Discursos sobre o Sistema Único de Saúde do Brasil nas campanhas de mobilização à AIDS

May 25, 2017 | Autor: Stéphanie Costa | Categoria: HIV/AIDS, Brasil, Análise de Discurso, Sus, Sistema ÚNico De Saúde, Campanhas De Saúde
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Título: Livro de Atas do 1º Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa 2015, Isabel Corrêa da Silva, Marina Pignatelli e Susana de Matos Viegas (Coord.) Capa, revisão e paginação: Leading Congressos 1ª edição: janeiro de 2015 ISBN: 978-989-99357-0-9

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Discursos sobre o Sistema Único de Saúde do Brasil nas campanhas de mobilização à AIDS1 Stéphanie Lyanie de Melo e Costa [email protected] Lorena Goretti Carvalho Barroso [email protected]

Resumo: As campanhas mais recentes de mobilização à aids (síndrome da imunodeficiência adquirida) realizadas pelo Ministério da Saúde do Brasil mencionam serviços gratuitos de testagem ao HIV (vírus da imunodeficiência humana) e de tratamento contra a aids, mas o Sistema Único de Saúde (SUS) – do qual esses serviços fazem parte – é geralmente mencionado apenas por meio do seu logotipo. No entanto, o SUS ganhou destaque na campanha de prevenção à aids do carnaval de 2012, com a adição do slogan «SUS também é prevenção». Este trabalho visa, através do aporte teórico-metodológico da análise de discurso franco-brasileira (Michel Pechêux e Eni Orlandi), identificar os sentidos sobre o SUS, presentes e silenciados, nessa campanha de 2012. Palavras-chave: Campanhas de saúde; Aids; SUS; Análise de Discurso.

1. Introdução No Brasil, a partir de fins da década de 1980 e início da década de 1990 o Estado passou a realizar mais recorrentemente campanhas públicas de mobilização social contra o HIV/AIDS2 (vírus da imunodeficiência humana/síndrome da imunodeficiência adquirida). Nas campanhas mais recentes de autoria do Ministério da Saúde (MS), nota-se a menção a serviços gratuitos de testagem ao HIV, de distribuição de preservativos e de tratamento contra a aids, mas o SUS (Sistema Único de Saúde) – do qual esses serviços fazem parte – é geralmente mencionado apenas por meio do seu logotipo. No entanto, o SUS ganhou destaque na campanha de prevenção à aids do carnaval de 2012, com a adição do slogan «SUS também é prevenção». Visamos neste artigo3 identificar os sentidos sobre o SUS, presentes e silenciados, nesta campanha de 2012, através do aporte teórico-metodológico da análise de discurso franco-brasileira, que se constituiu a partir de derivações de Eni Orlandi (2005) sobre o trabalho do grupo de pesquisadores constituído nos anos 1970 por Michel Pêcheux (1997). Nossa primeira hipótese é de que esse slogan busca negociar com outros sentidos sobre o SUS, segundo os quais ele seria ineficiente, meramente curativo – muitas vezes propagados em coberturas jornalísticas e bastante circulantes entre a população brasileira. Nossa segunda hipótese é de que as campanhas de mobilização à aids anteriores, ao não destacarem o SUS, deixavam de correlacioná-lo aos serviços de saúde anunciados e, portanto, contribuíram para o silenciamento de sentidos mais positivos em relação a ele. Também verificamos que o slogan não foi utilizado em outras campanhas de saúde de foco preventivo – quais as possíveis causas disso? Ao investigar estas questões, visamos também entender quais relações de poder 1 Artigo submetido para o Grupo de Trabalho 68: Informação, Comunicação e Saúde em Países Lusófonos, do 1º Congresso da Associação Internacional de Ciências Sociais e Humanas em Língua Portuguesa e do XII Congresso LusoAfro-Brasileiro (CONLAB 2015). 2 Seguiremos o padrão de grafia para o termo «aids» adotado pelo Ministério da Saúde, deliberado em 1999 pela Comissão Nacional de Aids (seu órgão assessor para assuntos de aids e DSTs) (Guerriero, 2001: 10). 3 Este artigo reúne resultados inéditos de duas pesquisas de mestrado mais amplas – uma sobre as campanhas de prevenção à aids, já concluída, e outra sobre os sentidos acerca do SUS veiculados nos meios de comunicação, em andamento.

