos têm de saber, pressuposto para que eles tenham capacidade de tomar decisões válidas sobre as coisas do mundo. Nesse sentido é que Roger-Gérard Schwartzenbert faz a seguinte afirmação: Este direito (o direito de saber) deveria aparecer num lugar de honra na lista dos direitos do homem e do cidadão. Sem ele, não há democracia possível. Sem ele, as opções fundamentais permanecem fora do alcance dos eleitores, para reverter a uma minoria, que monopoliza o acesso aos arquivos e aos dados, e a uma ‘elite do saber’, que controla o Estado espetáculo e congrega os dirigentes do stablishment econômico e da tecnocracia administrativa. Essa tecnoestrutura acumula saber, como outros acumulam capital. Para transformá-

lo em poder. E moldar a sociedade. De acordo com sua concepção. A seu bel-prazer. Forma-se assim uma nova casta, que faz a informação como se dá uma esmola. Com parcimônia. E condescendência.(11)

Partilhando dos mesmos argumentos, Ralph D. Barney ensina que: Estabelecendo-se o ‘direito de saber’ e o ‘pluralismo’ como dois componentes básicos de uma sociedade participativa, parece ser óbvio que, caso se espere que decisões inteligentes e consistentes sejam tomadas, os indivíduos devem receber informações adequadas para estarem mais conscientes das alternativas disponíveis no momento da decisão. Realmente, uma definição básica de liberdade envolve a disponibilidade de alternativas. Se não existe nenhuma alternativa, um indivíduo não é livre, não importa quão desejável seja a opção diante dele. O grau de liberdade que uma pessoa tem está diretamente relacionado com o número de alternativas de que ela dispõe.(12)

Restrições sobre a livre fluência de informações políticas ou de interesse público em geral devem ser consideradas, a princípio, como suspeitas porque elas invadem o interesse do ouvinte (receptor da mensagem) em receber informações necessárias para fazer as escolhas corretas e participar plenamente do processo democrático.(13) Desta forma, não concordamos com a lei em estudo na parte em que afirma que as informações pessoais relativas à intimidade, vida privada, honra e imagem terão, em regra, seu acesso restrito. Essas informações deverão ter seu acesso restrito apenas quando não houver interesse público em revelá-las. Em havendo interesse público, a liberdade de expressão dever ser considerada como um direito fundamental preferencial prima facie, autorizando que a liberdade de expressão e informação seja observada mesmo diante de ofensas razoáveis causadas aos direitos da personalidade. Apesar de os parágrafos 3° e 4° do art. 31 abrirem exceções à regra firmada em análise, no

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Chequer, C.

sentido de permitir que as informações pessoais sejam reveladas em situações excepcionais, tais como a prevenção e diagnóstico médico, a realização de estatísticas e pesquisas científicas, ao cumprimento de ordem judicial, a defesa de direitos humanos, a proteção do interesse público preponderante e quando necessárias para a apuração de irregularidades em que o titular da informação estiver envolvido, a disposição dos artigos e seus respectivos conteúdos invertem uma lógica democrática: havendo interesse público, o acesso à informação deve ser garantido de forma ampla e irrestrita, mesmo nos casos em que esse acesso venha a ofender os direitos da personalidade, desde que observados o núcleo essencial desse direito. A regra em uma democracia é a liberdade de expressão e informação e não a observância irrestrita dos direitos da personalidade com apenas algumas poucas exceções, como deseja o ato normativo. Assim, o que o legislador deve garantir como regra, em casos envolvendo a liberdade de expressão e informação e diante da ocorrência de um interesse público, é a liberdade de expressão e informação e não os direitos da personalidade, como parecem afirmar os artigos mencionados. Mesmo em havendo informações pessoais, o direito à informação plena deve ser observado como regra (e não como exceção) se houver interesse público nessa divulgação. Num conflito entre direitos da personalidade versus liberdade de expressão e informação, o direito de a sociedade saber dos assuntos de interesse público autoriza o intérprete a calibrar, inicialmente, a balança da ponderação conferindo mais peso à liberdade de expressão e informação. A inversão dos pesos atribuídos, prima facie, aos direitos fundamentais em conflito, portanto, será possível, mas exigirá uma fundamentação capaz de afastar, no caso concreto, o direito inicialmente conferido à sociedade – de saber dos assuntos de interesse público. Ou seja, o ônus argumentativo para restringir a ampla possibilidade de informação (que é a regra) é do titular do direito à personalidade, não o contrário. Desta forma, a ponderação anunciada pela lei em estudo, ao elevar os direitos da perso14

nalidade ao status de direito preferencial em abstrato deve ser modificada, realizando-se essa modificação com base na premissa de que, em um país democrático, a liberdade de expressão e informação nos casos envolvendo interesse público deve ser considerada como direito fundamental preferencial prima facie.(14) Por fim, a redação dos dispositivos mencionados deveria ser outra, tal como a seguinte: a liberdade de expressão e informação, em havendo interesse público, deve ser, em regra, garantida ao requerente, salvo em algumas situações excepcionais que ficarem demonstradas que a revelação da informação ofenderá, de forma desproporcional, o direito à honra, à privacidade ou à imagem das pessoas. Neste caso, se alguém pretende ter acesso a uma informação pessoal, mas de interesse público, cabe àquele que negar o acesso à informação requerida o ônus argumentativo no sentido de demonstrar a situação excepcional, compromisso este que não deve ser imposto à pessoa que deseja o acesso à informação, a qual deverá apenas demonstrar que a informação pretendida é de interesse público.

Notas (2)

250 US 616 (1919).

MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema

(3)

Social. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2002, p. 247. (4)

274 US 357 (1927).

CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional Law. Principles and Policies. 3rd ed. New York: Aspen Publishers, 2006. p. 925.

(5)

DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norte-americana. Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 320.

(6)

Não se pode esquecer que o STF, no julgamento da ADPF n° 130, de 26.02.2010, assim se pronunciou na ementa do julgado ao falar sobre o princípio democrático: “Princípio constitucional de maior densidade axiológica e mais elevada estatura sistêmica, a Democracia avulta como síntese dos fundamentos da República Federativa brasileira. Democracia que, segundo a Constituição Federal, se apóia em dois dos mais vistosos pilares: a) o da informação em plenitude e de máxima qualidade; b) o da transparência ou visibilidade do Poder, seja ele político, seja econômico, seja religioso (art. 220 da CF/88).

(7)

O’CALLAGHAN MUÑOZ, Xavier. Libertad de Expresión y sus Límites: Honor, Intimidad e Imagen. Madrid:

(8)

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 9-15, agosto/2012

A necessidade de se permitir, em uma democracia, o amplo acesso a informações de caráter pessoal, mas de interesse público

Editoriales de Derecho Reunidas, 2004. O’ CALLAGHAN MUÑOZ, p. 7. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema

(9)

Social. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2002, p. 476. O primeiro documento de ampla repercussão a tratar do assunto dentro da perspectiva de um direito do público àinformação foi a encíclica Pacem in Terris, do papa João XXIII, editada em 11 de abril de 1963. Cf. LOPES, VeraMaria de Oliveira. O Direito à Informação e as Concessões de Rádio e Televisão. São Paulo: Revista dos Tribunais,

(10)

1997, p. 184. SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo: ensaio sobre e contra o star system em política.

(11)

Tradução de Heloysa de Lima Dantas. DIEFEL, 1978. p. 345. BARNEY, Ralph D. O Jornalista e uma sociedade pluralista: uma abordagem ética. In: ELLIOT, Deni.Jornalismo Versus Privacidade. Tradução de Celso Vargas. Rio de Janeiro: Nordica, 1986, p. 69.

(12)

BARENDT, Eric. Freedom of Speech. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2005, p. 25.

(13)

Tradução de Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006. LOPES, Vera Maria de Oliveira. O Direito à Informação e as Concessões de Rádio e Televisão. São Paulo: Revista dos Tribunais,1997. MACHADO, Jónatas E. M. Liberdade de Expressão. Dimensões Constitucionais da Esfera Pública no Sistema Social. Coimbra: Universidade de Coimbra. O’CALLAGHAN MUÑOZ, Xavier. Libertad de Expresión y sus Límites: Honor, Intimidad e Imagen. Madrid:Editoriales de Derecho Reunidas, 2004. SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O Estado Espetáculo: ensaio sobre e contra o star system em política. Tradução de Heloysa de Lima Dantas. DIEFEL.

Na defesa de uma proteção heterogênea do direito fundamental à liberdade de expressão e informação no ordenamento jurídico brasileiro, considerando-a como um direito fundamental preferencial prima facie nos casos envolvendo interesse público, veja-se: CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie (análise crítica e proposta de revisão ao padrão jurisprudencial brasileiro). Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2011.

(14)

Referências BARENDT, Eric. Freedom of Speech. 2nd ed. New York: Oxford University Press, 2005. BARNEY, Ralph D. O Jornalista e uma sociedade pluralista: uma abordagem ética. In: ELLIOT, Deni.Jornalismo Versus Privacidade. Tradução de Celso Vargas. Rio de Janeiro: Nordica, 1986. CHEQUER, Cláudio. A liberdade de expressão como direito fundamental preferencial prima facie (análise crítica e proposta de revisão ao padrão jurisprudencial brasileiro). Lumen Juris. Rio de Janeiro, 2011. CHEMERINSKY, Erwin. Constitutional Law. Principles and Policies. 3rd ed. New York: Aspen Publishers, 2006. DWORKIN, Ronald. O direito da liberdade. A leitura moral da Constituição norte-americana. Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 9-15, agosto/2012

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OBSERVAÇÕES SOBRE O MANDATO LEGAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE DO BRASIL Artigo

OBSERVAÇÕES SOBRE O MANDATO LEGAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE DO BRASIL (1) Eduardo González*

RESUMO: Este estudo examina a Lei no. 12.528/11 que institui a Comissão Nacional da Verdade no Brasil com uma orientação eminentemente prática. Busca apontar quais as oportunidades específicas que a lei apresenta para criar uma comissão da verdade exemplar, que esclareça os fatos, assegure o cumprimento dos direitos das vítimas e contribua decisivamente para a democracia brasileira. Traz observações e propostas aos membros da Comissão, a organizações da sociedade civil e a funcionários públicos brasileiros para fazer dos dois anos de trabalho da comissão um espaço de encontro construtivo e efetivo. Palavras-chave: Direito à Verdade. Comissão de Verdade. Direitos Humanos. ABSTRACT: This study examines the Law 12.528/11 that establishes the National Truth Commission in Brazil with an eminently practical guidance. Seeks to identify specific opportunities which present the law to create a model truth commission, to clarify facts, ensure compliance with victims’ rights and contribute decisively to the Brazilian democracy. It also brings comments and suggestions to members of the Commission, civil society organizations and public officials to make the Brazilian commission a space for constructive and effective work. Keywords: Right to truth. Truth commission. Human rights.

* Diretor do Programa Verdade e Memória do Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ).

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 1 Observações gerais: a CNV em perspectiva comparativa Introdução Em 18 de novembro de 2011, depois de um processo de dois anos de negociação e debate, a Presidenta da República Federativa do Brasil, Dilma Rousseff, promulgou a Lei no. 12.528, que estabelece a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Em 16 de maio de 2012, a Presidenta inaugurou formalmente as atividades da comissão(2). A criação da CNV é uma oportunidade significativa para consolidar a democracia brasileira, esclarecendo os fatos mais dolorosos de seu recente passado histórico. Ao mesmo tempo, considerando-se o protagonismo do Brasil no cenário mundial, a CNV significa um gigantesco passo para afirmar o crescente consenso internacional sobre a importância do direito à verdade sobre as mais graves violações dos direitos humanos. O Centro Internacional para a Justiça de Transição (ICTJ, em sua abreviatura em inglês) seguiu com atenção o processo de criação da CNV e compartilhou sua experiência com diversas instituições do governo e da sociedade civil brasileira. O ICTJ considera que a abundante experiência comparativa e as boas práticas identificadas durante a operação de cerca de 40 comissões da verdade em todos os continentes, apresentam um caudal de conhecimento que a CNV deve aproveitar (3). Neste documento, o ICTJ examina a Lei nº. 12.528/11 com uma orientação eminentemente prática: quais oportunidades específicas a lei apresenta para criar uma comissão da verdade exemplar, que esclareça os fatos,  assegure o cumprimento dos direitos das vítimas e contribua decisivamente para a  democracia brasileira? As observações e propostas desse texto oferecem aos membros da CNV, às organizações da sociedade civil e aos funcionários públicos brasileiros ideias para fazer dos dois anos de trabalho da comissão um espaço de encontro construtivo e efetivo.  

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A CNV se enquadra na boa prática latinoamericana de fornecer rotas efetivas para a implementação do direito à verdade. As primeiras comissões da verdade surgiram no Cone Sul e várias das comissões mais exitosas, assim como as iniciativas mais criativas de busca da verdade, surgiram na região. Para identificar oportunidades específicas, é de utilidade assinalar os elementos que fazem da CNV um tipo particular, assim como suas semelhanças com a prática regional.   1.1 Particularidades da CNV brasileira Em primeiro lugar, a CNV foi estabelecida por ação do poder legislativo brasileiro. Esta é uma significativa diferença de várias experiências latino-americanas anteriores, onde as comissões foram criadas por  decreto do poder executivo (4), às vezes implementando um acordo de paz. Esta particularidade é importante porque nos  sistemas constitucionais da região as instituições estabelecidas com força de lei desfrutam de maiores poderes operativos para implementar seu mandato. Diferentemente das comissões da verdade no Chile, na Guatemala ou no Peru, por exemplo, que só podiam solicitar colaboração das distintas instâncias estatais, a Lei nº. 12.528/11 ordena taxativamente aos servidores públicos civis e militares a colaborar com a CNV (5). A CNV, assim, surge legalmente dotada de poderes de investigação, dos quais careceram outras comissões; supõe-se que esta situação seja uma oportunidade. De acordo com a análise realizada por técnicos brasileiros(6), os poderes assinalados pela lei são semelhantes àqueles do Ministério Público Federal ao realizar “investigações civis”, e qualquer limitação dos poderes de requisição de informação e documentos, citação de testemunhas, inspeção de lugares e outras diligências, entra em conflito com a própria natureza da comissão. Em segundo lugar, a CNV surge depois do trabalho de esclarecimento já realizado por duas comissões oficiais prévias, cujo trabalho

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de reconhecimento e reparação continua vigente: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (7) e a Comissão de Anistia (8). Ambas comissões investigaram um amplo espectro de violações de direitos humanos, dando respaldo oficial às informações fornecidas por vítimas diretas da ditadura militar de 1964-1985 e seus familiares. Devemos agregar a isto à existência no Brasil do trabalho prévio do Arquivo Nacional, o qual coloca à disposição da sociedade um amplo repertório documental através do centro de referência “Memórias Reveladas” (9). Ao mesmo tempo, a entrada em vigor da Lei de Acesso à Informação(10) permite à comissão e aos cidadãos brasileiros a obtenção de arquivos estatais relacionados com as violações de direitos humanos, que não podem permanecer em sigilo. Nenhuma comissão latino-americana anterior teve a vantagem de tal compilação de evidências documentais. Ou seja: a CNV terá à sua disposição um enorme acervo informativo e um instrumento legal adequado para possibilitar seu trabalho.   1.2 Semelhança da CNV brasileira com outras comissões latino-americanas Vale a pena indicar em que a CNV se parece com outras experiências latino-americanas e como essas semelhanças podem também apresentar desafios e oportunidades concretas:  Como muitas comissões latino-americanas anteriores, a CNV surge em um contexto de impunidade. A CNV coexiste com um mecanismo de jure que garante a impunidade dos perpetradores das mais graves violações de direitos humanos: a atual interpretação da Lei de Anistia de 1979 (11); interpretação segundo a qual os agentes do Estado que cometeram delitos estão protegidos de consequências penais. Porém, a existência dessa anistia não impede a investigação não jurisdicional dos fatos que está inserida na lei da CNV. A Comissão Rettig, estabelecida imediatamente após a transição democrática no Chile (12), foi criada durante a vigência da lei de anistia decretada pela ditadura militar (13); a Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru, foi criada

imediatamente depois da queda do regime encabeçado por Alberto Fujimori (14), iniciando suas operações durante a vigência das leis de anistia ditadas pelo fujimorismo(15) e que só perderam a vigência com o caso “Barrios Altos”, litigado perante a Corte Interamericana de Direitos Humanos (16). Nenhuma dessas comissões tinha poderes jurisdicionais, nem consequências penais. Em ambos os casos, foram criadas sob a premissa de que o esclarecimento não jurisdicional dos fatos não contradiz de forma alguma o impedimento dado pelas anistias à persecução penal. Qualquer outra interpretação teria conduzido imediatamente à efetiva inutilização das comissões da verdade em ambos os países.  O caso brasileiro é semelhante: a CNV tem o mandato taxativo de esclarecer as mais graves violações dos direitos humanos, considerando os fatos, as circunstâncias e as responsabilidades institucionais e sociais dessas violações, e – para um certo tipo de casos – sua autoria (17). Tal tarefa de esclarecimento em profundidade, na medida em que não tem caráter jurisdicional (18), é neutra quanto à atual interpretação da Lei de Anistia de 1979: não apresenta nem obstáculos à sua aplicação, tampouco obstáculos à sua eventual não-aplicação. Em perspectiva comparativa, dentro da região latino-americana, a CNV nasce dotada de amplos poderes, com uma excelente base documental e com um mandato de esclarecimento protegido do alcance dos atuais obstáculos de jure à ação jurisdicional.  

2. O direito à verdade e à promoção da reconciliação como pilares normativos da CNV O mandato legal da CNV afirma, em primeiro lugar, como orientação fundamental, a necessidade de tornar efetivo “o direito à memória e à verdade histórica” e de promover “a reconciliação nacional” (19). Ambas expressões requerem interpretação à luz da prática internacional e de precedentes no Brasil, com o fim de esclarecer o sentido fundamental das tarefas da CNV.

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González, E.

  2.1 O direito à verdade  A comunidade internacional expressou, por meio de distintos organismos das Nações Unidas, que o direito à verdade pertence às vítimas das mais graves violações dos direitos humanos, a suas famílias e à sociedade em seu conjunto, para conhecerem as circunstâncias dos fatos violatórios, inclusive a identidade de seus autores (20).   O direito à verdade tem suas raízes no direito internacional humanitário que no Protocolo Adicional I às Convenções de Genebra (21) reconhece o direito dos familiares de pessoas desaparecidas a conhecer seu paradeiro e à consequente obrigação estatal de levar a frente sua busca. Esta noção inicial se ampliou com o tempo para responder ao doloroso caso dos desaparecimentos forçados e foi adotada progressivamente pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre o Desaparecimento Forçado ou Involuntário e pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU. A crescente compreensão e aceitação desse direito superou seu foco inicial nas pessoa desaparecidas e agora permite reconhecer sua aplicabilidade em geral para toda grave violação dos direitos humanos. A criação de dezenas de comissões da verdade e outros organismos semelhantes no mundo (22) é um forte indicativo de práticas nacionais que fortalecem a convicção de que o direito à verdade emerge como uma norma consuetudinária de direitos humanos. Entre todas as comissões da verdade, porém, só poucas fizeram menção explícita do direito à verdade como sua base legal e as que o fizeram (Guatemala (23) e Peru (24)) limitaram-na a suas considerações preliminares. A CNV do Brasil é, neste sentido, precursora ao incorporar claramente o direito à verdade no art. 1º da  lei. A concepção do direito à verdade já tem uma marca significativa no Brasil. A criação anterior das duas comissões de reparação pressupôs o reconhecimento histórico do Estado brasileiro de sua responsabilidade em relação às graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura e seu explícito rechaço a versões ne20

gacionistas, que minimizavam ou justificavam os crimes. A expressão “direito à memória e à verdade” deu seu nome ao Informe da Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (25) lançado em 29 de agosto de 2007 e sua importância é reconhecida no Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (26), no qual o direito à memória e à verdade é um “eixo orientador”, com diretrizes específicas para o Estado brasileiro. A afirmação explícita do direito à verdade no mandato da CNV é uma orientação inequívoca para os comissionados, para as distintas comissões que se  estabeleceram com o propósito de auxiliá-la (27) e para a sociedade civil: a CNV deve produzir o esclarecimento circunstanciado dos fatos, causas, responsabilidades e autoria das graves violações dos direitos humanos.   2.2 Reconciliação A Lei no. 12.528/11 alude também à busca da reconciliação, no entanto –diferentemente de muitos outros países(28) e diferentemente de sua ênfase no conceito de “verdade”– a atenção a este conceito não chega ao nível de consagrá-la no nome da CNV. O conceito de reconciliação requer cuidadosa discussão, pois admite muitas e divergentes interpretações, e pode levantar dúvidas e temores entre distintos setores sociais, cuja participação é fundamental para uma comissão da verdade. Em alguns países, as vítimas se opuseram à utilização do conceito de “reconciliação” temendo que fosse usado como um instrumento de perdão forçado com relação aos perpetradores, lhes permitindo consagrar uma situação de impunidade. De fato, algumas comissões da verdade incluíram em seu mandato noções de reconciliação como perdão interpessoal, resultando em experiências fracassadas (29) devido à firme oposição das vítimas. A conceitualização da reconciliação requer acordos em duas dimensões: a identidade dos atores da reconciliação e a profundidade que se almeja alcançar com a reconciliação. No primeiro aspecto, no que tange aos atores da reconciliação, parece ser errôneo pensar que uma comissão da verdade possa ter o objetivo

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da reconciliação interpessoal, em particular entre vítima e agressor. O perdão pessoal é uma decisão livre, que não pode ser jamais imposta e sobre a qual não cabem pressões, nem expectativas. Da mesma forma, não é desejável assumir um sentido político-partidário da reconciliação: uma comissão da verdade não é um instrumento de mediação, nem de negociação entre líderes políticos em busca de um pacto, como, por exemplo, um processo de paz ou um pacto constitucional. Uma identificação correta dos atores da reconciliação requer que a entendamos como um processo de refundação dos laços de confiança que estão na base da vida da cidadania (30). Longos períodos de violência oficial e de impunidade destroem a confiança na função protetora do Estado e estimulam a perpetuação de mais comportamentos abusivos, confirmando a desconfiança. Distintas comissões da verdade, como as da África do Sul (31), Guatemala (32) y Peru (33), enfocaram seus esforços na reconciliação como um processo “nacional”, ou seja, não limitado a atores individuais e sim institucionais: o reencontro entre cidadania e Estado; a superação de formas institucionalizadas de violência como o racismo; a profunda reforma do aparelho estatal. Esta é a direção mais proveitosa para identificar os atores da reconciliação. Quanto ao segundo aspecto, importantes protagonistas de comissões da verdade alertam contra um entendimento superficial da reconciliação: a redução da reconciliação a um ritual vazio de conteúdo, que proclama um perdão forçado e busca manter a situação de impunidade intocada, sem revelar a verdade, e em troca de benefícios (34). Nos últimos anos, algumas comissões da verdade foram concebidas como instrumentos de reconciliação “administrativa”, exigindo das vítimas a renúncia de seus direitos e o perdão do perpetrador em troca de compensação monetária (35). Ao mesmo tempo em que tal “pseudoreconciliação” deve ser rechaçada, a busca de um processo de reconciliação profundo, que mude radicalmente as atitudes entre grupos sociais da noite para o dia, parece uma ilusão ingênua ou interessada (36). A transformação de profundos

desencontros sociais não pode deixar de ser um processo longo e complexo, do qual uma comissão da verdade é apenas um entre muitos passos. Parece mais realista aspirar a um processo que produza resultados específicos e mensuráveis em instituições concretas: reformas institucionais que dificultem a repetição de violações massivas dos direitos humanos.  

3 A ampla competência investigativa da CNV A função de esclarecimento da CNV lhe concede uma amplíssima competência investigativa. Poucas comissões da verdade no mundo tiveram um mandato tão ambicioso, o que apresenta desafios fundamentais, mas também grandes oportunidades.  A Lei no. 12.528/11 define a competência da CNV no terreno das “graves violações dos direitos humanos (37)” praticadas no período 1946-1988 (38). Para algumas dessas graves violações –que se enumeram em um parágrafo especial (39)– a CNV deve praticar o esclarecimento circunstanciado dos fatos, inclusive se ocorridos no exterior. Portanto, a competência material, temporal e territorial da CNV é amplíssima, pois se refere a graves violações cometidas ao longo de um período histórico de mais de quatro décadas e a fatos ocorridos em qualquer parte do mundo onde tenham sido vitimizados cidadãos brasileiros, como resultado do processo político que abrange este período.   3.1 A competência material: graves violações de direitos humanos O conceito de “graves” violações das normas de direitos humanos sofreu transformações ao longo do tempo e tem se expressado de diversas formas. Porém, podemos afirmar com segurança que há um consenso ao determinar que as “graves” violações de direitos humanos são aquelas que violam direitos inderrogáveis de forma massiva ou sistemática (40). A lista das “graves violações” de acordo com a jurisprudência dos tribunais penais internacionais ou nacionais, e de órgãos criados

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em virtude de tratados de direitos humanos, tem –portanto– evoluído. Desde os primeiros estudos nos anos 90 até os princípios aceitos atualmente, a lista se ampliou para incluir as diversas condutas constitutivas do genocídio, dos crimes de lesa humanidade e dos crimes de guerra. O uso do conceito de violações “graves” não relativiza outras violações, nem indica de forma alguma um descuido de dever do Estado de prover remédio efetivo, inclusive investigações, para as vítimas de todas las violações dos direitos humanos, inclusive das violações dos direitos econômicos, sociais e culturais. A evolução histórica das comissões da verdade testemunha essa expansão: a comissão Sábato, de 1983,  enfocava  somente no desaparecimento forçado, o que na atualidade seria uma limitação inaceitável. A incapacidade da Comissão de Verdade e Reconciliação sul-africana de 1995 de investigar as violações de direitos econômicos, sociais e culturais causadas pelo Apartheid tem sido duramente criticada (41). A falta de inclusão explícita da violência sexual no decreto que cria a Comissão de Verdade e Reconciliação peruana de 2001 (42), teve que ser corrigida pelos próprios comissionados. O mandato da CNV apresenta uma lista de quatro condutas para as quais a lei requer atenção especial, mas que não são o foco exclusivo de sua atuação: nos casos de tortura, “mortes”, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres a CNV deverá produzir um esclarecimento dos fatos que inclua a autoria. Como foi indicado, a lei não limita o mandato da comissão a essas quatro condutas; só as indica para um tratamento especial. Seria excessivamente restritivo concluir que o legislador criou uma comissão da verdade meramente para redundar no trabalho já realizado pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, com o acréscimo da tortura. A única restrição apresentada pela lei no espectro de graves violações cobertas por sua investigação é que hajam ocorrido entre 1946 e 1988. A CNV tem, portanto, uma responsabilidade fundamental e uma oportunidade significativa: a de assegurar que todos os setores da sociedade brasileira gravemente vitimizados nesse perío22

do tenham a possibilidade de apresentar seus depoimentos.  Para que esta oportunidade seja adequadamente aproveitada, a CNV deveria implementar um processo de consulta social e uma revisão da documentação existente sobre graves violações dos direitos humanos mencionada no período do mandato. De acordo com tal consulta e revisão, a CNV deveria tomar uma decisão formal e pública sobre as violações que investigará, o que poderia incluir diversas condutas, como, por exemplo: • A violência sexual em todas as suas formas, inclusive condutas  como a violação, a escravidão sexual, os abortos forçados, a gravidez forçada; • A violação de direitos dos povos indígenas por condutas como o extermínio, o deslocamento forçado, a perseguição, a grilagem de terras; • A violação dos direitos de crianças e adolescentes, por condutas  como o sequestro, a prisão arbitrária e outras violações resultantes dos abusos sofridos por seus pais, familiares ou tutores; • A violência sistemática contra pessoas de setores sociais marginalizados na forma de “limpeza social” e brutalidade policial; • A imposição do exílio e outras violações análogas que hajam causado a perda da proteção legal dos direitos do cidadão, etc.    3.2 A competência temporal: 1946-1988  A Lei no. 12.528/11 não se refere diretamente à competência temporal da comissão, mas faz referência ao “período fixado no art. 8o do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias”. O aludido artigo se refere ao período entre 1946 e 1988 (43). Tal competência situa a CNV entre as comissões com a competência temporal mais ampla, comparável, por exemplo, com a Comissão de Esclarecimento Histórico da Guatemala que investigou violações cometidas durante o conflito armado interno de 1962-1996; ou com a atual Comissão da Verdade e Reconciliação do Quênia,

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que deve investigar as violações ocorridas entre a data da independência do país no ano de 1961 e os graves acontecimentos de 2008 (44). Uma competência temporal tão ampla apresenta dificuldades práticas, pois a CNV terá sérias dificuldades para investigar com profundidade violações de direitos humanos muito antigas, para as quais restam poucas testemunhas e documentos. Entretanto, a amplitude é também uma oportunidade, pois permite articular um argumento histórico sólido que situa num contexto correto o período mais intenso e traumático da violência. Outras comissões —Guatemala (45), Marrocos (46), Paraguai (47), para mencionar somente três exemplos— receberam igualmente mandatos de grande extensão temporal, tendo respondido exitosamente ao desafio. A melhor prática parece ser a de identificar com clareza uma linha de tempo descritiva e explicativa, que determine as causas e os contextos políticos dos piores momentos de violência. No caso do Brasil, existe uma ampla expectativa das vítimas e da sociedade civil de que a CNV esclarecerá as massivas violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura, mas que ao mesmo tempo seja capaz de situar esse fenômeno político em um contexto histórico adequado, que faça justiça, por exemplo, às vítimas de graves impactos sociais anteriores à ditadura.   3.3 A competência territorial: Brasil e Exterior As graves violações contempladas pela lei ocorreram fundamentalmente no território brasileiro; entretanto, para os casos de tortura, “mortes”, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres, a lei dispõe que o esclarecimento dos fatos e sua autoria se busquem estabelecer inclusive em casos ocorridos no exterior (48). A inclusão de violações cometidas no exterior permite assegurar que não se perca a experiência de brasileiros que tenham sido vítimas da cooperação repressora entre regimes ditatoriais. Ao mesmo tempo, já que a lei menciona “mortes” e não “assassinatos” ou “execuções”,  levanta-se a questão da inclusão potencial de mortes que

não tenham sido o resultado direto de uma ação homicida, mas o resultado indireto de outros abusos, como o exílio. A adequada implementação do mandato da CNV irá requerer, neste sentido, o estabelecimento de formas eficientes de cooperação com instituições defensoras dos direitos humanos e de busca de informação arquivística em outros países, em particular na América do Sul. Uma das tarefas mais importantes para a CNV durante seu período inicial será estabelecer convênios de cooperação que lhe permitam levar adiante sua função investigativa fora do Brasil.  

4 Função de esclarecimento A Lei no. 12.528/11 exige da CNV um esclarecimento profundo das graves violações de direitos humanos sob sua competência; indicando quatro condutas para um tratamento especial. Ao mesmo tempo, a lei apresenta algumas limitações para a publicidade dos trabalhos da comissão, que não devem afetar o desenvolvimento de suas funções.   4.1 Esclarecer fatos e circunstâncias A lei exige o esclarecimento  “dos fatos e circunstâncias dos casos” de graves violações dos direitos humanos e agrega que a CNV deverá “identificar e fazer públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias” das violações, inclusive suas “ramificações nos diversos aparelhos estatais e da sociedade (49)”. O esclarecimento dos fatos indica que a CNV deve investigar, reconstruir e expor publicamente condutas violatórias dos direitos humanos. Essa tarefa é fundamentalmente descritiva, e responde às perguntas “Que classe de abuso ocorreu? Quem o levou a cabo e quem foi afetado? Quando e onde ocorreu?” Ao longo de sua história, as comissões da verdade desenvolveram instrumentos cada vez mais sofisticados para identificar e descrever os fatos, mesmo quando tiveram que enfrentar um amplíssimo número de casos. Em El Salvador (50), Guatemala (51) e Peru (52), por exemplo,

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onde conflitos armados causaram dezenas de milhares de vítimas fatais, as comissões combinaram a análise legal e estatística para descrever “padrões” ou regularidades de cada tipo de violação. Porém, ao mesmo tempo em que construíram tais “padrões”, os informes incluíram seções nas quais descreveram com detalhe, de forma individual, alguns desses casos, devido a sua capacidade de exemplificar os padrões antes reconstruídos. O esclarecimento das circunstâncias, porém, vai mais além de um exercício descritivo e requer um esforço explicativo e normativo: Por que aconteceu este fato? Por que se trata de um abuso que viola direitos fundamentais? Este tipo de exercício requer o encontro de diversas disciplinas, tais como as ciências histórico-sociais, o direito, a psicologia e a filosofia. Trata-se de situar a violação enquanto conduta de seres humanos, no marco de ideologias, estruturas sociais e políticas que criaram as condições para que agissem perpetradores e agressores. Trata-se, ao mesmo tempo, de identificar com precisão os efeitos das violações dos direitos humanos na vida dos indivíduos e das coletividades. A CVR sul-africana (53), por exemplo, reconstruiu em detalhe as estratégias de repressão e resistência durante o Apartheid, a forma específica em que se desenvolveu a violência em cada uma das regiões do país e as condutas e responsabilidades institucionais de diversos atores sociais, inclusive nas áreas empresarial, jurídica, média e sindical, nas comunidades religiosas, na imprensa e nas prisões.   4.2 Alguns casos particulares  Como comentado anteriormente, a lei menciona explicitamente quatro tipos de violações para um tratamento especial: torturas, mortes (54), desaparecimentos forçados e a ocultação de cadáveres. Nesses casos, a lei fixa como objetivo da CNV o “esclarecimento circunstanciado” e “sua autoria”, “ainda que ocorridos no exterior”. O “esclarecimento circunstanciado” se refere ao conhecimento das circunstâncias de modo, lugar e tempo das violações, e não pode ser menos ambicioso que o tratamento que se 24

dá ao grande universo das “graves violações” de forma geral; de outro modo é inexplicável que se mencione esses quatro tipos de violações especificamente. Agrega-se, com ênfase importante, o esclarecimento da “autoria”, quer dizer, a realização por determinados indivíduos das ações de violação as quais se busca esclarecer. Outras comissões, em vez da “autoria” estabeleceram a “responsabilidade” dos abusos. A Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru distinguiu entre a responsabilidade penal, onde a comissão podia apenas assinalar de forma circunstancial, remetendo o caso ao sistema judiciário para seu efetivo esclarecimento, e outras formas de responsabilidade, como a política ou a moral (55). Porém, a Lei no. 12.528/11 é muito mais precisa: traz em seu bojo a “autoria”. Já que o conceito de autoria é tão complexo e variado como as diversas teorias do direito penal e do pensamento sociológico, corresponderá aos membros da comissão chegar a uma definição prática. As quatro condutas para as quais a lei indica o objetivo de estabelecer a autoria são complexas e frequentemente levadas a cabo com a participação de muitos agentes, atuando em conjunto; consequentemente, torna-se imperativo que a CNV seja capaz de identificar não somente a autoria de quem cometeu os abusos pessoalmente, mas também aqueles que foram partícipes, mandantes ou cúmplices nas violências. Como argumentado no capítulo 1 dessas observações, o esclarecimento da autoria não entra em conflito com a atual interpretação da lei de anistia de 1979, pois essa somente obstaculiza na atualidade o processo penal, mas não o esclarecimento sem “caráter jurisdicional ou persecutório”(56), objetivo principal das comissões da verdade e descrito no mandato da CNV brasileira. O esclarecimento da autoria para a CNV impõe uma importante responsabilidade para a comissão: a necessidade de estabelecer com clareza seu critério de convicção e respeitar os princípios básicos da equidade. A CNV deverá determinar quais critérios utilizará para chegar a decidir sobre a autoria com

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base na informação disponível. Já que se trata de um instrumento não jurisdicional, sem consequências penais, seria inapropriado exigir-se um elevado padrão de certeza como o que se utiliza em um tribunal, o que, em algumas tradições jurídicas, se denomina a certeza “além de toda dúvida razoável”. Nesta tarefa, a CNV deve apoiar-se na experiência de outras comissões da verdade que – no exercício de suas competências – nomearam autores de violações de direitos humanos. Assim, por exemplo, a Comissão da Verdade e Reconciliação de Serra Leoa utilizou um padrão de certeza baseada na “preponderância” da informação ou no “equilíbrio de probabilidades”(57). A Comissão da Verdade de El Salvador, estabeleceu três graus de certeza possíveis para suas afirmações, baseados na informação recebida: provas impressionantes, provas substanciais e provas suficientes(58). No caso de chegar a conclusões relativas à autoria em um determinado caso, a CNV deverá dar às pessoas afetadas por tal informação a oportunidade de se defenderem.   4.3 Limitações ao esclarecimento

da lei de acesso à informação, a garantia de confidencialidade que se exige da CNV não deveria constituir um risco para a integridade e efetividade de sua investigação. Ao mesmo tempo, a lei, corretamente, fixa mecanismos de proteção para os direitos das pessoas a sua intimidade, privacidade, honra e imagem: estas proteções devem ser aplicadas “segundo o critério” da CNV. Esta é uma boa prática amplamente reconhecida entre as comissões da verdade ao redor do mundo, que aplicaram esses mecanismos protetivos para assegurar que as vítimas que dão seu depoimento não sofressem estigmatização e represálias, por suas circunstâncias ou pelo tipo de abusos aos quais foram submetidas. Assim, por exemplo, todas as comissões que trataram da violência sexual foram cuidadosas em assegurar que as vítimas tenham sempre a opção de proteger sua identidade, prestando sua participação testemunhal em um espaço reservado e respeitoso, e que sua identidade seja protegida no informe final, a não ser que a própria vítima decida revelá-la(62). Comissões que estudam a violência cometida contra menores de idade(63) também tomaram medidas para proteger a identidade deste tipo de vítimas.  

A Lei no. 12.528/11 é clara quanto ao dever da CNV de respeitar o caráter reservado (sigiloso) de certas informações obtidas no curso de suas investigações(59). Ao mesmo tempo, a CNV deverá —a seu critério— tomar medidas de proteção de informações que possam afetar ao direito das pessoas “à intimidade, à vida privada, à honra ou à imagem (60)”. O caráter reservado de certos dados deve ser avaliado de acordo com os instrumentos legais existentes no Brasil sobre o acesso dos cidadãos à informação. A Lei no. 12.527/11 promulgada pela Presidenta Rousseff ao mesmo tempo que a lei que criou a CNV é o principal instrumento neste sentido. Saliente-se que esse instrumento legal não permite a confidencialidade de informações que sobre casos de violações dos direitos humanos, que são –presumivelmente– as informações que a CNV obterá(61). Considerando-se, portanto, a estrita aplicação

5 Oportunidades mobilizadoras, educativas e preventivas A construção de parcerias e de um trabalho de comunicação eficaz para com a opinião pública são fatores fundamentais para o êxito de uma comissão da verdade. A Lei no. 12.528/11 dota a CNV com a mais ampla capacidade de estabelecer tais parcerias com instituições públicas ou privadas, nacionais ou internacionais, com o fim de atingir seus objetivos(64). Esta é uma significativa oportunidade no contexto brasileiro, pois no Brasil existe uma densa organização da sociedade civil, diversas instâncias estaduais e locais estão gerando órgãos complementares à CNV. Além disso, importantes instituições estatais têm experiência na investigação em graves violações dos direitos humanos. A CNV tem a oportunidade de se colocar no topo de um amplo processo nacional de diálogo

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González, E.

sobre o passado autoritário, suas consequências, a necessidade de superar a impunidade e evitar a perpetuação das graves violações dos direitos humanos. As organizações não-governamentais, a imprensa, as escolas, as comunidades religiosas, as associações profissionais e econômicas têm a possibilidade de contribuir para este processo através de convênios de cooperação. Entretanto, a ambiciosa meta de gerar um diálogo de escala nacional requer uma correta política de comunicação: uma comissão da verdade que almeje ganhar a confiança dos cidadãos deve ser exemplar em sua transparência, clareza e honestidade. Merece especial atenção o crescente interesse dos cidadãos, particularmente entre a juventude brasileira, em relação à impunidade dos crimes de Estado cuja investigação jurisdicional está obstaculizada pela atual interpretação da Lei de Anistia. Tal assunto é do mais alto interesse nacional, e ultrapassa os estreitos âmbitos do meio jurídico: a CNV pode converter-se no espaço democrático por excelência para escutar as vozes das vítimas e de toda a sociedade sobre a impunidade. Uma oportunidade especial é a criação das comissões da verdade locais e regionais, tais como as criadas pela Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e pela Câmara Municipal de São Paulo(65), como já mencionado. Na medida em que comissões locais semelhantes sejam criadas, a CNV poderá contar com efetivos aliados para garantir a cobertura do amplo território brasileiro, reconstruir os contextos locais das violações, disseminar efetivamente a informação e obter a participação mais ampla da sociedade. Na medida em que a comissão deve tornar públicas “as estruturas, locais, instituições e circunstâncias” que possibilitaram as violações dos direitos humanos, apresenta-se uma valiosa oportunidade. A CNV poderia criar convênios com entes estatais, como o Ministério da Educação, com associações de professores, com faculdades de história das universidades brasileiras, para elaborar e aplicar instrumentos educativos que permitam o conhecimento objetivo dos fatos pela juventude brasileira. 26

A menção especial que a lei faz aos “locais” relacionados com as violações de direitos humanos apresenta a oportunidade de levar adiante um importante trabalho de restauração da nemória. Como os padrões de violação dos direitos humanos como a tortura, necessitaram de uma ampla infraestrutura estatal, a CNV pode identificar estes lugares e contribuir para sua recuperação e valorização como lugares de consciência, museus ou centros de referência. Igualmente, a CNV pode chamar a atenção sobre o fato de que o período ditatorial marcou o espaço físico —ruas, praças, edifícios— com referências ofensivas para com as vítimas, como a celebração de líderes anti-democráticos e perpetradores de abusos. A CNV pode trazer ao diálogo social formas de purificar o espaço coletivo dos cidadãos de tais referências re-vitimizadoras. Por último, através das recomendações de políticas que apresentará como consequência de seu trabalho, a CNV tem um papel importante na prevenção de contínuas e futuras violações. A identificação de padrões de violações e das estruturas e instituições que possibilitaram esses abusos, permitirá a elaboração de recomendações eficazes, que poderá refletir na relação entre civis e militares, na doutrina e treinamento das forças armadas e policiais, na efetividade da administração da justiça, entre outras. Neste sentido, a CNV dificilmente poderá abster-se em seu informe final de apresentar uma opinião ética sobre a persistente situação de impunidade que afeta os direitos das vítimas e incentiva a persistência de condutas abusivas.  

6 Conclusões A CNV nasce como instrumento dotado de legalidade, o que lhe permite enfrentar a ambiciosa tarefa de trazer luz sobre o passado autoritário do Brasil e de contribuir para a consolidação da democracia. A utilização adequada desse instrumento legal requer que os comissionados aproveitem todas as oportunidades possíveis para tornar efetivos os direitos das vítimas, dentro de um trabalho transparente, caracterizado pela consulta permanente da sociedade civil.

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Em particular, o instrumento legal da CNV permite uma nova oportunidade para mobilizar todos os recursos do Estado para efetivamente elucidar os fatos, as circunstâncias e a autoria dos delitos cometidos contra militantes de organizações opositoras da ditadura militar de 1964-1985. Em virtude da falta de cooperação das agências estatais, as investigações anteriores sobre este tema se apoiaram quase exclusivamente nos depoimentos dos familiares das vítimas: esta situação deve mudar radicalmente em consequência do poder, dado a CNV, de requerer testemunhos, bem como o novo instrumento jurídico sobre o acesso à informação. As investigações da CNV abrem também a possibilidade de uma ampla investigação sobre violações pouco conhecidas ou investigadas até hoje: os massivos abusos sofridos pela população independentemente de sua militância política, como parte do modelo social, político e econômico imposto pela ditadura e ao longo do processo histórico que levou a ela. A comissão deverá prestar particular atenção à violência sistemática - a partir do Estado ou a partir de atores que contavam com a anuência estatal - contra setores marginalizados da sociedade: mulheres, pobres, camponeses, povos indígenas, crianças e adolescentes. A atual interpretação da lei de anistia de 1979 não deve constituir um obstáculo para o trabalho eficaz da CNV. Tal norma está severamente questionada pelo avanço do direito internacional dos direitos humanos, como uma violação das obrigações internacionais do Brasil e deveria ser revogada. Porém, inclusive no extremo de uma aplicação continuada, a atual interpretação da lei de anistia só constitui um obstáculo para a investigação penal, não para a investigação não-jurisdicional de que trata uma comissão da verdade. Em particular, a CNV deve cumprir de forma estrita seu mandato legal de esclarecer a autoria de assassinatos, torturas, desaparecimentos e ocultações de cadáveres. Isto implica em que a CNV deverá dar nome aquelas pessoas e instituições cuja autoria alcance convicção plena, seguindo os mais estritos padrões de objetividade e assegurando o direito de resposta aos implicados.

A CNV deve executar seu trabalho de forma aberta e transparente, estabelecendo amplas parcerias com a sociedade civil, a fim de assegurar que a população entenda e apóie seu mandato. Só uma eficaz política de parcerias garantirá à CNV o adequado cumprimento de seu mandato e o melhor marco político e social para a implementação de suas recomendações. Em particular, a CNV deve aproveitar a oportunidade para a cooperação aberta para a criação de comissões da verdade estaduais e locais em diversas áreas do país. A busca da verdade a nível local e setorial permitirá mobilizar o país em torno da tarefa de recuperar a memória histórica, assegurar os direitos das vítimas e fortalecer a democracia.  

Notas Agradecemos a gentil colaboração de Silvio Mota na tradução deste artigo.

(1)**

Os sete integrantes da CNV são Rosa Maria Cardoso, José Paulo Cavalcanti, José Carlos Dias, Gilson Dipp, Claudio Fonteles, María Rita Kehl e Paulo Sérgio Pinheiro.

(2)

Ver, entre otros: Nações Unidas, Alto Comissionado para os Direitos Humanos. Doc. HR/PUB/06/01 “Rule of Law Tools for Post-Conflict States. Truth Commissions”. Geneva/New York, 2006. Estudo independente, com inclusão de recomendações sobre as melhores práticas para ajudar aos Estados a reforçar sua capacidade nacional com o fim de combater todos os aspectos da impunidade, elaborado por Diane Orentlicher e apresentado à Comissão de Direitos Humanos pelo Secretário Geral em cumprimento da Resolução n. 2003/72 Doc. ONU E/CN.4/2004/88.

(3)

As comissões da verdade criadas por ação do Poder Executivo incluem Argentina, Uruguai,  Chile, Panamá, Peru, El Salvador e Guatemala.

(4)

Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 4, inc VIII, § 3 “É dever dos servidores públicos e dos militares colaborar com a Comissão Nacional da Verdade”.

(5)

“Nota técnica sobre o Projeto de Lei n. 7376/10 que cria a Comissão Nacional da Verdade no âmbito da Casa Civil da Presidência da República” publicado pelo Ministério Público Federal – Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão. Brasília, 1º de abril de 2011.

(6)

Estabelecida pela Lei n. 9.140 de 4 de dezembro de 1995. Congresso da República Federativa do Brasil.

(7)

Estabelecida pela Lei n. 10.559 de 13 de novembro de 2002. Congresso da República Federativa do Brasil.

(8)

Memórias Reveladas: centro de referência das lutas políticas no Brasil (1964-1985). Disponível  em http://www. memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br

(9)

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27

González, E.

(10)

Brasil. Lei n. 12.527 de 18 de novembro de 2011.

Brasil. Lei n. 6.683 de 28 de agosto de 1979. A validade da lei de anistia foi reafirmada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro em decisão de 29 de abril de 2010, respondendo a uma Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153). A Corte Interamericana de Direitos Humanos, por outro lado, na sentença “Gomes Lund vs. Brasil (Guerrilha do Araguaia)” de 24 de novembro de 2010, dispôs que a Lei de Anistia de 1979 viola as obrigações internacionais do Brasil com relação à Convenção Americana de Direitos Humanos.

(11)

Poder Executivo da República do Chile. Decreto Supremo 355, de 25 de abril de 1990.

(12)

Junta Militar da República de Chile. Decreto-Lei 2,191, de 18 de abril de 1978.

(13)

Poder Executivo da República do Peru. Decreto Supremo 65, de 4 de junho de 2001.

(14)

Congresso da República do Peru. Lei 26.479, de 14 de junho de 1995, e Lei 26.492, de 2 de julho de 1995.

(15)

Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Barrios Altos (Chumbipuma Aguirre e outros vs. Peru) Sentença interpretativa de 3 de setembro de 2001.

(16)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 1: “…a finalidade de examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos…” Art. 3, inc. I: “esclarecer os fatos e as circunstâncias dos casos de graves violações de direitos humanos”; inc. II “promover o esclarecimento circunstanciado dos casos de torturas, mortes, desaparecimentos forçados, ocultação de cadáveres e sua autoria”; inc. III “identificar e tornar públicos as estruturas, os locais, as instituições e as circunstâncias relacionados à pratica de violações de direitos humanos… e suas eventuais ramificações nos diversos aparelhos estatais e na sociedade.” 

(17)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 4, inc. VIII, § 4 “as atividades da Comissão Nacional da Verdade não terão caráter jurisdicional ou persecutório.”

(18)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 1.

(19)

Nações Unidas. Comissão de Direitos Humanos. Conjunto de Princípios para a proteção e a promoção dos direitos humanos mediante a luta contra a impunidade (E/CN.4/ Sub.2/1997/Rev 1, anexo II); Atualização dos princípios (E/CN.4/2005/102/Add 1); Resolução 2005/66 de 20 de abril de 2005; Estudo sobre o direito à verdade (E/ CN/4/2006/91). Conselho de Direitos Humanos. Resolução 9/11 de 24 de setembro de 2008.

(20)

Protocolo Adicional I das Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949 relativo à Proteção das Vítimas dos Conflitos Armados Internacionais, arts. 33-34.

(21)

Ver Hayner, Priscilla. Unspeakable Truths: Transitional Justice and the Challenge of Truth Commissions. 2a Edição. New York: Routledge, 2011.

(22)

Acordos de Oslo. Acordo de 23 de junho de 1994 sobre o estabelecimento da comissão para o esclarecimento de

(23)

28

violações de direitos humanos e atos de violência que causaram dor ao povo guatemalteco. Preâmbulo par. 2 Poder Executivo da República do Peru. Decreto Supremo 65 de 4 de junho del 2001. Preâmbulo par. 4

(24)

Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Informe “Direito à Memória e à Verdade” (2007).

(25)

Programa Nacional de Direitos Humanos. Aprovado pelo Decreto n. 7.037 de 21 de dezembro de 2009.

(26)

Foram criadas formalmente a Comissão Parlamentar sobre Memória, Verdade e Justiça, na Câmara dos Deputados; as Comissões Estaduais da Verdade em São Paulo e Rio de Janeiro, e a Comissão Municipal da Verdade de São Paulo.

(27)

Nos seguintes países, as comissões da verdade foram chamadas também de “reconciliação”: Canadá, Chile, Haiti, Ilhas Salomão, Quênia, Libéria, Marrocos, Panamá, Peru, República Democrática do Congo, Serra Leoa, África do Sul, Tailândia, Timor Leste, Togo.

(28)

A CVR da Indonésia incluia um mecanismo de perdão pessoal, pelo qual se incentivava as vítimas a perdoar ao perpetradores em troca de obterem reparações. A lei foi considerada inconstitucional pela Corte Constitucional da Indonésia em 2006. Ver Constitutional Court of Indonesia. Decision 006/PUU-IV/2006. Da mesma forma, a CVR da República Democrática do Congo incluia em seu mandato a expressão “pacificar os espíritos” e chegou a indicar entre os comissionados representantes diretos de grupos armados participantes no conflito. A CVR nunca gozou da confiança das vítimas, não obteve depoimentos testemunhais e se dissolveu entregando somente um informe administrativo de atividades. Ver Borello, Federico. “A First Few Steps: The Long Road to a Just Peace in the Democratic Republic of the Congo.” Nova York: ICTJ. Outubro de 2004.

(29)

Pablo de Greiff. El carácter exigente de la reconciliación. PNUD-Colombia Revista “Hechos del callejón”. Julho de 2005.

(30)

Office of the President of the Republic of South Africa. “Promotion of National Unity and Reconciliation Act”. Lei 95-34 de 26 de julho de 1995.

(31)

(32)

Supra n. 17.

(33)

Supra n. 18.

Alex Boraine. A Country Unmasked: Inside South Africa’s Truth and Reconciliation Commission. Oxford: Oxford University Press, 2000.

(34)

Os exemplos são Indonésia (supra n. 25), Argélia e o atual projeto de Comissão da Verdade e Reconciliação do Nepal. Para o caso da Argélia, ver República Democrática e Popular Argelina. Decreto Presidencial 03-299 de 11 de setembro de 2003. Para o caso do Nepal, ver Ministério da Paz e Reconciliação. Projeto de Lei do Grupo de Trabalho para o Estabelecimento da Comissão da Verdade e Reconciliação, de 17 de julho de 2007.

(35)

Para uma crítica a conceitos superficiais de reconciliação, ver IDEA International (comp.) “Reconciliation After Violent Conflict”. 2003. Publicação na internet. http://www. idea.int/publications/reconciliation/

(36)

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 17-30, agosto/2012

OBSERVAÇÕES SOBRE O MANDATO LEGAL DA COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE DO BRASIL

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art 1.

(37)

Atos das Disposições Constitucionais Transitórias. Art. 8. O período de referência é de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição. A Constituição brasileira foi promulgada em 5 de outubro de 1988.

(38)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art 3, inc. II.

(39)

Esta seção se baseia nos seguintes textos. UN Commission on Human Rights. Definition of gross and large-scale violations of human rights as an international crime. Working paper submitted by Mr. Stanislav Chernichenko. E/CN.4/Sub.2/1993/10*. Nações Unidas. Comissão de Direitos Humanos. Conjunto de princípios atualizado para a proteção e a promoção dos direitos humanos mediante a luta contra a impunidade. Informe de Diane Orentlicher, especialista independente. E/CN.4/2005/102/Add.1, 8 de fevereiro de 2005. UN General Assembly Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law. A/RES/60/147 21 de março de 2006. Theo Van Boven “The Basic Principles and Guidelines on the Right to a Remedy and Reparation for Victims of Gross Violations of International Human Rights Law and Serious Violations of International Humanitarian Law.” (2010). Nações Unidas. Comissão de Direitos Humanos. Conjunto de princípios atualizado para a proteção e a promoção dos direitos humanos mediante a luta contra a impunidade. Informe de Diane Orentlicher, especialista independente, Doc. E/CN.4/2005/102/Add.1 de 8 de fevereiro de 2005

(40)

Mahmood Mamdani. Amnesty or Impunity? A Preliminary Critique of the Report of the Truth and Reconciliation Commission of South Africa (TRC). diacritics. 32(3–4): 33–59. Fall-Winter. 2002.

41)

Julissa Mantilla.  “La Comisión de la Verdad en el Perú: El inciso que faltaba”. Durante uma palestra ao Portal de asuntos públicos da Pontificia Universidade Catolica do Peru (PUCP). Outubro de 2001.

(42)

(43)

Supra n. 29

Parlamento do Quênia. “The Truth, Justice and Reconciliation Commission Bill”, 8 de maio de 2008.

(44)

(45)

Supra n. 17

Congresso do Paraguai. Lei n. 2.225 pela qual se cria a Comissão de Verdade e Justiça. 16 de outubro de 2003.

(47)

Supra n. 30

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art 3. Inc. I, III.

(49)

Ver o Informe Final da Comissão da Verdade para El Salvador, publicado em 15 de março de 1993 e denominado “Da Loucura à Esperança: A guerra de 12 años em El Salvador”, Disponível em  http://www.derechoshumanos. net/ lesahumanidad/informes/elsalvador/informe-de-lalocura-a-la-esperanza.htm

(50)

Ver Informe Final da Comissão da Verdade e Reconciliação do Peru. Disponível em  http://www.cverdad.org. pe/ifinal/ index.php

(52)

Ver o Informe Final da Comissão da Verdade e Reconciliação da África do Sul, publicado em 21 de março de 2003 e disponível no website do governo em http://www. info.gov.za/otherdocs/2003/trc/

(53)

Incluir a “morte” como uma violação é uma ambigüidade da lei pois, sem dúvida, o interesse do legislador é esclarecer situações delitivas, tais como os assassinatos ou as execuções extrajudiciais. Uma provável explicação dos termos da lei reside em que a ditadura militar brasileira apresentou, com a ajuda de relatório de legistas, alguns casos de execução ou morte durante a tortura como “suicídios” ou como mortes naturais. A CNV, neste sentido, deveria esclarecer mortes com suspeita de serem, na realidade, assassinatos e execuções extrajudiciais.

(54)

A divisão de “responsabilidade” em penal, política e moral na Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru segue a tipología estabelecida por Karl Jaspers em “El problema de la culpa” (1946). Ver Conclusões Gerais. Informe Final da Comissão de Verdade e Reconciliação do Peru. 2003. Vol. VIII. Disponível em http://www.cverdad.org.pe/ifinal/pdf/ TOMO%20VIII/CONCLUSIONES%20GENERALES. pdf. Ver também Javier Ciurlizza e Eduardo González “Verdad y justicia desde la óptica de la Comisión de la Verdad y Reconciliación” em Lisa Magarrell e Leonardo Filippini (eds.) “El legado de la verdad. La justicia penal en la transición peruana.” ICTJ: Nova York, 2006.

(55)

(56) Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 4, inc. VIII, § 4 Witness to Truth: Report of Sierra Leone Truth and Reconciliation Commission. Outubro de 2004.

(57)

(58) Comisión de la verdad de El Salvador. “De la locura a la esperanza. La guerra de doce años en El Salvador”. Março de 1993. Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 4, inc. VIII, § 2

(59)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 5.

(60)

Reino de Marrocos. Dahir de 10 de abril de 2004, aprovando os estatutos da Instância de Equidade e Reconciliação.

(46)

(48)

Ver Informe Final produzido pela Comissão de Esclarecimento Histórico da Guatemala “Memória do Silêncio”. Disponível em http://shr.aaas.org/guatemala/ceh/mds/ spanish/toc.html

(51)

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.527 de 18 de novembro de 2011. Art. 21 “As informações ou documentos que versem sobre condutas que impliquem violação dos direitos humanos praticada por agentes públicos ou a mando de autoridades públicas não poderão ser objeto de restrição de acesso”.

(61)

Vasuki Nesiah. “Truth Commissions and Gender: Principles, Policies and Procedures”. ICTJ: New York, 2006.

(62)

Ver ICTJ & United Nations Children’s Fund (UNICEF). Children and Truth Commissions. Agosto de 2010. Disponível em http://ictj.org/sites/default/files/ICTJ-GlobalChildren-Truth-2010-English.pdf

(63)

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 17-30, agosto/2012

29

González, E.

Congresso da República Federativa do Brasil. Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011. Art. 4, inc. VII

(64)

Ver Resolução n. 879 de 10 de fevereiro de 2012, que cria, no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, a Comissão da Verdade do Estado de São Paulo para colaborar com a Comissão Nacional da Verdade, criada pela Lei n.º 12.528, de 18 de novembro de 2011, na apuração de graves violações dos Direitos Humanos ocorridas no território do Estado de São Paulo ou praticadas por agentes públicos estaduais, durante o período fixado no artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, no período de 1964 até 1982, no território do Estado de São Paulo. A aprovação doProjeto de Resolução (PR) 01/2012, na  Câmara Municipal de São Paulo, levou a criação da Comissão da Verdade Municipal de São Paulo.  No Rio de Janeiro, em abril de 2012, a Assembleia Legislativa aprovou o Projeto de Lei n. 889, de 2011, que cria a Comissão Estadual da Verdade “para acompanhar e subsidiar” a comissão nacional. A Câmara de Deputados também criou uma subcomissão que está atuando na oitiva de testemunhas.

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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E SIGILO: DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE? Artigo

COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E SIGILO: DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE? Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira(1) Emilio Peluso Neder Meyer(2) Artigo recebido em 23/07/2012

RESUMO: o texto tem o objetivo recuperar criticamente a criação e institucionalização da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, verificando os principais aspectos da Lei n° 12.528/2011 e discutindo a realização de sessões e depoimentos sob sigilo ante o direito à memória e à verdade. Palavras-chave: Comissões de verdade. Direitos humanos. Memória. Publicidade. ABSTRACT: the text has the scope of recover critically the creation and institutionalization of the National Truth Commission in Brazil, checking the main aspects of the Law n° 12.528/2011 and discussing the performance of sessions and testimonies under secrecy before the right to the memory and the truth. Keywords: Truth commissions. Human rights. Memory. Publicity.

I Introdução Recentemente, tem-se acompanhado na imprensa a divulgação de fatos concernentes ao início dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade (doravante CNV), instituída pela Lei n° 12.528/2011. Após alguns meses de espera, finalmente, a Presidente da República Dilma Roussef nomeou os integrantes da CNV: Gilson Dipp, Paulo Sérgio Pinheiro, José Carlos

Mestre e Doutor em Direito Constitucional pela UFMG. Professor Associado II da Faculdade de Direito da UFMG. Estágio Pós-Doutoral em Teoria e Filosofia do Direito pela Università degli studi di Roma TRE. Membro Diretor do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição. (2) Mestre em Direito Constitucional pela UFMG. Doutor em Direito pela UFMG. Professor Adjunto da Universidade Federal de Ouro Preto. Membro do IDEJUST – Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição. (1)

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Dias, Rosa Maria Cardoso da Cunha, Maria Rita Kehl, Cláudio Fonteles e José Paulo Cavalcanti Filho(3). Os trabalhos começaram a ser desenvolvidos logo após a nomeação, ocorrida em 10 de maio de 2012, e consequente posse, em 16 de maio. Em seguida a uma controvérsia sobre qual seria o foco da CNV, é dizer, se ela deveria investigar graves violações de direitos humanos praticadas pelo Estado, ou se deveria incluir outras violações praticadas no contexto da resistência a este mesmo Estado(4), a Comissão iniciou um trabalho de articulação com outras Comissões já existentes. Assim, em vista da brevidade de seu funcionamento (dois anos de investigação do período de 1946 a 1988), deu-se início a uma articulação com outras comissões já existentes e exitosas em seus trabalhos: a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (instituída pela Lei n° 9.140/1995) e a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça (instituída pelo art. 8º do ADCT e regulamentada pela Lei n° 10.559/2002) (MENDES, 2012, p. 1). Em um momento posterior, tal trabalho de articulação foi ainda mais ampliado, visando incluir um diálogo com as comissões estaduais que procuraram levar à frente investigações locais: as Assembleias Legislativas de São Paulo e do Rio de Janeiro já haviam desenvolvido parte de seu trabalho, assim como o Poder Executivo nos Estados de Pernambuco e do Rio Grande do Sul também deram passos iniciais que vão ser resgatados pela CNV. Chama a atenção, contudo, que boa parte das sessões de depoimento perante a CNV tenham acontecido sob o acolhimento de uma exigência dos próprios depoentes: a manutenção de um sigilo (PORTAL TERRA, 2012a, p. 1). Grupos de direitos humanos e familiares de desaparecidos políticos têm sido enfáticos em criticar tal prática. A CNV teria chegado ao ponto de, no caso do depoimento do médico legista Harry Shibata, colher assinatura a um termo de compromisso que impediria o depoente de dar entrevistas ou prestar informações, logo após tê-lo ouvido sob sigilo. A ideia seria a de que tais garantias deixariam o depoente mais “à vontade” – contraditoriamente, neste caso, a própria Co32

missão relataria alguma decepção com a postura do depoente (ESTADO DE MINAS, 2012, p. 1). Diante de tais fatos, este trabalho procurará analisar as principais consequências da adoção desta posição por uma comissão da verdade. Em primeiro lugar, será feita uma breve análise do papel de algumas comissões da verdade em sistemas políticos comparados; em segundo lugar, será dedicado um espaço de discussão a respeito dos precedentes e da forma como veio normatizada a comissão da verdade brasileira; ao cabo, diante de um direito à memória e à verdade de acepção difusa, será questionada a possibilidade de realização de sessões secretas por uma comissão da verdade.

II Perspectivas comparadas sobre as comissões de verdade A adoção das comissões da verdade por países que atravessam momentos de justiça de transição encontra diversas explicações: enfatiza-se a necessidade de promoção de uma reconciliação nacional e a superação de um passado; entendese também que elas seriam um passo necessário para uma ulterior responsabilização; ou, ainda, ela atenderia a um reclamo de marcar distância entre um novo governo e governos passados, bem como o nascimento de uma era de reafirmação de direitos (HAYNER, 2001, p. 24). Neste campo, tem-se procedido a uma distinção entre conhecimento e reconhecimento para enfatizar a obrigação do Estado de trazer à luz seus erros e dar a tais fatos este caráter. Como bem enfatiza Roberta Camineiro Baggio: “Na descrição de todas essas dimensões é possível perceber que um processo transicional vincula-se a uma concepção de justiça como reconhecimento, já que sua preocupação maior não é efetivar a distribuição de bens materiais e sociais, mas sim promover o aumento da integração social como forma de atingir a reconciliação. Mesmo a dimensão da reparação, que cumpriria um papel distributivo, tem o condão de valorizar as ações de resistência das vítimas do Estado. As dimensões

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proporcionam o acesso e a recuperação das três formas de reconhecimento: pelo afeto, pelo direito e pela comunidade de valores. A integração social passa, necessariamente, pela recuperação dos processos de reconhecimento que foram negados ao longo do período de arbitrariedades” (BAGGIO, 2012, p. 271-272).

Não deve haver, contudo, uma total exclusão entre verdade e justiça. A instalação de uma comissão da verdade não exclui, per se, a existência de processos jurisdicionais atributivos de responsabilidades: “Nonjudicial truth bodies do not and should not be seen to replace judicial action against perpetrators, and neither victims nor societies at large have understood them to do so in those countries where truth commissions have been put in place. While their subject matters may overlap in that they both investigates past crimes, trials and commissions serve different purposes, and neither can fill the role of the other. Scholars and policymakers who have occasionally suggested that a nonjudicial truth-seeking endeavor can successfully take the place of prosecutions – such as in an early suggestion in a New York Times op-ed that the International Criminal Tribunal for the Former Yugoslavia should be replaced by a nonjudicial truth inquiry – misunderstand these differing roles, and underestimate the importance of legal prosecutions to victims and society at large” (5) (HAYNER, 2001, p. 87, destaques do original).

Na Guatemala, militares propuseram a realização de uma comissão da verdade, mas desde que ela excluísse a possibilidade de julgamentos; em El Salvador, o funcionamento de uma comissão foi sucedido imediatamente por uma anistia; na África do Sul, houve uma permuta entre justiça e verdade em que a comissão oferecia a liberdade em relação aos processos em troca de confissões por parte dos perpetradores. Ainda que o acesso à verdade possa aplacar a busca por justiça por parte das vítimas e retirá-las, de certo modo, desta posição, não há razões para enfatizar uma exclusão entre tais processos.

Comissões da verdade podem trazer benefícios para processos jurisdicionais, principalmente se o Judiciário ainda se encontra animado por ideias do regime anterior. Os frutos obtidos pela CONADEP na Argentina até hoje se fazem sentir nos processos jurisdicionais. Isto não significa que no ambiente das cortes se possa dispor dos melhores elementos para a busca pela verdade: de fato, em vista das garantias que devem ser atribuídas aos acusados, há limitações das mais severas. A ideia, portanto, é a de que deve haver uma lógica comunicativa entre o que ocorre em uma comissão da verdade e o que pode se desdobrar em um processo jurisdicional. Hayner (2001, p. 101 e ss) aponta pelo menos três contributos que as comissões podem trazer para tais processos: determinar o papel do Poder Judiciário nos sistemas repressivos; recomendar reformas no Judiciário; e, reforçar a exigência pelo Estado de Direito e pelo cumprimento de obrigações internacionais. Os exemplos de comissões da verdade ao redor do mundo são inúmeros. A partir da pesquisa de Hayner (2001, p. 305 e ss) é possível inferir, ao redor do mundo, pelo menos 21 exemplos de comissões, incluindo países como Uganda, Bolívia, Argentina, Uruguai, Zimbábue, Uganda, Nepal, Chile, Chad, África do Sul, Alemanha, El Salvador, Sri Lanka, Haiti, Burundi, Equador, Guatemala, Nigéria, Serra Leoa, Timor Leste, Indonésia e Congo. Cueva refere-se a estes dois últimos países como exemplos negativos de comissões da verdade, como no caso do Congo: “Uno de los poderes centrales de la CVR21 constituía la posibilidad de otorgar amnistías para quienes confesaran crímenes cometidos “con motivación política” repitiendo, de este modo, uno de los principios aplicados por la comisión sudafricana. Al mismo tiempo, el mandato negaba que crímenes de lesa humanidad y el delito de genocidio fuesen candidatos para la amnistía, aunque precisamente ese tipo de crímenes se encontraba bajo la jurisdicción de la Comisión. Esta contradicción, potencialmente seria, nunca tuvo que ser resuelta porque la Comisión, como veremos, jamás funcionó de manera estable”. (CUEVA, 2007, p. 111)

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III Precedentes da Comissão Nacional da Verdade Brasileira O Brasil, assim, tem dado passos lentos na direção da afirmação de um direito à memória e à verdade(6). Da parte da sociedade civil, não se pode deixar de reconhecer o importante papel exercido com a publicação do relatório Brasil, Nunca Mais, organizado pela Arquidiocese de São Paulo a partir de documentos retirados de autos de processos que tramitavam perante a Justiça Militar (BRASIL, Arquidiocese de São Paulo, 1985). Em 1991, a Câmara dos Deputados instalou uma Comissão Externa para acompanhar as buscas na vala comum do Cemitério de Perus, em São Paulo. A partir de 1992, familiares de vítimas começam a ter acesso aos documentos das DEOPS (Delegacias de Ordem Política e Social) de diversos estados da federação; apesar de alguns ganhos, o que se nota é a supressão de diversas páginas dos processos. A afirmação do direito à memória e à verdade em relação ao período da ditadura começa de forma mais incidente ainda no Governo Fernando Henrique Cardoso, como a publicação da Lei n° 9.140/1995. A lei reconheceu oficialmente como mortos, para todos os efeitos legais, os desaparecidos políticos entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, assim como instalou, no âmbito do Ministério da Justiça, a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (posteriormente, o caput do art. 1º foi alterado pela Lei n° 10.536/2002 para estender o período até 5 de outubro de 1988). Nos vários anos de atividade, a Comissão investigou e concedeu indenizações em casos de desaparecimento de pessoas envolvidas com atividades políticas. O resultado de seu exercício foi a elaboração do documento “Direito à memória e à verdade”, que relata cerca de 150 casos de desaparecidos políticos no período (BRASIL, SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS, 2007). O trabalho desenvolvido pela Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, instituída pela Lei n° 10.559/2002 para dar cumprimento ao art. 8º do ADCT, também foi um importante fator de 34

precedência para reivindicações mais amplas em termos de justiça de transição, saindo do eixo da reparação para alcançar o do direito à memória e à verdade. Em 2005, são transferidos da ABIn (Agência Brasileira de Inteligência) os documentos relativos ao período militar, passando os mesmos ao Arquivo Público Nacional, sob o comando da Casa Civil da Presidência da República. Um tiro no escuro, em verdade: reportagem de 18 de agosto de 2010 da Revista Carta Capital informava que o arquivo vinha sendo gerenciado por uma entidade civil, a ACAN (Associação Cultural do Arquivo Nacional), cujo comando remonta a militares que lá se instalaram ainda na década de 1970 (FORTES, 2010, p. 20). Já no Governo Dilma Rousseff, por meio do Decreto n° 7.430 de 17 de janeiro de 2011, o Arquivo Nacional foi transferido ao Ministério da Justiça. De se mencionar também, no âmbito do Arquivo Nacional, a instituição do projeto Memórias Reveladas, denominação dada ao Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil. Por meio dele, as informações dos antigos Conselho de Segurança Nacional, Comissão Geral de Investigações e do Serviço Nacional de Informações são colocadas à disposição dos brasileiros. Nele estão integradas também informações digitalizadas disponibilizadas por Estados e Distrito Federal. A grande vantagem do projeto se deve à sua fácil acessibilidade via internet(7). É preciso reconhecer que, mais recentemente, outras condições possibilitaram o advento da CNV. Em primeiro lugar, a discutível decisão do Supremo Tribunal Federal na ADPF n° 153/ DF, em que se reconheceu validade à interpretação da Lei n° 6.683/1979 no sentido de que ela teria estabelecido uma anistia recíproca (BRASIL, Supremo Tribunal Federal, 2010). Em segundo lugar, era necessário também que o Estado brasileiro desse alguma resposta à condenação contra ele proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund, em que se reconheceu sua responsabilidade internacional pelos desaparecimentos forçados ocorridos na Guerrilha do Araguaia (CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS, 2010) (MEYER, 2012, p. 206 e ss).

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IV A Comissão Nacional da Verdade instituída pela Lei n° 12.528/2011 A reivindicação, pois, da instalação de uma comissão da verdade no Brasil encontra eco em diversos sistemas comparados de justiça de transição(8). Esta ambição pôde se efetivar com o envio ao Congresso Nacional, ainda no Governo Lula, do Projeto de Lei n° 7.376/2010, uma das concretizações do PNDH-3 (Plano Nacional de Direitos Humanos)(9). Aprovado no Congresso Nacional, o projeto foi sancionado pela Presidente Dilma Rousseff, transformando-se na Lei n° 12.528 de 18 de novembro de 2011(10). A Comissão Nacional da Verdade foi criada no âmbito da Casa Civil da Presidência da República e tem como objetivo examinar e esclarecer graves violações de direitos humanos ocorridas no período entre 18 de setembro de 1946 até 5 de outubro de 1988. Ela busca, nomeadamente, efetivar o direito à memória e à verdade e almejar reconciliação. Desse modo, o período abrangido mostrou-se deveras extenso, uma vez que a mesma lei, em seu art. 11, fixa como prazo de funcionamento da CNV o interstício de apenas 2 (dois) anos. O número restrito de membros também pode atrapalhar o funcionamento da comissão. A CNV é composta por 7 (sete) membros escolhidos pelo Presidente da República dentre brasileiros de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificados com o respeito à democracia, à Constituição e aos direitos humanos. Apesar de estes requisitos terem que se somar a outros, como não exercício de cargos executivos em partidos políticos ou cargos em comissão ou de confiança na Administração Pública, bem como necessária imparcialidade, a indicação feita exclusivamente pelo Presidente da República, sem um maior respaldo democrático, seja pelo controle por parte do legislativo ou por entidades de representação da sociedade civil, poderia deslegitimar em parte o processo de escolha. O art. 3º da Lei n° 12.528/2011 fixa os objetivos da CNV. São eles: a) esclarecer as circunstâncias de graves violações de direitos humanos; b) promover o esclarecimento de

crimes graves contra os direitos humanos (desaparecimento forçado, tortura, mortes e ocultação de cadáveres), mesmo que ocorridos no exterior e com nomeação dos autores(11); c) identificar e torna públicas as estruturas, locais, instituições e circunstâncias vinculadas à prática daqueles crimes; d) encaminhar aos órgãos públicos informações que possam auxiliar na localização e identificação de corpos e restos mortais; e) auxiliar outros órgãos do poder público na apuração da violação de direitos humanos; f) recomendar ações que possam prevenir novas violações de direitos humanos, bem como evitar repetições e assegurar reconciliação; g) promover a reconstrução histórica das violações de direitos humanos. No que respeita especificamente ao objetivo “e” (“colaborar com todas as instâncias do poder público para apuração de violação de direitos humanos”), destaque-se que ele abre caminho para o encontro entre verdade e justiça, é dizer, para que o trabalho da comissão possa colaborar em responsabilizações por parte do Judiciário. Entre os poderes que a CNV detém, contidos no art. 4º, destaque-se o recebimento de testemunhos e depoimentos, inclusive podendo assegurar o sigilo da identidade do depoente (algo que não se identificar com a realização de sessões sob sigilo quando se sabe a identidade do depoente); a requisição de informações e documentos de órgãos públicos, inclusive os que estejam classificados sob sigilo; a convocação de pessoas que possam ter relações com as violações; a realização de perícias e diligências; a realização de audiências públicas; a requisição da proteção de depoentes; a instituição de parcerias com órgãos públicos e privados, nacionais e internacionais, para o intercâmbio de informações; a requisição do auxílio de órgãos públicos. Este mesmo art. 4º, em seu § 3°, institui um importante dever: servidores públicos e militares devem colaborar com a CNV. Aliás, ainda que o dispositivo não o preveja expressamente, pode-se cogitar do cometimento do crime de prevaricação (art. 319 do Código Penal(12)) por parte daqueles que se omitirem. E mesmo ato de improbidade administrativa, uma vez que a Lei 8.429/1992 determina como atos de improbidade a violação dos princípios que regem a Administração Pú-

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blica, e, mais especificamente, deixar de praticar ato de ofício, assim como negar publicidade aos atos oficiais(13). Também o art. 4º da Lei n° 12.528/2011, em seu § 4º, determina a característica não judicial da CNV, ao estabelecer que seus atos não terão caráter jurisdicional ou persecutório. Isto não impediu que lhe fosse atribuída a prerrogativa para recorrer ao Judiciário quando determinada informação estivesse acobertada pela chamada cláusula de reserva de jurisdição. Poder-se-ia pensar na necessidade de quebra de sigilo bancário, fiscal e de dados telefônicos ou na realização de diligência de busca domiciliar. O art. 5º da referida lei institui a publicidade dos atos da CNV, o que não poderia ser diferente. Ele também permite que a comissão, em nome da intimidade, vida privada e honra das pessoas, restrinja tal publicidade ou mantenha sigilo. Esta ampla discricionariedade é claramente contra os objetivos da CNV e a efetivação do direito à verdade e à memória. Isto porque servidores públicos e militares, ainda que obviamente detentores de um direito à privacidade, não podem opor tal direito quando do exercício de suas funções. É de se pensar, inclusive, na possibilidade de que eventual privação ou sigilo decretados pela CNV possam ser objeto de fiscalização jurisdicional, detendo entidades civis representativas de segmentos sociais, assim como o Ministério Público, prerrogativa para representar em favor da garantia do direito à memória e à verdade e do direito de acesso à informação. O art. 6º traz uma estranha disposição: “Art. 6° Observadas as disposições da Lei no 6.683, de 28 de agosto de 1979, a Comissão Nacional da Verdade poderá atuar de forma articulada e integrada com os demais órgãos públicos, especialmente com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia, criada pela Lei no 10.559, de 13 de novembro de 2002, e a Comissão Especial sobre mortos e desaparecidos políticos, criada pela Lei no 9.140, de 4 de dezembro de 1995.” Ora, não pode haver nenhuma outra leitura constitucional deste dispositivo que não seja aquela que parta da ideia de que a Lei de Anistia 36

de 1979 só pode limitar a atuação articulada da CNV com o Arquivo Nacional, a Comissão de Anistia e a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos que seja em prol da preservação de direitos de anistiados políticos opositores do regime de exceção. Não pode, pois, o disposto no art. 1º, § 1°, da Lei n° 6.683/1979 servir a uma restrição ao direito à memória e à verdade em nome da famigerada, suposta e já refutada “anistia de mão dupla” (CATTONI DE OLIVEIRA e MEYER in CATTONI DE OLIVEIRA, 2011, p. 249-288; MEYER, 2012, p. 186 e ss). Por fim, o art. 11 da Lei n° 12.528/2011 exige que a CNV elabore relatório circunstanciado contendo as atividades realizadas, fatos examinados, conclusões e recomendações, que deverão ser remetidos ao Arquivo Nacional para integrar o projeto Memórias Reveladas. Projetos paralelos ao instituído pela Lei n° 12.528/2011 também se efetivaram, como já ressaltado. Na Câmara dos Deputados, a Comissão de Direitos Humanos instituiu uma comissão da verdade que já começara a funcionar em 3 de abril de 2012, antes mesmo que a Presidente Dilma Roussef anunciasse os nomes dos integrantes da CNV (ÉBOLI, 2012, p. 1). No âmbito da Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, foi estabelecida a Comissão da Verdade Rubens Paiva, em 2 de março de 2012, também precedendo os trabalhos da CNV (PORTAL TERRA, 2012b, p. 1). Os dois casos demonstram uma maior mobilização em torno deste elemento da justiça de transição. São iniciativas importantes que evitam uma excessiva carga de trabalho para a Comissão Nacional da Verdade que poderia impedir seu devido funcionamento no exíguo prazo legal de dois anos.

V A Comissão Nacional da Verdade e a Publicidade de seus atos Verifica-se, pois, que a atuação da CNV na afirmação de um direito à memória e à verdade deverá ser pautada pelo máximo de publicidade. Até porque, por ser uma comissão “de Estado”, como já enfatizou seu membro e Ministro do

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Superior Tribunal de Justiça, Gilson Dipp, ela está jungida pelo disposto no art. 37 da Constituição de República, no ponto em que determina a observância do princípio da publicidade. De mais a mais, a própria existência da CNV é uma decorrência do disposto no art. 5º, inc. XXXIII, da mesma Constituição, dispositivo este assegurador do direito à informação. Seria contraditório que se interpretasse a Lei 12.528/2011 à luz de uma compreensão tacanha do texto que restringisse a atuação da CNV de forma a garantir “imperativos de segurança da sociedade e do Estado”. Pelo contrário, a própria Lei 12.527/2011, que veio no mesmo bojo de reforma do direito à memória e à verdade, estabelece em seu art. 21, Parágrafo Único, que informações e documentos ligados a condutas de graves violações de direitos humanos praticadas por agentes públicos ou a seu mando não poderão ser objeto de restrição de acesso. Com isto, o disposto no art. 5º da Lei 12.528/2011, que estabelece que as atividades da CNV serão públicas, exceto nos casos em que a manutenção do sigilo auxilie no alcance de seus objetivos ou para resguardar a privacidade das pessoas, deve ser lido cum grano salis. Um uso indevido e recorrente do dispositivo acabará por frustrar as próprias finalidades da CNV – note-se que um dos primeiros depoimentos já foi tomado sob sigilo e, ainda assim, não foram alcançados bons frutos. Hayner (2001, p. 225) defende que há uma série de razões para que uma comissão estabeleça audiências públicas. Elas podem permitir um envolvimento maior da sociedade na questão de revolver devidamente seu passado em prol de um dever consciente de memória; encorajam o conhecimento do sofrimento de vítimas que pode cooperar para a diminuição da negação da verdade por amplos setores da sociedade; e, também, tornam o próprio trabalho da comissão mais suscetível de ser compreendido por toda a esfera pública. Isto torna possível mudar o foco para unicamente a produção do relatório final, deslocando-o para o próprio processo de desenvolvimento da busca pela verdade. O exemplo sul-africano, neste ponto, é marcante: horas de relatos eram transmitidos ao vivo pelas rádios,

assim como um programa semanal de resumo dos depoimentos alcançou um dos maiores índices de audiência da televisão local. É curioso observar, contudo, que apenas as comissões de 1986 em Uganda, a segunda comissão do Congresso Nacional Africano, a comissão do Sri Lanka e uma comissão alemã mantiveram a prática de audiências públicas. Não há, segundo Hayner (2001, p. 226) exemplo latino-americano de comissões que tenham funcionado nestes moldes. Daí asseverar a autora que há razões importantes para se considerar a realização de sessões privadas: a mais importante delas seria a insegurança dos depoentes, fortalecida por ameaças às vítimas, impunidade dos perpetradores e a impossibilidade de permitir proteção a tais pessoas. Além disto, eventuais imputações indevidas a inocentes poderiam comprometer os trabalhos da comissão. Razões de tempo, financeiras e logísticas também impediriam que todas as sessões fossem públicas. A conclusão de Hayner, entretanto, é no sentido de que as comissões de verdade devem efetivamente refletir sobre a prevalência da realização de sessões públicas. Em Estados em que a preocupação principal é permitir compreensão e reconciliação, grupos divergentes costumam ter pouco conhecimento a respeito dos sofrimentos por que passaram seus opositores.

