Ditadura e perseguição à educação popular e a educadores – algumas notas e reflexões [EM CONSTRUÇÃO]

July 24, 2017 | Autor: J. Iulianelli | Categoria: Ethics, Critical Pedagogy, Military Dictatorship
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TAVARES, Lais. Um resgate do massacre de Manguinhos. Disponível em http://www6.ensp.fiocruz.br/radis/conteudo/um-resgate-do-massacre-de-manguinhos, Acessado aos 25 de março de 2015.
Os casos dos dois professores podem ser mais conhecidos por meio da reportagem do jornal carioca: DUARTE, Alessandra. Repressão da ditadura militar também invandiu as salas de aula -Perseguição a professores incluiu escutas em escolas,demissões e censuras a docentes;
Disponível em http://oglobo.globo.com/sociedade/educacao/repressao-da-ditadura-militar-tambem-invandiu-as-salas-de-aula-11896867#ixzz3VPAPLwNM acessada aos 25 de março de 2014.
A terceira subseção desta seção abordará a relevância da Ação Católica, da Doutrina Social da Igreja e do Vaticano II para a agenda do aggiornamento católico e sua influência para a teologia da justiça social e para seu seguimento, a teologia da libertação, bem como para as práticas pastorais de socialização.
Trechos dessa carta podem ser lidos em Kadt, Emanuel. Católicos radicais no Brasil. Brasília-DF: Unesco, 2007 (1970). p. 96ss.
Depoimento oferecido por Cândido Mendes de Almeida, aos 10 de maio de 2013, no escritório da Universidade Cândido Mendes, no complexo UCAM, no centro do Rio de Janeiro (r. da Assembleia, 10. O relato foi oferecido em duas ocasiões. Prof. Cândido atendeu com delicadeza e simpatia ao entrevistador pela CNV).
Precisamos observar que há a disputa entre hermenêuticas históricas na interpretação do catolicismo, que podem ser caracterizadas como hermenêutica da acomodação e da descontinuidade. Sobre o assunto ver Caldeira, R. C. "Bases temporais para o estudo histórico da Igreja Católica no século XX" In Revista Horizonte 5 (10). BH: Puc-BH, 2007, pp. 75-90.
Depoimento tomado a dom Tomás Balduíno, aos 12 de março de 2014, em sua residência, na cidade de Goiás.
O trabalho de Charles Antoine permanece quase único em relação ao tema, AINTOINE, C. O integrismo brasileiro. RJ: Civilização Brasileira, 1980.
Mainwaring, S. Igreja Católica e política no Brasil : 1916 – 1985. SP: Brasiliense, 1985.
O conceito concordata moral está adotado por Kenneth P. Serbin, ver Serbin, K. Diálogo na sombra. SP.: Cia. Letras, 2002.
Estes dados Ver Beozzo, J. O. A Igreja do Brasil no Concílio Vaticano II (1959-1965). SP: Paulinas, 2005.
Ais 2 de julho de 1964, a Secretaria de Estado de Relações Exteriores, enviou telegrama ao Vaticano solicitando que não fosse feito arcebispo de São Paulo, dom José Távora, nem núncio d. Sebastião Baggio, porque o primeiro seria apoiado por dom Helder Câmara; o segundo poderia ser explorado pelos setores demagógicos. Os dois assuntos são apresentados como preocupação do presidente Castello Branco. REX.IPE. 460, p.243/244 In BR/DFANBSB/Z4/REX/IPE/0460.pdf
Este é um relatório produzido pelo Ministério das Relações Exteriores, durante o governo Médici, datado de 18 de agosto de 1971, DSI nº 241, REX/IPE/460, p.198/244. In BR/DFANBSB/Z4/REX/IPE/0460.pdf
Depoimento do Pe. José Ernâne Pinheiro, 28 de setembro de 2013, sede da Cnbb, em Brasília-DF.
A análise da Igreja conduzida pelo Ten. Leopoldino conclui que a doutrina social da Igreja tem pontos de contato com a filosofia marxista e comunista e que isso poderia conduzir a desvios dos clérigos. Após avaliar as ações de clérigos, sobretudo bispos, entre 1964-1973 indica que eles efetivamente estavam desviados da doutrina católica e que eram marxistas e comunistas. Op. Cit. Fls. 13; 23.
Podemos avaliar se correspondia ou não aos fatos essa atitude persecutória. Efetivamente, a perseguição foi permanente. Podemos levantar a hipótese do efeito da ação eclesial pode ser o de ter constrangido eticamente a ação violenta do Estado sobre os opositores.