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estão materializadas nas relações de sentido presentes na campanha, mostrando o papel ativo da comunicação na construção da realidade. Este artigo estrutura-se da seguinte forma: na primeira seção, mostraremos brevemente a forte relação entre o combate à aids no Brasil e a constituição do SUS. Depois, abordaremos a economia de sentidos sobre o SUS circulante entre a população nacional – veiculados principalmente atráves do discurso jornalístico – com os quais a campanha busca dialogar. Em seguida, faremos uma análise discursiva do slogan da campanha, buscando responder às nossas hipóteses e questionamentos.

2. A constituição do SUS e o combate à aids no Brasil Desde o início do século XX no Brasil, quando despontava a industrialização no país, a saúde passou a ser vista como questão social que exigia o envolvimento da sociedade e do poder público (Paim, 2009: 27). Ao longo do século, a preocupação com o tema ganhou mais espaço, bem como a ideia de uma prática política voltada para a mudança das relações sociais, tomando a saúde como referência – processo que resultou, em meados dos anos 1970, no movimento que ficou conhecido como Reforma Sanitária Brasileira (RSB). Inicialmente, a RSB era comandada por um grupo restrito de intelectuais, médicos e autoridades políticas do setor da saúde e posteriormente, incorporou entidades de movimentos sociais urbanos, o que a fortaleceu em plena ditadura militar (Paim, 2008). A epidemia de HIV/AIDS foi um dos grandes acontecimentos de saúde que afetaram mundialmente nossa sociedade. Ela surgiu em um contexto político global caracterizado pela emergência de governos conservadores nos países hegemônicos (como Ronald Reagan, nos EUA, e Margareth Thatcher, no Reino Unido), os quais reagiram a ela «por meio de negação, protelação, e, em uma etapa posterior, debates ásperos, quando não conflitos explícitos» (Bastos, 2006: 46-47). No Brasil, ela emergiu em meados da década de 1980, em um contexto marcado por mazelas sociais – frutos da rápida urbanização e do modelo econômico baseado na dívida externa, adotado durante o regime militar – e pelo que, para alguns autores, foi uma extensa deterioração dos sistemas de saúde (Castro & Silva, 2005: 164-165). A conjuntura econômica do país não auxiliava a um melhor investimento em bem-estar. «No Brasil, a renegociação da dívida externa e um processo intenso de inflação e de instabilidade dos mercados constituíam empecilhos para a implementação de políticas sociais como educação e saúde» (Castro & Silva, 2005: 74). Em 19834 foram reportados primeiros casos de aids no país, quando internacionalmente já se havia cunhado o termo «AIDS» e reconhecido o HIV como o seu agente etiológico – sem, todavia, existir tratamento à síndrome (Nascimento, 2005: 85). Por serem ainda poucos os casos, e principalmente entre HSH (homens que fazem sexo com homens) – público altamente discriminado, inclusive pelas políticas públicas –, não despertaram tão rapidamente uma resposta da parte do governo brasileiro5. Apenas em 1986, principalmente quando a aids passou a acometer heterossexuais, crianças e hemofílicos, o Brasil, encorajado pelo Programa Mundial de Aids da OMS (Organização Mundial da Saúde) e pela OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde), lançou oficialmente o Programa Nacional de DST e Aids6. Seus

4 Isso segundo anunciava a Folha de S. Paulo, em junho de 1983 (Nascimento, 2005: 87). Hoje, entretanto, sabe-se que o primeiro caso de Aids foi em 1980 (Galvão, 2002: 78). 5 Em 1985, Carlos Santana, então ministro da saúde, declarou à imprensa que, para o Governo federal, a aids, apesar de preocupante, não era prioritária no país (Nascimento, 2005: 123). 6 «Somente em 1985, em resposta a uma grande pressão internacional, o governo brasileiro aprovou a portaria que determinou a criação de um Programa Nacional de Combate à Aids, a ser elaborado por uma divisão nacional de controle de DST e Aids, dentro do Ministério da Saúde. E foi em 1986 que essa nova divisão começou a funcionar, de forma relativamente limitada, e a trabalhar no desenvolvimento de um plano inicial de cinco anos, visando orientar a resposta do Ministério da Saúde à epidemia até 1991» (Castro & Silva, 2005: 165).