V Conclusões Os diversos modelos de comissões de verdade adotados ao redor do mundo demonstram que não há, em efetivo, um padrão a ser seguido. Muito mais do que isso, é preciso adaptar alguns conceitos às necessidades de cada Estado em como enfrentar seu passado de violações de direitos humanos. O caso brasileiro é peculiar por apresentar um processo extremamente longo de desenvolvimento da justiça de transição e, em especial em relação às comissões da verdade, por só se ter concluído por sua premência vinte e seis anos após o fim da ditadura. É, entretanto, justamente esse longo período temporal que criou os elementos propícios para a efetivação de uma comissão da verdade

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na plenitude de sua publicidade. Se, por um lado, ainda há um gigantesco entulho autoritário que precisa ser revisitado e desfeito, há condições institucionais para se evitar ameaças às vítimas e aos depoentes perante a CNV – isto sem mencionar os fantasmas golpistas. De modo que o sigilo nas sessões da CNV deverá ser a plena exceção, e não a regra, como parece ter sido este o caminho inicial tomado. É necessário que a sociedade brasileira observe de perto o funcionamento da comissão e seja integrada efetivamente a este processo, muito mais do que ser mera destinatária final do exercício de um direito à memória e à verdade que é dela própria.

deveriam ser vistos como substitutos da ação judicial contra perpetradores, e nem vítimas ou sociedades em geral têm compreendido que elas devam fazê-lo naqueles países onde comissões da verdade foram instaladas. Enquanto seus assuntos podem se sobrepor na medida em que ambos investigam crimes do passado, julgamentos e comissões atendem a diferentes propósitos, e nem mesmo podem preencher o papel do outro. Doutrinadores e ativistas políticos que têm ocasionalmente sugerido que um esforço não judicial de busca pela verdade pode exitosamente assumir o lugar de persecuções – como em uma recente sugestão em um editorial do New York Times de que o Tribunal Criminal Internacional para a Antiga Iugoslávia deveria ser substituído por um inquérito não judicial pela verdade – equivocam-se estes diferentes papéis e subestimam a importância de persecuções legais para as vítimas e a sociedade em geral”. “A restrição ao princípio da publicidade em primazia da “segurança nacional”, ainda nos dias de hoje, revela uma falta de intenção de acertar contas com o passado; mais do que isso, permite que todo o pior entulho autoritário possa ser simplesmente “jogado embaixo do tapete”. Sem a publicidade dos arquivos da ditadura, dificulta-se a punição dos crimes praticados e a implementação da justiça transicional. Impede-se o desenvolvimento pleno do Estado e da sociedade que o sustenta” (TAVARES, AGRA, 2009, p. 74).

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Notas Gilson Dipp é Ministro do Superior Tribunal de Justiça e preside a Comissão de Juristas do Senado Federal responsável pela elaboração de um anteprojeto de novo Código Penal (ele foi, neste primeiro momento, escolhido como porta-voz da CNV); Paulo Sérgio Pinheiro é sociólogo, foi Secretario Nacional de Direitos Humanos no Governo FHC, Presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Relator Especial da ONU para a Situação de Direitos Humanos em Burundi e Mianmar e membro da extinta Subcomissão para a Proteção e Promoção dos Direitos Humanos da ONU; Maria Rita Kehl é psicanalista e escritora; Rosa Maria Cardoso da Cunha é advogada, tendo atuado na ditadura em favor de diversos presos políticos, inclusiva a Presidente Dilma Roussef; José Paulo Cavalcanti Filho é advogado e foi Ministro da Justiça do Governo Sarney; José Carlos Dias advogou em prol de presos políticos na ditadura, foi Ministro da Justiça do Governo FHC e é membro da Comissão Justiça e Paz de São Paulo; por fim, Cláudio Fonteles integrou a Ação Popular durante a ditadura, foi Procurador-Geral da República e é membro do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana. Foram também nomeados assessores da CNV o Subprocurador-Geral da República Wagner Gonçalves e o Desembargador Federal aposentado Manoel Lauro Wolkmer de Castilho.

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Não nos alongaremos neste ponto: mas é preciso deixar claro que o trabalho de uma comissão da verdade deve estar voltado para os crimes praticados com a utilização do aparato estatal. A tentativa de se estender a expressão “graves violações de direitos humanos” para outros crimes ou para o exercício do legítimo direito de resistência perde de vista a noção de que tais graves violações devem ter sido praticadas de forma sistemática, com a utilização do poder político. Além disto, ela invoca uma perigosa “teoria dos dois demônios” que ignora a complexidade dos embates políticos presentes em um regime ditatorial.

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(5)

Tradução livre: “Órgãos não judiciais não devem e não

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Este é o sítio do projeto: < http://www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/sys/start. htm?tpl=home>. É preciso destacar que há outras formas de se comprometer o direito à memória e à verdade, como a ocupação de espaços físicos. Para tanto, cf. SOARES e QUINALHA (2011, p, 250 e ss).

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Para um aprofundamento da noção de justiça de transição, desde seu surgimento, cf. TEITEL (2000); ELSTER (2004); BRITO (2009, p. 56-83); Q U I N A L H A (2012); MEYER (2012, p. 225 e ss); REÁTEGUI (2012).

(8)

Destaca do PNDH-3: “A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio, como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro” (BRASIL, SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS HUMANOS DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA, 2010, p. 170). Sobre o PNDH-3, a democracia e as exigências de justiça, ver CATTONI DE OLIVEIRA e GOMES, 2011, p. 95-101.

(9)

Para uma crítica à forma como aprovado o projeto que levou à Lei n° 12.528/2011, cf. SAFATLE (2011, p. 1).

(10)

Este é um diferencial, pelo menos legal, da CNV brasileira para outras comissões ao redor do mundo. Hayner (2001, p. 107) menciona que várias comissões tiveram tal poder, mas poucas a exerceram: El Salvador, Chad, a segunda

(11)

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COMISSÃO NACIONAL DA VERDADE E SIGILO: DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE?

comissão do Congresso Nacional Africano e a CVR, também sul-africana. Hayner ressalta os riscos de falsas acusações, mas dá prevalência para a busca pela verdade. “Art. 319 - Retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício, ou praticá-lo contra disposição expressa de lei, para satisfazer interesse ou sentimento pessoal:

(12)

Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa”. “Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:

(13)

[...] II - retardar ou deixar de praticar, indevidamente, ato de ofício; [...] IV - negar publicidade aos atos oficiais; [...]”.

Referências BAGGIO, Roberta Camineiro. Justiça de transição como reconhecimento: limites e possibilidades do processo brasileiro. In SANTOS, Boaventura de Souza. ABRÃO, Paulo. SANTOS, Cecília McDowell. TORELLY, Marcelo D. (orgs.). Repressão e memória política no contexto ibero-brasileiro: estudos sobre Brasil, Guatemala, Moçambique, Peru e Portugal. Brasília: Ministério da Justiça, Comissão de Anistia; Portugal: Universidade de Coimbra, Centro de Estudos Sociais, 2010, p. 258-285. BRASIL. Arquidiocese de São Paulo. Projeto Brasil nunca mais. São Paulo: 1985. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos. Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Direito à memória e à verdade. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007. BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Brasília: SDH/PR, 2010. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de descumprimento de preceito fundamental nº 153/DF. Arguente: Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Arguidos: Presidente

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Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus Artigo curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153

Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153(1) Evorah Lusci Costa Cardoso(2) Luís Fernando Matricardi Rodrigues(3)

Resumo: A tese defendida por este amicus curiae é a de que, nos casos em que se observe incompatibilidade entre decisões do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, como o caso da Lei de Anistia, com decisão anterior do STF (ADPF 153) e posterior da Corte Interamericana (Caso Gomes Lund e outros - “Guerrilha do Araguaia” - vs. Brasil), haveria uma lacuna no desenho institucional atual do Supremo Tribunal Federal. Coexistiriam duas decisões válidas, oriundas de órgãos competentes, dispondo contrariamente sobre o mesmo objeto, que careceriam de harmonização não apenas em relação aos seus efeitos no momento de implementação, mas também entre o controle de constitucionalidade realizado pelo STF e o controle de convencionalidade (adequação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos) realizado pela Corte Interamericana. Tal harmonização poderá ser operada por meio de argumentação e fundamentação da decisão do STF pontualmente por ocasião do julgamento dos embargos de declaração da ADPF 153, sem, no entanto, dissolver a necessidade de adoção de mecanismo processual específico que permita que o STF seja provocado para tal harmonização em casos futuros.

(1) Este amicus curiae é baseado em estudo elaborado por alunos e antigos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em disciplina de extensão (Amicus DH), organizada pelo Prof. Dr. Virgílio Afonso da Silva e pela doutoranda Evorah Cardoso. São eles: Cristiane Penhalver Jensen, Daniel Torres de Melo Ribeiro, Jefferson Nascimento, Luís Fernando Matricardi Rodrigues, Mariana Augusta dos Santos Zago, Maybi Rodrigues Mota, Renata Chiarinelli Laurino e Victor Marcel Pinheiro. (2) Doutoranda em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa de São Paulo (FAPESP) e pesquisadora do Núcleo Direito e Democracia do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). (3) Mestrando em Direito pela Universidade de Munique (LMU). Bacharel em Direito pela Universidade de São Paulo (USP). Advogado.

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Cardoso, E. L. C. - Rodrigues, L. F. M.

EXCELENTÍSSIMO SENHOR MINISTRO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, RELATOR DA ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153 Min. Luiz Fux O CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO, entidade representativa dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, inscrita no CNPJ sob o nº 53286548/0001-06, com sede à Rua Riachuelo, 194, CEP: 01007-000, em São Paulo-SP (doc. 01), por seu presidente André Correia Tredezini, vem perante Vossa Excelência, através de seus procuradores devidamente habilitados (doc. 02), nos autos da ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL 153 – sobre a “Lei de Anistia” – manifestar-se na condição de AMICUS CURIAE por ocasião do julgamento dos embargos de declaração opostos pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, com especial interesse no pedido adicional deduzido pela Embargante em petição própria, pelos fundamentos apresentados a seguir.

I Admissibilidade do Centro Acadêmico XI de Agosto para Habilitação como Amicus Curiae A participação do Centro Acadêmico XI de Agosto via amicus curiae no debate acerca da Lei de Anistia na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, corrente neste Supremo Tribunal Federal, e no Caso Gomes Lund (caso Guerrilha do Araguaia) vs. Brasil, de competência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, atende ao propósito de ensino e pesquisa do direito e das instituições jurídicas de forma diferenciada, por buscar intervir qualificadamente no processo de interpretação e aplicação do direito, seja ele doméstico ou internacional, em um tema de extrema relevância para a sociedade, como o tratado neste caso. 42

Nesse sentido, mostra-se significativa a participação do Centro Acadêmico XI de Agosto na presente ação, pois a entidade assume um propósito de ensino de direito e intervenção social diferenciada, baseada no princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão nas universidades (art. 207, caput, Constituição Federal). O Centro Acadêmico XI de Agosto é a entidade representativa dos estudantes da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, associação civil sem fins lucrativos e apartidária, declarada de utilidade pública pela Lei Estadual 3287/55 e pelo Decreto Municipal 3883/38. A entidade possui como seus principais objetivos o aperfeiçoamento constante das condições do ensino jurídico e o desenvolvimento cultural e político dos estudantes de direito (art. 3º “b” do Estatuto Social – doc. 01) e também a luta pelo aperfeiçoamento do direito e das instituições jurídicas, para que toda a população goze de justiça e de igualdade social (art. 3º “h” do Estatuto Social). Também a história política nacional registra sua participação efetiva em grandes eventos políticos. Trata-se de uma das entidades estudantis universitárias mais antigas do país, tendo sido fundada em 11 de agosto de 1903 e com notória relevância no movimento estudantil nacional. Prova disso, tem previsto em seu estatuto o compromisso de organizar e orientar a luta dos estudantes, ao lado do povo, na construção de uma sociedade livre, democrática e sem exploração (art. 3º “e” do Estatuto Social). Considerando a importância do tema da ADPF 153, sobre a “Lei de Anistia”, para a democracia, mostra-se relevante a participação da entidade nesse caso. Destaca-se o fato de que o Centro Acadêmico XI de Agosto já vem estudando e discutindo o tema desta ação entre seus associados por meio principalmente da promoção de eventos, debates e palestras sobre a “Lei de Anistia”. Isso demonstra efetivo interesse da entidade sobre o assunto. A presente manifestação é baseada em estudo elaborado por alunos e antigos alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo em disciplina de extensão (Amicus DH),

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Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153

organizada pelo professor de Direito Constitucional Virgílio Afonso da Silva e pela doutoranda Evorah Cardoso, sem vincular a totalidade do corpo discente. São eles: Cristiane Penhalver Jensen

Mariana Augusta dos Santos Zago

Daniel Torres de Melo Ribeiro

Maybi Rodrigues Mota

Jefferson Nascimento Luís Fernando Matricardi Rodrigues

Renata Chiarinelli Laurino Victor Marcel Pinheiro

Vale ressaltar que o Centro Acadêmico XI de Agosto também participou como amicus curiae em duas ações diretas de inconstitucionalidade que versam sobre tema correlato ao deste caso, nomeadamente, as leis de sigilo de documentos públicos e o acesso à informação – ADI 4077 e ADI 3987. Apoiada nessas razões, entende a Requerente que está legitimada a pleitear o ingresso nos embargos de declaração da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153 na condição de amicus curiae, ademais de atender os critérios de relevância da matéria e representatividade do postulante (art. 7º §2º, da Lei 9.868/99).

II A participação do Amicus Curiae na Fase Recursal de Processo Objetivo: Superveniência de Evento Relevante Descrita a representatividade do Centro Acadêmico XI de Agosto, passa-se então à sua oportunidade como amicus curiae no presente momento processual da APDF, isto é, em sede de recurso de embargos de declaração. Como restará demonstrado, conquanto talvez incomum, o ingresso não é contrário à jurisprudência consolidada por este Supremo Tribunal, sendo, ao revés, especificamente justificado pela superveniência de evento que, pelas consequências fáticas e normativas que traz ao presente julgamento,

tornam-lhe verdadeiramente paradigmático. Em primeiro lugar, reconhece-se a orientação firmada por esta e. Corte no julgamento da ADI 4071-AgR/DF, de relatoria do Min. Menezes Direito, segundo a qual o ingresso de amicus curiae somente pode ser demandado até a liberação do processo pelo Relator para a pauta. O caso desta ADPF, que havia sido incluída em pauta, é outro: após solicitação formal do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil(4) e deliberação do Tribunal para o adiamento do julgamento dos embargos de declaração(5), ela não mais se encontra entre os processos arrolados para a única sessão de julgamento prevista para esta semana, no dia 03/04/2012 (cf. calendário de julgamentos, site do STF). Inexistindo registro formal de sua retirada de pauta, a Requerente apoia-se em precedentes desta Corte acedendo à admissão de terceiros face ao decurso de tempo para julgamento da causa.(6) A admissão da presente manifestação em sede recursal, longe de gerar qualquer tumulto processual, é justificada em razão da relevância das considerações veiculadas por este amicus curiae sobre evento posterior ao acórdão deste e. Tribunal – razão pela qual não é, de modo algum, redundante com os amici curiae já participantes do processo. Isso porque, à decisão pela improcedência da ADPF, que declarou a validade da Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979 (“Lei de Anistia”), em 29 de abril de 2010, seguiu-se a prolação da Sentença no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CrIDH), em 24 de novembro de 2010, condenando o país por violação dos deveres assumidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (CADH). Como se detalhará à frente, embora essa não tenha sido a primeira condenação do Brasil no Sistema Interamericano, ela traz consigo uma peculiaridade: ao declarar a Lei de Anistia brasileira inválida e rechaçar sua aplicação pelo judiciário doméstico, a decisão contraria o que (até o presente momento) é o posicionamento do Supremo Tribunal Federal a respeito. É dizer: mantido o acórdão desta ADPF e a sentença Corte Interamericana em seus termos, coexistirão duas

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decisões válidas, oriundas de órgãos competentes, dispondo contrariamente sobre o mesmo objeto. Este amicus curiae procura atentar para o fato de que no ordenamento jurídico brasileiro inexistem, hoje, instrumentos processuais para lidar diretamente com possíveis resultados antagônicos da rotina decisória de tais cortes. Essa lacuna institucional provoca o sentimento de “inadequação” do pedido da Embargante por um posicionamento do Supremo Tribunal Federal face à sentença da CrIDH em sede de embargos de declaração, como manifestado nos autos pelo Senado Federal e a Procuradoria Geral da República – os quais, contudo, não sugeriram meios alternativos para solucionar o problema. A razão da presente manifestação, assim, está em prover o STF com considerações descritivas e propositivas acerca da questão do conflito, surgido apenas posteriormente à decisão nesta ADPF e expressamente suscitado pela Embargante. Sua discussão na presente fase recursal se justifica circunstancialmente diante da existência de decisão internacional que opera efeito imediato sobre todos os órgãos do Estado brasileiro –incluído o Judiciário –, e institucionalmente face ao dever de, a um só tempo, garantir a consistência do ordenamento jurídico interno e a eficácia da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e da jurisdição da Corte Interamericana, à qual o Brasil aceitou submeter-se. Ante o exposto, tem-se que a presente manifestação deve ser admitida, dado o ineditismo, até aqui, do evento que lhe serve de objeto. A discussão por ela lançada, frisa-se, não causa qualquer tumulto ao processo, senão contribui com considerações ao seu desfecho. Na condição de instrumento promotor da participação da sociedade em questões de grande impacto e relevância social, o instituto do amicus curiae é o veículo democrático por excelência de debates como este, o que só tem a reforçar, em legitimidade, o processo decisório dos tribunais (ADI 3268/RJ, Min. Celso de Mello).

III Estrutura Do Amicus Curiae A tese defendida por este amicus curiae é a de que, nos casos em que se observe incompa44

tibilidade entre decisões do Supremo Tribunal Federal e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, haveria uma lacuna no desenho institucional atual do Supremo Tribunal Federal. Coexistiriam duas decisões válidas, oriundas de órgãos competentes, dispondo contrariamente sobre o mesmo objeto, que careceriam de harmonização não apenas em relação aos seus efeitos no momento de implementação, mas, principalmente, entre o controle de constitucionalidade realizado pelo Supremo Tribunal Federal e o controle de convencionalidade (adequação à Convenção Americana sobre Direitos Humanos) realizado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Este amicus curiae entende que esta harmonização poderia ser feita de duas formas: por meio da argumentação e fundamentação das decisões do Supremo Tribunal Federal, ou por meio de mecanismo processual específico, ainda inexistente, que permitiria que o tribunal fosse provocado a reavaliar suas decisões em diálogo com a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos. No presente caso acerca da Lei de Anistia, observa-se decisão anterior do Supremo Tribunal Federal (ADPF 153) e posterior da Corte Interamericana de Direitos Humanos [Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil], sendo que, entre elas, este amicus curiae constata que ainda não houve harmonização. Ela poderá ser operada por meio de argumentação e fundamentação da decisão do Supremo Tribunal Federal pontualmente por ocasião do julgamento destes embargos de declaração, sem, no entanto, dissolver a necessidade de adoção de mecanismo processual específico para tal harmonização em casos futuros. 1 Lei de Anistia, Supremo Tribunal Federal e Corte Interamericana de Direitos Humanos A Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao avaliar a “convencionalidade”(7) da Lei de Anistia e dos demais atos e políticas governamentais do Estado brasileiro no Caso Gomes Lund vs. Brasil(8), além de confirmar seus standards de proteção de direitos humanos para a região a respeito de crimes cometidos durante

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ditaduras (como seus parâmetros de interpretação e aplicação do direito à verdade, devido processo legal etc.), obriga o Estado brasileiro a reavaliar o tratamento jurídico dedicado a uma série desses crimes. Essas obrigações são destinadas a todos os órgãos do Estado brasileiro, inclusive ao Poder Judiciário na interpretação dada até então aos efeitos da Lei de Anistia. Destacam-se entre as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos aquelas que produzem efeitos mais direcionados ao Poder Judiciário: 1. A Corte Interamericana reconhece que a Lei de Anistia brasileira é “inconvencional”, isto é, contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, e que o Estado brasileiro é responsável internacionalmente pela interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia: 3. As disposições da Lei de Anistia brasileira que impedem a investigação e sanção de graves violações de direitos humanos são incompatíveis com a Convenção Americana, carecem de efeitos jurídicos e não podem seguir representando um obstáculo para a investigação dos fatos do presente caso, nem para a identificação e punição dos responsáveis, e tampouco podem ter igual ou semelhante impacto a respeito de outros casos de graves violações de direitos humanos consagrados na Convenção Americana ocorridos no Brasil. 5. O Estado descumpriu a obrigação de adequar seu direito interno à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, contida em seu artigo 2, em relação aos artigos 8.1, 25 e 1.1 do mesmo instrumento, como consequência da interpretação e aplicação que foi dada à Lei de Anistia a respeito de graves violações de direitos humanos. Da mesma maneira, o Estado é responsável pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial previstos nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação aos artigos 1.1 e 2 desse instrumento, pela falta de investigação dos fatos do presente caso, bem como pela falta de julgamento e sanção dos

responsáveis, em prejuízo dos familiares das pessoas desaparecidas e da pessoa executada, indicados nos parágrafos 180 e 181 da presente Sentença, nos termos dos parágrafos 137 a 182 da mesma.

2. Reconhece, ainda, que o Estado brasileiro é responsável pelo desaparecimento forçado de pessoas e que deve alterar sua legislação, tipificando este delito. Enquanto esse delito não é tipificado, deve aplicar todos os mecanismos existentes no direito brasileiro para o seu julgamento e punição: 4. O Estado é responsável pelo desaparecimento forçado e, portanto, pela violação dos direitos ao reconhecimento da personalidade jurídica, à vida, à integridade pessoal e à liberdade pessoal, estabelecidos nos artigos 3, 4, 5 e 7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em relação com o artigo 1.1 desse instrumento, em prejuízo das pessoas indicadas no parágrafo 125 da presente Sentença, em conformidade com o exposto nos parágrafos 101 a 125 da mesma. 15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno.

3. Reconhece que o Estado brasileiro é obrigado não apenas a garantir os direitos de buscar e receber informações e à verdade, mas também a responsabilizar penalmente indivíduos que cometeram crimes: 6. O Estado é responsável pela violação do direito à liberdade de pensamento e de expressão consagrado no artigo 13 da Convenção Americana sobre Direitos

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Humanos, em relação com os artigos 1.1, 8.1 e 25 desse instrumento, pela afetação do direito a buscar e a receber informação, bem como do direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. (...). 297. Quanto à criação de uma Comissão da Verdade, a Corte considera que se trata de um mecanismo importante, entre outros aspectos, para cumprir a obrigação do Estado de garantir o direito de conhecer a verdade sobre o ocorrido. Com efeito, o estabelecimento de uma Comissão da Verdade, dependendo do objeto, do procedimento, da estrutura e da finalidade de seu mandato, pode contribuir para a construção e preservação da memória histórica, o esclarecimento de fatos e a determinação de responsabilidades institucionais, sociais e políticas em determinados períodos históricos de uma sociedade. Por isso, o Tribunal valora a iniciativa de criação da Comissão Nacional da Verdade e exorta o Estado a implementá-la, em conformidade com critérios de independência, idoneidade e transparência na seleção de seus membros, assim como a dotá-la de recursos e atribuições que lhe possibilitem cumprir eficazmente com seu mandato. A Corte julga pertinente, no entanto, destacar que as atividades e informações que, eventualmente, recolha essa Comissão, não substituem a obrigação do Estado de estabelecer a verdade e assegurar a determinação judicial de responsabilidades individuais, através dos processos judiciais penais.

Essas determinações da Corte Interamericana em sua sentença no Caso Gomes Lund vs. Brasil têm efeitos sobre as decisões judiciais proferidas pelos tribunais brasileiros. A interpretação dada pelos tribunais brasileiros à “Lei de Anistia”, ao compreender como anistiados determinados crimes e impossibilitar processos judiciais para a sua investigação, julgamento e punição, é contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O presente amicus curiae entende que a interpretação usual dada à Lei de Anistia promove uma política de esquecimento em relação aos 46

crimes cometidos durante o período da ditadura no Brasil, o que gera uma série de efeitos que perduram até os dias de hoje. Por ser a interpretação dada à anistia “ampla, geral e irrestrita”, ela impossibilita não apenas a punição penal dos autores destes ilícitos, como também dificulta qualquer forma de responsabilização com efeitos civis ou declaratórios desses autores, além da busca e acesso à informação e reconstituição da verdade. Da forma como concebida, a anistia “ampla, geral e irrestrita” na prática serviu para impedir uma série de respostas constitucionais do Estado brasileiro a expectativas sociais de tratamento dos crimes cometidos no período da ditadura, retirando qualquer possibilidade de se discutir abertamente, num contexto de “redemocratização”, as condutas havidas no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979. Criou-se um tabu jurídico, que formalmente justificou o término precoce de todo debate disposto a entender o que ocorreu. A Lei de Anistia, portanto, impede o Estado brasileiro de exercer uma série de respostas a estes crimes. Os efeitos da “Lei de Anistia” ultrapassam o da responsabilização e punição penal daqueles que cometeram crimes no período da ditadura – aspecto mais destacado no debate público e jurídico sobre a lei. É preciso atentar para as consequências de natureza civil e declaratória de responsabilidade que a interpretação “ampla, geral e irrestrita” da lei tem obstado, bem como para os efeitos de tal interpretação sobre o direito à verdade e ao acesso à informação. Essa interpretação e aplicação da Lei de Anistia tem sido questionada nos últimos anos por meio de ações judiciais. Familiares das vítimas demandaram a responsabilização civil, em seus efeitos declaratórios(9), dos autores de determinados crimes cometidos no período da ditadura; outras ações judiciais promovidas pelo Ministério Público Federal (MPF) baseiam-se na imprescritibilidade de ações de ressarcimento ao erário público para cobrar dos autores dos crimes as indenizações que têm sido pagas pela União às vítimas e familiares(10) e, recentemente, também demandam a responsabilização penal(11) desses autores.

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Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153

No Supremo Tribunal Federal (STF) também existem reflexos do debate sobre a Lei da Anistia em algumas ações judiciais, como é o caso das ações diretas de inconstitucionalidade nº 4077 e nº 3987 (sobre sigilo de documentos públicos)(12) e da Extradição nº 974.(13) A principal ação judicial no tema, no entanto, é esta Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153. Sua petição inicial solicitava ao tribunal que a Lei de Anistia fosse declarada incompatível com a Constituição Federal de 1988. Tal pedido partiu do pressuposto de que haveria pelo menos duas interpretações possíveis da lei, sendo que apenas a interpretação mais restritiva – que se ajusta aos compromissos assumidos pelo Brasil internacionalmente e que respeita os direitos fundamentais reconhecidos e garantidos pelo seu ordenamento jurídico – seria constitucional. A despeito da decisão do Supremo Tribunal Federal de manter a vigência da Lei de Anistia e sua interpretação usual como sendo constitucionais, este amicus curiae considera que o debate judicial acerca da interpretação e aplicação dessa lei ainda não se encerrou. Diversos processos judiciais que questionam a Lei de Anistia ainda tramitam sem decisão definitiva em diferentes níveis do Poder Judiciário brasileiro e a eles se soma a perspectiva de diálogo jurisprudencial com a superveniente sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund vs. Brasil. Isso porque, reitera-se, a sentença da Corte Interamericana estabelece obrigações ao Estado brasileiro como um todo. Todas as instâncias do judiciário, assim como o Ministério Público, são responsáveis pela implementação da sentença da Corte Interamericana, sob pena de responsabilização do Estado brasileiro por não cumprimento. Vale ressaltar que o Estado brasileiro deve prestar contas sobre os avanços obtidos em relação às determinações da Corte Interamericana. O direito a um recurso efetivo, conforme entendimento jurisprudencial da Corte Interamericana, não tem sido observado na estrita aplicação da Lei de Anistia em sua interpretação usual. O próprio Estado brasileiro já apontou que a investigação penal dos responsáveis pelos

desaparecimentos forçados das vítimas no Caso Gomes Lund vs. Brasil e pela execução de Maria Lucia Petit da Silva estaria impossibilitada pela Lei de Anistia ainda vigente.(14) A afirmação do Brasil, em sede de contestação ao Caso Gomes Lund vs. Brasil, de que um julgamento favorável à ADPF 153 teria eficácia erga omnes, efeito vinculante e, possivelmente, efeitos ex tunc(15) também reforça a percepção de que o próprio Estado reconhecia o óbice ao direito a um recurso efetivo representado pela Lei de Anistia e pela decisão do STF. Ao decidir a ADPF 153, o STF manteve tal restrição injustificada do direito a um recurso efetivo. A norma erigida do texto legal que entende anistiados os crimes comuns praticados no lapso temporal indicado é, no entendimento deste amicus curiae, não apenas “inconvencional”, mas também inconstitucional, ao contrário do que decidido pelo STF, porquanto viola direitos fundamentais constitucionais correlatos aos que a Corte Interamericana reconheceu como violados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Entre outros, a proteção à vida (art. 5º, caput, CF), ao devido processo legal (art. 5º LIV CF), ao acesso à informação e direito à verdade (art. 5º XIV CF) e à dignidade humana (art. 1º III CF). O judiciário brasileiro em suas várias instâncias tem, portanto, o papel fundamental de reavaliar a interpretação e aplicação da Lei de Anistia, a partir da sentença da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund vs. Brasil e também, como defendido por este amicus curiae, das diferentes respostas judiciais, além da responsabilização penal, que podem ser dadas aos casos de violações de direitos em crimes cometidos durante o período da ditadura. A incorporação da jurisprudência do Sistema Interamericano precisa ser pensada em todos os âmbitos da engrenagem institucional doméstica, inclusive no Poder Judiciário. Este amicus curiae entende que esta incorporação judicial poderia ser feita, pelo menos, de duas maneiras: uma circunstancial, por meio da argumentação e fundamentação das decisões judiciais, e outra por mecanismos institucionais especialmente previstos para facilitar ou provocar essa incorporação.

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2 Incorporação judicial da jurisprudência do sistema interamericano por meio da argumentação e fundamentação nestes embargos de declaração A jurisprudência da Comissão e Corte interamericanas deve integrar o ônus argumentativo dos tribunais domésticos, pois são os órgãos do sistema interamericano responsáveis pela interpretação e aplicação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. O Estado brasileiro, por ter ratificado a Convenção Americana e aceitado expressamente a jurisdição da Corte Interamericana, é obrigado a incorporar essa jurisprudência. O STF pode aproveitar da experiência comparada de outros tribunais de cúpula de países-membro do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Assim como a Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina, o STF pode reconhecer jurisprudencialmente as decisões da Comissão e da Corte interamericanas(16). O mesmo é defendido pela própria jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ao dizer que os Estados não se vinculam apenas ao texto da Convenção Americana, mas também à interpretação que é produzida sobre ela. Isso justifica, por exemplo, a responsabilização internacional dos Estados, por decisões judiciais proferidas com base em normativa doméstica contrária à Convenção Americana e à interpretação dada a ela(17). A Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina pode servir como referência também por ter julgado inconstitucionais as leis de anistia nº 23.492 de 24/12/1986 (“Punto Final”) e nº 23.521 de 08/06/1987 (“Obediencia Debida”) (18). Os ministros que compuseram a maioria na sentença consideraram os crimes praticados como crimes contra a humanidade. A consequência mais importante disso é sua imprescritibilidade. Eles também dialogaram com a decisão da Corte Interamericana no Caso Barrios Altos vs. Peru(19). Mesmo o voto dissidente do ministro Fayt dialoga com a decisão da Corte Interamericana, justificando a sua não aplicação no Caso Simón por conta da diferença de contexto em que as leis de anistia foram promulgadas no Peru e na Argentina, pois em Barrios Altos as leis 48

eram de autoanistia, enquanto que na Argentina foram criadas durante o regime democrático do presidente Raúl Alfonsín. Os ministros da Corte Suprema argentina tratam, portanto, de dois pontos levantados pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos, “crimes contra a humanidade” e a incompatibilidade com as leis de anistia. Interessante notar como os ministros incorporam nas suas linhas argumentativas a decisão Barrios Altos, seja para defender, seja para afastar a sua aplicação ao caso argentino. A jurisprudência do Sistema Interamericano passa a integrar a fundamentação realizada pelo tribunais constitucionais. Outro ponto interessante é que o Caso Barrios Altos era contra o Peru, não contra a Argentina, emesmo assim a Corte Suprema Argentina o considerou como relevante para a fundamentação da sentença. A decisão da Corte Suprema argentina ilustra como é possível que a interpretação da Convenção Americana, produzida pela Corte Interamericana, seja utilizada como precedente nas cortes constitucionais. Mais do que isso, mostra como países com contextos políticos (regimes autoritários) e jurídicos (leis de anistia), além de problemas semelhantes (desaparições forçadas, tortura, execuções extrajudiciais etc.) podem ser alvo direta ou indiretamente da jurisprudência do Sistema Interamericano. Uma vez que a Corte Interamericana já formou o precedente de que as leis de anistia são incompatíveis com a Convenção Americana e com o direito internacional geral quando se trata de crimes contra a humanidade, não seria mais necessário que outros casos iguais fossem levados à sua apreciação em busca de uma solução individualizada. Daí a importância da receptividade, pelo Poder Judiciá­ rio dos países-membros, à utilização do direito internacional e ao diálogo com a jurisprudência de organismos internacionais, para evitar a responsabilização futura do país por tema que já foi objeto de apreciação do Sistema Interamericano. A ADPF 153 não é o único caso do STF que remete ao Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Em casos ainda não julgados, como leis de sigilo de documentos públicos(20) e reconhecimento da propriedade de comunida-

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des tradicionais indígenas e quilombolas(21), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos poderia ser interpretada e as decisões da Comissão e Corte Interamericanas já proferidas nesses temas poderiam ser incorporadas pelo STF no seu processo de interpretação. E já existe pelo menos um precedente bastante claro do STF nesse sentido: o caso sobre exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista (RE 511.961/SP), que possui fundamentação integralmente consonante com a Convenção Americana e a interpretação dada a ela pela Corte Interamericana(22). A decisão é mencionada na própria ementa do RE 511.961/SP: 8. JURISPRUDÊNCIA DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMNAOS. POSIÇÃO DA ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS – OEA. A Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu decisão no dia 13 de novembro de 1985, declarando que a obrigatoriedade do diploma universitário e da inscrição em ordem profissional para o exercício da profissão de jornalista viola o art. 13 da Convenção Americana de Direitos Humanos, que protege a liberdade de expressão em sentido amplo (caso “La colegiación obligatoria de periodistas” – Opinião Consultiva OC-5/85, de 13 de novembro de 1985). Também a Organização dos Estados Americanos – OEA, por meio da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, entende que a exigência do diploma universitário em jornalismo, como condição obrigatória para o exercício dessa profissão, viola o direito à liberdade de expressão (Informe Anual da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 25 de fevereiro de 2009).

O que se pode observar do contraste da argumentação do STF na decisão sobre exigência de diploma para exercício da profissão de jornalista com a decisão sobre a Lei de Anistia é que o STF ainda parece fazer uso seletivo do direito internacional e da jurisprudência do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Em uma decisão com 7 votos pela improcedência da ADPF 153 e 2 favoráveis, poucos

foram os ministros que se engajaram nesse diálogo com o Sistema Interamericano e com o direito internacional. Especificamente em relação à jurisprudência do Sistema Interamericano, pronunciaramse os ministros Lewandowski(23) e Celso de Mello(24), respectivamente, pelo provimento parcial e pela improcedência da ação. Suas manifestações foram em temas diversos: o ministro Lewandowski menciona entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre inafastabilidade da jurisdição, enquanto o ministro Celso de Mello afasta a aplicação da jurisprudência da Corte Interamericana à Lei de Anistia brasileira por entender que esta não se enquadra na categoria de “autoanistias”, repudiadas pela corte. No entanto, a Corte Interamericana decidiu no Caso Gomes Lund vs. Brasil que a Lei de Anistia brasileira é, sim, contrária à Convenção Americana. Já com relação aos argumentos de direito internacional, apresentados de modo geral e abreviado, manifestaram-se apenas os ministros Eros Grau(25), Lewandowski(26), Celso de Mello(27) e Gilmar Mendes(28). À exceção do ministro Celso de Mello, os demais ministros reconhecem que estão mencionando o argumento de direito internacional “parenteticamente”, “sem adentrar” ou como “um parêntese” ao longo da argumentação de seus votos – donde se extrai que essas manifestações não consolidam posicionamento autenticamente majoritário no Tribunal em relação ao argumento de direito internacional. Ademais, nem mesmo os fundamentos normativos coincidem: enquanto o ministro Eros Grau refere-se à não aplicação da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, acompanhado pelo ministro Gilmar Mendes (sem especificar sobre quais “tratados” faz referência), o ministro Celso de Mello aborda a não aplicação da Convenção das Nações Unidas sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade. Não houve, portanto, deliberação ou maioria formada entre os ministros acerca do papel da jurisprudência do sistema interamericano na decisão da ADPF 153, nem com relação aos

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argumentos de direito internacional afastados de sua aplicação neste caso. Sendo essas todas as menções realizadas pelos ministros do STF em relação ao sistema interamericano e a argumentos de direito internacional ao longo da ADPF 153, a Corte Interamericana, ao avaliar a decisão do STF, está correta ao dizer que houve clara omissão por parte do tribunal em realizar qualquer interpretação a partir da Convenção Americana, restringindo-se ao controle de constitucionalidade: 49. (…) En el presente caso, la Corte Interamericana no está llamada a realizar un examen de la Ley de Amnistía en relación con la Constitución Nacional del Estado, cuestión de derecho interno que no le compete, (...) sino que debe realizar el control de convencionalidad, es decir, el análisis de la alegada incompatibilidad de aquella ley con las obligaciones internacionales de Brasil contenidas en la Convención Americana.” 177. En el presente caso, el Tribunal observa que no fue ejercido el control de convencionalidad por las autoridades jurisdiccionales del Estado y que, por el contrario, la decisión del Supremo Tribunal Federal confirmó la validez de la interpretación de la Ley de Amnistía sin considerar las obligaciones internacionales de Brasil derivadas del derecho internacional (...)”. (29)

E é justamente essa omissão do Supremo Tribunal Federal que intersecciona as alegações lançadas nos embargos de declaração opostos à presente ADPF e, mais tarde, com a ciência da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, especifica seu pedido de posicionamento do STF frente a mesma – a qual, no exercício de sua competência de interpretação da Convenção Americana, considera a Lei de Anistia contrária à Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Se o Supremo Tribunal Federal não se manifestar a respeito dessa sentença e reavaliar o seu controle de constitucionalidade acerca da Lei de Anistia, o Estado brasileiro permanecerá em situação de responsabilidade internacional 50

por violar a Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Mais do que isso, o Supremo Tribunal Federal será responsável pela manutenção dessa situação de violação, pois os demais órgãos do Estado brasileiro, incluídas as demais instâncias do Poder Judiciário e o Ministério Público, permanecerão diretamente obrigados, a despeito do acórdão lavrado nesta ADPF 153, a atender as determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos no Caso Gomes Lund vs. Brasil. No limite, o não cumprimento das decisões da Corte Interamericana levaria a um impasse institucional que só poderia ser resolvido com a denúncia do Estado brasileiro à Convenção(30) – a qual, contudo, ainda assim não eliminaria a responsabilidade internacional brasileira para o caso presente, nos termos do art. 78 (2) CADH. Amparado no pedido, pela Embargante, de colmatação das omissões na decisão proferida por esta Corte, então instanciado pelo acréscimo feito em nova petição, este amicus curiae pleiteia portanto que o Supremo Tribunal Federal valhase da oportunidade processual desses embargos de declaração para incorporar, por meio da argumentação e fundamentação de sua decisão, a interpretação realizada pela Corte Interamericana da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Sem prejuízo de envidar esforços para, em casos futuros, dispor de mecanismo processual adequado à compatibilização de suas decisões, em diálogo com a jurisprudência do Sistema Interamericano. 3 Necessidade de mecanismo processual adequado para a incorporação judicial da jurisprudência do Sistema Interamericano no Supremo Tribunal Federal As decisões da Corte e Comissão interamericanas não se restringem à interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e à estipulação de indenização de vítimas e familiares. Elas apresentam uma série de medidas que refletem no trabalho do judiciário, como obrigação de investigar, julgar, punir, assim como outras medidas de satisfação e garantias de não repetição, que exigem alterações em políticas públicas e na legislação, envolvendo órgãos do executivo e legislativo. Justamente

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por isso esbarram em entraves administrativos, organizacionais e institucionais dos vários entes da federação e dos Poderes. Na ausência de legislação brasileira que determine o procedimento de implementação das medidas presentes da jurisprudência do Sistema Interamericano(31), cada órgão tem a responsabilidade de criar soluções institucionais para o seu cumprimento. Também neste caso as soluções encontradas por outros países membros do sistema interamericano de direitos humanos em sua engrenagem institucional doméstica podem servir como reflexão para as deficiências institucionais brasileiras(32). O Poder Judiciário também tem, portanto, obrigação em sua gestão administrativa de criar mecanismos que facilitem a incorporação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos(33). No entanto, como afirmado, o Supremo Tribunal Federal não dispõe atualmente de qualquer mecanismo de reavaliação de suas decisões a partir das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Talvez nesta ADPF 153 fique mais evidente o conflito entre a decisão sustentada até aqui pelo STF e a tomada posteriormente pela Corte Interamericana (muito embora o relatório da Comissão Interamericana sobre o Caso Gomes Lund já recomendasse uma série de medidas com as quais o STF poderia ter dialogado(34)). Os embargos de declaração opostos na presente ADPF podem não ser vistos, à guisa do defendido pelo Senado Federal e Procuradoria Geral da União, como o mecanismo processual mais apropriado para esse debate.

No entanto, sobretudo por ser órgão de cúpula do Poder Judiciário e operador do controle concentrado de constitucionalidade, é preciso repensar também o desenho institucional do Supremo Tribunal Federal para possibilitar o diálogo de sua jurisprudência com decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos. Decisões judiciais de instâncias domésticas inferiores que não dialoguem com a jurisprudência do Sistema Interamericano poderão, no limite, ainda ser reavaliadas por instâncias superiores. Quando o próprio Supremo Tribunal Federal decide de modo contrário à jurisprudência do sistema interamericano, é preciso disponibilizar mecanismo processual adequado à provocação do Tribunal, para que dialogue com essa jurisprudência. Caso entenda este Supremo Tribunal Federal não ser o recurso de embargos de declaração a sede ideal para o debate que alcança o desenho institucional sobre a sentença da Corte Interamericana no Caso Gomes Lund vs. Brasil, cumpre reconhecer que ficam pendentes essas reformas na engrenagem institucional doméstica, fundamentais para a adequada harmonização do direito doméstico com o direito internacional em casos futuros. Esses mecanismos processuais específicos, no Supremo Tribunal Federal, garantiriam a coerência não apenas entre os efeitos emanados pelas decisões do tribunal e do sistema interamericano de direitos humanos durante sua implementação, mas também a coerência argumentativa e normativa desenvolvida entre os controles de constitucionalidade e convencionalidade realizados por cada um.

IV Pedido do AMICUS CURIAE Diante de todo o exposto, requer-se: (a) a admissão, na presente fase da ADPF 153, do Centro Acadêmico XI de Agosto na qualidade de amicus curiae, com fundamento no art. 7º, § 2º, da Lei nº 9.868/99, autuando-se a presente manifestação junto aos embargos de declaração; (b) subsidiariamente, entenda o e. Relator de modo diverso, a juntada por linha da presente manifestação, convicto da relevância dos argumentos por ela trazidos à sua apreciação; (c) que se manifeste esta e. Suprema Corte quanto ao pedido feito pela Embargante sobre a executoriedade, no direito interno, da sentença prolatada pela Corte Interamericana de Direitos Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 41-56, agosto/2012

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Humanos no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, de 24 de novembro de 2010; (d) reconhecida a saliente incompatibilidade entre a referida sentença internacional com o acórdão lavrado pelo Supremo Tribunal Federal, que seja o controle de constitucionalidade desta ADPF harmonizado ao controle de convencionalidade da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil, de 24 de novembro de 2010, colmatando, assim, as lacunas no acórdão recorrido, tal como pontuadas pela Embargante e contextualizadas por este amicus curiae. Termos em que pede deferimento. São Paulo, 2 de abril de 2012.

André Correia Tredezini Presidente do CENTRO ACADÊMICO XI DE AGOSTO Evorah Lusci Costa Cardoso Organizadora da disciplina Amicus DH OAB/SP n° 270.611

Notas “O CONSELHO FEDERAL DA ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL - CFOAB, Impetrante da presente Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 153, vem à presença de V. Exa., requerer ADIAMENTO do julgamento dos Embargos de Declaração constantes da Pauta do dia 22/03. Termos em que, PEDE DEFERIMENTO. Brasília, 21 de março de 2012.” (Cf. última peça eletrônica disponibilizada, ADPF 153, site do STF).

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“O Tribunal, por unanimidade, deliberou adiar o julgamento por uma sessão. Votou o Presidente, Ministro Cezar Peluso. Impedido o Senhor Ministro Dias Toffoli. Ausentes, neste adiamento, os Senhores Ministros Gilmar Mendes e Joaquim Barbosa. Plenário, 22.03.2012.” (Cf. último andamento Processual da ADPF 153, site do STF).

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“PEDIDO DE INTERVENÇÃO NOS AUTOS COMO AMICUS CURIAE. (...) PEDIDO REALIZADO MESMO QUE APÓS O ENCERRAMENTO PARA MANIFESTAÇÃO DE TERCEIROS DEVE SER RECONHECIDO, DEVIDO O DECURSO DE TEMPO PARA JULGAMENTO DA CAUSA. PEDIDO DEFERIDO.” “5. (...) pelo grande número de processos em pauta aguardando julgamento o presente feito ainda não pode ser julgado, o que permite a acolhimento do pleito de intervenção como amicus curiae, mesmo após o transcurso de prazo para manifestação” (RE 567110/AC, Min. Rel. Carmen Lucia,

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Luís Fernando Matricardi Rodrigues Aluno da disciplina Amicus DH OAB/SP n° 305.178

j. 05/08/2010). O juiz Sergio García Ramírez, em diversas oportunidades, aproxima o papel desempenhado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao de uma corte constitucional, pois exerce o “controle de convencionalidade” (conformidade segundo a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), assim como as cortes constitucionais realizam o controle de constitucionalidade. Ver e.g. Caso Vargas Areco vs. Paraguai. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 155; Caso Trabalhadores Cassados do Congresso (Aguado Alfaro e outros) vs. Peru. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 24/11/2006, Série C, no. 158, voto separado do Juiz Sergio García Ramírez; Caso del Penal Miguel Castro Castro vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 25/11/2006, Série C, no. 160. Ainda sobre o controle de convencionalidade pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, ver também Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 26/09/2006, Série C, no. 154, § 124; Caso La Cantuta vs. Peru. Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 29/11/2006, Série C, no. 162, § 173; Caso Heliodoro Portugal vs. Panamá. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 12/08/2008, Série C, no. 186, § 180. Ver também Carolina de Campos Melo, “Transitional Justice in South America: The Role of the Inter-American Court of Human Rights”, in: Revista CEJIL, Ano IV, n. 5, dec. 2009, p. 88.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. Exceções preliminares, mérito, reparações e custas. Sentença de 24/11/2010, Série C No. 219.

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O caso da Família Teles trata-se de ação declaratória proposta por Janaina de Almeida Teles, Edson Luis de Almeida Teles, César Augusto Teles, Maria Amélia de Almeida Teles e Criméia Alice Schmidt de Almeida em face de Carlos Alberto Brilhante Ustra, alegando terem sido vítimas de tortura durante o regime militar. A sentença acolheu e julgou procedente a ação declaratória, reconhecendo que “entre eles [os autores] e o réu Carlos Alberto Brilhante Ustra existe relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de ato ilícito, gerador de danos morais”. “Basta ler a Lei nº 6.683/79 para verificar que, no que diz respeito à anistia, seu campo de incidência é exclusivamente penal.” MM. Juiz de Direito Gustavo Santini Teodoro (Processo nº 583.00.2005.202853-5), 23ª Vara Cível de São Paulo/Capital, em 07/10/2008.

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O MPF, por sua vez, propôs Ação Civil Pública em face da União Federal, de Ustra e de Audir Santos Maciel. Em face destes dois últimos requer-se (i) a perda da função pública que eventualmente exerçam e ainda sejam impedidos de investidura em qualquer função pública, (ii) a reparação pelos danos morais coletivos, (iii) a reparação regressiva pelos atos praticados no comando do DOI/CODI, (iv) a declaração da existência de responsabilidade pessoal. Em face da União, requer-se a declaração de existência da obrigação do exército de tornar públicas as informações sobre o DOI/CODI do período de 1970 a 1985 e a omissão em promover as ações regressivas pelas indenizações das vítimas e familiares que sofreram danos decorrentes dos atos praticados no período da ditadura. Esta ação foi extinta sem julgamento do mérito. Segundo o MPF, “a sentença aponta como um dos motivos para o indeferimento o fato da morte ter ocorrido ‘há muito passado’, o que ‘por si só não originaria a alegada violação aos direitos humanos suficiente a ser reparada à toda a coletividade’”. Após a decisão da ADPF 153 pelo STF, a ação civil pública foi julgada improcedente nos pedidos de condenação dos réus à reparação, perda de funções públicas e não conhece os demais pedidos, extinguindo o processo sem julgamento do mérito. Sobre os efeitos da ADPF 153 no caso: “De acordo com a interpretação adotada no julgamento da assaz citada ADPF n. 153, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, nos dias 28 e 29 de abril de 2010, decidiu por maioria, com eficácia vinculante para todos, que a anistia concedida por meio desses dispositivos é ampla, geral e irrestrita, produzindo o efeito jurídico de apagar todas as consequências (cíveis e criminais) dos atos anistiados.” E desconsidera um possível conflito com a Corte Interamericana em uma sentença, então, futura: “A possibilidade de condenação pela Corte Interamericana é irrelevante sob o prisma jurídico porque a autoridade de seus arestos foi reconhecida pelo Brasil plenamente em 2002, por meio do Decreto 4.463, de 8 de novembro de 2002, apenas para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998.” MM. Juiz Federal Clécio Braschi (Processo n. 2008.61.00.011414-5) 8ª Vara da Justiça Federal em São

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Paulo, em 05/05/2010. Ao apresentar denúncia criminal em face do coronel reformado do Exército Sebastião Curió Rodrigues de Moura, conhecido como major Curió, pelo desaparecimento de pessoas que participaram da Guerrilha do Araguaia, o Ministério Público Federal faz o exercício de dialogar com a sentença da Corte Interamericana e com a decisão da ADPF 153 pelo Supremo Tribunal Federal. “Apesar da indiscutível autonomia do Ministério Público e do Poder Judiciário brasileiros (...) não se pode olvidar que a oferta da presente denúncia, bem como o trâmite desta ação penal estão imbricadas com a obrigação estipulada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos ao Brasil no julgamento do Caso Gomes Lund (...)”. “Os órgãos do Poder Judiciário e do Ministério Público, assim, encontram-se jungidos ao cumprimento dessas determinações, na medida em que a sentença da Corte IDH vincula todos os agentes do Estado, conforme o artigo 68.1 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos ‘Os Estados-Partes na Convenção comprometemse a cumprir a decisão da Corte em todo caso em que forem partes’. O respeito pelo Judiciário e pelo Parquet à autoridade das decisões da Corte IDH, ressalte-se, não afasta ou sequer fragiliza minimamente a soberania do Estado-parte (...).” “[O] julgamento da ADPF [153] não esgotou o controle de validade da Lei de Anistia, pois atestou a compatibilidade da Lei n. 6683/79 com a Constituição Federal brasileira, mas não em relação ao direito internacional. Nessa matéria, como é cediço, cabe à Corte IDH se pronunciar, de forma vinculante, em matéria de controle de convencionalidade. É que para uma norma ser considerada juridicamente válida – em relação aos parâmetros de proteção aos direitos humanos – é indispensável que sobreviva aos dois controles.” “Desse modo, no que se refere à força cogente e ao caráter vinculante da decisão da Corte IDH (caso Gomes Lund e outros vs. Brasil), conclui-se que o fato de se dar cumprimento à decisão da Corte Interamericana – ao que o Brasil se obrigou, em compromisso internacional regularmente introduzido em seu ordenamento jurídico – não implica dizer que a decisão da Corte Interamericana seja superior à do Supremo Tribunal Federal ou que se esteja desautorizando a autoridade do sistema de justiça pátrio.” Ministério Público Federal. Cota introdutória à denúncia em face de Sebastião Curió Rodrigues de Moura Processo nº. 1162-79.2012.4.01.3901, Justiça Federal de Marabá/ PA), em 23/02/2012.

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Os casos referentes a crimes cometidos no período da ditadura militar sofrem com a falta de acesso à informação a documentos públicos da época. A negativa ao acesso à informação de órgãos públicos é em parte respaldada, de modo equivocado, pela regulamentação que possibilitava o sigilo de documentos públicos. Tais ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) foram objeto de amicus curiae também elaborado pelos alunos da disciplina optativa de extensão Amicus DH, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Embora ainda não tenham sido julgadas, estas ADIs podem perder o objeto com a aprovação da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que não apenas dá

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nova regulamentação ao sigilo de documentos públicos, mas também cria uma Lei de Acesso à Informação, até então inexistente no país. Trata-se de extradição de militar uruguaio acusado na Argentina de participar da Operação Condor. A extradição foi decidida pelo pleno do Supremo Tribunal Federal como procedente em parte, no dia 06.08.2009. Foram feitas menções à lei de anistia no voto no ministro relator Marco Aurélio, no sentido de aplicá-la ao caso, assim como nos demais votos, no sentido de refutar sua aplicação. As razões divergentes apresentadas ao voto do ministro relator formaram maioria. Considerou-se a impossibilidade de presunção do homicídio dos desaparecidos e o prolongamento no tempo do crime de sequestro de menor de idade.

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CIDH, Relatório No. 91/08 (mérito), nº. 11.552, Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), Brasil, 31 de outubro de 2008, Apêndice 1, § 98.

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Contestação do Estado do Brasil ao Caso Júlia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), nº 11.552, § 157.

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“11. Que la ya recordada “jerarquía constitucional” de la Convención Americana sobre Derechos Humanos (consid. 5°) ha sido establecida por voluntad expresa del constituyente, “en las condiciones de su vigencia” (art. 75, inc. 22, párr. 2°, esto es, tal como la Convención citada efectivamente rige en el ámbito internacional y considerando particularmente su efectiva aplicación jurisprudencial por los tribunales internacionales competentes para su interpretación y aplicación. De ahí que la aludida jurisprudencia deba servir de guía para la interpretación de los preceptos convencionales en la medida en que el Estado Argentino reconoció la competencia de la Corte Interamericana para conocer en todos los casos relativos a la interpretación y aplicación de la Convención Americana (confr. arts. 75, Constitución Nacional, 62 y 64 Convención Americana y 2°, ley 23.054)”. Corte Suprema de Justicia de la Nación, Caso Giroldi, Horacio D. y otro, 07/04/1995. “21. Que la interpretación Del Pacto debe, además, guiarse por la jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos – uno de cuyos objetivos es la interpretación del Pacto de San José (…)”.Corte Suprema de Justicia de la Nación, Fallo 315:1492, Caso Ekmekdjián v. Sofovich y otros, 07/07/1992. “8. Que la “jerarquía constitucional” de la Convención Americana sobre Derechos Humanos ha sido establecido por voluntad expresa del constituyente, “en las condiciones de su vigencia” (art. 75, inc. 22, párr. 2°) esto es, tal como la convención citada efectivamente rige en el ámbito internacional y considerando particularmente su efectiva aplicación jurisprudencial por los tribunales internacionales competentes para su interpretación y aplicación.-De ahí que la opinión de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos debe servir de guía para la interpretación de los preceptos convencionales en la medida en que el Estado argentino reconoció la competencia de aquélla para conocer en todo los caso relativos a la interpretación y aplicación de la Convención Americana, art. 2° de la ley 23.054 (confr. doctrina de la causa G:342.XXVI, “Giroldi, Horacio D. Y otros s/ recurso de casación”, sentencia del 7 de abril de 1995”.

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Corte Suprema de Justicia de la Nación, Bramajo Hernán J., 12/09/1996 “124. La Corte es consciente que los jueces y tribunales internos están sujetos al imperio de la ley y, por ello, están obligados a aplicar las disposiciones vigentes en el ordenamiento jurídico. Pero cuando un Estado ha ratificado un tratado internacional como la Convención Americana, sus jueces, como parte del aparato del Estado, también están sometidos a ella, lo que les obliga a velar porque los efectos de las disposiciones de la Convención no se vean mermadas por la aplicación de leyes contrarias a su objeto y fin, y que desde un inicio carecen de efectos jurídicos. En otras palabras, el Poder Judicial debe ejercer una especie de “control de convencionalidad” entre las normas jurídicas internas que aplican en los casos concretos y la Convención Americana sobre Derechos Humanos. En esta tarea, el Poder Judicial debe tener en cuenta no solamente el tratado, sino también la interpretación que del mismo ha hecho la Corte Interamericana, intérprete última de la Convención Americana” Almonacid Arellano v. Chile (2006).

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Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina, Caso Simón, 14/06/ 2005.

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Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Barrios Altos vs. Peru. Mérito. Sentença de 14/03/2001. Serie C No. 75.

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ADI 4077 e 3987, nas quais seria possível apresentar o entendimento da Corte Interamericana sobre direito de acesso à informação sob controle do Estado em sua dimensão individual e coletiva, derivado do direito de liberdade de expressão da Convenção Americana, e os limites impostos pela Convenção à sua restrição, como, por exemplo, prazo razoável para que seja dada a resposta e as respostas negativas devem sempre ser motivadas (Opinião Consultiva n. 5/1985; Caso Claude Reyes v. Chile – 2006); a construção jurisprudencial do direito à verdade, que justificaria a abertura dos arquivos da ditadura, tanto em sua dimensão individual, interesse da vítima e dos familiares em conhecerem os fatos em torno da violação de violação de direitos humanos, quanto em sua dimensão coletiva, interesse da sociedade em conhecer a sua história, direito derivado da proteção judicial e das garantias judiciais. Estes e outros argumentos foram desenvolvidos em trabalho coletivo com alunas da Faculdade Direito da USP, na disciplina Amicus DH, organizada pelos professores Diogo R. Coutinho e Virgílio Afonso da Silva, e pela doutoranda Evorah Cardoso, quando foram apresentados dois amici curiae do Centro Acadêmico XI de Agosto ao STF, na ADI 4077 e ADI 3987.

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Caso Raposa Serra do Sol (Pet 3388, entre outros processos de demarcação de terra indígena), ADI 3239 (contra o decreto que regulamenta a demarcação de terra quilombola) e ADI 4032 (contra o Programa Territórios da Cidadania, que destina verbas para a regularização das terras indígenas e quilombolas e a indenização aos que as ocupam), nas quais seria possível apresentar o entendimento da Corte Interamericana sobre o dever dos Estados de conferir tratamento especial à propriedade de comunidades

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Lei de anistia e seletividade do uso do direito internacional no Supremo Tribunal Federal: amicus curiae elaborado por alunos da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo na ADPF 153

tradicionais (indígenas e quilombolas), por serem grupos que se diferenciam da população em geral, pela relação diferenciada que essas comunidades desenvolvem com a terra, não apenas de caráter patrimonial, mas também cultural, espiritual, de integridade, sobrevivência econômica, de preservação e transmissão a futuras gerações, todos elementos de caráter imaterial e ligados à propriedade da terra; sobre o caráter consuetudinário da propriedade da terra, que deve se basear na posse e não no título real sobre a terra, ou seja, a propriedade deve ser reconhecida, ainda que sem registro. (Caso Yake Axa v. Paraguai - 2005; Caso Comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni v. Nicarágua - 2001; Caso Saramaka v. Suriname - 2007). Casos brasileiros já foram admitidos pela Comissão Interamericana, sobre as comunidades quilombolas, Caso Comunidade de Alcântara (Relatório N. 82/06), que trata da omissão do Estado em conferir os títulos de propriedade definitiva às comunidades; sobre comunidades indígenas, Caso Comunidade Indígena Ananas e outros (Relatório N. 80/06), que trata da demora do processo de demarcação de terra e da situação de conflito entre índios e fazendeiros. Um caso brasileiro sobre direito indígena já recebeu relatório de mérito da Comissão Interamericana, reconhecendo a violação do direito à propriedade, entre outros – Caso Yanomami (Relatório de mérito N. 12/85). Corte Interamericana de Direitos Humanos, “La colegiación obligatoria de periodistas”, Opinião Consultiva OC 5/85, de 13/11/1985.

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O ministro Lewandowski menciona essa jurisprudência em seu voto, ao tratar da inafastabilidade da jurisdição: “[A] Corte Interamericana de Direitos Humanos afirmou que os Estados Partes da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – também internalizada pelo Brasil – tem o dever de investigar, ajuizar e punir as violações graves aos direitos humanos, obrigação que nasce a partir do momento da ratificação de seu texto, conforme estabelece o seu art. 1.1. A Corte Interamericana acrescentou, ainda, que o descumprimento dessa obrigação configura uma violação a Convenção, gerando a responsabilidade internacional do Estado, em face da ação ou omissão de quaisquer de seus poderes ou órgãos.” (Voto Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 153, fls. 129)

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O ministro Celso de Mello reconhece e afasta a aplicabilidade da jurisprudência da Corte Interamericana em relação à lei de anistia brasileira. “Reconheco que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em diversos julgamentos – como aqueles proferidos, p. ex., nos casos contra o Peru (‘Barrios Altos’, em 2001, e ‘Loyaza Tamayo’, em 1998) e contra o Chile (“Almonacid Arellano e outros”, em 2006) - , proclamou a absoluta incompatibilidade, com os princípios consagrados na Convenção Americana de Direitos Humanos, das leis nacionais que concederam anistia, unicamente, a agentes estatais, as denominadas “leis de auto-anistia”. A razão dos diversos precedentes firmados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos apóia-se no reconhecimento de que o Pacto de São Jose da Costa Rica não tolera o esquecimento penal de violações aos direitos fundamentais da pessoa humana nem legitima leis nacionais que amparam e protegem criminosos que

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ultrajaram, de modo sistemático, valores essenciais protegidos pela Convenção Americana de Direitos Humanos e que perpetraram, covardemente, à sombra do Poder e nos porões da ditadura a que serviram, os mais ominosos e cruéis delitos, como o homicídio, o seqüestro, o desaparecimento forçado das vítimas, o estupro, a tortura e outros atentados as pessoas daqueles que se opuseram aos regimes de exceção que vigoraram, em determinado momento histórico, em inúmeros países da América Latina. É preciso ressaltar, no entanto, como já referido, que a lei de anistia brasileira, exatamente por seu caráter bilateral, não pode ser qualificada como uma lei de auto-anistia, o que torna inconsistente, para os fins deste julgamento, a invocação dos mencionados precedentes da Corte Interamericana de Direitos Humanos.” (Voto Min. Celso de Mello, ADPF 153, fls. 183-184) “Anoto a esta altura, parenteticamente, a circunstância de a Lei n. 6.683 preceder a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes - adotada pela Assembléia Geral em 10 de dezembro de 1984, vigorando desde 26 de junho de 1987 - e a Lei n. 9.455, de 7 de abril de 1997, que define o crime de tortura. E, mais, o fato de o preceito veiculado pelo artigo 5°, XLI I I da Constituição – preceito que declara insuscetíveís de graça e anistia a prática da tortura, entre outros crimes - não alcançar, por impossibilidade lógica, anistias anteriormente a sua vigência consumadas. A Constituição não recebe, certamente, leis em sentido material, abstratas e gerais, mas não afeta, também certamente, leis-medida que a tenham precedido. Refirome ainda, neste passo, a texto de Nilo Batista, na Nota introdutória a obra recentemente publicada, de Antonio Martins, Dimitri Dimoulis, Lauro Joppert Swensson Junior e Ulfrid Neumann: ‘... em primeiro lugar, instrumentos normativos constitucionais só adquirem força vinculante após o processo constitucional de internalização, e o Brasil não subscreveu a Convenção sobre Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade de 1968 nem qualquer outro documento que contivesse cláusula similar; em segundo lugar, ‘o costume internacional não pode ser fonte de direito penal’ sem violação de uma função básica do princípio da legalidade; e, em terceiro lugar, conjurando o fantasma da condenação pela Corte Interamericana, a exemplo do precedente Arellano x Chile, a autoridade de seus arestos foi por nós reconhecida plenamente em 2002 (Dec. n. 4.463, de 8 de novembro de 2002) porém apenas ‘para fatos posteriores a 10 de dezembro de 1998’.” (Voto Min. Eros Grau, ADPF 153, fls. 37) Nota-se neste trecho de doutrina, citado pelo ministro Eros Grau, um argumento sobre eventual condenação do Brasil na Corte Interamericana, mas não é feito no corpo do voto do ministro qualquer posicionamento mais detalhado a respeito do que ele considera nesse tema, tendo em vista que a citação pareceu ter sido feita principalmente em relação ao argumento de incorporação do direito internacional e não de eventual jurisprudência do sistema interamericano.

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O ministro Lewandowski afasta brevemente a aplicação do direito internacional ao tratar dos crimes comuns: “Não adentro – por desnecessária, a meu ver, para o presente

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Cardoso, E. L. C. - Rodrigues, L. F. M.

debate – na tormentosa discussão acerca da ampla punibilidade dos chamados crimes de lesa-humanidade, a exemplo da tortura e do genocídio, definidos em distintos documentos internacionais, que seriam imprescritíveis e insuscetíveis de graça ou anistia, e cuja persecução penal independeria de tipificação prévia, sujeitando-se, ademais, não apenas à jurisdição penal nacional, mas, também, à jurisdição penal internacional e, mesmo, à jurisdição penal nacional universal. É que, de acordo com estudiosos do assunto, vários seriam os delitos comuns possivelmente praticados por agentes do Estado, durante o regime autoritário, todos tipificados no Código Penal de 1940, vigente à época (...)” (Voto Min. Ricardo Lewandowski, ADPF 153, fls. 115-116) O ministro Celso de Mello afasta de modo fundamentado a aplicação do direito internacional: “Nem se sustente, como o faz o Conselho Federal da OAB, que a imprescritibilidade penal, na espécie ora em exame, teria por fundamento a ‘Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade’. Mostra-se evidente a inconsistência jurídica de semelhante afirmação, pois, como se sabe, essa Convenção das Nações Unidas, adotada em 26/11/1998, muito embora aberta à adesão dos Estados componentes da sociedade internacional, jamais foi subscrita pelo Brasil, que a ela também não aderiu, em momento algum, até a presente data, o que a torna verdadeira ‘res inter alios acta’ em face do Estado brasileiro. (...) Ninguém pode ignorar que, em matéria penal, prevalece, sempre, o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal.” (Voto Min. Celso de Mello, ADPF 153, fls. 189-190)

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“Aqui faço um parêntese para ressaltar que não tem curso a tese – e o Ministro Eros Grau o demonstrou muito bem – da imprescritibilidade em razão de tratados que vieram a ser subscritos posteriormente. Inclusive, diferentemente do que ocorre em outros países, a jurisprudência pacífica desta Corte é no sentido de que as normas sobre prescrição são normas de Direito material.” (Voto Min. Gilmar Mendes, ADPF 153, fls. 250-251).

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(29) Corte Interamericana de Direitos Humanos, Caso Gomes Lund e outros (“Guerrilha do Araguaia”) vs. Brasil. 24/11/2010. Tome-se como exemplo a postura da corte constitucional venezuelana, que declarou não executável uma decisão da Corte Interamericana e, consciente das implicações, requereu ao Executivo venezuelano a denúncia da Convenção. (Tribunal Supremo Venezolano, Sala Constitucional, Caso Abogados Gustavo Álvarez Arias y otros, Julgamento n. 1.939, 18/12/2008).

(30)

Santos. A execução das decisões emanadas da Corte interamericana de direitos humanos e do sistema jurídico brasileiro e seus efeitos. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, Brasília, v. 8, n. 1, p. 261-307, jan./jun. 2011. Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Org.) Implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências nacionais. Rio de Janeiro: CEJIL, 2009.

(32)

Algumas iniciativas nesse sentido parecem ter sido iniciadas. “Foi firmado, no ano de 2006, um Acordo de Cooperação Técnica entre o Ministério da Justiça, a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), com o objetivo de promover uma articulação entre esses órgãos para dar maior celeridade à tramitação de casos no Poder Judiciário, relacionados a processos que se encontrem sob o exame de órgãos internacionais. A Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ lançou, em 23 de novembro de 2010, o programa Justiça Plena, com o objetivo de monitorar o andamento de processos de grande repercussão social que estão com o andamento paralisado no Judiciário Brasileiro. A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República atua em parceria com o CNJ nesse programa e já indicou dez processos que tramitam no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos para serem o piloto do programa. Dentre os processos indicados, estão as ações judiciais relativas ao Caso Ximenes Lopes. Essa iniciativa certamente corrobora os esforços de alguns órgãos e instituições brasileiras para dar cumprimento às determinações de apuração e punição dos responsáveis pelas violações de direitos humanos reconhecidas pela Corte. Ao que parece, a intenção dessas medidas é integrar os órgãos do Poder Judiciário ao procedimento de execução das sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos, capazes de atuar em um ponto fundamental, presente em todas as sentenças e demandas internacionais em trâmite em face do Brasil: a violação dos artigos da Convenção Americana relativos às garantias judiciais e à proteção judicial (artigos 8 e 25), em face da denegação de justiça no caso concreto.” Juliana Corbacho Neves dos Santos. A execução das decisões emanadas da Corte interamericana de direitos humanos e do sistema jurídico brasileiro e seus efeitos. Prismas: Direito, Políticas Públicas e Mundialização, Brasília, v. 8, n. 1, p. 261-307, jan./jun. 2011, p. 287-288.

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Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Caso Julia Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia), Relatório No. 91/08 (mérito), 11.552, Brasil, 31/10/2008.

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No Brasil já foram elaborados projetos de lei, mas nenhum foi ainda aprovado (Projeto de Lei 3.214/2000, Deputado Marcos Rolim e Projeto de Lei 4.667/2004, Deputado Federal José Eduardo Cardozo). Para uma análise desses projetos de lei, ver Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Org.) Implementação das decisões do Sistema Interamericano de Direitos Humanos: jurisprudência, instrumentos normativos e experiências nacionais. Rio de Janeiro: CEJIL, 2009, e Juliana Corbacho Neves dos

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UMA LEITURA JURÍDICO-FILOSÓFICA DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NO Artigo PERÍODO DITATORIAL DE 1964-1968

UMA LEITURA JURÍDICO-FILOSÓFICA DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NO PERÍODO DITATORIAL DE 1964-1968 Ivan Cláudio Marx*

RESUMO: O presente trabalho objetiva fazer uma análise, da forma mais imparcial possível, sobre a atuação do Supremo Tribunal Federal brasileiro durante os primeiros cinco anos da ditadura militar neste país (1964-1968), de modo a analisar o papel do STF na manutençãoconfrontação do regime implantado. Para tanto, são analisados tanto o contexto dos fatos durante o período, quanto as diversas fundamentações utilizadas nas decisões coletivas e nos votos individuais dos Ministros do STF. Palavras-chave: STF. Ditadura Militar. ABSTRACT: This article aims to analyze, as imparticial as possible, about the performance of the Brazilian Supreme Court (STF-acronym in portuguese) during the first five years of the dictatorship in Brazil (1964-1968), in order to understand the role of the STF in the maintenance-confrontation of the system deployed. More specifically, the article analyzes both the context of the facts during the period: the various rationales used in the collective decisions and the individual votes of Ministers of the STF. Keywords: STF. Militar regime.

Introdução Não diferente de outros países da América do Sul, o Brasil teve seu período de ditadura militar. * Procurador da República em Uruguaiana-RS-Brasil, doutorando pela Universidad del Museo Social Argentino, com Postítulo en Derechos Humanos y Procesos de Democratización, na Universidad de Chile, de março a julho de 2011. Texto escrito em junho de 2008.

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Marx, I. C.

Em plena guerra-fria, os militares tomaram o poder alegando defender o regime democrático frente à ameaça comunista. Com a abertura da “caça às bruxas”, os novos donos do poder identificavam e puniam os hereges. E o sistema penal era chamado a chancelar essa inquisição. Nesse estado das coisas, a presente análise pretende observar o papel do judiciário, centralizada na análise das decisões de seu órgão supremo, o Supremo Tribunal Federal, nos primeiros cinco anos do período ditatorial. Após uma seleção de decisões (1) dentre todos os ramos do direito no ano de 1964, a pesquisa se restringiu, nos demais anos (1965-1968) às decisões referentes aos direitos constitucional, penal e processual penal. Isso por esses ramos do direito melhor expressarem a situação do país naquele momento, bem como pelo inescondível interesse em analisar o papel do STF na manutenção-confrontação do regime posto. No entanto, nos preocupou a perscruciente observação nietzschiana (Nietsche, 2005, p. 64) de que normalmente elogiamos ou criticamos, conforme tal ou qual faça transparecer melhor a “genialidade” de nosso pensamento. De fato, não seria difícil defender uma posição crítica ou elogiosa ao papel desempenhado pelo STF, até mesmo sem recorrer às técnicas de Schopenhauer. De modo que nos propomos a criticar ou elogiar, indistintamente, segundo nos parecesse correto, descompromissados com uma coerência final, apontando opiniões diversas inclusive para diferentes votos de um mesmo ministro do STF. Não nos preocupou chegar a um veredicto. Nos propomos a não ler nada que tenha sido escrito sobre o presente assunto. Para não pensar com a cabeça dos outros e não ser coagido por algum argumento de autoridade. Para, dentro do possível, seguir o método de Descartes. Ainda, resta ponderar que a intenção não foi a de buscar algo a ser decifrado na profundidade de cada decisão. 58

Como intérprete, nos pareceu violência suficiente decifrar, quando possível, as variáveis que os discursos constantes das decisões possibilitavam.

Uma Interpretação Numa era em que o tecnicismo tenta nos convencer de que todo o pensável já foi escrito, a originalidade poderia soar suicida e presunçosa. Assim, talvez o pouco que nos caiba seja justamente julgar sempre, mas não finalmente. Não buscando personagens e histórias com meio e fim. E acreditando na realidade da incongruência e na falácia do pensamento linear. É fato, não nos passou desapercebido ser mais difícil encontrar incongruência nos textos escritos. Pessoas lidas se envaidecem com as críticas, e tentam manter sempre a linha de pensamento que lhes dá maior notoriedade. Mas mesmo assim, nem na camuflagem o ser humano é congruente o bastante. Aliás, encontrar incongruências nas posições dos ministros nos faz crer na realidade do seu pensamento. Optamos, assim, por esquecer o dogma do personagem, para fugir de uma interpretação personalizada. Nos perguntamos se a dificuldade de aceitação do outro (seja externo, ou do outro-eu) não surja, em parte, por culpa da literatura. Não existe um só personagem. O eu é mais que um outro. É uma multiplicidade de incongruências grávidas de anjos e demônios. Cada ser é uma gama de seres nem sempre coerentes e de regra inscientes de sua simultaneidade. E a interpretação, provindo do ser, também não deveria criar um personagem-texto. Qualquer julgamento deveria ser precedido de um olhar para si. Mas a ideia do personagem está tão arraigada que mesmo esse conselho cristão restaria improfícuo. Atiraríamos pedras pois

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UMA LEITURA JURÍDICO-FILOSÓFICA DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NO PERÍODO DITATORIAL DE 1964-1968

o raio-x do ser julgado jamais se assemelharia ao ‘coeso personagem tridimensional’ que criamos para nós mesmos. Sem falar no personagem caricaturado imposto aos donos da interpretação. Posição à qual somos lançados sempre que juntamos o papel à tinta – e logo voltamos a ser réus frente ao leitor-intérprete. Dessa forma, tais considerações não buscam criar um texto-personagem, mas sim reflexões que mais facilmente captem a vivacidade do pensamento de “pessoas reais”, que, quanto mais demonstram incoerência, mais deveriam nos parecer confiáveis e transparentes.

A “Revolução” Em 31 de março de 1964, os militares tomaram o poder (2), depondo o então presidente João Goulart. Com relação a esse fato e buscando uma melhor definição do ocorrido, nos parece pertinente servir-se da seguinte observação de Foucault (Foucault, 1992, p. 39): Para simplificar, el humanismo consiste em querer cambiar el sistema ideológico sin tocar la institución; el reformismo em cambiar la institución sin tocar el sistema ideológico. La acción revolucionária se define por el contrario como uma conmoción simultánea de la conciencia y de la institución; lo que supone que se ataca a las relaciones de poder allí donde son el instrumento, la aramazón, la armadura.

Nesse contexto, o ato ocorrido em 31 de março de 1964 não passaria de um reformismo. Tanto que esse reformismo julgava ser legítimo, justamente por representar uma resposta a uma alegada tentativa revolucionária, que viria a ser a transição do sistema capitalista ao socialista. Ao falar em “revolução” (3), se buscava desesperadamente dar um aspecto de legitimidade a um governo que não dependeria nem mesmo do Congresso. Da mesma forma, pretendia dar um efeito de verdade ao seu discurso, marginalizando qualquer ideologia contrária. A “revolução”, de posse do poder político, precisava apoderar-se do poder da ‘verdade’.

Para isso, utilizou-se de todos os instrumentos de exclusão, toda “microfísica do poder”, que foi se exacerbando a cada novo Ato Institucional, até ao escancaramento do regime ditatorial, com a edição do AI 5, dando poderes “macrofísicos” ao governo. Ainda segundo Foucault (Foucault, 1992, p. 54-59) o sistema penal teria três papéis como aparato de Estado. Primeiro, como fator de ‘proletarização’, obrigando o povo a aceitar sua condição de explorado. Segundo, como forma de separar as pessoas ‘perigosas’, que poderiam se destacar nos movimentos de resistência popular. Terceiro, como meio de separar o proletariado e a plebe não proletarizada, esta devendo ser vista por aquele como algo marginal, imoral. Da mesma forma, o regime totalitário, com seus atos institucionais e a doutrina da segurança nacional, taxando os opositores de criminosos que atentavam contra a estabilidade do Estado, buscava separar os “bons cidadãos” dos perigosos ‘agitadores’. O comunista, o crítico, enfim, todo aquele que ousasse fazer mais do que simplesmente ruminar, era considerado criminoso e, assim, afastado do rebanho. O governo, de posse da doutrina da segurança nacional, e se autoproclamando revolucionário, lançou mão da Lei 1802/53, a lei de segurança nacional, depois substituída pelo Decreto-lei 314/67, para dar aos opositores o título de criminosos. Era preciso exercer o poder punitivo, e o meio de legitimá-lo era criminalizando os opositores. Se os “revolucionários” se proclamavam os defensores da democracia, era necessário taxar todos os opositores de antidemocratas. Para tanto, nada melhor que a pejorativização do termo “comunista” e sua utilização como meio de desqualificar qualquer discurso contrário ao atual estado das coisas. Como não era interesse levar a efeito os direitos de segunda geração, impediam-se também os direitos de primeira. Foi cerceada a liberdade de imprensa e proibida a sindicalização. E os Atos Institucionais eram carregados de uma introdução ideológica que tentava vender uma aparência de legalidade. Era o discurso necessário para justificar o poder.

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Marx, I. C.

Qualquer ato reivindicatório era taxado e tratado como sendo uma tentativa de golpe comunista. De fato, os comunistas eram os inimigos mais necessários, pois sem eles, não teria mais razão de ser o “Comando Revolucionário”. Quem não acredita-se nos “comunistas” e não aceitasse a necessidade do regime de exceção era obviamente um herege e, por tanto, atentava contra a segurança da “ordem” vigente. Se os comunistas eram a personificação do mal, ninguém melhor do que os “revolucionários” para dizer sobre a melhor forma de combatê-lo. E assim foi criada a “Comissão Geral de Investigação”, pelo Decreto nº 53897/64, já em 27 de abril de 1964, a fim de localizar e prender os “perigosos”. Seguindo esse raciocínio, sendo os nomeados para essas comissões os intérpretes perfeitos para dizer sobre tais crimes, longa manus do “comando revolucionário”, a legalidade, tipicidade e todas aquelas questões levantadas muito antes pelo marquês de Beccaria, obviamente não se faziam necessárias. O “comando revolucionário” parecia querer aplicar, mesmo antes de sua definição por Günther Jakobs, a teoria do direito penal do inimigo. Além disso, a extinção do pluripartidarismo e a ilegalização de organizações tal qual a UNE (União Nacional dos Estudantes) serviam para manter o povo desorientado.

Posição do Supremo Tribunal Federal Inevitável considerar que a posição do STF não era a de um tribunal comum, pois, naquele estado das coisas, não dispunha da imparcialidade necessária para, em função de uma determinada norma de direito-verdade, decidir com força executória sobre a pretensão de qualquer das partes. E não dispunha de imparcialidade, justamente pelo fato de que o resultado de suas decisões poderia implicar represálias, quando desatendidos o interesse de uma das partes – a que representasse o Estado repressor. Não se trata de um preconceito(4) anterior à análise das decisões. Na verdade, se trata de 60

um sopesamento das condições para equilibrar a balança. Considerados os limites e as circunstâncias, a análise tende a ser mais justa. No contexto ditatorial, era necessário punir os ‘transgressores’, não para castigá-los ou proteger a sociedade, mas sim para transformá-los no que deveriam ser – transgressores. Não dar aos ‘transgressores’ o título de criminosos era desobedecer a lógica do sistema. Com a criminalização do ‘sentimento oposicionista’, as pessoas se viam julgadas, e até mesmo condenadas, mais pelo que pareciam acreditar do que pelo que efetivamente acreditavam. Além disso, considerando um “Comando Revolucionário” que se alternava no poder, e não apenas um único déspota, vale lembrar as palavras de Voltaire (Voltaire, 2006, p. 350) sobre a Tirania: ?Bajo qué tiranía preferiría vivir? Bajo ninguna; pero si se tratara de elegir, me sería menos repugnante la tiranía de un solo que la de varios. Un déspota tiene siempre algunos momentos de brillantez; una asamblea de déspotas, jamás... Si sólo tengo un déspota puedo colocarme contra la pared con toda serenidad cuando lo veo pasar, para humillarme o para golpear el suelo con mi frente, según la costumbre del país; pero si hay una compañía de cien déspotas, me expongo a repetir esta ceremonia cien veces por día, lo que a la larga resulta bastante fastidioso cuando no se es ágil. Si tengo una finca en la vecindad de uno de nuestros señores, me aplastan; si litigo contra un pariente de los parientes de uno de nuestros señores, me arruino. ?Qué hacer? Me temo que en este mundo no hay muchas más posibilidades que ser yunque o martillo. !Afortunado el que escape a esta disyuntiva!

Neste contexto, é necessário considerar, de imediato, o papel fundamental do STF ao defender, minimamente, a liberdade de opinião (5), de modo que a simples externação do pensamento, sem qualquer indício de concretização, não implicaria em crime contra a segurança nacional.

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UMA LEITURA JURÍDICO-FILOSÓFICA DO PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL BRASILEIRO NO PERÍODO DITATORIAL DE 1964-1968

Talvez o STF tenha se valido da interessante estratégia de Epicuro, pondo fim à improdutiva discussão sobre a existência divina: “se hay dioses, éstos no se ocupan de nosotros”. Se há comunistas, estes não pretendem modificar o regime vigente (6). Se para o descanso da consciência, na tradução do pensamento de Epicuro por Nietzsche (Nietzsche, 1994, p. 23-24), não era completamente necessária a solução dos problemas teóricos últimos e extremos, para a defesa do cidadão perseguido (resultando em habeas corpus), não era necessário ao STF discutir a essência do conflito ideológico vigente no país.

O Stf, pelos seus Acórdãos e Votos Dentre os julgamentos selecionados, importantes pelo tema discutido ou mesmo pelo conteúdo de alguns votos dos ministros, seguem demais comentários. HC 40676, julgado em 1.7.64, por maioria. Ementa: “Constrangimento ilegal. Habeascorpus concedido em caráter preventivo, para fazer cessar a ameaça”. Nesse HC, deferido por maioria de votos, destaca-se a concisa motivação do voto do Ministro Pedro Chaves, “conheço do pedido e concedo a ordem [...] Há um pedido feito por uma senhora cujo crime é ser casada com um comunista”. HC 40910, julgado em 24 de agosto de 1964. Tratava-se de professor universitário da Cadeira de Introdução à Economia preso, por “fazer propaganda de processos violentos para subversão da ordem política e social” e “instigação pública à desobediência coletiva ao cumprimento da lei de ordem pública” (Lei nº 1802, artigo 11, a e § 3º, e artigo 17) por ter lido a seus alunos manifestos de crítica ao atual governo. Ementa: “A denúncia narra fatos, que evidentemente não constituem crime”. Ministro Gonçalves de Oliveira: “Esta Casa há de ser pelos tempos afora, mercê de deus, a esteira de luz, a Grande Acústica, onde a voz dos oprimidos, dos que têm fome e sede de justiça, terá sempre ressonância, será sempre ouvida.”

Ministro Cândido Motta Filho: A prisão preventiva do paciente decorreu do fato de ter o mesmo dado conhecimento aos seus alunos de um manifesto de crítica à revolução. Este manifesto é realmente de crítica, mas não é, de teor, subversivo. Nêle não se encontra qualquer apêlo à ilegalidade. Mas, ainda quero relembrar aqui, um grande escritor brasileiro – Eduardo Prado, que dizia que a História do Brasil era feita de tal modo que nunca se sabia quando começava a revolução e quando acabava a legalidade... E nesta confusão natural de nossa história, confusão mesmo pitoresca e benéfica para as instituições, prefiro ficar com a Constituição, que se não está de pé para muitos, para nós está, porque o Juiz só raciocina dentro da legalidade. E dentro da legalidade, sou obrigado a reconhecer, com muito orgulho para mim, a “liberdade de pensamento e a liberdade de cátedra. Também concedo o habeas corpus.

