Ditadura como (des)medida democrática na contemporaneidade

October 13, 2017 | Autor: Nildo Avelino | Categoria: Democracia, Anarquismo, Ditadura
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1 Ditadura como (des)medida democrática na contemporaneidade Nildo Avelino (Seminário UNIRIO, 17/11/2014: Mesa 2, 13h-17h)

Quero agradecer ao professor Carlo Romani pelo convite para participar do seminário “Estado, polícia e perseguição política na história”. Agradeço pelo convite e também parabenizo os organizadores por essa iniciativa; uma iniciativa que não é somente oportuna, mas que é necessária e urgente frente a onda de perseguições que tem ocorrido no Brasil. Eu espero que esse seminário possa servir também de denúncia e de alerta contra a perseguição política de nossos dias. Por fim, eu gostaria de dizer que é uma alegria poder dividir essa mesa com os professores José Damiro e René Berthier. Muito bem. O título da minha intervenção nessa mesa é “Ditadura como (des)medida democrática”. E a partir desse título eu gostaria de propor uma reflexão sobre a ditadura não como um elemento estranho e antitético à democracia; mas propor uma reflexão que tome a ditadura como medida democrática; pensar a ditadura historicamente como procedimento democrático. Ou seja, o argumento que gostaria de sustentar é que a ditadura não é o outro da democracia na história, mas foi e tem sido um de seus instrumentos. E a partir desse argumento eu gostaria de retomar para nosso debate a crítica à democracia que, a meu ver, foi e continua sendo a mais consistente: a crítica anarquista. Muito bem. Em que sentido se pode considerar a crítica anarquista como a mais consistente? Entre as críticas dirigidas contra a democracia, a crítica anarquista foi a única que historicamente recusou substituir uma violência por outra, substituir a violência do regime democrático pela violência de outro regime. Se considerarmos historicamente os ataques à democracia, percebe-se que, de Platão a Marx, foram ataques acompanhados de um ódio à democracia que alimentou as mais diversas formas de ditaduras. Por exemplo, os liberais conservadores da escola de Jeremy Bentham, Stuart Mill e mais contemporaneamente Schumpeter, inimigos declarados da democracia, atacaramna para proclamar uma espécie de ditadura do mercado.1 Schumpeter, por exemplo, sustentou que os eleitores são como consumidores que escolhem produtos políticos oferecidos pelos partidos em concorrência no comércio da política. O paradigma é, portanto, o mercado.2 Já o ataque de Marx à democracia, como se sabe, contém a proclamação da assim chamada ditadura revolucionária do

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Para um bom estudo sobre o assunto, veja-se: C. B. Macpherson. A democracia liberal: origens e evolução. Tr. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. 2 Cf. J. A. Schumpeter. Capitalismo, socialismo e democracia. Tr. Ruy Jungmann. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961.