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idealizadores7 nutriam-se daquele novo ideário de saúde coletiva e pública, fomentado desde os anos 1970 no âmbito da RSB. Esta almejava um modelo de saúde pública atrelado a um sistema de seguridade social; entendia a saúde como «direito de todos e dever do Estado», e fomentava a ideia da entrada da sociedade civil na gestão do sistema público de saúde, exercendo o controle social (Brito & Pedrosa, 2011: 35; Barbosa, 2011: 72). Em 1986, com a democracia restabelecida no país, aconteceu o grande marco desse movimento de reforma sanitária: a 8ª Conferência Nacional de Saúde (Brasil, 1986), realizada em Brasília e presidida pelo intelectual e militante da saúde pública brasileira, Sérgio Arouca. Pela primeira vez na conferência, reuniram-se – ademais aos médicos, intelectuais e técnicos do setor – representantes da população usuária dos serviços, de entidades sindicais, associativas e religiosas, bem como se entendeu a saúde em sua definição afirmativa: não como a mera ausência de doenças, mas como um direito de cidadania, não mais adquirido apenas pela condição de trabalhador (Cardoso, 2001: 63-64). Saúde passou a ser definida quase como um direito-síntese, índice do acesso da população a tantos outros, como o direito ao emprego e salário digno, moradia, transporte, lazer, educação; o direito de estar informado e de expressar suas opiniões, de participar da vida política e da definição das políticas públicas – um dos muitos caminhos por onde é possível aproximar-se ou afastar-se de condições de vida mais saudáveis (Cardoso, 2001: 64). As propostas da 8ª Conferência Nacional de Saúde foram discutidas na Assembleia Nacional Constituinte, e a nova Constituição da República, promulgada em 1988, estabeleceu que «a saúde é direito de todos e dever do estado» (Brasil, 1988), fazendo referência à garantia do «acesso universal e igualitário às ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação». Com base nesses princípios, foi criado o SUS – considerado a materialidade institucional da RBS (Paim, 2008) –, integrado por um conjunto de ações e serviços públicos, organizados em rede, de forma regionalizada e hierarquizada. O direito à saúde no Brasil não se limita à assistência médico-curativa: ele se estende à prevenção de doenças, ao controle de riscos e à promoção da saúde (Paim, 2009). Antes de o SUS existir, o sistema de saúde pública vigente, sob a responsabilidade do já extinto INAMPS (Instituto Nacional de Assistência Médica e Previdência Social), garantia atendimento apenas a trabalhadores com carteiras assinadas, ou a quem podia pagar por consultas com médicos particulares. O restante da população (a maioria) recorria ao atendimento gratuito, mas precário, das Santas Casas, postos de saúde ou mesmo hospitais universitários (Castro & Silva, 2005: 521). A história do combate à aids no Brasil está fortemente atrelada à redemocratização e ao movimento da reforma sanitária que culminou na criação do SUS. Se hoje a resposta brasileira à epidemia é reconhecida internacionalmente como um exemplo de sucesso, isso se deve aos serviços conquistados dentro e pelo SUS. Igualmente, o atual cenário socioeconômico internacional (marcado pelo que alguns críticos da fase recente do capitalismo chamam de neoliberalismo) ameaça a sustentabilidade das ações de saúde pública nos países (inclusive nos ditos desenvolvidos) e exerce, consequentemente, influência direta nas ações de enfrentamento à aids. Hoje, talvez mais do que antes, cobra-se do Estado a gestão mais eficiente da (pouca) verba destinada à Saúde – ao mesmo tempo em que almeja-se a ampliação da cobertura de saúde pública para uma maior parcela da população nacional, crescente. É neste imbróglio que surgem discursos midiáticos críticos sobre a eficiência do SUS – os quais o MS busca refutar com a campanha de prevenção à aids de 2012.