Ministro Victor Nunes: Em certa época, Sr. Presidente, houve nos estados Unidos um movimento de reação que não poupou a liberdade universitária.... Durante aquêle período, Einstein chegou a dizer essas palavras melancólicas: “Se eu fosse de nôvo jovem e tivesse de decidir da minha vida, não tentaria ser cientista, professor, universitário; antes preferiria ser bombeiro ou mascate, na esperança de desfrutar um pouco da liberdade que ainda se admite entre nós”. Era um desabafo de desespêro, evidentemente exagerado... Se há um lugar em que o pensamento deve ser o mais livre, êste lugar é a universidade, que é o laboratório do conhecimento. E eu não gostaria que os jovens brasileiros pudessem, algum dia, reproduzir, ao pé da letra, aquelas palavras melancólicas de Einstein, ou pudessem comparar a nossa universidade com as universidades dos países submetidos à ditadura.

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Tal voto refletia a esperança de que à “revolução” coubesse um papel intermediário, devolvendo o país à democracia com novas eleições, conforme previa o artigo 9º do Ato Institucional (posteriormente conhecido como AI1). Infelizmente, logo os universitários brasileiros puderam se unir, com razão, ao coro melancólico de Einstein. Também o HC 40609, em que o paciente fora preso por crime de estelionato. No entender do STF, na ausência de provas para a condenação, não poderia haver arbítrio no julgamento criminal. Segundo a ementa do julgado (15-7-64), por maioria de votos, “Falta de justa causa para a condenação. O livre convencimento do juiz não pode abstrair de certas regras que compõe o sistema de provas. A questão do valor jurídico dos meios de prova é questão de direito. ‘habeascorpus’ concedido”. No RC 1044, julgado por unanimidade em 5 de agosto de 1965, a denúncia por crime contra a segurança nacional, por ter o réu publicado, em 31-12-1962, resenha “antiplebiscito”. Ementa: “A atipicidade criminal do fato narrado na denúncia justifica a rejeição liminar da peça acusatória. Recurso não provido”. No parecer da Procuradoria da República, observava-se que “Acentuados desentendimentos de paixões políticas, não podem levar jornalistas que entendem mal a sua nobre profissão, a agredirem a tudo e a todos, a fomentarem animosidade, a gerarem a opróbio, escorados na Lei da impunidade, a 2.803”. Por sua vez, o voto do Ministro Pedro Chaves (relator), refere, entre outras coisas, que Numa época marcada pelo acentuado desentendimento de paixões políticas, é preciso que não confundamos a crítica ou o noticiário que vêm dos adversários com crimes contra a segurança nacional. [...] Acho que a liberdade de imprensa está tão intimamente ligada à liberdade individual, que é preciso preservá-la. [...]

As palavras do Ministro parecem seguir a doutrina de John Stuart Mill (In Morris, 2002, p. 385), segundo o qual: 62

... Essa é, então, a região apropriada da liberdade humana. Ela abrange, primeiro, o domínio interior da consciência, exigindo liberdade de consciência no sentido mais abrangente; liberdade de pensamento e sentimento; liberdade absoluta de opinião e sentimento em todos os assuntos, práticos ou especulativos, científicos, morais ou teológicos. Pode parecer que a liberdade de expressar e publicar opiniões está incluída num princípio diferente, visto que pertence àquela parte da conduta de um indivíduo que diz respeito a outras pessoas; ma sendo de quase tanta importância quanto a própria liberdade de pensamento, e baseandose em grande parte nas mesmas razões, ela é praticamente inseparável desta.

E segue o voto do Ministro: Enquanto nós não tivermos uma lei que discipline, rigorosamente, os deveres dos jornalistas, não podemos, a torto e a direito, enquadrar como criminosa a intenção de um jornalista que veicule notícias mesmo que não verdadeiras. Não podemos ver, na intenção dêsses jornalistas, um intuito criminosos de jogar classes contra classes, instituições contra instituições.

Necessário observar que essa lei, necessária para punir atos de oposição praticados por intermédio da imprensa não tardou a surgir. Em 1967, surgiu a lei nº 5.250/67, para regular a liberdade de manifestação do pensamento e de informação. Apenas em 30 de abril de 2009, ao julgar, por maioria, procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 130, o STF declarou ser tal lei incompatível com a Constituição Federal de 1988. Ainda, no voto do Ministro Pedro chaves, consta que Acho que a imprensa deve gozar de tôda liberdade possível, enquanto não fôr legalmente restringida por uma legislação adequada e enquanto o nosso progresso moral não acompanhar o nosso progresso material e não se convencerem os jornalistas da função pública que exercem em benefício da grandeza e da prosperidade da nossa Pátria.

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Dessa forma, há de se convir que a defesa da liberdade de imprensa, no entendimento de Pedro Chaves, não ia além do simples aspecto positivista. Pode-se, pois a lei ainda não impediu. Além disso, não se pode esquecer que a repressão ao pensamento livre sempre se exerce, variando apenas o grau de atuação. Antes a repressão impedia que se publicassem livros para espíritos livres. Hoje, com as liberdades de imprensa e pensamento, as relações de poder buscam, pela massificação de conceitos, impedir a existência de espíritos abertos a livros livres. Para impedir a caça, não podendo mais (ou apenas momentaneamente) tornar rarefeitas as presas, restou dissimular a fome do caçador. Quanto ao progresso moral acompanhar o progresso material, nada nos parece mais discutível. Se a moral já é um conceito de definição discutível, quem dirá a possibilidade de um progresso. A moralidade acompanha os interesses da classe dominante ou ascendente. E costuma progredir ou mesmo mudar de direção, conforme os mesmos interesses. Quanto ao progresso material, embora inegável, em muitas questões não seria difícil encontrar aspectos de retrocesso. HC 42397, julgado por unanimidade em 21.6.65. Tratava-se de pacientes que foram surpreendidos, às altas horas da madrugada, quando saíam de determinado apartamento, nesta cidade, conduzindo cartazes, fazendo parte do denominado “Movimento de Resistência Popular”. Ementa: HABEAS CORPUS. Acusação de crime político (art. 11, letra a, da Lei nº 1.802, de 5.1.53). Ordem concedida, sem prejuízo da ação penal, para que os pacientes se defendam em liberdade, sujeitos a permanecer no local da infração até o julgamento do processo.

Voto do Ministro Pedro Chaves: A constituição garante a liberdade de pensamento e a transmissão dêsse pensamento; garante a propagação de idéias,

garante tudo, enfim. Mas não instituiu, como regime, uma democracia suicida. A Democracia também tem direito de se defender. Usando êsse direito de defesa é que o Movimento de 31 de março depôs o Govêrno anterior. E agora, Govêrno, que assumiu as posições do anterior, sob o lema democrático, para restaurar a prática democrática, não pode ficar de braços cruzados, vendo operários, estudantes ou professores ou políticos mesmo de alto prestígio avocarem a si o direito de resolverem as questões e os atos da política internacional do País. Não é o Congresso Nacional, não é o Estado Maior das Fôrças Armadas, não são os Conselhos da República que deliberam. São esses rapazes e essa mocinha, que ficam aqui num apartamento conspirando. Êles é que acham se é conveniente ou não para a política exterior do país a remessa de fôrça para São domingos, se o Presidente Castelo Branco deve continuar ou deve ser deposto. Tudo isto escapa aos órgãos democráticos instituídos pela Constituição e passa a ser uma brincadeira de estudantes? O que êles fazem não tem significação nenhuma! Não podem ser presos! Isso é uma coisa atípica! Não mataram ninguém. Assim, vamos concedendo habeas corpus e vamos trancando as ações penais, pois nem ao menos podem ser processados: Já é tempo de pôr um paradeiro nessa atuação. O brasileiro é digno, é livre e lhe está assegurada, pela Constituição, a manifestação de seu pensamento, de suas idéias, de seus pontos de vista políticos, está-lhe assegurado êsse direito de defender idéias, de discuti-las, mas não na clandestinidade, não no escuro da noite, mas públicamente, sob o império da lei, sob o império da Constituição. E os Governos, Sr. Presidente, também têm a obrigação de defender a paz social, as instituições governamentais, justamente para poderem dar essas garantias que a Constituição outorga a todos os brasileiros.

No entanto, a própria existência do processo aqui referido, obriga concluir não fazer sentido

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exigir a defesa pública de ideias em um Estado que reprime a liberdade de opinião. Em que pese, é verdade, reconhecesse o STF a inexistência dos chamados crimes de opinião. Nesse sentido o HC 42046, julgado em 4.8.65, cuja ementa refere: “Desconhece a nossa lei penal os delitos de opinião. Habeas-corpus concedido, por falta de justa causa”. Também claro é o voto do relator, Ministro Vilas Boas: Trata-se de imputação aos pacientes de terem tido opinião, mas não se indicam atos concretos de subversão contra o estado. Êles seriam a favor da legalização do Partido Comunista. Isso é uma opinião. Ninguém pode ser punido nesta república por ter opinião.

No HC 41314, julgado de forma unânime em 25.10.1965, o STF não aceitou a ampliação do conceito de crimes militares de modo a abranger os crimes políticos. Esses, segundo o STF, caberiam à justiça comum, com recurso ao STF, nos moldes da CF de 1946. No mesmo sentido, o HC 42182, julgado por maioria em 9.6.65, cuja ementa declara: “Nos têrmos do art. 108 da Constituição os civis só podem ser submetidos ao fôro militar nos crimes contra a segurança externa do país ou contra as instalações militares”. Tratava-se do presidente do centro acadêmico Afonso Pena, da faculdade de direito da Universidade de Minas Gerais, preso preventivamente e processado por por crime contra a segurança nacional, por ter tentado mudar a ordem política e social nacional, mediante ajuda e subsídio de organização estrangeira de caráter internacional, filiando-se ao partido comunista brasileiro, linha russa e linha chinesa. Voto do Ministro Vilas Boas (relator): Ninguém contesta que a vida da Universidade se desorganizou. Os universitários, ao invés de estudar, balizaram-se na baixa politicalha.... Adequada foi a enérgica atuação das au64

toridades militares para cortar o mal que lavrava na universidade. Mas nós outros, dêste Supremo Tribunal, não podemos imprimir cunho de constitucionalidade aos métodos de enquadramento da agitação universitária naqueles casos que, pelo art. 42 da Lei de segurança do estado, são de conhecimento da Justiça Militar. ... O Supremo Tribunal Federal, no puro exercício das suas funções constitucionais (pois não trata de outra coisa), tem sofrido a hostilidade marcante e o ódio minucioso de muitos, que se empenham em dar novos rumos à República. Não são puras ameaças ou manifestos inodoros de quem, como os universitários mineiros, não dispõem de elementos para realizar o seu intento. São, ao contrário, perturbações inequívocas emanadas de quem dispõe de força e pode praticar represálias. Ora isso é crime previsto no art. 6º, a, da mesma Lei. Mas ninguém aqui pensa em punição de alguém. É que estamos todos empenhados no processo de reintegração da Pátria na posse dos meios para a realização, de seu glorioso destino. A disciplina da Universidade – pois não se trata, nem mais nem menos, do que da adoção de medidas disciplinares – não pode ser deslocada dos seus centros de direção e orientação. Que cuide do assunto, que é de muita delicadeza, o Congresso Nacional com o aprimoramento da lei de diretrizes e bases, e também o Ministério da Educação e Cultura.

Em que pese a lógica do argumento, parece ter esquecido, o nobre ministro, que a “Revolução” entendia legitimar-se por si própria, independentemente do Congresso. Dessa forma, bastou a edição do Ato Institucional nº 2, em 27 de outubro do mesmo ano, apenas quatro meses após a decisão aqui analisada, para remeter à Justiça Militar tais questões (7).

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De fato, a única solução seria contestar a constitucionalidade dos Atos Institucionais. Isso seria o segundo recurso possível, após a garantia dos direitos e liberdades políticas, como forma de estabelecer limites ao governo (segundo ainda John Stuart Mill, ob. cit., p. 382). Em que pese a Constituição de 1964 garantisse esse controle, seria dar muito crédito, à alegada existência de democracia, acreditar na possibilidade de o “Comando Revolucionário” se submeter a tal controle judicial. Em caso de eventual tentativa, poder-se-ia imaginar que bem mais do que ameaças sofreria o STF. Necessário observar, aliás, que uma das disposições do AI 2 foi justamente ampliar a composição do STF, de 11 para 16 membros (conforme artigo 6º do AI 2, dando nova redação ao art. 98 da CF/46). Com isso, se garantiriam mais votos a favor do governo (8), que nomearia tais ministros (9). No mesmo HC, destaca-se também o voto do Ministro Pedro Chaves: ... O eminente relator, leu o manifesto dirigido pelo paciente que não é nenhuma criança, é um estudante de direito, Presidente do centro acadêmico e oficial de reserva do exército: é um homem. E foi um manifesto eminentemente subversivo, lançado no dia em que as fôrças democráticas da Nação tentavam derrubar um govêrno para-comunista. Esta é a verdade. ...os fatos trazidos ao nosso conhecimento, da ação do paciente nos meios universitários, são tipicamente de caráter comunorevolucionário, de incitamento à rebeldia contra as nossas tradições, contra a nossa História, contra nossos costumes. ... Neste caso, acho que o paciente está enquadrado no dispositivo legal apontado pela denúncia, porque o crime não é só de receber dinheiro de nação estrangeira ou de organização política internacional. O crime é de receber auxílio e é de tentativa, porque, a tentativa é vitoriosa, deixa de ser crime. A revolução vitoriosa é governo e não está sujeita a processo. De maneira que o crime é tipicamente de tentativa. E em se tratando de tentativa, é

preciso ser cego, é preciso fechar os olhos, é preciso falar contra a realidade nacional, para não ver que o partido Comunista, nitidamente internacional, teve uma intervenção direta nos acontecimentos dos últimos anos em nossa Pátria, envenenando principalmente a mocidade, tirando os soldados dos quartéis, os estudantes das escolas, os operários das fábricas, os agricultores do campo, para promover agitação, Sr. Presidente, agitação que só ao Partido Comunista podia aproveitar.

Eis aí, talvez, um dos maiores discursos legitimadores do “Comando Revolucionário”. Acreditando na existência das bruxas, dos selvagens, dos comunistas à época ou, hoje, dos terroristas, e obrigatoriamente temendo a gama de males que eles poderiam trazer, qualquer Estado se mantém apto ao exercício de um regime de exceção. Eis a síntese da perversão e genialidade de todos os “justiceiros”: fazer acreditar no mal. O Ministro Pedro Chaves, ao entender criminoso o incitamento à rebeldia contra o governo “revolucionário” anti-comunista, parece novamente compartilhar do pensamento de John Stuart Mill (Ob. cit., p. 392), para quem, Uma opinião de que os negociantes de grãos matam os pobres de fome, ou de que a propriedade privada é um roubo(10), não devia ser molestada quando apenas circulasse através da imprensa, mas pode, com justiça, ficar sujeita à punição quando emitida verbalmente para uma multidão excitada, reunida diante da casa de um negociante de grãos, ou quando passada de mão em mão, na forma de cartaz, através dessa multidão.

No ano de 1966, o STF firmou jurisprudência no sentido de que, tendo havido sentença final sobre o mérito antes do novo preceito constitucional, a apelação, nos crimes políticos, deve ainda ser julgada pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, o RC 1074, julgado de forma unânime em 30.03.66, com a seguinte ementa: “Crime político. Competência. Recurso contra despacho do juiz que, com base no ato Institu-

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cional nº 2, determinou a remessa dos autos à Justiça Militar. Recurso não provido”. No mesmo sentido a decisão no Conflito de Jurisdição nº 3133, cuja ementa refere: “Competência da Justiça Militar: O Ato Institucional n. 2/65, que a estabeleceu para as infrações à L. 1.802, aplica-se aos processos iniciados por inquérito policial anterior à publicação daquele diploma”. Nessa ação, interessante observar o voto de Ministro Aliomar Baleeiro (relator), exaltando a eficácia do Ato Institucional: “Diploma de caráter, e vigor idênticos ao da própria Constituição, o ato Institucional n. 2/65, pode modificá-la em tôda extensão e tem eficácia imediata”. Cabe ressaltar, aqui, que frente a um exercício de fato do poder punitivo, cabia ao judiciário e à teoria penal legitimá-lo ou se manter crítico. Nesse aspecto, vê-se um papel de legitimação, seguindo o STF, em certa medida, a doutrina Kantiana, que não aceitava rebeliões contra o Estado, garantidor do imperativo categórico, mas quando esse assumia o poder, passava a ser o guardião daquele mesmo princípio. Para Kant, era importante manter e defender o Estado, sem o qual os homens voltariam ao estado “bárbaro” de natureza (conforme preconizava Hobbes). No HC 44901, julgado em 6.12.67, o STF reiterou o entendimento de que, havendo arquivamento do inquérito, somente com novos elementos de prova pode ser intentada a ação penal. A reafirmação desse entendimento, já exposto, entre outros, no RHC 40421 e RHC 42472, em 1964 e 1965, respectivamente, era importante no presente caso. Com a edição do AI 2/65, pretendia-se processar por crime político, agora na justiça militar, cidadão que tinha tido processo idêntico arquivado na justiça comum. Do voto do Ministro Victor Nunes (relator), destaca-se: Deve acrescentar que êsses interrogatórios foram extremamente minuciosos, parecendo muito mais uma inquisição ideológica do que um inquérito criminal, porque se indagou da opinião do depoente a respeito 66

de muita coisa sem implicação criminal, inclusive sôbre uma peça teatral.

De fato, em que pese a discordância do STF, a intenção era justamente a de processar os opositores por crimes de opinião. Ministro Aliomar Baleeiro: Quando cheguei ao Tribunal, tinha a impressão de que se usava e abusava do habeas corpus, e isso não estava de acôrdo com o figurino clássico do instituto. Entretanto, penitencio-me dêsse pensamento e hoje sou partidário da corrente liberal. Os fatos, que observei, através de processos de habeas corpus em minhas mãos, me levaram à conclusão de que o Supremo tribunal Federal estava certo na sua orientação. E a visão histórica mostra que êste é um dos maiores padrões de glória do Supremo Tribunal Federal. Se exagerou, foi sempre na defesa das liberdades públicas, embora admita que muitas vêzes quebrando os ídolos e altares do direito processual. Disto me penitencio.

De fato, a utilização do habeas corpus, dentro do positivismo legal, era o maior trunfo em defesa das liberdades. Se o STF, em algum momento, ultrapassou os limites legais na utilização desse remédio heroico, seria completamente justificável, por razões de justiça. Afinal, o direito posto não podia mascarar o contexto social. Um pouco de realismo bastava para suplantar o idealismo de um Estado democrático e salvador, garantidor do imperativo categórico, agora oficialmente anti-comunista (embora, na verdade, apenas anti-oposicionista) . Pode-se entender o porquê da suspensão, já no final do ano de 1968, por meio do art. 10 do famigerado AI5, da garantia do Habeas Corpus nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. A partir daí, dentro do positivismo, não havia mais nada a fazer em prol do cidadão. O Ministro Baleeiro faz ainda, por fim, uma defesa à liberdade de pensamento: É verdade que certas testemunhas, ou outros co-réus, teriam dito que ele é comunista, o que, em princípio, não é crime. Ser

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comunista não é crime enquanto o comunista não passa à ação, à prática daquêles atos que a L. 1.802 e agora o Decreto-lei 3.314, prevêem.

Outra perseguição ideológica teve fim no HC 43786, por decisão unânime em 30.5.1967, com a seguinte ementa: “HABEAS CORPUS. Denúncia. Peça confusa sem imputação de qualquer fato ao paciente. Inépcia que autoriza a concessão de habeas corpus”. Tratava-se de estudante processado, por crime contra a segurança nacional. Na verdade, os comentários que seguem, referem-se à mesma acusação dirigida a seu pai, professor de Teoria das Doutrinas Econômicas. Após o Ministro Hanheman Guimarães referir se tratar, a história do pensamento econômico, de uma cadeira perigosa, o Ministro Aliomar Baleeiro, que já havia sido professor da referida cadeira, fez as seguintes observações: O professor não pode deixar de tratar de Marx. Lembro-me de que, no curso de doutorado, dei duas ou três aulas sôbre Marx. [... ]. Eu estaria na cadeia por isso, também, e, como eu, não sei quantos professôres. E Marx, que na opinião de alguns escritores do fim do século passado e comêço dêste não era um economista, hoje é considerado um escritor original; é considerado um economista original, que inclusive foi o precursor da macroeconomia, da economia global da sociedade, não da microeconomia, - a da emprêsa, do indivíduo apenas.

A liberdade de expressão foi mai uma vez defendida, no HC 44002, julgado por unanimidade em 3.4.67. Ementa: “Liberdade de expressão. Discurso ofensivo, mas que não configura crime contra a segurança. Falta de justa causa para a ação penal”. Tratava-se de advogado, denunciado por crime contra a segurança nacional, por ter dito, em público, que “Os gorilas que, por ora, estão no Poder, aliciados, mandados pelos americanos, enviaram tropas brasileiras, constituídas em sua maioria de homens inocentes, para a República

Dominicana, desrespeitando a auto-determinação dos povos”. Também importante o deferimento do habeas corpus, por decisão unânime, no RHC 44579, julgado em 5.9.1967. Tratava-se de estudantes acusados de, através de atividades políticas no meio estudantil, incorrerem no crime do art. 11, letra b, da antiga Lei de Segurança, ou seja, fazer publicamente propaganda de ódio ou de raça, de religião ou de classe. O deferimento do habeas corpus baseou-se no importante voto do Ministro Hermes Lima (relator), referindo que “Pregar abertamente a subversão sem dizer onde nem quando nem como e distribuir um jornal que até então se publicava legalmente não constituem crimes”. Além disso, o STF também se manifestou contra o abuso por parte da administração na cobrança de tributos, entendendo legítima eventual resistência por parte do contribuinte. Nesse sentido a decisão no RHC 44144, julgado por unanimidade em 18.4.67, aplicando a Súmula 323, segundo a qual “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio coercitivo para pagamento de tributos”. Dessa forma, o STF entendeu não haver crime de resistência por parte de quem se opõe a essa apreensão ilegal. Segundo a ementa “É inadmissível a apreensão de mercadorias como meio para pagamento de tributos. Não se caracteriza o crime de resistência”. Também no ano de 1968 foram deferidos habeas corpus em processos, por crimes contra segurança nacional, com caráter de nítida perseguição a oposicionistas. Nesse sentido, o HC 45500, julgado em 20.5.1968, por unanimidade votos, cuja paciente fora acusada de ter participado de reuniões com Prestes (Luís Carlos Prestes, conhecido esquerdista brasileiro) e pertencido à Federação das Mulheres no Estado de São Paulo. Ainda o RHC 46027, julgado em 10.9.1968, por unanimidade de votos, cujo paciente fora denunciado por ter ligação com Fidel Castro e Leonel Brizola (Ex-governador do Rio Grande do Sul e cunhado de João Goulart), presumidamente antes de 1964.

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Denúncia contra cidadão que coletara assinaturas, destinadas à Justiça Eleitoral, para reabertura do Partido Comunista Brasileiro – PCB, também resultou em deferimento de habeas corpus pelo STF, no RHC 44847, julgado em 10.6.68, por unanimidade. Nas palavras do Ministro relator Victor Nunes Leal, “este fato, por si só, realmente não constitui crime”. No RHC 46028, julgado por unanimidade em 9.9.1968, foi declarado inexistir crime de ideologia. A denúncia referia-se ao art. 2º, item III, da Lei n. 1.802/53: “Art. 2º – Tentar: [....] Mudar a ordem política e social estabelecida na Constituição, mediante ajuda ou subsídio de estado estrangeiro ou de organização de caráter internacional”. Destaca-se o voto do Ministro Raphael de Barros Monteiro (relator), referindo que: Acrescente-se, “ex abundantia”, que sôbre não haver na denúncia mencionada fatos ou circunstâncias que autorizassem a conclusão de ser o recorrente comunista, a verdade é que vem o Supremo Tribunal Federal julgando, todos os dias, inexistir em nossa legislação penal, o delito de ideologia (RTJ, 42/178, 38/286 e 347).

No HC 45231, julgado em 16.4.1968, o STF decidiu, por maioria de votos, que os Inquéritos Policiais Militares – IPMs constituem processo regulares para apuração de fatos criminosos. No caso, os impetrantes do habeas corpus entendiam que a instrução de processos da Lei de segurança cabia apenas à Polícia Federal. Sobre o ativismo comunista, vale ressaltar o voto do Ministro Themístocles Cavalcanti (relator): Tenho a respeito da atividade comunista o ponto de vista que sôbre ela emitiu Justice Douglas no caso Elgbrandt v. Russel em 16 de abril de 1966 (384-U.S. Parte 1 – pg. 11). 1 – Grupos políticos podem visar objetivos ilegais e cada qual se filiar a êsses grupos sem necessariamente, visar fins ilegais. 2 – As pessoas que se tornam membros 68

de uma organização sem aceitar os seus objetivos ilegais não constituem ameaça ao Govêrno constitucional, sejam funcionários ou simples cidadãos. 3 – É impossível concluir de modo definitivo que quantos se tornem membros de uma organização subversiva desejem participar de seus objetivos ilegais. Compreendo perfeitamente que um indivíduo seja marxista ou comunista e não queira participar de atividades subversivas do partido. É o que ocorre na maioria dos países onde existem partidos comunistas, mas integrados no mecanismo político, não subversivos. Mas é o que raramente ocorre, na opinião de Duverger, nos países em desenvolvimento, onde a infra estrutura social é frágil, estimula a subversão por elementos que se consideram marginalizados ou obedecem a uma orientação internacional bem conhecida. Difícil é apurar a proporção de não subversivos, que preferem o gôzo democrático. Não aceito, pois o princípio de que os comunistas são necessariamente agentes da subversão material da ordem pública. Mas a denúncia no caso está bem feita, bem fundamentada, especifica a participação dos pacientes em atos que seriam de subversão. A prova das acusações deverá ser feita no processo.

Argumento típico de um culturalismo de colônia. Além de copiar a doutrina de um país que obviamente só via um lado da questão, ainda deveríamos nos afastar dos pequenos avanços de tolerância lá atingidos. A lógica parecia ser a de copiar a doutrina que justificasse a repressão. Quanto aos atos de tolerância, esses não deveriam ser aqui aplicados, pois as “bruxas” dos países em desenvolvimento são muito mais perigosas. Neste caso, o Ministro Evandro Lins (presidente), embora concordando com a validade

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dos IPMs, discorda da existência de crime nos fatos narrados. Segundo seu voto: Quando Lombroso e Lacohi apresentaram a sua famosa tese, sôbre crimes políticos, num congresso de Criminologia e Direito Penal, ainda no fim do século passado, as discussões em tôrno da matéria foram tão acessas e vibrantes entre os participantes que o conclavo não ia adiante. Predominavam as opiniões políticas de cada um, sôbre o problema jurídico que se pretendia discutir. Isso ocorreu num congresso científico, em que as paixões deviam ceder às teses doutrinárias. No caso, um dos pacientes é professor catedrático de Direito Civil na faculdade de direito do Paraná, homem ilustre, que tem produzido notáveis defesas neste Tribunal... A submeter alguém nos vexames de um procedimento penal com essa fluides de elementos, essa vagueza de provas, em matéria de opinião política, parece-me que é preferível, desde logo, reconhecer que tais fatos não constituem infração penal, porque não se apresentou um fato demonstrativo de que o paciente estivesse conspirando para subverter a ordem política e social vigente, para derrubar o regime.

O Ministro parece buscar um retorno da discussão ao princípio da utilidade, fugindo das opiniões particulares que formulariam julgamentos baseados no princípio da simpatia e da antipatia. Segundo Jeremy Bentham (in Morris, 2002, p. 262), um princípio pode ser diferente daquele da utilidade de duas maneiras: através do princípio do ascetismo, constantemente oposto àquele, ou do princípio da simpatia e da antipatia, sendo às vezes oposto e às vezes concorde ao da utilidade. A seguinte observação de Bentham (ob. cit. p. 264) parece traduzir a preocupação do Ministro Evandro Lins: Entre os princípios adversos ao da utilidade, aquele que nos dias de hoje parece ter a maior influência em questões de governo

é o que pode ser chamado de princípio da simpatia e da antipatia. Por princípio da simpatia e antipatia refiro-me àquele princípio que aprova ou desaprova certas ações, não por conta de sua tendência a aumentar a felicidade, nem por conta de sua tendência a diminuir a felicidade da parte cujo interesse está em questão, mas apenas porque um homem se encontra disposto a aprová-las ou desaprová-las – mantendo essa aprovação ou desaprovação como uma razão suficiente em si, e rejeitando a necessidade de procurar algum motivo extrínseco. Isso no departamento geral da moral; e no departamento particular da política, medindo o quantum (bem como determinando o motivo) da punição pelo grau de desaprovação.

No RHC 45791, julgado em 7.10.68, por unanimidade de votos, a decisão seguiu o voto do Ministro Oswaldo Trigueiro (relator), nos seguintes termos: Parece-me evidente que os atos atribuídos ao paciente não tipificam a infração do art. 21 do Dl. 314/67, que pune a tentativa de subversão da ordem ou da estrutura política e social vigente no país. A denúncia (f. 10) dá o paciente como comunista ativo, porém não é precisa em atribuir-lhe a prática de atos concretos, que caracterizem a tentativa prevista na Lei de Segurança. A distribuição de boletins a favor do govêrno deposto pela revolução de 1964, antes de sua queda, não satisfaz aos pressupostos da norma penal considerada.

Conclusão Para a “revolução”, o ideal seria que o judiciário retrocedesse ao sistema de ordálias, se limitando a legitimar os vencedores e seus atos persecutórios contra os vencidos. De fato, nunca coube ao judiciário dizer quem tinha razão, se “revolucionários” ou “comunistas”. Nem tampouco se atreveu o STF a questionar eventual inconstitucionalidade dos Atos

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Marx, I. C.

Institucionais e demais leis editadas durante o período referido. É preciso lembrar que o Código Penal brasileiro seguia ainda o positivismo jurídico, baseado no Código Rocco italiano. A teoria finalista da ação só veio a ser adotada no Brasil com a reforma da parte geral do Código Penal, em 1984. Dessa forma, o STF em momento algum questionou a discricionariedade do conteúdo da norma, não adotando a posição de Hans Welzel, de que estruturas lógico-objetivas limitassem a eleição do legislador. No entanto, se não se pode afirmar que o STF foi um legítimo defensor do cidadão frente ao regime ditatorial, pode-se, ao menos, concluir que não serviu como instrumento de legitimação político-ideológico ao sistema de poder vigente. Aliás, se assim não fosse, talvez não teria sido necessária a edição do AI 5, negando direitos de primeira geração e excluindo suas garantias. Destaque-se que, além de suspender o habeas corpus para crimes políticos, o AI 5 também proporcionou ao regime militar aposentar compulsoriamente, no ano de 1969, os Ministros do STF Hermes Lima, Evandro Lins e Silva e Victor Nunes Leal. De modo que, embora timidamente, o STF inegavelmente desafiou o sistema, concedendo habeas corpus negados pelo STM e dizendo coisas que “não deviam ser ditas”. Tais são as conclusões a que, nesse estágio de conhecimento sobre o tema e, sobre as atuais influências filosóficas ou mesmo internas, nos parece justo chegar.

Notas: A seleção de decisões, para a leitura completa, deu-se de acordo com o teor de suas ementas. Dessa forma, foram lidos 76 acórdãos do ano de 1964, dentre um total de 1625; 55 acórdãos do ano de 1965, dentre 351; 45 acórdãos do ano de 1966, dentre 272; 34 acórdãos do ano de 1967, dentre 307; e 64 acórdãos do ano de 1968, dentre 603. Dos 274 acórdãos lidos, foram utilizados no presente trabalho, direta ou indiretamente, 75 acórdãos, sendo 24 do ano de 1964, 20 de 1965, 8 de 1966, 9 de 1967 e 14 de 1968.

(1)

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Os EUA tiveram um papel importante nessa “revolução”, oferecendo apoio militar e reconhecendo imediatamente o novo governo brasileiro. Sua atuação seguia a Doutrina Mann, defendida pelo seu secretário-assistente de Estado para Negócios Interamericanos, Thomas Mann, que defendia a não punição de grupos militares pela derrubada de regimes democráticos.

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A história registra vários motivos para a escolha de Humberto Castelo Branco como primeiro presidente militar. Do ponto de vista estratégico-filosófico, no entanto, se poderia interpretar que o anonimato deste frente à população brasileira, poderia ter sido um importante fator. De fato, é mais fácil angariar simpatia para uma ideia do que para uma pessoa, principalmente considerando que o presidente ‘deposto’ era bem quisto pelo povo.

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Na verdade, o preconceito é intrínseco a qualquer análise, desde a escolha do objeto até a forma de exposição. No caso, apenas se buscou minimizar o preconceito externo. E a advertência serve, antes de tudo, para minimizar o preconceito do leitor, desde sempre preconceituoso, ao menos desde o momento em que se dispôs a ler sobre tal ou qual assunto.

(4)

Como se observa, já no ano de 1964, nos HCs 41030, 41141 e 41014, deferidos pelo STF, após terem sido negados pelo Supremo Tribunal Militar, relativos a crimes políticos e contra a segurança nacional.

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Mas, se os homens inventaram os deuses, foi justamente para que estes se preocupassem com aqueles. De modo que, outra forma de ver as coisas seria a seguinte: “deuses não existem, mas se preocupam, sim, com os homens”. Esta poderia ser a síntese da lógica implícita em diversas teorias de justificação do uso do poder. Não se trata aqui de afirmar a inexistência dos comunistas, mas apenas de demonstrar a sua desnecessidade. Necessária era apenas a ideia de sua existência.

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Art. 8º, § 1º do AI2: Competem à Justiça Militar, na forma da legislação processual, o processo e julgamento dos crimes previstos na Lei nº 1.802, de 5 de janeiro de 1963.

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A utilização desse expediente já havia sido tentada pelo presidente norte americano Roosevelt, após sua reeleição em 1936. De fato, seu objetivo era possibilitar um aumento do número de membros da Corte Suprema, a fim de superar uma maioria estabelecida de juízes conservadores que consideravam inconstitucionais algumas medidas do “New Deal” (plano de recuperação econômica). Tal medida se tornou desnecessária, tendo em vista a alteração de entendimento da própria Corte a respeito do tema, não oferecendo objeções aos planos presidenciais.

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De fato, o primeiro presidente militar, Humberto de Alencar Castelo Branco, nomeou ao todo 8 ministros do STF. Os demais presidentes militares também nomearam número expressivo de ministros: Artur da Costa e Silva, 04; Emílio Garrastazu Médici, 04; Ernesto Geisel, 07, e João Baptista Figueiredo, 09.

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Em clara referência à obra de Proudhon, Pierre Joseph. ¿Qué es la propiedad? Investigaciones sobre el principio del derecho y del gobierno. p. 17. (observação nossa).

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O STF E O DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS PÚBLICOS Artigo

O STF E O DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS PÚBLICOS(1) Larissa Batista Vasconcelos(2)

Resumo: Este trabalho se propõe a analisar como o direito de acesso a documentos públicos, enquanto instrumento para o controle de práticas da Administração Pública, é tratado no Supremo Tribunal Federal, em face das restrições de acesso comumente impostas. Dessa forma, pretende-se contribuir para a identificação dos desafios para a efetivação deste direito. Palavras-Chave: Direito à informação, documentos públicos, controle de práticas estatais, Supremo Tribunal Federal. Abstract: This work aims to analyze how the right to access public documents, as an instrument to control the State, is handled in the Brazilian Supreme Court, considering the restrictions commonly imposed to the access. Thus it might be possible to contribute to the identification of the main challenges to the implementation of this right. Keywords: Right to access information; public documents; control of the State; Brazilian Supreme Court.

1 Introdução A crescente importância do direito fundamental à informação está intimamente ligada à afirmação deste direito enquanto um pressuposto para a efetivação da democracia, do princípio republicano e do exercício da cidadania.

(1) Este artigo é baseado em capítulos da monografia “O desafio da efetivação do direito à informação: a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal na garantia do direito de acesso aos documentos públicos”, apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, como requisito à conclusão da graduação em Direito, em 2011. (2) Advogada formada pela Universidade de São Paulo.

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O direito à informação se impõe ainda como uma ferramenta de extrema relevância no combate à corrupção e a outros atos ilícitos no domínio público, assim como na defesa de interesses e garantias individuais, sendo um importante aliado no controle das práticas da Administração Pública (amplamente considerada), seja por seus próprios órgãos e entes, seja pela sociedade civil. No entanto, nem sempre os órgãos e entes públicos favorecem a efetivação deste direito, ao impor empecilhos à obtenção de informações de interesse público. Isto faz com que algumas situações sejam levadas ao Judiciário, para que lá sejam decididas. Por tal razão, este trabalho pretendeu vislumbrar o panorama existente no Supremo Tribunal Federal sobre o direito de acesso à informação, aqui considerado como direito de acesso a documentos públicos, no controle de atos estatais, de modo a melhor compreender como este tema se delineia na prática judiciária da Suprema Corte brasileira, em suas decisões colegiadas. Por meio de uma ampla pesquisa de acórdãos do STF, buscou-se identificar informações relevantes que pudessem contribuir para a delimitação das principais características, fragilidades e tendências sobre o tema proposto. Exemplos de dados que foram considerados relevantes são: a identificação dos assuntos mais recorrentes, quem são envolvidos nestes casos, quais os motivos das restrições de acesso impostas (assim como as polêmicas a eles subjacentes) e como o STF vem tratando este tema(3). Antes de avaliar as decisões, faz-se necessário estabelecer um breve panorama teórico sobre o direito à informação e as restrições com que convive, para situar em que contexto se inserem os julgados selecionados.

2 Panorama teórico sobre o direito à informação Apesar da forte vinculação ao aspecto político, que possibilita a participação da sociedade civil no processo decisório e na fiscalização dos atos estatais, o direito à informação transcende 74

esta dimensão. Aponta-se, por exemplo, sua importância na obtenção de informações pessoais, mantidas em registros públicos, no conhecimento de dados históricos do país, na obtenção de dados estratégicos para a atuação dos agentes econômicos, entre outros. O acesso às informações públicas não constitui um bloco homogêneo, sendo mais facilmente compreendido a partir de uma classificação tripartite acolhida pela doutrina: a) o direito de pedir informações aos órgãos públicos ou a eles equiparados (ou direito de se informar); b) o direito de receber informações, independentemente de requerimento (ou direito de ser informado); c) o direito de transmitir informações (ou direito de informar) (4) Essas divisões não são meramente teóricas, e refletem-se nas próprias previsões constitucionais relacionadas ao direito à informação. Destacam-se, neste cenário, o artigo 5º, incisos IV, IX, XIV, XXXIII, XXXIV e LXXII, artigo 37, caput e §3º, inciso II, artigo 216, §2° e artigos 220 a 224, da Constituição Federal de 1988(5). Diante desta perspectiva, o direito à informação pode ser amplamente considerado. Para o presente trabalho, limitou-se sua abordagem ao direito de se informar. Esta faceta compreende o direito das pessoas de obterem informações próprias, contidas em bancos de dados públicos, ou de caráter público, assim como o direito de acesso a informações de interesse público, que permitam realizar um controle das práticas estatais, e é apenas sobre este último aspecto que recai o foco deste artigo. Um referencial interessante para entender o “direito de se informar” é exposto por CEPIK (2000, p.4): “Por direito à informação entende-se aqui um leque relativamente amplo de princípios legais que visam assegurar que qualquer pessoa ou organização tenha acesso a dados sobre si mesma que tenham sido coletados e estejam armazenadas em arquivos e bancos de dados governamentais e privados, bem como o acesso a quaisquer

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O STF E O DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS PÚBLICOS

informações sobre o próprio governo, a administração pública e o país, ressalvados o direito à privacidade, o sigilo comercial e os segredos governamentais previstos em lei.”

A Constituição Federal de 1988, em seu art. 5º, inciso XXXIII, assegura o direito à informação, possibilitando o conhecimento de dados de interesse particular e de interesse coletivo ou geral. Por outro lado, prevê também restrições, que decorrem da existência de informações capazes de afetar a segurança da sociedade, a segurança do Estado, e a inviolabilidade da intimidade e vida privada das pessoas (art. 5º, inciso X, CF). As Leis n° 8.159/1991 e n° 11.111/2005 e o Decreto n° 4.553/2002 destacavam-se na regulamentação das restrições ao direito à informação(6). Todavia, esta legislação era fortemente criticada(7) por privilegiar a imposição do sigilo e a sua manutenção por períodos excessivos – ou mesmo a possibilidade de sigilo eterno – em detrimento do direito fundamental de acesso(8). Além disso, a ausência de uma lei unificada e específica sobre este assunto, que regulamentasse procedimentos de requerimento e de recusa ao acesso, era apontada como um dos fatores que dificultava a efetivação do direito de acesso aos documentos públicos. Este cenário foi modificado pela edição da Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011, que “regula o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do §3º do art. 37 e no §2º do art. 216 da Constituição Federal”, trazendo disposições de grande importância sobre o procedimento de requerimento e recusa a informações pleiteadas, assim como as possíveis restrições e períodos pelos quais podem ser impostas. Por fim, revogou toda a Lei nº 11.111/2005, e alguns dispositivos da Lei nº  8.159/1991. Importa lembrar que a Lei nº 12.527/2011 possui período de vacatio lege, entrando em vigor 180 dias após sua publicação. Todos os julgados do STF analisados a seguir são prévios à existência da Lei nº 12.527/2011, inserindo-se no contexto das práticas administrativas pautadas pela legislação anterior.

3 Panorama do direito de acesso a documentos públicos no STF 3.1 Assuntos dos julgados selecionados Em pesquisas realizadas no site do STF, foram encontrados treze casos sobre o direito de acesso a documentos públicos, relacionados especificamente ao controle de práticas da Administração Pública, sobre os quais foram realizadas algumas considerações. Estes julgados, de modo sucinto, tratavam do requerimento de documentos sobre: - Despesas de Tribunais de Contas, inclusive com folhas de pagamento (ADI 375/DF(9)); - Empresas beneficiadas com verbas públicas federais (repassadas pelo Banco do Brasil - MS 21729/DF); - Pesquisas e consultorias do Estado do Ceará (ADI-MC 2361/CE); - Despesas de Municípios (2 casos -  HC 84367/RJ e  HC 93829/BA); - Despesas da Câmara dos Deputados (3 casos - MS-AgR 24099/DF, MS-AgR 24189/DF, e MS-MC-AgR 28177/DF); - Nepotismo na Câmara dos Deputados (HD-AgR 87/DF); - Despesas e gestão do Banco Central (MS 22801/DF); - Quaisquer informações de interesse da OAB (ADI 1127/DF); - Interceptações telefônicas ilegais (MSREF-MC 27483/DF); - Identificação de militares e policiais que realizaram práticas de tortura na Ditadura Militar de 1964 (ADPF 153/DF). Observa-se, assim, que o assunto mais recorrente foi a fiscalização dos gastos públicos, contando com nove casos distintos (ADI 375/DF, MS  21729/DF, ADI-MC 2361/CE, HC  84367/ RJ, HC  93829/BA, MS-AgR  24099/DF, MSAgR  24189/DF, e MS-MC-AgR  28177/DF, MS 22801/DF).

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Os casos relacionados à questão do nepotismo e do controle genérico de entidades, feito pela OAB, não se restringiam ao problema dos gastos públicos, mas abrigavam indiretamente uma preocupação com este problema (HD-AgR 87/DF e ADI 1127/DF). Pode-se dizer que apenas dois casos traziam especificamente uma preocupação totalmente diversa daquela relacionada ao uso da verba pública: o da apuração de ilegalidades em interceptações telefônicas realizadas pelo Estado (MSREF-MC 27483/DF) e do acesso a documentos da Ditadura Militar de 1964 (ADPF 153/DF). Assim, os acórdãos relacionados ao acesso a documentos públicos para controle de atos estatais tiveram duas temáticas centrais: o controle dos gastos públicos e a violação de direitos humanos pelo Estado Brasileiro. Diante do cenário de corrupção e de má utilização dos recursos públicos, que vem ganhando cada vez mais visibilidade no país, este quadro na Suprema Corte não causa surpresa. Espera-se, de fato, que uma das maiores preocupações da sociedade e dos próprios órgãos e entes estatais seja a utilização dos recursos públicos. Contudo, a existência de apenas dois casos tratando de violações de direitos humanos cometidas pelo Estado demonstra um espaço ainda pequeno para o debate desta matéria. Ressalta-se que este panorama temático, apesar de centrar-se na questão do gasto público, não retrata a ampla possibilidade de assuntos que poderiam estar em discussão, como: a moralidade na conduta dos agentes públicos, o respeito e a efetivação dos direitos humanos pelas diversas instituições, o acompanhamento dos indicadores sociais do país, a atuação diplomática do governo, a produção do conhecimento científico e da propriedade intelectual contida em registros estatais, entre outras possibilidades. 3.2 Partes envolvidas Ao identificar os envolvidos nas discussões sobre o direito de acesso aos documentos públicos, é possível visualizar em que medida vem atuando a sociedade civil e os órgãos públicos no controle das práticas estatais. 76

Houve apenas 4 casos de documentos requeridos por particulares, sendo que todos eles objetivavam informações a respeito da Câmara dos Deputados, sobre suas despesas e contratação de pessoal (MS-AgR 24099/DF, MS-AgR 24189/ DF, MS-MC-AgR 28177/DF, HD-AgR 87/DF). Em 9 casos o acesso aos documentos foi requerido por órgãos públicos, sendo que figuraram como requerentes: Assembleia Legislativa, Ministério Público, Tribunal de Contas, Comissão Parlamentar de Inquérito e a Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 375/DF, MS 21729/DF, ADI-MC  2361/CE, HC  84367/RJ, HC  93829/ BA, MS  22801/DF, ADI  1127/DF, MS-REFMC 27483/DF, ADPF 153/DF). Observa-se que a maior parte dos casos conta com o requerimento de acesso por parte de órgãos públicos, o que pode ser justificado pela própria função (que inclui a fiscalização) destas instituições, principalmente no caso do Ministério Público e do Tribunal de Contas. Ainda assim, a participação popular é desejável e vem crescendo, sobretudo com a efetivação das outras facetas do direito à informação: o direito de informar e o direito de ser informado, que estimulam a veiculação de informações de interesse público, ressaltando-se o papel primordial da imprensa(10). Sob a ótica de quem impõe restrições, os requerimentos de acesso a documentos tiveram como destinatários: Tribunal de Contas, Estado Membro da Federação, Prefeito de um Município, órgãos do Judiciário, operadoras de telefonia, sociedade de economia mista (Companhia de Limpeza Urbana de Niterói), instituições do Sistema Financeiro (Banco do Brasil - empresa pública e Banco Central – autarquia federal) e a Câmara dos Deputados. No caso da ADPF 153, sobre os documentos da Ditadura Militar, não houve um destinatário específico. Este retrato das partes destinatárias dos pedidos de acesso é variado, mas contou com o protagonismo da Câmara dos Deputados em 4 casos, o que revela um interesse grande nas informações a respeito deste órgão e, ao mesmo tempo, a dificuldade em obter a documentação pleiteada.

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O STF E O DIREITO DE ACESSO A DOCUMENTOS PÚBLICOS

4 Motivos de restrição ao acesso e entendimento do STF Sobre os motivos que impossibilitaram o acesso aos documentos pleiteados ainda na esfera administrativa, podem ser divididos em duas ordens: motivos relacionados ao mérito do direito à informação, no sentido de uma ponderação entre diferentes valores, e motivos relacionados ao procedimento de acesso. 4. 1 Restrição com base em outros valores juridicamente tutelados As restrições impostas ao direito à informação tiveram como fundamento: a proteção constitucional da intimidade e vida privada; o direito de não produzir provas contra si mesmo; a vulnerabilidade de órgãos e Poderes do Estado; e a possibilidade de danos ao Estado. - Direito à intimidade e à vida privada O principal argumento suscitado foi a proteção constitucional da intimidade e vida privada das pessoas (art. 5º, incisos X e XII, da CF), que ocorreu em 5 casos (MS  21729/ DF, HC  84367/RJ, MS  22801/DF, MS-MCAgR 28177/DF, MS-REF-MC 27483/DF). Em alguns julgados a intimidade de terceiros foi colocada como objeto de proteção constitucional, conforme os casos brevemente descritos abaixo. No MS 21729/DF, julgado em 05/10/1995, o Ministério Público pretendia obter acesso a documentos do Banco do Brasil que continham informações sobre repasses de verbas públicas federais a empresas do setor sucroalcooleiro. O banco afirmou que o direito à intimidade e à vida privada daqueles que receberam os repasses, aliado ao seu dever de sigilo profissional, impediriam o acesso a esses dados. No entanto, o STF levou em consideração que o caso tratava do gasto de verbas públicas do Governo Federal, que apenas foram repassadas por intermédio do banco, o que demandava a ampla publicidade das informações requeridas (como a lista de beneficiários, esclarecimento

sobre a natureza das operações, a previsão orçamentária, as espécies de contratos, etc). Por outro lado, no MS 22801/DF, julgado em 17/12/2007, que analisou questão semelhante a do MS 21729, houve resultado diverso. O Tribunal de Contas da União (TCU) pretendia obter dados do Banco Central do Brasil para a realização de auditoria em suas contas. O banco, todavia, afirmou que os dados eram de acesso restrito, protegidos pelo sigilo bancário (que garantiria o direito à intimidade à vida privada das pessoas). Apesar da justificativa do TCU de que o objeto da fiscalização não era a situação econômica e financeira, nem a natureza e o estado dos negócios dos contribuintes, mas exclusivamente a atividade administrativa da autarquia, o STF concluiu que o Banco Central poderia negar acesso aos dados do seu sistema para evitar a configuração de quebra de sigilo bancário. Por meio desses dois casos (MS21729 e MS 22801), observa-se que a fiscalização sobre instituições do sistema financeiro pode apresentar grandes dificuldades. A necessidade de compatibilizar a fiscalização da gestão da coisa pública com o resguardo da intimidade e vida privada das pessoas se relaciona com a atuação dos bancos enquanto gestores comerciais e, por vezes, também como agentes delegados do Poder Público. Neste sentido, alguns limites não se revelam claros, tornando necessária uma ponderação de valores no caso concreto. Sobre a proteção da intimidade de terceiros, também o MS-REF-MC 27483/DF, julgado em 14/08/2008, merece destaque. Neste caso, Comissão Parlamentar de Inquérito que investigava a realização de escutas telefônicas clandestinas requisitou que diversas operadoras de telefonia fornecessem todos os conteúdos de mandados judiciais de interceptações telefônicas cumpridos no ano de 2007. A requisição foi feita a entes privados, mas visava controlar atos de entes públicos (a legalidade de escutas telefônicas realizadas em investigações estatais), por meio de documentos públicos (mandados judiciais). As operadoras sustentaram o segredo de justiça que recaía sobre estes documentos como garantia ao direito à intimidade das pessoas envolvidas.

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O STF, considerando que os trabalhos daquela CPI possuíam grande relevância, acatou parcialmente o pedido da Comissão, permitindo o acesso aos dados que não implicassem quebra de sigilo. Interessante notar como, neste caso, o segredo de justiça, que visava proteger o direito à intimidade das pessoas envolvidas, impedia a apuração da violação deste mesmo direito. Sob uma ótica diferente, alguns julgados analisaram a questão do direito à intimidade sob a perspectiva do agente público. Neste sentido, no HC 84367/RJ, julgado em 09/11/2004, este direito fundamental foi suscitado para que exdiretora da Companhia de Limpeza Urbana de Niterói (CLIN) não fornecesse ao Ministério Público documentos da sociedade de economia mista que indicariam o cometimento de fraudes. O STF concluiu que não havia qualquer relação do caso com o direito à intimidade e à vida privada, uma vez que a requisição não atingia dados pessoais da paciente, mas dados públicos da CLIN. A questão da intimidade foi discutida também no MS-MC-AgR  28177/DF, julgado em 30/09/2009, sobre a possibilidade do Jornal Folha da Manhã extrair cópias reprográficas de documentos relacionados ao uso da verba indenizatória concedida aos Deputados Federais. Um dos argumentos do Presidente da Câmara para impedir o acesso foi de que os dados estariam protegidos pelo sigilo, a fim de resguardar a intimidade dos parlamentares. Apesar da decisão do STF ter sido contrária ao acesso aos documentos, não teve como fundamento o direito à intimidade, mas questões processuais. Ainda sim, o caso chama a atenção, por buscar na proteção da privacidade dos deputados federais um subterfúgio para impedir o controle da aplicação de recursos públicos. Isto porque o ato que instituiu a verba indenizatória do exercício parlamentar foi expresso em atestar o seu caráter estritamente vinculado ao exercício da função pública. Assim, nestes dois últimos casos, os agentes públicos, em clara confusão entre os limites da gestão do que é público e os próprios interesses privados, visavam impedir um controle sobre informações de caráter público. 78

- Direito de não produzir provas contra si mesmo Também se relaciona ao problema da indistinção feita por agente público entre os limites de seus interesses privados e do que é de interesse público, o HC 93829/BA, julgado em 10/06/2008. Neste caso, o então Prefeito Municipal de Camamu (Bahia) recusou-se a fornecer ao Ministério Público documentos sobre despesas do Município, que comprovariam favorecimento indevido do prefeito, de servidores municipais e de terceiros às custas do erário, suscitando seu direito de não produzir provas contra si mesmo. O STF, contudo, garantiu o acesso do Ministério Público aos documentos, por se tratar de documentação pública, pertencente à Municipalidade, que não poderia ser ocultada. O tribunal concluiu que não haveria produção de provas do paciente contra ele mesmo, mas a mera apresentação de registros contidos em documentos públicos. - Vulnerabilidade de órgãos e Poderes do Estado Outro argumento suscitado para impedir o acesso a documentos públicos foi o perigo de vulnerabilidade de órgãos e Poderes do Estado, em dois casos (ADI 375 e ADI 1127). Na ADI 375/DF, julgada em 30/10/1991, a discussão recaiu sobre a edição de uma lei, pela Assembleia Legislativa do Estado no Amazonas, que permitia a este órgão requisitar do Tribunal de Contas do Estado e dos Municípios, informações sobre despesas destes órgãos, inclusive folhas de pagamentos. De acordo com o Tribunal de Contas, a previsão legal tornaria a Corte vulnerável e submissa a possíveis e futuras conveniências político-partidárias. O STF considerou que o acesso à documentação era possível, estendendose, inclusive, a todas as pessoas, pois se tratavam de despesas públicas. As folhas de pagamentos também se inseriam nesse contexto, não constituindo dados sigilosos(11). No caso da ADI  1127/DF, julgada em 17/05/2006, dentre os diversos assuntos discutidos, houve a impugnação de dispositivo do Estatuto da Advocacia que previa a possibilidade

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de requisição de cópias de peças e documentos a qualquer tribunal, magistrado e cartório, por Presidentes do Conselho da OAB. A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) entendeu que a previsão afrontava a independência do Judiciário (art. 96, inciso I, da CF). O STF manteve o dispositivo de lei impugnado, porém dando interpretação conforme a ele, para explicitar a necessidade de motivação do pedido e a restrição de acesso a documentos classificados como sigilosos. Estas decisões demonstraram um posicionamento do STF que privilegiou a publicidade como regra. Demonstram ainda como o STF asseverou a possibilidade de controle externo, sem que isso representasse um atentado à separação de poderes ou à independência das instituições. Este entendimento se mostra de grande relevância para a garantia de que a coisa pública seja gerida no interesse da coletividade e de que sejam preservados direitos fundamentais dos indivíduos. Neste sentido, vale citar trecho da obra de NOGUEIRA JÚNIOR (2003, p. 367): Mas o controle externo de um Poder por outro, em matéria administrativa, está longe de se constituir em heresia, bastando lembrar as funções desempenhadas pelo Tribunal de Contas da união, órgão auxiliar do Poder Legislativo, em relação aos órgãos e entidades dos Poderes Executivo e Judiciário. E também a atuação do Ministério Público Federal, tanto no TCU, como no CADE, como, ainda, nos juízos e Tribunais federais e nacionais. A democracia e a efetivação cada vez maior dos direitos humanos exige a diminuição no âmbito da liberdade absoluta da Administração Pública e dos Governos, reduzindo esta ao mínimo possível.

- Danos ao Estado Por fim, cabe mencionar um último argumento que foi suscitado em contraposição ao direito de acesso a documentos públicos, que foi a possibilidade de danos ao Estado. Na ADIMC 2361/CE, julgada em 11/10/2001, a Asso-

ciação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (ATRICON) impugnou dispositivo legal do Estado Ceará que previa que o Tribunal de Contas do Estado não teria acesso ao conteúdo de pesquisas e consultorias, assim como documentos relevantes, que pudessem gerar danos para o Estado. O STF considerou que não era legítima a restrição legal imposta a priori. Neste julgado, o STF ressaltou novamente que, a princípio, deveria viger o princípio da publicidade sobre os documentos públicos, devendo as restrições constituírem exceção, analisadas caso a caso. Além disso, ressaltou que a fiscalização pelo TCE se impunha como um imperativo a ser observado, de modo que seria ilegítima a restrição em face daquele órgão. 4.2 Restrição com base em questões procedimentais Em diversos julgados foram suscitados motivos de ordem procedimental como impeditivos do direito de acesso à informação. Sendo assim, apesar de não ser o objeto de análise deste trabalho, aponta-se a edição da Lei n° 12.527/2011 como um marco para a efetivação do direito à informação no Brasil, uma vez que, conforme seu art. 1º, dispõe “sobre os procedimentos a serem observados pela União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com o fim de garantir o acesso a informações previsto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constituição Federal”. Todos os julgados trazidos neste item foram anteriores à edição deste novo marco legal, e demonstram como a ausência de uma lei que trouxesse uma regulamentação procedimental básica e unificada sobre o direito de acesso a documentos públicos se tornava um empecilho para a sua efetivação. - Destinatários do pedido de acesso e conceitos centrais Uma das questões suscitadas nos julgados foi a caracterização do destinatário do pedido de acesso como autoridade pública. No caso do MS 21729, o Ministério Público pretendia obter acesso a documentos do Banco do Brasil com informações sobre repasses de verbas

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públicas federais a empresas do setor sucroalcooleiro. O debate sobre a possibilidade de acesso pautou-se, inicialmente, sobre a caracterização do destinatário do pedido (Banco do Brasil) como autoridade pública, pois, caso não o fosse, a requisição do documento seria indevida. O STF concluiu que a requisição se dirigia à autoridade pública, uma vez que a investigação não recaía sobre a atuação da entidade enquanto banco comercial, mas na função de agente delegado do Governo Federal, ao entregar dinheiro subsidiado pelos cofres públicos. A discussão sobre a caracterização do destinatário do pedido de acesso remete a outras preocupações, dentre as quais destacam-se a própria conceituação do que seria um documento ou informação pública e o estabelecimento de regras que definam quais autoridades são competentes para o fornecimento desta ou daquela informação. É interessante, assim, que uma lei que regule o acesso à informação traga conceitos centrais que delimitem o âmbito do exercício desse direito, como forma de viabilizá-lo, evitando que a própria discussão conceitual acabe por constituir um empecilho à sua efetivação. Quanto a essas preocupações, observa-se que a Lei nº 12.527/2011 trouxe alguns avanços, pois, ao regulamentar um procedimento específico para garantir o direito de acesso à informação, dispõe expressamente quais órgãos e entes se subordinam àquele regime legal. O art. 4º, por sua vez, traz alguns conceitos centrais, como o de “informação”, “documento”, “informação sigilosa”, “informação pessoal”, “disponibilidade”, “integridade”, entre outros, suprindo algumas deficiências antes existentes. - Revelação do interesse na obtenção da informação Outro questionamento levantado em um dos julgados foi sobre a necessidade de se demonstrar o interesse na obtenção do documento pleiteado. No MS-MC-AgR  28177/DF, julgado em 30/09/2009, que tratava do requerimento de acesso do jornal Folha da Manhã a dados sobre o uso 80

da verba indenizatória concedida aos Deputados Federais, o tema da motivação do pedido acesso foi alvo de alguns comentários. De um lado, a Ministra Ellen Gracie considerou que não seria razoável prover um pedido que não demonstrasse o interesse da parte em obter aquelas informações. De outro, o Ministro Carlos Ayres Britto considerou que o requerimento de informação de interesse geral ou coletivo prescindiria dessa demonstração. Neste caso, a manifestação do interesse não foi um ponto determinante para o resultado da demanda, no entanto, é uma consideração relevante para a prática diária da Administração Pública, em suas decisões. Com a Lei nº 12.527/2011, previu-se expressamente que “são vedadas quaisquer exigências relativas aos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público” (art. 10, §3º). Esta proibição relativa à exposição dos motivos determinantes da solicitação de informações de interesse público se coaduna com as próprias diretrizes estabelecidas pela Lei nº 12.527/2011, como “a divulgação de informações de interesse público, independentemente de solicitações” (art. 3º, inciso II), e a regra de que é “dever dos órgãos e entidades públicas promover, independentemente de requerimentos, a divulgação em local de fácil acesso, no âmbito de suas competências, de informações de interesse coletivo ou geral por eles produzidas ou custodiadas” (art. 8º).  Esta obrigação proativa de transparência, se antes já era depreendida do direito fundamental de acesso à informação (art. 5º, inciso XXXIII, CF) e dos princípios da Administração Pública, agora positivou-se em regras expressamente veiculadas pela Lei nº 12.527/2011. - Inexistência de registros e razoabilidade do pedido No caso do MS-AgR  24189/DF, julgado em 04/08/2005, um cidadão brasileiro requereu a relação de despesas da Câmara dos Deputados com passagens aéreas e diárias. Solicitou, ainda, documentação com os nomes dos usuários, locais e finalidades das viagens, desde 5 de outubro

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de 1988. No âmbito administrativo não houve sequer resposta ao pedido, mas, ao prestar informações, a autoridade apontada afirmou que não poderia coletar estes dados, pois não existiam estes registros. O STF considerou que a inexistência dos documentos impossibilitava o seu fornecimento, contudo, não houve qualquer debate sobre a obrigatoriedade de existência destes dados, de forma a permitir um cotrole social ou institucional sobre o uso do dinheiro público. Apesar da inexistência dos documentos ter constituído, por si só, a restrição ao acesso, há um problema que poderia ser levantado no caso em questão, que se remete à razoabilidade do pedido. Quando do requerimento administrativo, em 2001, o cidadão pretendia obter acesso a todos os registros, desde o ano 1988. Seria pertinente, dessa forma, saber se deve existir algum limite quanto ao volume de registros que poderia ser solicitado. Por outro lado, esse tipo de questionamento pode ser atenuado na medida em que se reforça a obrigação da Administração Pública de dar publicidade às informações de interesse coletivo, sobretudo com a expansão e democratização de recursos tecnológicos e a difusão e armazenagem de informações pela internet. Através desses recursos uma grande quantidade de dados pode ficar disponível, sem depender da movimentação de toda máquina administrativa para o atendimento de cada pedido. - Procedimento para o requerimento de acesso e para a recusa Uma última consideração, acerca do MSAgR 24189, se remete à ausência de qualquer reposta ao requerente do documento na esfera administrativa, constituindo uma recusa implícita ao pedido de acesso do cidadão brasileiro. Problema semelhante ocorreu no MSAgR  24099/DF, julgado em 07/03/2002. Este caso tratava do requerimento de um cidadão brasileiro de documentação referente à utilização da verba indenizatória do exercício parlamentar da Câmara dos Deputados. Quando do requerimento administrativo, a autoridade permitiu o

acesso aos documentos. No entanto, após um dia de consulta, o acesso foi impedido verbalmente, sem qualquer certidão ou justificativa. O STF, no MS-AgR 24099, entendeu que não havia prova do direito líquido e certo do impetrante, pois ele não havia provado a recusa (realizada verbalmente). Assim, extinguiu a causa sem sequer solicitar que a autoridade apontada prestasse informações. Sendo assim, o MS-AgR  24189 e MSAgR 24099 remontam a dois temas importantes: como deve ser realizado o pedido (qual procedimento deve ser seguido para o requerimento de acesso) e qual o procedimento que a Administração Pública deve adotar em caso de recusa. Esses problemas podem ser mitigados a partir da vigência da Lei nº 12.527/2011, que disciplinou tanto o procedimento para o requerimento quanto para a recusa. Quanto ao procedimento para recusa são interessantes algumas disposições no sentido de facilitar a sua oficialização e contestação. Assim, a mencionada lei prevê, por exemplo, a obrigatoriedade de “indicar as razões de fato ou de direito da recusa, total ou parcial, do acesso pretendido” (art. 11, §1º, inciso II); “o direito do requerente obter o inteiro teor de decisão de negativa de acesso, por certidão ou cópia” (art. 14) e a possibilidade de interposição de recurso administrativo (art. 15 e seguintes).  Acresce-se a essas obrigações formais impostas ao procedimento de recusa, a obrigação que a Administração Pública possui de auxiliar o requerente a suprir eventuais falhas em seu requerimento e indicar o procedimento correto (art. 7º, inciso I e art. 9º), informar sobre a possibilidade de recurso (art. 11, §4º), entre outras informações necessárias para a efetivação do direito de acesso a documentos públicos. - Inadequação da via processual eleita Por fim, cabe esclarecer que em dois julgados não houve propriamente uma recusa a um pedido de acesso, seja pela falta de um requerimento na esfera administrativa, seja pela resolução da questão na esfera judicial por motivos processuais (inadequação da via processual

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eleita para discussão do tema): HD-AgR 87/DF (visava saber a relação de parentes de Deputados Federais empregados junto ao Legislativo) e ADPF 153 (visava a identificação de militares e policiais que realizaram práticas de tortura na Ditadura Militar de 1964).

5 Considerações sobre a efetivação do direito à informação pelo STF: Estabelecido um panorama da situação dos julgados do STF sobre o direito de acesso a documentos públicos para o controle de práticas da Administração Pública, é possível fazer uma breve análise a respeito dos resultados observados. Nos cinco casos em que foi permitido o acesso aos documentos pleiteados, o argumento central foi de que se tratavam de dados submetidos ao princípio da publicidade e não de dados sigilosos. Nestes casos, o STF não realizou efetivamente uma ponderação entre direitos, pois considerou que não havia outros valores a serem protegidos em face da publicidade. A Corte realizou um controle de legitimidade e legalidade da imposição do sigilo aos documentos públicos (ADI 375, MS 21729, ADI-MC 2361, HC 84367, HC 93829). De modo mais detalhado, o STF considerou que houve equívoco das autoridades que sustentaram a existência de restrições de acesso fundamentadas: no direito à intimidade no MS 21729 (verbas públicas repassadas a empresas pelo Banco do Brasil) e no HC 84367 (documentos de sociedade de economia mista); no direito de não produzir provas contra si mesmo, no HC 93829 (despesas de Município); na vulnerabilidade a conveniências político-partidárias, na ADI 375 (despesas do TCE e TCMs no Amazonas); e em possíveis danos ao Estado, na ADI-MC 2361 (pesquisas e consultorias da Administração do Estado do Ceará). Ao realizar este controle, o STF demonstrou uma atuação importante na efetivação do direito à informação, ao tolher a utilização desmedida do sigilo pela Administração Pública, 82

que muitas vezes ocorre para atender interesses particulares dos agentes públicos. Nos dois casos em que se concluiu pelo acesso parcial, a restrição ao acesso inicialmente imposta era ampla, então o STF realizou uma separação das informações por ele consideradas sigilosas das que não o seriam. Novamente realizou um controle de legitimidade da imposição do sigilo, concluindo que parte das informações não poderiam ser acessadas, mas que o restante poderia ser de conhecimento dos requerentes (ADI 1127, MS-REF-MC 27483). Nos quatro casos em que não se permitiu o acesso, três se remeteram a motivos relativos ao procedimento (de pedido e recusa) do acesso à documentação (MS-AgR 24099, MS-AgR 24189 , MS-MC-AgR 28177 – todos sobre despesas da Câmara dos Deputados). Apenas no MS 22801 (dados de gestão do Banco Central do Brasil) houve uma análise de mérito, na qual o STF concluiu pela prevalência do direito à intimidade. Em dois casos, a questão do acesso aos documentos pleiteados não foi sequer analisada, diante da decisão de que a via processual eleita fora inadequada: HD-AgR 87 (informações sobre agentes da Câmara dos Deputados) e ADPF 153 (documentos da Ditadura Militar de 1964). A partir das descrições realizadas, observase que o STF não possui uma jurisprudência pacífica e consolidada sobre o assunto, havendo poucas decisões que analisaram o mérito do tema proposto por este trabalho. Apesar de ter sinalizado a importância atribuída ao princípio da publicidade e ao dever de transparência da Administração Pública, a Suprema Corte não conseguiu superar problemas decorrentes da ausência de um procedimento básico e unificado, estabelecido por lei, que regulamentasse o direito à informação, o que revela que esta ausência constituía um empecilho ao acesso desde a fase administrativa até a fase judicial. Diante destas considerações, importa observar que o advento da Lei nº 12.527/2011 pode se despontar como um marco importante para suprir falhas relacionadas a questões procedimentais, e também relativas ao mérito das restrições de acesso aos documentos públicos, ao disciplinar as situações de submissão ao regime

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de sigilo. Criam-se, assim, expectativas de que a Administração Pública passe a adotar práticas mais transparentes, em conformidade com o direito fundamental de acesso à informação.

Notas

seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado. Aí, como se vê do enunciado, amalgamam-se interesses particulares, coletivos e gerais, donde se tem que não se trata de mero direito individual. O direito de petição (art. 5º, XXXIV, a) pode também revelar-se como direito coletivo, na medida em que pode ser usado no interesse da coletividade, e geralmente o é, mais do que no interesse individual. (...)

É interessante observar que a pesquisa de acórdãos realizada no site do STF, que foi objeto da monografia que serviu de base para este artigo, resultou na estruturação de um quadro composto por duas grandes áreas de interesse no acesso a documentos públicos: (1) o acesso a documentos de interesse da sociedade e (2) o acesso a documentos de interesse particular. Esta separação pode ser depreendida do próprio artigo 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal. Foi possível subdividir este quadro em temas menores, de acordo com o objeto de cada acórdão analisado: (1) Documentos de interesse da sociedade, para (a) controle das práticas da Administração Pública; (b) acesso a dados históricos; e (c) compartilhamento de provas no âmbito estatal. (2) Documentos de interesse particular, para (a) defesa de direitos individuais; (b) acesso a informações de cunho pessoal; e (c) exercício de atividade econômica.

(3)

Essa classificação compreende o direito à informação enquanto um direito individual e enquanto um direito coletivo lato sensu. Enquanto direito individual, o acesso à informação se associa ao exercício da liberdade de expressão e opinião, ao exercício dos direitos políticos do cidadão, e à possibilidade das pessoas saberem o que se encontra sobre elas em registros ou bancos de dados de entidades governamentais ou de caráter público. Por outro lado, enquanto um direito coletivo lato sensu, se associa ao “direito de toda a sociedade em ser bem informada, de forma ampla e diversa, de modo a propiciar a formação e consciência política, social, cultural dos indivíduos livre e isonomicamente” (LOPES, 1997, p. 190), o que vem sendo facilitado pela relevância assumida pelos meios de comunicação de massa e sua função pública na sociedade atual.

(4)

A relação entre alguns destes dispositivos é explicada por José Afonso da Silva (2005), nos seguintes termos:

(5)

“A Constituição acolheu essa distinção. No capítulo da comunicação (arts. 220 a 224), preordena a liberdade de informar completada com a liberdade de manifestação do pensamento (art. 5º, IV). No mesmo art. 5º, XIV e XXXIII, já temos a dimensão coletiva do direito à informação. O primeiro declara assegurado a todos o acesso à informação. É o interesse geral contraposto ao interesse individual da manifestação de opinião, idéias e pensamento, veiculados pelos meios de comunicação social. Daí por que a liberdade de informação deixara de ser mera função individual para tornar-se função social. O outro dispositivo trata de direito à informação mais específico, quando estatui que todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de interesse particular, coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo

O habeas data (art. 5º, LXXII) é um remédio constitucional que tem por objeto proteger a esfera íntima dos indivíduos contra: (a) usos abusivos de registros de dados pessoais coletados por meios fraudulentos, desleais ou ilícitos; (b) introdução nesses registros de dados sensíveis (assim chamados os de origem racial, opinião política, filosófica ou religiosa, filiação partidária e sindical, orientação sexual etc.); (c) conservação de dados falsos ou com fins diversos dos autorizados em lei.” (p. 260 e 463). Para um histórico detalhado da evolução histórica das leis de acesso à informação brasileiras ver RODRIGUES; HOTT, 2007.

(6)

As críticas à Lei nº 8.159/1991 e à Lei nº 11.111/2005 culminaram em ações diretas de inconstitucionalidade: ADI 3987, proposta em 2007, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e ADI 4077, proposta em 2008, pelo Procurador-Geral da República. Estas ações encontram-se pendentes de julgamento pelo Supremo Tribunal Federal.

(7)

Neste sentido, destacam-se: os artigos 22 a 24 da Lei n° 8.159/1991, o conteúdo integral da Lei 11.111/05 e o artigo 7° do Decreto n° 4.553/2002.

(8)

A ADI 375 foi precedida pelo julgamento de medida cautelar (ADI-MC 375), mas os casos foram tratados como um só, tendo em vista a identidade de assunto e argumentação que foi observada.

(9)

Cabe, neste ponto, fazer um comentário em relação à presença da imprensa. Apesar de aparecer em apenas um julgado de interesse deste artigo, vários resultados da busca realizada no site do STF se relacionavam à possibilidade de a imprensa divulgar informações sigilosas a que teve acesso de forma não oficial. Observa-se, assim, que o importante papel da imprensa, no exercício do seu direito-dever de informar, possui como forte aliado o inciso XIV, do art. 5º, da Constituição Federal.

(10)

Esta ADI, julgada em 1991, traz um ponto que ainda é de grande atualidade, e suscita debates providos de fortes controvérsias, que é a possibilidade de acesso e/ou divulgação de dados sobre as folhas de pagamento dos agentes públicos, em uma demonstração das dúvidas sobre os limites entre o público e privado.

(11)

Referências CEPIK, Marco. Direito à Informação: Situação Legal e Desafios. Revista IP - Informática

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Crimes da ditadura E aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos Artigo juízes e tribunais brasileiros

Crimes da ditadura E aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros Luiz Flávio Gomes* Valerio de Oliveira Mazzuoli**

RESUMO: O artigo examina a condenação internacional do Brasil no chamado “Caso Araguaia”, em que a Corte Interamericana de Direitos Humanos anulou a Lei de Anistia brasileira, abrindo a possibilidade de revisão (pelo Judiciário brasileiro) dos crimes de tortura, morte e desaparecimento cometidos no Brasil durante o período da ditadura militar (1964-1985). Palavras-chave: Crimes da ditadura militar; condenação internacional; Corte Interamericana de Direitos Humanos; Lei de Anistia. ABSTRACT: This article analyzes the international condemnation of Brazil in the “Araguaia’s Case”, in which the American Court of Human Rights overturned the Amnesty Law in Brazil, opening the possibility of reviewing (by Brazilians judicial power) the crimes of torture, death and disappearance occurred in Brazil during the military dictatorship (1964-1985). Keywords: Crimes by the dictatorship; international condemnation, Inter-American Court of Human Rights, Amnesty Law.

1 Introdução Um dos maiores desafios do Direito para século XXI, sem sombra de dúvida, será conci*Doutor em Direito Penal pela Universidade Complutense de Madri. Mestre em Direito Penal pela Universidade de São Paulo. Jurista e cientista criminal. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto de Pesquisa e Cultura Luiz Flávio Gomes e co-diretor da LivroeNet. Foi promotor de justiça (1980-1983), juiz de direito (1983-1998) e advogado (1999-2001). **Pós-Doutor em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa. Doutor summa cum laude em Direito Internacional pela UFRGS. Mestre em Direito pela UNESP. Professor Adjunto (na Graduação e no Mestrado) de Direito Internacional Público e Direitos Humanos na Faculdade de Direito da UFMT. Membro da Sociedade Brasileira de Direito Internacional (SBDI) e da Associação Brasileira de Constitucionalistas Democratas (ABDC). Advogado e parecerista.

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Gomes, L. F. - Mazzuoli, V. O.

liar sua clássica formatação legalista, vinculada à soberania de cada Estado, com as novas ondas evolutivas do Direito e da Justiça hoje existentes na ordem internacional contemporânea, respectivamente, o internacionalismo e o universalismo, cuja formação teve início a partir da segunda metade do século XX, como decorrência do período sombrio do Holocausto que ensanguentou a Europa de 1939 a 1945.(1) Não obstante essa dificuldade constatada, de adaptação do Direito clássico a essa nova ordem internacional relativa a direitos humanos, o certo é que os passos iniciais rumo à efetiva internacionalização e universalização da proteção da pessoa humana já foram dados pelas cortes regionais de direitos humanos, ainda que seus julgamentos (e as suas condenações) tenham apenas efeitos cíveis, não penais.(2) Foi nesse sentido que a Corte Interamericana de Direitos Humanos, na sentença de 24 de novembro de 2010, relativa ao chamado “Caso Araguaia”, declarou a invalidade da Lei de Anistia brasileira que acobertava os crimes cometidos pelos agentes do Estado durante o período da ditadura militar (1964-1985). Isso significa a obrigação do Brasil de apurar esses delitos, processar e, se for o caso, punir todos aqueles que os praticaram. O STF, porém, em abril de 2010, havia declarado a validade da mesma Lei de Anistia. Ocorre que a sua decisão não entrou no tema da inconvencionalidade da lei citada.(3) A Justiça internacional ordenou então ao Brasil que investigasse tais crimes. Para o STF isso não seria possível. Como resolver todos esses conflitos típicos da pós-modernidade? A Justiça internacional vale mais que o STF? Como fica a soberania do Brasil? Os juízes brasileiros são obrigados a respeitar as decisões e a jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos? Este ensaio pretende responder essas questões intrincadas, assim como demonstrar qual a eficácia das decisões da Corte Interamericana no Brasil, em especial após a condenação do país no referido “Caso Araguaia”, em que a Corte da OEA anulou a Lei de Anistia brasileira, abrindo a possibilidade de revisão (pelo Judiciário brasileiro) dos crimes de tortura, morte e desapa86

recimento cometidos no Brasil durante o nosso período de ditadura militar.(4) Nas linhas abaixo procuraremos demonstrar qual a eficácia das decisões dos tribunais internacionais (de direitos humanos) no Direito brasileiro, bem assim como o Judiciário nacional deve cumprir todos esses mandamentos internacionais, em prazo razoável.(5)

2 O julgamento relativo ao “Caso Araguaia” e sua repercussão no Brasil Logo que anunciada a sentença da Corte Interamericana sobre o “Caso Araguaia” (desaparecimento de pessoas durante a ditadura militar brasileira), constatou-se vários focos de rejeição à referida decisão, alguns partindo dos próprios Ministros do STF.(6) Essa refutação (de certa forma contundente) naturalmente nos conduz a refletir sobre a aceitação e obrigatoriedade de aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros. Comecemos pelas declarações do Min. Cezar Peluso, que foi presidente do STF: “A decisão da Corte só gera efeitos no campo da Convenção Americana de Direitos Humanos (…) caso as pessoas anistiadas sejam processadas, é só recorrer ao STF. O Supremo vai conceder habeas corpus na hora”. Disse ainda que a decisão da Corte “só vale no campo da convencionalidade”.(7) Para o Min. Marco Aurélio “o governo está submetido ao julgamento do STF e não pode afrontá-lo para seguir a Corte da OEA. É uma decisão que pode surtir efeito ao leigo no campo moral, mas não implica cassação da decisão do STF. Quando não prevalecer a decisão do Supremo, estaremos muito mal. É uma decisão tomada no âmbito internacional, não no interno. Na prática [a decisão da Corte] não terá efeito nenhum”.(8) Para o Min. Jobim (ex-Ministro do STF e ex-Ministro da Defesa) a decisão da Corte Interamericana “é meramente política e sem efeito jurídico. O processo de transição no Brasil é

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pacífico, com histórico de superação de regimes, não de conflito”.(9) Como se verá ao longo deste ensaio, são totalmente equivocadas (do ponto de vista jurídico) tais declarações. No caso dos crimes da ditadura, como temos enfatizado, o melhor caminho foi seguido pelos Ministros Lewandowski e Ayres Britto (que foram votos vencidos na decisão do STF sobre a validade da Lei de Anistia). Frise-se de antemão que o STF, no dia 3 de dezembro de 2008, decidiu (historicamente) que os tratados internacionais de direitos humanos valem mais do que as leis internas e menos que a Constituição, possuindo nível supralegal no Brasil (cf. RE 466.343/SP).(10) Ainda que não tenha a Suprema Corte atribuído nível constitucional aos tratados de direitos humanos (por um voto faltante apenas), o certo é que trilhou o STF o caminho juridicamente correto (de respeito ao direito internacional dos direitos humanos, tal como vem sendo construído e seguido por todos os países civilizados). Sem qualquer dúvida, a Lei de Anistia brasileira viola vários tratados internacionais de direitos humanos (especialmente a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, de 1969) e não possui nenhum valor jurídico na nossa ordem jurídica, sobretudo o efeito de acobertar os abusos cometidos pelos agentes do Estado, durante o período da ditadura militar.(11) Como observação preliminar, vale sublinhar o seguinte: as declarações citadas dos Ministros do STF partem da premissa de um ordenamento jurídico dualista (o direito interno não teria nenhuma relação com a ordem internacional; cada qual teria sua autonomia e eficácia próprias). Isso já vem sendo desconsiderado (no âmbito da doutrina internacional atualizada) há muitas e muitas décadas. No Brasil, tal desconsideração vem sobretudo agora depois da entrada em vigor no país da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que adota nitidamente o sistema monista das relações entre o direito internacional e o direito interno.(12) A sentença da Corte Interamericana valeria (de acordo com as mencionadas declarações) “só no plano moral”, “só no plano internacional”, “só no campo da convencionalidade”, “só no

plano político” etc. Tais declarações, como se vê, dividiram o direito brasileiro ao meio (como se isso fosse, hoje, possível): direito nacional de um lado (em que o STF reina de forma absoluta) e o direito internacional de outro (aparentemente alheio à nossa brasilidade…). Este último seria um ordenamento jurídico alegórico, retrato de uma simples carta de esperança, um conjunto de regras somente políticas ou somente morais, sem a força coativa do Direito. Nada mais equivocado, de acordo com a decisão da Corte Interamericana (que detalharemos mais adiante). A premissa (e preocupação) básica de todos os tratados de direitos humanos é a seguinte: quaisquer violações de direitos das vítimas, quando não amparadas pelo Poder Judiciário local (nacional) podem e devem ser apreciadas por algum sistema internacional de direitos humanos, seja ele regional (no nosso caso, o sistema regional interamericano) ou global (o sistema das Nações Unidas, com seus comitês de direitos humanos etc.).(13) As declarações retrorreferidas se explicam com maior razão na nossa realidade, em razão da tradicional conivência de setores do Judiciário brasileiro com a chamada “legalidade autoritária”, conforme denunciam Paulo Sérgio Pinheiro e Anthony Pereira no livro Ditadura e repressão.(14) O Ministério das Relações Exteriores, em nota,(15) prontamente disse que o Brasil irá cumprir a decisão da Corte Interamericana. A decisão obriga o governo brasileiro (logo, também o STF). Não se trata de pretender ou não cumprir a sentença. O que está em jogo é que o Estado (a República brasileira) tem a obrigação de cumprir a decisão internacional. Os Ministros do STF não têm responsabilidade internacional; falam, portanto, em defesa dos seus pontos de vista. Suas declarações, no entanto, em termos internacionais, não possuem qualquer valor jurídico vinculante (embora causem grande desconforto).(16) Aliás, como bem enfatizou a Corte Interamericana na sentença de 24.11.2010, nem sequer a decisão do STF (que validou a Lei de Anistia em abril de 2010) possui qualquer tipo de relevância (ou obrigatoriedade/eficácia) no plano jurídico internacional. A Corte não

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revogou a decisão do STF, porque não é essa a sua função. Ela simplesmente analisou a decisão do Supremo no plano do controle de convencionalidade.(17) E concluiu que o STF não levou em conta os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil (em especial a Convenção Americana sobre direitos Humanos de 1969) na sua decisão. Daí certamente a fonte do seu equívoco. A Corte, no momento em que obriga a República brasileira, também obriga o STF (que dela faz parte). E se o STF não acatar a decisão da Corte, dando habeas corpus para trancar eventual ação penal impetrada contra os torturadores da ditadura? Nova violação à Convenção Americana de Direitos Humanos passa a ocorrer. E nova condenação da mesma Corte contra o Brasil pode existir (podendo até mesmo haver a exclusão do país da OEA). Mais problemas internacionais para o Brasil, portanto. O bonde da história do Direito está trafegando e o Judiciário brasileiro, ao que parece neste primeiro momento, não está percebendo as suas evoluções. O certo é que o Brasil não pode destoar dos seus vizinhos (Argentina, Chile etc. (18)), que já cumprem, há vários anos, rigorosamente as decisões (bem assim a jurisprudência) da Corte Interamericana. Todo o Continente Americano (com exceção basicamente dos Estados Unidos) vem afinando sua jurisprudência com a da Corte da OEA em matéria de direitos humanos. Como se demonstrará em seguida, o direito internacional dos direitos humanos não pode deixar de ser aplicado pelos juízes e tribunais brasileiros, sendo dever destes últimos dar efetividade, no plano do direito interno, às decisões emanadas das instâncias internacionais das quais o Brasil é parte.