Há uma ruptura entre a Renec e a RCR, Rede Católica de Rádios, fundada há 20 anos (1994), com a participação de 230 emissoras de rádios no Brasil.
Zona da Mata pernambucana
Depoimento de Maria Aída Bezerra, tomado no Rio de Janeiro, aos 17 de setembro de 2013.
Ver Delgado, G. A questão agrária no Brasil: 1950-2003, paper digital Disponível em http://disciplinas.stoa.usp.br/pluginfile.php/126539/mod_resource/content/2/Guilherme%20%20Delgado%20Quest%C3%A3o%20Agr%C3%A1ria.pdf Acessado em 12 de julho de 2014. Sobre o Conselho Indigenista Missionário: Prezia, Benedito (org.) Caminhando na luta e na esperança: retrospectiva dos últimos 60 anos da pastoral indigenista e dos 30 anos do Cimi : textos e documentos, SP: Loyola, 2003.

SACRISTÁN, J.G. e PÉREZ-GÓMEZ, A.I. Compreender e Transformar o ensino. Trad. Ernani F. Fonseca. Porto Alegre: Artmed, 2002.
Trata-se de menção a fuga e clandestinidade imediatamente após o golpe.
Ditadura e perseguição à educação popular e a educadores – algumas notas e reflexões

por Jorge Atilio Silva Iulianelli

Resumo: Os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, que foi instalada pela Lei 12528/2012, investigou os modos pelos quais o Estado brasileiro foi perpetrador de violação aos direitos humanos durante os a nos 1964-1985. Ao cumprir seu mandato a CNV empreendeu, por meio de 13 grupos de trabalho diversas investigações sobre como essas violações ocorreram, qual estrutura estatal se conformou para que existisse funcionalidade na realização dos atos arbitrários e efetivamente poder identificar a necessidade de imputar responsabilidade ao Estado e seus agentes por tais violações. Se considerarmos os processos de organização a partir de agências de socialização como as igrejas e o sistema escolar temos uma visão de como a Ditadura criou mentalidades persecutórias, subordinadas e preconceituosas, ao lado de indignação, emancipacionismo e pluralismo socializante. Este texto é uma análise desse fenômeno a partir das atividades realizadas pelo autor no contexto da CNV.

Palavras-chave: Ditadura, CNV, Educação

Educação e ditatura
O processo por meio do qual se implantou a Ditadura militar no Brasil, em 1964, teve como um dos alvos de sua perseguição aquelas e aqueles que eram considerados inimigos do regime. Dentre esses se encontrava um grupo de educadores que cumprira um papel fundamental na tentativa de implantar um sistema educacional nacional. Especialmente após 1968, depois da promulgação do Ato Institucional de nº 5, as escolas e universidades sofreram a presença física da violência militar. Dirigida, sobretudo, aos estudantes e suas organizações, porém, não apenas e nem exclusivamente. Por exemplo, a USP teve vários professores que tiveram a cassação de seus postos de trabalho, sendo expurgados da instituição e tendo seus nomes elencados na lista negra daquela instituição. Outro evento cruel foi o, assim chamado por Herman Len, Massacre de Manguinhos. Por meio de um decreto, publicado em 1970, cassou-se os direitos políticos do seguinte grupo de pesquisadores: Haity Moussatché, Herman Lent, Moacyr Vaz de Andrade, Augusto Cid de Mello Perissé, Hugo de Souza Lopes, Sebastião José de Oliveira, Fernando Braga Ubatuba e Tito Arcoverde Cavalcanti de Albuquerque. Dois dias depois, os mesmos cientistas foram também aposentados compulsoriamente, ao lado de mais dois colegas que não apareciam no primeiro decreto — o médico imunologista e especialista na área de Micologia Masao Goto e o parasitologista Domingos Arthur Machado Filho.
O episódio tem sido resgatado pela Casa de Oswaldo Cruz, que procura identificar os danos causados à produção científica por aquela intervenção exercida desde o governo Castelo Branco. Os laboratórios foram desmontados, os materiais guardados. Um prejuízo inestimável à produção do conhecimento científico. Também professores da educação básica foram perseguidos, como o Prof. Antonio Rodrigues, do Cap Ufrj e a Profa. Regina Célia, do Colégio Estadual Quitaúna, de Osasco, detidos arbitrariamente e torturados.