7 Vamos denominar, ao longo deste artigo, de Programa Nacional (de Aids) o programa brasileiro de enfrentamento à aids no âmbito federal, uma vez que, desde sua criação, ele recebeu várias denominações, como: Programa Nacional da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, Programa Nacional de Controle e Prevenção da Aids, Programa Nacional de DST/AIDS, Divisão Nacional de DST/AIDS, Coordenação Nacional de DST e Aids, Departamento de DST, Aids e Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais.

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3. Imprensa e discursos sobre o SUS O poder simbólico, que tem a mídia como importante vetor, «é o poder de fazer ver e fazer crer» (Bourdieu, 1989). Os meios de comunicação apropriam-se de saberes e de regimes de verdades que trazem significações e sentidos a determinadas práticas sociais caraterizadas enquanto campo, como é o caso da saúde. Desta forma, percebe-se o caráter determinante da comunicação na mediação, produção, manutenção e transformação dos sentidos de saúde, movimentando as relações semânticas do campo, constituído singularmente de relações de poder. Segundo Oliveira (2000: 74), há a necessidade de se «compreender de que maneira uma percepção social mais ampla, presente na mídia, se articula e transforma outros processos comunicacionais vivenciados na arena social». Essa perspectiva contribui para o entendimento sobre os sentidos de saúde e de SUS produzidos e transformados pelos discursos da comunicação. A sociedade brasileira passa a encarar as questões de saúde como um de seus principais interesses, e a mídia tem papel importante nesse processo – sendo, talvez, a principal produtora de sentidos de saúde (Araújo, 2013: 07) e de sentidos sobre o modelo brasileiro de saúde coletiva atual, o SUS. As redes de atendimento do SUS não são suficientemente reconhecidas pelos meios de comunicação e, consequentemente, pela sociedade, como pondera a pesquisadora Janine Cardoso (Rede Câncer, 2007: 17). Segundo ela, a mídia mostra-se desatenta e até mesmo despreparada para tratar as questões relativas à saúde. A estudiosa atribui esses problemas à formação dos profissionais de ambas as áreas: «Na saúde, escolas e faculdades preparam profissionais para orientar e normatizar, não para dialogar. Falta saúde na formação dos comunicadores e comunicação na formação dos profissionais da saúde». Assim, os estudiosos de Comunicação e Saúde atestam a existência de uma percepção coletiva da população sobre a saúde pública/SUS relacionada a problemas de acesso, assistência, atendimento e qualidade. Outro ponto diz respeito à apreensão popular de qual é seu real papel como agente da mudança no sistema brasileiro de saúde, principalmente no campo político: «em boa medida, as formas de apreensão política do significado do SUS têm a ver com os processos comunicacionais desenvolvidos» (Oliveira, 2000: 72). Estudo realizado pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea, 2011) mostra que, em 2011, o SUS obteve aprovação como ótimo e bom por cerca de 30% dos entrevistados, obtendo conceito regular por mais de 40% entre aqueles que já recorreram aos seus serviços – melhor avaliação do que entre aqueles que não usam o sistema. Outros dados, trazidos por pesquisa do Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística (CNI-Ibope, 2012)8 realizada no ano seguinte (2012), mostram que mais da metade dos brasileiros dizem-se insatisfeitos com os serviços prestados pelo SUS, tendo-o como único ou principal fornecedor de serviços de saúde. Relacionada a essa insatisfação da população está uma questão política amplamente enfatizada pelos meios de comunicação. Ao SUS são comumente associadas mazelas e dificuldades do setor, quase sempre a partir de uma «suposta ineficiência do Estado, incompetência das autoridades ou dos profissionais da área, levando à construção de uma ordem simbólica pouco reflexiva sobre o campo da política de saúde representada pelo SUS» (Oliveira, 2000: 72). Destarte, nossa hipótese central é de que a imagem pública construída a respeito da saúde, atestada pelos institutos de pesquisa, pode estar em dissonância com relação aos avanços da saúde no país. Acredita-se que o efeito das mediações promovidas pelos meios de comunicação, assim como as relações de saber-poder advindas do campo da saúde, interferem decisivamente na constituição da imagem pública do SUS e atuam, inclusive, na percepção social de saúde e na avaliação dos usuários a respeito da qualidade dos serviços oferecidos à população.