3 A internacionalização dos direitos humanos Tendo em conta a evolução histórica do direito internacional e do nosso próprio ordenamento jurídico, o tema da aplicação (e respeito) do direito internacional dos direitos humanos 88

pelos juízes e tribunais brasileiros pode ser organizado e analisado em quatro etapas: (a) internacionalização dos direitos humanos; (b) adesão formal do Brasil ao direito internacional dos direitos humanos; (c) reconhecimento da força normativa (hierarquia superior) do direito internacional dos direitos humanos; (d) respeito e internalização (aplicação) do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais locais. Vamos cuidar, desde logo, do primeiro aspecto da questão. O direito internacional dos direitos humanos nasceu com toda intensidade após o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As atrocidades da primeira metade do século XX (lamentavelmente os fascismos e nazismos continuaram, em alguns pontos do planeta, na segunda metade daquele século) levaram incontáveis nações soberanas a, juntas, darem autonomia a esse novo ramo do direito chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos, tido hoje como ramo autônomo das Ciências Jurídicas.(19) O internacionalismo (internacionalização do Direito) tem sua certidão de nascimento original com a adoção da Carta da ONU de 1945. Depois disso, a perspectiva emancipatória dos direitos humanos (e fundamentais) materializouse com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 (que constitui o documento fundante do universalismo), tendo ganhado corpo operacional com os Pactos sobre Direitos Civis e Políticos e sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (adotados em Nova York) de 1966. Concomitante a esses instrumentos, e depois deles, vieram outros incontáveis tratados de direitos humanos concluídos tanto no âmbito da ONU quanto no plano dos sistemas regionais (europeu e interamericano, especialmente). Relevo sintetizador e definidor, nesse período histórico, no entanto, tem mesmo a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pelas Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948, que demarcou de uma vez por todas a era internacional dos direitos e a inserção do tema “direitos humanos” na agenda internacional.(20) A partir da Declaração Universal a sociedade internacional passou a contar com inúmeros tratados e convenções sobre direitos humanos,

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pertencentes tanto ao sistema global (da ONU) quanto aos sistemas regionais de direitos humanos (o Brasil, como veremos, aderiu formalmente a praticamente todos os tratados internacionais nessa área). Adicionalmente foram sendo criadas as jurisdições internacionais, com o escopo de fazer valer o corpus juris dedicado aos direitos humanos. E hoje já se conta, inclusive, com um tribunal dotado de jurisdição de âmbito criminal, o Tribunal Penal Internacional (em funcionamento desde 2002). 3.1 Complementaridade da tutela internacional A responsabilidade pela aplicação de todo esse “novo” ramo do direito, no entanto, não é exclusiva dos tribunais internacionais. A bem da verdade, a obrigação primeira de fazer valer os seus termos é de cada Estado, que está compelido a dar respostas efetivas, sempre que não tenha evitado as agressões contra os direitos humanos. No contexto regional interamericano, é clara a Convenção Americana ao reconhecer, nos considerandos iniciais, que “os direitos essenciais da pessoa humana não derivam do fato de ser ela nacional de determinado Estado, mas sim do fato de ter como fundamento os atributos da pessoa humana, razão por que justificam uma proteção internacional, de natureza convencional, coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados Americanos”. Na sentença do “Caso Araguaia” (de 24.11.2010, parágrafo 140), a Corte Interamericana, a propósito, sublinhou que:

e pleno exercício dos direitos humanos. Como consequência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos humanos reconhecidos pela Convenção e procurar, ademais, o restabelecimento, caso seja possível, do direito violado e, se for o caso, a reparação dos danos provocados pela violação dos direitos humanos. Se o aparato estatal age de modo que essa violação fique impune e não se reestabelece, na medida das possibilidades, à vítima a plenitude de seus direitos, pode-se afirmar que se descumpriu o dever de garantir às pessoas sujeitas a sua jurisdição o livre e pleno exercício de seus direitos”.

A tutela internacional é, nesse contexto, coadjuvante ou complementar das jurisdições nacionais. Ou seja, primeiro e antes de tudo a obrigação de fazer valer todo o ordenamento jurídico específico dos direitos humanos é dos Estados (e de todos os seus poderes) que fazem parte dos tratados. A mesma Corte, na citada sentença, no parágrafo 31 afirmou que “em conformidade com o preâmbulo da Convenção Americana, a proteção internacional de natureza convencional é ‘coadjuvante ou complementar da que oferece o direito interno dos Estados americanos’”; e no parágrafo 32 enfatizou que a proteção “exercida

pelos órgãos internacionais tem caráter subsidiário e o propósito de uma instância internacional não é revisar ou reformar a sentença interna, mas constatar se a refe“(...) a obrigação, conforme o Direito rida sentença está em conformidade com Internacional, de processar e, caso se as normas internacionais”. determine sua responsabilidade penal, punir os autores de violações de direitos humanos, decorre da obrigação de garantia, consagrada no artigo 1.1 da Convenção Americana. Essa obrigação implica o dever dos Estados-Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas por meio das quais se manifesta o exercício do poder público, de maneira tal que sejam capazes de assegurar juridicamente o livre

Não agindo o Estado, deve então processarse a queixa ou reclamação perante a Corte Interamericana, cujo poder decisório (por autorização do próprio Estado que ratificou o tratado respectivo) está acima do das jurisdições nacionais. 3.2 Interdependência entre o direito internacional e o direito interno Não existe, destarte, uma relação de independência (absoluta) entre a jurisdição interna-

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cional e a nacional (local). Melhor dito, a relação é de interdependência e complementaridade entre ambas, visto que o escopo das duas esferas normativas e jurisdicionais (internacional e interna) conflui para um denominador comum: dar vida e força para todas as disposições relacionadas com a proteção dos direitos humanos, harmonizando as internas com as internacionais, a jurisprudência local com a jurisprudência dos tribunais não locais. Tanto o direito internacional quanto o direito interno, em matéria de proteção dos direitos humanos, almejam um único fim, que é a proteção efetiva dos seres humanos sujeito de direitos. Quando o Estado assume os tratados internacionais de direitos humanos, ratificando-os e colocando-os em vigor na ordem jurídica interna, está abrindo mão de parcela de sua soberania em prol dos direitos das pessoas.(21) Pode-se também dizer que na pós-modernidade jurídica as relações entre o direito internacional e o direito interno são relações dialógicas, em que um ordenamento “dialoga”(22) com o outro a fim de escolherem (juntos) qual norma (internacional ou interna) será aplicada no caso concreto quando presente uma violação de direitos humanos, em consagração do princípio internacional pro homine.(23) 3.3 Do princípio do domestic affair ao do international concern Como já sublinhado, importa observar que nessa fase internacionalista do Estado, do Direito e da Justiça, o princípio do domestic affair (ou da não ingerência), que limitava o direito internacional às relações entre Estados no contexto de uma sociedade internacional formal, evoluiu para o do international concern, que significa que o gozo efetivo, pelos cidadãos de todos os Estados, dos direitos e liberdades fundamentais, passa a ser verdadeira questão de direito internacional.(24) Na prática, tal significa que agora temos também juízes internacionais para tutelar nossos direitos violados, e não mais apenas juízes internos a exercer esse tipo de proteção. Estes últimos já não têm mais a última palavra quando se trata de amparar um direito humano ou fundamental, 90

tendo (doravante) que dividir esta tarefa com os magistrados das cortes regionais de direitos humanos, que têm jurisdição supranacional autorizada (com a participação e manifestação de vontade dos próprios Estados) pelos tratadosfundação dos sistemas regionais de proteção.(25) Também os juízes criminais internos terão agora que dividir sua jurisdição com a do Tribunal Penal Internacional, quando a Justiça interna não funcionar ou não tiver condições de julgar um acusado de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou agressão (todos delitos tipificados pelo Estatuto de Roma de 1998). Antigamente, a garantia dos direitos humanos e fundamentais era uma questão puramente doméstica (interna) de cada Estado. O direito internacional (antes da fase conhecida por funcionalização) não interferia nas questões internas dos Estados. Agora não, pelo seguinte: a proteção dos direitos humanos e fundamentais é a finalidade precípua de todos os sistemas jurídicos, locais e internacionais. A tutela dos direitos humanos e fundamentais é, portanto, também uma questão internacional. Quem sofre a violação de um desses direitos e não é atendido internamente, pode sê-lo internacionalmente (no nosso caso, pelo sistema interamericano de proteção dos direitos humanos). Os juízes internos, no modelo constitucionalista, passaram a ser os “fiscais” da constitucionalidade – assim como da convencionalidade – das leis e da observância dos direitos humanos e fundamentais. Uma observação importante: a Corte Interamericana não revisa as decisões dos tribunais locais diretamente. Indiretamente isso acaba acontecendo, em razão da sua preocupação em verificar se esses tribunais decidiram a questão em consonância com as obrigações assumidas pelos Estados por meio dos tratados internacionais. Na sentença do Caso Araguaia, parágrafo 176, a Corte proclamou: “Este Tribunal estabeleceu em sua jurisprudência que é consciente de que as autoridades internas estão sujeitas ao império da lei e, por esse motivo, estão obrigadas a aplicar as disposições vigentes no ordenamento jurídico. No entanto, quando

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um Estado é Parte de um tratado internacional, como a Convenção Americana, todos os seus órgãos, inclusive seus juízes, também estão submetidos àquele, o que os obriga a zelar para que os efeitos das disposições da Convenção não se vejam enfraquecidos pela aplicação de normas contrárias a seu objeto e finalidade, e que desde o início carecem de efeitos jurídicos. O Poder Judiciário, nesse sentido, está internacionalmente obrigado a exercer um “controle de convencionalidade” ex officio entre as normas internas e a Convenção Americana, evidentemente no marco de suas respectivas competências e das regulamentações processuais correspondentes. Nessa tarefa, o Poder Judiciário deve levar em conta não somente o tratado, mas também a interpretação que a ele conferiu a Corte Interamericana, intérprete última da Convenção Americana”.

É importante a obrigação que coloca a Corte Interamericana de os juízes e tribunais internos controlarem a convencionalidade das leis no país, verificando se tais leis estão ou não de acordo com os tratados de direitos humanos em vigor no Estado. Caso alguma lei (ou norma de direito interno) esteja em desacordo com o estabelecido por tais tratados (em especial, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos), deve operar-se de imediato sua invalidade jurídica (ainda que continue vigente no Estado).(26) Foi exatamente isto que ocorreu com a Lei de Anistia brasileira: ela não passou no teste (no exame) de compatibilidade (vertical) com a Convenção Americana, sendo, portanto, totalmente inválida na ordem jurídica brasileira, ainda que esteja formalmente vigente.(27) 3.4 Estado de direito constitucional e Estado de direito internacional Importante sublinhar, de outro lado, que o surgimento do Estado de Direito internacional (ou seja: internacionalização dos direitos humanos) não significou o fim do Estado de Direito Constitucional e legal.(28) As duas primeiras ondas evolutivas do Direito (legalismo e constitucionalismo) não desapareceram com o

irrompimento da terceira onda (do internacionalismo), e muito menos com a quarta onda (do universalismo).(29) Todas essas ondas evolutivas do Estado, do Direito e da Justiça contribuíram (e contribuem) para deixar claro o papel do Estado no que tange à proteção dos direitos humanos, notadamente sob a ótica do direito internacional público pósmoderno, que não admite o esquecimento dos piores e mais bárbaros crimes já cometidos (como tortura, sequestros, mortes ilegais etc.). Nesse sentido, ambos os modelos de Estado (o Estado de Direito Constitucional e o Estado de Direito Internacional) coexistem para proteger mais os seres humanos, cujos direitos encontramse amparados tanto pela Constituição quanto pelos tratados de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no país. 3.5 Estrutura normativa do Estado de Direito internacional Há o sistema global (universal) de proteção dos direitos humanos (regido pela ONU, além de suas agências especializadas) e existem também os sistemas regionais (que atualmente são três: o interamericano, o europeu e o africano, este último ainda dando passos iniciais) de proteção desses mesmos direitos.(30) Cada um desses sistemas possui estrutura jurídica própria. Essa nova conformação jurídica do Direito forma o que se pode chamar de constitucionalismo mundial, que nada mais é do que a soma do constitucionalismo à internacionalização e universalização do Direito. No Estado de Direito internacional possuem relevância ímpar não apenas as leis e a Constituição de cada Estado, senão também o Direito Internacional dos Direitos Humanos (e todos os seus instrumentos de proteção), bem assim o Direito universal (v.g., o TPI).(31) O Estado de Direito internacional é constituído, portanto, de normas infraconstitucionais, constitucionais e, sobretudo, internacionais. Muitas são as fontes normativas do Direito, na atualidade: (1) todas as normas inferiores às leis, as leis e os códigos e seus princípios (esse é o

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plano da legalidade, cabendo aqui o controle de legalidade daquilo que é inferior à lei); (2) os tratados internacionais, destacando-se dentre eles os tratados de proteção dos direitos humanos e seus princípios (aqui se faz o controle de convencionalidade difuso); (3) a Constituição e seus princípios, assim como os tratados internacionais aprovados por maioria qualificada, nos termos do art. 5.º, § 3.º, da Constituição de 1988 (aqui se realiza o controle de constitucionalidade e o controle de convencionalidade, tanto difuso como concentrado); (4) a jurisprudência constitucionalizada (e todos os consectários daí decorrentes); (5) a jurisprudência do sistema interamericano de direitos humanos (Comissão e Corte Interamericanas); (6) o direito universal (especialmente as normas de jus cogens) e seus princípios; e (7) a jurisprudência internacional dos órgãos jurisdicionais universais (como o TPI, v.g.). 3.6 A nova construção de um “direito dialógico” A consequência da evolução do Direito (pelas ondas evolutivas acima referidas) é o surgimento de um “direito dialógico”, em vez do velho e conhecido “direito dialético”. Nesse sentido, faz-se necessário um “diálogo das fontes”,(32) eis que “a Constituição não exclui a aplicação dos tratados, e nem estes excluem a aplicação dela, mas ambas as normas (Constituição e tratados) se unem para servir de obstáculo à produção normativa doméstica infraconstitucional que viole os preceitos da Constituição ou dos tratados de direitos humanos em que a República Federativa do Brasil é parte”.(33) O direito dialógico, então, consiste na “articulação da legislação nacional com a internacional”,(34) que agora caracteriza o Estado de Direito Internacional, à medida que, em vez de excluir uma fonte em detrimento da outra, esse novo tipo de Estado (pós-moderno por natureza) aceita o “diálogo” entre essas mesmas fontes, escutando o que elas dizem.(35) A primeira e principal característica do Estado e do Direito, depois da internacionalização dos direitos humanos, reside na pluralidade de 92

fontes normativas, heterogêneas e hierarquicamente distintas. Essa proliferação de normas (sem contar as de soft law e as de direito “vago” ou fuzzy) parece ocorrer de forma anárquica, necessitando um ponto de equilíbrio.(36) Esse ponto de equilíbrio reside justamente na incidência do chamado princípio pro homine, que exige a aplicação sempre da norma mais favorável ao ser humano sujeito de direitos.(37) Por esse motivo é que, hoje, somente a complexa (e correta) articulação (diálogo) de todas as suas distintas fontes normativas (normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais) é que possibilita (a) aproximar a uma justa solução para os conflitos, sobretudo os que envolvem os direitos humanos; e (b) redimensionar o verdadeiro conteúdo do devido processo legal. O operador jurídico, assim como o juiz de direito em especial, não pode desconhecer nesse novo modelo de Estado, os três conjuntos normativos mencionados: internacional, constitucional e infraconstitucional. Tampouco podem desconhecer a jurisprudência interna e a internacional, em especial a jurisprudência dos tribunais de direitos humanos. De outro lado, não se pode ignorar, dentro do direito internacional, o caráter sui generis do direito internacional dos direitos humanos, que goza de prestígio diferenciado no Brasil (v. infra) e em quase todas as ordens jurídicas democráticas na atualidade.

4 Adesão formal do Brasil ao direito internacional dos direitos humanos Parece não haver dúvida que é bastante significativo o avanço do Estado brasileiro (nas últimas duas décadas) no que se refere à adesão ao movimento (e ao direito) internacional dos direitos humanos, que ganhou singular impulso (como já sublinhamos) depois da Segunda Guerra Mundial. A internacionalização dos direitos humanos e o fato da sua singularidade (cuida-se de um conjunto normativo sui generis), ao lado da falência do positivismo legalista (contratualista), constituem provavelmente a transformação jurí-

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dica mais destacada do século XX. A Declaração Universal de 1948 foi, nesse campo, um marco político e jurídico de importância indiscutível, dada a sua abertura de horizontes capaz de fazer repensar o Direito tendo como paradigma não mais os interesses recíprocos dos Estados, mas agora o interesse das pessoas. Do ponto de vista normativo (plano em que se desenvolve a democracia formal) o cenário brasileiro, especialmente depois da Constituição de 1988, é claramente distinto do precedente (quando nosso país era governado pelo regime militar).(38) Recorde-se que o Brasil é signatário de praticamente todos os documentos internacionais sobre direitos humanos, tanto do sistema global como do sistema regional interamericano.(39) Na sua quase totalidade os tratados e convenções de direitos humanos foram ratificados e se encontram em pleno vigor no nosso país. Restava para o Brasil dar vigência interna à Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969, que conquanto não seja um tratado de direitos humanos é o “tratado dos tratados”, e também esse mister já foi cumprido.(40) De qualquer forma, estar integrado internacional e normativamente ao movimento global de tutela dos direitos humanos não significa automaticamente que esses direitos estejam sendo satisfatoriamente respeitados no nosso território ou que o Brasil já tenha alcançado níveis mínimos de tutela desses mesmos direitos. O acesso ao Judiciário brasileiro, v.g., ainda é muito precário. A impunidade, sobretudo quando tem origem em “operações ou cruzadas militares”, ainda é enorme em nosso país.(41) Os direitos sociais são precariamente atendidos etc. Em outras palavras, o Brasil é, sem sombra de dúvida, sujeito ativo de muitas violações de direitos humanos, ou seja, é autor de muitos ilícitos internacionais em matéria de direitos humanos. (42) Seja em razão de violência dos seus próprios agentes, seja por força de sua omissão, certo é que o Estado brasileiro já começou a responder por esses ilícitos perante os órgãos internacionais de proteção dos direitos humanos. Já desde as primeiras denúncias contra o Brasil junto à Comissão Interamericana de Di-

reitos Humanos (casos do presídio Urso Branco em Rondônia, assassinatos de crianças e adolescentes no Rio de Janeiro etc.) ficava patente o quanto a tutela interna dos direitos humanos ainda está defasada em nosso país. O Brasil reconheceu a jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998,(43) e sua primeira condenação por ela ocorreu no “Caso Damião Ximenes”. O governo Lula (neste último caso) acatou imediatamente a decisão da Corte e pagou às vítimas a indenização arbitrada.(44) No “Caso Araguaia” espera-se que o governo (e também o Legislativo e o Judiciário) respeite da mesma forma a sentença.

5 Reconhecimento da força normativa (hierarquia superior) do direito internacional dos direitos humanos Existe hierarquia entre tais normas (legais, constitucionais e internacionais) no Direito brasileiro? O direito internacional dos direitos humanos conta com natureza sui generis? Não existe nenhuma dúvida que o direito internacional dos direitos humanos possui status diferenciado no plano do direito interno dos Estados. Em praticamente todos (senão todos) os ordenamentos jurídicos é assim. No Brasil não poderia ser diferente. Com efeito: a) os direitos e garantias previstos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (art. 5.º, § 2.º). Esse dispositivo constitucional sempre nos permitiu subscrever a tese da constitucionalidade do direito internacional dos direitos humanos na ordem jurídica brasileira (tese esta que, sustentada pelo Min. Celso de Mello no STF, ficou minoritária no RE 466.343/SP, como veremos infra); b) a EC 45/2004 (Reforma do Judiciário) autoriza que os tratados de direitos humanos tenham “equivalência” de Emenda Constitucional, desde que seguido o procedimento contemplado no § 3.º do art. 5.º, da Constituição (votação de três quintos, em dois turnos em cada Casa do Congresso Nacional);

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Constitui exemplo disso hoje a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, assinados em Nova York, em 30 de março de 2007, e promulgados pelo Decreto 6.949, de 25.08.2009 (que entraram no Brasil com equivalência de Emenda Constitucional, por terem sido ratificados depois de aprovados pelo Congresso com quorum qualificado – Decreto Legislativo 186, de 09.07.2008). c) depois de décadas de atraso em matéria de direito internacional, finalmente a Corte Suprema brasileira reconheceu (em 03.12.2008) o valor (no mínimo) supralegal dos tratados internacionais de direitos humanos (RE 466.343-1/ SP e HC 87.585/TO); foi vencedora (por ora) a tese do Min. Gilmar Mendes (por cinco votos a quatro), não a tese do valor constitucional (defendida no STF pelo Min. Celso de Mello, e que sempre entendemos seja a melhor solução); d) em matéria de direitos humanos já se pode falar no Brasil (finalmente) numa (emblemática) “nova e superior instância” (de Justiça), que é composta, fundamentalmente, por dois órgãos: (1) a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e (2) a Corte Interamericana de Direitos Humanos (sediadas, respectivamente, em Washington e em San José da Costa Rica). Ambas fazem parte do nosso sistema (regional) interamericano de proteção dos direitos humanos.(45) De muitas maneiras pode ser explicada a presença dessa “superior instância” (na verdade, instância extraordinária e complementar de proteção dos direitos humanos) na vida do brasileiro. Mas talvez a mais contundente esteja no fato de a Corte Interamericana (e a Comissão) estar começando a condenar o Brasil nas suas violações aos direitos humanos (v.g., os casos Ximenes Lopes e Araguaia são paradigmáticos: em todos eles a Corte determinou sanções contra o Brasil). Até 2008, nosso Direito produzido pelo constituinte e pelo legislador ordinário só reconhecia hierarquia superior para as normas constitucionais. Depois de 2008, apresentou-se no direito brasileiro uma nova (e totalmente renovada) pirâmide jurídica, em que na base con94

tinuam as leis ordinárias, mas que acima dessa base encontram-se os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Estado e em vigor no país.(46) Velha jurisprudência do STF (com origem nos anos 70 do século XX, no RE 80.004/SE) dizia que os tratados internacionais (aí inclusos os de direitos humanos) valiam tanto quanto a lei ordinária, no que se consagrava o chamado sistema paritário entre as normas internacionais e de direito interno. Ou seja, leis ordinárias e tratados (inclusive os de direitos humanos) ocupavam o mesmo patamar jurídico no que concernia à hierarquia das fontes. Normas superiores eram apenas as constitucionais, mais nenhuma outra (seguindo a velha alegoria da “pirâmide” kelseniana). Essa tradicional e provecta estrutura ou pirâmide jurídica (ou seja, essa forma de compreender o Direito sob a ótica legalista positivista) está absolutamente esgotada na pós-modernidade, não tendo hoje mais qualquer razão de ser. A antiga pirâmide kelseniana foi definitivamente sepultada pelo STF, no seu julgamento histórico do dia 3 de dezembro de 2008.(47) Nesse julgamento o STF admitiu o valor (no mínimo) supralegal dos tratados de direitos humanos (ratificados pelo Brasil e incorporados no direito interno). De que maneira o direito internacional dos direitos humanos pode ser incorporado à ordem jurídica interna? No Brasil, ele pode ser (teoricamente) incorporado como: a) Emenda Constitucional (esse é o caso da nossa CF, art. 5.º, § 3.º – esse dispositivo vale para todos os tratados de direitos humanos aprovados com quorum especial, tal como se deu com a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo – v. supra); b) como direito supralegal (voto do Min. Gilmar Mendes, no RE 466.343/SP); c) como direito constitucional (posição do Min. Celso de Mello – RE 466.343/SP e HC 87.585/TO – e de grande parte da doutrina, com fundamento no art. 5.º, § 2.º, da CF); ou

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d) como direito supraconstitucional (como, v.g., o Tribunal Penal Internacional, que tem jurisdição supranacional). São múltiplas as técnicas legislativas de incorporação do direito internacional dos direitos humanos ao direito interno. Observação preliminar: a antiga jurisprudência do STF (RE 80.004/SE), no sentido de que o direito internacional dos direitos humanos valeria apenas como direito ordinário, foi (sabiamente) abandonada desde 2008 no Brasil (RE 466.343/SP). Primeira corrente: a primeira possibilidade de incorporação do direito internacional dos direitos humanos no direito interno (incorporação como Emenda Constitucional) vem disciplinada no § 3.º do art. 5.º da Carta, inserido pela Emenda Constitucional 45, que diz: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Segunda corrente: a segunda possibilidade (direito supralegal) foi sustentada no voto supracitado do Min. Gilmar Mendes (RE 466.343-1/ SP), que foi reiterado tanto no HC 90.172/SP, 2.ª Turma, votação unânime, j. 05.06.2007, como no HC 87.585/TO. No HC 90.172/SP decidiu-se o seguinte: “A Turma deferiu habeas corpus (…). Em seguida, asseverou-se que o tema da legitimidade da prisão civil do depositário infiel, ressalvada a hipótese excepcional do devedor de alimentos, encontra-se em discussão no Plenário (RE 466.343-1/SP, v. Informativos 449 e 450) e conta com sete votos favoráveis ao reconhecimento da inconstitucionalidade da prisão civil do alienante fiduciário e do depositário infiel. Tendo isso em conta, entendeu-se presente a plausibilidade da tese da impetração. Reiterou-se, ainda, o que afirmado no mencionado RE 466.343-1/SP no sentido de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior

ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), não há mais base legal para a prisão civil do depositário infiel. HC 90172/SP, rel. Min. Gilmar Mendes, 05.06.2007.” O direito constitucional, depois de 1988, conta com relações diferenciadas perante o Direito Internacional dos Direitos Humanos. A visão da supralegalidade deste último encontra amparo em vários dispositivos constitucionais (CF, arts. 4.º e 5.º, §§ 2.º, 3.º e 4.º).(48) Terceira corrente: a terceira corrente acima referida (nível de direito constitucional) emana de um consolidado entendimento doutrinário,(49) que já conta com várias décadas de existência no nosso país.(50) Em consonância com essa linha de pensamento há, inclusive, algumas decisões do STF (RE 82.424, rel. Min. Carlos Velloso), mas é certo que essa tese nunca foi majoritária na nossa Suprema Corte. Somente agora é que ela ganhou reforço com a posição do Min. Celso de Mello (HC 87.585/TO). O STF (em tempos passados) já havia reconhecido o valor constitucional dos tratados de direitos humanos, não se entendendo o por quê de ter mudado posteriormente de posição. O seu novo posicionamento pode ser assim expresso: “Com efeito, esta Suprema Corte, ao interpretar o texto constitucional, atribuiu, em determinado momento (décadas de 1940 e de 1950), superioridade às convenções internacionais em face da legislação interna do Brasil (ApCiv 7.872/RS, rel. Min. Laudo de Camargo; ApCiv 9.587/DF, rel. Min. Lafayette de Andrada), muito embora, em sensível mudança de sua jurisprudência, viesse a reconhecer, em momento posterior (a partir da década de 1970), relação de paridade normativa entre as espécies derivadas dessas mesmas fontes jurídicas (RTJ 58/70; RTJ 83/809; RTJ 179/493-496, v.g.)”. Quarta corrente: o valor supraconstitucional dos tratados de direitos humanos, que nunca teve repercussão jurisprudencial entre nós (mas agora, depois do advento do Tribunal Penal In-

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ternacional, esse tema irá requerer nova atenção dos juristas).(51) Posição do STF (decisão histórica): na histórica decisão do STF de 03.12.2008 (RE 466.343/SP) dois foram os votos marcantes (de Gilmar Mendes e Celso de Mello): são divergentes na intensidade (gradualidade), mas convergentes na adoção de um novo modelo de Estado (de Direito e de Justiça). Pelo valor histórico que possuem, vejamos a síntese dos dois (revolucionários) votos citados: 1.º Voto do Min. Gilmar Mendes. De acordo com Gilmar Mendes (voto proferido no RE 466.343-1/SP) os tratados de direitos humanos, precedentes ou posteriores à EC 45/2004, desde que não aprovados por quorum qualificado, nos termos do art. 5.º, § 3.º, da CF, possuem valor supralegal (e infraconstitucional). A pirâmide jurídica (tridimensional) defendida por ele é a seguinte: a) no topo acha-se a Constituição (assim como os tratados de direitos humanos aprovados de acordo com o procedimento do art. 5.º, § 3.º, da CF); b) abaixo dela, mas acima da lei ordinária, estão os tratados internacionais de direitos humanos não aprovados pelo quorum qualificado, pouco importando se o tratado é anterior ou posterior à EC 45/2004; e c) no patamar inferior está a legislação ordinária (assim como os tratados que não versam sobre direitos humanos). Pausa excursiva (síntese do voto do Min. Gilmar Mendes proferido no RE 466.343-1/SP): “Em seguida, o Min. Gilmar Mendes acompanhou o voto do relator, acrescentando aos seus fundamentos que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil possuem status normativo supralegal, o que torna inaplicável a legislação infraconstitucional com eles conflitantes, seja ela anterior ou posterior ao ato de ratificação e que, desde a ratificação, pelo Brasil, sem qualquer reserva, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art. 11) e da Convenção Americana sobre Direitos Humanos – Pacto de San José da Costa Rica (art. 7.º, 7), não há mais base legal para a prisão civil 96

do depositário infiel. Aduziu, ainda, que a prisão civil do devedor-fiduciante viola o princípio da proporcionalidade, porque o ordenamento jurídico prevê outros meios processuais executórios postos à disposição do credor fiduciário para a garantia do crédito, bem como em razão de o DL 911/69, na linha do que já considerado pelo relator, ter instituído uma ficção jurídica ao equiparar o devedor-fiduciante ao depositário, em ofensa ao princípio da reserva legal proporcional. Após os votos dos Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Joaquim Barbosa, Carlos Britto e Marco Aurélio, que também acompanhavam o voto do relator, pediu vista dos autos o Min. Celso de Mello. RE 466343/SP, rel. Min. Cezar Peluso, 22.11.2006. O Tribunal retomou julgamento de recuso extraordinário no qual se discute a constitucionalidade da prisão civil do depositário infiel nos casos de alienação fiduciária em garantia – v. Informativo 304, do STF. O Min. Gilmar Mendes, em voto vista, acompanhou o voto do relator para negar provimento ao recurso, adotando os fundamentos expendidos no caso acima relatado. No mesmo sentido votaram os Ministros Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio. Após, o julgamento foi adiado em virtude do pedido de vista do Min. Celso de Mello. RE 349703/RS, rel. Min. Ilmar Galvão, 22.11.2006 (RE 349.703). 2.º Voto do Min. Celso de Mello. Para o Min. Celso de Mello (voto proferido no HC 87.585/TO e no RE 466.343-1/SP) a nova pirâmide jurídica (bidimensional) teria outra configuração, porque os tratados internacionais de direitos humanos vigentes no Brasil antes da EC 45/2004 foram recepcionados ou amparados pelo art. 5º, § 2º, portanto teriam valor constitucional. No topo dessa pirâmide (bidimensional) estariam a Constituição e os tratados internacionais de direitos humanos (mesmo que firmados e vigentes no Brasil antes da EC 45/2004) e, na base, a legislação ordinária. (52) Tratados de direitos humanos posteriores à EC 45/2004, pouco importando o cumprimento ou não do § 3.º do art. 5.º, também contariam com valor materialmente constitucional (em razão do citado art. 5.º, § 2.º).(53) A nova pirâmide normativa formal concebida a partir de algumas decisões do STF

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(HC 87.585/TO, RE 466.343-1/SP, HC 90.172/ SP, HC 88.420/PR) é bem distinta daquela que, normalmente, sob os auspícios de Hans Kelsen, ainda continua sendo ensinada nas faculdades de direito brasileiras. Espera-se que essa verdadeira revolução seja bem compreendida por todos os estudantes e operadores jurídicos no Brasil. A emblemática alteração estrutural (e formal) do Direito reside no valor hierárquico qualificado que o STF está (agora) a emprestar ao Direito Internacional dos Direitos Humanos. Evidente que, por questão de coerência, deve seguir nesse caminho quando diante de outras questões jurídicas a envolver a aplicação dos tratados de direitos humanos, como aquela que ora nos ocupa neste ensaio (a Lei de Anistia brasileira).

6 Respeito e aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais nacionais Por tudo o que foi exposto até aqui parece ter ficado claro tratar-se de obrigação dos juízes e tribunais locais (como longa manus do Estado que são) bem respeitar e aplicar o direito internacional dos direitos humanos.(54) Uma exuberante prova dessa aceitação (e aplicação) das normas de proteção aos direitos humanos em nosso país deu-se no âmbito da prisão civil do depositário infiel. Na sessão Plenária do dia 16 de dezembro de 2009 o STF chegou a editar a Súmula Vinculante 25: “É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito”.(55) O que se defendia (em sede doutrinária) há anos foi finalmente sumulado pela Suprema Corte, com caráter vinculante à Administração Pública e ao Judiciário. Com a decisão proferida no RE 466.343/SP (03.12.2008), que foi ratificada com a Súmula Vinculante 25, o Brasil ingressou, jurisprudencial e definitivamente, na “terceira onda” evolutiva do Estado, do Direito e da Justiça, que é a onda do internacionalismo (ou da internacionalização dos direitos humanos). No Estado de Direito da legalidade caberia prisão civil do depositário infiel (muitas leis a

preveem). No Estado de Direito (puramente) constitucional, também caberia (porque a Constituição brasileira possibilita a prisão civil do depositário infiel – art. 5.º, LXVII). Já no Estado de Direito internacional a impossibilidade de se coagir mediante prisão um devedor é manifesta (em virtude da vedação da Convenção Americana, art. 7.7). A Constituição brasileira prevê duas hipóteses de prisão civil: do alimentante inadimplente e do depositário infiel (CF, art. 5.º, LXVII). A legislação ordinária brasileira regulamentou (com base na CF) várias situações de prisão civil, ampliando bastante a locução “prisão do depositário infiel”. Essa ampliação excessiva sempre foi objeto de muitas críticas.(56) Incontáveis acórdãos do STJ reiteradamente negaram validade para a prisão do depositário no caso da alienação fiduciária (REsp 7.943/RS; REsp 2.320/RS etc.). No STF alguns votos vencidos (de Marco Aurélio, Rezek, Velloso, Pertence) não discrepavam do entendimento preponderante no STJ. Mas o pensamento majoritário tradicional (legalista e positivista) no STF sempre foi no sentido da sua admissibilidade (baseando-se na sua jurisprudência clássica da paridade entre a lei ordinária e o tratado de direitos humanos – HC 80.004/SE). Um novo horizonte foi descortinado no dia 03.12.2008 com o RE 466.343-1/SP: os nove votos proferidos reconheceram o fim dessa prisão civil (do depositário infiel), pouco importando a natureza do depósito (judicial ou não judicial). Seu relator (Min. Cezar Peluso) negou validade para a prisão do depositário infiel no caso da alienação fiduciária (porque a legislação respectiva conflita com a Constituição Federal). O Min. Gilmar Mendes agregou outros dois fundamentos: considerando-se que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos só prevê a prisão civil por alimentos (art. 7.º, 7), é certo que nossa legislação ordinária relacionada com o depositário infiel conflita com o teor normativo desse texto humanitário internacional. O conflito de uma norma ordinária (que está em posição inferior) com a Convenção Americana resolve-se pela invalidade da primeira. É o que ficou espelhado no voto do Min. Gilmar Mendes, que ainda men-

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cionou o princípio da proporcionalidade como ulterior fundamento para não admitir a prisão de depositário infiel. No HC 90.172 (com votação unânime da 2.ª Turma), o Min. Gilmar Mendes reiterou sua posição anterior. Cumpre destacar que em antológico voto proferido em 03.12.2008, o Min. Celso de Mello (no Pleno do STF) já reconhecia não a supralegalidade, mas, sim, o valor constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos. Em síntese, a nova postura jurisprudencial do STF finca suas raízes em novos tempos, em novos horizontes, em que a era da internacionalização dos direitos humanos já não pode ser (antiquadamente) ignorada. O passo extraordinário que o STF deu em relação à prisão civil do depositário infiel deve, agora, na linha do que estão fazendo os nossos países vizinhos (Argentina, Chile, Uruguai etc.),(57) ser seguido no que consiste ao cumprimento da decisão da Corte Interamericana proferida no “Caso Araguaia”.(58) Por mais que existam declarações em sentido contrário, a obrigatoriedade de internalização (da jurisprudência da Corte Interamericana) pelos juízes e tribunais brasileiros faz parte de um movimento universal absolutamente incontestável.(59) Em suma, a manifestação da Corte Interamericana fielmente está a demonstrar que o Judiciário brasileiro deve ingressar (de facto, e não apenas de jure) na onda internacionalista do Estado, do Direito e da Justiça, e aceitar em definitivo os comandos que vêm de cima (do Direito Internacional Público) e, mais ainda, de órgão (tribunal) especializado em matéria de proteção aos direitos humanos.

agora temos notícia do oferecimento de duas denúncias (uma contra Sebastião Curió), sendo que ambas foram rejeitadas pelos juízes federais de primeira instância, sob o argumento de que a Lei de Anistia de 1979 perdoou todos os delitos cometidos durante a ditadura militar no Brasil. Adicionalmente, sublinhou-se que o STF entendeu ser válida essa lei. Logo, do ponto de vista do ordenamento jurídico interno nada poderia ser feito no sentido de se processar os acusados de tortura, mortes e desaparecimentos durante o regime de exceção brasileiro. Os recursos interpostos contra essas decisões de primeiro grau não foram analisados pelos Tribunais Regionais Federais até o presente momento (junho de 2012). Essa questão, seguramente, vai chegar ao STF, que poderá confirmar o seu entendimento anterior (que declarou válida a Lei de Anistia brasileira) ou retificá-lo, para adequar a jurisprudência interna à decisão supranacional da Corte Interamericana de Direitos Humanos, de 24 de novembro de 2010. Muitos capítulos ainda virão e tudo quando está exposto comprova que o Direito, antes de tudo, é um ato de força e que sua evolução nem sempre acontece sem traumas, discussões e antagonismos. A criação da Comissão da Verdade (pela Lei 12.528, de 18.11.2011, com a finalidade de “efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional”) cumpre apenas parte da sentença da Corte Interamericana, mas o essencial que foi determinado não será, aparentemente, cumprido pelo Brasil: apurar responsabilidades e processar seus autores, condenando-os, se for o caso.

8 Conclusão 7 Law in books e law in action Uma coisa é a law in books e outra muito distinta é a law in action. Tudo quanto acaba de ser descrito, na prática, pode não encontrar a ressonância que se deveria esperar. É isso precisamente o que está acontecendo com as primeiras denúncias oferecidas pelo Ministério Público Federal contra os imputados torturadores da ditadura militar de 1964-1985. Até 98

Ao cabo desta exposição teórica, cabe sumariamente concluir o seguinte: 1. Que a internacionalização dos direitos humanos é uma realidade incontestável que marca a era da pós-modernidade, caracterizada pela globalização (inclusive da dignidade humana). 2. Que esse corpus juris específico – chamado Direito Internacional dos Direitos Humanos – goza de absoluta primazia sobre a

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legislação doméstica naquilo que é mais benéfico ao ser humano sujeito de direitos (princípio internacional pro homine). Ou seja, esse conjunto normativo internacional de proteção possui caráter sui generis. Suas normas possuem hierarquia diferenciada no plano doméstico (estão acima de todas as leis) e com este não podem ser confundidas. 3. Toda a produção legislativa ordinária (de qualquer Estado) que faça parte do sistema interamericano de direitos humanos está sujeita, doravante, a dois principais tipos de controle: (a) o de constitucionalidade e (b) o de convencionalidade. 4. Constitui obrigação impostergável de todos os juízes e tribunais locais (nacionais) fazer desses dois tipos de controle uma realidade. Os juízes e tribunais locais estão, inclusive, obrigados a exercer ex officio tais controles, segundo o entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos. 5. Para a proteção, no nosso entorno regional, dos direitos humanos previstos nos tratados internacionais, qualquer ser humano lesado pode acionar o sistema regional interamericano de direitos humanos, visto que essa tutela já não está regida pelo princípio do domestic affair, mas sim do international concern. A proteção dos direitos humanos convencionados conta com o amparo complementar do direito internacional. 6. O Brasil tem a obrigação de cumprir a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos de 24 de novembro de 2010, proferida no “Caso Araguaia”. O nosso país foi declarado responsável pelo desaparecimento de dezenas de pessoas e, agora, por força da sentença da Corte citada tem o dever de investigar e, se for o caso, processar os responsáveis pelos referidos delitos contra a humanidade, não tendo nenhum valor jurídico a Lei de Anistia brasileira (embora validada pelo STF em abril de 2010). 7. No Estado de Direito Internacional (defendido, entre outros, por Luigi Ferrajoli) é preciso respeitar a pluralidade de fontes normativas e promover, entre elas, o devido “diálogo” (Erik Jayme) capaz de fazer prevalecer a norma mais favorável à tutela dos direitos humanos (princípio pro homine).

8. A jurisprudência brasileira já deu (exuberante) demonstração da força normativa do direito internacional dos direitos humanos ao cuidar do tema da prisão civil do depositário infiel. A nossa Suprema Corte (no RE 466.343/ SP) não só reconheceu a hierarquia superior desse ramo do Direito como acabou editando a Súmula Vinculante 25, para proibir definitivamente a prisão civil de depositário infiel no país, qualquer que seja a modalidade do depósito. 9. Na esteira desse precedente pós-moderno do STF espera-se, agora, que seja cumprida sem resistência e dentro de prazo razoável a decisão da Corte Interamericana fixada no “Caso Araguaia”.

Notas Sobre essas ondas evolutivas, v. Gomes, Luiz Flávio; MaValerio de Oliveira. Direito supraconstitucional: do absolutismo ao Estado Constitucional e Humanista de Direito. São Paulo: Ed. RT, 2010.

(1)

zzuoli,

(2)

Para a condenação criminal dos responsáveis por violações massivas dos direitos humanos, destaque-se o papel do Tribunal Penal Internacional, criado pelo Estatuto de Roma de 1998. Sobre o tema, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tribunal Penal Internacional e o direito brasileiro. 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2011. Para detalhes, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 160-165.

(3)

Sobre o dever de tutela judicial dos Estados que fazem parte do sistema interamericano de direitos humanos, v. Sabsay, Daniel A. El amparo como garantia para el aceso a la jurisdicción en defensa de los derechos humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales. Buenos Aires: CELS, 2004. p. 229 e ss. Ainda: Kawabata, J. Alejandro. Reparación de las violaciones de derechos humanos en el marco de la Convencion Americana sobre Derechos Humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 351 e ss.

(4)

Cf. Albanese, Susana. El plazo razonable en los procesos a la luz de los órganos internacionales. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 247 e ss.

(5)

Para detalhes, v. Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira (orgs.). Crimes da ditadura militar: uma análise à luz da jurisprudencia atual da Corte Interamericana de Direitos Humanos. São Paulo: Ed. RT, 2011.

(6)

V. Jornal O Estado de S. Paulo, de 16.12.2010, p. A12; e Jornal Folha de S. Paulo, de 16.12.2010, p. A15.

(7)

(8)

Idem.

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 85-102, agosto/2012

99

Gomes, L. F. - Mazzuoli, V. O.

(9)

V. Jornal O Globo, de 16.12.2010, p. 18.

Nossa posição (o leitor verá melhor abaixo) sempre foi a de que os tratados de direitos humanos guardam nível constitucional no direito brasileiro.

(10)

(11)

Cf. sentença de 24.11.2010 da CIDH, parágrafo 147 e ss.

Cf. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito dos tratados. São Paulo: Ed. RT, 2011, p. 134.

(12)

Para uma análise mais profunda, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. The Inter-American human rights protection system: structure, functioning and effectiveness in Brazilian law. Anuario Mexicano de Derecho Internacional. México, vol. XI, México, D.C.: UNAM, 2011, p. 331-367.

(13)

Pereira, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o Estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São Paulo: Paz e Terra, 2010 (prefácio de Paulo Sérgio Pinheiro).

(14)

(15)

Disponível em: , de 15.12.2010.

V. Perrone-Moisés, Cláudia. Direito internacional penal: imunidades e anistias. São Paulo: Manole, 2012, p. 125, nestes termos: “Se o Brasil, por qualquer razão, não cumprir a sentença [da Corte Interamericana no “Caso Araguaia”], estará descumprindo uma obrigação internacional assumida quando aceitou a jurisdição da Corte. Os Estados-parte comprometem-se a implementar de boa-fé as decisões da Corte (art. 63 da Convenção). (…) A decisão do STF acerca da Lei de Anistia viola a Convenção Interamericana e não pode ser considerada do ponto de vista do direito internacional. O STF, diferentemente de outras Cortes dos países vizinhos, ainda não incorporou devidamente as normas internacionais de proteção dos direitos humanos, incluindo-se as normas de direito internacional penal. Bastante apegado a temas como soberania, parece ignorar os avanços do direito internacional na proteção dos direitos humanos. Isso se deve a uma visão muito antiga da relação entre o ordenamento internacional e o direito interno”.

(16)

V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, cit., p. 160-165.

(17)

Sobre o cumprimento dos tratados internacionais pelos países latino-americanos, v. Dulitzky, Ariel. La aplicación de los tratados sobre derechos humanos por los tribunales locales: un estúdio comparado. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 33 e ss. No que diz respeito especificamente à Argentina: Bidart Campos, Germán J. El artículo 75, inciso 22, de La Constitución Nacional. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 77 e ss.

(18)

V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público. 6. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2012. p. 831-835; e Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 12. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 175-183.

(19)

Cf. Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p. 195 e ss; e Abregú, Martín. La aplicación del derecho internacional de los derechos humanos por los tribunales locales: una introducción. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 3 e ss.

(20)

100

Cf. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Soberania e a proteção internacional dos direitos humanos: dois fundamentos irreconciliáveis. Revista de Direito Constitucional e Internacional, ano 13, n. 52, São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2005, p. 327-337.

(21)

V. Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit international privé postmoderne. Recueil des Cours, vol. 251 (1995), p. 259.

(22)

Sobre o tema, v. detalhes em Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno. São Paulo: Saraiva, 2010. Sobre o direito na pós-modernidade, v. Bittar, Eduardo C. B. O direito na pós-modernidade e reflexões frankfurtianas. 2. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. 541p.; Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Características gerais do direito (especialmente do direito internacional) na pós-modernidade. Revista Forense, ano 106, vol. 412, Rio de Janeiro, nov.-dez. 2010, p. 467-485.

(23)

V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público, cit., p. 837; Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional…, cit., p. 79; e Andrade, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. Coimbra: Almedina, 1987. p. 19-20.

(24)

Sobre o papel das cortes regionais na invalidação das leis de anistia, v. Perrone-Moisés, Cláudia. Direito internacional penal…, cit., p. 119-120.

(25)

V. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, cit., p. 178-200; e Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O controle jurisdicional da convencionalidade das leis, cit., p. 95-116. No mesmo sentido, v. Perrone-Moisés, Cláudia. Direito internacional penal…, cit., p. 110-111, que assim destaca: “Das diversas respostas dadas a essas questões, tanto pela doutrina como pelas análises de casos específicos, efetuadas por tribunais nacionais ou por comissões e comitês de direitos humanos pertencentes a organizações internacionais, a recorrente parece ser no sentido de que a anistia interna não produziria efeitos na ordem internacional, e sendo assim, não haveria impedimento para que se desconsiderassem as leis de anistia quando a questão fosse analisada do ponto de vista do direito internacional. Já no que se refere ao dever que os Estados têm de investigar e punir graves violações de direitos humanos cometidas em regimes anteriores, verifica-se que o direito internacional vem desenvolvendo uma série de mecanismos para pressionar os Estados a assumirem suas obrigações perante a comunidade internacional”.

(26)

Leis vigentes não se confundem com leis válidas; enquanto a vigência pressupõe a regularidade formal da lei em determinada ordem jurídica, a validade pressupõe sua conformidade material com as normas constitucionais e dos tratados de direitos humanos em vigor no Estado. V., por tudo: Ferrajoli, Luigi. Derechos y garantías: la ley del más débil. Trad. Perfecto Andrés Ibáñez e Andrea Greppi. Madrid: Trotta, 1999. p. 20-22; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, cit., p. 186-194.

(27)

(28)

Sobre a formação de um Estado de Direito Internacional,

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 85-102, agosto/2012

Crimes da ditadura E aplicação do direito internacional dos direitos humanos pelos juízes e tribunais brasileiros

v. Farrajoli, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal, 2. ed. rev. e ampl. Trad. Ana Paula Zomer Sica (et all.). São Paulo: Ed. RT, 2006, p. 865. Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional… cit., p. 77 e ss.

(29)

V. por tudo, Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Os sistemas regionais de proteção dos direitos humanos: uma análise comparativa dos sistemas interamericano, europeu e africano. São Paulo: Ed. RT, 2011; e Piovesan, Flávia. Direitos humanos e justiça internacional: estudo comparativo dos sistemas regionais europeu, interamericano e africano. São Paulo: Saraiva, 2006.

(30)

Gomes, Luiz Flávio; Vigo, Rodolfo Luis. Do Estado de Direito constitucional e transnacional: riscos e precauções (navegando pelas ondas evolutivas do Estado, do direito e da justiça). São Paulo: Premier Máxima, 2008. p. 46-93.

(31)

A expressao é de Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration…, cit., p. 259.

(32)

Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Tratados internacionais de direitos humanos e direito interno, cit., p. 214.

(33)

Gordillo, Agustín (et all.). Derechos humanos. 5. ed. Buenos Aires: Fundación de Derecho Administrativo, 2005. p. 5, Cap. II.

(34)

Jayme, Erik. Identité culturelle et intégration…, cit., p. 259.

(35)

Delmas-Marty, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Trad. Fauzi Hassan Choukr. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. p. 73-74.

(36)

Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Direito supraconstitucional… cit., p. 110 e ss. Ainda sobre o princípio pro homine: Pinto, Mônica. El princípio pro homine: critérios de hermenêutica y pautas para la regulación de los derechos humanos. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 163 e ss.

(37)

Sobre as dimensões formal e material da democracia, v. Ferrajoli, Luigi. Por uma teoria dos direitos e dos bens fundamentais. Trad. Alexandre Salim (et all.). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011. p. 108-113. Sobre os avanços da Constituição de 1988 relativamente ao tema dos direitos humanos, v. Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p, 73-94.

(38)

No sistema global são eles: Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio (1948); Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951); Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados (1966); Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Protocolo Facultativo Relativo ao Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966); Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966); Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (1965); Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1979); Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (1999); Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (1984); Convenção sobre os Direitos da Criança (1989); e ainda o

(39)

Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998). No sistema regional interamericano são eles: Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969); Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1988); Protocolo à Convenção Americana sobre Direitos Humanos Referente à Abolição da Pena de Morte (1990); Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura (1985); Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994); Convenção Interamericana sobre Tráfico Internacional de Menores (1994) e a Convenção Interamericana para a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Pessoas Portadoras de Deficiência (1999). A Convenção de Viena de 1969 foi ratificada pelo Brasil em 25.09.2009, tendo sido promulgada internamente (com reservas aos arts. 25 e 66) pelo Decreto 7.030, de 14.12.2009.

(40)

Sobre a questão da impunidade decorrente da edição de leis de anistia, v. Perrone-Moisés, Cláudia. Direito internacional penal…, cit., p. 116-119.

(41)

Sobre a configuração desses ilícitos jus-humanitários, v. Zaffaroni, Eugenio R. En torno de la cuestión penal. Montevideo: Editorial B de F, 2005. p. 124 e ss.

(42)

Cf. Decreto Legislativo 89/1998, sobre o reconhecimento da competência contenciosa da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

(43)

Por força do Decreto 6.185, de 13.08.2007, o presidente da República autorizou a Secretaria Especial dos Direitos Humanos a dar cumprimento à sentença da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que determinou o pagamento de indenização aos familiares da vítima.

(44)

V., especialmente, Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Comentários à Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). 3. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2010, p. 217 e ss.

(45)

V., por tudo: Gomes, Luiz Flávio; Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Características gerais do direito (especialmente do direito internacional) na pós-modernidade, cit., p. 467-485.

(46)

(47)

V. RE 466.343-1/SP e HC 87.585/TO.

Mendes, Gilmar Ferreira (et all.). Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 663.

(48)

Cançado Trindade, Antônio Augusto. A interação entre o direito internacional e o direito interno na proteção dos direitos humanos, A incorporação das normas internacionais de proteção dos direitos humanos no direito brasileiro. 2. ed. San José, Costa Rica/Brasília: IIDH, 1996. p. 210 e ss; Piovesan, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional, cit., p. 103 e ss; e Silva, José Afonso da. Poder constituinte e poder popular: estudos sobre a Constituição. São Paulo: Malheiros, 2000. p. 195-196; para quem os tratados de direitos humanos “ingressam na ordem jurídica nacional no nível das normas constitucionais e, diretamente, criam situações jurídicas subjetivas em favor dos brasileiros e estrangeiros residentes no país”.

(49)

(50)

Para detalhes, v. especialmente: Mazzuoli, Valerio de

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101

Gomes, L. F. - Mazzuoli, V. O.

Oliveira. Curso de direito internacional público, cit., p. 835 e ss; e Mazzuoli, Valerio de Oliveira. O novo § 3.º do art. 5.º da Constituição e sua eficácia. Revista Forense, vol. 378, ano 101, Rio de Janeiro, mar.-abr. 2005, p. 89-109.

inciso 22, de la Constitucion Nacional. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 201 e ss.

Frise-se que para Bidart Campos, mesmo os tratados internacionais comuns ou tradicionais apresentariam hierarquia supraconstitucional. Eis sua lição: “(…) se o próprio poder constituinte que dita a Constituição é o que concilia as duas fontes – internacional e interna – em uma unidade (que de acordo com o direito internacional coloca em seu vértice o mesmo direito internacional) parece claro que é a decisão e a vontade desse poder constituinte – ou, se se quiser, diga-se: do Estado para o qual dita esta Constituição – que consente situar o direito internacional no plano mais alto do ordenamento jurídico. Em outros termos, a fonte externa ou heterônoma do direito internacional penetra no direito interno porque este lhe atribui lugar hierarquicamente superior, até mesmo em relação a sua fonte primária, que é a Constituição” [tradução nossa] (El derecho de la Constitucion y su fuerza normativa. Buenos Aires: Ediar, 1995, p. 464). Para detalhes, v. Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público, cit., p. 835-866.

(52)

Nesse exato sentido, v. Lafer, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacionais. Barueri: Manole, 2005, p. 17-18.

(53)

V. Soares, Guido Fernando Silva. Curso de direito internacional público. São Paulo: Atlas, 2002. vol. 1, p. 225-239.

(54)

(55)

V. DOU de 23.12.2009, p. 1.

V., por tudo: Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Prisão civil por dívida e o Pacto de San José da Costa Rica: especial enfoque para os contratos de alienação fiduciária em garantia. Rio de Janeiro: Forense, 2002.

(56)

Sobre a incidência do direito internacional no âmbito do direito interno da Argentina: moncayo, Guillermo R. Critérios para la aplicación de las normas internacionales que resguardan los derechos humanos en el derecho argentino. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 89 e ss. V. ainda, Vanossi, Jorge R. Los tratados internacionales ante la reforma de 1994. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 105 e ss.; Schiffrin, Leopoldo. La primacía del derecho internacional sobre el derecho argentino. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op.cit., p. 115 e ss.; Travieso, Juan A. Los nuevos paradigmas. Enfoque con nuevas consideraciones metodológicas. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 127 e ss.; Fappiano, Oscar L. La ejecucion de las decisiones de tribunales internacionales por parte de los órganos locales. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 147 e ss.

(57)

Sobre a margem de apreciação da justiça local: Valiña, Liliana. El margen de apreciacion de los Estados en la aplicación del derecho internacional de los derechos humanos en el ambito interno. In: Abregú, Martin; Courtis, Christian (org.). Op. cit., p. 173 e ss.

(58)

(59)

Gordillo, Agustín. Los amparos de los artículos 43 y 75,

102

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 85-102, agosto/2012

Memória, Verdade e Senso Comum Democrático: Artigo Distinções e aportes do “direito à memória e à verdade” para a substancialização democrática

Memória, Verdade e Senso Comum Democrático: Distinções e aportes do “direito à memória e à verdade” para a substancialização democrática(1) Marcelo D. Torelly(2)

RESUMO: Partindo dos debates contemporâneos sobre Justiça de Transição e da recente positivação explícita do direito à memória e à verdade no sistema legal brasileiro (por meio da lei que cria a Comissão Nacional da Verdade), este estudo procura apresentar uma diferenciação teorética entre “direito à verdade” e “direito à memória”, de maneira a estabelecer um melhor entendimento das raízes sociais e normativas do “direito à memória e à verdade” para além de sua dimensão estritamente positiva. Ainda foca-se em como o processo de consolidação social de tal direito reforça a democracia gerando narrativas alternativas (ou mesmo competitivas) sobre o passado, de modo a permitir a formação de uma “coexistência contenciosa”. Finalmente, apresenta a idéia de que o exercício do direito à memória e à verdade conduz a consolidação de um “senso comum democrático” que é fundamental para a substancialização democrática e para o Estado de Direito. Palavras-Chave: 1. Direito à Memória e à Verdade. 2. Justiça de Transição. 3. Senso Comum Democrático. 4. Brasil.

O presente texto procura resumir alguns dos debates mais amplos apresentados no quarto capítulo de meu livro Justiça de Transição e Estado Constitucional de Direito (Belo Horizonte: Fórum, no prelo), desenvolvendo conceitos que trabalhei pela primeira vez em 2010 no texto “Justiça Transicional, Memória Social e Senso Comum Democrático: notas conceituais e contextualização do caso brasileiro” in Boaventura de Sousa Santos, Paulo Abrão, Cecília MacDowell e Marcelo D. Torelly (org.), Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro (Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Universidade de Coimbra, 2010). (2) Mestre e doutorando em Direito na Universidade de Brasília (UnB). Especialista em Direitos Humanos e Processos de Democratização pela Universidade do Chile. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul com aperfeiçoamento em Direitos Humanos e Desenvolvimento pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha). Atualmente é Coordenador Geral de Memória Histórica da Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Membro Diretor da rede de estudos IDEJUST (Internacionalização do Direito e Justiça de Transição), sediada no Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, em cogestão com a Comissão de Anistia. (1)

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 103-114, agosto/2012

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Torelly, M. D.

ABSTRACT: Considering current debates on the Transitional Justice field and the recent explicit positivation of right to truth and memory in the Brazilian legal system (by the law that creates the National Truth Commission), this paper works on a theoretical differentiation between “right to truth” and “right to memory” in order to better understand the social and normative roots from the “right to truth and memory” beyond its simple positive dimension. It also focuses on how the social process of consolidation of such right reinforces democracy through the generation of alternative (and sometimes competitive) narratives about the past, in the form of a “contentious coexistence”. Finally, it presents the idea that the exercise of the right to truth and memory leads to the consolidation of a “democratic common sense” that is fundamental for a substantial democracy and for the Rule of Law. Keywords: 1. Right to Truth and Memory. 2. Transitional Justice. Democratic Common Sense. 4. Brazil.

1 Introdução Atualmente discute-se vivamente no Brasil a existência de um direito à memória e à verdade. Importantes autores questionam de maneira radical a existência de tal direito(3) e a recente positivação do direito à verdade, por meio da Lei n.º 12.528 de 18 de novembro de 2011, não resolve os argumentos de fundamento que atacam a existência de tal direito no plano normativo. De ainda maior complexidade é a composição do direito a memória. O presente estudo pretende, de modo modesto, apresentar algumas distinções entre “direito à verdade” e “direito à memória”, com especial fito de demonstrar a viabilidade dos mesmos em nosso ordenamento jurídico, independentemente da positivação explícita em lei particular, por meio de um rápido cotejo do desenvolvimento de tal direito no direito internacional e comparado (que não pretende de modo algum ser exaustivo) e da apresentação de suas conexões a outros direitos normativos do “catálogo” dos direitos humanos e das liberdades civis. A seguir, segue o estudo 104

explorando os benefícios da efetivação e de uma eventual expansão normativa deste direito no Brasil para aquilo que define alhures como a construção de um “senso comum democrático” no bojo do processo de transição do autoritarismo à democracia(4). Assim, tem o estudo dois objetivos: de um lado complexificar distinções no debate em curso, permitindo seu aprofundamento e melhor situando a discussão sobre a própria existência e fundamentação dos direitos em questão e, de outro, valendo-se do próprio exemplo do processo gradual de fundamentação e positivação de tais direitos, discutir seus efeitos de promoção e reforço da democracia.

2 Conceituando “direito à memória” e “direito à verdade A categoria “verdade”, conforme usada nos debates de justiça de transição, possui uma série de peculiaridades que devem ser apresentadas antes de seu tratamento acadêmico, sob pena de contra ela serem postas falsas objeções. Teitel, discutindo as abordagens foucaultinas sobre a verdade bem circunscreve a objeção central: “[...] a história é professora e juíza, e a verdade histórica é em si justiça. É essa visão do potencial liberalizante da história que inspira um argumento popular contemporâneo para a responsabilização histórica nas transições. Ainda, a pressuposição de que “verdade” e “história” são uma mesma coisa evidencia a crença na possibilidade de uma história autônoma e objetiva do passado desmentindo o significado do contexto político presente na formação da investigação histórica. Porém a teorização moderna sobre o conhecimento histórico desafia consideravelmente tal concepção. Quando a história teve sua “virada interpretativa”, deixou-se de ter uma singular, clara e determinada compreensão sobre uma “lição” a se tirar do passado, em vez disso passou a reconhecer um grau de dependência entre a compreensão histórica e as contingências polícias e sociais.”(5) Uma visão determinista da história e da verdade tende a, em última análise, reproduzir

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 103-114, agosto/2012

Memória, Verdade e Senso Comum Democrático: Distinções e aportes do “direito à memória e à verdade” para a substancialização democrática

na democracia as distorções existentes na manipulação da verdade pelos regimes de exceção, na medida em que se procura “pasteurizar” e unificar a ideia de verdade como meio de capitalizar politicamente alguma ideologia ou alguma versão do passado. Essa manipulação, involuntariamente, se faz muitíssimo presente no discurso de muitos movimentos sociais, que procuram opor “a verdade” por eles defendida conta “a mentira” da ditadura, negando a possibilidade de divergência razoável fundada em fatos “reais”. O argumento do “direito à memória e à verdade”, para escapar desta cilada, deve calcarse em duas ideias-forças: Primeiramente, que quando da utilização do termo “verdade”, o que se procura não é afirmar a inexistência de divergência quanto aos fatos, mas sim a necessidade de que os fatos sejam o mais conhecidos possível. Na prática, o “direito à verdade” refere-se a possibilidade de esclarecimento público sobre o funcionamento da repressão e, especialmente, a abertura de todos os arquivos oficiais existentes, pois neles está contida “a mentira”, ou seja: a “verdade” do sistema repressor, jamais exposta a qualquer controle ou filtro. Essa “verdade do sistema”, eivada de ranço ideológico e, muitas vezes, de informações falsas inseridas para justificar ações dos agentes dos Estado, ou com graves omissões (como a prática de tortura e desaparecimentos forçados), deve ser escrutinável pelo público como forma, justamente, de albergar a possibilidade de contestação daquela narrativa. Assim, o “direito à verdade” não refere-se a construção de uma narrativa única, mas sim a necessidade de que existam disponíveis na sociedade diversas narrativas concorrentes, que permitam à cidadania ler o passado de forma menos maniqueísta, ao final conformando ou não uma nova narrativa “oficial”. Em processos de busca pela verdade, os agentes envolvidos utilizam-se de diversas formas de lidar com os fatos para construírem narrativas com pretensão de verdade ou, pelo menos, de legitimidade. Em seu estudo sobre o tema, Payne identifica pelo menos oito mecanismos performáticos de agentes para lidar com o passado: remorso, heroísmo, sadismo, negação,

silêncio, ficção e mentira, amnésia e traição(6), concluindo pela importância da adoção de uma abordagem que enfatize a “coexistência contenciosa” em lugar a uma visão monolítica da história: “Entre os extremos da visão cautelosa e da utópica quanto à resolução de conflitos existe um modelo mais prático: a coexistência contenciosa. A coexistência contenciosa rejeita ordens ineficientes de censura e filia-se ao diálogo democrático, mesmo para questões altamente facciosas, entendendo-o como saudável para as democracias. Ela rejeita a cura por meio de verdades oficiais inviáveis em favor de um múltiplo conjunto de verdades alegadas que refletem diferentes pontos de vista políticos no interior da sociedade”(7).

Assim, é fundamental que reste assentado neste primeiro momento que o “direito à verdade” não objetiva a formulação de uma narrativa una que se oponha e substitua a narrativa construída pela repressão, mas sim a viabilização da insurgência de narrativas plurais construídas com igualdade de oportunidades, ou seja: com igual acesso as “fontes de verdade” e meios de difusão. Essas novas narrativas referem-se preferencialmente as vítimas, mas não apenas a elas, uma vez que o que pretende-se não é erradicar as versões do passado existente, mas sim pluralizá-las. O caso brasileiro é latente neste sentido, uma vez que narrativas derivadas da narrativa oficial do regime seguem sendo atualizadas, com acesso privilegiado a fontes(8), enquanto procura-se negar igual possibilidade as vítimas, tratadas como “revanchistas” ao tentarem trazes à público suas versões. Assim, na acepção aqui proposta, o direito à verdade não busca encerrar o debate histórico, mas sim fomentá-lo É desta forma que o direito à verdade torna-se peça-chave de mobilização, por exemplo, contra a semântica autoritária que classifica resistentes como “terroristas”. Neste caso em concreto, o direito a verdade não busca garantir que toda a sociedade veja os resistentes como resistentes, mas sim que sua versão sobre o conflito torne-se igualmente conhecida àquela versão oficiosa produzida pela repressão e ampla-

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Torelly, M. D.

mente difundida, inclusive pela imprensa. Além disso, apregoa o total conhecimento dos fatos ocorridos no passado (mesmo que sob variadas versões), para que a própria sociedade possa avaliar de forma efetiva a importância da adoção de outras medidas, como justiça e reparação. Afirmar o direito à verdade como direito ao amplo conhecimento dos fatos passados e a possibilidade de formulação e sustentação, na arena pública, de uma narrativa sobre este período é bastante antagônico a ideia de afirmação de “uma verdade” contra “uma mentira”, afastando do espectro de discussões argumentos mais apressados, como os de Dimoulis, ao afirmar que os mecanismos transicionais de busca pela verdade “[...] não permitem encontrar a “verdade” sobre um período histórico. Arquivos estatais e testemunhos de pessoas com forte engajamento ideológico a favor ou contra o regime não permitem esclarecer causas e conseqüências da atuação do Estado, o que mina a promessa de verdade [...]”(9). O objetivo de mecanismos de investigação e escuta, se correta a acepção dada ao direito da verdade neste estudo, é justamente o de permitir conhecer, por via dos arquivos estatais e testemunhos, os procedimentos tidos secretamente pelo Estado para que, apenas depois disso, possa-se disputar a hegemonia narrativa sobre o período. Negar esta possibilidade é aceitar a versão oficialesca apresentada pelo regime como o mais próximo que poder-se-ia chegar de conhecer o passado, aceitando, justamente, uma versão altamente ideologizada como se “pura” e “factível” fosse. Ainda, mesmo quando os procedimentos de busca por verdade são ineficazes em registrar documentalmente o modus operandi da repressão eles conseguem, minimamente, inaugurar dúvidas razoáveis sobre a veracidade de determinadas afirmações nunca antes contestadas. Essa dimensão negativa do direito à verdade pode não se a ideal, mas, certamente, já é capaz de contribuir para a ampliação do debate e do diálogo democrático. Em segundo lugar, deve-se melhor conceituar a ideia de “direito à memória” para evitar novos mal entendidos semânticos. Dimoulis aponta que “exigir que o Estado adote e divulgue certas 106

“verdades” históricas viola o imperativo da neutralidade estatal diante das crenças e posições dos indivíduos”(10). A crítica a este argumento refere-se, grosso modo, a própria ideia de que, de alguma maneira, o Estado possa estruturar-se de modo independente de “verdades” e “valores”. Mas especificamente no caso concreto do direito à verdade, ao não investigar o passado o que o Estado faz é, justamente, manter certa “verdade” histórica como se fato fosse, uma vez que este mesmo Estado produziu uma determinada verdade sobre o período, reconhecidamente manipulada para sustentar o aparelho de repressão(11). Assim, a ideia de “direito à memória” conecta-se a de “direito à verdade” como forma de afirmar o direito da sociedade, e mais especialmente das vítimas, de também construírem discursos com pretensão de verdade e apresentarem estes discursos ao Estado como meio de disputa democrática da versão oficial sobre o passado. Novamente aludindo a um exemplo prático, significa fornecer ao cidadão torturado a garantia de que mesmo constando no arquivo oficial a informação “detido para averiguação e liberado”, existirá em outra fonte, preferencialmente também oficial e disponível para similar acesso, seu relato de que o que ocorreu fora, efetivamente, um sessão de tortura para tentar obter informações sobre sua organização clandestina. Ainda, o “direito à memória” objetiva, no plano coletivo, a reinserção de determinadas narrativas no seio social. A semântica da repressão, somada a esforços de aniquilamento da oposição ao regime, afastou por completo da arena pública um conjunto de argumentos e teses defendidos por setores sociais, alijando-os de participação na disputa política e também da construção de uma narrativa nacional. Neste sentido, o direito à memória visa garantir a equidade destes cidadãos para com os outros, permitindo que também sua história de luta e reivindicação possa ser acessada e avaliada publicamente. O binômio verdade-memória, conforme entendido neste estudo, cumprirá portanto dois papéis nas políticas transicionais: (i) o de promover o esclarecimento histórico de variados fatos e, ainda, (ii) o de promover a integração social, na medida em que viabiliza a ampliação do

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 103-114, agosto/2012

Memória, Verdade e Senso Comum Democrático: Distinções e aportes do “direito à memória e à verdade” para a substancialização democrática

espectro da narrativa nacional sobre o passado, re-inserindo nas narrativas sociais (e estatais) setores alijados por uma “verdade oficial” abertamente manipulada. Passa, portanto, a articular-se dentro da perspectiva de construir uma “memória coletiva” que contribuirá para aquilo que defino como um “senso comum democrático”. Mas antes de adentrar nesta esfera, cabe questionar a existência, do ponto de vista legal, de referido “direito à memória e à verdade”.

3 Conteúdo normativo e meios políticos de efetivação Yamin Naqvi situa a origem normativa do direito a verdade, no plano internacional, nos protocolos adicionais à Convenção de Genebra: “O direito à verdade emerge como conceito jurídico em variadas jurisdições e com muitos disfarces. Suas origens podem ser encontradas no direito de as famílias saberem do destino de seus parentes, existente no direito internacional humanitário e reconhecido pelos artigos 32 e 33 do I Protocolo Adicional de 1977 à Convenção de Genebra de 1948, bem como nas obrigações das partes em conflito armado de buscarem por pessoas reportadas como desaparecidas.”(12)

Posteriormente, aponta o grande desenvolvimento doutrinário e jurisprudencial da questão em diversos órgãos oficiais: “[...] O desaparecimento forçado de pessoas e outras marcantes violações aos direitos humanos durante períodos de extrema violência estatal em massa patrocinada pelo Estado [...] implicaram em uma ampliação da interpretação sobre o direito a receber informações sobre pessoas desaparecidas. Levou ainda a identificação e ao reconhecimento do direito à verdade por vários órgãos internacionais, em particular a Corte e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o Grupo de Trabalho das Nações Unidas sobre Desaparecimento Forçado ou Involuntário e o Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas. Esses órgãos progressivamente desenharam este

direito como forma de defender e reivindicar outros direitos humanos fundamentais, como o direito de acesso à justiça e a um remédio e reparação efetivos para as violações. Eles igualmente expandiram o direito a verdade para além das informações sobre os eventos relacionados a pessoa ausente ou desaparecida para que também contemplasse outras violações contra os direitos humanos, incluindo detalhes sobre os contextos em que ocorreram.”(13)

Finalmente, Naqvi aponta a origem do direito como “derivada” de outras obrigações que os Estados possuem no plano internacional e que insurgem quando da prática, em seus territórios, de graves violações aos direitos humanos: “De um modo geral, o direito à verdade, portanto, está diretamente ligado a origem do próprio conceito de vítima de violação grave aos direitos humanos. Como os direitos processuais, ele surge após a ocorrência da violação de outro direito humano, e aparentemente sua violação ocorre quando informações atinentes a primeira violação não são prestadas pelas autoridades, seja por meio da divulgação oficial da informação, do surgimento desta informação por meio de um julgamento ou ainda por mecanismos de busca da verdade.”(14)

Em sede de conclusões finais, a autora aponta a existência de um direito a verdade, sobremaneira por sua reiterada aplicação no direito internacional (sendo o costume uma fonte de direito), porém pontuando a dificuldade existente em circunscrever a abrangência normativa do direito, na medida em que diversos mecanismos de acesso a verdade podem ser satisfativos em diferentes medidas, e que a alusão ao costume internacional não permite acessar a um maior detalhamento de extensão normativa. Conforme referido na citação, a Corte Interamericana de Direitos Humanos várias vezes manifestou-se sobre o direito à verdade, valendo referir aqui o Caso Masacre de la Rochela vs. Colombia, onde a Corte extrai diretivas daquilo que define como “obrigações positivas inerentes ao direito à verdade”:

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“[...] as obrigações positivas inerentes ao direito à verdade exigem a adoção de desenhos institucionais que permitam que este direito se realize da forma mais idônea, participativa e completa possível, e que não enfrente obstáculos legais ou práticos que o tornem ilusório. A Corte ressalta que a satisfação da dimensão coletiva do direito à verdade exige a determinação processual da mais completa verdade histórica possível, o que inclui a determinação judicial dos padrões de atuação conjunta e de todas as pessoas que das mais diversas formas participaram das referidas violações, bem como suas respectivas responsabilidades. Essa investigação deve ser assumida pelo Estado como um dever jurídico próprio e não como uma simples gestão de interesses particulares que dependa de iniciativas processuais das vítimas ou de seus familiares, ou, ainda, da apresentação privada de elementos probatórios.”(15)

Indícios de normatividade do direito à verdade encontram-se também presentes nos ordenamentos nacionais, com a assunção de direitos fundamentais como o acesso à informação pública ou, ainda, de princípios, como o princípio democrático e o próprio princípio da dignidade da pessoa humana(16). Destaca-se que, em todos os casos, segue-se verificando o padrão apontado por Naqvi, na medida em que a percepção da existência normativa do direito não nos fornece elementos suficientes para um circunscrição exata de sua extensão (coisa comum a muitos direitos de origem consuetudinária ou produto da aplicação conjunta de outros princípios). É neste contexto que a citação da Corte acima posta, em especial na parte negritada, torna-se relevante, pois identifica dois elementos concretos do direito que tornam-se obrigatórios aos estados membros: (i) a impossibilidade de negativa pelo judiciário em dar seguimento as causas em que se busque a verdade e, ainda, (ii) a existência de uma dimensão coletiva do direito à verdade, que o torna, a priori, indisponível as partes(17). Esse segundo ponto é especialmente relevante pois a indisponibilidade é característica típica dos direitos humanos e fundamentais, e a assunção e reconhecimento da existência de uma 108

dimensão coletiva do direito à verdade nos permitirá, articulando ao conceito a ideia de direito à memória (que normativamente conecta-se ao direito a auto-determinação dos povos, como se pretende demonstrar a seguir), melhor investigar os mecanismos de esclarecimento histórico e a importância do direito à memória e à verdade para a consolidação do Estado de Direito, em sua acepção constitucionalista, por meio da afirmação de uma memória social ou coletiva. O fato do direito à memória e à verdade conectar-se a produção de uma memória coletiva faz com que sua aplicação, seja por meio de ações do Poder Executivo ou Judiciário, defronte-se com o próprio problema conceitual imanente a transferência de uma categoria originalmente individual (a memória) para o plano coletivo (memória social/coletiva). Esse procedimento torna-se ainda mais sensível na medida em que, como asseveramos acima, inexiste a possibilidade de fixação de “uma” verdade, sendo o próprio núcleo normativo do direito à verdade gerador de narrativas e expectativas sociais dissonantes. A confluência vocabular entre “verdade” e “memória” amplifica o problema, na medida em que muitas vezes diz-se “resgatar a memória” para significar “resgatar a verdade” ou, como já referido no caso dos movimentos sociais de luta pela memória, assume-se “luta pela memória” como “luta pelo acesso à verdade”. Em uma das mais conhecidas obras sobre o tema, em alusão ao processo social de construção do direito à memória e à verdade na Espanha, Paloma Aguilar define o problema: “Existe uma grande confusão sobre o significado destas expressões pois distintos autores lhes empregaram com propósitos e conotações muito diferentes. A isto se acrescenta que o termo “memória”, já de si polisemico, quando vem acompanhado dos adjetivos “histórica”, “coletiva” ou “social”, tem um evidente componente metafórico e, em algumas ocasiões, também reivindicativo.” (AGUILAR: 2008: p.43 - tradução livre(18))

Aguilar desenvolverá seu próprio conceito de “memória coletiva”, partindo de um conjunto de distinções que procuram articular a ideia de

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memória histórica a uma conjunto mais “documental” de verdades, e aproximando os conceitos de memórias sociais e coletivas a ideia de processos identitários (daí apontar-se sua conexão com o princípio da auto-determinação), chegando a uma dicotomia mais producente, entre memória social e memória institucional, que ao ser adotada por este estudo permite articular uma forma altamente democrática de inserção do conteúdo do direito à memória e à verdade no contexto democrático de um Estado Constitucional de Direito, na medida em que viabiliza a disputa da memória institucional pelas diversas memórias sociais, sem negá-las. Vejamos: “Segundo meu ponto de vista, a memória pode obter seu caráter “social” ou “coletivo” do fato de ser compartilhada pelos membros de um grupo, mais ou menos claramente delimitado, cujo tamanho pode oscilar entre unidades muito pequenas, como a família, até outras muito maiores, como a nação [...]. Esta memória, que aqui qualificaremos indistintamente como “coletiva” ou “social”, deve ser diferenciada da memória “institucional” ou “oficial” (ainda que não exista necessária oposição entre ambas), que é aquela que atinge maior visibilidade no espaço público, sendo referida em monumentos, comemorações, e que é impulsionada por políticas da memória. Essa memória normalmente é promovida pelos governos (de distintos níveis) ou pelas casas legislativas (estatais ou municipais), mas pode ter sido introduzida na agenda política por instâncias e agrupamentos sociais dos mais variados tipos. Desta forma, uma memória que, inicialmente, pertencia aos membros de um determinado grupo [...] pode acabar se convertendo em uma memória “institucional” se, por meio dos poderes Executivo ou Legislativo, se decidir lhe dar respaldo oficial, coletando-lhes o espírito e/ou as reivindicações.”(19) A definição de Aguilar é, neste sentido, coerente com a prescrição de um direito à verdade que opera a abertura de arquivos públicos e o próprio direito a contestar a versão dos fatos neles apresentadas e, ainda, com um direito à memória de natureza inter-subjetiva que configura-se socialmente num ambiente de pluralidade onde a versão oficial da história, a “verdade institucional”, é disputada e obriga-se a um procedimento

permanente de legitimação democrática, numa arquitetura institucional evidentemente vocacionada para o Estado de Direito. Voltando a este tema, Aguilar afirma que: “A memória institucional, que normalmente também é a “dominante” no espaço público, pode, em contextos autoritários, se tornar monopolística, graças a repressão as memórias dissidentes ou simplesmente alternativas. No entanto, quando tratamos de regimes democráticos, mesmo que ainda em muitas situações esta possa seguir sendo a dominante, precisa dividir o espaço público com a pluralidade de memórias sociais que entram em competição com ela.”(20)

Feitas estas extensas delimitações daquilo que entende-se por “direito à memória e à verdade”, seu escopo normativo e a sua dinâmica social de efetivação, passa-se a discorrer sobre sua importância para a construção de um senso comum democrático dentro de um processo de transição.

4 A contribuição do direito à memória e à verdade, e de seu processo de fundamentação social, para a construção de um senso comum democrático A magnitude dos processos de justiça transicional é gigantesca, uma vez que não trata-se simplesmente de promover reformas legais em uma ordem política, mas sim de alterar substancialmente os fundamentos de tal ordem, fundamentos estes que não se alicerçam exclusivamente em um ordenamento jurídico, mas também em uma cultura política e num sistema simbólico que se consolida combinando elementos conscientes e inconscientes, cujas raízes remontam a processos de identidade grupais de diversos níveis, estendendo-se, como mostrou Aguilar, desde o plano familiar até o nacional e regional, firmados em processo de configuração e interlaçamento de memórias individuais e coletivas. Neste contexto de alta complexidade, a simples alteração formal de leis não é suficiente

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para garantir a consolidação de uma democracia substancial limitada exclusivamente pelas garantias fundamentais originadas dos direitos humanos. É necessária a promoção de uma nova cultura política vocacionada para uma democracia constitucional, que seja capaz de transformar o espólio autoritário e o legado de violações individuais em aprendizados para a democracia, valendo-se tanto das memórias conscientes (aquelas que o agente ou grupo sabe possuir, ou seja: “lembra-se”), quanto das memórias nãoconscientes (aquelas que se acumulam de forma arcaica na experiência de vida do indivíduo ou grupo, transmitidas culturalmente). Esse acumulo de memórias sociais permite a articulação de narrativas complexas, situadas histórica e politicamente no tempo, que fomentem uma cultura de cidadania, um senso comum democrático que oriente o agir cotidiano, opondo-se a um senso comum autoritário legado por anos de repressão sistemática das liberdades públicas. É assim que o direito à memória e à verdade satisfaz uma necessidade democrática, qual seja: o avivamento de memórias sociais plurais que somem as vivências individuais de violações passadas ao processo reflexivo de superação do legado autoritário e consolidação do Estado Democrático de Direito, fomentando o surgimento de narrativas reflexivas que, ao dialogarem com o autoritarismo, promovam o pluralismo, a democracia e os direitos humanos traduzidos em uma cultura que, por conter este senso comum democrático, repele o autoritarismo, consolidando a democracia desde um ponto de vista prático (e não estritamente formal/jurídico) e possibilitando que os elementos não-conscientes de memória não sejam vinculados com a violência do passado. Combinam-se, portanto, as mudanças do ordenamento jurídico com um processo historicizante de reflexão sobre as causas de tal mudança, permitindo que a memória das violações impulsione a acumulação coletiva de experiências para o aprendizado social, com vistas a transformação desse acumulo em fortalecimento institucional e em capital político para a manutenção e ampliação do regime democrático almejado pela própria transição, num processo de justiça anamnética(21). 110

O “objeto” memória, segundo Ricoeur, pode ser abordado tanto desde uma dimensão cognitiva, quanto desde uma dimensão pragmática, uma vez que “lembrar-se é não somente acolher, receber uma imagem do passado, como também buscá-la, “fazer” alguma coisa. O verbo “lembrar-se” faz parte do substantivo lembrança. O que esse verbo designa é o fato de que a memória é “exercitada””(22) . O exercício da memória social, num processo transicional, dialogará, deste modo, tanto com as diversas possibilidades de esquecimento, quanto com os diversos modos possíveis de exercício da recordação, orientandose pragmaticamente para a ação, por exemplo, para a consolidação de uma crítica da violência. A memória e o esquecimento, operando dialeticamente, possibilitam o estabelecimento de confluências e dissidências narrativas que, ademais de permitirem a constituição de uma “versão histórica” mais plural sobre determinados acontecimentos, influenciam fortemente percepções individuais e sociais de mundo, seguindo com Ricouer: “[...] as anotações sobre o esquecimento constituem, em grande parte, um simples anverso daquelas que dizem respeito à memória; lembrar-se é, em grande parte, não esquecer. De outro lado, as manifestações individuais do esquecimento estão inextricavelmente misturadas em suas formas coletivas, a ponto de as experiências mais perturbadoras do esquecimento, como a obsessão, somente desenvolverem seus efeitos mais maléficos na escala das memórias coletivas [...]”(23)

A memória é ao mesmo tempo meio de significação social e temporal dos indivíduos, grupos e instituições, e daí sua grande importância na geração do senso comum. Socialmente, a memória parcialmente compartilhada promove a formação de uma narrativa que inclui diferentes coletivos numa mesma história (familiar, grupal, tribal, institucional, nacional, etc). Temporalmente (aproveitando-se a metáfora de Hannah Arendt) torna operacionalmente funcional o elo que liga o passado ao futuro, tensionando e agregando significado ao momento presente, tanto nos planos individuais como nos planos

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coletivos(24). Lembrar ou esquecer, individual e/ou coletivamente, implica, portanto, em alterar os elementos que dão significado e sentido ao futuro, uma vez que o que lembramos do passado é fundamental para que possamos refletir sobre quem somos no mundo e onde nos encontramos no tempo. Mais ainda: nossas lembranças configuram nossas percepções sobre o universo ao nosso redor e são determinantes para a orientação de nosso agir, pois a memória (bem como o esquecimento seletivo) contribuem para a formação de nossos juízos mesmo, como já dito, nos planos não-conscientes. O estabelecimento de processos políticos de “exercitar” e “fazer” memória sobre a repressão tem, a um só tempo, dois grandes impactos. Primeiramente, desenvolvem uma dimensão reparadora da dignidade política das vítimas de violência, que resgatam seu status de cidadão ferido pelo arbítrio do poder. Nas palavras de Garapon: “As vítimas, que foram ignoradas, humilhadas, expulsas do mundo, são de novo dignas de falar... e de ouvir. De seres sofridos, as vítimas passam também a sujeitos actuantes, deixando assim de serem apenas vítimas. A vida à qual a justiça pode restituí-las não é a vida biológica, mas a vida política, isto é, a que concede um peso legal às palavras de cada indivíduo e interroga todas as pessoas sobre as conseqüências de suas acções. Daí a importância do testemunho, não só para comprovar factos, mas também para fornecer a prova viva de que a palavra das vítimas voltou a ser produtiva e é tida em consideração”(25). Ainda, tais processos possuem, em sua dimensão coletiva, a capacidade de incluir um grande número de reflexões sobre a experiência autoritária e sua superação em uma narrativa nacional em disputa, capitalizando, de modo consciente, o próprio projeto democrático, ampliando-lhe a base de sustentação na medida em que nele introduz noções de democracia nas práticas e percepções cotidianas. Assim, a auto-consciência histórica que se constrói neste processo pode ser replicada, inserindo-se, com o tempo, nas fundações não-conscientes que

lastreiam o espaço público, sem com isso cair na “armadilha determinista” apontada por Teitel em citação no início deste item. Ao lembrar e reparar através de mecanismos de justiça transicional, o Estado sinaliza uma auto-crítica quanto ao abuso perpetrado e consolida uma narrativa (mesmo que tardia) de igualdade perante a lei, oferecendo tratamento jurídico equânime aos cidadãos e reincorporando o legado autoritário as categorias de justiça que o próprio autoritarismo afastou. Esse processo sinaliza, de modo consciente, para um futuro de não-repetição e, ainda, permite aos mais jovens que se socializam numa cultura conscientemente esclarecida do passado e da importância democrática, incorporando os valores construídos na democracia enquanto caracteres culturais permanentes do sistema simbólico da sociedade(26). A consolidação de uma memória social crítica em relação ao passado passa a funcionar como combustível para a defesa de uma cultura democrática, sustentando e legitimando as reformas políticas e jurídicas que permitem o ressurgimento nacional em uma nova configuração política, mesmo se estas novas memórias não tiverem a capacidade de tornarem-se hegemônicas. Este processo de memória das violações em massa praticadas no passado como mecanismo de não repetição é bastante aludido desde o fim da Segunda Guerra e é fartamente apresentado pela sociedade civil como um argumento contrário a formas de lidar com o passado que predigam o esquecimento(27). De outro lado, defendo que o inverso também é verdadeiro: a não apuração de crimes pretéritos, a omissão em relação à tortura, à corrupção e aos mais variados desvios, consolida no imaginário social uma ideia de ausência de Estado de Direito que inviabiliza a estabilização de uma democracia constitucional plena. É assim que surge uma memória social que orienta as percepções individuais num sentido de desconfiar ou da democracia enquanto forma de governo em si, ou da democracia enquanto forma de governo viável, fomentando um senso comum anti-democrático que, justamente por ser senso comum, consolida-se sem que os próprios agentes percebam suas origens arcaicas na cultura e práticas autoritárias.