Dentre outros, os seguintes professores foram cassados e, alguns dentre eles, exilados: Ana Rosa Kucinski, Tito Arcoverde Cavalcanti, Anísio Teixeira, Fernando Henrique Cardoso, Darcy Ribeiro, Heleneide Nazaré, Haity Moussatché, Maria Yedda Linhares, Erney Camargo, Eulália Lobo, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Rubim Aquino, Victor Nunes Leal, Walter Oswaldo Cruz, José Grabois e Paulo Freire. Não apenas por meio dessa perseguição direta a pessoas a Ditadura buscou controlar mentes e corpos. Os acordos MEC/USAID, muitas vezes denunciados pelos educadores, que alterou a estrutura do ensino no País, criando o sistema de créditos, no ensino universitário; tornando a educação básica em um continuum de oito anos, da 1ª à 8ª série do primeiro grau, ao invés dos 9 anos e da necessidade do concurso de admissão, para o ensino médio. Além disso, em 1968, por meio das Lei 869/1969, de 12 de setembro daquele ano, criou as disciplinas de Educação Moral e Cívica, para o primeiro grau e Organização Social e Política do Brasil, para o segundo grau.
Outro setor duramente perseguido foi a educação popular. A educação popular visava, sobretudo, ser uma experiência de educação de jovens e adultos, em especial para a superação do analfabetismo. Dentre as diferentes experiências, destacamos a do Movimento de Educação de Base e as relações entre a Ditadura e Paulo Freire. No que segue, destacaremos alguns elementos dessas duas ações, considerando os efeitos que tais ações têm para os processos de formação de professores no Brasil. A superação dos mecanismos de violação de direitos, no que tange à educação, percorrerá ainda grande trajetória.
Farei essa reflexão que segue a partir do envolvimento com a construção do Relatório da Comissão Nacional da Verdade. A análise do período, determinado pela Lei 12.528/2012 que criou a Comissão Nacional da Verdade foi restabelecido pelo regimento interno da CNV que determinou as investigações cobrirem o período 1964-1988. José Oscar Beozzo nota que a Igraja Católica Apostólica Romana (ICAR) estava dividida em relação às reformas de base, propostas pelo governo João Goulart. Alguns fatos podem favorecer à compreensão do clima do período. Em 1962, a CNBB fez um pronunciamento em favor da reforma agrária. Fez outra em 1963, sobre o mesmo tema, quando havia muita controvérsia ao redor do pagamento da expropriação fundiária em dinheiro ou títulos públicos, apoiando o pagamento em títulos – sendo esta uma das causas de divergência entre os bispos, e entre aqueles que na sociedade entendiam que o pagamento com títulos públicos era uma medida socializante.
Em 1965, a ditadura, com o Estatuto da Terra, promulga que o pagamento à desapropriação se faria por meio de títulos públicos. Nos dias que precederam o Golpe, d. Carmelo Motta e d. Helder Câmara vão se encontrar secretamente com o Presidente João Goulart. O Presidente solicita que seja tirada uma foto para seu arquivo pessoal que, em seguida, sai na imprensa. Ao mesmo tempo, o padre Peyton desenvolve em São Paulo e no Rio de Janeiro as grandes concentrações, antes e imediatamente após o Golpe, pedindo que Deus livre o Brasil do comunismo, por meio das Marchas da Família com Deus pela Liberdade. Dom Geraldo Proença Sigaud, bispo de Diamantina-MG, afirmava que o Estado não devia fazer reforma agrária e que os fazendeiros tinham direito de defender com armas suas propriedades.
Havia, pois, uma atitude eclesial em favor das reformas de base, do governo Goulart, e do aprofundamento de processos sociais em favor dos direitos socioeconômicos da população desenvolvimento da educação rural. Trata-se, sobretudo, do desenvolvimento do Movimento de Educação de Base. Já em 1950, d. Inocêncio Engelke, bispo da diocese de Campanha, fez um encontro com padres de áreas rurais, proprietários de terra e professores rurais, ao fim da qual escreveu uma carta pastoral que tinha por título: Conosco, sem nós ou contra nós se fará a reforma social. Nessa carta se afirma que as condições do povo nas áreas rurais são subumanas. Desde então os bispos se preocupam em criar ações de aglutinação da população rural. Em 1961, há a fundação do Movimento de Educação de Base, MEB, que é visto pela hierarquia eclesiástica como um instrumento, em favor da difusão da Juventude Agrária Católica (JAC).