8Segundo esta pesquisa Ibope, realizada a pedido da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e divulgada em janeiro de 2012, 61% dos brasileiros consideram o serviço público de saúde «péssimo» ou «ruim», sendo que 68% deles têm a rede pública como único ou principal fornecedor de serviços de saúde.

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4. Análise discursiva do slogan O slogan «SUS também é prevenção» foi veiculado nas peças da campanha de carnaval de 2012 do MS9. Curiosamente, foi a única vez em que foi veiculado, não se repetindo sequer na campanha de dia mundial de luta contra a aids daquele mesmo ano10. Nosso esforço, aqui, é buscar entender por que foi utilizado este slogan, e não outro; por que apenas na campanha contra a aids, e não em outras campanhas de prevenção feitas pelo SUS (como de vacinação, de incentivo ao pré-natal etc.); e por que apenas na campanha do carnaval. Ao desvendarmos estas questões, necessariamente estaremos perpassando o fio das relações de poder na sociedade que tecem esse discurso, pois, em Análise de Discurso (AD), a língua é concebida como espaço de acordos e conflitos, estruturante das relações de poder (Araújo, 2009: 44); ela é a materialidade específica do discurso que, por sua vez, é a materialidade específica da ideologia (Orlandi, 2005: 17).

Cartaz que compôs a campanha de prevenção ao HIV/AIDS do carnaval de 2012, elaborada pelo Ministério da Saúde do Brasil. Fonte: Ministério da Saúde, Brasil. A AD busca compreender, a partir de uma materialidade dada (neste caso, o slogan), formações imaginárias (o jogo de antecipação dos interlocutores11), formações discursivas (ou relações de sentido) e formações ideológicas (ou relações de poder). E compreende que as relações de sentido são equívocas (ou seja, há a possibilidade de o sentido ser sempre outro12), móveis e sempre em processo histórico, embora esta «movência» procure ser contida pelas instituições.

9 Veja todas as peças da campanha de prevenção à aids feita pelo Ministério da Saúde para o carnaval de 2012 em: . Acesso em 11 ago 2014. 10 As campanhas de mobilização social à aids feitas pelo Ministério da Saúde são veiculadas em duas épocas do ano principais: carnaval e dia mundial de luta contra a aids (em 1º de dezembro). 11 Corresponde à pré-ideia que o enunciador tem de quem é o seu interlocutor. 12 Portanto, «equívoco», para a Análise de Discurso, não tem o mesmo significado negativo atribuído à palavra em seu uso habitual na língua portuguesa.