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Ainda mais grave para os processos de democratização é o efeito da negação da memória e da imposição do esquecimento. Se a afirmação da memória como forma de fomento à reflexão crítica sobre acontecimentos passados é um catalizador do processo democrático, sua negação é um obstáculo permanente. Quando a negação do passado ocorre por meios oficiais explícitos – caso da imposição do esquecimento por meio de leis de anistia, ponto final ou análogas, como tentou-se fazer no Brasil, Argentina e Espanha, entre tantos outros – o resultado torna-se ainda mais grave, pois o próprio Estado passa a, politicamente, ser o fiador da injustiça, mantendo em seu cerne a própria negação do Estado de Direito, uma vez que, nas palavras de Abrão, “Permitir que possíveis acordos políticos afastem a Justiça valoriza a impunidade e sinaliza que em novos rompantes autoritários bastar-se-ia, ao final, realizar um “acordo político””(28). Ao forçar o esquecimento de modo oficioso, afastando a possibilidade de justiça, o Estado fragiliza-se enquanto Estado de Direito, uma vez que registra na memória social a possibilidade permanente da política elidir o próprio Direito, constituindo um permanente estado de fato, onde quem detém a prerrogativa de conduzir punições não é, portanto, o direito, mas sim o poder. Ainda, o processo de omissão da verdade e negação da memória produz efeitos nas corporações e instituições instrumentalizadas pelos regimes autoritários para a prática de violações aos direitos humanos, que passam a perceberemse – graças ao senso comum autoritário que se estabelece desde o esquecimento oficioso – como imunes ao Direito, uma vez que não só os crimes passados não foram esclarecidos, apurados ou punidos como, igualmente, são causa de orgulho presente para os criminosos. A tensão que tal descompasso gera, permitindo a criminosos orgulharem-se do ultraje que produziram as vítimas tensiona a sociedade, produzindo aquilo que Brito chama de “um passado que não vai embora”(29) (2009, p.56). Uma memória que, conscientemente, gera dor e sofrimento aqueles a ela vinculados e, não-conscientemente, consolida-se numa desconfiança permanente quanto a tudo que ocorre no espaço público e, mais especificamente, numa desconfiança gene112

ralizada em relação ao Estado, suas instituições e seus agentes. Destaque-se, finalmente, que este argumento contrário ao esquecimento não fundamenta-se na assunção pura e simples de uma “verdade das vítimas”, mas sim nos danos da ausência de um processo de questionamento público sobre fatos altamente controversos e que envolvem graves violações aos direitos humanos e ao Estado de Direito. Sempre existirá, num processo de busca da verdade, a possibilidade de que aqueles imputados enquanto violadores assumam posições performáticas como as apontadas no início deste item a partir do estudo de Payne(30), e isso é legítimo no processo democrático (muitas vezes as vítimas também assumem papéis performáticos, sendo a própria posição de “vítima” uma categoria de ação). O que é inadmissível desde o ponto de vista de um Estado de Direito comprometido com os valores constitucionalistas não é a divergência de posições, mas sim o tratamento assimétrico conferido aos pólos divergentes, que se torna ainda mais grave na medida em que ocorreram violações a direitos fundamentais.

5 Apontamentos finais A distinção entre “direito à verdade” e “direito à memória”, bem como uma melhor circunscrição do conteúdo de ambos, a meu ver, facilita a superação de mal-entendidos semânticos sobre o tema. A recente positivação do direito à verdade no Brasil, bem como a aprovação, na mesma data, de uma legislação específica de acesso a informações tende a democratizar e dar efetividade a estes direitos. O processo histórico de construção da normatividade das pretensões de acesso à verdade e à produção de memória, que primeiro permite a consolidação do mesmo no plano internacional e, posteriormente, nos planos internos, permite vislumbrar o quanto tal processo é ainda aberto, e o desenvolvimento do mesmo no Brasil deve acelerar-se radicalmente com o início dos trabalhos da Comissão da Verdade, assumindo contornos dificilmente previsíveis. O que é certo, não obstante, é que o exercício do acesso a verdade e a possibilidade de

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produção de memórias em ambiente democrático fortalece uma cultura que, em si, dá substancia e reforça o próprio ambiente democrático que lhe viabiliza. Assim, o simples debate da presente temática no Brasil atual já demonstra, em grande medida, um amadurecimento de nosso Estado mas, sobretudo, de nossa esfera pública.

Notas Veja-se SABADELL, Ana Lúcia; DIMOULIS, Dimitri. “Anistia: a política além da justiça e da verdade” in: Acervo – Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v.24, n.º 01, jan-jun 2011, pp. 79-102.

(3)

(4)

Veja: TORELLY, Marcelo D. “Justiça Transicional, Memória Social e Senso Comum Democrático: notas conceituais e contextualização do caso brasileiro” in SANTOS, Boaventura de Sousa; ABRÃO, Paulo; MACDOWELL, Cecília e TORELLY, Marcelo D. (org.), Repressão e Memória Política no Contexto Ibero-Brasileiro. Brasília/Coimbra: Ministério da Justiça/Universidade de Coimbra, 2010. TEITEL, Ruti G. Transitional Justice. Nova Iorque: Oxford University Press, 2000, pp. 69-70. Tradução minha, no original: “[...] history is teacher and judge, and historical truth in and of itself is justice. It is this view of the liberalizing potential of history that inspires the popular contemporary argument for historical accountability in transitions. Yet, the assumption that “truth” and “history” are one and the same evidences a belief in the possibility of an autonomous objective history of the past belying the significance of the present political context in shaping the historical inquiry. However, modern theorizing about historical knowledge considerably challenges this conception. When history takes its “interpretative turn,” there is no single, clear, determinate understanding or “lesson” to drawn from the past but, instead, recognition of the degree to which historical understanding depends on political and social contingency.”

(5)

PAYNE, Leigh A. Unsettling Accounts - neither truth nor reconciliation in confessions of state violence. Durhan e Londres: Duke University Press, 2008.

(6)

PAYNE, op. cit. P.281. Tradução minha, no original: “Between the cautionary and utopian extremes of conflict resolution lies a more practical model: contentious coexistence. Contentious coexistence rejects ineffective gag orders and embraces democratic dialogue, even over highly factious issues, as healthy for democracies. It rejects infeasible official and healing truth in favor of a multiple and contending truths that reflect different political viewpoints in society.”

(7)

Vide: USTRA, Carlos Alberto Brilhante. A Verdade Sufocada - a história que a esquerda não quer que o Brasil conheça. Brasília: SER, 2006.

(8)

DIMOULIS, Dimitri. “Justiça de Transição e função anistia no Brasil. Hipostasiações indevidas e caminhos da

(9)

responsabilização”. In: DIMOULIS, Dimitri; MARTINS, Antonio; SWENSSON JUNIOR, Lauro Joppert (orgs.). Justiça de Transição no Brasil - Direito, Responsabilização e Verdade. São Paulo: Saraiva/Direito GV, p.101. (10)

DIMOULIS, op. cit. p.104.

Exemplos disso são encontráveis em casos como a recente decisão judicial determinando a alteração de um atestado de óbido falsificado pela repressão para encobrir um crime do Estado. Veja: O Globo, Justiça reconhece que dirigentedo PCdoB morreu no DOI-CODI, disponível em: http:// oglobo.globo.com/pais/justica-reconhece-que-dirigentedo-pcdob-morreu-no-doi-codi-4672720

(11)

NAVIQ, Yasmin. The right to the truth in international law: fact of fiction? In: International Review of the Red Cross. Volume 88, número 862, junho de 2006, p. 248. Tradução minha, no original: “The right to the truth has emerged as a legal concept in various jurisdictions and is many guises. Its origins may be traced to the right under international humanitarian law of families to know the fate of their relatives, recognized by Articles 32 and 33 of the 1977 Additional protocol I to the Geneva Conventions of 1948, as well as obligations incumbent on parties to armed conflicts to search for persons who have been reported missing.”

(12)

NAQVI, op. cit. pp.248-249. Tradução minha, no original: “[...] Enforced disappearances of persons and other egregious human rights violations during periods of extreme, state-sponsored mass violence [...] prompted a broader interpretation of the notion of the right to be given information about missing person. It also led to the identification and recognition of a right to the truth by various international organs, in particular, the InterAmerican Commission on Human Rights ant Court of Human Rights, the UN Working Group on Enforced or Involuntary Disappearances and the UN Human Rights Committee. These bodies progressively drew upon this right in order to uphold and vindicate other fundamental human rights, such as the right of access to justice and to an effective remedy and reparation. They also expanded the right to the truth beyond information about events related to missing or disappeared person to include details of other serious violations of human rights and the context in which occurred.”

(13)

NAQVI, op. cit. p.249. Tradução minha, no original: “Broadly speaking, the right to the truth, therefore, is closely linked at its inception to the notion of a victim of a serious human right violation. Like procedural rights, it arises after the violation of another human right has taken place, and would appear to be violated when particular information relating to the initial violation is not provided by the authorities, be it by the official disclosure of information, the emergence of such information from a trial or by other truth-seeking mechanisms.”

(14)

CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: Caso de la Masacre de la Rochela vs. Colombia. Tradução minha, no original: “[...] las obligaciones positivas inherentes al derecho a la verdad exigen la adopción de los diseños institucionales que permitan que este derecho

(15)

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Torelly, M. D.

se realice en la forma más idónea, participativa y completa posible y no enfrente obstáculos legales o prácticos que lo hagan ilusorio. La Corte resalta que la satisfacción de la dimensión colectiva del derecho a la verdad exige la determinación procesal de la más completa verdad histórica posible, lo cual incluye la determinación judicial de los patrones de actuación conjunta y de todas las personas que de diversas formas participaran en dichas violaciones y sus correspondientes responsabilidades. Dicha investigación debe ser asumida por el Estado como un deber jurídico proprio y no como una simples gestión de intereses particulares, que dependa de la iniciativa procesal de las víctimas o de sus familiares o de la aportación privada de elementos probatorios.” Para um bastante amplo conjunto de referências sobre a jurisprudência internacional sobre o tema, confira-se o item V.8 do Digesto de Jurispudência Latinoamericana sobre Crimes de Direito Internacional (FUNDACIÓN PARA EL DEBITO PROCESO LEGAL: 2009).

(16)

A legislação argentina é a mais radical quanto a esta indisponibilidade, obrigando inclusive a possível vítima de sequestro, enquanto criança, a fornecer material genético que permita esclarecer sua verdadeira paternidade, mesmo quando esta não tenha tal intenção. A este respeito veja-se: FERRANTE, Marcelo. “La prueba de la identidade en la persecución penal por apropiación de niños y sustitución de su identidade” in: ICTJ/CELS (org.), Hacer Justicia. Buenos Aires: Siglo XXI, pp. 227-258.

(17)

AGUILAR, Paloma. Políticas de la memoria y memorias de la política. Madri: Alianza Editorial, 2008, p.43. Tradução minha, no original: “Existe una gran confusión en torno al significado de estas expresiones, pues distintos autores las han empleado con propósitos y connotaciones muy diferentes. A esto se añade que el término, ya de por sí polisémico, de , cuando va acompañado de los adjetivos , o , tiene un evidente componente metafórico y, en ocasiones, también reivindicativo.”

(18)

AGUILAR, op. cit. pp.57-58. Tradução minha, no original: “Según mi punto de vista, la memoria puede obtener su carácter o del hecho de ser compartida por los miembros de un grupo, más o menos claramente delimitado, cuyo tamaño puede oscilar entre unidades muy pequeñas, como la familia, y otras mucho mayores, como la nación [...]. Esta memoria, que aquí calificaremos indistintamente de o , cabe distinguirla de la memoria u (aunque no haya necesariamente oposición entre ambas), que es la que más visibilidad adquiere en el espacio público, la que se refleja en los monumentos, en las conmemoraciones, la que es impulsa a través de las políticas de la memoria. Dicha memoria suele ser promovida por los gobiernos (de distintos niveles) o por las cámaras legislativas (estatales o subestatales), pero bien puede haber sido introducida en la agenda política a instancias de agrupaciones sociales de diverso tipo. De esta forma, una memoria que, en principio, pertenecería a los miembros de un determinado grupo [...] puede acabar convirtiéndose en una memoria si,

(19)

114

desde los poderes ejecutivo o legislativo, se decide darle un espaldarazo oficial, recogiendo el espíritu y/o la letra de las reivindicaciones de esos colectivos.” AGUILAR, op. cit. p.58. Tradução minha, no original: “La memoria institucional, que suele ser también la en el espacio público, puede, en contextos autoritarios, llegar a monopolizarlos, gracias a la represión de las memorias disidentes o simplemente alternativas. Sin embargo, cuando hablamos de regímenes democráticos, la memoria institucional, aun cuando en muchas ocasiones pueda continuar siendo la dominante, ha de compartir dicho espacio con la pluralidad de memorias sociales que entran en competición directa con ella.”

(20)

A este respeito, veja-se: ZAMORA, José; MATE, Reyes (org.). Justicia y Memoria – hacia una teoría de la justicia anamnética. Barcelona: Anthropos Editorial, 2011.

(21)

RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da UNICAMP, 2007, p.71.

(22)

(23)

RICOEUR, op. cit. p.451.

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2000.

(24)

GARAPON, Antoine. Crimes que não se podem punir nem perdoar. Lisboa: Instituto Piaget, 2002, p.139.

(25)

A este respeito deste processo de modo mais ampliado, tratando dos direitos humanos em geral, veja-se: HERRERA FLORES, Joaquim. A Reinvenção dos Direitos Humanos. Florianópolis: Boiteux, 2009.

(26)

Como muito bem lembra a juíza e ativista democrática Kenarik Felippe, “Hitler dizia que ninguém se lembrava mais do genocídio de 1,5 milhão de armênios. Assim tivemos o genocídio dos judeus”. FELIPPE, Kenarik Boujikian (2010). Justiça não é revanchismo. In: Tendências e Debates: É positiva eventual revisão da Lei de Anistia. Folha de S. Paulo, 09 de janeiro de 2010.

(27)

ABRÃO, Paulo. Tortura não tem anistia. In: O Globo, Rio de Janeiro, 15 de setembro de 2009.

(28)

BRITO, Alexandra Barahona de. Justiça Transicional e a Política da Memória: Uma Visão Global. In: Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasil: Ministério da Justiça, n.º 1, jan/jun 2009, p.56.

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(30)

Op. cit, 2008.

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Artigo Esquecer é começar a morrer

Esquecer é começar a morrer Paulo Sérgio Pinheiro(1)

para Paulo Vannuchi, a quem o Brasil deve muito para haver a Comissão Nacional da Verdade RESUMO: O artigo serve como testemunho dos debates que precederam a criação da Comissão Nacional da Verdade, instalada em maio de 2012. O texto foi escrito em maio de 2009, num contexto diferente do atual, como prefácio ao livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro, publicado em 2009 pela Editora Forum. Nos últimos anos, vários temas desse debate avançaram e a leitura do presente artigo deve ter em conta essas mudanças. Palavras-chave: Justiça de Transição. Comissão Nacional da Verdade. Democracia brasileira ABSTRACT: The article serves as a testimony of the debates that preceded the creation of the National Truth Commission, installed in May 2012. The text was written in May 2009, in a different context of the current, as a preface to the book Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro, published in 2009 by Editora Forum. Reading this article should take into account the changes that occurred in this topic in Brazil. Keywords: Transitional Justice. National Truth Commission. Brazilian Democracy O texto seguinte, escrito em maio de 2009 e apresentado como prefácio ao livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro,organizado por Inês

(1) Presidente da comissão independente internacional de investigação da ONU sobre a República Árabe da Síria, Genebra

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Virginia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, publicado em 2009, Editora Forum, deve ser lido no contexto do debate que precedeu a criação da Comissão Nacional da Verdade, instalada pela Presidenta Dilma Rousseff, aos 16 de maio de 2012. Os marcos em que esse debate se desenvolveu foram: O Programa Nacional de Direitos Humanos, PNDH3, apresentado pelo ex- ministro dos direitos humanos, Paulo Vannuchi, no qual foi incluída a reivindicação formulada nas conferências preparatórias desse programa a proposta dessa comissão; o Grupo de Trabalho interministerial que preparou o projeto de lei enviado ao parlamento pelo presidente Luís Inácio Lula da Silva; a mobilização de todos os antigos ministros de direitos humanos pela atual ministra Maria do Rosário Nunes em favor dessa lei; aprovação do projeto pelas duas casas do Congresso Nacional e a promulgação dessa lei n.12.528, de 18 de novembro de 2011; e finalmente a indicação dos membros da Comissão Nacional da Verdade e sua instalação. Devo dizer, para transparência, que estive envolvido em todo esse processo como assessor supervisor do PNDH 3, depois membro do grupo de trabalho que preparou o projeto e agora membro da Comissão Nacional da Verdade. O presente texto exigiria uma profunda revisão, com vários acertos em relação a vários temas que evoluíram naquele debate. Mas, para não ficar fora da REID, que nesse número dedica uma sessão para o tema do Direito à Verdade e do Direito ao Acesso à Informação, publico aqui o texto como testemunho daquele debate. Este ensaio não reflete minhas opiniões como membro da Comissão Nacional da Verdade nem, muito menos, da própria Comissão ou de meus companheiros comissionados. Há 20 anos o Brasil com a Constituição de 1988 voltava à ordem democrática. Saudada como a Constituição cidadã — como se houvera outras que não o fossem — no que diz respeito ao acerto de contas com o passado nada havia a surpreender. Ainda que o artigo 5º, no bojo dos direitos e garantias individuais acenasse com a futura regulamentação dos direitos humanos, a Constituição consagrava a mesma estrutura dos 116

aparatos estatais de segurança que havia sido a base do arbítrio na ditadura militar. Já em 1971, Tristão de Ataíde (Alceu Amoroso Lima) no auge da ditadura militar, uma das únicas vozes a denunciar o desaparecimento do deputado federal cassado Rubens Paiva, protestava contra o terrorismo de estado, responsável pelas torturas e seqüestros. Em 1985, o Brasil Nunca Mais documenta o uso que a ditadura militar fizera dos aparatos policiais e de estrutura militar do Estado. Se havia alguma dúvida, sobre a responsabilidade do Estado brasileiro por esses crimes, essa se dissipava. Apenas três anos depois a Constituição de 1988 era promulgada. Nela os constituintes optaram por desconhecer a responsabilidade dos aparelhos da segurança pública pelos crimes praticados na ditadura. Aquele rigoroso registro de memória da ditadura, baseado nas denúncias de tortura e outras práticas cruéis pelos funcionários do Estado brasileiro registrados nos autos do Superior Tribunal Militar, não afetou os constituintes que deixaram a estrutura da repressão intocada, na linhagem da conciliação, um arquétipo sempre presente na história política das transições no Brasil, como lembrou Michel Debrun(2) Desde o golpe dos 18 Brumário de Napoleão III, passando pelos regimes fascistas e nazistas, até os exemplos mais recentes como a ditadura de Trujillo na República Dominicana e a de Fujimori no Peru, se valeram de grupos criminosos civis para sua implantação e consolidação no poder. No Brasil, não foi o que ocorreu porque aqui a repressão clandestina foi burocrática e “cartorial”, perpetrada por funcionários públicos.. Mesmo que tenha sido estruturado um regime de exceção paralelo, composto por circuitos criminosos fora da hierarquia militar, como por exemplo, na Operação Bandeirantes, Oban, lançada em 1969, financiada por empresários paulistas e apoiado pelo governo e autoridades do estado de São Paulo, as prisões ilegais, os seqüestros, as torturas, os desaparecimentos foram perpetrados por agentes lotados nas estruturas formais da administração pública. Assim foi o caso dos DOI-CODI, Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna, que reuniam em cada estado da

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federação, sob um único comando, militares das três Armas e integrantes das Polícias Militares Estaduais, Policia Civil e Federal. Daí decorre uma responsabilidade patente do Estado brasileiro pelos crimes perpetrados pela ditadura militar. É claro que nos momentos da transição há uma ilusão que novos tempos se abrem, que mudar significa esquecer o passado e perdoar, desconhecendo-se o peso das continuidades, dos legados. Mesmo países que foram afetados por regimes fascistas como foi a França durante o governo Pétain em Vichy, viveram desde o pósguerra, desde o general De Gaulle até o governo Mitterand, socialista e resistente, sob a ficção de que Vichy havia sido um interregno não pertencendo a continuidade do Estado francês. Foi preciso que o governo conservador do presidente Chirac em 1995 reconhecesse que “a loucura criminal dos ocupantes [nazistas] foi secundada por franceses, pelo Estado francês”. Logo, os crimes de Vichy tinham sido perpetrados por funcionários franceses, sob a responsabilidade do Estado francês.(3) Não faz parte da tradição política brasileira acertar contas com o passado. Todas as transições do período republicano foram marcadas por anistias generalizadas e pelo esquecimento. O precedente mais próximo que se pode invocar antes da ditadura militar de 1964 foi a volta à democracia com a constituição de 1946. E os crimes do Estado Novo se esvoaçaram para não perturbar os festejos do retorno à democracia, como os da ditadura de 1964, para não empanar o brilho da Nova República. Quando foi publicado o Brasil Nunca Mais quase ao mesmo tempo em que o presidente José Sarney era empossado, ouvi nos circuitos do establishment político que faltava aos promotores da investigação, Dom Paulo Evaristo Arns e ao pastor Jaime Wright, tato político, ao pretenderem abrir as cavernas dos vampiros logo na celebração da redemocratização. Aliás, a Nova República foi parecidíssima com o pós-Estado Novo: o primeiro governo de 1946, pelo menos eleito pelo voto popular, instala como presidente o antigo ministro da guerra que liderara a repressão à mal sucedida revolta militar-comunista de 1935; a Nova República será inaugurada sob a presidência do antigo presidente

do partido do situacionismo autoritário eleito por um colegiado conformado pela ditadura. Desde a instalação de uma corte de exceção no Estado Novo, o Tribunal de Segurança Nacional, em setembro de 1936, até dezembro de 1940, essa corte sumária examinou 1358 caos envolvendo 9900 pessoas, compreendendo a repressão aos comunistas em 1935 e 1936 e a repressão no Estado Novo. Sobre essas práticas nada o Estado brasileiro fez até hoje, seja em termos de resgate da memória nem muito menos em termos de reparação das vítimas. É como se, como no caso de Vichy na França, o estado brasileiro hibernara para despertar em 1946. O que se conhece daqueles horrores é através da pesquisa acadêmica sobre o comunismo ou o regime autoritário do Estado Novo ou de obras literárias como o monumental Memórias do Cárcere, de Graciliano Ramos e os Subterrâneos da Liberdade, de Jorge Amado. As numerosas memórias de antigos militantes e prisioneiros da ditadura militar de 1964, e mais recentemente filmes, cumprem o mesmo papel desses reveladores precursores para o período pós 1964. O que chama a atenção nessa postura de inação diante dos crimes do passado por parte do Estado, pelo menos até o governo Fernando Henrique Cardoso, como veremos mais adiante, e por parte do establishment judicial e militar, como sempre lembra Glenda Mezarobba, é o contexto em que se dá essa impunidade. Perdura essa ausência de accountability, de tornar os agentes do Estado responsáveis pelos crimes da ditadura, de uma reconstituição da verdade e de perdão às vítimas, como Chirac fez diante da sociedade francesa pelos judeus, crianças e adultos exterminados pela ação da polícia francesa. Ainda que o contexto da ordem internacional do fim do Estado Novo, marcada pelo débâcle da Sociedade das Nações, é contemporâneo da criação mesma da carta que vai fundar a Organização das Nações Unidas em 1945 e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, os princípios desses documentos não impregnaram a volta à democracia no Brasil. Convenhamos que cobrar a república de 1946 o que as democracias restauradas na Alemanha, Itália, França, para apenas ficarmos com o nazis-

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mo e fascismo mais emblemáticos, não conseguiram fazer de forma aprofundada — a saber, o julgamento de todos os funcionários de estado que implantaram o fascismo e muito menos o expurgo do aparelho de estado desses criminosos. Os aparelhos policiais (lembre-se que De Gaulle confere a polícia da Prefeitura de Paris, a mesma que rigorosamente detinha os judeus para enviar para o extermínio, com a Légion d´Honneur, até hoje representada pelo cordão vermelho que os policiais usam no uniforme de gala), o judiciário e o establishment político foram mantidos incólumes. Apenas o referencial da Declaração Universal, e a da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem, promulgada quatro meses antes da outra, bastaria para se assegurar os quatro direitos fundamentais mínimos devidos à pessoa humana: o direito de não ser submetido à tortura, o direito à justiça (à proteção judicial), o direito à verdade e o direito a remédios efetivos caso os direitos da vítima tendo sido violados. Ocorre que nos últimos sessenta anos, foram promulgados (e hoje integralmente ratificados pelo Brasil, depois da recusa dos governos ditatoriais) os pactos internacionais de direitos humanos e convenções especificando os direitos indicados naqueles textos fundadores, muitos outros textos se sucederam. Como a convenção contra o genocídio, a Convenção Americana ou o Pacto de San José de Costa Rica, as convenções internacionais contra o genocídio, a discriminação e contra a tortura. Paralelamente àqueles textos, se consolidaram os comitês de diversos tratados que monitoram o cumprimento das obrigações dos tratados e, particularmente na região da América Latina e no Caribe, de um sistema interamericano de direitos humanos, com a Comissão e a Corte Interamericanas de Direitos Humanos. Como vai muito bem fundamentado neste livro, inúmeras decisões dessas duas instituições firmaram jurisprudência indicando que as anistias auto-concedidas pelo regime militar não têm valor jurídico na democracia para escudar a impunidade dos agentes do estado nos regimes de exceção. Mais claro ainda está assentada a imprescritibilidade dos crimes de tortura, firmada 118

pela convenção internacional e no caso brasileiro por regulamentação em legislação nacional. Nesse contexto da evolução e consolidação do direito internacional dos direitos humanos, como fica patente em Memória e Verdade: justiça de transição no estado democrático brasileiro, irrompe como um tremendo descompasso o não acerto de contas com os responsáveis dos crimes da ditadura. Para tanto, apesar daquele substancial acumulado de obrigações internacionais, livremente assumidas pelo Estado brasileiro, continua viva a ficção da dupla mão da Lei de Anistia nº 6683, de 1979, promulgada pela ditadura, que parece cada vez mais insustentável. A preservação desse mito da anistia ampla para criminosos do Estado e para opositores do regime de exceção opera mecanismos similares que geram e sustentam outros mitos, que por sua vez interagem e sustentam o mito da anistia. O mito da história não sangrenta, que todas as transições brasileiras se fizeram sem sangue, ficção insistentemente desmontada pelo historiador José Honório Rodrigues. Que ao contrário de outros países nesse abençoado país não há rupturas conflitivas e violentas, nossas transições aqui são pacíficas. De certo modo esses mitos formadores são indispensáveis quando se registra a alta continuidade do pessoal político brasileiro apesar da mudança de autoritarismo para a democracia. Da mesma forma que do Império para a República, do Estado Novo para 1946, de 1964 para a Nova República, a chamada classe política permanece a mesma, ou quando há mudanças efetivas na hegemonia partidária, quando ocorreu em 1994 e 2003, a coalizão com as oligarquias ou as forças políticas do bloco do poder na ditadura se torna essencial, no discurso dominante, para a governabilidade. Por sua vez, esse pessoal que sobrevive (nos legislativos, mas igualmente na administração pública) está articulado com o peso dos legados mais fortes que marcam as práticas arbitrárias no interior dos aparelhos repressivos, a continuidade do racismo, da violência ilegal, do controle das não-elites pela tortura. É grave erro supor que a postura do establishment político, jurídico e militar de recusa à responsabilização dos torturadores, para simplesmente indicarmos um contingente dos

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criminosos, opera em compartimento blindado, se dizia antigamente estanque, daqueles outros legados. A negação da reconstrução da verdade e da justiça em relação às vítimas da ditadura corresponde, é homóloga, para ser mais preciso, por exemplo, com a incapacidade demonstrada por todos os governos democráticos na esfera federal e estadual de eliminarem a prática sistemática da tortura em todas as delegacias do país, as execuções cometidas especialmente pelas polícias militares e civis, promoverem a reforma efetiva do aparelho de segurança pública e o mau funcionamento do sistema judiciário e penitenciário. No Brasil, o bom funcionamento das eleições, do qual é ilustração positiva a justiça eleitoral autônoma e as urnas eletrônicas, não foi ainda capaz de consolidar um estado de direito acessível para toda a população. As numerosas expressões individuais do aparelho de estado bandido, expressão de J. M. Coetzee(4), que sobrevivem no legislativo, no judiciário e na polícia, como a imprensa e os tribunais documentam a cada dia, se revigora pela incapacidade de ajuste de contas com os membros desse aparelho de estado da ditadura militar. É extremamente difícil consolidar uma democracia política sem que se constitua um sistema sólido de responsabilidade, de responsabilização pública como política do Estado no presente, sem que também valha em relação ao passado. Em que pese tudo o que foi dito, necessário reconhecer, como fazem os autores de Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro, que alguns passos foram dados. Depois da lei de anistia, visando particularmente in petto livrar o aparelho de estado bandido da ditadura acusado e processado na democracia, com a cantilena do esquecimento pregado para os dois lados, o legislativo e o executivo tomaram alguns passos para lidar com o passado. O reconhecimento da responsabilidade do Estado pelos crimes da ditadura por lei pelo governo Fernando Henrique Cardoso, que estabeleceu uma comissão que concedeu reparação aos desaparecidos políticos, através de indenização aos familiares. Em 1997, foi promulgada a legislação sobre a tortura, ecoando os princípios da convenção internacional e em 2002, através da

Lei nº 10.559, o Estado brasileiro promoveu reparação para opositores e dissidentes lesados pela repressão militar. O governo Luis Inácio Lula da Silva aprofundou a definição desse ordenamento, provendo recursos para as reparações. Também foram tomadas iniciativas simbólicas importantes, especialmente por iniciativa do ministro Paulo de Tarso Vannuchi, da secretaria especial de direitos humanos da Presidência da República, por exemplo, a publicação completa em Direito à Memória e Verdade: Comissão Especial dos Mortos e Desaparecidos Políticos de todos os casos e decisões referentes aos desaparecidos políticos. Vannuchi e o ministro Tarso Genro, da Justiça, igualmente trouxeram para dentro do governo o debate sobre a reconstrução da verdade e da responsabilização dos torturadores. Para que se possa elaborar um roadmap com as etapas a serem seguidas para que se chegue ao acerto de contas com os torturadores é indispensável reconhecer minuciosamente o que foi efetivamente realizado, o que fazem os autores deste livro com imenso rigor. O que fica patente depois da leitura de todos esses ensaios é a noção firme que o Brasil está bastante atrasado no processo de ultrapassar a auto-anistia concedida pelo regime de exceção militar. Sublinho mais uma vez que esse atraso não se deve a uma incapacidade ou falta de vontade política das elites democráticas de lidar com o passado. Essa resistência está inscrita no funcionamento geral das instituições, no sistema político e no judiciário. Quando se leva em conta que o Estado brasileiro não consegue conviver com a possibilidade de abertura dos arquivos sobre a guerra do Paraguai ou da diplomacia brasileira em relação a esse país vizinho e a alguns outros, não espanta que até o momento o Estado democrático tenha tolerado a ficção dos comandos das forças armadas de que não existe mais nenhuma documentação, por exemplo, dos DOI-CODI porque foi destruída, sem que esse crime de ocultação de documentos tenha sido formalmente investigado. A documentação até agora liberada o foi pelos governos dos estados ou referentes ao SNI e ao monumental arquivo de seu fundador, o General Golbery do Couto e Silva e alguns outros poucos protagonistas da ditadura.

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Ao contrário da Argentina e do Chile, nenhum alto (ou subalterno) dignitário militar foi processado, condenado ou cumpre pena de prisão como nos países vizinhos. As raríssimas causas que avançaram no judiciário brasileiro se restringem a causas no direito civil. E poderia ser diferente, quando a inércia acomete todas as outras arenas do estado, que o judiciário assumisse a causa da responsabilização dos torturados, quando nem consegue, apesar da legislação contra a tortura, processar os torturadores do presente? Como superar então os obstáculos estruturais do sistema político brasileiro que impedem o acerto de contas com o passado? Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro deixa evidente que o roadmap, o mapa do percurso para a responsabilização dos agentes do aparato de estado bandido da ditadura , deverá compreender inúmeras e diferentes vias para se construir uma justiça de transição tardia do regime autoritário militar. Um eixo compreende a reconstituição das etapas referentes à Anistia, ao reconhecimento da responsabilidade do estado, às reparações, enfim, o que se poderia considerar como etapas precursoras, mapeando o passado e os desafios presentes, alguns numa perspectiva da análise comparada. São igualmente mostrados os recursos que a antropologia forense pode oferecer para a restauração do presente. Como indicava mais acima, pela própria inserção plena do Estado brasileiro no sistema internacional de proteção de direitos humanos, por força mesmo do papel de protagonista que assumidos na Conferência Mundial de Direitos Humanos, em Viena 2003, e na preparação da tratado de Roma em 1998, na Conferência Mundial sobre o Racismo, em Durban em 2001, além da participação ativa do Brasil na consolidação do sistema interamericano de direitos humanos, o tema da memória e verdade tem necessariamente de ser situado no contexto do direito internacional. É o que fazem diversos ensaios no âmbito do direito internacional dos direitos humanos. Os ensaios de José Gregori, antigo secretário de estado de direitos humanos e ministro da justiça e de Paulo Vannuchi neste livro demonstram cabalmente a continuidade de uma política do 120

Estado brasileiro à luz daqueles princípios. Quanto ao que fazer, o livro trás estudos de iniciativas inovadoras, recorrendo às próprias instituições do direito, como a luta pelo habeas corpus no caso do governador de Goiás, durante a ditadura, e ao tratarem de um direito fundamental a verdade. Ou de ações dentro da própria esfera federal do estado, examinando as iniciativas no âmbito do Ministério Público Federal em São Paulo e ações extremamente inovadoras demonstrando como pode ser utilizada a tutela do luto pelos desaparecidos, invocando a defesa do patrimônio dos bens culturais e ao se examinar o direito à informação. Enfim, chama a atenção o fato das organizadoras do livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro, Inês Virginia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, serem as duas, além do acumulado de sua larga experiência como pesquisadoras acadêmicas no tema, procuradoras da República. No final dos anos 1980, comecei a conviver com membros do Ministério Público Federal, no trabalho da Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos e graças a Severo Gomes, ex- ministro e depois senador, que tinha entre aqueles os melhores aliados na luta dos direitos dos povos indígenas. Se há uma área do aparelho de estado para o qual a Constituição de 1988 significou efetivamente uma mudança, na defesa de uma política de estado de direitos humanos, foi o Ministério Público Federal (algo similar ocorreu nos estaduais também) que passou efetivamente a defender os interesses da sociedade na luta pelos direitos dos povos indígenas, dos afro-descendentes, contra a discriminação, pelos direitos das crianças e adolescentes, pela defesa do meio ambiente e tantas outras frentes da consolidação da democracia. Creio que não é por acidente que Inês Soares e Sandra Kishi assumiram esse desafio de reunirem nesse oportuníssimo volume Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático brasileiro um expressivo conjunto de juristas, cientistas sociais e operadores de direito para demarcarem as vias para a reconstituição da memória e da verdade e para uma justiça de transição. Formidável contribuição para que o Brasil avance em

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relação ao desvendamento da memória e verdade sobre os crimes da ditadura militar. Porque as duas organizadoras do livro e autoras e seus coautores estão conscientes que se continuarmos coonestando o silêncio, é a morte que ameaça o presente e o futuro.

Notas Ver Debrun, Michel. .A Concliação e Outras Estratégias. São Paulo , Brasiliense, 1983,p.14

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O presidente francês Jacques Chirac em 16 de julho de 1995 faz esse reconhecimento quando da comemoração da prisão em massa, a maior durante a II Guerra Mundial, em 17 de julho 1942, de mais de 13000 judeus, por 9000 policiais e gendarmes franceses, os presos internados no Velódromo de Inverno em Paris e despachados para o extermínio nos campos de concentração alemães. A inspiração do título desse prefácio veio do discurso do PrimeiroMinistro francês, François Fillon, em 22 de julho de 2007, quando do 65º Aniversário daquelas prisões em massa.

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Ver Coetzee, J.M.Diary of a bad year. New York, Penguin, 2007,passim

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Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas Artigo brasileiras e a justiça de transição

Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição Roberta Cunha de Oliveira(1)

RESUMO: O presente ensaio trata do imaginário político autoritário no Brasil, devido à sua constituição histórica colonial. Pela análise das formas de Instituições que deveriam conduzir a modernização do Estado brasileiro se pretende consolidar a concepção de que com a ditadura civil- militar, no período de 1964-1985, houve muito mais uma opção de continuidade do que de ruptura do pensamento autoritário. Palavras chave: desenvolvimento, pensamento autoritário, democracia. ABSTRACT: This paper adresses the authoritarian political imaginary present in Brazil due to its historical colonial. Through an analysis of the forms of institutions that should guide the modernization of the Brazilian State this paper intends to consolidate the understanding that with the civil-military dictatorship, from 19641985, there was an option for continuity instead of a true rupture of the authoritarian thinking. Keywords: development, authoritarian thinking, democracy.

Introdução O pensamento autoritário esteve presente no ideário político brasileiro, muito antes da Doutrina da Segurança Nacional ser desenvol(1)

Mestranda no Programa de Pós – Graduação em Ciências Criminais da PUCRS, linha de criminologia; bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/ CAPES; integrante do grupo de pesquisa Direito à Verdade e à Memória e Justiça de Transição – PUCRS; integrante do Grupo de Estudos sobre Internacionalização do Direito e Justiça de Transição/Idejust. Email: [email protected]. O presente artigo é uma versão revisada, do trabalho que foi apresentado na VI Reunião do Idejust, no dia 14 de abril de 2012, dentro do Seminário Internacional Limites e Possibilidades Da Justiça de Transição: Impunidade, Direitos e Democracia, realizado na Pontifícia Universidade Católica do RS/ PUCRS, de 11 a 14 de abril de 2012, na cidade de Porto Alegre.

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de Oliveira, R. C.

vida com profundidade na América do Sul, por meio das ditaduras militares, depois da segunda metade do século XX. Aliás, o pensamento tutelar(2), ou seja, sob o controle e obediência à autoridade para manutenção da “ordem”, é uma marca característica da formação dos Estados Nacionais na América Latina. Quando se fala na parte mais ao sul do continente, é preciso que se analise sob a ótica do colonialismo (dentro da dinâmica centroperiferia) e sua influência na formação das elites que deteriam o poder nas colônias; mas também sob o olhar do pós- colonialismo, o qual manteve a dependência desses países em relação ao mundo europeu e, posteriormente norte – americano, para além das suas independências políticas. No presente trabalho, fez-se a opção de tratar desse ideário político autoritário no cenário brasileiro como uma opção de continuidade mais do que de ruptura, a partir de 1964. Entretanto, entende-se que o foco dessa construção do imaginário político que afetou e ainda está muito presente em nossas Instituições é complexo, necessitando de argumentos políticos, econômicos, ideológicos e culturais que se entrelaçam em diversas vias. Tal opção de continuidade ainda vige no judiciário brasileiro, por isso, em um primeiro momento, propõe-se outra visão da formação histórica do “povo brasileiro”, baseada no conflito, no extermínio das subjetividades como marca do caráter colonial, que permanece até os dias atuais (sob o manto pós- colonial de exclusão das minorias das grandes decisões políticas do país) e, para tanto, recorre-se aos trabalhos de Celso Furtado e sua crítica à “invenção do Brasil”. Em um segundo instante, por meio dessa visão pós-colonial de Furtado, tenta-se ponderar que o “flerte” com o autoritarismo estava muito presente no imaginário político e jurídico do país, tanto por sua constituição histórica, quanto pelos cenários geopolíticos internacionais delineados até meados do século XX. Desta maneira, a concepção aqui referida é a de que o regime civil- militar não aconteceu de uma maneira independente, tampouco inesperada, em meio às tensões e disputas pelo poder no caminho do “desenvolvimentismo” e da “modernização”. 124

Por fim, refere-se ao papel desenvolvido pelo judiciário e sua colaboração com o aparato militar, em momentos anteriores ao golpe de 1964, o que ajudou a consolidar uma forma bem específica de “judicialização da repressão”. Nesse item, há o intuito de problematizar acerca da falta de reformas no poder judiciário durante o período de transição democrática na década de 1980, e como a insuficiência destas medidas ainda torna “lugar comum” uma visão que flerta com uma posição autoritária perante os direitos humanos. Além disso, busca-se demonstrar um olhar conservador sobre a nossa história e o nosso passado recente, baseado na “conciliação” e no caráter “cordial do povo brasileiro”, expressados no voto do Ministro Relator, Eros Grau, durante o julgamento da ADPF 153, em abril de 2010(3).

1 O pensamento de Celso Furtado X a formação histórica do Estado forte na América Latina No Brasil, a ideia de democracia, como governo da soberania popular e de respeito e promoção dos direitos fundamentais, é relativamente recente, mais precisamente afirmada na Constituição de 1988, já em uma era da reabertura política no continente. Desde finais do século XIX até meados do século XX, o que se teve, em termos de construção intelectual brasileira, foi uma disputa de concepções sobre a formação de um Estado que precisava modernizar-se economicamente, deixando de ser apenas uma economia rural e que, para isso, também necessitava refazer-se politicamente, como maior investimento em infraestrutura, na indústria, na imigração, no reconhecimento de direitos sociais, deixando de ser uma República Oligárquica, para inserir-se no âmbito internacional como um Estado forte e “independente”. Nesse cenário de discursos e controvérsias, pode-se afirmar que, por muitas vezes, o contrário da democracia não era visto na ditadura, mas sim no liberalismo(4), além disso, os debates econômicos e políticos também envolviam o problema do nacionalismo, mais associado à

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Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição

industrialização entre a década de 1920 e 1930. Tanto que neste período, afirmava-se um novo “conceito de nação”, visto ser: a nação forte, a nação industrializada, isto é, no Brasil havia o discurso da necessidade de reforma das Instituições para que estas se adequassem à realidade. Por outro lado, tendo como condutora uma posição de crítica ao mito da nação, fez-se a opção de trabalhar neste ensaio, com algumas conceituações políticas de Celso Furtado, especialmente as desenvolvidas na primeira parte do livro Dialética do Desenvolvimento(5), quando o autor trata da questão de que os países subdesenvolvidos somente atingirão o desenvolvimento social, quando as políticas econômicas forem tratadas com ênfase na influência que produzem e recebem das “estruturas culturais”. Ademais, em conformidade com concepções da corrente de análise pós-colonial(6), Celso Furtado já havia desenvolvido o pensamento econômico para além do debate entre planejamento, interferência do Estado e controle inflacionário; pois assegurava sua análise a partir de processos históricos, dizendo que países subdesenvolvidos, como o Brasil, possuíam um “entrave cultural” assentado na economia com caráter colonial e na concentração de renda. Para Furtado, a adoção das elites de padrões de consumo dos modos desenvolvidos (europeu e norte americano), gerava acumulação e concentração de renda, fazendo com que permanecesse a diferença cultural entre as classes sociais(7); além dos países subdesenvolvidos terem uma forma peculiar de inserção no comércio internacional, pois incursionaram no capitalismo por meio do desenvolvimento tecnológico dependente. Não obstante, o controle do poder também era feito pelas oligarquias desses países, que devido à abundante oferta de mão-de-obra, acabavam decidindo o que fazer com o excedente e que rumo dar para a produção nacional. Furtado desenvolveu argumentos de que a “invenção do Brasil” foi obra das elites oligárquicas, deixando claro que apenas a partir da “crise de 1929” que se poderia falar em industrialização no país com uma “economia dual”. Um dos caminhos indicados pelo autor para superar nossa condição de país subdesenvolvido

seria adotar o planejamento(8) como instrumento primordial do Estado, em conjunto com o fortalecimento das instituições da sociedade civil. Ou seja, o desenvolvimento não se daria de outra forma, senão por um regime democrático que sustentasse a pluralidade na participação política. Entretanto, relembra-se que a Dialética do Desenvolvimento(9) foi publicada em 1964, ano no qual a sociedade brasileira conheceu fática e drasticamente a opção oposta: do regime fechado/ autoritário militar. Ademais, o tema do desenvolvimento, além de preocupar a diferentes correntes de intelectuais brasileiros, já estava na pauta da geopolítica estadunidense para a América Latina, tanto que o lançamento da chamada “Aliança para o Progresso”, em 1961, previa a promoção do desenvolvimento na região(10), claro que sob a tutela do “guardião democrático nas Américas”. Não obstante, o modelo autoritário militar começava a encontrar suas bases de estabelecimento no continente, seja pelos problemas endógenos dos países latino – americanos (como a questão econômica da dependência, e a questão política da revolução(11)), seja pelos fatores exógenos, ideológicos, como a política da “Aliança para o Progresso” e posteriormente a Doutrina da Segurança Nacional(12). Dessa maneira, o golpe militar de 31 de março de 1964 inaugurou não apenas a era das Forças Armadas avocando-se o domínio do poder político na região, instalando, não raras vezes, o terrorismo de Estado no combate aos “inimigos” dos “interesses nacionais”; como também, apontou um novo modelo fático de ditadura, melhor organizado, mais “eficaz” e instrumentalizado, denominado por Alcázar de “ditaduras de novo tipo”. Referido autor diferencia as ditaduras militares do que chama de “ditaduras tradicionais” na América Latina; nas últimas o poder ficava concentrado nas mãos das elites oligárquicas agroexportadoras, havia um sistema convencional de partidos (partido liberal x partido conservador); eram fortemente apoiadas pela Igreja católica, em países nos quais a maioria da população era rural e as sociedades ainda configuradas sob a égide do pensamento colonial.

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Enquanto que as ditaduras militares foram resultado deste pensamento autoritário aprimorado, principalmente com os acontecimentos da década de 1950 (entre eles, a Revolução Cubana), baixo a ideologia da Segurança Nacional, efetivados por meio de golpes de Estado com uma política militar reacionária e tendo na violência um dos principais meios utilizados para “eliminação” dos dissentes. Sobretudo, nessa fase, houve a identificação dos interesses militares como se fossem os interesses nacionais, salvaguardando a pátria e com a intenção de perpetuação no poder(13). Tal fato, conforme já referido, em muito tem a ver com o processo histórico de formação dos Estados Nacionais latino- americanos. Dita disparidade de classes sociais foi trabalhada por Celso Furtado(14), como impeditivo não apenas do crescimento econômico, mas também da passagem de Estados subdesenvolvidos para Estados desenvolvidos: “... por cima está a classe dirigente, formada de vários grupos de interesse sob muitos aspectos antagônicos e incapacitada para formular um projeto de desenvolvimento nacional, com um monopólio incontestado do poder; mais abaixo, temos uma grande massa de assalariados urbanos empregados no terciário, que é mais um estrato social do que uma classe propriamente dita; seguese a classe dos trabalhadores industriais, que não chega a representar um décimo da população ativa do país, mas constitui seu setor mais homogêneo; por ultimo vem a massa camponesa.” (grifo nosso).

Sendo assim, o Estado capitalista na América Latina se constituiu com fortes resquícios de economias agroexportadoras, o que acabou originando uma elite agrícola muito poderosa (a qual Furtado chamava de “primitivo núcleo latifundiário”), direcionando a uma ordem econômica dependente dos produtos industrializados das antigas metrópoles, baseada na forte concentração de renda e no latifúndio. Porém, a classe dirigente tende a ser ramificada no século XX, com a industrialização/ modernização brasileira, para o grupo controlador dos interesses ligados 126

ao comércio exterior, e o grupo capitalista basicamente apoiado no mercado interno(15), o que gerou uma constante luta pelo poder entre as elites, relegando ao povo (operários, campesinos...) o papel de “massa de manobra”. A concepção de Celso Furtado também nos dá um panorama da estrutura da sociedade brasileira e das consequentes crises que permitiriam mais de duas décadas sob um regime autoritário. Trata-se de meados do século XX, mais precisamente os anos de 1940 e 1950, com a Europa devastada econômica e culturalmente por duas grandes guerras; os Estados Unidos já experimentando certa inoperância do Estado de bem- estar e a América Latina enfrentando agudas crises com a reestruturação do capitalismo internacional, além das promessas sociopolíticas que os Estados de Compromisso(16) já não conseguiam cumprir. Além disso, em paralelo houve uma aguda modernização, profissionalização e homogeneidade ideológica das Forças Armadas. Tais fatores criaram “condições de possibilidade” para uma ordem militar com o discurso da própria salvaguarda do Estado e sua aceitação social, o que Gilberto Bercovici denomina como a razão do Estado para a promoção de medidas de exceção: “A vontade do Estado moderno de se afirmar como entidade econômica e de ser superior aos demais Estados gerou a rivalidade econômica entre os Estados e a concepção do poder econômico com potencial militar. Não à toa, o capitalismo, ou seja, a razão econômica da nova sociedade internacional está em estreita relação com a razão de Estado. A razão de Estado, primeiro discurso do estado de exceção, tinha por finalidade garantir a preservação do Estado a qualquer preço”(17)

Voltando ainda no problema da constituição nacional, de acordo com Aldo Ferrer(18), outro autor que embasou o pensamento da Cepal(19), a concentração do poder entre os séculos XVIII e XIX, esteve nas mãos da elite “criolla”, dos delegados do Império e da igreja, que somavam uns 5% da população da América hispânica. Ademais, a intensidade dos conflitos internos nas novas Repúblicas, teve um peso maior do que a

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influência das ideias políticas na construção dos nacionalismos. No Brasil a estratificação, hierarquia e desigualdade sociais estavam bastante claras desde a independência política em 1822. Na América Latina, este processo de construção do pertencimento ganhou um significado de “periculosidade” agregado à “ideologia da nação”, pois a virada no sentido das políticas de segurança nacional, entre os anos de 1950 a 1960, possibilitou que os esforços para a defesa do território contra um inimigo externo, fossem realinhados para a defesa da sociedade contra um inimigo interno. Essa construção foi influenciada por fatores externos como a Guerra – Fria, mas também por movimentos internos, especialmente abarcados em teorias nas quais apenas um Estado “forte” seria capaz de conduzir o desenvolvimento econômico e aplacar as crises sociais. No Cone Sul, lugar em que se situavam as economias mais industrializadas da região, o “sistema- mundo” teve uma influência determinante na estratificação das sociedades coloniais, com o mercantilismo; e posteriormente com o capitalismo industrial. O grande cenário, no qual a pauta foi o Estado desenvolvimentista, deu-se a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, dentro das perspectivas globais de crescimento e de uma unidade no mundo capitalista que impulsionava a democratização. Entretanto, o Estado desenvolvimentista no continente acabou por generalizar o subemprego, aumentar as taxas de desemprego, com a modernização da economia sem mão-de-obra qualificada, além de aumentar a concentração de ingressos e com isso, a desigualdade social. Tais fatores criaram um ambiente de críticas tanto ao modelo econômico (desenvolvimentista), quanto ao modelo político (democracia). Contudo, essas críticas não se restringiram à esfera política e econômica de atuação, mas também influenciaram certas manobras e acordos na forma de condução das Instituições Públicas. Para aclarar tal processo, necessário recorrer a Anthony Pereira(20), quando esse autor desenvolve o argumento da “legalidade autoritária” da ditadura brasileira ter-se constituído primeiramente nos procedimentos das “ditaduras oligárquicas”, anteriormente citadas:

“No Brasil, a revolução de 1930 contou com a cooperação entre civis e militares, que resultou na fusão organizacional da justiça civil e da justiça militar na Constituição de 1934. A cooperação e a integração entre civis e militares continuou sendo uma característica marcante da abordagem brasileira aos crimes políticos.”

De acordo com Antony Pereira(21), a repressão brasileira foi altamente judicializada e gradual, o que acabou interferindo também no controle transicional que as Forças Armadas tiveram e nos obstáculos ao cumprimento da Justiça de Transição, até hoje discutidos(22). Tais aspectos dessa “legalidade autoritária” na judicialização da repressão serão discutidos ao longo desse artigo, entretanto, importante agora ter uma noção do cenário da política internacional nessa época, antes de avançarmos.

2 Os câmbios da geopolítica internacional: em defesa de democracia? No segundo pós- guerra, com a confrontação leste – oeste deflagrada pela Guerra – Fria, os cenários regionais periféricos foram o campo de batalha na disputa entre capitalismo/ socialismo. Para os Estados Unidos era conveniente manter um inimigo externo claramente definido. Durante a administração Roosevelt, respaldada por uma visão idealista das Relações Internacionais, houve forte incremento para a criação de Organismos Internacionais em prol da “paz coletiva”. O que na prática passou a ser também uma política intervencionista, pois intentava indiretamente abafar a estrutura da União Soviética. A esta altura do texto, cabe observar que, apesar do termo Justiça de Transição ter sido cunhado recentemente (a partir das transições políticas da década de 80), o seu sentido está vinculado com formas práticas de não repetição de abusos autoritários ou totalitários. Isto é, em como desenvolver políticas públicas, seja logo após o período de conflito ou período autoritário, capazes de promover uma cultura de paz e de reconciliação nacional. Convém referir, que

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essas proposições começaram a ser germinadas após a 2ª Guerra Mundial, pelas devastações que o holocausto e a bomba atômica haviam causado no uso do arbítrio para “desumanizar” os “inimigos”, tratando-os como “não pessoas(23)”. Tanto que os estudiosos da Justiça de Transição classificam o período do pós Guerra como a primeira fase desse processo histórico, na qual foram implementadas medidas punitivas (o Tribunal de Nuremberg é o mais notável exemplo) para a não repetição(24). O grande problema dessa etapa é que ela caracterizou-se por uma “justiça dos vencedores” e não como uma justiça com capacidade restaurativa e conciliatória. Além disso, nessa época de criação dos organismos internacionais como a ONU, e a Declaração Universal de 1948, o Direito Internacional dos Direitos Humanos ainda se vinculava à vontade política dos Estados em fazê-lo respeitado, eis o porquê de instrumentos protetores da figura humana, terem entrado em certo “congelamento” no período da Guerra Fria. Tento em vista que os Estados Unidos emergiram como a grande potência depois da 2ª Guerra Mundial, é interessante observar como as administrações estadunidenses aplicavam sua política externa, pois esses, foram fatores de grande importância para a implementação e duração das ditaduras latino - americanas. Assim sendo, para a administração da era Kennedy o papel dos EUA seria o de definir o limite para a União Soviética e evitar que o socialismo real passasse para o sistema; ou seja, o critério nos EUA passava ser o da política de contenção. Na América Latina esse postulado foi efetivado por meio da contenção seletiva, pois além da ameaça política / econômica havia também a ameaça ideológica da URSS, a “construção social do inimigo”, antes voltada para as “sub classes”, passava em fins da década de 40 a permear o discurso político(25). A partir de 1949, com a Revolução comunista da China, desaparecia do imaginário internacional a “supremacia militar norte – americana”, acirrando políticas de defesa interna e externa. Dentro desse cenário é criada a OTAN e dá-se início às perseguições aos comunistas nos EUA. Com isso, a contenção, antes seletiva 128

nos territórios de influência, passava a adquirir caracteres globais, no seio da corrida armamentista. Uma ameaça em qualquer parte “poderia significar uma derrota em toda a parte”, sob essa base, iniciava-se a construção dos postulados da Estratégia de Segurança Nacional. Corroborando tais postulados, em 1954, na Guatemala, houve a renúncia do presidente por pressão da CIA. Já em 1959, a revolução cubana, com seu peso real e simbólico (visto que a mesma atestava a possibilidade de revolução na América Latina, e que não nasceu socialista, mas se tornou socialista por decisões equivocadas da administração norte- americana), tornou-se uma “ameaça” aos Estados Oligárquicos(26) latino americanos. Por outro lado, enquanto se desenrolavam os acontecimentos externos acima referidos, o Exército enquanto instituição foi um dos primeiros a buscar inserir-se no paradigma da modernização. Segundo Alcázar(27), tal trajetória possibilitou também a construção de um imaginário coletivo nas Forças Armadas de que eram a elite melhor qualificada para defender os “interesses nacionais” e de que eram a Instituição para “educar a sociedade civil nos valores militares: a hierarquia, o acatamento da disciplina e a coesão interna”(28). Desse modo, para o autor, as Forças Armadas foram o poder fático mais importante da América Latina, o que ajudou a estabelecer um forte controle na maneira de se fazer política nas Instituições. Alcázar ainda refere que os militarismos brasileiro e argentino foram pretorianos, tendo uma decisiva influência também nas transições políticas dos dois países, ainda que no caso argentino atuem fatores de política externa mal conduzida, que ajudaram a debilitar os militares na década de 1980(29). Contudo, anteriormente, fez-se menção de que Celso Furtado, ao analisar a sociedade brasileira na década de 1960, apontava para uma frágil organização dos movimentos sociais, especialmente classificando o papel do pequeno número de proletariados como “massa de manobra”. De fato, segundo demonstram os autores aqui referidos, na América Latina a classe obreira esteve politicamente pouco organizada na primeira

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metade do século XX, tendo uma atuação mais efetiva nos países de mineração como atividade econômica principal, como foi o caso do Chile e da Bolívia. Celso Furtado quando analisou a realidade brasileira, afirmava que apenas um regime democrático/aberto criaria as condições políticas necessárias para o desenvolvimento social em um país desenvolvido. Para o autor, as lutas revolucionárias socialistas, como movimentos de tomada de poder, impediram o desenvolvimento pela burocratização que impuseram nas sociedades do leste europeu. Todavia, ele elogiava a “tomada de consciência” das ligas campesinas de Francisco Julião no Brasil, que no início da década de 1960 haviam passado de uma posição radical/ revolucionária, para outra de disputa dentro do ambiente democrático, apoiando as reformas de base do governo João Goulart. A questão que Furtado(30) coloca de disputa de poder das elites é fundamental para entendermos a aceitação do golpe militar por grande parte da sociedade brasileira. Em meio a certo vazio de poder, pois os pactos instáveis produziram uma conhecida crise social com grau relativamente alto de polarização ideológica, houve uma base civil crente na “garantia” (não cumprida pela “linha dura”), de que os militares salvaguardariam a “nação” apenas para “manter a ordem”, restabelecendo o poder aos civis com eleições para presidente em 1966: “Em realidade, os governos constituídos por processos extralegais, mesmo que se digam “fortes”, se iniciam extremamente fracos e adquirem força na medida em que vão pactuando com os interesses constituídos e com os grupos organizados que detém o poder. Esses pactos são feitos inicialmente para ganhar tempo, e, por último o são porque os objetivos iniciais já foram perdidos de vista, restando apenas o desejo de conservar o poder.” Além da pífia justificativa de que o país estava “ameaçado por subversivos” que desejavam impor uma “ditadura comunista”, que se mostrou infundada pelas carências de organização dos movimentos, há também que se assinalar que no

Brasil, a guerrilha se organizou posteriormente ao golpe, como uma expressão da resistência(31). Alguns autores apontam para as guerrilhas como também uma forma de desestruturação das esquerdas existentes, pois no geral, as pessoas que as comandavam não vinham das classes de trabalhadores urbanos ou rurais, mas sim, provinham dos centros urbanos, das universidades, o que não priorizou a mobilização das massas. Gillespie(32) assinala a militarização também nas táticas guerrilheiras: “la guerrilla urbana, militarizada al máximo, adquirió uma dinámica propia, cada vez más militar y menos política” O pensamento político se dava também com contornos fechados nos países latino - americanos e dita radicalização ideológica acabou favorecendo as elites conservadoras. Depois do golpe de 1964 se produziu uma onda de governos autoritários na região, com o postulado “novo” de que, naquele momento histórico, as Forças Armadas deveriam assumir seu protagonismo na condução da política também. Mas, se o problema dos nacionalismos impostos, permitiu a hierarquização dessas sociedades sob o signo da disciplina; importante ao menos referir a questão da diferença, na falta de reconhecimento do outro, e da dificuldade dos regimes fechados/ autoritários em trabalhar com a pluralidade. Dessa maneira, Celso Furtado propunha que se pensasse em política como ambiente de fatores que condicionam o exercício do poder, abordando a atividade humana concreta em certos períodos históricos, para que o processo político não fosse minimizado a um simples jogo formal abarrotado pela burocracia administrativa.(33) Ressalta-se que o autor, apesar da crítica às oligarquias, ao populismo e às elites conservadoras brasileiras, em nenhum momento caracterizou-se como um revolucionário, já que pautava suas propostas políticas dentro do âmbito das reformas institucionais e suas propostas econômicas, tendo na distribuição de renda, o princípio fundamental do equilíbrio dinâmico do capitalismo: “O marco institucional deve, portanto, ser suficientemente flexível e ter a aptidão necessária para reformar-se toda vez que a pressão gerada pelos conflitos alcance

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aquele ponto em que a convivência social se torna inviável. O impulso que induz a esse permanente reformar-se é o consenso geral de que existe um interesse social por cima dos grupos e das classes, e a diretriz desse interesse social está dada pelo desenvolvimento das forças produtivas.”(34)

A concepção de Celso Furtado adotava a social- democracia, com o efetivo Estado de bemestar, proporcionando “um gradual aumento da participação política das massas”, via sindicatos, pressionando por distribuição de riqueza. Além disso, para ele, a pressão existente na relação mediada pelo voto, acabaria por constituir a modernidade brasileira. Tal quadro desenhado pelo autor na década de 1960, apenas começou a se concretizar nos anos 80, com a organização do movimento sindical e a união deste com o movimento pela anistia e, por conseguinte, fortalecendo a exigência pela volta das eleições diretas e democráticas, através das campanhas Diretas Já. Essas seriam as funções do Estado para manter a ordem social no pensamento de Celso Furtado: o direito simbólico (visando fortalecer e desenvolver o sentimento nacional), prevenção, redução ou eliminação de conflitos; a acumulação econômica redistributiva, ainda que dentro um Estado liberal/ capitalista. Este autor, seguindo a construção cepalina, entendia que o desenvolvimento só seria alcançado com políticas econômicas que aumentassem a produção e ao mesmo tempo gerassem redistribuição de renda; e com políticas sociais possibilitassem um processo de redistribuição progressiva de ingressos. Sua grande diferença para os outros autores da Cepal, foi não haver se pautado apenas na visão estruturalista/ econômica para a superação de problemas do desenvolvimento na América Latina. Uma visão contrária a de Furtado, foi a tutelar, utilizada em larga escala pelas Forças Armadas, baseada na definição de modelos prévios para o desenvolvimento das relações sociais e políticas. Garretón(35), ao classificar as fases das ditaduras militares na América Latina, deixa claro o uso do método disciplinário em todos os aspectos da vida social, seja na fase reativa, na qual atuava um elemento repressivo contra os 130

opositores do regime, seja na fase transformadora, mais preocupada com o desenvolvimentismo, ou na fase terminal colocando condições de reabertura dos regimes autoritários(36). Não apenas venceu a decisão que Furtado criticava, de um regime político fechado no Brasil, como também, houve períodos de organização política criminosa em nível estatal, com a efetiva atuação extralegal, ou seja, um Estado de Exceção. Tal regime autoritário deixou seus rastros permanentes nas Instituições do Estado brasileiro, pois administrou suas condições de saída por meio da transição “lenta, gradual e segura” iniciada no Governo Geisel.

3 O judiciário, a conservação da “legalidade” autoritária e a política na justiça No Brasil, tal disciplinamento teve como expoente a condução dos julgamentos políticos pelo Tribunal Militar, condicionando quem eram dignos da cidadania e quem eram “inimigos” do país. Tal estratégia começava nos julgamentos políticos e acabava gerando consequências “antijurídicas” na fase mais reacionária da ditadura civil militar, com a implantação da pena de banimento, a instrumentalização da tortura, dos desaparecimentos e das execuções extrajudiciais. Sobre essa primeira fase, de “caça às bruxas”, Anthony Pereira deixa claro o papel desempenhado pela justiça política: “A justiça política foi também uma tentativa de remodelar a sociedade, para que ela se enquadrasse na visão dos líderes do regime sobre o que a cidadania deveria ser, processando cidadãos por crimes tais como distribuição de propaganda subversiva, filiação a organizações proscritas, crimes contra a autoridade e não conformismo sociopolítico”.(37)

Comparativamente a países como o Chile e Argentina, no Brasil a ditadura civil- militar não rompeu totalmente com a ordem vigente anterior, houve certa “legalidade autoritária”, expressa principalmente na condução desses processos judiciais contra os perseguidos políticos

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do regime, inclusive com alusão à manutenção e “salvaguarda” da democracia no discurso dos ditadores. Os citados tribunais militares também incluíam algum juiz civil com formação em Direito em seu quadro e os processos políticos serviram para “legitimar” junto à população a “atuação do Estado dentro da lei”, embora as garantias da justiça política dependessem muito mais dos “humores” do regime, do que do respeito aos direitos fundamentais. Ademais, na Argentina e no Brasil, os golpes militares foram executados com a justificativa da “guerra iminente”, o que no Brasil se configurou como um golpe “preventivo” e na Argentina as Forças Armadas qualificaram como “guerra suja”, devido a forte atuação das guerrilhas urbanas e rurais. O sistema militar argentino por não contar com a colaboração tão explícita do judiciário adotou medidas de execução extrajudicial e desaparecimentos forçados em um grau muito superior ao dos seus vizinhos. O autor revela que tal colaboração do judiciário brasileiro com os militares, também proporcionou uma margem de atuação um pouco maior para os advogados de defesa e para os perseguidos políticos. Dessa forma, acentua que no Brasil, o que ocorreu foi a implantação de um sistema híbrido de “legalidade” no qual a Constituição continuava em vigor, ainda que convivendo com Atos Institucionais. De alguma forma, a “virada jurídica” que passou a ditar as normas do regime militar brasileiro se deu com a edição do AI-2, institucionalizando a repressão, porém, foi com a edição do AI-5, em 1968, que o regime deixou de ser somente autoritário, passando a desenvolver ações de um característico Estado de Exceção: “o caminho tomado pela repressão judicial brasileira, foi o mais conservador e gradual dos três, o que fica evidente no momento de maior potencial de ruptura, a decretação do AI-5(38)”. O estudo de Anthony Pereira é deveras importante para mostrar que a continuidade do pensamento autoritário deu-se também no campo jurídico. Isto é, as discussões mantidas pelos intelectuais brasileiros, desde as décadas de 20, acabaram favorecendo a organização dessa cumplicidade do poder judiciário com os

atos do regime ditatorial. Assim como não houve uma ruptura do pensamento vigente a época do golpe, que era em grande parte um pensamento autoritário, também não houve uma ruptura na passagem da ditadura civil-militar para a democracia nos anos 80: “Da mesma forma que houve grande continuidade jurídica na passagem da democracia para o autoritarismo, as transições ocorridas na década de 1980 não desmontaram por completo o aparato judicial repressivo construído pelo regime militar. Algumas das leis nas quais esses julgamentos se baseavam – bem como as instituições que processaram e julgaram os acusados – ainda existem”(39). (grifo nosso)

Dita década de 80 caracteriza a segunda fase da Justiça Transicional(40), com a reabertura política na América Latina e a fragmentação da União soviética no leste europeu. Por meio dessa nova mudança no cenário geopolítico mundial, a divisão de um mundo bipolar cedia espaço ao multilateralismo, ainda que conduzido sob as bases dos governos norte-americanos. Era também a época dos neoconservadores no poder, com a administração Reagan, ocorrendo um forte rearmamento militar em nível global, ao mesmo tempo, em que a política externa estadunidense para a América Latina propugnava processos das “democracias viáveis”, nas quais, as transições políticas para a democracia, levariam aos governos partidos majoritários, porém, não de vanguarda, tudo isso, buscando amenizar vínculos e conflitos com as forças armadas regionais. Por meio destes processos de transição política é que surgiu o termo Justiça de Transição, o qual foi conceituado pela ONU no ano de 2005 como um conjunto de ações e políticas públicas que visassem à reparação dos períodos autoritários e também a não repetição da violação aos Direitos Humanos e crimes contra a humanidade, cometidos na vigência de regimes fechados. O Estado autoritário militar, não soube lidar com a oposição ao seu projeto civilizador, transformando-se em um Estado de terror, muitas vezes. Ressalta-se que a América Latina possui diferentes estágios da Justiça de Transição(41),

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sendo que não se pode fazer uma comparação no intuito de que todos os países apliquem os mesmos métodos e encontrem as mesmas soluções para resolução dos abusos do autoritarismo. Logo, ainda que o Brasil possua um procedimento “sui generis” de justiça transicional, importantes avanços têm acontecido, mais precisamente desde os anos 2000, com a criação de Comissões Especiais de Reparação, como a Comissão de Anistia e a Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos Políticos. Mas, para o que se tentou desenvolver ao longo desse trabalho, necessário aclarar, ainda que brevemente, o problema de Reforma das Instituições. Neste sentido, a referência não visa apenas à reforma das Instituições diretamente envolvidas com a segurança pública, mas também, de outras, que conforme vimos, colaboraram ao dar “ares de legalidade” à repressão. No Brasil, as Forças Armadas não passaram por uma ampla reforma, com referência aos seus métodos de formação, apesar de a grande maioria dos generais militares ainda vivos, não estarem mais na ativa. Nosso país ainda não realizou uma investigação pública capaz de apontar os responsáveis pelas violações de direitos humanos na época ditatorial, nem os responsabilizou, chance que a tardia, mas necessária Comissão da Verdade terá a incumbência de fazer. Entretanto, os processos de reabertura dos arquivos públicos e da constituição da Comissão da Verdade ainda são fortemente controlados pelas elites militares e também pelas elites civis que apoiaram o golpe. Porém, uma influência pouco discutida publicamente é a do Poder Judiciário, o qual demonstrou a permanência de seu pensamento autoritário e conservador na decisão da ADPF 153(42), em abril de 2010, ao dizer que a anistia imposta pelos militares para realizarem a transição política foi um “acordo”, pactuada por ambas as partes. Sendo assim, os delitos de lesa humanidade estavam cobertos pelo instituto, pois se conectavam aos crimes políticos, em clara desobediência às prescrições do Direito Internacional dos Direitos Humanos e suas normas “jus cogens”(43), visto que o Brasil reconheceu a supremacia dos postulados da proteção regional ao se submeter à jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 1998. 132

Além disso, o voto do Relator da ADPF 153 (Ministro Eros Grau), ao tratar a “formação do povo brasileiro”, e caracterizá-lo pela sua “cordialidade” para justificar a sociedade “pacífica” - que prefere o esquecimento a saber a verdade de seu passado recente- diferentemente que “uma aula de história”, foi a opção política por uma visão conservadora da nossa formação nacional: “Há quem se oponha ao fato de a migração da ditadura para a democracia política ter sido uma transição conciliada, suave em razão de certos compromissos. Isso porque foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos.”(44) (grifo nosso).

Ao afirmar que houve tal “pacto político” como um acordo bilateral, o Ministro negou às vítimas, uma vez mais, o reconhecimento de sua condição de resistentes frente a um poder ilegítimo, inclusive utilizando “rótulos” muito disseminados na construção dos perseguidos políticos como “inimigos” sociais, quando os trata como subversivos. Tais “perseguições políticas” e “rótulos” permanecem intrínsecas nas inúmeras decisões que criminalizam as ações dos movimentos sociais (em primeira ou segunda instância), sob a base de postulados de “lei e ordem”. Enfim, apenas colocam-se esses exemplos para dizer que o poder judiciário continua fortemente vinculado à “legalidade” autoritária da ditadura militar, sem um reforma em suas estruturas capaz de torná-lo um poder mais democrático e, sobretudo, mantém- se incólume como o grande “guardião da Constituição”, sem uma responsabilização pública pelas colaborações que cedeu junto ao poder militar.

4 Conclusão Ante tudo até aqui exposto, devido ao fato do pensamento autoritário permear o imaginá-

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Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição

rio jurídico, político e social brasileiro desde a “invenção da nação”, pode-se corroborar a ideia de que o regime militar não se esgotava em si mesmo, mas sim, foi uma condição histórica que acabou tendo grande influência na formação das estruturas institucionais autoritárias para um horizonte futuro, onde a política ficasse relegada a mero instrumento formal. Contudo, lembra-se que a democracia surge sob o signo da igualdade (ao menos formal) e da liberdade. Sendo assim, retornando para o pensamento de Furtado, nota-se que o autor já afirmava a incompatibilidade das ideias democráticas com uma forma fechada nas Instituições do Estado. Para ele, o desenvolvimento de uma sociedade capitalista / liberal não poderia macular os direitos individuais, pois o liame entre marcos institucionais e soluções extralegais era um problema complexo, que não tinha uma fórmula pronta. A opção de trabalhar o pensamento de Celso Furtado sobre as instituições, também foi a de resgate para os debates políticos atuais. Pois, os mecanismos de justiça transicional intentam, além do restabelecimento da “paz social” nos Estados onde são implantados, também rediscutir qual o papel do Estado para a real efetivação das garantias aos direitos fundamentais. Também a opção de tratar do imaginário autoritário foi tida como uma necessidade de se discutir publicamente as ideias que permitiram o autoritarismo no nosso país, e que ainda continuam intrínsecas nos discursos políticos e jurídicos, com novas roupagens. Portanto, quando se discute a reforma das instituições é necessário também que se discuta a urgência de se descolonizar o pensamento e a produção do conhecimento, pois as instituições, antes que mecanismos são lugares dirigidos por homens e por ideias. Isso implica uma gama de ações e estratégias que pautem nas diferentes sociedades qual o sentido ético da democracia que se deseja construir, pois a violência não cessa com a transformação apenas formal das estruturas de poder.

Notas (2)

O pensamento tutelar nas Américas espanhola e portuguesa dá-se desde seu “descobrimento” ou conquista com a força da Igreja católica que detinha a “missão” de evangelizar e civilizar os selvagens das “índias ocidentais”. “Há momentos históricos em que o caráter de um povo se manifesta com plena nitidez. Talvez o nosso, cordial, se desnude na sucessão das frequentes anistias concedidas entre nós”. Voto do Ministro Eros Grau, na ADPF 153 pág.43, disponível em http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/ noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf, acessado em 20 de abril de 2011.

(3)

Pensamento de Carl Schmitt revisitado por diversos intelectuais brasileiros defensores do Estado autoritário como Azevedo Amaral, Oliveira Vianna, Francisco Campos, Roberto Campos, entre os mais debatidos, citado também por BERCOVICI, Gilberto in Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008.

(4)

Ainda que o livro de referência do autor seja A Formação Econômica do Brasil, os escritos da Dialética do Desenvolvimento tratam da problemática das Instituições e na escolha entre sistemas fechados autoritários ou abertos/ democráticos para o desenvolvimento nacional. Por abordar a problemática das Instituições, entende-se que a concepção de Celso Furtado nesses textos pode também ajudar a compreender a discussão que se tem em termos de efetividade da justiça de transição no Brasil, especialmente com referência a um de seus pilares: a reforma das instituições.

(5)

Tendo como expoentes entre outros, Enrique Dussel, Boaventura de Souza Santos, Carlos Mariátegui.

(6)

Nesse aspecto se assemelha ao pensamento do peruano Mariátegui, para o qual a problemática da formação das nações na América Latina centrava-se no eixo da cultura e não na divisão de classes como nos modelos europeus de socialismo. Mariátegui foi o grande expoente a pensar o socialismo a partir da condição sócio- cultural do nosso continente e a tratar de um debate que dividia também a formação das esquerdas latino- americanas, sobre deque forma seria possível, ou não, implementar o socialismo nesses países. Apesar de ambos partirem da análise de estruturas coloniais e privilegiarem a influência da cultura, Furtado dentro de uma linha mais acadêmica, sempre se caracterizou por ser um liberal reformista.

(7)

O planejamento foi adotado nas décadas de 60, 70, mas sob outro enfoque, com a criação do BNDE em 1962, e posteriormente com a administração deste banco por Roberto Campos, que qualificava o golpe de 64 como “revolução”, com “reformas estruturais necessárias”, in CAMPOS, Roberto. A lanterna na Popa, memórias. Vol.I. Editora Topbooks, 1994.

(8)

FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento.São Paulo: Fundo de Cultura S.A, 1964.

(9)

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de Oliveira, R. C.

ALCÀZAR, Joan del (coord.). TABANERA, Nuria. SANTACREU , Josep M. MARIMON, Antoni. Historia conteporánea de América. Universitat de Valéncia, 2003, pág.282.

(10)

Ao se falar em revolução, o sentido que se conota é a de ruptura da ordem pré- estabelecida por uma nova ordem política e jurídica. Nessa passagem alude-se aos pactos instáveis de governabilidade estabelecidos nas recentes repúblicas latino-americanas, no desenrolar do século XIX até a metade do século XX, nos quais as sociedades se dividiam entre elites de uma oligarquia agrária decadente em disputa com uma elite industrial recém formada. ALCÁZAR, na obra já citada, refere que nessa modernização das elites do poder, as Forças Armadas tiveram um papel muito importante, entretanto, até o golpe militar de 1964 no Brasil, abstiveram-se de tomar o poder com a quebra da ordem anterior para si, delegando-o para outros grupos de civis: “entre febrero y diciembre de 1930, los militares participaron, aunque com diversos proyectos políticos en el derribo de los gobiernos de seis países: Argentina, Brasil, República Dominicana, Bolivia, Peru y Guatemala”, ob.cit. pág.225.

(11)

(12)

Ib.id.

(13)

ALCÁZAR, ob. cit., pág.318.

(14)

FURTADO, Celso, ob. cit., pág.82.

(15)

FURTADO, ob.cit. pág.81.

Visto que o populismo já não conseguia realizar suas promessas nessas sociedades constituídas pelo conflito, onde a ordem era a defesa da propriedade e a lógica da guerra cada vez mais se contrapunha à lógica da política.

(16)

BERCOVICI, Giberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008, pág.44.

(17)

FERRER. Aldo: Historia de la globalización II. La Revolución Industrial y el Segundo Orden Mundial, Fondo de Cultura Económica, Buenos Aires, 2000. “...Las clases altas, compuestas mayoritariamente por blancos portugueses y criollos, dominaban todo el sistema económico, político y militar. Como en otras partes de Iberoamérica, la preservación de este sistema de dominación, heredado del orden colonial, era el objetivo principal de los constructores del Brasil independiente.”,pág.342.

(18)

CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) criada em 1948 junto ao gabinete de Estudos e Assessoramento da ONU, sob a direção de Raul Prebisch. A partir dos estudos cepalinos , começou-se a configurar uma teoria latino- americana para o desenvolvimento com forte base estruturalista.

(19)

PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Tradução Patrícia Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2010, pág.44.

(20)

“A repressão instaurada pelo golpe de 1964 foi altamente judicializada e gradualista: o regime aos poucos modificou alguns aspectos da legalidade tradicional, mas não se lançou à matança extrajudicial em larga escala, mesmo após o endurecimento do regime, em fins de 1960.” Pereira, ib.id.

(21)

134

A Lei 7376/10 que cria a Comissão da Verdade brasileira, sancionada em 18 de novembro de 2011, sofreu certos “retrocessos” em negociação no Congresso Nacional, pois há um grande embate com as Forças Armadas, que temem futuras responsabilizações pelas violações de direitos humanos, cometidas durante a ditadura. Além disso, os militares da reserva lançaram vários manifestos contrários à implantação da Comissão nos últimos meses, colocando-a como um instrumento “revanchista da esquerda”.

(22)

Zaffaroni fala da incompatibilidade de um Estado de direito trabalhar com a ideia de “inimigo social’: “quando se propõe estabelecer a distinção entre cidadãos (pessoas) e inimigos (não – pessoas), faz-se referência a seres humanos que são privados de certos direitos individuais, motivo pelo qual deixam de ser considerados pessoas, e esta é primeira incompatibilidade que a aceitação do hostis, no direito, apresenta com relação ao Estado de direito” in ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. 2ª edição, 2007, pág.18.

(23)

TEITEL, Ruth , divide a justiça de transição em três fases: 1ª) Pós Guerra; 2ª) Transições democráticas a partir de 1989; 3ª) Conflitos presentes, em certa dinâmica da violência. Também relaciona especialmente a primeira e a segunda fase com a ideia de reconstrução nacional, divide a primeira fase pela determinação de responsabilidades e construção de um aparato dentro do Direito Penal Internacional no pós 2ª Guerra Mundial, a exemplo da Convenção contra o genocídio, em 1948. In . Transitional justice genealogy. Harvard Human Rigths Journal, vol.16, Spring 2003, Cambridge, MA.

(24)

(25)

ALCÁZAR, ob.cit.pág.294.

(26)

ALCÀZAR, ob. cit. pág.323.

(27)

ALCÀZAR...Ob.cit. pág.318-319.

(28)

Ib.id.

(29)

A exemplo da Guerra das Malvinas em 1982.

(30)

FURTADO, ob.cit. pág. 85.

“La falta de resistencia al golpe militar de 1964, dejaría clara la realidad: no había habido ninguna base para la implantación de un poder revolucionario en Brasil”, Alcázar, ob.cit., pág.282.

(31)

(32)

Apud Alcázar, ob.cit., pág. 290.

(33)

FURTADO, ob.cit. passim 71 -78.

(34)

FURTADO, pág.43.

(35)

Apud ALCÁZAR, ob.cit. pág.324.

Portanto, a afirmativa do Ministro Eros Grau, na ADPF 153 “diz-se que o acordo que resultou na anistia foi encetado pela elite política. Mas quem haveria de compor esse acordo, em nome dos subversivos? O que se deseja agora, em uma tentativa, mais do que de reescrever, de reconstruir a História? Que a transição tivesse sido feita, um dia, posteriormente ao momento daquele acordo, com sangue e lágrimas, com violência? Todos desejavam que fosse sem violência, estávamos fartos de violência”,pág.58, não encontra coerência ao dizer que a Anistia de 1979 foi um acordo político bilateral, quando é comprovado por

(36)

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Entre a permanência e a ruptura: o legado autoritário na condução de instituições políticas brasileiras e a justiça de transição

diferentes estudiosos de que as Transições na América Latina foram direcionadas pelas elites civis- militares. (37)

PEREIRA, Antony, ob.cit. pág. 54.