2 proletariado.3 E no que diz respeito aos teóricos do nazi-fascismo, tais como Carl Schmitt e Giovanni Gentile, o ataque a democracia tem por objetivo substitui-la pela ditadura do Führer, do Duce ou do Pai dos Povos.4 Portanto, o recurso a algum tipo de ditadura atravessa todas essas críticas à democracia. Nesse sentido, são críticas que engendram, teórica e praticamente, formas mais ou menos ditatoriais e autoritárias. E é curioso, como mostra Jacques Rancière em um livro que acaba de ser traduzido no Brasil,5 todas essas “críticas ditatoriais” à democracia se tornaram o discurso dominante de teóricos da esquerda e da direita, desde Platão chegando até Wiston Churchill que em 1947 referiu-se à democracia como “a pior forma de governo, salvo todas as demais”, isto é, um regime político repleto de defeitos, mas preferível a todos os outros. Enfim, esse ódio à democracia é um sentimento comum que atravessa a crítica de todos esses diferentes teóricos; ódio que provoca em cada um deles o mesmo tipo de recurso excessivo à ditadura. Para essas críticas antidemocráticas seria plausível dizer que a ditadura funciona na sua desmedida. Muito bem. Frente a essas críticas seria preciso distinguir e perceber a singularidade da crítica anarquista à democracia. A crítica anarquista à democracia foi a única que recusou de modo consistente o recurso à ditadura de qualquer espécie. Na história os anarquistas foram os únicos que, ao criticar a democracia, se esquivaram à tentação autoritária e ditatorial. O livro de Rancière também nos ajuda a compreender a razão disso. Na crítica anarquista não há o que Rancière chama de ódio à democracia. Ao contrário, na sua crítica os anarquistas assumem a democracia de maneira positiva. Proudhon, por exemplo, em seu livro Do princípio federativo, coloca lado à lado democracia e anarquia como duas espécies que derivam do mesmo regime de liberdade cuja característica comum é a divisão do poder.6 A crítica de Proudhon não tem por objetivo a destruição da democracia, mas a sua efetivação real e concreta. De modo geral, o que os anarquistas fizeram foi denunciar a perversão da democracia pelo capitalismo. Se tomarmos um exemplo clássico, que é a crítica do anarquista italiano Errico Malatesta, isso fica claro. Em 1924, ou seja, apenas dois anos após a ascensão do Partido Nacional Fascista ao poder, Malatesta escreve no seu jornal Pensiero e volontà um artigo que se tornou bastante conhecido intitulado “Democracia e anarquia”. Nesse artigo Malatesta chama de críticos “ditatoriais” da democracia, entre outros, os partidários do bolchevismo, que segundo ele – eu cito – “mostram-se adversários da democracia apenas quando descobrem uma forma de governo que deixa mais campo livre para seus arbítrios”. Em seguida, Malatesta escreve a frase que se tornou célebre; 3

K. Marx. Crítica do Programa de Gotha. Tr. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2012. Cf. J.-P. Faye. L’État total selon Carl Schmitt (ou comment la narration engendre des monstres). Paris: Germina, 2013. 5 J. Rancière. O ódio à democracia. Tr. Mariana Echalar. São Paulo: Boitempo, 2014. 6 P.-J. Proudhon. Du principe fédératif et de la nécessité de reconstituer le parti de la révolution. Paris: E. Dentu, 1863. 4

3 ele diz: “Não tenho dúvida que a pior das democracias é sempre preferível [...] que a melhor das ditaduras”.7 Para Malatesta, ainda que a democracia em regime capitalista seja uma mentira, fato é que toda mentira de alguma maneira sempre compromete o mentiroso limitando seu livre arbítrio. Do mesmo modo, ainda que na democracia a soberania popular seja uma comédia, vale mais a pena acreditar-se livre mesmo não o sendo do que saber-se escravo aceitando a escravidão. Em outras palavras, para Malatesta, a mentira democrática é menos liberticida que o despudor ditatorial; do mesmo modo que aquele que acredita ser livre tende a agir e a se comportar com liberdade. Em suma, na crítica de Malatesta não há a rejeição da democracia, existe sim a retomada radical e consistente dos valores que constituem a própria democracia. Malatesta diz: “A democracia é mentira, é opressão, é no fundo oligarquia, isto é, governo de poucos para o benefício de uma classe privilegiada; mas – continua Malatesta com o claro objetivo de distinguir sua crítica dos críticos ditatoriais – nós anarquistas só podemos combatê-la em nome da liberdade e da igualdade, ao contrário daqueles que a substituem por algo de pior.”8 Percebam, portanto, que a maneira pela qual os anarquistas combatem a democracia é opondo a ela a liberdade e a igualdade. Em outras palavras, os anarquistas combatem a democracia utilizando-se dos próprios valores democráticos. O que equivale a dizer que os anarquistas combatem a democracia na mesma medida em que a reafirmam; reafirmam os valores da própria democracia, isto é, a liberdade e a igualdade. Isso é muito singular e particularmente importante na nossa história política. Como disse inicialmente, os anarquistas foram os únicos na história a sustentar a superação da democracia recusando-se utilizar para isso métodos não-democráticos. De modo paradoxal, para os anarquistas a melhor maneira de combater a democracia é reafirmando radicalmente seus valores de liberdade e igualdade. Neste sentido, para os anarquistas o método para superar a democracia deve ser necessariamente democrático, jamais ditatorial ou autoritário. É nesse sentido que considero a crítica anarquista à democracia a mais consistente quando comparada historicamente com outras críticas que mencionei. Os liberais defendem contra a democracia a violência do mercado; querem um mínimo de democracia e um máximo de mercado, uma democracia fraca e um mercado politicamente forte. Os marxistas defendem a violência revolucionária do Partido. E os que defendem abertamente a ditadura sustentam a violência do líder. Mas todos lançam mão de métodos não-democráticos e meios mais ou menos ditatoriais. Em relação a eles, a crítica dos anarquistas se distingue claramente. 7