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Movimentos dos sentidos, errância dos sujeitos, lugares provisórios de conjunção e dispersão, de unidade e de diversidade, de indistinção, de incerteza, de trajetos, de ancoragem e de vestígios: isto é discurso, isto é o ritual da palavra. Mesmo o das que não se dizem. De um lado, é na movência, na provisoriedade que os sujeitos e os sentidos se estabelecem, de outro, eles se estabilizam, se cristalizam, permanecem. Paralelamente, se, de um lado, há imprevisibilidade na relação dos sujeitos com o sentido, da linguagem com o mundo, toda formação social, no entanto, tem formas de controle da interpretação, que são historicamente determinadas (Orlandi, 2005: 10). Os debates que há 26 anos vêm se realizando sobre o SUS são um ótimo lugar de observação da movência dos discursos sobre a saúde pública brasileira. Não só porque apontam o lugar de interpretação de cada agente social envolvido no debate, como também mostram os deslocamentos constantes que um mesmo agente (por exemplo, o próprio MS) faz ao longo da história. Tanto instituições quanto indivíduos, ao ocuparem estas posições discursivas – provisórias, sujeitas aos processos históricos, marcadas por incompletude, deslocamentos e rupturas –, produzem, reproduzem e deslocam sentidos, igualmente. Entretanto, a interpretação, embora equívoca, não é livre, pois há uma política do sentido, que deve ser considerada. A produção do discurso é desigualmente distribuída na formação social (Foucault, 1996), já que não é todo mundo que pode interpretar de acordo com sua vontade: «há especialistas, há um corpo social a quem se delegam poderes de interpretar (logo de ‘atribuir’ sentidos), tais como o juiz, o professor, o advogado, o padre, etc.» (Orlandi, 2005: 10) – e, acrescentamos, a mídia noticiosa e o próprio Ministério da Saúde. Há modos de se interpretar, sempre «administrados» na história, nunca soltos. As instituições midiáticas e de governo são influentes «administradoras» de sentidos para uma sociedade. Assim, o discurso, enquanto prática social, é o espaço no qual se dá a luta pelo poder e pela univocidade da interpretação, própria a qualquer comunicador, a qualquer falante. Daí o conceito de regularidade discursiva (Foucault, 2009), que permite dar conta dos regimes de verdade e das relações poder/saber: um padrão de comunicação que se sustenta no tempo, no qual se expressa uma maneira especial de entender, representar e transmitir o sentido da realidade. Portanto, quando entendemos o efeito da ideologia na linguagem, percebemos que a produção do discurso e suas múltiplas possibilidades de interpretação são necessariamente reguladas, por um conjunto de regras anônimas e historicamente determinadas que se impõe a todo sujeito. Um sentido é sempre aquilo que poderia ser dito, naquela conjuntura específica, por aquele sujeito (indivíduo ou instituição) em particular, instado ideologicamente a dizer uma coisa e não outra. No caso do slogan, fica-nos claro que ele foi construído para buscar refutar outros sentidos sobre o SUS (vistos na seção anterior), segundo os quais ele seria ineficiente, meramente curativo – muitas vezes propagados em coberturas jornalísticas e bastante circulantes entre a população brasileira. A partícula «também», escrita no slogan, busca dialogar com uma outra formação discursiva, bastante presente na imprensa brasileira, segundo a qual o SUS é ineficaz por, muitas vezes, negligenciar as ações preventivas e ter, como consequência, uma sobrecarga nos serviços curativos. Discorrer sobre o SUS é discorrer também sobre sentidos de saúde. Tanto a Medicina, enquanto disciplina, quanto as noções de cuidado, doença, clínica, tratamento e cura existem há séculos. Porém, foi só após o fim da Segunda Guerra Mundial que a «saúde» passou a ter uma definição cunhada pela Organização Mundial da Saúde: «estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não meramente ausência de doença ou incapacidade» (Almeida Filho, 2011: 8). Apesar de esta definição ser considerada oficial e ser amplamente utilizada até os dias atuais, sua grande abrangência acaba por dificultar o claro entendimento do que realmente caracteriza um estado de saúde que não a partir da ausência de doença. Baseado nesta e em outras questões em torno dos conceitos e da definição de saúde, Almeida Filho (2011: 48) destaca uma omissão da sociologia médica em construir uma teoria geral da saúde capaz de superar o modelo biomédico dominante. E é esse fator que, segundo ele, impossibilita uma conceituação coletiva da saúde que fuja da perspectiva reducionista de ser apenas o somatório de ausência de doenças. A ideologia do movimento preventivista, no qual se baseiam as políticas de saúde pública atuais, iniciou-se pela caracterização de seu oponente – a medicina curativa: «[...] uma prática médica que se esgota no diagnóstico e