Em 1961, houve uma forte tensão entre a direção nacional da JUC e a hierarquia. O Congresso da JUC, em 1961, ocorreu em Natal (RN). O bispo de Natal era d. Eugenio Salles que, segundo Kadt, não tinha forte apreço pela liberdade de ação dos leigos. Essa situação estava levando Fr. Romeu Dale, que era assessor da JUC, a pedir exoneração do cargo. O Conselho permanente da CNBB resolveu proibir que os textos da JUC, fruto dessa dissensão, fossem publicados, proibiam que a JUC fizesse pronunciamentos radicais ou que seus membros se engajassem politicamente. A JUC passa a ter uma crise de legitimidade, em relação à hierarquia e isto é um espaço que libera a JUC para a formação autônoma da Ação Popular (AP). Até o golpe a AP era um movimento que estava preocupado em interagir com o povo. A AP tinha uma atitude mais dirigida contra as estruturas romanocatólicas mais conservadoras ou comodistas. Isto afastava a hierarquia da juventude estudantil que estava presente na JUC.
Um exemplo dessa formação católica para a ação, por meio da ação católica e da universidade católica é a do Prof. Cândido Mendes. Ele nos relatou que sua formação vem desse processo:
Isso conduziu em 1948 a ser secretário-geral da União Nacional dos Estudantes. Tive como vice-presidente o Célio Borja, que vinha das mesmas ideias, e a partir dali ficou clara a ideia de uma militância católica dentro da vida política, e da vida política partidária. Sabemos como essa situação veio depois a se radicalizar, e isso levou necessariamente à AP(...) (Entre 1958-1964) estava atuando na ação católica e na CNBB, onde fui o subsecretário do secretariado nacional dos leigos. Daí, essas posições vieram já no período em que tivemos a sequência da crise democrática. (...) Digo isso porque vivi muito o momento anterior, sobretudo do ponto de vista do Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb). Em sequência fui chefe da assessoria técnica do presidente Jânio Quadros. Já aí estávamos entrando nesse grande período, colapso do governo Goulart e, dentro dele, já um primeiro choque que necessariamente se verificaria com a igreja a partir do confronto em que deixava muito da ação da CNBB na época, ação corporificada no trabalho de dom Helder Câmara. E já no momento em que os arcebispos Lorscheider, o depois cardeal e o dom Ivo, seu primo, assumiam essa posição quando verificavase essa grande reação conservadora, das marchas com Deus pela família e pela liberdade, todas dirigidas pelos grupos paulistas, na agitação, na praça pública, das suas massas. Evidentemente quando se deu o golpe verificou-se essa mesma fratura com grande estupefação por parte dos militares, porque veio essa mesma reação. Inclusive o próprio dom Helder, e o que representava a CNBB, tentaram um primeiro diálogo com o governo militar, mas não chegou a haver o contato com o Mal. Castello Branco e o dom Helder. Os primeiros momentos foram de espreita...
As observações de Cândido Mendes corroboram as informações anteriores, apesar do desvio temporal que inclui os primos Lorscheider num período ainda anterior ao seu papel na CNBB – talvez indicando que haveria necessidade de alguém como eles desde antes. De qualquer modo, a crise estava dada entre uma postura em favor das reformas de base, da participação dos leigos, e outra contra as reformas e a autonomia dos leigos.
Para compreender a ação católica no mundo camponês é relevante atentar a alguns elementos básicos. O universo camponês, sobretudo no Nordeste, estava coalhado de desrespeito ao trabalhador rural. Apesar disso, desde a legalização do sindicalismo rural em 1944, houve mais de 15 anos para a efetiva organização. Por outro lado, os latifundiários resistiam e combatiam qualquer forma de organização dos trabalhadores rurais. O surgimento das Ligas Camponesas, no início dos anos de 1960, modificava um pouco esse cenário. Isso gerou, no campo católico, certo temor do abandono do mundo rural. Por isso, e, 1949, d. Eugênio Salles, já em Natal, fundou o Serviço de Assistência Rural (SAR). Em 1960, o SAR procurou apoiar a formação dos sindicatos rurais. Vários prelados o seguem. Na sequência, Pe. Crespo cria o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco (Sorpe). Sua tarefa era treinar líderes camponeses para tornaremse lideranças sindicais. Esse interesse em trabalhar com as lideranças e sindicatos rurais era uma oposição à notoriedade das Ligas Camponesas. Porém, muito embora esta polarização, as lideranças eclesiásticas deixavam aos leigos que formavam os sindicatos a tarefa de cuidar de si. Logo os jovens da JEC, JUC e da AP se aproximam para auxiliar o processo de organização sindical e isto leva os sindicalistas na direção da luta por direitos – na contramão dos interesses dos latifundiários. Ao mesmo tempo, a AP passa a aprovar o trabalho do MEB, como ação de conscientização popular.