E. Malatesta. “Democrazia e anarchia”. Pensiero e Volontà, Roma, ano I, n. 6, 15/03/1924. In: _____. Scritti, 3º volume: Pensiero e Volontà e ultimi scritti 1924/1932. Carrara: Movimento Anarchico Italiano, 1975, p. 45-49. 8 Idem.

4 Muito bem. Seria preciso perceber também de que maneira a crítica anarquista se relaciona não com os “críticos ditatoriais” da democracia, mas com os democratas, isto é, não com os inimigos, mas com os adeptos da democracia, com aqueles que a defendem e a elogiam como o melhor regime político. Aqui a tarefa é um pouco mais difícil, porém mais atual por que está relacionada com nosso presente. É mais difícil no sentido em que hoje a democracia é uma unanimidade. Após a “terceira onda democrática” que varreu o mundo a partir dos anos 1970, a democracia se tornou um valor inquestionável, uma espécie de nova religião mundial. Após a terceira onda democrática os discursos contra a democracia foram praticamente suplantados por uma adesão irrefletida aos ideais democráticos. Essa unanimidade em relação a democracia dá provas do gigantesco poder simbólico do qual a palavra foi investida. Hoje dizer-se não-democrata ou antidemocrata é sinônimo de autoritário, senão de fascista. Veja-se, por exemplo, as declarações de Marilena Chauí, de Wanderley Guilherme dos Santos e do Presidente do PT, Rui Falcão, a respeito dos black blocs. Para eles os black blocs não são obviamente democratas, mas tampouco são anarquistas; são claramente fascistas na medida em que adotam a violência como instrumento político. Na perspectiva desses senhores, nada é mais antidemocrático que a violência. E isso por que na sua perspectiva, que é a perspectiva da democracia liberal, a violência deve ser substituída pelo voto que é o meio pacífico por excelência para tomada de decisão.9 Essa pacificação da tomada de decisões políticas por meio do processo eleitoral constitui o coração das nossas democracias liberais. As decisões devem ser tomadas por governos eleitos pacificamente, isto é, por meio de disputa política na qual “os candidatos derrotados entregam pacificamente os cargos aos vencedores”.10 Ou seja, quando as disputas de poder são feitas via processo eleitoral as organizações e os grupos políticos em disputa se desarmam. Nesse contexto, afirmam os democratas, não há lugar para a perseguição política. É esse o aspecto da democracia liberal que seria a dimensão decisiva que não apenas a diferenciaria, mas que também a colocaria em oposição direta com os regimes ditatoriais. E isso por razões óbvias: como se sabe, na ditadura as disputas políticas são decidas com a morte e a tortura do adversário político, sendo a perseguição política seu maior instrumento. A partir desse argumento, a ditadura se torna o elemento estranho da democracia; torna-se seu outro. Democracia e ditadura são dois regimes distintos que se excluem mutuamente. O primeiro, o regime democrático, diz respeito ao chamado Estado de Direito, isto é, um Estado no qual todos os indivíduos possuem segurança 9

Veja-se essa discussão em: N. Avelino. “Violência, Democracia e black blocs”. Alegrar, Campinas, v. 12, dez./2013. Disponível em: 10 R. Dahl. Poliarquia. Participação e oposição. Tr. Celso M. Paciornick. São Paulo: Edusp, 2012, p. 41.