(38)

PEREIRA, ob.cit. pág.123.

(39)

PEREIRA, ob. cit. pág.39

(40)

Segundo a Genealogia proposta por Ruth Teitel.

Harvard Human Rigths Journal, vol.16, Spring 2003, Cambridge, MA. ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan. 2ª edição, 2007.

Argentina e Chile já constituíram suas Comissões da Verdade, sendo que na Argentina atualmente há um número bastante expressivo de julgamentos por crimes de lesa humanidade.

(41)

(42)

STF. ADPF 153. Voto do Ministro Eros Grau.

Tanto que o país foi condenado pela CIDH no caso Gomes Lund (Guerrilha do Araguaia) x Brasil, em sentença publicada no dia 24 de novembro de 2010.

(43)

(44)

STF. ADPF 153, Voto Eros Grau, pág.57.

Referências ALCÀZAR, Joan del (coord.). TABANERA, Nuria. SANTACREU , Josep M. MARIMON, Antoni. Historia contemporánea de América. Universitat de Valéncia, 2003. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 153. BERCOVICI, Gilberto. Soberania e Constituição: Para uma Crítica do Constitucionalismo. São Paulo: Quartier Latin, 2008. CAMPOS, Roberto. A lanterna na Popa, memórias. Vol.I. Editora Topbooks, 1994. DINIZ, Eli. Empresário, Estado e Capitalismo no Brasil: 1930/1945. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. FERRER. Aldo: Historia de la globalización II. La Revolución Industrial y el Segundo Orden Mundial. Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 2000. FURTADO, Celso. Dialética do Desenvolvimento. São Paulo: Fundo de Cultura S.A, 1964. PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão: o autoritarismo e o estado de direito no Brasil, no Chile e na Argentina. Tradução: Patrícia Queiroz Carvalho Zimbres. São Paulo: Paz e Terra, 2010. TEITEL, Ruth. Transitional justice genealogy. Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 123-135, agosto/2012

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Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição Artigo

Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição(1) Sandra Akemi Shimada Kishi(2)

“Por mais intensamente que as coisas no mundo nos afetem, por mais profundamente que elas possam nos emocionar e nos estimular, só se tornam humanas para nós quando podemos debatê-las com nossos semelhantes.”(3) (Hannah Arendt)

RESUMO: O artigo busca incrementar reflexões sobre mecanismos jurídicos e garantias para profícuos resultados de um processo oficial de busca da verdade. Nesse contexto, é que além do direito à informação, à publicidade e à liberdade de expressão, invoca-se o direito à transparência e verdade das informações, que devem ser adequadas e prestadas com eficiência. Atrelado ao direito à informação vem o direito à participação para a necessária descentralização do poder decisório, das escolhas de como proceder enquanto cidadão ou jurisdicionado, num processo de busca da verdade, com Comissões da Verdade, para passar a limpo a história de graves violações aos direitos humanos, rumo à verdade e à concretização do Estado Democrático de Direito. O acesso a informações suficientes, fidedignas e adequadas para o esclarecimento da verdade, seja em nível das Comissões da Verdade, seja em Juízo, é crucial para que o Estado brasileiro cumpra com o dever de revelar não apenas dados, mas efetivamente, a verdade. Palavras-chave: Justiça de Transição. Direito à informação e à participação. Comissões de Verdade. Sigilo de documentos públicos. Direito ao resguardo. Consentimento Prévio Informado e Justiça de Transição. O artigo originariamente publicado na coletânea Memória e Verdade – A Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro (Belo Horizonte: Fórum, 2009, págs. 273-290) foi atualizado e ampliado. (2) Procuradora Regional da República, mestra em direito ambiental, pesquisadora sobre acesso à sociobiodiversidade na Universidade de Bremen/ Alemanha em parceria com a Fundação de Pesquisa Alemã (DFG), 2008-2010, Vice-Presidente do IEDC – Instituto Estudos Direito e Cidadania e coordenadora da Revista Internacional de Direito e Cidadania (REID). (1)

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Kishi, S. A. S.

ABSTRACT: The article aims to increase reflections on legal mechanisms and guarantees for profitable results of a procedure for official access to the truth. In this context, besides the right to information, publicity and freedom of expression, it claims the Access to sufficient, reliable and appropriate information to clarify the truth, either in terms of truth commissions, or whether in Court, is crucial to the Brazilian State to comply with the duty to disclose not only data, but actually the truth. Keywords: Transitional Justice. Right to information and participation. Truth Commissions. Confidentiality of public documents. Right guard. Prior informed consent and Transitional Justice.

1 Direito à informação e à verdade na Justiça de Transição O princípio da informação e o princípio da participação no processo de busca da verdade são determinantes para se alcançar a justiça, as responsabilidades pelos atos violadores aos direitos humanos e a esperada realização da Justiça de Transição, sob o primado de um Estado Democrático de Direito. O acesso às informações detidas pelo Poder Público deve pautar-se na promoção de sua transparência, na facilitação do acesso e na ampla divulgação das questões de interesse público, com responsabilidade do Estado pela ação ou omissão dissonantes a esse dever garantido pela Constituição Federal brasileira. Com efeito, prescreve a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 5º, XIV, o acesso de todos à informação e o direito ao resguardo do sigilo da fonte, se realmente necessário ao exercício profissional: “é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”. No tocante ao direito de receber informações dos órgãos públicos, diz o artigo 5º, XXXIII: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, res138

salvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”. Está constitucionalmente assegurada a efetividade de tal direito à informação, mediante o direito de ação, através do habeas data (art. 5º, LXXII, CF) ou de petição (art. 5º, XXXIV, “a”, da CF), expressando-se o direito à informação, pensando com Konrad Hesse(4), num dever ser com força normativa máxima. Ademais, toda a atuação da administração pública está orientada pelo princípio da publicidade, consoante o art. 37 do Estatuto Ápice. A publicidade é a viga-mestra da democracia e estrutura um espaço público no qual se realiza o Estado de Direito. Mas, se esse espaço de cidadania for desprovido de transparência e de participação da sociedade civil, o espaço de cidadania torna-se vazio de opiniões públicas e o exercício da democracia, uma falácia. A transparência administrativa contrapõe-se à opacidade estatal, retirando do campo da invisibilidade a Administração Pública, expondo seus atos, a qualquer tempo, à própria efetividade da moralidade e da eficácia. Tais normas-princípio devem pautar a justiça de transição de forma determinante, com força cogente. O direito à verdade impulsiona o direito à informação, dotando-a de características próprias no campo da justiça de transição, de modo a que não apenas seja preponderante a publicidade e a transparência, mas para que o desiderato da obtenção da verdade seja atingido. Hoje, na busca da verdade, o direito de informar e ser informado perpassa necessariamente pelas recentes Lei 12528/2011 que criou a Comissão Nacional da Verdade e Lei 12.527/2011, de acesso à informação, sendo que a inafastável demanda pela verdade na Justiça de Transição levou às edições destas relevantes normas na mesma data. A Lei nº 8.159/91, que instituiu a política nacional de arquivos públicos e privados e estabeleceu como primado o princípio do acesso pleno aos documentos (art. 22) foi derrogada (arts. 22 a 24) para afastar inarredavelmente qualquer interpretação ou aplicação que distorça a preponderância da regra do pleno acesso aos documentos. Significa dizer que o sistema nacional de gerenciamento dos arquivos públicos e privados submete-se à

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Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição

regra geral do acesso pleno, ao qual está atrelado o princípio da transparência e da participação. Isso leva a que nas decisões sobre as excepcionais situações de sigilo de documento cuja divulgação ponha em risco a segurança da sociedade e do Estado, devem participar representantes da sociedade civil e a vítima ou familiares da vítima torturada ou oprimida na época da ditadura. Ora, se a sociedade civil detem direito à memória e à verdade e à favor da vítima milita um direito ao resguardo, é certo que devem opinar na decisão sobre o caráter sigiloso de documentos ou informações relacionados à época do regime de exceção. E tanto melhor se tal participação for exercida em espaços adequados a tanto, como em audiências públicas, por exemplo. Importante é destacar que a Lei nº 8.159/91 previa a guarda permanente, e não o sigilo permanente, dos documentos públicos de valor histórico, probatório e informativo, que devem ser preservados (art. 8º, § 3º). A classificação dos conjuntos de documentos públicos sujeitos à guarda corrente, intermediária ou definitiva (art. 8º) partia de deliberação colegiada e paritária do Conselho Nacional de Arquivo (art. 26). Assim, a Lei 8.159/91 já lançava as bases para uma gestão coletiva participativa. Saliente-se que poderá o Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal da parte (art. 24). Como sabido, o acesso aos documentos públicos arquivados presta-se a conformar elementos de prova e informação para a sociedade ou para o próprio Poder Público, além de apoiar à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico.

2 A participação da sociedade civil nas decisões sobre o sigilo dos documentos públicos A Lei 11.111/2005 regulamentava o art. 5º, XXXIII da Constituição Federal, disciplinando o acesso aos documentos públicos de interesse particular, coletivo ou geral. Tal legislação veiculava uma excepcional cláusula de sigilo

de informações imprescindíveis à segurança do Estado e da sociedade, bem por isso classificadas como do mais alto nível de grau de sigilo. O acesso à informação classificada como sigilosa pela Lei de acesso a Informações (Lei 12527/2011, artigos 25 e 26) obriga os membros da Comissão da Verdade resguardarem o sigilo, mas não lhes obstaculiza o acesso às informações, de natureza coletiva. A própria derrogada Lei 8159/1991 estipulava que tais hipóteses de alto grau de sigilo por segurança pública tem seu acesso restrito pelo prazo de 30 anos, prorrogáveis por mais 30 anos. Hoje, o artigo 24, § 1º da Lei 12527/2011 ainda prevê o prazo máximo de 25 anos de restrição ao acesso a determinados documentos públicos, prorrogáveis, se a classificadas as informações como ultrassecretas. Por isso, a participação é relevante no processo de classificação do sigilo acompanhando as motivadas decisões de manutenção ou reclassificação do grau de sigilo. Mesmo a revogada Lei 11.111/05 previa que no curso da prorrogação, a Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas poderia deliberar sobre a manutenção do sigilo caso avaliasse que o acesso representaria ameaça à soberania, à integridade terrritorial ou às relações internacionais do país. A negativa de autorização de acesso deve ser sempre motivada. Inês Virgínia Prado Soares(5), com apoio em Toby Mendel, adverte que o longo prazo para acesso à informação, quando do término do sigilo, pode prejudicar o seu fim mais importante: o de informar. Com efeito, os dados não podem ser guardados por um lapso temporal que lhes retire o essencial: o caráter informativo. Cercear o direito à informação através de prazos de sigilo para acesso contraria a democracia e expressa um retrocesso, numa autotutela do segredo, com monopólio de poderes, típico de um autoritarismo estatal, de manipulações invisíveis e sem prestação de contas à sociedade. Com esteio na lição de Flávia Piovesan(6), essa cláusula de sigilo, longe de se pautar na excepcionalidade, retorna, sob o manto da segurança nacional, à lente autoritária “ex parte príncipes” inspirada no controle estatal em detrimento da soberania popular e em ofensa aos princípios

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Kishi, S. A. S.

da legalidade, impessoalidade, moralidade, eficiência, publicidade e transparência consagrados na Constituição Federal de 1988. Segundo Flávia Piovesan: “A Lei 11.111/05 afronta o princípio da razoabilidade, enquanto relevante mecanismo de controle da discricionariedade administrativa, na medida em que não há a adequação entre o fim perseguido e o meio empregado; não resta caracterizada a necessidade e a exigibilidade da medida, havendo a proibição de excesso (posto que foi muito além do estritamente necessário)”. Paulo Affonso Leme Machado, por sua vez, anota que “Inequivocamente, a não-informação, ou o sigilo indevido, representa lesão consumada a um direito ou uma ameaça ao seu exercício, que merecem ser apreciadas pelo Poder Judiciário. A harmonia entre os Poderes da República está ligada indissoluvelmente à independência dos mesmos Poderes (art. 2º), para que os objetivos nacionais de liberdade, de justiça e de solidariedade, como bem de todos, sejam alcançados (art. 3º)”.(7) Com efeito, considerando que por mandamento constitucional, nenhuma lei pode excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito (art. 5º, XXXV), a negativa de informação ou o indevido sigilo afetam a garantia da inafastabilidade de apreciação do Poder Judiciário, com abalo no sistema de freios e contrapesos das instâncias de Poderes. Isto porque através de indevido sigilo, a Administração propiciaria uma gama de reprimidos cívicos, tolhidos de informações necessárias ao acesso à tutela jurisdicional. Demais disso, os povos têm direito à integridade de sua memória e o Estado, o dever de preservá-la, à luz do art. 216, da Constituição Federal de 1988. A despeito do motivo pelo qual os Estados, de modo geral, continuam mantendo seus arquivos secretos, Juan Mendes(8) em entrevista concedida a Glenda Mezarobba, esclarece que “Primeiro é um problema de concepção: para que foram juntadas essas informações? Segundo, uma cultura de segredo. Nas últimas décadas, e cada vez mais, o Estado moderno é baseado na inteligência e no segredo. Aí se vê uma inércia 140

para não se revelar coisas. E, terceiro, creio que os Estados, que têm as informações, não querem compartilhá-las por não saber se no futuro não irão precisar das fontes de outrora. São explicações, mas não são justificativas. Não são desculpas para nada.” Nesse passo, é relevante ponderar que o peso dos interesses públicos envolvidos na garantia de um direito humano fundamental impede o Estado de querer reservar apenas para si o poder de decisão política consistente na recusa, ainda que motivada, de acesso à informação e à verdade contida em documentos públicos classificados como do mais alto grau de sigilo, sem o concurso de grupos, de associações civis ou das organizações não-governamentais, seja por conta de um regime de cooperação na busca da verdade e da justiça, seja como legitimados na defesa desses interesses públicos. Demais disso, insta seja indagado a quem são dirigidas tais informações contidas em documentos públicos tendentes à revelação da verdade e à edificação de uma memória histórica do povo brasileiro? É a própria Constituição Federal que esclarece no art. 5º, LXXVII: “são gratuitas as ações de habeas corpus e habeas data, e na forma da lei, os atos necessários ao exercício da cidadania”. Ora, se é o cidadão o destinatário de tais informações nada mais justo que participe do controle e da avaliação do que haveria de ser mantido sob sigilo temporário. Esclareça-se que mesmo antes das Leis 12527 e 12528/2011 não se cogitava do regime de sigilo permanente que davam azo as Lei 8159/91 c.c. Lei 11.111/05, por concebê-lo como inconstitucional.(9) Com efeito, a Constituição Federal de 1988 redimensionou o conceito de cidadania para além daquela ultrapassada concepção segundo a qual cidadão era o titular de direitos políticos. Ao conferir direitos fundamentais ao cidadão, numa conformação imutável, a Constituição Federal invoca a participação social junto às ações dos poderes públicos. Como anota Samantha Chantal Drobowolski, os direitos humanos fundamentais “possibilitam a participação de todos, inclusive das minorias existentes em cada momento, nos diversos processos políticos e sociais de decisão

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Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição

de assuntos comuns. Nesta medida, não podem estar dissociados do conceito de cidadania, no qual estas noções estão indelevelmente inseridas”.(10) Esse regime de cooperação na busca da verdade não há de implicar numa exclusão do Poder Público, mas propicia a adoção de um gerenciamento das decisões de forma compartilhada com a sociedade civil no concernente à construção da história e da memória do cenário brasileiro durante o regime de exceção, ditatorial, com identificação dos agentes e das vítimas, assegurando responsabilidades. Tal gerenciamento compartilhado das decisões políticas sobre a desconsideração da cláusula de alto grau de sigilo pode se dar, por exemplo, em nível de Comissões ou Conselhos interinstitucionais paritários, com participação de representantes da sociedade. Mesmo a Lei 11.111/2005 previa uma Comissão de Averiguação e Análise de Informações Sigilosas. A decisão sobre a ressalva no acesso a documentos públicos há de ser colegiada e paritária, com participação da sociedade civil. O êxito dessa participação da sociedade dependerá da conscientização pública, da educação política e da eficiente implementação de novos instrumentos jurídicos no procedimento de busca da verdade, no âmbito de oficiais comissões da verdade, que poderão agregar forças e tarefas para uma gestão participativa da sociedade. Na experiência da Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, em 1995, estabelecida para prevenir futuros abusos e para a reparação pelos danos sofridos pelas vítimas do apartheid, não houve eficiente participação da sociedade, que não pressionou com seriedade a Comissão e não cooperou com eficiência nos seus trabalhos. Houve uma difícil relação entre as ONGs e essa Comissão, que parece não ter sabotado a sociedade civil, mas se omitiu em contribuir para a efetiva participação da sociedade.(11) Na Argentina, ONGs fizeram muita pressão para uma Comissão, de fundo parlamentar, com mais força que um corpo composto por indicados pelo presidente e foram inicialmente resistentes em cooperar com a Comissão de Raúl Alfonsín. (12)

No Brasil nunca existiu uma Comissão de Verdade, nos moldes oficiais existentes em outros países como Argentina, Chile, Peru e Uruguai, que tenha levantado a realidade das violações aos direitos humanos durante a época da repressão no Brasil, no período de 1964 a 1985, mesmo porque não foram disponibilizados todos os documentos e arquivos relacionados àquele regime de ditadura militar. Houve uma Comissão de Anistia do Ministério da Justiça, instituída pela Medida Provisória 2.151/2001, convertida na Lei 10.559/01 que alcançou indenizações a diversas famílias das vítimas de perseguição política. Destaca-se ainda a obra Brasil Nunca Mais, resultante de projeto coordenado pela Arquidiocese de São Paulo, a partir de dados em ações criminais contra presos políticos. Nessas poucas experiências brasileiras e a despeito de louváveis iniciativas isoladas de pequenos grupos de pessoas de setores da sociedade, não houve a utilização de mecanismos jurídicos hábeis a impulsionar uma ampla e efetiva participação da sociedade nos processos políticos decisórios. Um eficiente instrumento jurídico plenamente aplicável nos processos decisórios de acesso aos documentos oficiais para a busca da verdade das graves violações aos direitos humanos é a audiência pública(13), que representa um espaço de cidadania instalado antes das tomadas de decisões, diante de uma questão relevante, em procedimentos administrativos. Nesse ambiente cívico das audiências públicas, haveria trocas de informações e seriam debatidos pontos polêmicos, questões dúbias e nodais pelos diversos atores, vítimas e interessados, numa encruzilhada salutar de gestão cooperativa e cidadã para a efetividade da busca da verdade, com resultados profícuos. Se o mandamento orientador do Estado Democrático de Direito é o primado da dignidade da pessoa humana, resta ao Estado gestor, com maior ênfase, no período de transição, desenvolver ações afirmativas voltadas à proteção deste valor humano e, ao mesmo tempo, numa dimensão de direito negativo, abster-se de agir, caso eventual ação estatal possa colocar em risco a proteção daquele primado. Alinha-se a tal eixo ordenador do Estado Democrático de Direito,

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a gestão participativa da sociedade, de forma compartilhada e integrada, nas decisões políticas em procedimentos oficiais de busca da verdade, especialmente no âmbito do acesso às informações em arquivos públicos e a que, bem por isso, tem chances de alcançar a esperada eficiência. A despeito da participação da sociedade civil nessas deliberações decisivas sobre o que estaria sujeito ao campo do sigilo, lato sensu, adverte Paulo Affonso Leme Machado(14): “Não se elimina totalmente o sigilo na Administração Pública transparente. Este será uma exceção, um sigilo temporário, parcial e mínimo. Exemplifique-se com a preparação de decisões de segurança social ou institucional, onde a transparência poderá converter-se em demagogia, onde os que devam decidir se omitam, ou queiram disfarçar sua incapacidade, procurando transferir a responsabilidade da decisão à população, que, na emergência, não tem ferramentas para bem decidir. Esse sigilo não pode significar uma perpétua ignorância, pois transposto o momento excepcional da abstinência de informação, essa deverá voltar, prestando-se contas de todos os atos, passados e presentes.” Essa preocupação é ressaltada por Juan Méndez(15), ao afirmar, com relação à ação cooperativa entre a sociedade civil, academia e instituições públicas na Justiça de Transição, a falta que “os organismos da sociedade civil se profissionalizem e se tornem mais rigorosos, sem perder a paixão e o compromisso”, não bastando reconhecer a causa como justa, “é preciso abrir espaço, e para tanto é preciso saber convencer e para convencer é necessário muito profissionalismo e rigor. E isso se aprende no mundo acadêmico. O que não se deve aprender no mundo acadêmico é a tendência a trabalhar em uma torre de marfim, a pensar que a única coisa que importa é a reflexão.” A transparência no poder público pressupõe uma “comunicação contínua, imparcial, plena e verossímil”(16), sob pena de se negar o direito da sociedade conhecer a sua verdadeira história, engessando a conscientização pública e o eficiente uso das informações acessadas. A novel Lei 12527/2011 estabelece o princípio da preponderância da publicidade e a 142

hipótese de sigilo somente em situações de exceção. Nesse passo, consoante observa Fernando Moura Linhares(17), estas exceções só devem existir quando enquadradas em um conjunto de situações predefinidas sob pena de perda da efetividade. Vale sejam trazidas aqui outras inovações veiculadas pela Lei 12527/2011 anotadas por este mesmo autor: “Outra pedra angular da lei trata da divulgação proativa de informações produzidas pelos entes públicos sem a necessidade de solicitação pela população. A priorização desta alternativa prevê a redução do número de solicitações, já que as informações estariam disponíveis antecipadamente. Há orientação, ainda, para utilização dos recursos da tecnologia da informação na disponibilização de acesso aos documentos públicos permitindo um contato mais direto e menos burocrático. Existe, também a proposta de desenvolvimento de uma cultura de transparência na administração pública que deve gerar a demanda por capacitação dos servidores públicos e de mudanças de procedimentos e até da forma como se entende a atuação estatal. Por último, há um direcionamento para permitir um maior controle social da administração pública, não somente dos gastos, mas também das decisões políticas e do seu enquadramento para atingir os objetivos desejados permite prever que estas exceções só devem existir quando enquadradas em um conjunto de situações predefinidas sob pena de perda da efetividade.” A lei 12527/2011 apresenta inovações favoráveis ao acesso aos documentos e dados públicos, com dispositivos que prestigiam a gestão transparente de dados e documentos pelos órgãos e entidades do poder público (art. 6º) e o amplo acesso à informação necessária à tutela judicial ou administrativa de direitos fundamentais (art.21), sendo que o Estado deve garantir o acesso à informação por meio de procedimentos objetivos e ágeis, de forma transparente e em linguagem de fácil compreensão (art. 5º). Na gestão do acesso facilitado às informações de interesse público (art. 8º), o poder público há de disponibilizar as informações públicas atualizadas, inclusive dos documentos classificados como sigilosos e dos que deixaram de sê-lo em sítios eletrônicos oficiais e criar o serviço de informações ao cida-

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dão e também realizar audiências ou consultas públicas, com o incentivo à participação popular (art. 9° e art. 30). Muitos desses acervos digitais consistem ou podem constituir patrimônio digital consubstanciado em informações dotadas de valor e significância, criado ou convertido em formato digital. A despeito disto, já anotei que “A Carta da UNESCO sobre a Preservação do Patrimônio Digital, em face da preocupação com a perda ou desaparecimento de patrimônio digital, conclama os países à adoção de medidas de salvaguarda e preservação desse patrimônio cultural, mediante uma cooperação internacional com incentivos dos Estados aos produtores de hardware e programas de informática, editores e outros interlocutores do setor privado para que tenham atuação colaborativa junto a bibliotecas, arquivos nacionais, museus e outras instituições que lidem com patrimônio público. Pode-se concluir que a Carta da UNESCO sobre a Preservação do Patrimônio Digital ao prever no art. 2º como objetivo da conservação desse patrimônio a sua acessibilidade ao público encoraja práticas e mecanismos legais que maximizem o acesso às informações do acervo digital. Mas há que se promover o equilíbrio entre os direitos legítimos de seus autores ou detentores dos dados ou informações no acervo digital com os direitos dos interessados em acessá-lo, preocupação também expressa na referida Carta da UNESCO (art. 2º, fine).”(18)

3 Direito ao resguardo na Justiça de Transição Diz-se Justiça de Transição(19) ao aparato de medidas necessárias, num Estado Democrático de Direito, que visam à efetividade da reparação dos danos às vítimas de graves violações a direitos humanos, ao esclarecimento da verdade, à responsabilidade penal dos autores de crimes contra a humanidade e a evitar que atos de repressão e de ofensa aos direitos humanos voltem a ocorrer. Marlon Alberto Weichert(20) observa quatro princípios básicos e indispensáveis na Justiça

de Transição, a saber: 1) princípio da verdade: “tanto histórica (mediante Comissões de verdade) quanto judicial (através de investigações das instituições que compõem o sistema de justiça”; 2) princípio da justiça: realização da justiça, mediante a responsabilização dos violadores de direitos humanos, notadamente os autores de crimes considerados como de lesa-humanidade; 3) princípio da reparação: reparação dos danos às vítimas; e, 4) princípio da não-repetição: inibição, pela valorização da verdade e da reparação, de novas formas de violações a direitos humanos, “cometidas sob a influência da impunidade e da cultura do segredo”. Nesse passo, com apoio na lição de Tullio Scovazzi e Gabriella Citroni, anoto que a Convenção de 2007 sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, ainda não ratificada pelo Congresso Nacional no Brasil, em seu art. 24.4 e 5 refere-se a formas de reparação às vítimas, tanto material quanto moral e ainda àquelas consistentes na restituição, reabilitação, recuperação, incluindo a restauração da honra e da reputação e garantias de não-repetição(21). No processo de busca da verdade, o direito à proteção da vida privada, da imagem e da intimidade da vítima, dá azo ao direito ao resguardo do ofendido. O direito ao resguardo, como direito da personalidade, bem por isso um direito humano fundamental, corresponde a um substrato do direito ao segredo por parte da vítima, com o resguardo no acesso a determinadas informações, pois, não raro, podem existir os que preferem que não voltem à tona terríveis sofrimentos ou danos psicológicos guardados no mais recôndito reduto de suas mentes. A seu modo e segundo suas próprias e motivadas concepções, a memória pode ser preservada na consciência latente das vítimas. Por óbvio que se trata de direito conferido apenas às vítimas da opressão e crimes contra a humanidade e não às autoridades públicas, meras detentoras provisórias das informações, que tem o dever de informar de forma adequada. Conforme definição de Cupis, resguardo é “o modo de ser da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo que se refere a ela só”.(22) Tem-se portanto que

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pelo exercício do resguardo a vítima defende-se da exposição alheia, ou seja, da divulgação a outras pessoas ou grupos de pessoas. Portanto, o resguardo não diz respeito ao acesso às informações, mas à divulgação delas. Disto, duas conclusões podem ser extraídas: a) tais informações passíveis de resguardo pela vítima poderiam permanecer no procedimento de busca da verdade, por exemplo, em mídia não degravada e lacrada no processo; e b) o direito ao resguardo não há de prejudicar a busca da verdade pelo exercício do direito à informação, de máxima concreção possível. Como se trata o direito à informação, de direito humano fundamental dos mais caros e relevantes consagrado no rol constitucional do artigo 5º, cujo acesso é garantido por remédios constitucionais, como o habeas data, não pode este direito restar obstaculizado pelo resguardo de informações por parte da vítima, ainda que justificado e embora este represente igualmente um direito humano fundamental. Nada mais razoável nessa ponderação de liberdades públicas, com sensível prevalência, dentre direitos humanos fundamentais, daqueles que se direcionam a bens e interesses coletivos. Nesse passo, questiona-se se seria plausível nos limites do permitido pelo ordenamento jurídico, que a vítima fosse poupada de justificações ao público do resguardo das informações? Sim, a princípio, visto que ninguém seria obrigado a uma motivação pública do resguardo. No balanço valorativo entre direitos humanos clássicos relativos à liberdade privada do indivíduo (direito ao resguardo pela vítima) e, de outro lado, também direitos humanos relativos à soberania popular orientada pela legitimidade de interesses coletivos, é razoável que prevaleça o direito à informação e à verdade. Demais disso, os bens jurídicos em foco, quais sejam, a memória e a verdade, constituem interesses públicos difundidos por toda a sociedade, carente de um resgate histórico para as devidas responsabilidades. Tanto o direito ao resguardo pela vítima, quanto o direito à informação e à verdade, enquanto direito relativo à soberania popular são direitos humanos, passíveis de serem ponderados entre si. 144

Jürgen Habermas pondera a respeito da questão da legitimação da soberania popular e direitos humanos que “O princípio da soberania popular fixa um procedimento que fundamenta a expectativa de resultados legítimos com base nas suas qualidades democráticas. Esse princípio expressa-se nos direitos à comunicação e à participação que asseguram a autonomia pública do cidadão. Em contrapartida, aqueles direitos humanos clássicos – que garantem aos cidadãos da sociedade a vida e a liberdade privada, a saber, âmbitos de ação para seguirem os seus planos de vida pessoais – fundamentam uma soberania das leis legítimas a partir de si mesma. (...) Sem dúvida a teoria política não pôde equacionar de modo sério a tensão entre a soberania popular e os direitos humanos, entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”. O republicanismo, que remonta a Aristóteles e ao Humanismo político do Renascimento, sempre concedeu precedência à autonomia pública dos cidadãos em detrimento das liberdades não-políticas dos indivíduos privados.”(23) O direito personalíssimo da vítima ao resguardo está relacionado à defesa da intimidade. Se invocado, pode restringir a publicidade de atos processuais, mas não pode o resguardo prejudicar o direito à informação e à verdade buscada por outras vítimas ou qualquer interessado no alcance da memória e da verdade. Nesse diapasão, como observado por Ana Isabel Herrán Ortiz(24), o Tribunal Constitucional Alemão, em julgamento de ação ajuizada contra a lei do censo populacional na Alemanha, aprovada em 04 de março de 1982, admitiu a existência de um direito fundamental à autodeterminação informativa, ao ponderar que o indivíduo tem o direito constitucional de determinar primordialmente por si mesmo a divulgação e a utilização de dados referentes à sua pessoa, sendo que as limitações desse direito à autodeterminação informativa somente são admissíveis tendo-se em vista o interesse geral superior e necessitam um fundamento constitucional, que deve corresponder ao imperativo de clareza normativa inerente ao Estado de Direito. De qualquer modo, é relevante frisar que nos casos de sigilo imprescindível à segurança da

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sociedade e do Estado ou se invocado o direito ao resguardo, a lei garante que “Poderá o Poder Judiciário, em qualquer instância, determinar a exibição reservada de qualquer documento sigiloso, sempre que indispensável à defesa de direito próprio ou esclarecimento de situação pessoal da parte”(25) sendo que “nenhuma norma de organização administrativa será interpretada de modo a, por qualquer forma, restringir o disposto neste artigo”(26). Ora, se em se tratando de sigilo em matéria de Política Nacional de Arquivos Públicos e Privados, à vítima ou à parte no processo judicial são garantidas a exibição de documento sigiloso para a busca da verdade, é evidente que a restrição na divulgação de informações da vítima resguardada não pode, em hipótese alguma, prejudicar terceiros ou a própria vítima resguardada, num procedimento de busca da verdade. Demais disso, os documentos públicos que contenham informações relacionadas à intimidade, vida privada, honra e imagem de pessoas, e que sejam ou venham a ser de livre acesso poderão ser franqueados por meio de certidão ou cópia do documento, que expurgue ou oculte a parte sobre a qual recai o disposto no inciso X do caput do art. 5o da Constituição Federal.(27) Esse mecanismo do direito ao resguardo permite à vítima ou a seus familiares a valorização e o respeito de uma autoconfiança, que lhes permita, ao menos num futuro momento, revelar recônditos testemunhos e confiar em verdadeiras revelações, a princípio não-críveis, sem que sejam prejudicados direitos coletivos indisponíveis de terceiros na busca da verdade para o necessário ajuste emocional de contas e o resgate da sanidade individual e coletiva. A despeito dos traumas da democracia, observa Edson Luís de A. Teles que “Para que a democracia brasileira desvendasse os seus segredos, seria preciso criar uma dimensão pública onde a sociedade considerasse a legitimidade dos sentimentos de melancolia, ressentimento e vingança que cresceram sob o silêncio de nossa transição política.”(28) Talvez, a participação da sociedade no processo de busca da verdade como já tratado do item anterior deste artigo - e o direito ao resguardo favoreçam sejam apaziguados esses traumas.

O concerto num ambiente democrático das comunicações necessárias evitará tensões entre um direito humano fundamental (direito à liberdade civil) sobre outro (direito à liberdade privada). Quanto mais a vítima sentir-se reconhecida em seus direitos e valorizada em seus sentimentos pela sociedade, tanto mais garantidos resultados legítimos numa busca oficial da verdade. O direito da vítima ao resguardo das informações realiza-se no mesmo contexto jurídico do instituto do consentimento prévio informado, dado que ambos visam à salvaguarda de outros direitos humanos fundamentais no processo de busca da memória e da verdade.

4 Consentimento prévio fundamentado e Justiça de Transição A questão crucial que precede a qualquer discussão sobre o consentimento prévio informado no processo de busca da verdade é a quem legitimamente pertencem as informações e dados contidos em documentos oficiais? Ora, a memória e a verdade pertencem às vítimas diretamente e à sociedade civil, como elementos essenciais de uma sanidade cívica e propulsores de devidas reconciliação e reparação. O Estado é mero detentor, em caráter provisório, das informações reveladoras da verdade de um povo. A legitimidade representa o cerne da validade do acesso às informações. O consentimento prévio fundamentado da vítima vem para assegurar em determinados casos de acesso àquelas informações, dados e documentos oficiais, a concordância formal com o acesso. Mas, se a regra geral é informar, por comando constitucional e se, a este dever, corresponde um imutável direito fundamental de ser informado, então é plausível cogitar de consentimento prévio informado no processo de busca da verdade? Por óbvio, o consentimento prévio informado não será tomado de vítimas, requerentes de acesso às informações junto aos arquivos oficiais, pois está implícito no requerimento que consentem com a divulgação das informações. Mas

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haverá situações em que o consentimento prévio informado virá como instrumento e expressão do direito à autodeterminação informativa. Algumas vítimas podem não concordar com o acesso e o uso de informações que possam de alguma forma afetar sua esfera de liberdade individual e seus direitos personalíssimos. Nessas hipóteses, o consentimento prévio informado consiste no instrumento jurídico que legitima o acesso e o uso de informações coletadas de arquivos oficiais. Isto porquanto por intermédio do consentimento prévio informado será possível o acesso e a utilização das informações coletadas, porquanto valorizada a garantia da auto-determinação. Com efeito, o consentimento prévio informado num processo de busca da verdade assegura a legitimidade dos atos e profícuos resultados num procedimento formal de busca da verdade, já que desenvolvido como instrumento de salvaguarda de direitos fundamentais. Ademais, trocas de informações num procedimento de consentimento poderiam ajudar na organização e no adequado uso das informações colhidas nos arquivos oficiais, colaborando na obtenção de resultados profícuos na busca da verdade seja em nível das Comissões da Verdade, seja em Juízo. Enfim, consistiria o procedimento de consentimento prévio informado num espaço catalisador e integrador de ações e interesses voltados à busca da verdade. Com efeito, o consentimento prévio informado propicia uma equilibrada confluência de distintas forças, intensos diálogos e de ajustes consensuais dotados de razoabilidade, porque rejuntados pelo reconhecimento de direitos humanos fundamentais no desenvolvimento de um processo de busca da verdade. Tal visão remete à Habermas(29) que valoriza a racionalidade da motivação dos interesses de todos na busca da verdade, pois uma “aceitabilidade racional” afasta o perigo de consensos cegos e frágeis serem questionados no futuro. Demais disso, o consentimento prévio informado elide possíveis frustrações num processo de busca da verdade, que não são incomuns quando se lida com o desconhecido ou mesmo 146

com inesperados resultados, como a confirmação de uma situação de irreparabilidade. O consentimento prévio informado, como instrumento e espaço garantidor da alteridade e a autodeterminação, poderia ter ajudado no alcance de resultados mais profícuos na apuração da verdade na justiça de transição envolvendo povos tradicionais em Uganda. Com efeito, resultados seriam mais efetivos no processo de apuração da verdade em Uganda, que “poderia ter combinado o uso de seus mecanismos tradicionais de resolução de conflito por meio da reconciliação e a busca por justiça com a participação da comunidade. O país poderia possivelmente promover compensação bem como diálogo por meio dos mecanismos tradicionais dos acholi, mantendo, ao mesmo tempo, a integridades desses costumes tradicionais”(30). O consentimento prévio informado não é novidade no cenário jurídico. Revela-se adequado e necessário em várias situações, como instrumento jurídico apto a legitimar atos envolvendo interesses contrapostos ou desiguais. Cite-se o “consentimento livre e esclarecido”(31) nas pesquisas envolvendo seres humanos, em respeito à dignidade da pessoa humana. As justificativas, favoráveis ou desfavoráveis às pesquisas envolvendo seres humanos, ajudam na conformação de resultados legítimos, conferindo validade ao processo de obtenção do consentimento e à própria atividade de pesquisa. Em matéria de patrimônio cultural, a Convenção relativa à Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural, de 1972(32), em seu artigo 11, item 3, determina que a “inclusão de um bem na Lista do Patrimônio Mundial não poderá ser feita sem o consentimento do estado interessado”(33). Nota-se neste caso que, por mais benéficos que pareçam ser os resultados da inclusão de um bem na Lista do Patrimônio Mundial, o consentimento prévio informado é exigido, eis que consiste num mecanismo jurídico que visa a validar um ato e dotar de eficiência o procedimento. No direito ambiental, o “consentimento prévio informado” por parte dos provedores do patrimônio genético e/ou do conhecimento tra-

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dicional é o instrumento jurídico que legitima o acesso e a repartição de benefícios no acesso à sociobiodiversidade, com finalidade de pesquisa científica ou para bioprospecção, com finalidade comercial. Tal consentimento prévio informado, previsto no artigo 15, item 5 da Convenção da Diversidade Biológica(34), está incorporado ao direito interno. Funda-se tal consentimento prévio informado de comunidade tradicional no reconhecimento dos direitos originários dos indígenas sobre suas terras, no direito à alteridade (direito a ser diferente) e no direito à autodeterminação dos povos.(35) No campo do direito internacional, a Convenção sobre a Proteção e Integração das Tribos Indígenas e outras Tribos e Populações SemiTribais em Países Independentes, de 1986 (art. 15), Minuta de Declaração das Nações Unidos sobre os Direitos de Povos Indígenas, de 1981 (arts. 24 e 29), Declaração do Rio de Janeiro (capítulo 26), Declaração de Princípios do Conselho Mundial para Povos Indígenas de 1984, Estatuto da Terra dos Povos Indígenas de 1992.(36) O consentimento prévio informado, portanto, constitui em mecanismo que assegura fundamentalmente aos povos tradicionais no processo de busca da verdade, o direito à autodeterminação, o direito de resguardo das informações, o direito de ter suas tradições e valores culturais reconhecidos, o direito de serem representados segundo suas próprias vontades e o direito à preservação de suas diferenças, fundados na dignidade da pessoa humana, em atenção ao comando constitucional do art. 1º, III. Trata-se assim de instrumento que propicia a troca de informações e o diálogo entre vítimas, num espaço cidadão em que diferentes culturas e costumes tradicionais são respeitados, imprimindo eficiência e resultados legítimos no processo de busca da verdade.

5 O direito à informação e à participação e as Comissões da Verdade O princípio do acesso pleno aos documentos públicos, preconizado no artigo 22 da Lei

nº 8.159/91 e a novel Lei 12527/2011 colocam o sigilo como exceção à regra da publicidade dos atos administrativos, ao princípio da transparência e ao da necessária prestação de contas dos órgãos públicos. Na prática, isso leva a que sempre sejam motivadas as decisões, de forma colegiada, de não-publicidade temporária de determinada informação guardada nos arquivos públicos, esteja ela arquivada em meio escrito, visual, sonoro, magnético ou eletrônico. Mister é fazer preponderar normas garantidoras de direitos das vítimas, sob o primado da busca da memória, da verdade e da reparação. É sabido que a fundamental diferença entre juizado de instrução e comissão de verdade consiste na menor ou maior atenção às vítimas. Naquele, a vítima é um meio, nesta, um fim. Nas comissões da verdade a vítima passa a ter uma voz pública e elevar seus sofrimentos para um nível de conscientização coletiva que passa a agregar uma melhor compreensão de suas necessidades e das adequadas reparações. Nessa linha de pensamento, vem a seguinte observação de Priscila Hayner: “Num procedimento em juízo, as vítimas são convidadas a prestar informações somente se necessário para apoiar determinadas assertivas de um caso, geralmente integrando um conjunto específico de fatos que elucida o crime em questão. (...) A maioria das comissões de verdade, ao contrário, são constituídas para focar primeiramente as vítimas... Ouvindo os relatos das vítimas, talvez realizadas em audiências públicas e publicando um relatório que descreva uma ampla gama de experiências de sofrimento, as comissões efetivamente dão às vítimas uma voz pública e trazem seus sofrimentos para a ciência de um público maior. Enquanto as audiências da comissão sulafricana se realizavam, por exemplo, terapeutas que trabalharam com sobreviventes de tortura verificaram um aumento marcante da compreensão pública e da apreciação das necessidades das vítimas. Para algumas vítimas e sobreviventes esse processo pode ter um efeito catártico ou de cura.”(37) O direito à informação e à participação no sistema jurídico brasileiro dá azo a que o Ministério Público participe do processo de obtenção da

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verdade. É ainda salutar que, em caráter prévio, as opiniões da sociedade tomadas em audiências públicas sejam consideradas na própria estrutura de termos de referência da CNV. A Comissão da Verdade em El Salvador, administrada pelas Nações Unidas, visando à objetividade, nenhum salvadorenho foi incluído em seus grupos de trabalho, mas ela teve completa independência operacional em seus trabalhos.(38) Ainda no tocante à participação, vale citar a observação de Priscila Haynes(39) quanto à experiência na Comissão da Verdade na Guatemala, que, com o concurso de uma ONG de Washington,D.C./EUA, logrou obter a desclassificação de milhares de arquivos do governo dos Estados Unidos, angariando detalhadas informações suficientes para esquematizar toda a estrutura organizacional das forças armadas na Guatemala durante vários anos. Menos informações forneceram as próprias forças armadas guatemaltecas. O princípio constitucional da publicidade reclama seja dada a devida publicidade em jornais de grande circulação, mídia televisiva, internet e outros meios de comunicação a respeito de todos os principais atos, parciais conclusões e relatório conclusivo de uma comissão de verdade no Brasil. Isto contribuiria para a formação e o fortalecimento de uma conscientização pública voltada à busca da verdade. No tocante ao arquétipo de uma Comissão de Verdade no Brasil, importante é que sua estrutura e natureza atendam a exigências e condições próprias e peculiares da realidade brasileira, à luz de erros e acertos de experiências vivenciadas em outros países, pautando-se sempre no princípio do não-retrocesso, que blindou princípios da preponderância da publicidade e da transparência das informações em órgãos públicos. Se a Constituição da República Federativa do Brasil instala um Estado de Informação de Direito e a legislação estabelece o princípio do acesso pleno aos documentos públicos, então, definitivamente, não há de se cogitar de retrocesso, numa reinstalação de uma indevida cultura do segredo, que propicie ausência de democracia. 148

Fica o desafio de se concretizar as ações garantistas, com mecanismos jurídicos adequados a que seja buscada a verdade com eficiência, sob pena de retrocesso no processo de democratização e transparência, dirigido à justiça social.

Notas ARENDT, Hannah, Viés politiques, Paris: Gallimard, 1974, p. 35.

(3)

HESSE, Konrad, A força normativa da Constituição, tradução de Gilmar Ferreira Mendes, Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris Editor, 1991, p. 15.

(4)

SOARES, Inês Virgínia Prado, in Informação, Memória e Verdade em espaços virtuais: antigos ou novos desafios jurídicos?, texto inédito (no prelo).

(5)

PIOVESAN, Flávia, Desarquivando o Brasil in http:// www.desaparecidospoliticos.org.br/imprimir.php?id=102, acesso em 17/02/2009.

(6)

MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito à Informação e Meio Ambiente, São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p.248.

(7)

MÉNDEZ, Juan, in Entrevista com Juan Méndez, presidente do International Center for Transitional Justice (ICTJ), SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, nº 7, ano 4, ed. em português, São Paulo SUR-Rede Universitária de Direitos Humanos, 2007, p. 173.

(8)

A despeito do assunto, o E. Supremo Tribunal Federal negou seguimento à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 972-DF) proposta pelo Conselho Federal da OAB, em 20/6/2005, porquanto o pedido não abarcava a Lei 11.111, de 5 de maio de 2005, embora a ação tenha sido proposta em 19/11/1993, sendo certo que a jurisprudência da E. Corte é firme no tocante à imprescindibilidade de impugnação dos textos normativos que cuidem da mesma matéria atacada na ação direta. Em 19 de maio de 2008 foi ajuizada Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4077, pelo Exmo. Procurador-Geral da República em impugnação às Leis 8.159/1991 e 11.111/2005, com pedido de medida liminar.

(9)

DROBOWOLSKI, Samantha Chantal, Os caminhos da cidadania: do conceito liberal à necessária ressignificação na sociedade global,in Perspectivas de Justiça no Século XXI, Cadernos de Direito e Cidadania III, São Paulo, IEDC – Instituto de Estudos Direito e Cidadania, 2002, p. 114.

(10)

CINTRA, Antônio Octávio, As Comissões de Verdade e Reconciliação: o caso da África do Sul, in Consultoria Legislativa, Brasília: Câmara dos Deputados, fev/2001, p.12.

(11)

HAYNER, Priscila, Unspeakable Truths: Confronting State Terror and Atrocity, Ed.: Routledge, 1ª edição, dez/2000, p. 33. Tradução livre da autora.

(12)

(13)

Lei 9784/1999, art. 32.

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Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição

MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito à Informação e Meio Ambiente, São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 65.

(14)

MÉNDEZ, Juan, in Entrevista com Juan Méndez, presidente do International Center for Transitional Justice (ICTJ), SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, nº 7, ano 4, ed. em português, São Paulo SUR-Rede Universitária de Direitos Humanos, 2007, p. 174-175.

(15)

(16)

MACHADO, Paulo Affonso Leme, idem, p. 64.

LINHARES, Fernando Moura, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza/CE.

(17)

KISHI, Sandra Akemi Shimada, in Acervo Digital de Conhecimentos Tradicionais, Sítio Cultural de Memória Tradicional, Acesso a conhecimentos tradicionais de publicações e outras questões atuais, in CUREAU, Sandra, KISHI, Sandra Akemi Shimada, SOARES, Inês Virgínia e LAGE, Cláudia Marcia Freire (coord), Olhar Multidisciplinar sobre a efetividade da proteção do patrimônio cultural, Belo Horizonte, Editora Fórum, 2011, p. 155.

(18)

Sobre Justiça de Transição, recomenda-se a leitura de artigo de Glenda Mezarobba publicado nesta coletânea “Memória e Verdade”.

(19)

WEICHERT, Marlon Alberto, Crimes contra a humanidade perpetrados no Brasil. Lei de anistia e prescrição penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 74, 2008, p. 183-184.

(20)

SCOVAZZI, Tullio e CITRONI, Gabriella, “The Struggle against Enforced Disappearance and the 2007 United Nations Convention”, Leiden-Boston: Martinus Nijhoff Publishers, 2007, p. 379/380. Tradução livre da autora.

(21)

CUPIS, Adriano de, Os Direitos da Personalidade, Lisboa: Livraria Moraes, 1961, p. 72 apud GONÇALVES, Luiz Carlos dos Santos, Comissões Parlamentares de Inquérito – poderes de investigação, São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2001, p. 77. .

(22)

ROSE, Cecily e SSEKANDI, Francis M. A procura da Justiça Transicional e os Valores Tradicionais Africanos: um choque de civilizações – o caso de Uganda, in SURRevista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo: Ed. Gráfica, Rede Universitária de Direitos Humanos – Conectas Direitos Humanos, 2007, n.7, ano 4p. 121.

(30)

Resolução 196, de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de Saúde.

(31)

Promulgada no Brasil pelo Decreto n. 80.978, de 12 de dezembro de 1977.

(32)

COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos Direitos Humanos, III edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2003, p. 385.

(33)

Assinada pelo Brasil em 5/6/1992 e ratificada pelo Congresso Nacional pelo Decreto Legislativo n.2, de 3/02/1994, com entrada em vigor em 29/05/1994. O Decreto presidencial n. 2519, de 16/03/98 promulgou a Convenção da Diversidade Biológica (DOU 17.03.1998)

(34)

KISHI, Sandra Akemi Shimada, Consentimento prévio informado no Brasil, in Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais – direito, política e sociedade, Belo Horizonte: Editora Fórum, 2009, no prelo.

(35)

KISHI, Sandra Akemi Shimada, Principiologia do Acesso ao Patrimônio Genético e ao Conhecimento Tradicional Associado, in Diversidade Biológica e Conhecimentos Tradicionais, Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2004, p. 332.

(36)

HAYNER, Priscila, Unspeakable Truths: Confronting State Terror and Atrocity, Routledge Ed., 1ª edição, dez/2000, p. 28.(Tradução livre da autora).

(37)

(38)

Ibidem, p. 39. (Tradução livre da autora).

(39)

Ibidem, p. 47. (Tradução livre da autora).

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(23)

(24)

(25)

Art. 24 da Lei 8.159/1991.

(26)

Art. 24, par. ú, da Lei 8.159/1991.

(27)

Art. 7º, da Lei 11.111/2005.

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(28)

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(29)

BONAVIDES, Paulo, Curso de Direito Constitucional, São Paulo: Malheiros Editores, 1996, p. 236.) CINTRA, Antônio Octávio, As Comissões de Verdade e Reconciliação: o caso da África do Sul, in Consultoria Legislativa, Brasília: Câmara dos Deputados, fev/200, p.12. COMPARATO, Fábio Konder, A afirmação histórica dos Direitos Humanos, III edição, São Paulo: Editora Saraiva, 2003.

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Fórum, 2011, p. 155. LINHARES, Fernando Moura, Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Direito como requisito parcial para a obtenção do Título de Mestre em Direito Constitucional da Universidade de Fortaleza/CE. MACHADO, Paulo Affonso Leme, Direito à Informação e Meio Ambiente, São Paulo: Malheiros Editores, 2006, p. 65. MENDEL, Toby, Liberdade de Informação: um estudo de Direito Comparado. 2ª ed., Unesco: Brasília, 2009, p. 38 in SOARES, Inês Virgínia Prado, in Informação, Memória e Verdade em espaços virtuais: antigos ou novos desafios jurídicos?, no prelo. MÉNDEZ, Juan, in Entrevista com Juan Méndez, presidente do International Center for Transitional Justice (ICTJ), SUR - Revista Internacional de Direitos Humanos, nº 7, ano 4, ed. em português, São Paulo SUR-Rede Universitária de Direitos Humanos, 2007, p. 174-175. ORTIZ, Ana Isabel Herrán, La Violación de la Intimidad en la Protección de Datos Personales, Dykinson, Madrid, 1998, p. 73. PIOVESAN, Flávia, Desarquivando o Brasil in http://www.desaparecidospoliticos.org.br/imprimir.php?id=102, acesso em 17/02/2009. ROSE, Cecily e SSEKANDI, Francis M. A procura da Justiça Transicional e os Valores Tradicionais Africanos: um choque de civilizações – o caso de Uganda, in SUR-Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo: Ed. Gráfica, Rede Universitária de Direitos Humanos – Conectas Direitos Humanos, 2007, n.7, ano 4, p. 121. SCOVAZZI, Tullio e CITRONI, Gabriella, “The Struggle against Enforced Disappearance and the 2007 United Nations Convention”, LeidenBoston: Martinus Nijhoff Publishers, 2007, p. 379/380. Tradução livre da autora. TELES, Edson Luís de Almeida, Brasil e África do Sul: os paradoxos da democracia – Memória política em democracias com herança autoritária, dissertação de doutorado apresentada

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Direito à Informação e à Participação na Justiça de Transição

ao Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007, p. 70. WEICHERT, Marlon Alberto, Crimes contra a humanidade perpetrados no Brasil. Lei de anistia e prescrição penal, in Revista Brasileira de Ciências Criminais n. 74, 2008, p. 183-184.

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O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da Artigo comunicação social e política no Brasil

O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da comunicação social e política no Brasil Vitor S. L. Blotta.(1)

RESUMO: O presente estudo resume os resultados da tese de doutoramento do autor, que procurou estabelecer, a partir de uma reavaliação e atualização dos estudos de Jürgen Habermas sobre esfera pública e direito, os fundamentos teóricos e práticos do Direito da Comunicação, uma teoria crítica do direito que retoma o vínculo interno entre direito e esfera pública política, e com isso fornece um modelo complementar à teoria procedimental de Habermas, fortalecendo as condições para a produção de uma legitimidade democrática do poder em sociedades pluralistas. Palavras-chave: Esfera pública política. Teoria discursiva do direito e da democracia. Direito da comunicação. Direitos de comunicação. Comunicação do direito ABSTRACT: The present study summarizes the results of the author’s PhD thesis, which aimed to establish through a reevaluation and actualization of Jürgen Habermas’s studies on public sphere and law, the theoretical and practical groundings of Communication Law, a critical theory of law that reestablishes the internal relation between law and the political public sphere, and offers a complementary moral to Habermas’s procedural theory, strenghtening the conditions for the production of a democratic legitimacy of power in pluralistic societies. Keywords: Political public sphere. Discourse theory of law and democracy. Communication law. Communication rights. Communication of law Somente comunicações livres tornam possível um direito legítimo e democrático. Mas tão fundamental quanto garantir essa pressuposição

(1) Pesquisador Sênior do Núcleo de Estudos da Violência da USP. E-mail:[email protected]

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Blotta, V. S. L.

é a sua recíproca, pois só um direito legítimo e democrático torna possíveis comunicações livres. Este artigo resume os resultados da tese de doutoramento intitulada O Direito da comunicação: reconstrução dos princípios normativos da esfera pública política a partir do pensamento de Jürgen Habermas. O estudo teve como objetivo geral discutir os problemas teóricos e práticos extraídos da proposição acima, a partir de um aprofundamento das relações entre comunicação e direito propostas por Habermas ao enfrentar o problema da legitimidade de ordens constitucionais e democráticas, especialmente nas obras Mudança Estrutural da Esfera Pública (Strukturwandel der Öffentlichkeit, 1962) e Direito e Democracia (Faktizität und Geltung, 1992)(2). A teoria do Direito da Comunicação é resultado de uma tendência teórica e prática de intersubjetivização do direito, isto é, responde à necessidade de se proteger e potencializar a esfera pública política, ou os “ambientes comunicacionais” formados pelas interações de sujeitos dotados de direitos e deveres de comunicação. Essa necessidade fica clara, mas não é suficientemente aprofundada na teoria discursiva do direito elaborada por Habermas em Direito e Democracia. Em seus estudos mais recentes sobre o tema, no entanto, como em Entre Naturalismo e Religião (2007), bem como atuais debates sobre filosofia política que o autor tem travado na dentro da Teoria Crítica da Sociedade(3), essa tendência a uma maior intersubjetivização tem se mostrado cada vez mais presente.(4) É por isso que o pensamento de Habermas foi trabalhado na tese em relação às atualizações de sua teoria discursiva do direito e em diálogo com importantes interlocutores e aprofundadores de seu pensamento, cujas teorias apontam também para compreensões mais intersubjetivas da sociedade, da moralidade, da política e do direito.(5) O esforço para a elaboração teórica do direito da comunicação responde também, portanto, a uma busca por atualizar o pensamento de Habermas em meio ao debate mais recente da teoria crítica na filosofia política e na filosofia do direito. 154

O argumento teórico da tese pode ser resumido a partir da seguinte analogia: se em Direito e Democracia a esfera pública política é vista como o espaço social onde a legitimidade da ordem democrática pode ser intersubjetivamente identificada, problematizada e justificada (Habermas, 1997-I:213-214), isso significa que, apesar de teoricamente oposta ao conceito de mundo da vida (Lebenswelt)(6) - pois assume formas mais ou menos discursivas -, a esfera pública política desempenha em relação ao direito o mesmo papel que exerce o mundo da vida em relação à teoria do discurso habermasiana. Isso porque especialmente a partir de Direito e Democracia, mas de certo modo já em Mudança Estrutural, a esfera pública política é entendida como pressuposto fundamental de um direito democrático, da mesma forma que a intersubjetividade compartilhada do mundo da vida é um pressuposto do discurso. Isto é, a esfera pública política é formada a partir de problematizações, violações e afirmações de pressuposições inevitáveis de comunicação e reconhecimento presentes nas interações e tensões entre público e privado a partir do surgimento da modernidade ocidental. Em seu caso específico, essas pressuposições colaboram especialmente para compreensão, a racionalização e a justificação da ação política. É, portanto, sobre a esfera pública política que o direito da comunicação atua, tendo-a como objeto de análise que complementa o procedimento de deliberação democrática, sobre o qual incide o paradigma procedimental do direito de Habermas (v. Habermas, 1992:446). Com isso, o direito da comunicação procura colaborar como forma de institucionalizar a proteção e o estímulo a uma formação racional da opinião e da vontade políticas, tanto em âmbitos sociais quanto estatais. Assim, enquanto a teoria do discurso de Habermas pretende reconstruir, por meio de um estudo contínuo das dinâmicas do mundo da vida, as pretensões inevitáveis de racionalidade da interação social, o direito da comunicação busca também reconstruir, por meio de diagnósticos críticos da esfera pública política, as pretensões normativas(7) que devem ser asseguradas como

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O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da comunicação social e política no Brasil

pré-condições institucionais para um exercício mais amplo dos potenciais de integração social e de individuação através do direito e da política. Sem essas pré-condições, a própria racionalidade da legitimação do procedimento democrático se torna prejudicada. Esse foco do direito da comunicação exige por sua vez um deslocamento complementar do status do objeto da teoria do direito e da democracia de Habermas, acrescentando à reconstrução do procedimento de deliberação democrática a necessidade de também se reconstruir o conteúdo normativo da esfera pública política, como exercício constitutivo de um direito democrático e como atividade imprescindível de sua justificação legítima. Por isso, trata-se também de colaborar para um aprofundamento dos critérios de avaliação da qualidade democrática da legitimidade do direito contemporâneo. Os princípios estruturais e conteúdos normativos do direito da comunicação encontrados na esfera pública política e institucionalizados parcial, implícita ou expressamente em atuais constituições democráticas como a brasileira, problematizam e influenciam a formação de novos arranjos institucionais, estimulando interpretações intersubjetivas de alguns dos mais importantes conceitos da filosofia do direito, como dignidade humana, validade jurídica e legitimidade, sujeito de direitos, direitos subjetivos e objetivos, justificação política e jurídica. O último esforço da tese se destinou, portanto, a desenvolver essas novas interpretações por meio de uma leitura dos presentes debates de filosofia política e filosofia do direito na teoria crítica da sociedade, e a sugerir alguns dos possíveis impactos da teoria do direito da comunicação na teoria do direito e na jurisprudência brasileira nas áreas da comunicação social e da comunicação política.

Parte I: Revisão e atualização da esfera pública política e novo método de análise O tema da esfera pública política foi tratado na primeira parte da pesquisa de doutoramento

estudo desde a obra Mudança Estrutural da Esfera Pública (MEEP) à sua concepção como parte integrante da justificação da teoria discursiva do direito e da democracia de Habermas. A partir desse esforço para reconstruir o conceito de esfera pública política no pensamento atual do autor, fica clara para a teoria do direito a necessidade de uma reconstrução dos princípios normativos da esfera pública política em situações históricas concretas, os quais podem, em relação com princípios do estado democrático de direito reconstruídos dos capítulos 3 a 6 de Direito e Democracia, oferecer melhores condições de análise e implementação de uma circulação mais legítima do poder político. No primeiro capítulo, as raízes históricas e teóricas de Mudança Estrutural foram apresentadas, especialmente em relação ao processo de redemocratização na Alemanha, e a influência da teoria da indústria cultural nos estudos de Habermas sobre a apatia do movimento estudantil no começo dos anos 60. Em seguida, as teses principais de Mudança Estrutural foram analisadas em relação às suas revisões em um estudo detido, a partir do qual se pôde identificar não só as raízes daquilo viria a ser a teoria política de Habermas, mas também as primeiras pistas de uma teoria do direito da comunicação (parte II). A importância de se desenvolver um novo diagnóstico da esfera pública política fica evidente desde então, mas desta vez por meio do estatuto teórico maduro(8) de Habermas, que volta a abordar o tema da esfera pública política trinta anos depois, no prefácio da edição alemã de 1990 de Mudança Estrutural da Esfera Pública (in. Calhoun (ed), 1992:441-457). Após essa revisão crítica, foi trabalhado, sob a mesma abordagem histórica e sociológica de Mudança Estrutural e uma seleção de literatura nacional e internacional sobre tema(9), um breve histórico da formação da esfera pública política no Brasil (cap.3). Os eventos sumariamente discutidos foram: o nascimento da imprensa no Império; o surgimento de um público informado na consolidação da República; a mediatização da esfera pública nacional de veículos monopolizados pelo estado

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a concentrados meios “semi-públicos” de imprensa e concessionárias privadas comunicação eletrônica, em meio ao fortalecimento da sociedade civil na alternância entre regimes democráticos e autoritários do século XX; e as novas interpretações da ideia de esfera pública com a emergência das novas tecnologias de informação e comunicação do final do século XX ao XXI. A questão que este capítulo acabou demonstrando foi que mesmo com uma abordagem metodológica de certo modo mais histórica e sociológica de Mudança Estrutural, torna-se claramente possível conceber, em termos de problematizações de pretensões normativas entre público e privado, a existência de uma esfera pública política no Brasil, desde o período colonial até democracia de massa orientada por uma economia de mercado, no contexto de um capitalismo monopolista/oligopolista. Mas mesmo com esse primeiro diagnóstico histórico de politizações do público a partir do privado, quando se tenta seriamente dar conta das múltiplas lutas sociais e movimentos que influenciaram a consolidação do regime democrático brasileiro, e que agora parecem supervisioná-lo crítica e midiaticamente, uma abordagem mais atualizada e sistemática ao problema se tornou urgente e justificada. É por isso que a passagem do breve histórico da esfera pública política no Brasil para a elaboração de um diagnóstico crítico de sua situação presente demandou uma reflexão teórico-metodológica inicial para assentar as pressuposições deste diagnóstico, a partir de interpretações do paradigma crítico-comunicativo da teoria crítica, da esfera pública política na teoria discursiva do direito e da democracia e da diferenciação analítica da esfera pública política. Neste capítulo mais teórico da tese, revisões do conceito de esfera pública política promovidas por Habermas (1990, prefácio; Id, 1996) e textos mais recentes no tema, como os presentes no livro Ay, Europa! (2009), acabam destacando a necessidade de se dar condições teóricas para um diagnóstico distinto de seu tempo presente. O método peculiar da teoria crítica de conectar filosofia com estudos empíricos com o 156

objetivo de identificar reconstrutivamente pretensões normativas e suas violações na realidade social(10), combinado com uma abordagem crítica e atualizada dos conceitos de racionalidade e esfera pública em Habermas, formou a estrutura epistemológica e metodológica do diagnóstico crítico da esfera pública política utilizado na tese. Isso significa que, ao fundamentar a relação peculiar da teoria crítica entre teoria e práxis, bem como a possibilidade de combinar seus diferentes paradigmas para melhor interpretar o tempo presente de fenômenos sociais, foi possível elaborar o diagnóstico da parte II a partir de uma diferenciação analítica teoricamente justificada da esfera pública política em três expressões da comunicação pública, primeiramente influenciada pela diferenciação das pretensões de validade da razão comunicativa.(11) Ao mesmo tempo, a atualização da razão comunicativa e sua combinação com a abordagem de Axel Honneth para conflitos sociais e de identidade (Habermas, 2007), por exemplo, colabora para a formação de enquadramento teórico para o direito da comunicação que seja sensível o suficiente para não somente criticar as violações de pretensões de validade da razão comunicativa e suas relações entre si e com outras experiências humanas, mas também permitir a identificação de pretensões de reconhecimento na esfera pública política, que nem sempre emergem na forma de violações ou problematizações discursivas de pretensões de validade (Honneth, 2009:356ss).

Parte II: O diagnóstico do presente da esfera pública política no Brasil Em seguida, foi elaborado o diagnóstico do presente da esfera pública política no Brasil, com o objetivo de realizar uma reconstrução da dialética da violação e da afirmação das pretensões de comunicação e reconhecimento presentes na comunicação pública(12) brasileira. A ideia foi tentar situar o presente impacto de cada expressão diferenciada da comunicação pública e sua influência na formação da esfera pública política. Isso por meio de uma análise de suas relações com outros discursos, as pro-

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O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da comunicação social e política no Brasil

blematizações discursivas e as pretensões de reconhecimento que enfrentam em problemas práticos, bem como as pretensões comunicativas e de reconhecimento que elas violam ou afirmam. As primeiras expressões da esfera pública política analisadas foram os domínios técnicocientífico e informativo da comunicação pública (cap. 5). Eles são conectados com a racionalidade instrumental e o discurso teórico, que se tornam visíveis na forma de atos de fala constativos ou representações de visões de mundo, e se especializam em expressões das ciências empírico-nomológicas na esfera pública, como a economia e a biologia, além do caráter descritivo-informativo do jornalismo, tanto na imprensa quanto nos media de massa(13). Alguns dos problemas sociais concretos analisados nessa expressão da esfera pública política no Brasil foram as relações entre economia e esfera pública (5.1), entre “comunicação icônica” e a esfera pública econômica (5.2), entre comunicação científica e informativa e esfera pública (5.3) e uma discussão sobre a “factualidade da violência e a violência da factualidade” na comunicação pública (5.4). A partir desse diagnóstico crítico, as pretensões normativas tomadas como objeto da teoria do direito da comunicação puderam ser identificadas como pretensões que estão no “pano de fundo”, isto é, revelando-se pressupostas (de modo negativo ou afirmativo) nessas problematizações discursivas e pretensões de reconhecimento. Algumas das pretensões normativas que foram possíveis se depreender das análises dessa expressão da esfera pública brasileira foram a descentralização da propriedade da informação e das condições de sua produção, por meio de estudos sobre a concessões públicas de meios de comunicação, o direito à informação, à cultura e ao conhecimento, diante da concentração da propriedade e crítica à propriedade intelectual, e a pluralidade de visões de mundo e a busca cooperativa pela verdade em face de questões práticas envolvidas em todo tipo de comunicação informativa, especialmente da imprensa. A segunda expressão da esfera pública política analisada foi relativa aos problemas práticos

(cap. 6), isto é, que lidam com inter-relações entre as autonomias individual e política, quando questões da moral e da autocompreensão ética alcançam ou visam a alcançar o nível de problematizações públicas. Elas estão conectadas com os inevitáveis aspectos da racionalidade prática, e podem ser identificados em expressões ligadas juízos morais, éticos e a pretensões de reconhecimento. Na esfera pública política mediada pela comunicação pública, surge um grande leque de problemas relacionados, dentre os quais se buscou destacar na presente esfera pública brasileira a batalha entre a liberdade de expressão de indivíduos ou grupos e pretensões a um fluxo constitucional e democraticamente de regulado da informação e da comunicação; novas formas de comunicação e suas tentativas de influenciar a formação da opinião e da vontade da sociedade civil, especialmente aqueles ligados à internet, rádios comunitárias, televisão pública, manifestações, desobediência civil e escândalos midiáticos; e novas tentativas de participação pública na formulação de políticas públicas e na condução e fiscalização do aparato do estado. As pretensões normativas que foram encontradas pressupostas nesses problemas foram: liberdade de expressão e o direito a um fluxo constitucionalmente regulado da comunicação pública, o direito à comunicação e o direito à autodeterminação informacional, bem como o direito a uma formação discursiva da opinião e da vontade política dos cidadãos. Por fim, na última parte do diagnóstico do presente da esfera pública política, foram analisadas suas manifestações estéticas e expressivas. São aquelas relacionadas às condições das expressões e manutenção das subjetividades ou à autocompreensão existencial de indivíduos e grupos. A idéia de uma racionalidade estéticoexpressiva e suas relações com a esfera pública política, que se desdobram em uma crítica e aprofundamento da teoria da racionalização, em combinação com outros paradigmas da teoria crítica, enfrentam problemas relacionados a expressões existenciais, culturais, artísticas e a fenômenos psicológicos e estéticos presentes na comunicação pública, bem como relações entre

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políticas de segurança e de mercado em face da proteção da esfera privada. As análises desses problemas foram feitas por meio de breves sugestões de interpretações intersubjetivas da estética derivadas da teoria crítica, compreendendo como as expressões públicas de uma racionalidade expressiva e estético-comunicativa, supostamente pouco desenvolvida por Habermas(14), influenciam o processo de legitimidade de estados democráticos constitucionais como o Brasil. Esta abordagem permitiu uma nova forma de se identificar o impacto da “comunicação icônica” (Habermas, 2006a) na esfera pública e sua relação com outros discursos, como o científico-informativo e o prático. O diagnóstico de uma esfera pública atravessada por e quase dominada por conteúdos imagéticos, afetivos e inconscientes, foi brevemente diagnosticada a partir de literatura atual e casos práticos(15), numa tentativa de se trabalhar as possibilidade de uma discursivização da imagem, da estética e da expressão da identidade na esfera pública brasileira. Com uma compreensão mais profunda sobre o poder semântico das imagens e de outras expressões estéticas em comparação à comunicação escrita e falada foi possível destacar aspectos importantes de presentes pretensões de comunicação e de reconhecimento que não são apreendidas pela racionalidade discursiva normal, isto é, pela práxis convencional de legitimação de estados democráticos constitucionais. De modo mais concreto, foram analisadas formas com as quais a comunicação política se “auto-representa” na esfera pública, ligando a idéia de estética do direito à visibilidade do poder, políticas culturais em face de tentativas de expressões da autocompreensão ética e existencial de indivíduos ou grupos e suas violações, e o uso injustificado do discurso estético para influenciar a esfera privada a partir de normatividades práticas e instrumentais na esfera pública política. Algumas das pretensões normativas identificadas neste último diagnóstico foram a visibilidade do poder, como pretensões estéticas de publicização do direito, como exemplo da 158

capacidade da comunicação política ampliar suas racionalidades a ponto de identificar suas relações com os discursos estético-expressivos, bem como o direito à diferença, o direito à autorepresentação existencial e cultural, dentro dos quais se encontram direitos a condições propiciadoras de experiências de reconhecimento e o direito a uma proteção constitucionalmente justificada da esfera privada. A partir da complexidade desse cenário deveriam emergir não somente as pretensões normativas mais substanciais do direito da comunicação, mas também as demandas de fundamentação teórica capazes de estabelecê-lo como uma teoria crítica do direito, posto que, para fins de aprofundar seu processo de intersubjetivização, descansa a avaliação da qualidade do processo de legitimidade do direito não somente no seu procedimento, mas naquilo cuja consideração é imprescindível para avaliação de nível democrático: a esfera pública política.

Parte III: Os princípios estruturais e jusfilosóficos do direito da comunicação A fundamentação teórica e prática do direito da comunicação, que marcou o início da parte III (e última) da tese, foi trabalhada num primeiro capítulo por uma tematização do caminho tomado por Habermas desde sua teoria do discurso até sua teoria do direito e da democracia. Em outras palavras, buscou-se explicar porque Habermas passa a ver numa teoria do direito e da democracia uma forma de efetivamente implementar sua teoria e ética do discurso, bem como o conceito de ação comunicativa na arena política (cap. 8). Além das razões históricas por esse caminho tomado, as fundamentações teóricas serão aquelas que vão especialmente guiar a discussão ao segundo tópico desta parte, que trabalhará com as críticas e atualizações da teoria do direito de Habermas dentro do presente debate em filosofia política e filosofia do direito realizado pela teoria crítica. Junto com suas próprias revisões e atualizações da teoria do direito, especialmente em textos e discussões envolvendo obras como Entre

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O Direito da Comunicação: uma nova teoria crítica do direito para a análise e a regulação da comunicação social e política no Brasil

Naturalismo e Religião (Zwischen Naturalismus und Religion, 2007:115-168 e 279-392), a tematização desses debates foi feita principalmente por meio de seus possíveis diálogos com os estudos de filosofia política e de filosofia do direito de Axel Honneth (2003; 2011) Rainer Forst (1994; 2007), e Klaus Günther (2004; 2005), que buscam atualizar o pensamento de Habermas de acordo com suas áreas de atuação e perspectivas específicas. A hipótese que fundamenta a realização desse debate é a de que apesar de seguirem diferentes abordagens e conceitos, as abordagens de cada autor compartilham com Habermas um objetivo comum: o de promover um processo de intersubjetivização do direito, o que é também um dos objetivos teóricos do direito da comunicação. Nesse sentido, já que a distância entre as perspectivas de Honneth e Forst permite abranger todo o leque de abordagens que derivam de Hegel à Kant nos temas da filosofia moral e a filosofia política, e os trabalhos de Klaus Günther parecem aplicar em claro diálogo com essas duas perspectivas(16) o pensamento de Habermas à filosofia do direito, a tematização dessas distintas abordagens e uma combinação crítica de suas discussões deu esteio a uma teoria do direito da comunicação que é capaz de lidar com os mais recentes debates dentro das teorias intersubjetivas da teoria crítica. De modo mais claro, a teoria crítica do direito da comunicação se pretende como resultado desse processo mais aprofundado de intersubjetivização que Habermas parece estar procurando para sua teoria do direito no presente, especialmente quando se consideram suas mais novas reflexões sobre o tema (Habermas, 2007; 2009). Mais especificamente, um dos esforços teóricos do direito da comunicação que abrem o capítulo 9 é a proposta de deslocamento complementar do âmbito da legitimidade do direito: do procedimento democrático para a esfera pública política - reinvertendo operação que Habermas parece realizar desde MEEP - onde se encontram as origens da normatividade política através da qual o próprio procedimento legal pode ser testado como legítimo ou não.

Esse deslocamento acaba causando impactos na teoria da democracia deliberativa de Habermas, pois essa nova abordagem propõe, por exemplo, que o conteúdo normativo dos estados democráticos constitucionais, isto é, a co-originariedade entre autonomias individual e política, só pode ser democraticamente equilibrada dentro do próprio direito se suas respectivas pretensões normativas tiverem as condições institucionais de ser democraticamente formuladas na própria esfera pública política. Essa crítica se torna necessária porque apesar de a esfera pública política ser uma pedra de toque da teoria habermasiana do direito e da democracia, seu conteúdo normativo não é apropriadamente reconstruído em Direito e Democracia (capítulos 7 e 8, quando o tema é especialmente tratado), em comparação com a reconstrução historicamente situada dos conteúdos normativos do sistema de direitos e dos estados democráticos constitucionais da Alemanha e dos Estados Unidos (capítulos 3 a 6). Assim, apesar de salientada sua importância, a esfera pública política volta a servir somente como um parâmetro teórico para criticar a qualidade da formação da opinião vontade políticas, por meio da identificação empírica de desvios em relação aos ideais comunicativos do processo de legitimação do direito, e não como critério de justificação e racionalização da política. Sem abandonar essa importante característica teórica, no entanto, o direito da comunicação não só reconstrói esse conteúdo normativo da esfera pública política, ainda que na historicamente situada realidade brasileira (parte II), mas também sugere desenvolvimentos procedimentais internos à teoria do direito que respondem à pretensão normativa por uma maior interpenetração entre direito e esfera pública política. Um desses desenvolvimentos será a proposta do duplo-movimento do direito da comunicação, que deve ser considerado pela teoria discursiva do direito se o deslocamento complementar de seu domínio objetual e a relação interna entre direito e esfera pública política se fizerem fundamentadas. Esse duplo-movimento, como sugestões para os possíveis desenvolvi-

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mentos institucionais de um direito que assume essa estrutura teórica, consiste na garantia de (1) direitos de comunicação e de reconhecimento e (2) a publicização ou a comunicação do direito. Com a finalidade de cumprir suas tendências presentes de intersubjetivização, o último tópico da pesquisa lida, enfim, com as implicações mais técnicas do direito da comunicação na teoria do direito, tomado também como um esforço para aprofundar a recepção de interpretações jurídicas intersubjetivas pelo direito moderno. Esse debate é promovido especialmente por um diálogo do direito da comunicação com estudos jurídicos mais dogmáticos ligados às áreas da comunicação social e da comunicação política no direito brasileiro. Com essa discussão, buscou-se firmar os últimos fundamentos teóricos do direito da comunicação, mas de modo que ele possa ser utilizado não somente como uma teoria que fornece padrões procedimentais e normativos para uma crítica social da violação de pretensões de comunicação e de reconhecimento na esfera pública política; ou mesmo como uma contribuição teórica ao debate da filosofia do direito, mas também como uma teoria jurídica operativa que pode ser aplicada no sistema jurídico e na jurisprudência de um estado democrático quando se trata de problemas envolvendo sua esfera pública política, como se busca fazer novamente a partir da dogmática jurídica brasileira no capítulo final da tese, agora a partir dos conceitos estruturais e jusfilosóficos do direito da comunicação. Os últimos objetivos da tese acabam sendo, portanto, pensar o direito da comunicação como filosofia dogmática direito, procurando oferecer uma leitura mais sistemática dos conteúdos normativos reconstruídos no diagnóstico da parte II com a ajuda da estrutura teórica do direito da comunicação, lançando ao debate algumas de suas possíveis implicações específicas no sistema jurídico brasileiro e na jurisprudência sobre o tema. Nesse sentido, algumas das principais pretensões normativas e direitos específicos que foram identificados nesses diagnósticos são reinterpretados também através do duplomovimento do direito da comunicação e das 160

novas interpretações intersubjetivas da filosofia do direito trabalhadas nos capítulos 8 e 9. Os princípios normativos mais destacados dentro do movimento institucional de direitos de comunicação são o direito a condições propiciadoras de relações de reconhecimento, a autodeterminação informacional, a proteção constitucionalmente justificada da esfera privada e a pluralidade de visões de mundo. Já aqueles relacionados à comunicação direito, forma mais abrangente dada ao princípio da publicidade, são a justificação do poder, a acessibilidade da informação de interesse público, e a publicização do poder social, pois não se trata de racionalizar somente o poder político, mas também o próprio uso das liberdades de expressão e comunicação dos indivíduos e dos atores sociais. Porque para o direito da comunicação, o “outro lado” da liberdade não é a igualdade, e sim a responsabilidade, ou a capacidade que se tem de oferecer as justificações devidas a cada tipo de discurso, e cada um na medida da natureza e da extensão da sua expressão ou comunicação, além das responsabilidades específicas atribuídas a cada participante, o que deverá ser identificado pelos intérpretes em casos concretos. De modo mais concreto, isso significou fornecer fundamentos jusfilosóficos para institucionalização de novos – e o aumento da legitimidade e aplicabilidade dos já existentes – princípios constitucionais que institucionalizam a proteção e a potencialização de uma esfera pública pluralista, critica e inclusiva no Brasil, como um complemento ao processo de legitimação da ordem jurídica - cujo foco na teoria discursiva do direito de Habermas é a garantia institucional das condições de racionalidade da deliberação democrática.(17) Não se trata, portanto, de somente justificar o direito de todos à comunicação como direito humano, pois apesar de urgente, constitucional e internacionalmente previsto como extremamente importante para a revitalização de processos de emancipação social (Fischer, 1984; Ferreira, 1997; Brittos & Collar, 2008; Intervozes, 2006), esse direito dificilmente se concretizará se ele não for também concebido como uma das pretensões normativas do conjunto de direitos e deveres de

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comunicação e de reconhecimento que garantem a esfera pública política, isto é, sem os quais carece de fundamento a legitimidade democrática do Estado de direito. Se a liberdade de expressão e o direito à informação não se realizam eqüitativa e materialmente sem o direito à comunicação(18), este também não ganha sua facticidade esperada sem o direito da comunicação, teoria que se apresenta como filosofia social do direito e também como filosofia dogmática do direito, fundamentando e operacionalizando o conjunto de pressupostos, direitos, deveres e instituições que devem garantir uma formação democrática e emancipatória da esfera pública política. Enfim, pode-se dizer que este estudo se alinha de modo normativo não somente com as teorias que buscam maior intersubjetivização da filosofia política e do direito na perspectiva da teoria crítica da sociedade, mas pretende também colaborar para a fundamentação e possível concretização de pretensões políticas de diversos setores da sociedade civil, do Estado brasileiro e de uma crescente esfera pública internacional, por mais reconhecimento e respeito aos direitos e deveres de comunicação e de reconhecimento em sentido amplo, como passos inevitáveis para o desenvolvimento de sociedades mais livres, igualitárias e democráticas.

Notas

A abertura da linha de estudo sobre uma “teoria intersubjetiva dos direitos subjetivos” (intersubjektive Theorie der subjektiver Rechte) é citada por Klaus Günther como uma das questões principais enfrentadas durante os encontros do grupo de trabalho que discutiu com Habermas a elaboração de Direito e Democracia, em “Im Umkreis von Faktizität und Geltung” [“No Circuito de Direito e Democracia”, tradução livre do alemão]. in. Blätter für deutsche und internationale Politik. 6, Berlin: Blätter Verlagsgesellschaft mbH, 2009, p.60. Habermas vem aventar ainda a necessidade de continuação dessa investigação em Entre Naturalismo e Religião (2007:299): “A individuação de pessoas naturais ocorre pelo caminho da socialização. E indivíduos socializados desta maneira só conseguem formar e estabilizar sua identidade no interior de uma rede de relações de reconhecimento recíproco. Esse fato tem conseqüências para a proteção da integridade da pessoa de direito – e para uma ampliação intersubjetivista do próprio conceito, que até o momento era tecido de uma forma demais abstrata (e talhado conforme as dimensões de um individualismo possessivo)”.

(4)

É especialmente o caso da teoria do reconhecimento de Axel Honneth (2003; 2011), da teoria da justificação de Rainer Forst (2004; 2007) e da teoria do direito de Klaus Günther (2004; 2005), que foram aproveitadas na medida em que problemas suscitados no decorrer da pesquisa sugeriram diálogos críticos e aproximativos com o pensamento de Habermas.

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“If communicative action were not embedded in lifeworld contexts that provide the backing of a massive background consensus, such risks would make the use of language orientated to mutual understanding an unlikely route to social integration. From the very start, communicative acts are located within the horizon of shared, unproblematic beliefs; at the same time, they are nourished by these resources of the always already familiar. The constant upset of disappointment and contradiction, contingency and critique in everyday life crashes against a sprawling, deeply set, and unshakable rock of background assumptions, loyalties, and skills.” Habermas, 1996:22).

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A idéia de “pretensões normativas” traz consigo a idéia de “normatividade”, que será aqui utilizada no sentido habermasiano do termo, isto é, como o levantamento inevitável de ideais contra factuais que orientam a ação social, seja ela teórica, prática ou estético-expressiva. No caso da razão comunicativa, além de seus pressupostos pragmáticos, em toda comunicação humana levantam-se pretensões de verdade, justiça e sinceridade/autenticidade, mesmo quando se trata de negar sua existência na realidade fática. Os sentidos mais específicos de normatividade utilizados durante este estudo serão definidos no próprio texto. Para mais sobre o que significa falar de normatividade em cada fase da obra habermasiana, ver Blotta, 2010.

(7)

Embora citada no estudo como Direito e Democracia, ou DD, utiliza-se especialmente a versão em língua inglesa, traduzida por William Rehg (Between Facts and Norms. Contribution to a Discourse Theory on Law and Democracy, MIT, 1996).

(2)

A obra Dialectical Imagination, de Martin Jay (1996) é considerada uma das melhores obras sobre a história e a forma de pensamento teórico e social conhecida como Teoria Crítica da Sociedade, surgida a partir das obras e trabalhos comuns dos teóricos que passaram pelo Institut für Sozialforschung (IfS) o Instituto de Pesquisa Social da Universidade de Goethe de Frankfurt am Main, fundado em 1923 e até hoje atuante no debate acadêmico alemão. Recomenda-se também Honneth, Disrespect, 2007; Nobre, A Teoria Crítica, 2004; Id. A Dialética Negativa de Theodor Adorno, 1998; Bittar, Democracia, Justiça e Direitos Humanos: estudos de teoria crítica, 2011; Blotta, Habermas e o Direito, 2010.

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O estatuto teórico maduro de Habermas, que compreenderia a estruturação do paradigma da teoria crítica comunicativa como uma forma distinta e original de teórica crítica elaborada a partir da teoria dos interesses que guiam o conhecimento até a formulação da ética do discurso, passando pela pragmática formal e a teoria do

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Blotta, V. S. L.

agir comunicativo, pode ser analisado histórica e teoricamente em Blotta, 2010:108-273. Ao lado especialmente dos quatro volumes de História da Vida Privada (Novais. Coord. Geral, 1997-1998), obra condutora do histórico, serão citadas obras como a de Meirelles, J. Imprensa e Poder na Corte Joanina, 2008; Pinheiro, Estratégias da Ilusão, 1992; Ribeiro, O Povo Brasileiro, 1995.