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terapêutica, onde a prevenção e a reabilitação são secundárias, sendo, finalmente, a medicina que privilegia a doença e a morte contra a saúde e a vida» (Arouca, 1975: 13). Sob este prisma, portanto, a medicina curativa é uma prática ineficiente, visto que «centralizou-se na intervenção terapêutica, descuidando-se da prevenção da ocorrência, o que levou inevitavelmente ao encarecimento da atenção médica e à redução do seu rendimento. A medicina curativa, portanto, caracteriza-se pela ausência de racionalidade» (Arouca, 1975: 13). Ora, é esta ideologia preventivista e este conceito de saúde que subjaz as críticas da imprensa sobre o funcionamento do SUS – em coberturas que, geralmente, privilegiam apenas as notícias sobre o mau funcionamento das unidades curativas, olvidando-se dos outros serviços do SUS que buscam a prevenção das doenças e que, em muitos casos, funcionam bem (como a política nacional de combate à aids, ainda que criticada). Estamos testemunhando, portanto, um embate pelas interpretações hegemônicas acerca do SUS, travado entre o MS e a mídia noticiosa brasileira, em geral. E, nessa disputa, as campanhas contra a aids são bastante úteis ao MS, pois elas figuram entre as de maior capitalização de audiência e de atenção da imprensa. Em primeiro lugar, elas marcam o Ministério da Saúde como instituição de grande poder de regulação dos sentidos para a população brasileira: segundo Cardoso (2001: 111), a presença do «sujeito da enunciação» «Ministério da Saúde», através da colocação de seu logotipo no final das peças televisivas das campanhas contra a aids, marca-o diferenciadamente como a voz de autoridade e «valoriza este final como um tempo/espaço nobre, como no final das fábulas, quando se resume a moral da história, a ‘essência’ que deve ser retida». Nas outras peças, esse papel fica a cargo do slogan. Em segundo lugar, as campanhas de prevenção à aids, sobretudo as de carnaval, têm sido bastante utilizadas para pautar os veículos de comunicação, especialmente depois da criação da assessoria de imprensa do Programa Nacional de Aids (Spink et al. 2001) – a ponto de muitos ativistas reclamarem hoje que a aids só é notícia no Brasil quando do lançamento das campanhas. Portanto, mais do que qualquer outra campanha de saúde pública que o SUS atualmente oferta, as campanhas de aids representam ocasião especial para tentar pautar a imprensa sobre sentidos mais positivos acerca do SUS. Por bastante tempo, esse potencial esteve subaproveitado: as campanhas de mobilização à aids anteriores, ao deixar de correlacionar o SUS aos serviços de saúde anunciados (como distribuição gratuita de preservativos, testes a DST/AIDS e remédios contra a aids), não o destacavam e, portanto, contribuíram para o silenciamento de sentidos mais positivos em relação a ele. Estamos assumindo, portanto, que não só a imprensa é contribuidora de uma formação discursiva crítica ao SUS, através dos seus dizeres: o próprio MS também o é, através do seu silenciamento, do não dito. Daí o seu esforço atual em correlacionar o SUS à política nacional de combate à aids, reconhecida internacionalmente por sua vanguarda e seu sucesso.

5. Últimas colocações O SUS revolucionou a relação do Estado com a população ao definir como princípios: a integralidade, a assistência articulada e contínua das ações em serviços, em todos os casos e níveis de complexidade; a universalidade, o direito de acesso aos serviços de saúde para todos, em qualquer nível de assistência; e a equidade, que se refere ao princípio da igualdade da assistência da saúde, sem preconceitos ou privilégios. Outro avanço democrático garantido pela legislação do SUS foi «direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde» (Paim, 2009). Além disso, o SUS tem a participação social como uma das principais diretrizes e estabelece, mesmo que não de maneira explícita, a centralidade da comunicação nesse projeto. Em sua dimensão institucional e setorial de acesso a serviços de saúde, o SUS é apenas um aspecto do direito à saúde garantido pela Constituição. Mesmo que o sistema consiga absorver e atender aos problemas biopsicossociais da população – na sua integralidade, universalidade e equidade –, não é atribuição desta política pública atenuar e/ou sanar questões de qualidade e de modo de vida, de desigualdade social, de pobreza e de violência, mas atuar como coparticipante de um complexo integrado de medidas públicas estruturadas para a resolução destes problemas. Acredita-se, portanto, que um dos principais desafios à eficácia e à eficiência do SUS seja justamente a efetividade de outras políticas públicas. Reside aí a pertinência e a importância da comunicação social como meio capaz de ampliar as bases sociais e políticas, no sentido de fazer valer a democracia e as lutas por mudanças nas políticas públicas brasileiras.