5 jurídica contra a força do governo. Já o regime ditatorial diz respeito ao que se chama Estado de exceção, isto é, um Estado em que os indivíduos não possuem qualquer proteção contra o governo, estando sujeitos a todo tipo de arbitrariedade e perseguição política. Muito bem. O problema é que, a despeito dessa distinção teórica entre democracia e ditadura, a história passada e recente da nossa prática política nos mostra um cenário completamente diverso e os acontecimentos recentes no Brasil nos obrigam a fazer os seguintes questionamentos: se democracia e ditadura são regimes efetivamente opostos, então como explicar que, em meio ao marco dos 50 anos do golpe civil-militar, a democracia brasileira tenha adotado práticas ditatoriais cujo precedente encontra-se apenas em seu passado militar? Como explicar a suspensão de direitos democráticos tais como o de reunião, expressão e manifestação? Como explicar o emprego, depois de décadas, contra a sociedade civil da famigerada Lei de Segurança Nacional? Como explicar a evidente articulação entre os poderes executivo, legislativo e judiciário na repressão e condenação de manifestantes com o objetivo claríssimo de enquadrá-los em nefastos projetos de lei antiterrorismo? Enfim, ao que atribuir a virulenta repressão governamental que tem se abatido sobre a pessoa dos manifestantes no Brasil – e também no mundo11 –, e cujo ato mais recente foi a prisão preventiva de manifestantes cariocas e paulistas sob acusação de formação de quadrilha? Todos esses fatos recentes, e muitos outros (a lista seria imensa!), contrariam a teoria e jogam na cara do historiador um cenário que foi bastante familiar aos chamados anos de chumbo. Porém, a resposta dos democratas para todos esses fatos veio sob a necessidade de se fortalecer a frágil e recente democracia brasileira. Ou seja, a maioria absoluta dos intérpretes das recentes manifestações no Brasil, bem como da onda repressiva que elas despertaram, analisou os acontecimentos em termos de crise de representação, isto é, em termos de crise da democracia. O que tem ocorrido no Brasil e no mundo, dizem, é um retrocesso democrático. Agora, e se o que se tem assistido não for retrocesso ou recuo da democracia? E se, ao contrário, se tais fatos decorressem da própria marcha da democracia; do seu avanço, da sua demonstração de força e vigor? E se, ao contrário, em vez de crise, falha, defeito, aquilo que temos assistido fosse um excesso democrático? Como já indiquei, essas questões hoje se tornaram improváveis graças a “terceira onda democrática” que fez da democracia um valor inquestionável. Porém, o tipo de questionamento que eu gostaria de levantar é precisamente esse: e se a nossa época sofresse de democracia? E se, ao contrário do que se pensa, em vez de corrigir a democracia fosse preciso des-democratizar a sociedade? Desdemocratizar a sociedade não, obviamente, para substitui11

No momento em que escrevo essas linhas centenas de manifestantes desafiaram, no estado americano de Missouri, o toque de recolher do governador Jay Nixon para protestar contra o assassinato de Michael Brown, jovem negro de 18 anos, morto por um policial branco com seis tiros quando, ao que parece, mantinha suas mãos ao alto. Daí o slogan dos protestos: hands up, don’t shoot (mãos ao alto, não atire).