Em 1958, havia 32 transmissoras de rádio na Rede Nacional de Emissoras Católicas (Renec). Em 1960, d. Távora, bispo responsável pela Renec, tem um encontro com Jânio Quadro sobre a possibilidade de usar a Renec com um papel educacional. Firmou-se um convênio com o governo Quadros para que a igreja providenciasse o pessoal para a tarefa de educar, e utilizasse seus instrumentos (as rádios) para tal ação, e o governo financiasse essa atividade. O decreto previa as ações por cinco anos (1961-1965). As ações seguiram entronizando ações educativas que incluíam o conceito e a práxis da conscientização. Efetivamente, ainda antes do golpe, Lacerda entendera que o MEB era um movimento subversivo. Com o golpe militar a perseguição a lideranças do MEB, assim como da Ação Católica, se deu imediatamente. Os bispos tentaram tornar o MEB um movimento que fosse exclusiva expressão do humanismo cristão, sem que isso implicasse na luta pelos direitos sociais, o que foi impossível.
O que orientava esta mentalidade de ação católica especializada, dos jovens e educadores do MEB, era, sobretudo, a perspectiva humano Centrica de Lebret, Mounier e Lima Vaz. Os conceitos sujeito histórico, consciência histórica, personalização e conscientização dirigiam uma visão de mundo, uma teologia da coração, que tornava o leigo dotado de uma capacidade de auto compreensão da fé. De certo modo, essa visão teológica embasava um comportamento autônomo do laicato com vista ao papel do sacerdote. Isso era uma novidade para o catolicismo, que sempre teve na figura do sacerdócio a centralidade da ação eclesial. Havia uma teologia subjacente da distinção dos dois mundos e não da apartação dos mundos material e espiritual.
Outro exemplo dessa atuação da igreja no campo é o testemunho de dom Tomás Balduíno, que foi bispo da diocese de Goiás desde 1967. Ele nos apresenta o seguinte relato:
Lá na diocese o fato distintivo foi mesmo o apoio aos lavradores, para a organização deles, para a qual emprestamos a casa, o centro de treinamento. O centro de treinamento tinha um muro de quase três metros de altura, o pessoal entrava ali, em sua visão, para rezar, aprender a Bíblia, o Evangelho, a lição catequética. Esse pessoal estava agindo por meios próprios, identidade própria, sem interferência de bispo... Vou contar um caso: Certo dia estavam reunidos no centro de treinamento, passaram dois dias, e falaram: dom Tomás, nós estamos reunidos aqui há dois dias, e não chamamos o senhor para nenhum momento, o que o senhor diz disso? É sinal que estão caminhando com as próprias pernas... E era nessa linha.
A narrativa indica a autonomia dos trabalhadores com relação à Igreja. Autonomia que era procurada em ambas as direções. Havia um projeto eclesial que assumia a autonomia dos leigos, e um projeto político que afirmava a autonomia da classe trabalhadora. Era um processo que necessitava de ações educativas para que essa autonomia fosse exercida, e essa ação educativa era a ação popular. Continua o relato de Dom Tomás Balduíno:
A gente sabia mais ou menos, tinha assessoria até de São Paulo, para a linha política dos movimentos dos trabalhadores, e não era só visando o momento da diocese, era uma coisa mais ampla de caráter nacional. Acho que o golpe, gosto de citar essa palavra, de José de Souza Martins, o golpe foi dado não unicamente, mas sobretudo sobre a organização dos trabalhadores rurais. Porque eles achavam que através do campo entraria no Brasil o comunismo internacional. Essa história das Ligas Camponesas, de Trombas e Formoso está muito ligada a isso... O pessoal caiu em cima, com muita ferocidade, e do outro lado tinha consciência, tinha resistência.
O relato do bispo indica como o processo de educação popular, que era a metodologia usada nas ações educativas dos camponeses, era assumido de forma autônoma pelos agentes de pastoral, pelos camponeses. Parte do episcopado, no entanto, entendia que havia necessidade de eliminar qualquer possibilidade de expansão do comunismo. E, para tanto, considerava que o laicato deveria ficar subordinado à hierarquia, que seria a guardiã da reta doutrina.