(9)

“Among Hegel’s left-wing disciples, i.e., from Karl Marx to Georg Lukács, it was considered self-evident that a theory of society could engage in critique only insofar as it was able to rediscover an element of its own critical viewpoint within social reality; for this reason, these theorists continually called for a diagnosis of society that could bring a degree of intramundane transcendence to light.” (Honneth, 2007:63-66. Itálicos nossos).

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“(...) The only protection against an empiricist abridgement of the rationality problematic is a steadfast pursuit of the tortuous routs along which science, morality, and art communicate with one another. In each of these spheres, differentiation processes are accompanied by countermovements that, under the primacy of one dominant aspect of validity, bring back in again the two aspects that were at first excluded. Thus nonobjectivistic approaches to research within the human sciences bring viewpoints of moral and aesthetic critique to bear - without threatening the primacy of questions of truth; only in this way is critical social theory made possible.” (Habermas,1984II:398). Para uma idéia inicial desta diferenciação da esfera pública política, ainda que com outro propósito, v. Blotta, 2010a:56-80.

(11)

Será utilizada a expressão comunicação pública neste estudo para designar não somente a comunicação dos meios não-comerciais e não-estatais, ou mesmo o termo jurídico brasileiro “comunicação social”, mas sim toda e qualquer comunicação que assume relevância pública, no sentido de um interesse coletivo, ainda que se trate da proteção e delimitação daquilo que é “privado”. Além das plataformas mais consolidadas da esfera pública, como as mídias eletrônicas (rádio, televisão, telecomunicações, internet) e a imprensa escrita, serão abordadas também esferas públicas informais da sociedade civil e espaços públicos formais do estado, de onde emerge o que se entenderá por comunicação política. Desse modo, a expressão “comunicação pública” designa o entrecruzamento entre comunicação social e comunicação política, campos específicos de atuação do direito da comunicação. De modo introdutório, v. Habermas, 1973:62-69.

(12)

A concepção de mídia de massa aqui trabalhada seguiu a definição presente em Chauí (2006:35-36), para quem o termo designa, a partir de Mcluhan e Benjamin, “objetos tecnológicos capazes e transmitir a mesma informação para um vasto público ou para a massa”. Inserem-se neste quadro a imprensa, o rádio, a televisão, mas a atual massificação dos computadores e da internet, apesar de seus déficits de acesso e novas formas de comunicação interpessoal, torna possível considerá-los também meios de comunicação “massificantes”. V. Blotta, 2008. v. também

Benkler, 2006. Ao tratar de modo mais abrangente o conjunto de meios de comunicação eletrônicos que, liderados pela imprensa (incluída a impressa), formam o espaço da “comunicação pública” no Brasil, não será utilizado aqui o termo em inglês media, e sim “mídia”, como indica a recepção do termo pela literatura corrente em comunicação no Brasil. V. Lima, 2011. Para evitar ambigüidades, no entanto, quando utilizado o termo, procurar-se-á especificálo com algum predicado, como “mídia de massa”, “mídia impressa”, ou “mídia digital”. Sobre este tema, serão utilizados trabalhos como os de Duvenage, 2003 e Wellmer, 1998. Para uma análise antecipada V. Blotta. The Fascination of Authority and the Authority of Fascination, 2011 (manuscrito).

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Habermas, 2006, Id, 2002c; Bucci, 2002; Bucci & Kehl, 2004; Schwartz, 2006, Wellmer, 1998, Duvenage, 2003.

(15)

(16)

Ver Günther, 2005:246; Id., 2009a.

Uma formulação clara desta tese é dada por Habermas em “Further Reflections on the Public Sphere (1992): “Within a discourse-centered theoretical approach, this idea is carried further to give rise to the notions that additionally the law is applied to itself: it must also guarantee this discursive mode by means of which generation and application of legislative programs are to proceed within the parameters of rational debate. This implies the institutionalization of legal procedures that guarantee an approximate fulfillment of the demanding preconditions of communication required for fair negotiations and free debates. These idealizing preconditions demand the complete inclusion of all partiers that might be affected, their equality, free and easy interaction, no restrictions of topics and topical contributions, the possibility of revising the outcomes, etc. In this context the legal procedures serve to uphold within an empirically existing community of communication the spatial, temporal and substantive constraints on choices that are operative within a presumed ideal one.” (Habermas, 1992:449. Itálicos nossos).

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“A grande maioria dos ordenamentos jurídicos do mundo reconhece dois direitos fundamentais ligados à comunicação: o direito à informação e o direito à liberdade de expressão. No entanto, o reconhecimento de tais direitos não assegura, por si só, a capacidade de se comunicar livremente, nem impede que se concentrem nas mãos de poucos os meios próprios para isto.” (Brittos e Collar, 2008:71).

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Referências

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Ditadura militar de 64 intervém em Goiás: história de um herói anônimo na defesa dos Artigo estudantes e presos políticos

Ditadura militar de 64 intervém em Goiás: história de um herói anônimo na defesa dos estudantes e presos políticos(1) Wagner Gonçalves (2)

RESUMO: O artigo aborda o período da ditadura militar brasileira (1964-1985), principalmente em Goiás - onde houve intervenção - e a perseguição de estudantes e outros opositores do regime de exceção, a partir da trajetória de Rômulo Gonçalves, então Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de Goiás. Com a finalidade de resgatar memória e verdade e de destacar a importância da resistência para a democracia atual, o autor apresenta alguns casos de violência contra estudantes universitários e os argumentos usados para defesa destes em habeas corpus impetrados por Rômulo Gonçalves. Palavras-chave: Ditadura brasileira. Advogados contra ditadura. Memória e Verdade. Resistência dos estudantes. ABSTRACT: The article presents the harassment of students and other opponents of the Brazilian dictatorship (1964-1985) from the trajectory of Romulo Goncalves, President of the Bar Association of Brazil (OAB), in Goias Section. The author analizes some cases of violence against students and the arguments used to defend them in habeas corpus filed by Romulo Goncalves in order to rescuing memory and truth and to highlight the importance of resistance to democracy today. Keywords:  Brazilian Dictatorship. Lawyers against dictatorship. Memory and truth. Resistance of students.

(1) O presente texto foi publicado originalmente como prólogo do livro Memória e Verdade: a Justiça de Transição no Estado Democrático Brasileiro,organizado por Inês Virginia Prado Soares e Sandra Akemi Shimada Kishi, publicado em 2009, Editora Forum. (2) Subprocurador-Geral da República aposentado. Atualmente é Assessor da Comissão Nacional da Verdade.

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Gonçalves, W.

Ainda em 1971, nos papeis impressos do Governo do Estado de Goiás, nos de suas autarquias e naqueles da Caixa Econômica do Estado – Caixego (de há muito extinta) constava a seguinte frase, em letras maiúsculas: “A REVOLUÇÃO DE 64 É IRREVERSÍVEL E CONSOLIDARÁ A DEMOCRACIA NO BRASIL”. Passados mais de 05 anos do golpe, ainda se tentava vender a idéia de que a “ditadura não era ditadura”, porque tinha “objetivos democráticos”. Os fins, mais uma vez, estavam a justificar os meios. E esses eram brutais. Estava-se sob o governo do General Emílio Garrastazu Médici – um dos períodos mais negros da história do País. A tortura, sempre negada pelos meios militares, campeava solta; o “dedo-duro” virou personagem da realidade brasileira; qualquer um era preso (sem mandado judicial) e ficava incomunicável por “crime de opinião”; praticava-se toda sorte de violência e arbitrariedades contra os direitos humanos e a democracia. E ainda se insistia, leviana e dolosamente, na tese de que o Golpe de 64 viera para “restabelecer” a democracia no Brasil. A ditadura implantada no País foi implacável com a população do Estado de Goiás. Tão logo o Supremo Tribunal Federal deferiu o habeas corpus a favor do Governador de Goiás, Mauro Borges, em 23 de novembro de 1964, declarando que ele não poderia ser processado e julgado por Auditoria Militar, em virtude de ter direito a foro privilegiado, por força da Constituição, tornou-se inevitável a intervenção no Estado. O julgamento do STF foi memorável. Sobral Pinto era o advogado e sua sustentação oral impressionou a grande audiência, composta por mais de 1.000 pessoas. Audiência superior, inclusive, àquela que assistira o julgamento do habeas corpus a favor do jornalista Hélio Fernandes, no ano anterior (1963). O relator, Ministro Gonçalves de Oliveira, ao deferir o habeas corpus, salientou que “soou a hora da Democracia e que a ordem é ensarilhar as armas e trabalharmos unidos e em paz pelo Brasil”. Foi um momento de júbilo. O Ministro Pedro Chaves “declarou enfaticamente que ainda lhe resta ânimo para conceder a ordem de habeas corpus que nos foi impetrada, para salvar com 166

ela a ordem jurídica, único caminho pelo qual o Sr. Presidente da República poderá conduzir a Nação brasileira aos seus gloriosos destinos, como é o seu desejo.” Como anotou a edição do Jornal do Brasil, de 24 de novembro de 1964, “o voto do relator foi acompanhado por todos os ministros Evandro Lins e Silva, Hermes Lima, Pedro Chaves, Hahnemann Guimarães, Cândido Mota Filho, Victor Nunes Leal e Antônio Martins Vilas Boas. O Presidente, Ministro Ribeiro da Costa, declarou que o voto do Ministro Gonçalves de Oliveira é ‘profundo e patriótico’”. A euforia que se seguiu ao julgamento da mais Alta Corte, e em todos os rincões democráticos do País, principalmente no Estado de Goiás, onde a população cercara o Palácio das Esmeraldas, sede do Governo, para, cantando o hino nacional, cumprimentar o Governador, contrastava, de maneira quase absurda, com a nota que o Presidente/Marechal Castelo Branco entregava à imprensa. Eis a íntegra da nota, que é, como foi, muito mais do que uma ameaça: “Ao tomar conhecimento da decisão hoje proferida pelo Supremo Tribunal Federal, desejo reiterar a determinação de acatar as decisões judiciais. (sic) Num período normal não precisaria ir além, tanto são conhecidos os propósitos do Governo no sentido de preservar a ordem jurídica. Contudo, uma custosa, organizada, e, de algum modo, inexplicável campanha publicitária tem buscado confundir a opinião pública nacional em relação à verdadeira situação no Estado de Goiás. Nesse sentido, tudo leva a crer, pois salta aos olhos, que vultosas quantias, de origem desconhecida, estão sendo metodicamente despendidas. Pretende-se até envolver no assunto a estabilidade do regime e das instituições, como se as pudesse afetar o normal exercício das atribuições do Presidente da República. Do mesmo modo, que se tem buscado confundir e equiparar inquéritos procedidos em outros Estados com o que se realizou em Goiás. E inverdades foram urdidas perante o Judiciário com o fito de fazer crer em coação por parte do Presidente da República. Para atingir a admirável sensibilidade dos brasileiros, tem-se também desejado ressaltar a

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Ditadura militar de 64 intervém em Goiás: história de um herói anônimo na defesa dos estudantes e presos políticos

existência de uma perseguição política por parte do Governo Federal. Não contribuiremos, porém, com o silêncio para que o dinheiro espúrio engane os brasileiros de boa-fé. De fato, dia a dia se acumulam novas provas quanto ao propósito do Governador de Goiás em transformar o seu Estado num foco permanente de agitação. Aliás, desde os primeiros dias da Revolução, numerosas denúncias apontam as vinculações entre a administração estadual e conhecidos elementos subversivos. E em face dos inquéritos, então instaurados, foram muitos os colaboradores imediatos do Governador atingidos pelo Ato Institucional. Bastará lembrar que três dos seus Secretários de Estado, além de inúmeros outros funcionários da imediata confiança, tiveram de ser punidos. Apesar desse acúmulo de provas, não se julgou o Presidente da República suficientemente informado para aplicar sanção ao Governador de Goiás, que reiteradamente proclamava o seu alheamento àquele estado de coisas ocorridas no seio da sua administração, bem como a sua calculada adesão à Revolução. Entretanto, investigações posteriores não somente tornaram mais nítidas as vinculações existentes entre a administração estadual e os fortes núcleos subversivos, inclusive estrangeiros, mas o tem ainda demonstrado a continuidade de idêntica orientação política. Os próprios elementos alcançados pelo Ato Institucional permanecem na intimidade do Governador estadual. Assim, contrariando a orientação da sua agremiação partidária, e quando seria de esperar que se fizesse leal colaborador da nova fase da vida nacional. O Governador de Goiás, mediante atos inequívocos, demonstra o propósito de abrigar e utilizar naquele Estado os que pensam lançar mão de violência para destruir a Democracia. Com essa ameaça não deve, não pode e não transigirá o Governo da República. A Democracia será mantida. E o Governo sabe bem discernir entre oposição e contra-revolução. Daí ter como assente que um dos mais fecundos lances da História Republicana não será perturbado pelos que imaginam falsear a Lei e à sua sombra articular a destruição do

movimento revolucionário nacional. Tentativa que surge com nitidez tanto maior quando se observa o empenho com que remanescentes da corrupção e da subversão ocorrem em apoio do Governador de Goiás. Seria impatriótico permitir que, tentando abrigar-se nos refolhos da Lei, pudessem os adversários da revolução preparar livremente a sua destruição. De fato, eles não o farão. Até porque devemos confiar em que a decisão de agora não seja pretexto para que qualquer Poder do País deixe de cumprir o seu dever na repressão às tentativas como a que ora se verifica no Estado de Goiás. Pode, pois, a Nação estar certa de que dentro das atribuições conferidas pela Constituição e pelas Leis, há uma determinação para impedir que subsista a atual ameaça à integridade nacional e ao futuro da revolução. Como Presidente da República e servidor da revolução saberei cumprir o meu dever. E, mais que isso, conto que os demais poderes já integrados nos ideais do movimento de 31 de março se juntarão ao Executivo para a conservação daqueles patrióticos objetivos. Assim, advertida sobre a trama que se organiza no Estado de Goiás com o objetivo de reinstalar o sistema anterior de agitação e subversão, a Nação dará ao Governo o apoio de que necessita para assegurar a tranqüilidade nacional e o conseqüente bem-estar de todos os brasileiros.” (grifou-se – publicado, na íntegra, no JB de 24.11.1964 – la. Caderno, pág. 3) O “comunicado” à população do Marechal Castelo Branco, nas circunstâncias, foi um anátema ao Governador de Goiás, uma condenação sem direito de defesa, e também uma ameaça aos demais governadores, que deveriam se aliar ao Presidente da República, sem quaisquer devaneios de independência. No dia seguinte, a Coluna do Castelo – memorável colunista do JB - Carlos Castelo Branco - já registrava: “Esperada intervenção federal em Goiás. Declarando que cumprirá as decisões judiciais, o Marechal Castelo Branco deixou claro o inconformismo do Governo com a retirada do processo da área da Justiça Militar. Convencido de que o Governador de Goiás prepara a contrarevolução e continua envolvido numa trama

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subversiva, manifestou o Presidente a esperança de que os outros Poderes da República não negarão apoio às mesmas medidas destinadas a sufocar o movimento anti-revolucionário.” ... “O Presidente Castelo Branco encampou, assim, as acusações do inquérito militar e a posição da linha dura do caso de Goiás, mas, inspirado no seu dever constitucional, pretende encaminhar o desfecho da crise nos limites da lei, recorrendo à intervenção que restauraria, no seu entender, a segurança da União e da revolução numa área ameaçada pelo que identifica como um movimento subversivo.” (JB de 24.11.64) Ao mesmo tempo em que o Governador de Goiás não acreditava na intervenção, porque “confia no espírito de Justiça do Presidente Castelo Branco”, este, por seus Ministros, articulava o apoio de parlamentares e dos governadores. Magalhães Pinto, então Governador de Minas Gerais, imediatamente, divulgou nota louvando a atitude do Presidente. Nei Braga, Governador do Paraná, foi enfático: “Li com a mais profunda atenção a nota que V. Exa. distribuiu com relação à situação criada em Goiás. As suas afirmações ao povo brasileiro sobre ameaças que pesam sobre os ideais democráticos da revolução, a qual tanto entregamos os nossos e os destinos do País, por todos devem ser meditados e as medidas de defesa que se tornem necessárias só podem merecer os mais irrestritos apoios.” O Governador do Amazonas, Artur César Ferreira Reis, não foi menos subserviente: “Trago à Vossa Excelência, no momento histórico em que estamos vivendo, o meu aplauso às palavras cheias de energia, denunciando o processo antirevolucionário que pretende a destruição do regime instaurado em abril.” O Governador do Rio Grande do Norte, Aluísio Alves, que depois seria perseguido pelos militares golpistas, declarou: “na defesa dos ideais vitoriosos de março, no qual se tornou, por decisão nacional, o intérprete e defensor, o Presidente Castelo Branco deve contar nessa hora com a solidariedade de todos os brasileiros que pretendem ver consolidada a ordem constitucional.” 168

Virgílio Távora, Governador do Ceará, enviou telegrama ao Marechal Castelo Branco manifestando seu apoio, em face da decisão do Supremo Tribunal Federal. O Governador de São Paulo, Ademar de Barros, sempre cauteloso, não se pronunciou sobre a nota da Presidência ou o julgamento do STF no dia 23 de novembro de 1964, nem no dia seguinte. Carlos Lacerda, na oportunidade, investiu contra a composição do Supremo Tribunal Federal, ao declarar, depois de sair do Ministério da Guerra, onde tivera uma audiência com o Ministro Artur da Costa e Silva: “já sabia em Nova Iorque que o habeas corpus seria concedido, pois, contando com cinco Ministros que lá não poderiam estar, só se podia esperar esse resultado do STF. Nunca vi abacaxi dar banana, nem bananeira maça.”(3) Isso não evitou que ele fosse, posteriormente , cassado pelo Governo Militar. Formou-se, portanto, logo após a concessão do habeas corpus ao Governador Mauro Borges e a nota do Presidente Marechal Castelo Branco, o ambiente político necessário à intervenção em Goiás, bem percebida, logo no dia seguinte, pela “coluna do Castelo”. Em 26 de novembro do mesmo ano (1964), após aprovação forçada pelo Congresso Nacional, é realizada a intervenção em Goiás. Já se escreveu sobre esse período, mas queremos abordar aqui, como resgate da memória e verdade, alguns fatos, a maioria desconhecidos, e alguns heróis anônimos, que souberam resistir em Goiás, num período em que a maioria, amedrontada, passava, como Judas e mesmo Pedro, a acusar ou negar velhas amizades, idéias ou ideais. Se nos outros Estados, a ruptura do regime democrático já criava uma situação de medo e perseguições, em Goiás sob intervenção a situação passou a ser extremamente dramática. Os chamados “dedos-duros” viraram praga; funcionários eram demitidos e presos sem qualquer justificativa. Estudantes, inclusive menores, eram detidos e ficavam incomunicáveis. Ser acusado de subversivo já era, por si só, uma condenação. E a subjetividade das denúncias chegava às raias do absurdo. Os IPMs (inquéritos policiais militares) foram abertos aos milhares, envolven-

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do incontáveis profissionais, principalmente, estudantes, intelectuais e professores. Prisões se sucediam. E todos estavam submetidos à Auditoria Militar em Juiz de Fora – MG, exatamente para aumentar os constrangimentos às vítimas e aos seus advogados, que eram poucos. No verdadeiro estado de terror que se instalou em Goiás, alguns estudantes e profissionais se destacaram pelo seu destemor, pela coerência e força moral. Dentre esses, um Rômulo Gonçalves, então Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção de Goiás, passou a defender todos aqueles que o procuravam, acusados de “crime de opinião”. Foi taxado de comunista, esquerdista, subversivo, louco. Algumas de suas opiniões: “A tarefa dos divergentes, dos que não se acomodam, é muito mais espinhosa do que a dos que se calam e transigem. O idealista sincero é que compõe a história. O ‘criminosos político’ é, antes de tudo, um descontente, não um criminoso. A pessoa humana é sagrada. Seus direitos, inalienáveis. Política é a arte de governar, dosando, com humanismo e justiça, as relações entre o homem e o Estado. Não há boa política que autorize a agressão ao homem, mesmo o mais perverso homicida. Respeito não se impõe, conquista-se. Quando se quebra a infra-estrutura jurídica de um povo, mesmo através do mais tímido gesto ilegal, a sociedade entre em paralisia, o organismo social definha, como acontece com o indivíduo que teve uma de suas pequeninas vértebras espinhais quebrada.” Sua atuação profissional e idéias impossibilitaram-no de ser alçado ao Tribunal de Justiça de Goiás, apesar de indicado duas vezes, em lista tríplice, pelo quinto constitucional, representando a advocacia. Teve contra si dois IPMs. Sua casa foi cercada por tropas do Exército de madrugada, para atemorizá-lo e à sua família: “Dois caminhões com soldados chegavam às 3.00 horas. Cercavam a casa, entravam no jardim e ali permaneciam, ameaçando invadir a residência, até às 5.00 horas. Depois, sem aviso, voltavam ao quartel.” Soube Rômulo Gonçalves se conduzir “sem coragem nem medo”, como dizia: “Os espíritos fortes devem postar-se além do medo e da coragem, o que é difícil. Quando se tem medo ou

coragem, as emoções nos toldam o raciocínio e obturam os canais da inteligência.” Espiritualista, afirmava: “Se o agressor soubesse o mal que a si mesmo se impõe, abster-se-ia da agressão. Mas a ignorância cega e mata.” Foi um defensor intransigente dos estudantes goianos, acusados de crime contra a famigerada segurança nacional. Encimava suas petições, durante o governo do General Costa e Silva, com palavras deste, proferidas na inauguração da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, em 16.9.1968 – CB de 17.9.68: “Eu creio na juventude, como todos os membros do meu Governo, porque se não acreditássemos nela teríamos de declarar a falência da Nação.” “Nós queremos governar com a juventude, para a juventude, porque já estamos no fim de nossas carreiras.” Entretanto, a realidade era bem outra. Apesar de negada pelo maior mandatário do País, a violência contra os estudantes foi uma constante durante a ditadura militar, fato que se tornou público e notório. Tal violência culminou na prisão de mais de 800 estudantes em 1968, no último congresso da UNE, em Ibiúna-SP. As prisões geraram manifestações estudantis em todos os recantos do País. E em Goiás não foi diferente. Estudantes eram presos por qualquer motivo. Bastava um ou mais estudantes estarem andando na calçada, nas imediações da praça onde a manifestação se realizaria, para serem presos. Foi o caso de Olga D’Arc Pimentel, presidente do Grêmio do Instituto de Educação do Estado. Ocorreu no chamado “dia do protesto” - 22 de outubro de 1968. Ela saia de seu trabalho, “na Avenida Tocantins, em companhia da estudante Keila Diniz, para almoço. Na altura da Av. Araguaia encontraram um grupo de estudantes, que se dirigiam para o centro, onde havia sido programada manifestação de protesto contra as prisões de estudantes, que participavam do Congresso da Une, em São Paulo”, diz o advogado Rômulo Gonçalves na petição de habeas corpus. Andavam na calçada, “exatamente no instante em que um choque da Polícia Militar do Estado

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subia a Avenida Araguaia. Houve correria. Vários estudantes homiziaram-se nas residências próximas. Entre eles, a paciente, com um pugilo de moças, buscou abrigo no jardim de uma bela mansão, sem lograr ingresso no edifício. Fácil foi aos policiais escorraçá-las.” Olga já estivera presa através de um absurdo “flagrante”,que foi anulado pelo próprio Superior Tribunal Militar. Por ter ficado presa no Quartel da Polícia Estadual ela já era “visada” pelos policiais. Foi presa novamente, apesar dos demais estudantes detidos terem sido soltos em seguida. As testemunhas do “flagrante” não tipificaram nenhum ato praticado pela paciente. Limitam-se a afirmar que se tratava de um grupo de estudantes, “que ia descendo por tal avenida em manifestação contrária ao Regime atual do País”. Com a prisão, Olga recebeu nota de culpa sob a alegação de ter sido presa em flagrante e lhe foi imputado o delito constante do art. 33, item II, e art. 38, item IV, do Dec. Lei 314, de 15.3.1967 – Lei de Segurança do Estado, e os autos foram encaminhados à IV Auditoria de Guerra de Juiz de Fora – MG, ficando a paciente custodiada no 1º Batalhão da Polícia Militar do Estado de Goiás. Por aí se vê, a dificuldade, na época, para se exercitar o direito de defesa, em Goiás, aos acusados de crimes contra a segurança nacional. Tudo dependia de Auditoria distante, situação que onerava as vítimas e seus defensores. Depois de evidenciar a nulidade do “flagrante”, o absurdo da prisão, Rômulo Gonçalves investe contra a famigerada lei de segurança nacional. Numa época em que o medo imperava e que era comum deixar de cumprimentar, em Goiás, antigos amigos porque “eram subversivos” - e advogados serem presos juntamente com seus clientes - a veemência e a clareza das palavras impressionam. Ao falar, no habeas corpus, sobre a criação, pelo Governo Militar, do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, pela L. Federal nº 4.319/64, Rômulo Gonçalves já previa que tal órgão era um ato de mera propaganda: “De que 170

nos valeria a instalação de tão eminente órgão, se jovens são perseguidos e massacrados pela Polícia, se cidadãos são vilipendiados nos mais comezinhos direitos, quais sejam os de liberdade e integridade física e moral?” No caso de Olga D’arc Pimentel, ela fora presa, anteriormente, por ter se apresentado à Polícia Federal e contra ela foi forjado um flagrante. Solta por um “habeas corpus, agora ela era presa novamente, sem qualquer base legal.” “É importante notar que a jovem paciente, moça pobre e inteligente, tem sido vítima da ojeriza gratuita de elementos da P.M.” Menciona ainda: “Logo após, num ato de repugnante arbítrio, a Direção do Instituto de Educação do Estado, onde (a paciente) cursa o 3º ano normal, tranca a matrícula de seis alunas, entre as quais Olga D’arc Pimentel, sem abertura de nenhum processo, sem nenhuma oportunidade de defesa e sem audiência da Congregação, em total desapreço a recomendações taxativas do Regimento Interno do Estabelecimento. A punição capital teria sido motivada pelo fato de as alunas em referência terem, em comissão, a pedido de 700 outras colegas, convidado a Diretora para um diálogo sobre a Portaria do Secretário do Estado da Educação, que determinara o fechamento dos Grêmios Estudantis dos estabelecimentos oficiais.’ (....) Prossegue: ‘Excelências. Não se pode tratar uma jovem de 20 anos, plena de vitalidade e beleza interior, como relés criminosa, se nenhum gesto tipicamente condenável praticou. Jamais se logrará a ordem, reprimindo com violência as explosões naturais da juventude. A intranqüilidade e a inconformação varejam todos os lares, dos países mais adiantados aos menos desenvolvidos. O ódio é implícito reconhecimento de fraqueza, porque, como assinala o próprio Spinosa ‘não conseguimos odiar aqueles que podemos, confiadamente, dominar’. A mocidade aqui ou alhures está sedenta de compreensão e amor. Abra-se-lhe um crédito ilimitado de confiança. É ela resultado dos nossos erros e de nossas deformações, como gerações mais velhas. Ainda ontem, dia 5.11.1968, Sua Santidade Paulo VI afirmou que “a insatisfação da juventude de hoje nasce de

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uma herança de exemplos de virtudes medíocres e hipócritas e de uma rede de laços sociais privilegiados para alguns e mortificantes para outros’. (Jornal do Brasil de 6.11.1968, 1a. Cad. Pág. 2). E o sumo pontífice tem razão. Neste pedido vemos uma estudante de excepcionais qualidades, sendo perseguida pelos sátrapas da violência, que lhe impingem ‘flagrantes’ a granel, que lhe impõem prisão quando querem e quanto mais se lhes destroem as arremetidas ilegais, maior lastro de acusações se acumulam. O ‘flagrante’ nulo de ontem, o cancelamento absurdo da matrícula de hoje, embora atos que só poderiam exaltar a personalidade da vítima, porque ilegais, vêm servir de sustentação a uma terceira violentação de direitos. Nas peças acusatórias, ao que se poude apurar, são levantados os fatos anteriores como maus precedentes. Por tudo isso, verifica-se que não há justa causa para a prisão e muitos menos para o ‘flagrante’, porque não se tipificaram, como quer a lei penal militar, os delitos dos artigos 33, item II e 38, item IV, da Lei Securitária do País.” (os negritos não são do original) Em defesa dos estudantes, Rômulo Gonçalves aproveitava, muitas vezes, as palavras do Ministro Francisco Correa Melo, do Superior Tribunal Militar: “estudante na frente da polícia é pior que capa de toureiro na frente do touro.” E foram inúmeros os estudantes goianos presos, incomunicáveis, espancados, torturados, levados de uma prisão para outra, nos desvãos dos porões militares e policiais. Era profundamente difícil saber para onde tinha sido levado o preso. Ora estava em Goiânia mesmo, ora em Juiz de Fora, ora em Brasília, ora em “lugar nenhum”, mas desparecido. Em outro habeas corpus, em defesa do estudante Nelson Cordeiro, também preso em “flagrante” e levado para Juiz de Fora, Minas Gerais, à disposição da IV Auditoria Militar, Rômulo Gonçalves relata: “Verifica-se, pois, que o crime do paciente foi conduzir um cartaz cujos dizeres não foram conhecidos, afixado a um pedaço de madeira, e outros debaixo do braço. Atestam os próprios policiais, no entanto, que nenhuma ação apuraram por parte do paciente, seja de incitamento ao povo, seja de desrespeito a qualquer autoridade.

Não usou da palavra e nenhum gesto teve de reação contra a polícia, a não ser procurar evadir-se. Vale notar que as testemunhas de acusação são policiais, integrantes da P.M. Estadual, declaradamente hostis aos estudantes. A animosidade entre a polícia e a classe estudantil é notoriamente conhecida em todo o país. (...) Bastaria essa suspeição para viciar o ‘flagrante’. No final do habeas corpus: “A juventude esta sedenta de carinho, de compreensão e amor. Quem não vislumbra um elo comum na explosão da juventude de todo o mundo? Em Berlim, em Tóquio, Praga, Berkeley, Guanabara ou Goiânia, os epítetos são os mesmos e trescalam à mesma insatisfação e rebeldia. Será que ninguém percebe que o descontentamento do jovem é indício de vitalidade a ensejar a dúvida e a indagação, para opção por um roteiro melhor? São nossos filhos, inundados de civismo, num país de analfabetos, que querem revisão de arcaicas estruturas, fraturadas nos pontos de maior carga, e que nos tornam eternos tributários de povos desenvolvidos. Talvez não precisem eles seus objetivos, mas sentem, como ninguém, a falência dos métodos superados. Enfim, é a VIDA, na sua imensa sabedoria, fala pelo espírito puro da juventude, que pode ter excessos de audácia, de inovação ou de desordem, mas que jamais se engajou em empreitadas dolosas do crime ou do interesse pessoal. Assim sendo, espera que esse Colendo Pretório (STF), sustentáculo das garantias individuais, conceda a ordem, por ausência de justa causa para a ação penal, por nulidade do ‘flagrante’ ou por excesso de prazo de prisão, restituindo ao regaço de pobre família o convívio do jovem vitimado por tanta coação. (de Goiânia para Brasília, em outubro de 1968).” (os negritos não estão no original) Em defesa dos estudantes Juarez Ferraz da Maia e Marcantônio Dela Côrte, com 20 e 21 anos de idade, respectivamente, presos no dia 13 de novembro de 1967 em Goiânia, por agentes da Polícia Federal, Rômulo Gonçalves impetra habeas corpus junto ao Superior Tribunal

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Militar. A petição é em si um libelo contra as arbitrariedades cometidas pelos algozes da ditadura. Por terem sido encontrados com panfletos de protesto contra a venda de grandes áreas de terras aos americanos, contra o imperialismo, contra a esterilização de mulheres na Amazônia, contra o arrocho salarial e contra o acordo MEC-USAID, foram eles presos em “flagrante” e denunciados perante a IV Auditoria Militar em Juiz de Fora, MG, e despejados na custódia da Casa de Detenção de Goiânia, descrita como “uma das masmorras que deslustram a dignidade do povo goiano e constituem, pela imundície, pelo descaso e pelo abandono, terrível foco de infecção patogênica. Ali foram depositados como verdadeiros irracionais, proibindo-se-lhes até os banhos de sol, indispensáveis ao equilíbrio de saúde. Há mais de 30 dias não recebem luz solar direta.” Consta da impetração: “Ora, os fatos feridos no malsinado panfleto, cuja redação, como ficou comprovado no IPM, não é de responsabilidade pessoal dos pacientes, são verídicos, assoalhados, dia a dia, pela imprensa de todo o País. Quem ignora que os estrangeiros compraram vastas extensões de terras em Goiás, na Bahia e outros Estados do Norte e Nordeste? Quem ignora que nosso país conta com 50% de analfabetos, infelizmente? Que a população rural vive em estado de penúria, que a FOME ronda os lares operários, que milhares de recém-nascidos morrem antes de um ano de vida, que o Governo – certo ou errado – impoz o ARROCHO SALARIAL aos proletários, que nosso sistema democrático é uma fantasia, porque se prendem estudantes, intelectuais, operários, religiosos ou qualquer cidadão, sem o mínimo respeito às garantias consignadas na Constituição e nos solenes compromissos assumidos na órbita internacional, que nossos sistema de publicidade está, em grande parte, nas mãos de grupos estrangeiros etc? Ainda há pouco a conferência nacional dos Bispos do Brasil chamou, energicamente, a atenção do Governo para os abusos do poder, para as violações que se perpetram em todos os Estados 172

pela Polícia e, que é mais para lamentar, com o endosso de grande parte das Forças Armadas. Mesmo dentro desse Colendo Tribunal (Superior Tribunal Militar), vozes respeitabilíssimas, como do Ministro Pery Bevilaqua, do saudoso Ministro Ribeiro Costa, do Ministro Saldanha da Gama, Murgel de Resende e do próprio Presidente, Gel. Mourão Filho, e de muitos outros, teceram severas críticas aos excessos do Governo e às liberalidades excessivas prodigalizadas a grupos estrangeiros. Haja vista o caso do memorável voto proferido pelo Ministro Saldanha da Gama, eminente militar que integra a elite de nossas Forças Armadas, no HC concedido ao septuagenário Antônio F. Rux, lembrando a invasão de barcos pesqueiros estrangeiros em águas territoriais do nordeste e ampliação da faixa de águas territoriais argentinas, sem o menor protesto do Governo brasileiro, assinalando, verbis: “O militar vive melancolicamente a apreciar esses casos de segurança interna. Basta que um estudante pixe um muro no Pará e toda a Força Armada se move contra ele, enquanto os serviços de informações brasileiros não sabem a respeito do que se passa no exterior sobre a nossa segurança.” Lembre-se ainda a Comissão Parlamentar de Inquérito designada para apurar as possíveis irregularidades na aquisição de vastíssimas áreas do território brasileiro por AMERICANOS. As críticas soezes desferidas pelo ex-Governador CARLOS DE LACERDA ao Governo do País, em tonalidade muito mais grave e violenta, atingindo mesmo as raias do absurdo, quando assinala que ‘a corrupção hoje no país tem as garantias das baionetas’, como se lê em UH (jornal Última Hora) de 14.12.1967, pág. 2, em artigo de Danton Jobim. E porque a Polícia Federal não prende o cidadão CARLOS LACERDA, homem amadurecido em anos, que sabe o que fala e que deve estar cônscio da responsabilidade que assumiu em tão leviana afirmação? No entanto, jovens estudantes são encarcerados ao menor gesto, simplesmente porque repetem, em tom menos agudo, o que inúmeros homens públicos afirmam das tribunas, dos comícios e dos comentários de jornais. (...)

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Ora, noticiar fatos repisados pela imprensa de todo país, devidamente comprovados, jamais poderá constituir ameaça ou atentado à segurança nacional, como tipifica o art. 38, item II, do Dec. 314, de 15.3.1967. E se são verídicos, não há igualmente falar em infração ao art. 14 da Lei de Segurança do Estado. Se ofensa houve à pessoa do ilustre Presidente da República ou a qualquer de seus auxiliares, o que não ocorre, sem qualquer agressão à segurança da Pátria, seria quando muito de cogitar-se de delito da competência privativa da Justiça Comum e, mesmo assim, de ação privada. Além de tudo isso, vale ponderar que os jovens são arrebatados, impulsivos, drásticos, em suas singelas e puras intenções. Não prevêem, não temem e não guardam conveniências. O ardor dos vinte anos faz-nos ferver de civismo, conduzindo-nos, muitas vezes, a posições radicais, inconsequentes, mas sempre geradas pelos ‘impulsos naturais da juventude’, como assinalou com muito acerto o Min. Mourão Filho. Isso não é crime e, muitos menos, crime contra a segurança da Pátria. Infeliz de um povo, cuja mocidade não vibra com os grandes interesses nacionais ameaçados pelo poder econômico alienígena. A reação é própria dos estudantes. Em toda a história do país, a juventude foi terreno fértil, em que floreceram o gênio e e o heroísmo, o martírio e a pureza, o sacrifício e o amor à Pátria. Arrebatados, sim, mas nunca desonestos ou vendidos. Na puberdade forjam-se os grandes estadistas que amanhã empalmarão as rédeas do poder. Os mais ilustres homens públicos de hoje carpiram também injustiças sem nome nas prisões da ignomínia e do abuso de autoridade. Seria de se indagar-se a esse conspícuo Sodalício, glória das tradições militares do país, quantos de seus insignes componentes já não brandiram a palavra violenta contra os poderosos, na sua mocidade. Relembrem-se palavras de outro do Manifesto dos Bispos do Brasil: “Acreditem na capacidade de sua juventude. Nós adultos não podemos ter o mesmo ritmo dos jovens, mas precisamos aceitar a contribuição do dinamismo deles. Não cometamos

a loucura de provocar o desespero da juventude, pelo endurecimento de posições. Abramo-nos a um diálogo efetivo, capaz de chegar a programações comuns. Se é esta a hora dos jovens, não nos atrazemos ao encontro marcado pela história. Fujamos às ilusões da violência. A violência pode ser a solução mais fácil, mas não será a mais construtiva.’ (grifos e sublinhados do original) (Correio da Manhã, de 1.12.1967, pág. 10). Como se vê, não há nenhum crime, notadamente contra a segurança nacional. Não há, pois, justa causa para o processo e muito menos para a prisão em flagrante. Se não há crime, como falar em prisão em flagrante? Logo, o auto de prisão em flagrante é nulo de pleno direito. É ato de prepotência, de abuso de autoridade. Infelizmente, as autoridades militares podem investir contra qualquer desafeto. Basta que contra ele se lavre, ou melhor, se forje um flagrante, como ainda há pouco ocorreu em Goiânia, quando o Depart. de Polícia Federal prendeu dois cidadãos como se fossem pilhados em flagrante delito de subversão dos arts. 36 e 41, salvo engano, da Lei de Segurança. No entanto, ambos foram detidos no seu trabalho. A IV auditoria revogou o flagrante e mandou soltá-los. Mas, muitas vezes, tais abusos de poder geram tremendas angústias em suas vítimas, produzindo irreparáveis cicatrizes para o futuro. Assim exposto, retorna o Impetrante às portas augustas dessa mais Alta Corte Militar Brasileira, para reclamar a reparação de uma injustiça, como em tantas outras ocasiões.”(De Goiânia para a Guanabara, por via postal, em 16 de dezembro de 1967)”. (Os negritos foram aqui colocados e os sublinhados e demais sinais são do original) Outro habeas corpus, impetrado em 08 de novembro de 1966, ao Superior Tribunal Militar, a favor dos estudantes Carlos Fernando Filgueira Magalhães, estudante de medicina, José Pereira Peixoto Filho, de filosofia, e Eduardo Dias Campos Sobrinho, secundarista (menor), que estavam presos no 10º Batalhão de Caçadores em Goiânia, por ordem do Major Eurides Curvo, encarregado do célebre IPM das passeatas estudantis de Goiânia (21 a 23 de setembro de 1966) e colocados à disposição da IV Auditoria Militar de Juiz

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de Fora, em regime de incomunicabilidade, evidencia o absurdo, a aberração, o desprezo às normas legais e a contínua violação aos direitos humanos na época. Os estudantes em Goiânia, no período assinalado (de 21 a 23 de setembro de 1966) “promoveram ampla manifestação de rua em solidariedade a seus colegas de Minas, S. Paulo e Guanabara, protestando contra graves arbitrariedades policiais do Governo e contra a imposição de taxas escolares até então não exigidas.” Foi instaurado, em função dessas manifestações, o “famoso IPM da Passeata de Goiânia”, presidido pelo Major Eurides Curvo, com pessoal assistência do 2º Promotor Substituto da IV Auditoria Militar de Juiz de Fora, Dr. Joaquim Simeão Faria Filho, autoridade de triste memória, que foi completamente servil ao regime militar e a seus propósitos. Referido IPM pretendia localizar “quixotescas ameaças ao regime implantado no País pela Revolução, em que estariam os imberbes estudantes seriamente comprometidos.” Presos os estudantes, no dia 25 de outubro de 1996, por ordem do encarregado do IPM, não se lhes apresentou nota de culpa, decreto de prisão preventiva – nem estavam em flagrante delito - ficaram incomunicáveis em um Batalhão em Goiânia. Não se lhes permitia contato pessoal com seu advogado e familiares. Não se nomeou curador ao menor. A única informação: “estavam detidos para averiguações, em respeito à segurança nacional.” São enfáticas as razões do advogado, que evidenciam o total cerceamento do direito de defesa: “Os pacientes são jovens universitários e, como tais, de aguçada inteligência para discernir as indébitas violências praticados contra o povo, bem como para repudiar os atos de vandalismo que tanto evidenciam a ignorância de certas autoridades, sempre inclinadas ao recurso estranho da fôrça para calar a argumentação irrespondível. Por isso mesmo, são postos em severa custódia e impossibilitados de esclarecer seu defensor. De outro lado, nenhuma certidão é permitida, para que se não logre instruir, como recomenda a lei, o presente pedido. Elimina-se dessa maneira, com uma violência a mais, a defesa, e robustece-se inacreditavelmente a injustiça 174

da coação. Quem acusa é quem julga. Sabe-se – e tal fato é segredado nas esquinas com laivos de pavor ou com jocosas anedotas – que o IPM DA PASSEATA já estendeu suas sinistras garras por mais de cem estudantes – na sua totalidade, moços cultos e aplicados aos estudos. Acena-se ainda, lamentavelmente, com a ampliação desse processo de tortura moral, para que seus deshumanos reflexos maiores cicatrizes imprimam à consciência maguada da juventude estudiosa de Goiás. A vida possui um dinamismo próprio que, na feliz expressão de Erich Fromm, tende a crescer, a expressar-se, a ser vivido. Quanto mais se sufocar esse impulso, tanto mais forte serão a reação dos que querem viver livres e orientar seus passos pelas próprias experiências. A liberdade, se bem não raro tenha atingido um ponto crítico, ameaçando transformar-se em seu antônimo, é sempre impulsionada pela lógica irreversível de seu próprio dinamismo. A ação liberticida será sempre transitória, enquanto a liberdade é permanente. Aquela alimenta-se da violência, tanto mais grave quanto mais sobreviver; esta abeberase do direito e na razão, fazendo florescer o gênio e o heroísmo, o martírio e a pureza. Quando mais se afirma, mais esplendorosa e dinâmica.” A impetração evidencia a ilegalidade e a falta de justa causa para as prisões, cita as franquias do art. 141, § 11, da CF – que autoriza a reunião de pessoas sem armas e as do art. 29, item III, do C. Penal Militar, que “fulmina a acusação delituosa quanto praticado o ato no exercício regular de direito.” “Nenhum crime cometeram, a não ser que meros anseios de liberdade e de independência, tão encontradiços na mocidade inteligente desse grande País, possam magoar a nova ordem jurídica que a violência pretende estabelecer. Ferreteá-los de marginais, por nebulosas acusações da prática de crime contra a segurança nacional, como, via de regra, ocorre em casos tais, não é apenas ridículo, mas simplesmente risível e grotesco.” (...) “O processo tramita à penumbra de interesses que se ignoram, singrando os pagos tortuosos das acusações que se não definem, que se não concretizam à luz meridiana da defesa plena e do honrado confronto de provas.”

Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 165-176, agosto/2012

Ditadura militar de 64 intervém em Goiás: história de um herói anônimo na defesa dos estudantes e presos políticos

Foram centenas de habeas corpus impetrados por Rômulo Gonçalves a favor dos estudantes e outros profissionais. Em Goiás, vários perseguidos políticos, vítimas da ditadura, reverenciam seu nome. Nunca reivindicou reconhecimento ou glória. Quando o elogiavam, após ter obtido o deferimento de um habeas corpus, costumava dizer: “não é mérito da defesa, mas demérito da acusação.” Mas é só. Morreu no dia 1º de novembro de 2008 - dia de todos os santos. Foi enterrado no dia seguinte, em um finados. O cortejo era pequeno: familiares, amigos e alguns antigos “subversivos”. Mereceu somente uma pequena nota de falecimento em um jornal local, o que motivou o jornalista Valterli Guedes, no dia 06 de novembro de 2008, a registrar no Diário da Manhã(4): “O doutor Rômulo Gonçalves, advogado goiano falecido no último fim de semana aos 90 anos, foi um personagem marcante, diferenciado, digno de ser mostrado como referência e exemplo às gerações do presente e do futuro. Como profissional do Direito, Rômulo Gonçalves reunia todos os requisitos essenciais ao correto exercício da profissão: competência, coragem, persistência e desprendimento. Tudo isso ficou comprovado na fase mais negra da ditadura em Goiás (1960/1970). Cumpre observar que Goiás esteve entre os Estados mais visados por aqueles que tomaram o poder de assalto. Foi o único Estado a sofrer intervenção federal, decretada no dia 26 de novembro de 1964. Nos demais, quando muito, aconteceu o afastamento do governador, por cassação do mandato e suspensão dos direitos políticos. Um exemplo é o de Pernambuco, cujo governador, Miguel Arraes de Alencar, foi mandado para a ilha de Fernando de Noronha. Mas seu vicegovernador, um rico usineiro, assumiu o poder de mãos dadas com os militares. Um detalhe curioso a mais é que em Goiás, no primeiro momento, o próprio governador Mauro Borges era um “revolucionário” dos mais aguerridos. Mandou prender, demitiu servidores apontados como esquerdistas, fez medo até a seus adversários da UDN e do PSD, os quais, na véspera, mantinham conversações para uma aliança com o Presidente João Goulart.

Centenas de pessoas, de uma hora para outra visadas pela nova ordem, não tinham a quem recorrer. Havia quase unanimidade contra elas. Apelar a quem? O próprio Judiciário estava manietado. Era o direito da força contra a força do direito. Um salve-se quem puder. Por precaução, a maioria evitava quaisquer contatos com pessoas. Conheci um rapaz cujo sobrenome continha Arraes e Alencar e que se dizia “primo” de Miguel Arraes, seguramente em primeiro grau, a julgar pela intimidade com que se referia ao então governador. Pois bem, a partir daquele fatídico 1º de abril, o parentesco virou falácia. A uma simples menção de Miguel Arraes, o exprimo pedia: “Homem, deixe disso.” Advogar para perseguidos políticos? Quem haveria de? Claro, vários advogados goianos cumpriram, e bem, esse papel. Nem vou citar nomes, mas eles estão aí mesmo. Cito apenas o maior de todos, a quem aqui presto homenagem por uma multidão: Rômulo Gonçalves! Autêntico herói. E herói da mais nobre causa, a da liberdade. Sua morte no sábado, 1º de novembro (2008), mereceu pequena nota de canto de página num dos diários de Goiânia. Por enquanto, nada mais. Fiquei a pensar: tudo bem, é notícia compatível com o jeito como ele viveu. Do alto de sua digna sabedoria, da modéstia e discrição que marcaram sua grande vida, Rômulo Gonçalves jamais reivindicou reconhecimento. Se pudesse dizer algo, até agradeceria a modesta despedida. Ele foi sempre assim. O importante é que, na hora difícil, no momento do desafio a que tantos fugiram (e tinham razões para fugir), lá estava ele. Cumpriu em Goiás o papel que, no âmbito nacional e nas duas ditaduras do século 20 (1930/1945 e 1964/85), coube ao grande Heráclito Sobral Pinto. Rômulo Gonçalves foi, especialmente naquela hora, um exemplo de advogado. Trabalhou no cumprimento do lado mais nobre dessa profissão. Lutou em defesa do ser humano. Bateu às portas do Judiciário e dos quartéis. Foi aos cartórios documentar atrocidades. Sem medo. Sequer alterava a voz. Mantinha-se calmo e tranqüilo. Certamente, foi alvo de inúteis perseguições. Correu enormes riscos.

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Gonçalves, W.

Rômulo Gonçalves jamais pediu para si sequer um mínimo de reconhecimento. Nem honorários cobrava. Não foi da esquerda nem da direita. Foi advogado.”(5) Como se vê, a conquista da democracia é uma luta de décadas, que pressupõe a conscientização de um povo, a partir da luta diuturna, desde as primeiras horas, de milhares de heróis anônimos, que, em todos os rincões deste País, souberam, com sua coragem, tenacidade e luta, criar o ambiente político necessário à transição democrática. Milhares de estudantes em Goiás, alguns aqui citados, juntamente com seu defensor, contribuíram, mesmo modestamente, para a democracia que hoje vivenciamos.

Notas 1)

Arquivos do escritório de Rômulo Gonçalves, em GoiâniaGoiás.

(3)

Jornal do Brasil, 24.11.64, 1a. Cad. Pág. 3.

(4)

Diário da Manhã, jornal diário de Goiânia – Goiás.

Artigo de Valterli Guedes, intitulado Rômulo Gonçalves, herói da liberdade, publicado no Diário da Manhã – dia 06 de novembro de 2008.

(5)



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Nem só de contracheques vive a transparência pública Artigo

Nem só de contracheques vive a transparência pública Aureo Marcus Makiyama Lopes*

Quem acompanha os debates sobre a Lei de Acesso à Informação (LAI) sabe que o assunto mais comentado e discutido tem sido a divulgação dos valores pagos a funcionários públicos a qualquer título. O assunto é muito importante e ante as decisões administrativas de divulgação dos salários, muitas das reações de servidores tem reclamado desta medida como invasora de sua intimidade. O objetivo central deste artigo não é posicionar-se, embora uma opinião a favor ou contrária não deixe de ser percebida, mas sim elencar alguns dos principais argumentos contra a divulgação e os respectivos argumentos a favor da divulgação e do acesso. Resumidamente, alguns dos argumentos contra a divulgação dos valores pagos aos funcionários são: a) Exposição moral desnecessária dos ganhos pessoais do servidor ou agente público, podendo este ser mal visto por ganhar muito; b) Exposição moral desnecessária dos ganhos pessoais do servidor ou agente público, podendo este ser mal visto por ganhar pouco; c) Risco à segurança pessoal dos servidores perante a violência e insegurança pública de nossa sociedade, como em caso de sequestros e extorsões; d) Divulgação de pensões e dívidas seria uma afronta a intimidade; e) Não seria necessário informar o nome do funcionário relacionado ao ganho, bastaria informar o cargo, matrícula ou qualquer outra forma de divulgação que tornasse mais difícil o acesso e eventual mal uso da informação, ou submeter o acesso a pedido específico do inte-

*Procurador da República. Currículo lattes em: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4208734H6

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ressado, com ou sem justificativa; f) Ausência de exigência específica da lei de acesso relativa à divulgação de informações remuneratórias vinculadas ao nome do servidor que não consta dos incisos do §1º do art 8º da lei, eventual existência de regulamentação ilegal ou inconstitucional prevendo a divulgação (Decreto 7774/2012 do Poder Executivo Federal); g) Natureza de informação pessoal dos dados remuneratórios associados à pessoa do servidor, com a devida aplicação da exceção de acesso contida no art. 31 da referida lei, necessidade de previsão legal ou consentimento expresso para a divulgação e proteção, legal e constitucional da intimidade, vida privada e imagem como impedimento da divulgação dos salários; h) invocação de violação direta da proteção constitucional dos dados e da privacidade e indireta do sigilo bancário e fiscal relacionado aos valores recebidos; i) Violação do princípio da impessoalidade do art. 37 da Constituição Federal por divulgação de informações de caráter pessoal; j) Inexistência de interesse público geral e justificado de conhecimento dos ganhos pessoais de funcionários públicos; k) Presunção ou suspeita de usos mal-intencionados da informação por quem tiver acesso; l) a divulgação dos ganhos fere a proporcionalidade entre publicidade e intimidade; m) outras informações relevantes sobre despesas públicas não estão tendo sua divulgação priorizada neste momento; n) dentre inúmeros outros. Já alguns dos argumentos a favor a divulgação dos valores pagos aos funcionários são: a) o ganho considerado excessivo pela sociedade pode ser justificado em seus méritos ou readequado em seus valores pela instituição pagadora e certa aumento da exposição pessoal é natural a quem exerce funções públicas; b) ganho insuficiente, que possa gerar constrangimento ou assédio por outros empregadores ou interessados, devem ser adequados aos valores de mercado; c) As hipóteses de proteção da segurança (art. 23 da LAI) não contemplam a insegurança pública socioeconômica de nossa sociedade, e se essa é uma ameaça, ela deve ser diretamente tratada, preventiva e repressivamente pelo Poder 178

Público, inclusive quanto ao risco acrescido pela divulgação de ganhos de seus servidores; d) A divulgação deve revelar o ganho bruto habitual, os descontos obrigatórios como retenção de imposto de renda e recolhimento previdenciário, as verbas eventuais e sua fundamentação. Outras despesas públicas pagas diretamente a prestadores de serviço já são identificadas e não diferem desta situação. Os descontos para pagamento de pensão e crédito consignado são, esses sim, informações de caráter pessoal e não devem ser divulgados; e) Além do dever público de fornecer a informação com máxima clareza e objetividade (art. 5º), as dificuldades no acesso à informação possivelmente impactariam mais na população em geral, leiga e com vago interesse, do que em indivíduos ou grupos organizados e orientados por fins ilícitos para a obtenção de vantagem indevida; f) f.1) a lei de acesso em geral e especificamente nas hipóteses de informação pública constantes dos incisos do §1º do art. 8º (“Na divulgação das informações a que se refere o caput, deverão constar, no mínimo:...” (destaque nosso), optou pela indicação exemplificativa das informações de interesse público e também não exigiu a divulgação nominal porque a escolha da forma que melhor atenda à transparência e ao interesse público cabe aos órgãos incumbidos da divulgação; f.2) Quanto ao Decreto do Poder Executivo Federal, a regulamentação que especifica a informação e o modo de prestá-la e que segue a finalidade legal de ampliação da transparência é evidentemente legal e inconstitucionalidade que houvesse haveria de ser da lei em face da Constituição Federal; g) Ao se ler o art. 31, §1º têm-se que informações pessoais são as relativas a intimidade, vida privada, honra e imagem, que terão seu acesso restrito, pelo prazo máximo de 100 anos. Os pagamentos recebidos por funcionários públicos dizem exatamente respeito ao cargo e funções que exercem e em nada se referem ou se relacionam com a intimidade ou vida privada da pessoa do funcionário, que por sua vez abarca sim os gastos pessoais, individuais, familiares etc. de seu ganho público; h) sobre a constitucionalidade desta divulgação já decidiu-se o Supremo

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Nem só de contracheques vive a transparência pública

Tribunal Federal, não há informação sobre movimentação bancária e a parcela de desconto do imposto de renda é uma consequência natural e acessória da divulgação dos ganhos; i) A identificação de beneficiários de pagamentos públicos é exatamente uma garantia à sociedade para a verificabilidade do respeito ao princípio da impessoalidade e não uma violação do mesmo; j) As manifestações públicas sobre a matéria, exceto as de funcionários públicos em relação a suas próprias remunerações, tem sido unanimemente a favor da divulgação e não se justifica ignorar a constatação de um fato notório por uma presunção jurídica, carente de subsídios fáticos, que quer acreditar o contrário; k) A partir da divulgação aberta de uma informação, não se tem mais o controle de seu uso, evidentemente essa circunstância é componente natural da informação de caráter pública e para seu mal uso se aplicam as inúmeras penalidades legais cabíveis. A questão é que o direito à informação vale por si e a responsabilidade pelo acesso é independente da responsabilidade pelo uso da informação; l) A proporcionalidade está bem preservada considerando-se que se trata de recurso público, pago a funcionário público, divulgado o valor líquido sem publicidade dos descontos relacionados à vida privada do beneficiário. Anda, os pagamentos públicos feitos a terceiros, empresas, empresas individuais, empreiteiros e contratantes em geral são divulgados e haveria discriminação entre os cidadãos se apenas os servidores públicos fossem excluídos desse dever amplamente obrigatório (arts. 2º, 7º, VI, 8º, §1º, II, III e IV, 33, Lei 12.527); m) Como sempre, à alegação de que algo público não deve ser feito porque outros não estão fazendo, se responde que tanto esta divulgação quanto as outras equivalentes são devidas e é saudável que grupos que se sintam “prejudicados” com a divulgação de informações a seu respeito provoquem a divulgação de outras informações; Penso que a minha posição no caso revelase pelo método de apresentar impugnações a cada uma das razões contra a divulgação, mas

para não deixar dúvida, entendo que a melhor interpretação para o caso é a de divulgação de todas as verbas pagas, a qualquer título, a todos que recebem recursos públicos, inclusive as remunerações de servidores e agentes públicos. Agora vamos a outras questões ainda mais importantes do que a da remuneração (afinal, está já está recebendo a atenção necessária). No inciso I do art. 6 da LAI se estabelece a “gestão transparente da informação, propiciando amplo acesso a ela e sua divulgação;” A gestão transparente da informação está um passo além da simples divulgação de (algumas) informações que se entendem relevantes. Se se for considerar o custo de tempo e de dinheiro para se escolher quais informações divulgar e produzi-las no modo ideal, se verá que só uma pequena parte das informações acabarão por ser divulgadas, a menos que a sua gestão ordinária da informação já seja transparente, automaticamente associada às atividades e produzida com base em parâmetros predefinidos, em diferentes níveis, tanto para o próprio setor, como para a instituição e especialmente para o público externo, para que a sociedade possa ter acesso ao conjunto total das informações, e ela mesma decida quais são relevantes, salvo as exceções legais ao acesso. Os incisos II e III “proteção da informação, garantindo-se sua disponibilidade, autenticidade e integridade;” e “ proteção da informação sigilosa e da informação pessoal, observada a sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso.” também são muito relevantes, pois associar a proteção à informação à sua disponibilidade, autenticidade, integridade e eventual restrição de acesso, significa que decisão negativa de acesso não é uma justificativa para não se produzir ou encontrar a informação - disponibilidade - com autoria identificada - autenticidade, na totalidade dos seus dados e metadados originais e componentes - integridade, mas apenas para negar o acesso. A eventual restrição de acesso, que pode não existir em outro caso semelhante ou que pode ser revertida em futuro exame recursal, não deve permitir a identificação da informação a qual pode ser concedido acesso em decisão futura ou em pedido semelhante com circunstâncias diferentes.

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Uma das normas mais importantes da LAI é a do $2 do art. 7: “Quando não for autorizado acesso integral ao documento por ele conter informações sigilosas e acessíveis, fica assegurado o acesso à parte não sigilosa por meio do bloqueio das informações sob sigilo, como forma de assegurar a integridade documental e o contexto da informação.” Cada documento muitas e diversas informações e é relativamente comum que algumas delas sejam sigilosas e outras acessíveis. O Poder Público deve assegurar acesso a informações públicas contidas em documento que contenha informações sigilosas, conforme art. 7º, §2º da LAI, pois isso consagra a importante diferença entre documento e informações nele contidas, e a lei 12.527/2011 trata do acesso a informações, não a documentos. Aparentemente os mecanismos de acesso parcial ‘certidão’, ‘extrato’ e ‘ocultação da parte sob sigilo’ estão em ordem decrescente da extensão do sigilo das informações do documento. A ‘certidão’ é necessária quando são tão preponderantes as informações de caráter sigiloso que, a utilização dos outros instrumentos, ocultação ou extrato, deixaria soltas e desconexas umas poucas informações acessíveis; nesse caso é útil uma certidão que dê um sentido e corpo único a essas informações esparsas. A ocultação parcial de conteúdo, informações sigilosas em documento que contenha informações acessíveis, é a intervenção mais leve na integridade do documento e se restringe às partes sigilosas. O bloqueio parcial a informações já é da tradição do CADE, que o faz em diversos de seus documentos divulgados. A LAI estabelece regras e diretrizes gerais de acesso e publicização das informações de caráter público, restringindo às exceções a hipóteses legais específicas e finitas. Como regra de hermenêutica jurídica, essas exceções devem ser interpretadas de forma restritiva, sob pena de ampliação na prática da extensão e sentidos originais, pela extensão das vedações a hipóteses que só em uma interpretação literal poderiam lhe ser aplicáveis. Um bom exemplo dessa situação é a norma do art. 7º, §3º da LAI, que estabelece que “O direito de acesso aos documentos ou às informa180

ções neles contidas utilizados como fundamento da tomada de decisão e do ato administrativo será assegurado com a edição do ato decisório respectivo.” No caso, o uso indiscriminado da vedação poderá permitir que em qualquer processo, procedimento ou ato complexo, ou seja, de um modo geral, todas as decisões que não tenham um caráter simplório ou singular (e portanto necessitem análises e providências), tenha impedido o acesso a todo o seu conteúdo até que ele seja finalizado, quem sabe até o seu “trânsito em julgado”… Para se evitar tal situação, à referida norma, pode-se interpretar, com razoabilidade, a existência do complemento “,…quando o acesso prévio puder prejudicar a tomada da decisão ou os seus efeitos”. Assim, para considerar legítima uma negativa de acesso com base nesta norma, ela deve indicar as justificativas de que o acesso prévio poderia prejudicar a decisão, e não apenas mencionar que a existência de futura decisão a se basear naquelas informações requeridas, inviabilizam o acesso às mesmas. Quando houver extravio de informação, a lei prevê a possibilidade de o interessado requerer à autoridade a abertura de sindicância sobre os fatos e prevê que o responsável pela guarda da informação extraviada deverá, em 10 dias, justificar o fato e indicar testemunhas que comprovem sua alegação. Embora a lei fale em extravio, percebe-se que este é uma das espécies, junto com o apagamento e a inviabilização de utilização, por exemplo, de violação à disponibilidade da informação. Ademais, violações à autenticidade e à integridade da informação podem gerar efeitos equivalentes à violação de sua disponibilidade, portanto a essas três situações, lógica e legalmente similares, se aplicam as referidas disposições legais. Aliás, o dever de se adotar as providências do § 5º não nasce da informação do extravio a requerente, mas da própria constatação da existência de violação à disponibilidade, autenticidade ou integridade da informação pública. No caso da violação à disponibilidade, é preciso que se trate de informação que deveria estar disponível, e enfim, em todos os casos, é necessário que a violação decorra de culpa ou dolo, para

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Nem só de contracheques vive a transparência pública

que as medidas previstas se justifiquem em sua necessidade e proporcionalidade. Por fim, para a utilidade das providências previstas como automáticas pelo §5º, as referidas informações devem ser também automaticamente comunicadas ao interessado, no caso de pedido de requerente, ou divulgadas ao público, no caso de informação que deva ser prestada independentemente de solicitação. Sempre vale lembrar que a lei de acesso à informação consolida o avanço na compreensão da distinção entre documentos e informações, não só pelo conceito de documento como “unidade de registro de informações (inciso II do art. 4º), como também pelas demais disposições que os distinguem. Mas nem sempre os conceitos estão exatamente bem colocados. Por exemplo, a alínea ‘b’ do inciso II do art. 9º prevê um dever geral de se informar sobre a tramitação de documentos, ao passo que se sabe que são as atividades e as informações relacionadas que são de interesse da sociedade, e portanto tal dispositivo encerra uma metonímia da espécie ‘continente pelo conteúdo’, afinal, nem se imaginaria que as informações do art. 7º V e VII, ‘a’ deveriam ser divulgadas apenas esporadicamente e o cidadão não pudesse acompanhar a sua evolução. Uma situação de interessante interpretação sistemática integrando a LAI com outras disposições legais é a que ocorre com as previsões da Lei Complementar 131/2009, que previu as obrigações de que as informações sobre a transparência em informações financeiras e orçamentárias estejam acessíveis em ‘tempo real’ aos interessados e que sejam pormenorizadas. Essas são ótimas referências para se incorporar à LAI, e não apenas a seus dispositivos relativos a informações financeiras e orçamentárias, mas também às demais, tendo-se em vista que a ausência de um critério como este permitiria que as diversas informações exigidas pela lei pudessem ser divulgadas apenas eventual ou esporadicamente, sem uma constante atualização da sua situação e andamento, o que violaria logicamente alguns dos comandos da lei. Quanto à exigência de descrição pormenorizada, impede informações vagas, abstratas e indeterminadas que não permitem se identificar com a máxima precisão os elementos concretos e fáticos pertinentes.

Uma questão importantíssima que tem aparecido na prática da LAI é a preponderância de pedidos “interessados”, buscando obter informações para interesse próprio e em “detrimento”do Poder Público e não necessariamente informações públicas para desenvolver o bem comum ou coletivo. Um primeiro ponto a destacar é que os autores e custodiantes das informações são responsáveis por promover o acesso à informação pública e a proteção à informação sigilosa; enquanto quem recebe e usa a informação tem o dever de fazê-lo com responsabilidade, tendo em vista que abusos podem gerar responsabilidades civis e penais. Um dos mecanismos mais eficazes para se neutralizar eventuais usos privilegiados de informações recebidas em atendimento a pedidos de informações públicas é o acesso e divulgação amplos, a todos, da referida informação entregue individualmente em resposta a requerente, que pode ser organizado na forma de ‘respostas a perguntas mais frequentes da sociedade’ (art. 8º, §1º, VI da LAI). Das centenas e milhares de pedidos de informação recebidos e respondidos, que critérios o poder público poderia usar para imaginar quais delas seriam ou não de interesse da sociedade? Que quantidade de repetições faria com que determinadas respostas - contendo informações públicas relevantes - fossem publicadas no site da instituição e outras não? Por que dificultar - por meio da espera de pedido - o acesso a certas informações que já poderiam estar automaticamente disponíveis? Por que privilegiar a quantidade em vez da qualidade das perguntas (pedidos de informação) já feitas? Por todos esses motivos, deve-se entender que o melhor atendimento a referida norma consiste na publicação automática de todas as respostas fornecidas a pedidos individuais de informação, organizadas na ordem de frequencia de ocorrência. Por fim, abordaremos a questão de quais informações e alguns de seus requisitos. Para isso, vamos nos centrar em informações relativas aos Ministérios Públicos, que se dividem em quatro categorias principais: institucionais, administrativas, atuação judicial e atuação extrajudicial. Antes de exemplificarmos cada uma dessas classes, é fundamental reforçarmos a ideia

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do que seria a referência ideal para a pormenorização das informações públicas disponibilizadas. Trata-se do acesso às informações num tal grau de precisão que, permitam a uma pessoa que não trabalhe naquela instituição, mas que possua formação e experiência equivalente a do autor da informação, por meio do uso das informações e metainformações associadas, reproduzir o ambiente, as decisões e atividades realizadas com a obtenção de resultados semelhantes aos alcançados na instituição. O conceito é o de ‘reprodutibilidade técnica’. Como exemplos de informações institucionais temos: finalidades e objetivos institucionais e estratégicos, metas, indicadores previstos e resultados alcançados pelo Ministério Público, decisões de alocação de recursos e decisões e critérios de promocão por merecimento; registro das competências, responsabilidades pormenorizadas por setor e por função; dentre outras informações com previsão legal; Como exemplos de informações administrativas, além das já explicitamente previstas pela lei: remuneração percebida a qualquer título e demais despesas com pessoal, informações relativas a compras e serviços contratados em geral, com a íntegra dos principais documentos relativos, informações que estejam de posse do Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de controle social, e que não sejam resguardadas por sigilo, como as informações não sigilosas constantes do Anexo I da Resolução nº 74/2011 do referido Conselho, registradas nos subitens I a IV-3 e contidas nos sistemas do subitem IV-4. As informações da atuação judicial e as da atuação extrajudicial, as quais devem ser publicadas sempre que não sigilosas, necessitam da possibilidade de serem consolidadas por diversos critérios, tais como agrupamentos por membro, unidade local, estado, matérias, período etc., para que se possa compreender especificamente o que foi feito em cada um dos lugares, setores e por cada um dos responsáveis. Como exemplos de informações extrajudiciais temos: pareceres de seus órgãos técnicos, termos de ajustamento de conduta firmados, atas compromissárias firmadas, estudos e levantamentos estatísticos e qualitativos sobre a sua 182

atuação, funções e participações, em Conselhos e assemelhados, exercidas externamente à instituição, recomendações expedidas e acatadas, audiências públicas realizadas, reuniões, oitivas e demais atos presenciais voluntariamente determinados pelo membro, instaurações de procedimentos, despachos, ofícios requisitórios e arquivamentos, andamento de seus procedimentos extrajudiciais, estoque inicial de procedimentos, número de entradas/autuações recebidas no período, número de casos não processados (inclui declinações, encaminhamentos e indeferimentos de instauração), número de saídas/encerramentos no período, número de casos encerrados sem impacto social, tempo médio de processamento dos casos encerrados sem impacto social, acervo médio de procedimentos ativos no período, número de casos encerrados com impacto social, acompanhados de sua descrição. Como exemplo de informações judiciais temos: dados e estatísticas relativos a movimentação processual em cada unidade; manifestações e peças, em seu inteiro teor, desde que não protegidas por sigilo constitucional ou legal, produzidas pelo Ministério Público, tais como iniciais de ações, recursos e contrarrazões, pareceres e promoções de arquivamento de inquéritos policiais, acervo médio de ações coletivas em trâmite no período, discriminadas as propostas pelo MP das demais, número de ações coletivas iniciadas no período, número de casos não processados (inclui declinações e indeferimentos de processamento), número de ações coletivas encerradas no período, tempo médio de processamento das ações, número de casos encerrados sem impacto social, tempo médio de processamento dos casos encerrados sem impacto social e número de casos encerrados com impacto social, acompanhados de sua descrição. Enfim, esses são comentários sobre algumas das questões relevantes de transparência pública pelo enfoque das normas da Lei de Acesso à Informação.

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Artigo Processo dos Rinocerontes e outros: o acervo de Paulo Duarte e a importância de conhecer a Verdade sobre os acontecimentos na USP durante a ditadura militar

Processo dos Rinocerontes e outros: o acervo de Paulo Duarte e a importância de conhecer a Verdade sobre os acontecimentos na USP durante a ditadura militar Inês Virgínia Prado Soares(1) Pedro Paulo A. Funari(2)

Este texto tem como finalidade trazer pontos para reflexão sobre a importância da instalação de Comissões de Verdade em Universidades que durante a ditadura militar brasileira (19641985) tiveram docentes, estudantes e servidores perseguidos por razões políticas ou vítimas de outras violações ainda mais graves. Para isso, este artigo trará um pouco da história de Paulo Duarte, professor universitário da USP cassado em 1969. A proposta é que este texto sirva para discussão em sala de aula ou seminários acadêmicos em cursos ligados a área de humanas. A escolha do Prof. Paulo Duarte é uma interessante perspectiva para discussão em grupo, já que foi aposentado compulsoriamente no ano que completava setenta anos, ou seja, não se tratava de um jovem com uma carreira acadêmica a ser interrompida. Com uma trajetória sólida e reconhecida, Paulo Duarte continuou, mesmo após sua cassação, a resistir contra o que chamou de “terrorismo cultural que se instalava na USP”(3). Sua defesa foi muito além das disciplinas que estava ligado direta ou indiretamente nos bancos universitários, para trazer aos dias de hoje uma visão da vida acadêmica daquele período. Paulo Duarte marcou a feição tanto acadêmica como social da disciplina Arqueológica, até ser cassado em 1969, como professor da USP. Após sua morte, em 1984, seu acervo documental foi

Mestre e Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É pesquisadora do “Laboratório de Arqueologia dos Trópicos” do MAE/USP. Membro do IDEJUST e Vice-presidente do IEDC. Procuradora da República em São Paulo. (2) Professor Titular do Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Coordenador do Centro de Estudos Avançados da Unicamp. (1)

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doado à Unicamp e encontra-se, atualmente, no Centro de Documentação Alexandre Eulálio (IEL). Mas por que um Professor Universitário à frente do Instituto de Pré-história bradava tanto contra o regime ditatorial? O que tanto a Arqueologia tinha a perder? A resposta é que a História da Arqueologia no Brasil sofreu de forma muito particular o jugo militar por mais de duas décadas. A Arqueologia, à diferença de outras ciências humanas e sociais, depende muito diretamente do acesso a verbas vultosas para poder levar a cabo seu trabalho de campo, para armazenar seu material e para analisá-la em laboratório. Desta maneira, o controle das autoridades sobre a pesquisa arqueológica deriva desta dependência inevitável do arqueólogo em relação aos órgãos de financiamento, em geral estatais e, às vezes, privados. Octavio Ianni(4) ressaltava, ainda durante o regime militar, que “para os que passaram a controlar o poder estatal a partir do Golpe de Estado de 1964, tratava-se e trata-se de controlar, marginalizar, reprimir ou suprimir as vozes discordantes”. Ianni(5) chamava a atenção que o regime colonial-fascista brasileiro submetia-se a uma política elaborada segundo a perspectiva de Washington, “na primeira fase da Guerra Fria”. A avaliação de Ianni parece descrever, com grande precisão, a política dos militares quanto à Arqueologia em nosso meio. De fato, enquanto as autoridades governamentais e universitárias brasileiras negavam verbas à Arqueologia humanista proposta por Paulo Duarte, implantava-se um Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA) comandado por norte-americanos ligados ao Departamento de Estado dos EE.UU. e à CIA. Segundo a insuspeita e bem informada arqueóloga norte-americana Anna C. Roosevelt(6), além da importação de um modelo determinista primário(7), este projeto procurou opor obstáculos aos trabalhos arqueológicos que escapassem do seu controle e que tentassem se contrapor aos seus pressupostos, conservadores politicamente e ultrapassados cientificamente. As autoridades brasileiras combatiam, em primeiro lugar, o humanismo, na definição premonitória de Celso Furtado(8) pouco antes 184

da instalação da ditadura. Os anos negros, de 1968 a 1972, testemunharam a eliminação, dos quadros docentes, de considerável parcela de professores que se opunham aos militares(9). Em termos gerais, apenas no Estado de São Paulo, a polícia política deflagrou uma campanha contra “suspeitos” e, em dez dias, mais de duas mil pessoas foram presas, em novembro de 1970(10). Segundo Sérgio Buarque de Hollanda(11), “em 1969, alguns dos nossos melhores professores foram sumariamente destituídos de seus postos. Se tivessem sido mantidos, a expansão dos cursos de pós-graduação nos anos 1970 poderia ter sido muito mais produtiva do que foi”. Isto tudo foi possível, contudo, graças à colaboração de intelectuais com a repressão. Os militares souberam usar o clientelismo a favor da constituição de redes de apoio ao regime, “O favor é a nossa mediação quase universal”(12) e nossas relações são dominadas pelo “mando e obediência, favor e clientela”(13). O regime militar não eliminou as redes de clientela mas as centralizou e controlou(14). A tradicional cosa nostra(15) atua, em uma sociedade hierarquizada, segundo o princípio da autoridade “de quem está falando” do alto de sua posição(16). A ditadura, contudo, amplifica em muito o poder discricionário das autoridades mantidas ou elevadas a postos de comando em consonância com o regime. É neste contexto que as iniciativas pela instalação de uma Comissão de Verdade na USP adquirem imenso sentido. A noção da importância e necessidade de trabalhos de reconstituição desse passado recente da USP, por uma CV, podem ser medidos a partir de um exemplo concreto: os documentos escritos por e sobre Paulo Duarte. Em 1994, estes documentos custodiados no Arquivo Paulo Duarte da UNICAMP, escritos por Paulo Duarte em 1977 e até então inéditos, intitulados Pela Dignidade Universitária, integraram o artigo “Paulo Duarte e o Instituto de Pré-História: Documentos Inéditos”, de autoria de Pedro Paulo Funari, publicado na Revista Ideias(17). Os dois textos de Paulo Duarte tratavam, exatamente, do projeto arqueológico acadêmico humanista desenvolvido na Universidade de São Paulo, da sua cassação e do destino do Instituto

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de Pré-História. Além de divulgar esse trabalho inédito de Paulo Duarte(18), a publicação desse artigo por Pedro Paulo Funari teve a finalidade despertar o público para a existência de muitos outros documentos inéditos no Arquivo Paulo Duarte, de grande interesse para os mais diversos temas e, em primeiro lugar, sobre a vida acadêmica. A partir da construção doutrinária do conjunto de abordagens e mecanismos para lidar com o passado violento após a transição de um regime autoritário para outro democrático, a qual se convencionou chamar de justiça de transição(19), a iniciativa de publicar textos inéditos de e sobre Paulo Duarte pode ser considerada como uma iniciativa não-oficial de verdade. Certamente os autores dessas publicações tiveram o intuito primordial de resgatar a história e de prestar uma homenagem a este homem público que tanto fez pela Arqueologia. Mas, assim como a publicação, em 1985, do livro Brasil Nunca Mais(20), que é a iniciativa não-oficial de verdade brasileira mais marcante, essas outras pesquisas e divulgações de menor repercussão, sobre fatos ocorridos durante o regime militar, são demandas de verdade bem importantes para que, sabendo do passado, a sociedade tenha a firme convicção de que fatos semelhantes não podem voltar a acontecer. O objetivo de revelar a verdade a partir da perspectiva de Paulo Duarte e do seu acervo, hoje acautelado na Unicamp, para consulta, foi atingido. Mas o que sabemos da vida acadêmica de tantos os professores cassados, que não viveram o suficiente para receberem as justas homenagens e reparações, que só vieram na democracia? Alba Zaluar destaca que “o pior efeito de um regime de exceção é que destrói a cultura democrática que se manifesta nas práticas sociais quotidianas de respeito e de civilidade com o outro, deveres do cidadão.” (21) Esse afastamento compulsório de atividades acadêmicas é um caso clássico do que Jon Elster(22)

oportunidades negadas ou perdidas, ou seja: aquelas perdas anôminas, difusas, que apenas podem ser contabilizadas de modo geral por mecanismos como Comissões de Verdade e Memoriais(23), mecanismos pensados para reparação imaterial das vítimas e também para que a chama de

sociedade lide melhor com o passado de graves violações aos direitos humanos após a transição. Embora as iniciativas para criação de memoriais e funcionamento de Comissões de Verdade surjam de demanda de direitos humanos, a proteção jurídica dos locais dos memoriais e dos acervos documentais produzidos pelas Comissões de Verdade não se restringe ao valor que têm sob a ótica dos direitos humanos, mas também por seu valor como bens culturais/históricos, que se projetam no presente democrático para que uma reflexão do que não pode nunca mais acontecer. A informação detalhada sobre as violações aos direitos humanos praticadas durante a ditadura militar é um dever estatal essencial para a consolidação da democracia. No Brasil, após a transição do regime autoritário para o democrático, as histórias de perseguições a opositores políticos, a revelação das circunstâncias e motivos de das mortes das vítimas, a localização dos restos mortais dos desaparecidos políticos e a abertura de documentos do período são demandas de verdade quem em muitos casos, ainda precisam de respostas oficiais. As expectativas por verdade pelo Estado tem amparo no direito internacional e nas experiências de outros países que passaram por períodos de violações em massa dos direitos humanos. No plano internacional, as decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) valorizam a verdade e repudiam a omissão dos países em relação aos desaparecimentos forçados e outras violações nos casos das ditaduras. No Conjunto de princípios atualizados para a proteção e a promoção dos direitos humanos na luta contra a impunidade, documento produzido pela Comissão de Direitos Humanos da ONU(24), o direito à verdade é considerado como direito inalienável dos povos, que somente se efetiva com o conhecimento da verdade a respeito dos crimes do passado, inclusive sobre circunstâncias e motivos envolvendo tais atos. Neste documento é dito também que o direito à verdade impõe ao Estado o dever de recordar. As experiências de transição em diversos países podem ser aproveitadas também à realidade brasileira, a revelação da verdade tem

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potencial reparador e transformador: ao mesmo tempo que repara a vítima e reposiciona a memória coletiva em relação aos danos sofridos, é uma forma de dar efetividade ao exercício coletivo do direito à verdade, e nesse esse viés tem como atores as entidades civis e órgãos de defesa dos direitos coletivos, especialmente o Ministério Público. Como forma de garantir o direito à verdade, em 18 de novembro de 2011 foram promulgadas duas leis: a Lei de Acesso às Informações Públicas (Lei n. 12527/11); e a Lei que cria a Comissão da Verdade no Brasil (Lei n. 12528/11). As leis mencionadas são importantes instrumentos para se exigir a apuração da verdade sobre os acontecimentos e atos de violência praticados durante a ditadura militar brasileira. De modo geral, a Comissão da Verdade é o mecanismo extrajudicial que torna possível a sistematização das graves violações ocorridas após a transição da ditadura para a democracia (ou após o término de um período de guerra civil). As Comissões de Verdade (CV) “limitam a possibilidade de negar ou trivializar as expe‑ riências das vítimas. Transformam o que se sabe acerca de fatos violentos passados, conhecimento geral em um reconhecimento oficial. O reconhecimento oficial é importante tanto por seu valor simbólico, como por seus efeitos práticos.”(25) De certa forma, as comissões de verdade estabelecem uma “luz” a respeito dos abusos dos direitos humanos e são observadas como parte do processo de transição política de uma sociedade. Já foram instaladas mais de 40 Comissões no mundo, sempre com foco nas vítimas e na sua reparação, mas com modelos, temas e dinâmicas, que variaram de uma sociedade para outra. No entanto, há traços típicos para as comissões de verdade e a brasileira seguiu o padrão das CVs que já funcionaram pelo mundo. Na lei n. 12528/11, que criou a Comissão Nacional da Verdade - CNV, é reconhecida a obrigação do Estado na efetividade do direito à memória e à verdade histórica (art. 1º). Conforme esta lei, a CNV é um órgão temporário de investigação (dois anos), composto por sete membros escolhidos pelo Presidente da República, cujo trabalho é o estabelecimento de uma outra versão 186

igualmente oficial sobre os episódios (ocorridos entre 1946-1988) de violência, repressão e outras situações que culminaram em violações de direitos humanos, inclusive a autoria de tortura, mortes, desaparecimentos forçados e ocultação de cadáveres. A Comissão brasileira deve produzir um relatório final sobre suas investigações. A lei brasileira sobre a CNV ainda trouxe a possibilidade de criação e instalação de outras Comissões pela Verdade em âmbitos regionais, locais, com foco mais específico nos acontecimentos (nesse sentido foram criadas diversas comissões da verdade estaduais, municipais, sindicais). O propósito de trazer como exemplo o acervo de Paulo Duarte é demonstrar que as demandas de verdade sobre os nefastos acontecimentos da ditadura brasileira podem ser estudadas (e trabalhadas) a partir de um enfoque mais restrito, pelo compartilhamento das histórias vividas por grupos de vítimas (artistas, professores universitários, estudantes secundaristas, universitários, sindicalistas, jornalistas, dentre outros). Essa divisão permite uma melhor compreensão do presente e, a depender do caso, também contribui para um melhor entendimento do funcionamento e dos problemas atuais da instituição que vivenciou e herdou o legado de graves violações durante o regime autoritário. Esta é a situação de muitas Universidades brasileiras. A resistência à ditadura militar fez parte da vida universitária e as histórias de muitos dos professores e estudantes perseguidos nesse passado recente, embora conhecidas e divulgadas em iniciativas não oficiais de verdade, ainda não ocuparam espaços formais, nem houve o reconhecimento da responsabilidade das instituições (e dos agentes) na repressão de estudantes e professores. Muitas Universidades necessitam de reformulação em suas normas, com a finalidade de adequação aos valores democráticos vigentes desde a Constituição de 1988. O preenchimento dessa lacuna verdade nas universidades é possível com a criação de memoriais e com a instalação de uma comissão ou grupo de trabalho (que pode se denominar de Comissão de Verdade para seguir a nomenclatura

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de lei federal que criou a Comissão Nacional da Verdade-CNV no Brasil). A esta Comissão caberá a tarefa de, num prazo fixo e previamente especificado, desenvolver trabalhos com a finalidade específica de resgatar a memória histórica e a verdade da vida universitária durante os anos da ditadura, compilando as informações, depoimentos e documentos, para formar um relatório final, que traga à comunidade acadêmica e ao público em geral os fatos apurados, tornando-os oficiais. Há algumas tarefas que podem ser desenvolvidas pela CNV e também por Comissões setoriais/regionais, como uma Comissão da Verdade em Universidades. Nesse sentido, o legado autoritário e os fatores de sustentação do governo ditatorial no âmbito da instituição acadêmica precisam ser expostos e conhecidos. Por essa razão, os assuntos relacionados a reformas pendentes ou necessárias na Universidade devem ter destaque nos relatórios produzidos(26). A questão dos suportes ao regime autoritário nas Universidades, embora complexa no âmbito político, tem respaldo jurídico e pode nortear os trabalhos de Comissões da Verdade em ambientes acadêmicos. O que for apurado deve ser divulgado em relatório e também encaminhado à Comissão Nacional da Verdade-CNV, já que dentre suas tarefas estão a de identificar e tornar públicos as estruturas, as instituições e as circunstâncias relacionados à prática de violações de direitos humanos e suas eventuais ramificações na sociedade (inc. III art.3º) e de promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos (inc VII do art.3º). Por isso, um dos resultados da CNV pode ser o de esclarecer quais foram os setores da sociedade civil que apoiaram significativamente (com recursos financeiros, materiais e humanos) a ditadura militar brasileira e de que forma esse suporte foi dado. A previsão legal de que a CNV pode desenvolver linha de investigação para efetivar o direito da sociedade saber “se; como; e por quem?” o regime ditatorial era financiado, pode ser replicado no âmbito das Comissões de Verdade setoriais/regionais. E essa é revelação importante para compreensão da trajetória das Universidades brasileiras.