6 la por práticas ditatoriais; mas, como já foi dito, com o objetivo de tornar a democracia mais efetiva no sentido em que pretende a crítica anarquista. Em suma, é preciso retirar a sacralidade da democracia; fazer com que deixe de ser intocável para que possa se tornar novamente pensável. E um dos aspectos que seria necessário repensar é justamente essa suposta incompatibilidade entre democracia e ditadura, entre direito e violência. A repressão às recentes manifestações no Brasil nos colocaram diante de um fato que Jacques Derrida chamou de dimensão suicidária de nossas democracias.12 Trata-se do estranho paradoxo segundo o qual as democracias modernas se defendem e se conservam limitando-se e morrendo enquanto democracia. Dito de outro modo, trata-se do fato de que para se defender e se conservar enquanto democracia, o governo democrático é obrigado a adotar medidas não-democráticas, isto é, medidas ditatoriais. E com isso, a democracia se destrói na mesma medida em que se defende e se preserva. Segundo Jacques Derrida, essa dimensão suicidária não somente constitui a singularidade histórica das nossas democracia; mas trata-se também do aspecto que está entre as suas condições de possibilidade. Ou seja, sem essa dimensão suicidária, isto é, sem a adoção de medidas nãodemocráticas, as democracias modernas não seriam possíveis. É preciso que as democracias se defendem contra seus inimigos, contra o chamado eixo do mal, contra os assassinos da liberdade democrática. Agora, o problema é que para combater os assassinos da liberdade democrática, a democracia é obrigada ela mesma a restringir e limitar de maneira inevitável essas mesmas liberdades democráticas que pretende defender. Para defender a liberdade, a democracia deve lançar mão do seu contrário, isto é, deverá aumentar os poderes opressivos da polícia, do exército, da magistratura. Em uma palavra, deve fazer uso a priori abusivo da violência, tanto física quanto simbólica, contra seus inimigos. Portanto, com uma mão a democracia defende a liberdade e com a outra destrói essa mesma liberdade. De modo que, ao combater aos inimigos da liberdade democrática, a democracia se transforma inevitavelmente no contrário que ela tanto rejeita e no oposto que ela recusa, e nesse momento a ditadura se torna sua melhor medida política. Daí o título da minha intervenção nessa mesa. Esse aspecto paradoxal das nossas democracias foi descrito pelo filósofo italiano Roberto Esposito como “paradigma da imunização”.13 O que é imunização? É um tipo de proteção negativa por meio da qual um corpo se salva, se conserva e se protege assimilando uma condição que o nega e que o reduz. Do mesmo modo procedem as nossas democracias: elas se imunizam contra seus inimigos introduzindo, no seu próprio funcionamento político, lógicas e práticas não-democráticas, isto é, ditatoriais. Portanto, ao se auto-imunizar contra seus inimigos, a democracia encontrará na 12 13

J. Derrida. Voyous. Deux essais sur la raison. Paris: Galilée, 2003. R. Esposito. Bios. Biopolítica e filosofia. Trad. M. Freitas da Costa. Lisboa: Edições 70, 2010.

7 ditadura uma medida profilática bastante eficaz. Por essa razão, em vez de supor que democracia e ditadura se anulam, seria melhor pensar que se reforçam mutuamente por uma espécie de simbiose, isto é, se associam cada uma visando seu próprio benefício e preservando suas características. Muito bem. Se isso é verdade; se é assim que as coisas ocorrem, então, antes de defender a consolidação das instituições democráticas, antes de pretender corrigir a democracia, seria preciso perguntar como e por que se produz esse paradoxo segundo o qual as nossas democracias engendram no seu próprio interior as formas da sua própria aniquilação. Ou seja, como e por que a democracia gera por si mesma a ditadura? Aqui também eu creio que a crítica anarquista possa nos ajudar a formular uma resposta. Os anarquistas afirmam que se a democracia produz dentro de si mesma formas ditatoriais, isso ocorre pelo fato de que ambas, tanto a democracia quanto a ditadura, partilham do mesmo kratos político. Dizem os anarquistas que se a democracia gera por si mesma monstros ditatoriais, isso se deve ao fato de que o kratos, entendido como a força do poder político, seja da demo-kratia seja auto-kratia, esse kratos não é nem morfologicamente, nem qualitativamente distinto. E essa não distinção da força do poder político, da violência do poder político, faz com que democracia e ditadura sejam perfeitamente permeáveis entre si. Democracia e ditadura remetem igualmente para um kratos como força dominadora, não havendo nenhuma razão para acreditar que a violência política se desarmaria na democracia. Mais uma vez a reflexão de Errico Malatesta nos é útil. Em 1920 ele dizia que entre as monarquias absolutistas e as monarquias constitucionais existe a seguinte diferença: é que nas monarquias constitucionais, “o rei faz a mesma coisa, porém com menos trabalho, menos responsabilidade e menos perigo do que no regime de governo absoluto”.14 Ou seja, para Malatesta na monarquia constitucional, ainda que o kratos do rei, isto é, a força política do governo real, esteja controlada constitucionalmente, trata-se de um controle que não desarmaria sua violência; ao contrário, a violência do kratos se torna mais eficaz na medida em que lhe confere um verniz de legitimidade. E o mesmo raciocínio ele irá aplicar à democracia; Malatesta diz: “somos inimigos da ditadura que é tirania declarada, somos inimigos também da democracia que é tirania mascarada e provavelmente mais nociva do que uma franca ditadura, pois dá às pessoas a ilusão de estar em liberdade sendo, portanto, mais duradoura.”15 Inspirando-se na proposição de Derrida,16 seria possível concluir a partir da reflexão de Malatesta, e com isso eu finalizo, que é preciso considerar o próprio kratos, ou seja, a força do poder político, como sendo sempre o momento de uma ditadura, mesmo se não se está em regime de 14