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Os embates discursivos entre o SUS e a mídia continuam. O caso mais recente trata-se da última pesquisa divulgada em agosto de 2014 pelo instituto Datafolha13. Nela, 74% dos usuários avaliaram o SUS como satisfatório, com nota superior a 5 – sendo que um terço dos entrevistados deram nota entre 8 e 10 –, e 91,3% das pessoas que buscaram atendimento em postos de saúde receberam atendimento. No entanto, verificou-se outro gesto de interpretação de alguns veículos da imprensa sobre esses mesmos resultados da pesquisa: «Pesquisa diz que 93% estão insatisfeitos com SUS e saúde privada» (Bem Estar, G1, 19/08/2014); «61% dos brasileiros dão nota menor que 5 à saúde, aponta pesquisa (...) Para 19% dos entrevistados o SUS merece nota zero. Outros 18% deram nota 5.» (Folha de S. Paulo, 19/08/2014). Após polêmica gerada com a divulgação dos dados, o Ministério da Saúde em conjunto com o Conass (Conselho Nacional de Secretários da Saúde) e o Conasems (Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde) divulgaram um vídeo com esclarecimentos sobre o que chamaram de «interpretação tendenciosa e parcial dos dados» divulgados pelo Datafolha e forneceram o que seria a «interpretação correta»14. Concordamos com Araújo (2013: 6) quando ela diz que «não é possível fazer cumprir os princípios do SUS, que supõem a inclusão ativa de vários atores e suas vozes, historicamente excluídos, sem o concurso da comunicação». Afinal, a comunicação pode e deve fazer parte de ações como a formulação de políticas públicas, de campanhas de conscientização, de ações conjugadas de conscientização e de apoio ao poder público. E a mídia pode ser grande aliada deste projeto de saúde pública nacional, a partir de coberturas que levantem as reais causas estruturantes dos problemas enfrentados, que comuniquem os seus sucessos e que divulguem os direitos e vias de participação do cidadão para o melhoramento do SUS.

Referências bibliográficas ARAÚJO, I. S. (2009). “Contextos, mediações e produção de sentidos: uma abordagem conceitual e metodológica em comunicação e saúde”. RECIIS – Revista eletrônica de comunicação, informação & inovação em saúde, 3 (1), pp. 42-52. ____________. (2013). “O Campo da Comunicação e Saúde: contornos, interfaces e tensões”. XXXVI Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Disponível em http://bit.ly/1zUc58V [consultado em 06-08- 2014]. AROUCA, S. (2003). O dilema preventivista – contribuição para a compreensão e crítica da Medicina Preventiva. Rio de Janeiro: FIOCRUZ. BARBOSA, M.C.M. (2011). “Plano de Ações e Metas (PAM) e Conselhos de Saúde. Militância e Direitos Humanos no combate ao HIV/AIDS”. In: F.R. Santos, J.R. Pereira, M.A.B. Leão (eds.). Para uma nova forma de ativismo: Projeto Rede de Proteção Humana Brasil, São Paulo: Cuore; 2011. BASTOS, F. I. (2006). Aids na terceira década. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. BOURDIEU, P. (1989). O poder simbólico. Lisboa: Difel. BRASIL. (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado. ________.(1986). 8ª Conferência Nacional de Saúde. Relatório final.

13 A pesquisa intitulada “A opinião dos brasileiros sobre o atendimento na área de saúde”, encomendada pelo Conselho Federal de Medicina ao instituto Datafolha, ouviu 2.418 pessoas maiores de 16 anos, das classes A, B, C, D e E, entre os dias 3 e 10 de junho de 2014. 14 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=8GcyQxGdyfI. Acesso em: 12 dez. 2014.

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