Havia, também, o integrismo e o tradicionalismo católico. Para este setor, conforme a interpretação de Mainwaring, a igreja tinha necessidade de trazer a salvação paras a sociedade, se as instituições se afastassem dos valores cristãos, estariam perdidas. As interpretações mais recentes do catolicismo, no entanto, tem apontado que era uma estratégia episcopal a busca por manutenção de boas relações entre Igreja e Estado, consumando certa hegemonia nas relações religiosas com um suposto estado secular e laico. A ICAR ainda se mantinha como a segunda instituição nacional em capilaridade, ademais de ser uma rede de serviços públicos. O próprio MEB, como visto acima, era financiado pelo Estado brasileiro. Porém, a concordata moral tem fôlego muito maior, como veremos adiante.
O catolicismo da educação popular entre os inimigos do Estado
É relevante ressaltar que o governo brasileiro mantinha apoio às atividades eclesiásticas. Conforme já mencionado, atividades como o desenvolvimento do MEB eram subvencionadas pelo Estado. Essa subvenção se manteve quando do início do golpe, sendo interrompida a seguir. A participação dos bispos no Concílio do Vaticano II, também, foi subvencionada pelo Estado, antes do golpe. Com o golpe ela se manteve até o final do Concílio do Vaticano II (1962-1965), eram pagas as passagens dos bispos e o café servido no Concílio era uma oferta do Instituto Brasileiro do Café. Houve várias tentativas do governo militar em interferir na escolha de bispos e até mesmo de núncios, quase sempre não acolhidas pelo Vaticano. Quanto mais clara as ações de tortura e desrespeito dos direitos humanos ficaram, no entanto, as declarações do Vaticano se afastaram daquele apoio inicial.
Em 1971, o Embaixador José Jobim fazia as seguintes observações importantes sobre as relações entre IgrejaEstado no Brasil:
9. (...) 1ª) os choques foram, numericamente, bastante reduzidos, de cerca de 60.000 eclesiásticos e mais de 200.000 leigos arregimentados que se estima existirem no país pouquíssimos apresentaram problemas ou se levantaram frontalmente contra o governo; 2ª) na hierarquia, os raros que se lançaram na oposição ao regime, entre os quais apenas um Arcebispo, fizeramno obviamente a título pessoal, sem contar com o apoio dos órgãos colegiados representativos do clero. (...) 13. Altos prelados brasileiros têm acesso ao próprio Santo Padre, que, junto a eles, procura constantemente informar a situação brasileira, fato que não poderia deixar de produzir frutos. Repetidamente, tem Paulo VI declarado a esses prelados que não considera haver qualquer ruptura irremediável ou de difícil solução entre Estado e Igreja no Brasil.
O quadro das relações com o episcopado se acirrava, esse o motivo da preocupação do aparelho de estado em investigar a atuação do mesmo.
A defesa dos direitos humanos se tornou uma prática do episcopado. Também escreveram um documento os bispos do CentroOeste, sobre a questão econômica, em 1971, a carta pastoral de dom Pedro Casaldáliga, Uma igreja na Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social, No ano de 1972, os bispos de São Paulo denunciam a tortura, por meio do documento de Brodósqui, Testemunho de Paz. Em 1973, d. Helder e outros 12 bispos dos estados nordestinos de PE, PB, MA, CE, SE e cinco provinciais religiosos assinaram o documento Eu ouvi os clamores do meu povo, que incisivamente mostrava como o modelo de desenvolvimento não atendia ás necessidades do povo, aprofundando o desemprego, o déficit habitacional, a desnutrição, as doenças endêmicas e epidêmicas do povo pobre, como a esquistossomose, a malária e a tuberculose – que a muitos matava à época, também, em 1973, a carta pastoral Y-Juca Pirama o Índio – aquele que deve morrer, no qual assinam dom Pedro e dom Tomás, dentre outros bispos do Extremo CentroOeste, do Nordeste, do Norte e do Sul. Há que registrar o documento Marginalização de um Povo, o Grito das Igrejas este elaborado e assinado por bispos do Centro-Oeste, denunciando as consequências da expansão agrícola e mineradora.