E. Malatesta. “Socialisti e anarchici”. Umanità Nova, Roma, n. 129, 10/09/1921. In:_____. Scritti, 1º volume: Umanità Nova 1920/1922. Carrara: Movimento Anarchico Italiano, 1975, p. 218-221. 15 Idem. 16 J. Derrida, op. cit., 2003.

8 ditadura. Creio ser possível concluir a partir da crítica anarquista que a ditadura é sempre a essência do kratos, isto é, a ditadura é sempre a essência de todo poder político, tenha esse poder o nome e a forma que tiver (monarquia, república, democracia). E isso por que o kratos sempre está ligado ao poder de dizer sob a forma do ditado, da prescrição, da ordem ou do diktat (como étimo da palavra ditadura). Em outras palavras, a ditadura sempre encontrará formas de permanência em toda parte em que existir e funcionar o kratos como força do poder político. Consequentemente, dirão os anarquistas, só é possível efetivamente abolir a ditadura pela abolição do kratos. Muito bem. Para finalizar, se quisermos compreender seriamente o lugar da ditadura na nossa história política é preciso parar de percorrer esse caminho que Daniel Aarão Reis17 chamou com razão de tranquilo, e que nos conduz a considerar quaisquer formas autoritárias “como uma espécie de força estranha e externa” à democracia. E, sobretudo, se quisermos especialmente evitar seus eternos efeitos de repetição, é preciso reconhecer, como pontuou Balibar, que todas as formas de ditaduras até hoje conhecidas não foram nem são exteriores à história política das sociedades ocidentais. E que, ao contrário, seria mais exato dizer que é a ditadura que “fornece a media (desmesurada)” das nossas democracias. Enfim, é urgente reconhecer que a democracia moderna: “É Estado de direito, mas também de polícia; Estado de integração dos indivíduos [...], mas também Estado de exclusão dos rebeldes, dos anormais, dos desviados e dos estrangeiros; Estado ‘social’, mas também Estado de classes organicamente associado ao mercado capitalista com suas implacáveis ‘leis de população’; Estado democrático e civilizado, mas também Estado de potência, de conquista colonial e imperial.”18 Todavia, para essa tarefa, para poder reconhecer as formas ditatoriais que têm acompanhado a democracia moderna, seria preciso adotar uma perspectiva histórica em substituição à explicação jurídica para perceber as formas e as técnicas efetivas por meio das quais o poder democrático se exerceu em nossas sociedades. Assim, em vez de perguntar ao Direito sobre o funcionamento da democracia, perceber seu funcionamento naquilo que, escapando-lhe, constrange a democracia a ser o oposto do que ela é. Seria possível descrever, por exemplo, a partir da repressão ao anarquismo no final do século XIX, a origem e o uso de técnicas governamentais que foram em seguida transmitidas às ditaduras e repassadas às democracias; técnicas que ainda estão em pleno vigor. A começar pelos direitos trabalhistas, as políticas de segurança e previdência. Todas essas práticas foram invenções da ditadura que nossa democracia herdou plenamente. 17

D. A. Reis. Ditadura e democracia no Brasil. Do golpe de 1964 à Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Zahar, 2014, p. 8. 18 E. Balibar. “Le Hobbes de Schmitt, le Schmitt de Hobbes (préface)”. In: C. Schmitt. Le Léviathan dans la doctrine de l’État de Thomas Hobbes. Sens et échec d’un symbole politique. Trad. fr. Denis Trierweiler. Paris: Éditions du Seuil, 2002, pp. 11-12.

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