As Comissões de Verdade em Universidades já começaram a ser criadas e um dos exemplos que pode ser mencionado é o da Comissão da Memória e Verdade “Anísio Teixeira” no âmbito da UnB (Universidade de Brasília) cuja instalação oficial em agosto de 2012. Um dos autores da proposta de instalação dessa CV foi Cristiano Paixão, professor da Faculdade de Direito e membro do Ministério Público do Trabalho. A finalidade da CV na UnB é investigar a repressão contra professores e estudantes da UnB no período da ditadura, além de descobrir os responsáveis por crimes, como o desaparecimento do estudante de geologia Honestino Guimarães. Em nota jornalística sobre a discussão acerca da viabilidade da criação da CV nesta Universidade, o reitor José Geraldo mostrou-se favorável e afirmou sobre a importância de que as próprias instituições recuperem sua história, já que, ainda nas palavras do reitor, “as universidades sofreram muito com a lei de segurança nacional”(27). Atualmente está em curso uma campanha pela instalação de uma Comissão da Verdade da USP. Esta iniciativa encontra respaldo na lei que cria a Comissão Nacional da Verdade. Como a CV brasileira tem por objetivo promover, com base nos informes obtidos, a reconstrução da história dos casos de graves violações de direitos humanos, os trabalhos de uma CV na USP, com a realização de oitivas de vítimas e testemunhas e coleta ou recuperação de narrativas, informações, documentos e dados(28), são essenciais para uma visão ampla do cenário de resistência e repressão durante a ditadura. Para isso, caso seja oportuno, a CV da USP poderá firmar convênio com a CV nacional (29). Certamente haverá muito trabalho a ser feito, muita pesquisa documental a ser realizada e muitas histórias a serem conhecidas. Os acervos de pessoas como Paulo Duarte virão à tona e servirão não somente para compreender a intensidade da repressão e os modos como esta se dava, mas também para entender um contexto mais amplo, num lapso de tempo mais dilatodo do que o período de 1964 a 1985. Nesse sentido, a leitura dos escritos de Paulo Duarte, que faz uma reconstituição histórica dos anos precedentes à ditadura, permite

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alguma compreensão do prejuízo sofrido pela Universidade com a cassação de professores. Tomamos liberdade de transcrever um longo trecho transcrevemos abaixo, de autoria de Paulo Duarte no documento intitulado “A Dignidade Universitária”: Há tempos, publiquei, em “Folha de São Paulo”, um longo trabalho comentando os últimos golpes que têm sido dirigidos à Universidade. Além dos problemas normais num Instituto como esse, havia, também, aqueles que os muitos universitários desfecham contra a Universidade e, com freqüência, para defender erros oriundos da própria relaxação da direção universitária ou omissão daqueles que mais dever têm de zelar por ela. É o caso que me leva, neste momento, voltar à malferida Universidade, pela qual sempre me movimentei. Volto, agora, para defender um Instituto da mesma Universidade que sempre honrei e, mercê da ajuda que mereci de algumas grandes figuras da cultura universal, consegui vê-lo transformado num Instituto digno de uma grande Universidade, as suas atividades com repercussão nos mais altos meios europeus, norte-americanos, principalmente. Trata-se do Instituto de Pré-História, ao qual dei toda a minha dedicação, todo o meu carinho, durante anos. Fundei-o sob o patrocínio de outro Instituto, no qual trabalhei que é o Musée de l’Homme, de Paris, fundado e dirigido, até a sua morte, pelo grande antropólogo e etnólogo Paul Rivet. o maior americanista do tempo em que viveu. Foi Paul Rivet quem me aconselhou a fundar, no Brasil, um laboratório de pesquisas sobre as origens e a vida do Homem paleoamericano, e dado o entusiasmo com que recebi a sugestão, ainda conseguia, ele, para mim, uma subvenção de um milhão de francos, quantia enorme, aquele instante, dos idos do decênio de 1950. Lucas Nogueira Garcez, já quase no fim do seu governo, ouviu-me e compreendeu o que lhe expus e tentou fundar o Instituto de Pré-História, na Faculdade de Filosofia da Universidade de São Paulo, 188

aceitando, mesmo, o candidato que indiquei para ser o seu primeiro diretor: Roger Bastide, o grande professor que, no Brasil, todos conhecem. Infelizmente, a Universidade passava, no momento, por uma dessas crises de displicência, e mesmo desamor que marcava, caso não houvesse uma reação, um próximo e perigoso declínio, agravado depois pelas vicissitudes policiais a que tem sido submetida. O processo ia caminhando, quando o Professor Garcez deixou o governo e o Conselho Universitário, antes de um lado, a decisão do novo governador de fazer economias e, de outro a ânsia, muito brasileira, de agradar as situações que começam e menosprezar as que saem, sob esse pretexto de comprimir despesas, negou o presente que lhe era oferecido, sem mesmo verificar o benefício que se queria dar à Universidade. E o processo foi arquivado e despareceu... Eu não desanimei, e Garcez, atendendo até um pedido de Rivet, fundou, então, em dezembro de 1952, a Comissão Pré-História de São Paulo, nomeando-me seu presidente, dando assim, oportunidade de aproveitar o auxílio fornecido pelo governo francês. São Paulo era riquíssimo em jazidas pré-históricas, mas estas estavam sendo vandalicamente destruídas pela exploração comercial, fato que, aliás, despertara a generosidade do Governo Francês, em protegê-las. A minha ação foi implacável: em cinco anos, eu havia conseguido, com o apoio da Polícia do Estado, posta à minha disposição, e da FAB com os seus aviões, uma ação de vigilância dessas jazidas, e repressão contra os ganhadores de dinheiro, ao ponto de conseguir a condenação de dois dos mais poderosos, e iniciar a pesquisa científica. A repercussão desse trabalho penoso e ininterrupto [era grande], pois as escavações eram feitas nos pântanos do litoral, sob a tortura do calor e dos insetos agressivos e, até, de animais venenosos. Rivet me mandou um auxiliar precioso, Joseph Emperaire, do Museu do Homem. O resultado desse trabalho foi enorme. Tanto que a UNESCO resolveu

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realizar, em São Paulo, um congresso sobre as Origens do Homem Americano, comício cultural do qual fui presidente e se realizou com enorme êxito, presentes os mais famosos pré-historiadores da Europa e da América, com se vê dos seus anais, publicados pela própria UNESCO. Isso levou o jornal “Folha de São Paulo” a me convidar a dar, em seu auditório, um curso sobre a matéria, curso esse que despertou tal entusiasmo que teve de ser repetido nos quatro anos seguintes. Aí já era Reitor da Universidade o professor A. Ulhoa Cintra, um dos poucos notáveis dirigentes que teve a Universidade. Assistindo à aula de encerramento do último curso, o Reitor Ulhoa Cintra, no discurso então proferido, declarou que aquela reunião provava uma coisa: o interesse da imprensa paulista pelas obras de alta cultura. A maior delas, a fundação da Universidade, havia sido elaborada na redação de um dos grandes jornais de São Paulo, agora a criação de um Instituto de Pré-História impunha-se pejo espetáculo oferecido por aquele curso instituído por outro grande órgão da imprensa. Estava Ulhoa Cintra colhendo informações necessárias para isso quando um grupo de cerca de quarenta professores, tendo à frente o professor Erasmo Garcia Mendes, vinha ao encontro do Reitor Ulhoa Cintra sugerindo a criação imediata de um laboratório a estudar as Origens do Homem, especialmente do Homem Americano. Foi assim que, em fins de 1959, era fundado o Instituto ele Pré-História e eu nomeado o seu primeiro diretor. Não vou entrar em pormenores sobre o que se tornou o Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, com seus cursos e as suas pesquisas, cuja conseqüência mais importante foi aquela descoberta, num sambaqui da Ilha de Santo Amaro, dos restos do homem mais antigo da América do Sul até àquele momento, o Homem de Maratuá, com cerca de oito mil anos, medidos pelo Carbono 14.

E ia o Instituto por esse caminho quando, em 1969, os percalços da má política e o ódio pessoal de um reitor me obrigaram a deixar a Universidade coercivamente, por um ato governamental. O professor Eurípedes de Paula foi encarregado de responder pelo expediente até a nomeação do meu sucessor, mas permaneceu pouco tempo nessas funções, solicitando a sua dispensa e indicando para sucedê-lo um seu assistente, formado em arqueologia clássica. Há sete anos permanece esse assistente na mesma posição, aliás irregular, pois as funções de um encarregado de expediente apenas não podem prorrogar-se indefinidamente pelo prazo de mais de seis anos, como é o caso do Instituto de Pré-História.”(30)

As vicissitudes do projeto de uma Arqueologia acadêmica e humanista de Paulo Duarte estão consubstanciadas na trajetória do Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo. Mas embora hoje seja possível avaliar e aplaudir os feitos de Paulo Duarte à frente deste Instituto, os seus anos na USP, de 1962 a 1969, não foram fáceis. Nas palavras de Erasmo Garcia Mendes(31): “Mas não foram sempre de flores os tumultuosos anos em que Paulo Duarte ficou na USP (1962-1969). Como era de se esperar de seu temperamento inconformista e combativo, não tardou em entrar em conflito com a cúpula dirigente da USP, nesse tempo, um tanto retrógrada para seu gosto. Desavisadamente havia aderido aos que conspiraram para derrubar Goulart (talvez porque o considerasse herdeiro político do arqui-inimigo Vargas), mas apenas se deu conta das más companhias com que andara quando os golpistas de 64 mostraram a que tinham vindo. Aí, tomou resoluta posição contra a caça às bruxas que se instalou na USP e começou a se inteirar de que isso refletia a mentalidade algo tacanha, imobilista e compadresca que dominava a Universidade. Esse inconformismo com a situação da USP foi crescendo, até que em 11 de maio de 1965 deu a A Gazeta uma

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contundente entrevista, em que se referiu à usual incompetência dos reitores, chamou de rinocerontes (animais míopes) a maioria dos catedráticos e clamou contra o terrorismo cultural que se instalava na USP, como corolário do golpe de 64. A reação não tardou. Em 26 de agosto, o professsor Buzaid, diretor da Faculdade de Direito, apresentou em sessão do Conselho Universitário uma moção da Congregação dessa unidade de ensino em que, diante da protervia vituperative de Paulo Duarte — que fazia parte do Conselho e estava presente — solicitava que se abrisse processo contra o diretor do Instituto de Pré-História. Após discussão da questão, esta foi submetida à votação — nominal, conforme proposta do professor Paiva e, apurada a mesma, dos 33 conselheiros presentes, apenas eu e o Assistente W. Colli — Paulo Duarte obviamente se abstido — votaram contra. O inquérito correu em dependência da Faculdade de Direito,- tão morosamente que Paulo Duarte teve que desengavetá-lo algumas vezes, pois estava ansioso para usar seu depoimento como arma de ataque. Tendo terminado, como se diria hoje, em pizza, Paulo Duarte coligiu material para escrever o seu conhecido O processo dos rinocerontes. Mesmo estando processado, ele continuou na diretoria do Instituto de Pré-História até seu afastamento pelo AI-5.”(32)

Duarte é cassado, com base no AI-5 e aposentado compulsoriamente, perdendo o cargo de professor e também de diretor do Instituto de Pré-história. Mas a cassação não impede que Duarte continue a sua trajetória na defesa do patrimônio pré-histórico e arqueológico, conforme relata Isabela Sanabria: “No mesmo mês em que é aposentado, Duarte preside o III Simpósio de Préhistória e Arqueologia, realizado durante a XXI reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), de 29 de junho a 05 de julho de 1969, em Porto Alegre. Dois anos depois, durante a XXIII reunião da mesma organização, elabora um manifesto aprovado por mais 190

de duzentos cientistas, fazendo um apelo ao Congresso Nacional pela preservação das riquezas naturais do país, das jazidas pré-históricas e pela defesa e preservação dos índios”.(33)

Em 1974, Paulo Duarte depôs em uma Comissão Especial de Inquérito da Assembléia Legislativa de São Paulo e também constatava que “os verdadeiros pesquisadores, os verdadeiros professores da USP, com poucas exceções, saíram dela ou foram compulsoriamente expulsos”. Antes disso, Duarte lembra que se batera “ao lado dos alunos, contra a invasão da Universidade pela Polícia Militar: uma Universidade não se invade!” (Documento inédito, Arquivo Paulo Duarte, páginas 18 e 10 respectivamente). Ao término da ditadura militar (19641985), a Arqueologia brasileira pode florescer, sob os ventos propícios da liberdade. Passou a inserir-se no âmbito internacional e a preocupar-se com sua relevância tanto científica como social. Mas todo o contexto histórico, especialmente as ditaduras na América Latina, marcou de forma profunda a disciplina arqueológica. Por duas décadas, os arqueólogos que não se conformassem à linha autoritária e reacionária foram perseguidos, exilados ou mesmo mortos. Casos notáveis são os do brasileiro Paulo Duarte (1899-1984), cassado em 1969 pelo AI5 e do chileno Felipe Bate, exilado no México, desde o golpe militar de 1973, para citar dois nomes de particular destaque, dentre muitos outros(34). Em quase todos os países, a disciplina foi dominada pelos que se alinhavam com o autoritarismo. O restabelecimento do estado de direito e das liberdades civis foi, portanto, decisivo para que a disciplina, a partir de meados da década de 1980, se aproximasse da sociedade e dos embates políticos e sociais. A Arqueologia passou a tratar de temas como os desaparecidos políticos das recentes ditaduras, como no caso precoce e paradigmático da Argentina, que neste caso, como em tantos outros, mostrou-se uma liderança, ao criar um grupo de Antropologia Forense que passou a atuar em regiões submetidas ao jugo ditatorial pelo mundo afora (Equipo Argentino de Antropología

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Forense, criado em 1984, logo ao final do jugo da ditadura militar argentina)(35). Pouco ainda se faz no Brasil no âmbito da Antropologia Forense, mas temos profissionais e normas jurídicas que nos permitem avançar, e isso graças ao legado de tantos professores universitários. O momento que vivemos hoje na Arqueologia e na proteção do patrimônio cultural brasileiro tem muito do legado de Paulo Duarte. O reconhecimento de sua importância pode ser dimensionada nas homenagens à sua memória, com a utilização do nome Paulo Duarte para ilustrar Laboratórios Universitários(36), Prêmios para proteção e valorização do patrimônio cultural, Publicações acadêmicas dentre outros.

Notas MENDES, Erasmo Garcia. Paulo Duarte. Estud. av., São Paulo, v. 8, n. 22, Dez.1994. Disponível em http:// www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010340141994000300018&lng=en&nrm=iso>. Acesso em 05 de agosto 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S010340141994000300018.

(3)

Cf. Octavio Ianni, “O Estado e a organização da cultura”, in Encontros com a Civilização Brasileira, nº 1, 1978, p. 220.

(4)

Cf. Octavio Ianni, O Colapso do Populismo no Brasil, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira, 1967, p. 211.

(5)

Cf. Anna C. Roosevelt, “Determinismo ecológico na interpretação do desenvolvimento social indígena da Amazônia”, in W.A. Neves (org.), Origens, Adaptações e Diversidade Biológica do Homem Nativo da Amazônia, Belém, Museu Paraense Emilio Goeldi, 1991, p. 106.

(6)

Cf. B.J. Meggers, América Pré-Histórica, Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 1979, pp. 12-13 et passim.

(7)

“Brazil;what kind of revolution”, in Foreign Affairs, nº 41(3), 1963, p. 529.

(8)

J.C. Sebe, Introdução ao Nacionalismo Acadêmico. Os Brasilianistas, São Paulo, Ed. Brasiliense, 1984. p. 89.

(9)

M.D´A.G. Kinzo, Oposição ao Autoritarismo. Gênese e Trajetória do MDB, 1966-1979, São Paulo. Ed. Vértice, 1988. pp. 135 e 246.

(10)

In R. Graham, “An interview with Sérgio Buarque de Hollanda”, in Hispanic American Historical Review, nº 62(1), 1982, p. 13.

(11)

Cf. R. Schwartz, Ao Vencedor as Batatas, São Paulo, Ed. Duas Cidades, 1988, p. 16.

(12)

11 Cf. M. Chauí, “Messianismo e autoritarismo são heranças da colonização, in Folha de S. Paulo, caderno Mais”. 11 de outubro de 1992, p.6.

(13)

Cf. L. Roninger, “Caciquismo e coronelismo: contextual dimensions of patron brokerage in Mexico and Brazil”, in Latin American Research Review, nº 22(2), p. 75.

(14)

Cf. R. Da Matta, “Nepotismo, o jeitinho brasileiro de ser cidadão”, in Jornal da Tarde, Caderno de Sábado, 7 de setembro de 1991, pp. 4-5, e “Religion and modernity: three studies o f Brazilian Religiosity, in Journal of Social History, nº 25(2), 1991.

(15)

14 Cf. R. Da Matta, Carnavais, Malandros e Heróis. Pra uma Sociologia do Dilema Brasileiro, Rio de Janeiro. Zahar Ed., 1980, p. 151.”

(16)

FUNARI, Pedro Paulo, Revista Ideias, Campinas, 1 (1): 155-179, jan/jun 1994.

(17)

Cf. Paulo Duarte, Pré-História Brasileira, São Paulo, Instituto de Pré-História da Universidade de São Paulo, p. VI.

(18)

Para saber mais sobre justiça de transição ver: MEZAROBBA, Glenda: De que se fala, quando se diz “Justiça de Transição”?, BIB, São Paulo, n° 67, 1° semestre de 2009, pp. 111-122 e BICKFORD, Louis, ‘Transitional Justice,’ in The Encyclopedia of Genocide and Crimes against Humanity, ed. Dinah Shelton, Detroit: Macmillan Reference USA, 2004, v.3, p. 1045-1047. ELSTER, Jon, Rendición de cuentas. La Justicia transicional em perspectiva histórica, trad. E. Zaidenwerg, Katz Editores, Buenos Aires, 2006. Ver ainda: UN Security Council, The rule of law and transitional justice in conflict and post-conflict societies. Report Secretary-General , S/2004/616, 23 August 2004, Transitional Justice. E : UN Commission on Human Rights, Report of the independent expert to update the Set of Principles to combat impunity, 18 February 2005, E/ CN.4/2005/102. Disponível em

(19)

Em 1985, como iniciativa não-oficial, foi lançado o livro Brasil: Nunca Mais, a partir do acervo integrante do projeto homônimo, capitaneado por D. Paulo Evaristo Arns e pelo reverendo Jaime Wright. Este livro foi um best seller e foi fundamental ao revelar os acontecimentos mais nefastos ocorridos, como perseguições, assassinatos, desaparecimentos forçados e torturas, além de trazer a público os atos praticados nas delegacias, unidades militares e locais clandestinos mantidos pelo aparelho repressivo no Brasil.

(20)

ZALUAR, Alba. Democratização inacabada: fracasso da segurança pública, in: Revista de Estudos Avançados 21 (61), 2007, p. 31.

(21)

ELSTER, Jon, Rendición de cuentas. La Justicia transicional em perspectiva histórica, trad. E. Zaidenwerg, Katz Editores, Buenos Aires, 2006. ob.,cit, p.211-214

(22)

Sobre Memoriais como reparação simbólica e direito à verdade e memória, ver: Inês Virginia Prado Soares e Renan Quinalha, Lugares de Memória: bens culturais?, in Olhar Multidisciplinar sobre a Efetividade da Proteção do Patrimônio Cultural, Sandra Cureau, Sandra Akemi Shimada Kishi, Inês Virgínia Prado Soares e Claudia Marcia Freire Lage (coodenadoras), Editora Forum, 2011. E também: LORENZ, Federico. Los lugares de la memoria. Buenos Aires: Madreselva, 2009. BRAUER, Daniel. El arte como memoria. Reflexiones acerca de la

(23)

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Soares, I. V. P. - Funari, P. P. A.

dimensión histórica de la obra de arte. In LORENZANO, Sandra; BUCHENHORST, Ralph (orgs.). Politicas de la memoria: tensiones en la palabra y la imagen. Buenos Aires: Gorla; Mexico: Universidad del Claustro de Sor Juana, 2007. AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz. São Paulo: Boitempo, 2007. NORA, Pierre. Entre Memória e História: a problemática dos lugares. In: Projeto História. São Paulo: PUC, n. 10, dezembro de 1993; CATELA, Ludmila da Silva. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da Argentina. São Paulo: Hucitec/ Anpocs, 2001. Arquelogia da repressão e da resistência na América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980),Org. Pedro Paulo Funari, Andrés Zarankin e José Alberioni dos Reis., Annablume/Fapesp, 2008.

resistência na América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). Annablume/Fapesp, 2008. Por exemplo, o Laboratório de Arqueologia Pública – Paulo Duarte, da UNICAMP. No site é explicado que a escolha desse nome se justificou porque o laboratório “compreende, assim como o intelectual, que as instituições acadêmicas devem estar em constante diálogo com a sociedade, sendo seu principal objetivo a popularização do conhecimento e a transformação desta por meio da ciência”. http://www.nepam.unicamp.br/lap/sobre.php?m=2

(36)

E/CN.4/2005/102, disponível em . Acesso em 05 de agosto 2012. http://dx.doi.org/10.1590/S010340141994000300018.

(32)

SANABRIA, Isabela Soraia Backx, Paulo Duarte e a Construção do Patrimônio Plural: a Inclusão de Outras Memórias no Conceito de Patrimônio Brasileiro, in Anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH • São Paulo, julho 2011, disponível emhttp://www.snh2011. anpuh.org/resources/anais/14/1300679569_ARQUIVO_Anpuh-Final.pdf , acesso em 01 de agosto de 2012

(33)

FUNARI, P. P. A. ; SILVA, G. J. . Notas de investigación sobre el Proyecto Acervo Arqueológico del Archivo “Paulo Duarte”. In: Javier Nastri; Lúcio Menezes Ferreira. (Org.). Historias de Arqueología Sudamericana. 1 ed. Buenos Aires: Fondación de Historia Natural Félix de Azara, 2010, v. 1, p. 231-239.

(34)

FUNARI, Pedro Paulo, ZARANKIN, Andrés e REIS, José Alberioni dos (Org). Arquelogia da repressão e da

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Artigo Um enfrentamento necessário: Pensando a Comissão Nacional da Verdade e o caso da USP

Um enfrentamento necessário: Pensando a Comissão Nacional da Verdade e o caso da USP Juliana Moura Bueno(1)

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No dia 16 de maio de 2012 foi instalada a Comissão Nacional da Verdade. O que devemos ter em perspectiva é que a instalação da Comissão deve ser computada como conquista não da articulação dos setores presentes no congresso, mas na pressão política dos grupos que atuaram, por diversos anos, em favor delas - a serem nomeados: os(as) parentes das vítimas, as associações e grupos que militam a favor do resgate da memória nacional, e da conciliação do país com a sua história (ainda engavetada) - à revelia dos setores mais conservadores da sociedade, incluindo militares da ativa e aposentados e partidos políticos. O que tais setores argumentavam, contra a instalação e depois problematizando a composição da Comissão, é que ela seria utilizada como instrumento de revanchismo. A questão é que se há setores que problematizam a composição da CNV pela possibilidade de revanchismo, as famílias das vítimas e os grupos que atuam em favor dos direitos humanos a problematizam, também com o questionamento dos nomes anunciados pela Presidenta Dilma para compô-la, por outros problemas. O primeiro deles diz respeito ao fato da comissão não abarcar apenas o período do regime militar instaurado com o golpe em 1964 - ele retrocede a 1946, compreendendo o chamado primeiro período democrático do Brasil e tira assim o foco da Comissão que é, tecnicamente, apurar os crimes cometidos pelo Estado durante a ditadura civil-militar. Segundo, no que diz respeito à composição da Comissão, há nomes dentre os sete escolhidos que são, claramente, nomes de

Estudante graduação em Ciências Sociais da Universidade de São Paulo.

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Bueno, J. M.

conciliação com os setores mais retrógrados da sociedade. Prova disso é que os mesmos setores militares que antes temiam revanchismo aprovaram sua composição. Temos alguns exemplos para ilustrar tal hipótese. O primeiro é o caso de Gilson Dipp, ministro do Superior Tribunal de Justiça, que atuou como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos no julgamento do Caso Araguaia, dando pareceres contra os familiares dos guerrilheiros do Araguaia - cujos corpos encontram-se desaparecidos até os dias de hoje. Outro é José Carlos Dias, um dos sete indicados, é ex-ministro da Justiça de Fernando Henrique Cardoso. O Ex-ministro já se posicionou publicamente contra a revisão da Lei da Anistia e preocupado com o caráter revanchista que os trabalhos da Comissão poderiam adquirir. Diz que o papel da Comissão é estritamente desvendar mortes, torturas e desaparecimentos que aconteceram entre 1946 e 1988. Mas o mais temeroso é que em declarações à grande imprensa, o ex-ministro também disse ser favorável à apuração dos crimes cometidos pelos dois lados à época. Tal proposição é risível. Tomemos como exemplo as experiências internacionais de comissões da verdade. Nenhuma das quase 40 Comissões da Verdade instaladas no mundo - e muitas delas na própria América Latina - tiveram como objetivo ouvir dois lados. Afinal, para ouvir dois lados precisaríamos necessariamente fazer um julgamento sobre o lado bom e o lado ruim da ditadura. E como fazer isso? Indago-me se o lado bom seria o de quem não causava distúrbios à ordem (em um estado de exceção) e o lado ruim de quem lutava contra o mesmo estado de exceção? Se a palavra bom pode ser usada nesse contexto, é porque José Carlos Dias está desafiando o bom senso e relativizando um regime de força, de autoritarismo, de violência e de repressão. E o relativiza justamente ao conceber serem equiparáveis os atos de representantes do Estado com os atos daqueles que não aceitaram se submeter a esse regime e lutaram bravamente para que pudéssemos desfrutar hoje em dia de algumas das benesses de um estado democrático [ainda que capenga, e 194

com seus milhões de problemas, é bem verdade. Só não podemos desprezar o salto qualitativo que é viver sob um regime autoritário e sob uma constituição democrática]. No mais, se a intenção é analisar os crimes cometidos à época, descobrir a verdade sobre o papel do Estado e desvendas todas as violações de direitos humanos perpetradas, como podemos aceitar uma proposta que nivela torturadores com aqueles torturados, e assassinos com aqueles assassinados. O julgamento, a sentença e a punição dos/das militantes que lutavam contra um estado de exceção e sofreram com a repressão nos anos de chumbo não podem ocorrer duas vezes: à época já foram perseguidos, torturados e assassinados. Nesse sentido, tanto o trabalho como a composição da Comissão Nacional da Verdade nos preocupam. E nos preocupam porque para que não se erre o alvo é preciso ter alguns pontos bem claros. O Estado Brasileiro deve aos seus cidadãos a verdade, e aqui resgatamos o conceito da Justiça de Transição de direito à verdade, não colocado em prática no Brasil. O Estado brasileiro foi quem determinou as práticas de tortura, de perseguição, de eliminação e, ainda, de ocultação de corpos. E por isso, deve ter sua culpa reconhecida. Ademais, precisamos questionar as versões oficiais dos fatos e exigir da sociedade que reescreva, passando a limpo, a história do nosso país. Afinal, um regime autoritário repressivo que durou 21 anos e que tinha tortura como prática institucionalizada não pode ser culpado apenas por 400 mortes. Queremos o reconhecimento de todas as atrocidades cometidas pelo Estado à época. Mas para atingir tais objetivos é necessário que se abra a caixa preta dos arquivos das instituições militares, mas não só. Se a Comissão da Verdade poderá pedir à Justiça acesso a documentos privados, investigar violações aos direitos humanos e disponibilizar meios e recursos necessários para a localização e identificação dos restos mortais de desaparecidos políticos como fazê-lo sem enfrentamento aos resistentes? A sociedade precisará, daqui pra frente, comprar essa briga. Na esteira desses acontecimentos é que surgiu a iniciativa do ‘Fórum Aberto pela De-

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Um enfrentamento necessário: Pensando a Comissão Nacional da Verdade e o caso da USP

mocratização da Universidade’ de se instalar uma Comissão da Verdade da USP. Entendendo que não podemos nos furtar de fazer o debate sobre a verdade na/da nossa própria instituição, enfrentando, dessa vez, os mesmos setores de resistência, mas em outro cenário. E temos a nosso favor a maré do momento histórico: ou seja, o fato de que tanto uma Comissão Nacional quanto Comissões da Verdade Estaduais e Municipais já foram instaladas. Mas aí nos perguntamos “Se já há iniciativas em âmbito nacional e regional, por que mais uma? E desta vez tão ‘local’?”. Segundo um relatório provisório de uma equipe de pesquisadores voluntários - alunos/as, professores/as e trabalhadores/as da USP dispostos a pesquisar para resgatar a verdade histórica da nossa Universidade - de 370 casos de morte e desaparecimentos reconhecidos pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos do Estado Brasileiro, 50 tinham relação com a USP. Um caso emblemático é o da Professora Ana Rosa Kucinski Silva, do Instituto de Química (IQ). Em 22 de abril de 1974, Rosa e seu esposo, Wilson Silva, foram vistos pela última vez nos arredores da Praça da República em São Paulo. Seus colegas de ofício estranharam sua ausência nos dias seguintes e acionaram seus parentes. Nenhuma unidade policial reconhecia em seus registros a prisão de Ana e Wilson. A busca da família pelo casal se desenrolou por anos. Uma reunião da congregação do Instituto de Química, meses depois do desaparecimento de Ana Kucinski, declarou-a desertora de seu cargo de Professora e ela foi demitida por “abandono de cargo”. Ainda que muitos soubessem que Ana estava desaparecida e que provavelmente seria mais uma das vítimas do regime militar. A Universidade de São Paulo, assim como o Estado Brasileiro, nunca reconheceu seus erros e nem fez mea-culpa. Foi conivente, como instituição, com a Ditadura e preserva até hoje uma parte do autoritarismo da época - refletido, por exemplo, na manutenção do regimento disciplinar redigido por Gama e Silva, quando reitor, em 1974. Ao ser instalada, a Comissão da Verdade da USP terá como tarefas rever, por exemplo, casos de aposentadorias compulsórias de docentes no

período 1964-1985, nomeações de professores e diretores, e, ainda, tentativas da própria instituição - colaborando com o regime - de desarticular os movimentos que se posicionavam contra a Ditadura que ocorriam dentro da Universidade. Nosso primeiro passo foi dado no dia 12 de junho: o lançamento da Campanha Por Uma Comissão da Verdade na USP atraiu quase 800 pessoas entre atuais e antigos estudantes, professores (as), servidores, notáveis, intelectuais, movimentos sociais e figuras do judiciário, para o auditório principal da Faculdade de Economia e Administração (FEA) da USP. Proferiram discursos o professor Edson Telles (FilosofiaUNIFESP), que também falou na condição de parente de vítimas da Ditadura, Eduardo Gonzáles, peruano e diretor do CIJT (Centro Internacional para a Justiça de Transição), Profa. Marilena Chauí (FFLCH/USP), Profa. Vera Paiva (IP/ USP), filha do ex-deputado e desaparecido político Rubens Paiva, e Prof. Paul Singer (FEA/USP e Secretário Nacional de Economia Solidária). A campanha segue, buscando o recolhimento de dez mil assinaturas a favor da instalação de uma comissão da verdade da USP reconhecida pela instituição, ainda que com sua autonomia preservada e com participantes de todas as categorias da universidade eleitos democraticamente. As entidades representativas das três categorias da USP - ADUSP, DCE e SINTUSP - estão articulando este movimento, junto a dezenas de outros Centros Acadêmicos de diversos campi da Universidade de São Paulo e coletivos políticos que atuam dentro dela no Fórum Aberto pela Democratização da USP. Seguimos firme nesta campanha ao reconhecer que o Brasil, bem como a USP, devem resgatar sua história e se reconciliar com a verdade de seu passado - até o momento nebuloso - com suas vítimas, com seus familiares, com suas instituições e com a sociedade. O esclarecimento do nosso passado é condição sine qua non para construirmos um futuro no qual tais atrocidades nunca mais se repitam.

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Artigo A negação do mal. Verdade, mentira e os dilemas do Direito Penal

A negação do mal. Verdade, mentira e os dilemas do Direito Penal (Resenha do livro Genocide denials and the law editado por Ludovic Hennebel e Thomas Hochmann). Marcos Zilli(1)

If you tell a lie big enough and keep repeating it, people will eventually come to believe it. (Joseph Goebbels) No ano de 2003, o STF proferiu emblemática decisão que tocou a tênue linha divisória entre a liberdade e o abuso de expressão(2). Siegfried Ellwanger, conhecido adepto do revisionismo histórico, escreveu e editou, na condição de sócio da Revisão Editora, diversas obras que questionavam e negavam o holocausto(3). A insistência no exercício desta atividade levou à instauração de ação penal na qual lhe foi imputada a prática de discriminação racial (o então art. 20, caput da Lei 7.716/89)(4). Absolvido em primeiro grau, Ellwanger foi condenado, por unanimidade, pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. A partir de então, a estratégia da defesa tentou ver reconhecida a extinção da punibilidade mediante o afastamento da cláusula da imprescritibilidade prevista no texto constitucional (art. 5º, XLII). Sob fundamento de que o povo judeu não poderia ser considerado, em termos técnicos, uma raça, a tese defensiva procurou descaracterizar a qualificação jurídica de racismo que recaía sobre a atividade de Ellwanger na tentativa, assim, de ver declarada a prescrição. O fato é que tanto o STJ, quanto o STF, denegaram as ordens de habeas corpus(5). No caso do STF, após uma exaustiva discussão acerca da inserção dos judeus no conceito de raça, a posição majoritária considerou que os

(1)

Professor Doutor de Direito Processual Penal na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e membro do Forum for International Criminal and Humanitarian Law.

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Zilli, M.

livros escritos e publicados, sob o manto de um pretenso revisionismo, objetivavam, na verdade, distorcer fatos históricos e, com isto, restaurar a abominável doutrina da superioridade racial, sobretudo ao negarem a existência do holocausto e ao imputarem aos judeus toda a responsabilidade pela Segunda Guerra Mundial. E no que se refere ao confronto entre o direito punitivo e a liberdade de expressão, o STF deixou assentada a já consolidada teoria de convívio harmônico entre os direitos fundamentais, de modo que o exercício de certas liberdades deveria ser condicionado pelo respeito de outros valores imanentes aos direitos humanos. Assim, no julgamento de Ellwanger, a posição vencedora entendeu que a liberdade de expressão não poderia servir de pretexto para a proteção de manifestações de cunho racista sob pena de se deixar à margem da proteção da dignidade humana um grupo específico de pessoas. O caso Ellwanger insere-se em um fenômeno maior - infelizmente não tão raro – e que veio a ser conhecido por negacionismo do Holocausto. Negar o genocídio dos judeus, o uso de câmaras de gás, a existência de campos de concentração e a própria solução final empreendida pelo regime nacional socialista alemão são apenas alguns dos tristes exemplos de discursos que, para muitos, constituem expressão, por vias indiretas, do ódio e do preconceito. O fenômeno – que também não é recente – vem assumindo um colorido especial em seu enfrentamento jurídico-punitivo por parte do continente europeu. São justamente as diversas questões conflituosas emergentes de tal enfrentamento que são profundamente analisadas na obra coletiva Genocide denials and the law, editada por Ludovic Hennebel e Thomas Hochmann e publicada pela Oxford University Press. Negacionismo e revisionismo, embora em muitos momentos possam ser frutos da árvore da intolerância, são fenômenos que não se confundem. De fato, a noção de revisão é própria do dinamismo da historiografia. Afinal, como ciência, a história sempre comportará estudos, análises, compreensões e correções. É que no terreno da pesquisa científica, o olhar para o passado pode assumir diferentes perspectivas e que sempre poderão suscitar novos questionamentos 198

e conclusões. O problema surge no momento em que a revisão não tem outro objetivo a não ser o de menoscabar determinados acontecimentos, menosprezando, dessa forma, a extensão e a intensidade daqueles. Nesse ponto, o revisionismo acaba se aproximando do negacionismo, já que ambos estão alimentados pelo desejo de desprezar o sofrimento daqueles que foram atingidos pelos eventos, quer seja ao diminuí-los – no primeiro -, quer seja ao negá-los – no segundo. A ausência de qualquer comprometimento científico e a presença do ódio e da intolerância são, portanto, os elementos de ligação dos dois fenômenos. É certo que a negação vai mais além do que uma simples revisão de dados ou de relatos já que supõe a rejeição e o repúdio de fatos cujas evidências históricas demonstraram serem verdadeiros. Pode assumir uma forma mais simplificada e que fica restrita à ação de renegar (bare denial), como no caso da impugnação do uso de câmaras de gás nos campos de concentração da Segunda Guerra Mundial. Mas, também pode revelar-se de uma forma qualificada (aggravated denial ou qualified denial) o que ocorre quando a negação tem como alvo um grupo específico de pessoas que é apontado como o responsável pelos fatos que, segundo os negacionistas, seriam falsos(6). As constantes afirmações do Presidente Ahmadinejad de que o Holocausto teria sido uma mentira e um pretexto para a criação do Estado de Israel são exemplos evidentes da segunda hipótese(7). São indiscutíveis os efeitos perniciosos provocados pelo discurso negacionista do Holocausto. Como observa Robert Kahn (Holocaust denial and hate speech), ainda que o negacionismo não contenha expressões abusivas ou claramente ofensivas, a negação do martírio do povo judeu difama a morte e o sofrimento daqueles que foram diretamente atingidos(8). Ademais, reabre antigas feridas nos parentes e descendentes das vítimas, provocando, enfim, sentimentos de indignação e de revolta em todo o grupo. Para Martin Imbleau (Denial of the holocaust, genocide, and crimes against humanity), o desejo dos negacionistas é o de justificar as ações criminosas e, assim, reabilitar a legitimidade dos regimes autoritários e da doutrina que os funda-

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A negação do mal. Verdade, mentira e os dilemas do Direito Penal

mentou. Procuram, pela insistência na mentira e em argumentos notoriamente falaciosos, destruir as barreiras que se estabeleceram na opinião pública relativamente às práticas totalitárias para com isto retomar antigas práticas criminosas(9). Aliás, para Lawrence Douglas (From trying the perpetrator to trying the denier and back again. Some reflections), há uma clara conexão entre os negacionistas e os executores do Holocausto. De fato, adverte-nos o autor que o negacionismo não é uma criação do período pós-guerra, mas sim uma “invenção” dos próprios criminosos nazistas que o adotaram como tática para a execução de suas barbaridades. Ou seja, negar a prática dos sucessivos crimes, limpar e destruir os rastros de suas ocorrências eram atos inseridos em uma estratégia que mantinha acesa a perspectiva de continuidade do genocídio(10). A grande maioria dos sistemas jurídicos não contém um tipo penal que incida especificamente sobre o negacionismo, de modo que as questões são resolvidas sob a perspectiva do discurso da intolerância e, portanto, pela dimensão do abuso da liberdade de expressão. Mas, o abuso na manifestação de opiniões exige, via de regra, uma conexão com o desejo de disseminar o ódio e a intolerância, além do reconhecimento do perigo à preservação da ordem e da paz social. Tais circunstâncias, embora evidentes em um discurso escancaradamente preconceituoso e xenófobo, mostram-se mais sub-reptícias no negacionismo o que acaba por exigir certa dose de sensibilidade do operador do direito quando das conexões lógicas nos procedimentos de adequação penal típica. De qualquer modo, a observância estrita do princípio da legalidade sempre deixará aberto o caminho para a afirmação da atipicidade de tais condutas diante da proibição do recurso à analogia in malam partem no Direito Penal. São esses e tantos outros motivos que alimentaram – e que vem alimentando - o movimento europeu de enfrentamento do negacionismo. Nesse aspecto, o texto de Laurent Pech (The law of Holocaust denial in Europe(11)) apresenta um quadro bastante completo deste processo histórico. A abordagem, como não poderia deixar de ser, inicia-se pela Alemanha. Afinal, foi aquele Estado, sob a clara distorção do regime nazista,

que protagonizou o Holocausto. E como pontua Lawrence Douglas, a consolidação da democracia alemã e a construção de um Estado em novas bases são incompatíveis com os discursos que rechacem a responsabilidade daquele país pelo genocídio dos judeus. Negar, recusar, minimizar e justificar aqueles atos representam um ataque frontal aos fundamentos da República alemã que emergiu no pós-guerra(12). Ainda que a persecução penal dos negacionistas na Alemanha fosse possível mediante a aplicação de outros dispositivos penais, foi em 1994, com a alteração do Código Penal, que a negação dos atos cometidos durante o regime Nacional-Socialista passou a figurar, expressamente, como conduta penal típica. A punição, contudo, supunha a demonstração do risco de perturbação da paz pública, elemento este mantido quando da alteração legislativa feita em 2005(13). É em França, contudo, que o movimento de criminalização do negacionismo deu os seus passos mais ousados e controvertidos. Com efeito, em 1990, foi aprovada a Lei Gayssot que, ao alterar dispositivos da Lei de Liberdade de Imprensa (Loi sur la liberté de la presse de 29 juillet 1881), criminalizou qualquer contestação da prática dos crimes definidos pelo art. 6º do Estatuto do Tribunal Militar de Nuremberg cometidos por pessoas ou grupos que tivessem sido declarados culpados pelos tribunais franceses ou mesmo pelo Tribunal Internacional(14). É no mínimo curioso o paralelo estabelecido pelo legislador francês entre “verdade histórica”, “verdade processual” e punibilidade. Afinal, a aplicação da Lei Gayssot implica, em última análise, reconhecer a extensão dos efeitos da coisa julgada nos julgamentos dos criminosos de guerra a tal ponto que influenciariam a criação de novos tipos penais. Ou seja, é proibido negar os fatos reconhecidos e afirmados como verdadeiros pelas vias formalizadas de certos processos. Na esteira da relativa boa receptividade alcançada pela Lei Gayssot, alguns parlamentares franceses ainda tentaram ver aprovada lei que criminalizasse, igualmente, a negação do genocídio armênio pelos turcos. Mas, a reação aqui foi ruidosa. Com efeito, intelectuais e advogados

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Zilli, M.

se mobilizaram contra o que denominaram de violação à liberdade científica dos historiadores e contra a supremacia de uma interpretação histórica patrocinada pelo Estado. O projeto de lei não resistiu ao embate e acabou sendo abandonado(15). Em Espanha, a criminalização do negacionismo não obteve sucesso. A alteração do Código Penal realizada em 1995 e que levou à criminalização da divulgação, por qualquer meio, de ideias que negassem ou que justificassem o genocídio(16) foi objeto de controle de constitucionalidade exercido pela Corte Constitucional espanhola que, para tanto, reconheceu, como atentatória à liberdade de expressão, a tipificação penal do negacionismo, mantendo válida, contudo, aquela relativa à justificação. Na verdade, alinhando-se aos paradigmas do sistema norteamericano, para o qual a liberdade de expressão e de imprensa é um dos dogmas inquebrantáveis do regime democrático(17), a Justiça espanhola não compartilhou da tese de que a negação fosse suficiente, por si só, para estabelecer um perigo à ordem pública e, portanto, hábil para justificar a restrição do direito fundamental à liberdade de expressão. Mas, é interessante notar que o mesmo raciocínio não foi aplicado à criminalização das justificações do genocídio. De fato, a tipificação penal daqueles comportamentos foi considerada constitucionalmente válida justamente por envolver uma tentativa de sustentação daquela criminalidade o que, em última análise, importaria em um reavivamento dos fundamentos que levaram àquelas odiosas práticas. Mas, como apontado por diversos autores da obra, o ponto definitivamente mais controverso desta empreitada rumo à criminalização do negacionismo foi dado pela uniformidade do tratamento jurídico-punitivo fixada pela União Europeia quando da adoção da decisão-quadro 2008/913, de 28 de novembro de 2008. De fato, ao estabelecer medidas de combate ao racismo e à xenofobia a decisão-quadro fixou, em seu art. 1º(c) e (d), o dever de os Estados-membros em tipificarem e punirem não só a apologia, a negação ou a banalização públicas dos crimes internacionais previstos pelo Estatuto de Roma (genocídio, crimes de guerra e crimes contra a 200

humanidade), mas também a apologia, a negação e a banalização dos crimes definidos no artigo 6º do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, anexo ao Acordo de Londres de 8 de Agosto de 1945, (Tribunal Militar de Nuremberg). Exigiuse, em ambos os casos, a configuração dos riscos à incitação da violência ou do ódio contra o grupo ou as pessoas vítimas daqueles crimes(18). Em realidade, a criminalização do negacionismo do Holocausto e também de outros crimes contra a humanidade toca duas questões fundamentais. A primeira delas envolve a sempre delicada análise dos limites da liberdade de expressão. De fato, não se tratando de sistema jurídico, que a exemplo do norte-americano, posiciona tal liberdade no ponto central da sobrevivência do exercício democrático e do respeito dos demais direitos fundamentais, a questão perpassará, necessariamente, pelo exercício da ponderação dos valores em confronto, o que se diga, nem sempre será evidente ou mesmo fácil. Ou seja, uma maior intolerância quanto a tais manifestações será compreensível em países que figuraram como protagonistas dos maiores horrores à dignidade humana, como é o exemplo claro da Alemanha. No entanto, esta relação de intimidade para com o passado não se mostra suficiente para explicar as restrições estabelecidas pela União Europeia. Afinal, muitos dos fatos que estão sendo postos a julgamento perante o Tribunal Penal Internacional, foram cometidos a milhares de quilômetros de distância e, portanto, longe da realidade diária de seus cidadãos. É possível, então, interpretar esse movimento europeu de uniformização punitiva como uma sinalização vigorosa em prol da dignidade humana. Ou seja, esta será frontalmente aniquilada quando nos depararmos com a prática de crimes de maior gravidade e sobre os quais reina um consenso punitivo universal, vale dizer aqueles crimes tipificados pelo Estatuto de Roma. Negá-los é, em última análise, uma negação dos próprios valores que norteiam a dignidade do ser humano. No entanto, como bem apontam Ludovic Hennebel e Thomas Hochmann na própria introdução do livro (Questioning the criminalization of denials), o recurso à criminalização nem

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sempre produz os melhores efeitos na perspectiva de proteção dos direitos humanos. Afinal, como assinalam lucidamente os editores, o Direito Penal é ambivalente já que ao mesmo tempo que protege, também se presta como meio para a violação dos direitos individuais(19). A segunda questão não menos dramática na temática da criminalização do negacionismo envolve a afirmação de uma verdade histórica oficial o que necessariamente passa pela limitação do exercício da liberdade científica de historiadores. É certo que muitos dos negacionistas não mantêm qualquer compromisso com o rigor acadêmico sendo as suas manifestações puro veículo para exteriorização do ódio e do preconceito. Assim como soa absurda a negação do Holocausto, seria igualmente intolerável a negação da escravidão no Brasil até o século XIX ou mesmo a negação do apartheid na África do Sul. No entanto, para muitos, a criminalização do negacionismo e a persecução de seus autores poderia levar à consagração destes como mártires de um suposto abuso estatal frente ao exercício da liberdade, fato que alimentaria o discurso negacionista ao invés de expurgá-lo. Nessa perspectiva, provavelmente o grande perigo da criminalização do negacionismo resida na vinculação entre verdade e julgamento. Como bem apontado Emanuela Fronza (The criminal protection of memory. Some observations about the offense of Holocaust Denial), a associação entre verdade processual e verdade histórica equipara os papéis do historiador e do juiz o que, definitivamente, não é correto(20). A questão remonta a conhecida abordagem feita por Pietro Calamandrei (Il giudice e lo storico) na qual é desmontada a validade das analogias entre o processo judicial e a investigação histórica. O direito e o processo penal, lembra-nos Fronza, possuem uma linguagem própria(21) e que é limitada pelos fatos postos a julgamento. Ou seja, não tem o juiz absoluta liberdade de cognição já que está jungido à imputação apresentada pelo acusador. Não há, igualmente, liberdade de apuração uma vez que o regime probatório processual está circunscrito às provas legais e moralmente legítimas. A certeza que se alcança ao final da marcha processual, portanto, é, tão somente, uma

certeza processual, vale dizer, aquela que se pode alcançar em face do que permitem as regras que permeiam o duelo processual. Logo, a punição da negação de fatos que foram afirmados no terreno de uma persecução penal, além de outorgar ao juiz poderes que lhes são estranhos, quais sejam o de estabelecer uma verdade histórica, empresta ao processo criminal uma força para a qual não foi ele estruturado. Enfim, não é possível criar expectativas sobre a persecução penal para além daquelas relacionadas com a determinação da culpa ou da inocência de uma pessoa sobre fatos determinados e específicos. Transpô-las para o terreno da verdade absoluta é, na melhor das hipóteses, temerário(22). Mas, diferente do que possa aparentar, a obra Genocide denials and the law não fixa conclusões sobre tão tormentoso tema. A bem da verdade, municia o leitor e o estudioso com análises ricas e profundas sobre as principais questões que cercam o negacionismo. E aqui é que repousa justamente o seu grande trunfo. De fato, os editores tiveram o cuidado de pinçar estudiosos entre diferentes correntes e entendimentos, fato que é crucial em qualquer debate científico. Afinal, profundidade, seriedade e pluralismo são as condições elementares para qualquer avanço maduro no campo das ideias. Como sintetizam Hennebel e Hochman, when concluding the book, readers may decide for themselves(23). Que todos construam, então, as suas próprias conclusões.

Notas (2)

HC 82.424-2/RS.

Holocausto Judeu ou Alemão? Nos bastidores da mentira do século (de sua autoria); O judeu internacional (Henry Ford); Os conquistadores do mundo: os verdadeiros criminosos de guerra (Louis Marschalko) e A história secreta do Brasil; Brasil colônia de banqueiros e Os protocolos dos sábios de Sião (Gustavo Barroso).

(3)

O tipo penal em questão, que incriminava a conduta daquele que praticasse, induzisse ou incitasse por meio de comunicação social ou por publicação de qualquer natureza a discriminação ou o preconceito de raça, religião, etnia ou procedência nacional, foi incluído no corpo normativo da Lei 7.716/1989 por força da Lei 8081/1990. A redação

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foi alterada anos mais tarde, mais precisamente pela Lei 9.459/1997 de modo que a incriminação da prática, o induzimento e a incitação do preconceito ou da discriminação pelos meios de comunicação foi deslocada para o parágrafo segundo, mantendo-se, contudo, a sanção penal de dois a cinco anos de reclusão, cumulada com a pena pecuniária. No STJ, o Acórdão foi proferido no contexto do julgamento do HC 15155/RS com a seguinte ementa: “Habeas corpus. Prática de racismo. Edição e venda de livros fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias. Pedido de afastamento da imprescritibilidade do delito. Considerações acerca de se tratar de prática de racismo, ou não. Argumento de que os judeus não seriam raça. Sentido do termo e das afirmações feitas no acórdão. Impropriedade do writ. Legalidade da condenação por crime contra a comunidade judaica. Racismo que não pode ser abstraído. Prática, incitação e induzimento que não devem ser diferenciados para fins de caracterização do delito de racismo. Crime formal. Imprescritibilidade que não pode ser afastada. Ordem denegada”. Já no STF, dos dez ministros que tomaram parte do julgamento, sete denegaram a ordem (Maurício Correa, Celso de Mello, Gilmar Mendes, Carlos Velloso, Nelson Jobim, Ellen Gracie e Cezar Peluzo), dois votaram a favor (Moreira Alves e Marco Aurélio) e um deles (Ayres Brito) concedeu a ordem de ofício para absolver Ellwanger por atipicidade da conduta imputada. Parte da ementa foi assim redigida: “Habeas corpus. Publicação de livros: Antissemitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada. 1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de ideias preconceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusulas de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII)...”.

(5)

Conforme lembrado por Thomas Hochmann, a distinção teria sido desenhada pelos autores alemães tais como Thomas Wandres (Die strafbarkeit des Auschwitz-Leugnens 96-97, Duncker & Humblot, 2000) e Winfried Brugger (Ban on or protection of hate speech? Some observations based on German and American Law, 17 Tul. Eur. & Civ. L.F. 1, 15, 2002). Nesse sentido, observa Hochmann: “I shall now introduce a distinction drawn by German authors. What we call ‘denial of a crime against humanity’ actually covers at least two kinds of expression. ‘Aggravated’ or ‘qualified’ denial (qualifizierte Auschwitzleugnung) explicitly targets a group of individuals (…). This kind of expressions must be distinguished from ‘mere’ or ‘bare’ denial (einfache Auschwitzleugnung). In the latter case, no explicit accusation against a group is expressed. (The denier´s intent. In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). Genocide denials and the law. New York: Oxford, 2011, p. 280, n. 4).

(6)

Conforme: http://pt.euronews.com/2009/09/18/ahmadinejad-holocausto-foi-pretexto-para-criar-estado-de-israel/. Acesso em 08 de junho de 2012.

(7)

“Moreover, most human societies respect the dead. By stripping away this respect from the victims of the Ho-

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locaust, denial defames the dead and isolates those connected to the victims (principally Jews and survivors) from the rest of the human race.” (In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). Genocide…, op. cit., p. 85). “The deniers´ intent is to justify the criminal behavior of regimes condemned by such bodies; to rehabilitate these regimes; and to eliminate, from public opinion, the barrier that those past events represent for the resurgence of criminal policies”. (In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). Genocide…, op. cit., p. 56).

(9)

“...it reminds us that Holocaust denial must be seen as an invention of the perpetrators themselves, not of postwar anti-Semites and neo-Nazis. (…) Holocaust denial must, then be understood not simply as an attempt to paper over atrocity post hoc; rather, it is an act fully consonant with the original methods of the perpetrators. Moreover, the tatics of denial used by the perpetrators were not simply designed to cover their tracks from the Allies or to hide their actions from the German population. Rather, denial was a means of performing genocide” (idem ibidem)

(10)

The law of Holocaust denial in Europe. Toward a (qualified) EU-wide criminal prohibition. In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). Genocide…, op. cit.,p. 185-234).

(11)

“The act of proscribing Holocaust denial in Germany thus represents something more than an attempt to protect the sensibilities of a small minority from hate speech; rather, it aims to protect the sensibilities of a small minority from hate speech; rather it aims to protect the very legitimacy of the state. Put another way, the failure to accept the truth of the state´s past role as perpetrator of genocide is less an assault upon a minority group than an attack on the foundations of the Federal Republic as a liberal democratic State”. (p. 57).

(12)

A alteração feita em 2005 criminalizou a conduta de quem perturbasse a paz pública mediante a aprovação, glorificação, e justificação a regra do uso arbitrário da força do regime Nacional-socialista (PECH, Laurent. The law..., op. cit., p. 192).

(13)

Conforme redação do art. 24 bis da Lei de liberdade de imprensa  : “Seront punis des peines prévues par le sixième alinéa de l’article 24 ceux qui auront contesté, par un des moyens énoncés à l’article 23, l’existence d’un ou plusieurs crimes contre l’humanité tels qu’ils sont définis par l’article 6 du statut du tribunal militaire international annexé à l’accord de Londres du 8 août 1945 et qui ont été commis soit par les membres d’une organisation déclarée criminelle en application de l’article 9 dudit statut, soit par une personne reconnue coupable de tels crimes par une juridiction française ou internationale”.

(14)

(15)

PECH, Laurent. The law..., op. cit., p. 205.

Conforme redação do art. 607(2): “La difusión por cualquier medio de ideas o doctrinas que nieguen o justifiquen los delitos tipificados en el apartado anterior de este Artículo, o pretendan la rehabilitación de regímenes o instituciones que amparen prácticas generadoras de los mismos, se castigará con la pena de prisión de uno a dos años.”

(16)

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A conexão entre esta decisão da Justiça espanhola e as premissas que alimentam a liberdade de expressão no sistema jurídico norte-americano é desenvolvida por Laurent Pech (The law..., op. cit., especialmente nas páginas 207 e 208).

(17)

(18)

Artigo 1º: “Infracções de carácter racista e xenófobo.

1. Os Estados-Membros devem tomar as medidas necessárias para assegurar que os seguintes actos sejam puníveis como infracções penais quando cometidos com dolo: (...) c) A apologia, negação ou banalização grosseira públicas de crimes de genocídio, crimes contra a Humanidade e crimes de guerra definidos nos artigos 6º, 7º e 8º do Estatuto do Tribunal Penal Internacional, contra um grupo de pessoas ou seus membros, definido por referência à raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros; d) A apologia, negação ou banalização grosseira públicas dos crimes definidos no artigo 6.o do Estatuto do Tribunal Militar Internacional, anexo ao Acordo de Londres de 8 de Agosto de 1945, contra um grupo de pessoas ou seus membros, definido por referência à raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional ou étnica, quando esses comportamentos forem de natureza a incitar à violência ou ódio contra esse grupo ou os seus membros.” Versão em português disponível em:http://eurlex.europa. eu/LexUriServ/LexUriServ.do? Acesso em 08 de julho de 2012. “However, while the criminal procedure and a fair and effective punishment of individuals responsible for grave violations of human rights may be considered as one of the best ways to improve respect for human rights and freedoms, criminalization can infringe upon human rights as well. Penal law is ambivalent since it is both a tool to protect and a means to violate individual´s rights.” (In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). Genocide…, op. cit., p. xxxviii).

(19)

Veja-se, a propósito, as considerações feitas por Fronza, especialmente nas páginas 175 a 178.

(20)

In. HENNEBEL, Ludovic; HOCHMANN, Thomas (ed.). The criminal…, op. cit., p. 177.

(21)

É interessante registrar a posição discordante de Martin Imbleau (Denial..., op. cit., p. 251) para quem este debate é puramente acadêmico.

(22)

(23)

Questioning..., op. cit., p. LI.

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Por uma Comissão da Verdade da USP Fórum Aberto pela Democratização da USP A Universidade de São Paulo não realizou a sua transição democrática. Mais que isso, há 50 anos a USP bloqueia o necessário processo de democratização interna. Do ponto de vista legal-administrativo, isso se verifica na vigência do Decreto nº 52.906/72 (Regime Disciplinar) e do atual Estatuto que, embora seja de 1990, não apenas rejeita os avanços da Constituição de 1988, como retrocede, ao concentrar ainda mais as decisões administrativas no gabinete do reitor. Do ponto de vista político, a não efetivação da democracia na USP se revela na manutenção de uma estrutura de poder anacrônica, que impede a real participação da comunidade nos processos decisórios e eleitorais; além disso, o recurso à força policial e à mediação judicial como formas privilegiadas de suspensão de conflitos evidenciam a incapacidade da USP em lidar com o discenso, que constitui tanto o cerne de uma sociedade verdadeiramente democrática quanto a essência da instituição univeristária. Motivados por esse diagnóstico, diversas entidades e coletivos se organizaram, no início deste ano, no Fórum Aberto pela Democratização da USP, cujo objetivo central consiste em articular a luta contra a repressão em curso na Universidade, com ações positivas que garantam maior participação. No centro de nossas propostas está a suspensão imediata de todos os processos administrativos em curso, baseados no Decreto de 1972 – e, sobre esse assunto, conta o recente entendimento da juíza Alexandra Fuchs de sua inconstitucionalidade, não apenas por ferir o princípio da autonomia universitária, mas de uma série de direitos fundamentais -, bem Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 205-206, agosto/2012

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como a instauração de uma estatuinte ampla e autônoma, capaz de alterar as regras e instituições autoritárias ainda presentes, e cada vez mais aperfeiçoadas, na vida universitária. O Fórum Aberto, em consonância com a disputa nacional pela verdade e memória históricas sobre o passado ditatorial brasileiro, lança hoje, como sua primeia ação pública, a Campanha “Por Uma Comissão da Verdade da USP”. A permanência de uma lógica autoritária nas estruturas de poder dessa instituição, como já mencionado, atesta a necessidade premente dessa Comissão. Concorrendo com a atual dinâmica universitária, propomos um funcionamento que seja em si a realização de uma concepção democrática de universidade. Na nossa proposta, a Comissão da Verdade da USP será capaz de absorver, sem neutralizar, a diversidade inerente à instituição universitária, sendo composta, portanto, por estudantes, funcionários e professores, eleitos democraticamente por suas entidades representativas. Essa opção reafirma a importância e a legitimidade institucional das entidades de representação no interior da Universidade, e vai na contramão do esforço da atual Reitoria em deslegitimar a política como instância constitutiva do ambiente universitário.

Abaixo-assinado por uma Comissão da Verdade da USP Há atualmente uma ampla mobilização na sociedade brasileira com o objetivo de tornar efetivo o direito à memória e à verdade histórica. As graves violações aos direitos humanos, sistematicamente cometidas pela ditadura civilmilitar brasileira, também atingiram diretamente a comunidade acadêmica da Universidade de São Paulo (USP). De fato, a USP foi um palco privilegiado de repressão política, atestada, entre outras coisas, pela existência de vários exuspianos na lista dos desaparecidos políticos do país e pela demissão e aposentadoria compulsória de docentes. Por outro lado, não houve o devido empenho da universidade para o esclarecimento e a superação desse seu passado, tanto que o 206

Regime Disciplinar ainda vigente na USP data de 1972, um dos piores períodos do regime autoritário, contendo proibições inadmissíveis em um contexto democrático; não obstante, esse mesmo regime continua sendo aplicado, em especial nos últimos tempos. Dado esse contexto, os abaixo-assinados vêm requerer a constituição e instalação de uma Comissão da Verdade na USP, dotada de autonomia e independência, destinada a examinar e esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas durante a ditadura militar, entre 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985. Vários atos que feriram tais direitos foram, nesse período, praticados contra docentes, alunos e funcionários técnico-administrativos da USP, bem como contra outros indivíduos não vinculados formalmente a seus quadros. Entendemos que, para garantir seu papel histórico, a Comissão da Verdade da USP deverá ser composta por membros eleitos democraticamente pelas três categorias da universidade e poderá receber testemunhos e informações, convocar pessoas a prestarem depoimento, além de requisitar documentos de todos os órgãos da Universidade, ainda que classificados como sigilosos. Os resultados do trabalho dessa Comissão serão compilados em um relatório que será publicado, amplamente divulgado e encaminhado às Comissões da Verdade já existentes (nacional, estadual e municipal), bem como aos Ministérios Públicos Federal e Estadual para as providências cabíveis. www.verdadeusp.org [email protected]

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Texto para Discussão

Da memória do passado à luta do presente It’s a poor sort of memory that only works backwards. - Lewis Carroll Muito se tem discutido, ultimamente, sobre a Comissão Nacional da Verdade. A iniciativa teve seu lançamento no dia 16 de maio de 2012 e não escondia, na cerimônia, seus propósitos. O ato, que contava com os ex-presidentes até José Sarney, mostrava a intenção de conciliar setores políticos bastante diversos numa espécie de coalizão, parecendo querer garantir que a Comissão da Verdade não tem o interesse de entrar em conflito direto com uma oposição em grande parte comprometida com os próprios fatos que deverão ser apurados. Não sabemos ainda qual terá sido o preço pago para a manutenção desse acordo de cavalheiros mas, acredito, não foi irrisório. Ainda que seja louvável e quase que unanimemente desejada a instalação da Comissão Nacional, é importante refletir sobre o modo como se dará a investigação, segundo a proposta oficial – questão muito menos consensual. Para além dessa tentativa de conciliação de interesses diversos, como fosse possível uma releitura unânime do passado, é cabível questionar, por exemplo, a forte dependência que terá a Comissão de toda a estrutura do governo, em especial da Casa Civil. Tão preocupante quanto deve ser a decisão de que a Comissão da Verdade poderá apenas apurar, revelar, reler, sem possibilidade de intervenção para a punição dos culpados. É entrevista, aqui, a presunção maior de se manter distância: uma postura que parte da apreciação da história como passado, simplesmente. Como Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves, p. 207-209, agosto/2012

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os fatos apagados, estáticos, dos livros e relatórios burocráticos. Aquilo que é acabado e que se pode no máximo conhecer para saber como agir melhor no futuro. Essa pauta é ótimo exemplo, contudo, de como a história pode ser entendida de uma outra maneira, mais vital e mais presente. Se compreendermos a história como uma simples linha cronológica, talvez não consigamos visualizar que o passado deságua incessantemente em nosso tempo. Este é formado não só pela sucessão causal das coisas, mas também por uma história que a todo momento constitui e reconstitui nosso universo presente. Quero dizer que a própria influência histórica não é simplesmente linear, e sim contínua, passando por uma série de fenômenos de interpretação e reinterpretação de sua própria história que fazem os indivíduos, povos ou nações. Dependendo da maneira como uma sociedade enxerga a seu passado, enxergará a si mesma diferentemente, e também diferente será sua relação consigo própria. Segundo a significação que se der a estruturas históricas, veremos os fenômenos do presente totalmente ressignificados. Toda a carga histórica continua a fazer-se atual através da constituição de sujeitos históricos agentes no tempo presente. Isso quer dizer não só que o estudo da história é importante em qualquer época, mas que a própria história é um campo de batalha, um ponto de disputa. E assim essa influência mais ampla que ela tem sobre o agora é, por sua vez, em parte determinada pelas próprias disposições desse tempo. É uma relação dialética: nós próprios recriamos, continuamente, a memória que nos recria enquanto sujeitos históricos. Assumir essa relação dialética e ativa com a história é central se quisermos nos prestar a um reexame de nosso período mais sombrio. A verdade só pode ser reivindicada se levarmos em conta, também, o contexto político de que parte esse grito por justiça, e quem se dispõe a procurá-la. Nesse sentido compreenderemos que não se trata de desvelar, de uma vez por todas, uma verdade histórica acabada. Nem seria possível, tomando essa recriação interminável da história. Trata-se, isso sim, da simples possibilidade de reabertura, de um novo olhar sobre questões que 208

não foram, e não têm sido discutidas, justamente porque algo ainda hoje se debruça sobre nós, pressionando pelo silêncio. Temos que lutar por uma Comissão da Verdade que, em primeiro lugar, não se renda ao mito de que podemos ser apenas espectadores do passado. Estudar a história é reescrevê-la, e toda escrita é um ato político. Depois disso, é preciso levar às últimas consequências essa disputa. Procurar a verdade no passado para reconfigurar a situação presente do país. Não adianta localizar na história um tempo de violência e simplesmente acreditar que isso basta para que seja automaticamente expurgado. Todo o esforço tem que ir no sentido de encontrar na memória a origem mesmo do que hoje se apresenta. De retraçar o percurso genealógico de nossas estruturas, e compreender de que maneira os crimes do passado continuam fazendo-se sentir ainda hoje. Entender qual é, agora, a influência de nossa história e mudá-la, se necessário for. Escrever uma história em que torturadores e criminosos de Estado são julgados, condenados e punidos é dar espaço a um presente em que esses crimes não são mais toleráveis. Além disso, uma iniciativa que vise analisar seriamente a herança histórica da ditadura deve ir a fundo nos inúmeros abusos e ordens autoritárias dos períodos mais recrudescidos do regime, mas também pormenorizar os passos da nossa tão lenta transição democrática, avaliando os instrumentos de redemocratização que se nos foram prestados. Isto é, medir a influência de fato que tinham ainda os militares, e seu controle efetivo sobre a transição. Sobretudo, os acordos que envolveram as candidaturas – indiretas ou diretas – dos presidentes que se seguiram aos generais (os mesmos que estavam presentes na cerimônia em Brasília); a promulgação da Lei de Anistia, e o contexto no qual surgiu – a saber, de um Congresso sob ameaças de um poder político golpista, de senadores fantoches e de perseguição aos opositores; e o veto, por parte dos militares, de uma Assembleia Nacional Constituinte propriamente dita, legando a esse próprio Congresso, instrumentalizado, a função de propor a nova Constituição(1).

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É então que a Constituição de 88 pode, por exemplo, manter praticamente inalteradas, no novo código, as cláusulas que diziam respeito à relação civil-militar, bem como às PMs estaduais e o seu sistema judiciário bastante peculiar – que permite, até hoje, impunidade aos policiais em atos criminosos executados pela farda. Também do Congresso Constituinte saiu a decisão de manter a ligação direta entre PM e Forças Armadas, a primeira atuando como força auxiliar do exército. Percebemos vir daí uma série de medidas que enforçam a militarização atual da segurança pública, explícita na história recente do Estado de São Paulo. É notável o caso da USP, cujo Regimento Geral, vindo de um decreto da ditadura em 1972, é o instrumento legal da execução de estudantes da universidade. O mesmo regimento que, no dia 25 de outubro de 1975, demitiu a professora Ana Rosa Kucinski por abandono de cargo – ela jamais voltaria a trabalhar: havia sido sequestrada pelo DOI-CODI, e seria assassinada depois, com o marido – condena, em 2012, dezenas de alunos à eliminação de todos os vínculos com a USP. Uma encarada mais atenta e logo qualquer um questionaria a validez de um decreto como esse em tempos, supõe-se, de democracia. Uma nova apreensão da história, mais justa, faria ruir o que ainda sustenta essa herança. Por tanto precisamos de Comissões da Verdade independentes e autônomas, capazes de criar a ponte entre a repressão do passado e a opressão do presente. Nessa linha, o que temos de mais transformador são as iniciativas de comissões descentralizadas, as quais podem ir mais fundo nas pautas a que se prestam examinar. Que têm uma ligação mais direta com as comunidades locais, incluindo a participação de movimentos sociais e populares, além de parentes das vítimas e aqueles mais diretamente afetados pela violência. Uma comissão desse tipo, construída de baixo para cima, seria muito mais resistente ao tipo de pressão política que leva à lógica da conciliação. A partir daí, poderia começar um estudo sério do que é uma injustiça histórica, até hoje escamoteada, e que alguns querem esquecida ou anistiada, ainda que repercuta com força, até

hoje, contra as liberdades democráticas. Pois uma Comissão da Verdade que não se proponha a um reexame não somente dos casos pontuais, mas das estruturas políticas que permitiram os abusos – e que permanecem, em muitos aspectos, inalteradas até hoje – não fará nada senão perpetuar a ilusão de democracia, uma democracia fardada e oligárquica. Uma frente que se disponha a desbravar essas trilhas históricas está transformando o sentido de nossas instituições e de nossa situação na contemporaneidade. Uma coisa não pode existir sem a outra. Não dá para imaginar que seja possível abrir esses arquivos sem lutar contra interesses políticos bastante atuais, nem tampouco que a memória deixe impune quem hoje se alimenta do esquecimento. Para isso, no entanto, há que se estar disposto à batalha. É preciso não ter medo. É preciso ter a coragem de dizer.

Nota (1) Recomendo, nesse sentido, aos interessados, a obra do Professor Edson Teles, que vem pesquisando de modo muito oportuno e com bastante precisão as heranças da ditadura nas estruturas democráticas do país.

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Revista Internacional de Direito e Cidadania, Edição Especial Dr. Rômulo Gonçalves

Texto para Discussão

Entrevista - Fórum Aberto pela Democratização da USP para o Jornal da Filosofia da USP 1) Por que uma comissão da verdade em uma Universidade? A criação da Comissão Nacional da Verdade se insere no quadro de um processo cada vez mais amplo na sociedade brasileira de luta pela memória, pela verdade e pela justiça, processo que levou a instauração de comissões da verdade estaduais, municipais, sindicais. É nesse contexto que surge a ideia de uma Comissão da Verdade da USP, assumida, posteriormente, por outras universidades brasileiras, como a Universidade de Brasília. Vale ressaltar que a USP foi um foco privilegiado de repressão e de resistência durante o período autoritário. Em torno de 40 pessoas em um universo de 374 mortos ou desaparecidos políticos oficialmente reconhecidos pelo Estado brasileiro por intermédio da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos tinham algum vínculo com a USP. É uma cifra impressionante. Isso sem mencionar os diversos casos de aposentadorias compulsórias, perseguições políticas, prisões ilegais, torturas e outras violências mais. Além disso, a campanha pela Comissão da Verdade da USP é uma das iniciativas do Fórum Aberto pela Democratização da USP, que acredita que o autoritarismo sistemático do Estado brasileiro durante a ditadura civil-militar, que se manifestou intensamente na vida universitária, tem relação direta com as violações de direitos humanos atualmente em curso na USP, nomeadamente na presença recorrente da Polícia Militar no campus e nas perseguições políticas a estudantes, funcionários e professores.

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2) Como a campanha pretende conquistar a criação da Comissão da Verdade da USP? Pretendemos protocolar no Conselho Universitário, até o final de agosto, um abaixo assinado com no mínimo 10.000 assinaturas de uspianos e ex-uspianos. Isso será feito em uma campanha capilarizada com muita mobilização nos diversos campi e nos mais diferentes cursos, como já tem ocorrido. Com isso, queremos deixar claro que a criação de uma Comissão da Verdade da USP não é uma demanda restrita aos participantes do Fórum pela Democratização da USP, mas uma exigência efetiva de parte significativa da comunidade acadêmica. Inclusive, aproveitamos para pedir aos leitores do “Jornal da Filosofia” que divulguem nossa campanha de coleta de assinaturas, convidando amigos e parentes, uspianos, ex-uspianos ou não uspianos, a assinarem o abaixo-assinado. As informações sobre como e onde assinar estão disponíveis no nosso site: www.verdadeusp.org. 3) Qual é o objetivo da comissão? Quem são os grupos, as entidades e os coletivos que participam da sua construção? A Comissão da Verdade da USP objetiva investigar e esclarecer as graves violações aos direitos humanos perpetradas entre 31 de março de 1964 e 15 de março de 1985 contra docentes, funcionários técnico-administrativos e alunos da USP, bem como contra outros indivíduos não formalmente vinculados ao quadro da universidade à época. Com isso, indiretamente, ela pretende colaborar com o processo de democratização da USP ao diagnosticar estruturas autoritárias ainda em funcionamento nas instâncias de governo da universidade. Desde o seu surgimento, o Fórum Aberto pela Democratização da USP tem agregado um número crescente de representantes de setores da comunidade uspiana e não-uspiana. Atualmente, Fórum Aberto reúne as quatro entidades representativas da USP: a Associação dos Docentes da USP (ADUSP); o Sindicato dos Trabalhadores da USP (SINTUSP); o Diretório Central dos Estudantes da USP (DCE livre da USP); a Associação de Pós-Graduandos da USP do cam212

pus da capital (APG);  um conjunto de centros acadêmicos:  Centro Acadêmico de Filosofia (CAF), Centro Universitário de Pesquisas e Estudos Sociais – Centro Acadêmico das Ciências Sociais (CeUPES); Centro Acadêmico de História (CAHIS); Centro Acadêmico de Relações Internacionais (GUIMA); Centro Acadêmico da FEA (CAVC); Centro Acadêmico da Engenharia de Produção (CAEP); Centro Acadêmico de Engenharia Elétrica (CEE); Centro Acadêmico de Engenharia Civil (CEC); Grêmio da Poli (Gpoli), Centro Acadêmico do Instituto de Química (CEQHR), Centro Acadêmico Lupe Cotrim da ECA (CALC), Centro Acadêmico Ruy Barbosa (Ed. Física), Centro Acadêmico da Mecânica (CAM), Centro Moraes Rego (CMR) e Associação dos Engenheiros Químicos (AEQ). Além de uma série de entidades e grupos políticos atuantes na USP, tais como: Levante Popular, Juventude às Ruas, Grupo de Trabalho pela Estatuinte da USP (GT Estatuinte), Coletivo Político Quem, Coletivo Merlino, Coletivo Manifesto pela Democratização da USP, Liga Estratégia Revolucionária, Frente de Esculacho Popular, Fórum da Esquerda, entre outros. 4) Qual é a importância de esclarecer a verdade? Tanto para a USP quanto para a sociedade? Há diversas razões que justificam a pertinência e a necessidade de esclarecer a verdade sobre graves violações de direitos humanos e a bibliografia em torno desse tema é abundante. A primeira é que há uma demanda mais do que legítima por parte das vítimas e dos familiares dos mortos e desaparecidos para saber efetivamente o que ocorreu: quais crimes foram cometidos, suas circunstâncias, onde estão os restos mortais e, sobretudo, quem foram os autores dessas violências. É preciso garantir esse direito absolutamente fundamental das famílias, até mesmo pelo possível efeito terapêutico que a verdade pode ter. Além disso, do ponto de vista político, o objetivo maior de enfrentar um passado bloqueado e liberá-lo para acesso da memória social é a elaboração dessas experiências, mediante a construção coletiva de uma verdade que essa tarefa exige. O grande lema, nesses casos, é recordar

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para não repetir. Isso porque uma comunidade que não tem consciência plena da gravidade e do alcance das violências que a marcaram durante sua constituição está fadada a reproduzir discursos de justificação ou de negação em relação a essas mesmas violências. Desse modo, se não construirmos um juízo social crítico e severo repudiando as violações de direitos humanos do passado, há uma tendência quase irresistível, por parte dos membros dessa sociedade, em repetir e reproduzir a lógica que orientou as violências no passado.

Além disso, o atual reitor, João Grandino Rodas, que por seu cargo representa o topo dessa estrutura de poder e por sua maneira particular de administrar se põe como um obstáculo a mais, ao centralizar o poder de decisão de instâncias deliberativas (como o já não-representativo Conselho Universitário) no cargo do reitor. Isso significa que o atual reitor da USP tem abertura jurídica para decidir se aceita ou não a instauração de uma Comissão da Verdade na universidade, bem como para criar uma comissão de acordo com o projeto político que representa.

5) Vocês gostariam de citar algum caso em específico? O Brasil é exemplar nesse infeliz quesito. Até hoje, militares de alta patente e setores civis que sustentaram o golpe de 1964 não raro vêm a público para negar a gravidade da repressão política e da violência que praticaram ou mesmo justificar essas ações. No caso da USP, o autoritarismo do presente, materializado em constantes ações violentas por parte dos gestores e na estrutura legal-administrativa de poder da universidade, tem relações evidentes com o passado ditatorial. Nosso regime disciplinar data de 1972 e tem sido sistematicamente aplicado pela atual Reitoria em perseguições políticas contra estudantes, funcionários e professores.

7) Como a comissão investiga os fatos ocorridos no período da ditadura? Composta por membros democraticamente eleitos e que representem paritariamente as três categorias existentes na universidade (estudantes, docentes e funcionários), a comissão, dotada de plena autonomia e independência, colheria dados através do acesso irrestrito aos documentos dos órgãos universidade, bem como através de depoimentos de pessoas convocadas pela comissão. O período a ser investigado por essa comissão será o período que compreende as datas de 31 de março de 1964 a 15 de março de 1985. Os resultados obtidos seriam amplamente divulgados e encaminhados para as Comissões da Verdade Nacional, Estadual e Municipal, e para o Ministério Público Federal e o Ministério Público Estadual.

6) Qual é o maior obstáculo à instauração de uma Comissão da Verdade da USP? Há muitos obstáculos a serem enfrentados pela campanha até a instauração de uma Comissão da Verdade, um deles é a própria política administrativa que governa a USP atualmente. Por revelar uma estrutura de poder extremamente vertical, as instâncias deliberativas da universidade não dispõem de justa distribuição na representação discente, bem como nas outras categorias — docentes e funcionários. Dessa forma o poder de decisão de instauração de uma Comissão da Verdade em nossa universidade estaria principalmente nas mãos de uma categoria que possui maioria de representação nos Conselhos Universitários, a dos professores titulares da USP.

8) Existem relações entre a cúpula da USP no período da ditadura e os dirigentes da ditadura que precisam ser esclarecidas? Certamente a USP foi, enquanto instituição, um dos instrumentos de repressão e perseguição ideológicas durante o período da ditadura civilmilitar. Enquanto instituição foi conivente e colaborou com os desaparecimentos, mortes e expulsões compulsórias de docentes, funcionários e estudantes. Com o Ato institucional n° 5, instaurou-se um período de maior ação repressiva. As aposentadorias forçadas de professores são efetivadas através de denúncias dos próprios colegas e convencionadas em congregações nas unidades. O mais explícito caso de que temos

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conhecimento, apenas para ilustrar com um exemplo, talvez seja o da Professora Ana Rosa Kucinski, docente do Instituto de Química, desaparecida e morta em 1974. Após seu desaparecimento se estender por longo período, a Congregação do Instituto de Química delibera pela demissão de Ana Rosa, alegando “abandono de cargo”. Para além das unidades, há relatos de que durante esse período inaugurado a partir da promulgação do AI 5, as deliberações acerca da universidade permaneceu a cargo de um órgão de cúpula não previsto no Regimento Geral da USP, um órgão que representou o DOPS na reitoria da USP, cujo membros decidiam pela contratação e demissão do corpo de funcionários e docentes da universidade, bem como eram responsáveis pela espionagem da comunidade acadêmica. A relação entre a instituição USP e o regime civil-militar é extremamente estreita. Tal relação está ligada tanto ao projeto educacional e administrativo da universidade durante o período, quanto nos casos de violação grave aos direitos humanos. Enquanto instituição, a USP participou, corroborou e foi conivente com as perseguições, a censura, as prisões, as torturas, os desaparecimentos e as mortes. 9) A título de exemplo, quais Comissões da Verdade pelo mundo vocês citariam e quais as consequências que delas decorreram? Nas últimas duas décadas, as Comissões de Verdade tornaram-se instrumentos importantes para reparação de injustiças, melhora de qualidade das democracias e prevenção de violação sistemática de direitos humanos em diversas partes do mundo. Desde 1974, contabilizam-se em torno de 40 experiências desse tipo: Argentina, Chile, Colômbia, Peru, Guatemala, El Salvador, Timor Leste, Uganda, Bolívia, Nepal, Alemanha, África do Sul, dentre outras. Dois casos paradigmáticos e antagônicos entre si merecem destaque. O primeiro é o argentino. Depois do fim da mais recente ditadura civil-militar que governou esse país entre 1976 e 1983, o primeiro presidente civil eleito, Raul Alfonsín, determinou como uma 214

das primeiras medidas de seu governo a instituição da Comissión Nacional para la Desaparicíon de Personas (CONADEP), presidida pelo reconhecido escritor argentino Ernesto Sábato e composta por importantes figuras defensoras dos direitos humanos. O objetivo da Comissão era investigar o desaparecimento forçado de pessoas durante a ditadura, sem mencionar a autoria dos crimes e com um mandato limitado, fatos que desagradaram as associações de familiares de desaparecidos. O resultado das investigações foi compilado e publicado no livro Nunca más, lema que inspirou diversos movimentos democráticos em outros países. Além disso, esse documento foi fundamental tanto para o processo judicial pioneiro iniciado por Alfonsín contra as três juntas militares da ditadura argentina quanto para os mais recentes processos criminais que têm colocado diversos agentes do Estado e civis atrás das grades nesse país. O segundo caso que merece destaque é o caso sul-africano. Depois de quase meio século de apartheid (1947-1994), regime que teve como principal marca a segregação absoluta entre brancos e negros, teve lugar um amplo processo de renegociação de uma nova Constituição e de uma nova organização política para a África do Sul, que pudesse contemplar as 11 diferentes etnias que compõem esse mosaico étnico. Uma questão fundamental que teve de ser enfrentada logo de início foi o que fazer com as graves violações de direitos humanos cometidas no passado. Prevaleceu um modelo diferente do argentino, marcado pela reconciliação e pelo perdão seletivo, que foram geridos pela Comissão da Verdade e da Reconciliação (Truth and Reconciliation Comission), criada em 1994 pelo então eleito presidente Nelson Mandela e presidida pelo Arcebispo Desmont Tutu. Os autores dos crimes poderiam pleitear o perdão junto à Comissão, contanto que: o ato teria de ser politicamente motivado (sob comando ou em nome de organizações políticas); o requerente da anistia devia fazer uma descrição minuciosa de todos os fatos relativos ao ato praticado; a proporcionalidade entre objetivo e meios deveria ter sido também observada. Atendidas essas exigências legais, a anistia era obrigatoriamente concedida. Ou seja, a

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anistia era trocada pela verdade sobre o ocorrido. As vítimas ou seus familiares poderiam recorrer para argumentar que essas condições não foram cumpridas, mas não tinham poder de veto sobre a anistia. Nota-se que tampouco o reconhecimento público da culpa ou algum remorso deveriam ser expressos pelo requerente da anistia. Esse modelo tem sido hoje bastante criticado e revisto, pois não correspondeu aos anseios de justiça das vítimas.

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