Desde março de 1964 o Estado estabelece sua estratégia de segurança nacional, operando ordenada e organizadamente a perseguição política aos seus detratores, e às potenciais ameaças, identificadas com todos que tivessem discurso e prática socializante. A notícia do golpe afeta diferentes setores da igreja. Os seminaristas que estavam no Pio Brasileiro, em Roma, recebem a notícia:
Foi horrível. Carlos Lacerda foi lá. Quando ele foi à Europa, fazer propaganda. Já levou várias interpelações sobre a ditadura, sobretudo de vários alunos que foram da JUC. Nós recebíamos várias notícias e começávamos a acompanhar. Recebíamos pela Embaixada o jornal, não sei se era Globo ou era Jornal do Brasil. Em todo caso a gente acompanhou pela imprensa, embora a imprensa começou a ser censurada. Durante 1965, em pleno Concílio Vaticano II, influência também do Concílio, resolvi ficar um ano na França, porque queria conhecer o meio operário francês, porque eu me dispunha, depois, no Brasil, também, trabalhar com o meio operário. (...) Em 1965, estava ao norte de Paris, e recebíamos padres exilados, padre Sena e padre Almery.
Efetivamente, as igrejas, os camponeses e os índios, além de operários e estudantes – estes em sua forma organizada e mobilizada, eram os inimigos do Estado.A doutrina de segurança nacional apenas ratificará esta paranoia militar. A atenção do regime, por meio de sua comunidade de informações, sobre os clérigos, doméstica e internacionalmente, indicava um apetite da comunidade de informações, unidos a um respeito pela autoridade moral e um temor pela capilaridade do aparelho eclesiástico.
O MEB: um caso especial de igreja popular e educação popular no início das dores

As Comunidades Eclesiais de Base, CEBs, a partir da segunda metade da década de 1960 foram fundamentais para a organização popular no campo e na cidade. Na verdade, praticamente inexiste movimento social que não tenha tido o influxo dessa presença. Assim, a formação das oposições sindicais para a retomada do movimento sindical, a partir, sobretudo, da segunda metade da década de 1970. A organização dos movimentos de bairro, tanto em defesa do direito à moradia como ao direito de melhores condições de vida, ao longo da década de 1970. O movimento contra a carestia e de organização dos desempregados, ao longo das décadas de 1970 e 1980. No campo, desde movimento das mulheres quebradeiras de coco de babaçu (Maranhão), passando pelo movimento das empregadas domésticas (Recife), movimento das lavadeiras (interiores do Brasil, em especial na Bahia), e o movimento dos povos da floresta (no Acre), todos tiveram participação direta das CEBs. Embora não tenha havido uma estatística fidedigna das CEBs no Brasil, se estima que elas chegassem a ser entre 60 e 100 mil entre meados da década de 1960 e o final dos anos de 1980.

Caso especial da censura a mios de comunicação da Igreja Católica é o da Rede Nacional de Emissoras Católica, Renec, e a execução do MEB. A Renec foi criada em 1958, reunindo 32 emissoras de rádio católicas, na maioria do sul do País. O papel educacional dessas emissoras ficou desde o início destacado. Foram formados três centros de escolas radiofônicas, por meio dos quais se formavam quadros para atuarem nos mesmos. No início de 1960, esse sistema já funcionava e a Renec convocou um curso em Natal, sobre problemas técnicos e organizacionais, e, também, sobre educação de base. Nesta ocasião, em Aracaju, dom Távora negociou com Jânio Quadros o uso do sistema para ação educativa em escala nacional. Após as eleições presidenciais, em carta de 11 de setembro de 1960, D. Távora formaliza a proposta à Presidência da República. Aos 21 de março de 1961, se estabelece por decreto que o Estado brasileiro destinaria 400 milhões de cruzeiros, no primeiro ano, em pagamentos bimestrais, para o desenvolvimento da ação educativa radiofônica do Movimento de Educação de Base. Apenas em 1961, o Movimento de Educação de Base instalaria 15 mil escolas radiofônicas.
O número de sistemas subiu de 11, em 1961, para 59 em 1963. A partir de 1964, após o golpe civilmilitar inicia um esgotamento financeiro do MEB e ele vai reduzindo o sistema. Entre dezembro de 1963 e dezembro de 1964 as escolas radiofônicas foram reduzidas em quase um quinto, chegando a 4.600 em dezembro de 1964. Em 1967, com o fechamento do sistema em Pernambuco, Bahia, Minas Gerais e Goiás chegou-se a 2500 escolas radiofônicas. Depois do golpe, os camponeses perderam o interesse pela escola, porque ela acontecia antes, ou depois da Voz do Brasil, programa radiofônico compulsório após à ditadura. Isto significava que a participação dos estudantes era impossibilitada pelo horário.
Leitura de um relato de uma coordenadora do MEB
A formação dos leigos estava nesta direção, e os leigos estavam envolvidos diretamente com essa ação. Os relatos a seguir, de uma das integrantes e coordenadora do MEB, Maria Aída Bezerra, permitirão uma compreensão desse processo. Abaixo analisaremos um discurso oferecido numa única entrevista, de forma corrente e sequencial. A análise do discurso apenas busca destacar alguns elementos significativos da fala notando sua inflexão sobre os processos pedagógicos em curso.
Vindos da experiência da ação católica, da JUC, da JEC, sobretudo JUC e JEC, então a ação católica especializa, então era uma equipe de militantes cristãos. O primeiro confronto, a primeira dificuldade com a igreja, ao longo desse processo, o MEB foi criado em 1961, e em novembro de 1962 tivemos o primeiro encontro nacional... e a maioria gritava, nós não queremos mais fazer água com açúcar, nós trabalhamos juntos aos trabalhadores rurais, para a gente que trabalhava numa situação de Zona da Mata, vou continuar a fazer uma atuação que parecia não ter consequências políticas?Isso foi um trabalho difícil, de mover de posição, de horizonte... (Bezerra: 2014)
Nesta seção do relato, Maria Aída Bezerra indica que o Movimento de Educação de Base assumia, em 1962, assumia uma postura de identificação com o campesinato nordestino. Os trabalhadores rurais criavam seus próprios mecanismos de representação. Eram sindicatos que se desatrelavam do poder dos coronéis locias, do PCB e da Igreja Católica. Assumir um projeto educacional, pois, significava assumir uma ação política e transformadora entre sujeitos (uma ação intersubjetiva). Isto gerava tensão interna ao MEB e na sua relação com a Igreja Católica.
Mas, aí foi uma guinada, nessa guinada lembro de duas pessoas, três pessoas principalmente, que foram fundamentais Luiz Eduardo Wanderley, Luiz Alberto Gomez de Souza, que estava nesse encontro, e dom Lamartine Soares, bispo auxiliar de Recife. .Luiz Eduardo e Luiz Alberto fizeram uma análise estrutural do País e da luta, que foi a primeira vez que fez sentido para mim a palavra revolução. A gente não fazia revolução, a gente fazia apoio aos pobres, a gente fazia alfabetização de adultos, organização de comunidades... a gente não percebia a fronteira onde a gente estava. (Bezerra: 2014)
Nesta seção, há a indicação de haver um processo solidário interno ao MEB. Porém, em meio a uma construção analítica que oferecia o que é chamado de guinada. Guinada de onde, para onde? Trata-se de abandonar um modelo de educação tradicional em ambiente não-formal – os processos de educação com os camponeses por meio da metodologia do sistema de animação pelo rádio; para uma perspectiva do que passou a ser chamado de educação popular. Essa guinada não era compreendida em toda a extensão das consequências que implicava, até mesmo, em relação às consequências políticas.
Esta análise trazia dentro dela um reflexo da luta do povo cubano. E a gente dizia: se aquela ilhinha de nada, do lado do Imperialismo, conseguiu, porque nós não vamos conseguir. Naquele encontro era um outro MEB e aí Vera Jacoub, que era coordenadora nacional, muito sábia, dizia assim: "Gente eu acho que eu estou desse lado, mas vamos devagar, sem barulho; nós temos dois flancos de resistência, um dentro do episcopado nacional, e outro entre os proprietários de terra..." Por isso, que o MEB não tem quase nada escrito. A gente pode perceber que essa igreja não era monolítica. Não foi fácil
Aída Bezerra nota que o processo formativo envolvia uma opção política. Esta opção política era tensa e encontrava resistência interna ao episcopado católico brasileiro e entre os proprietários de terra. A construção de uma opção pastoral na defesa de camponeses e indígenas iniciava a se desenhar. Continua o relato sobre essa tensão eclesiástica que se acentuará com o Golpe Militar.
Dom Eugênio era presidente do regional da CNBB do Nordeste, ele fazia uma leitura, acho eu, de Cristandade. Acho que isso era assim, a gente viu muito isso na minha época, já perdemos os operários para o partido comunista, não vamos perder os trabalhadores rurais. E naquela época, dos anos de 1960, lá estavam as Ligas Camponesas, apavorantes... lá estavam todas as organizações e movimentos que começavam a atuar no meio rural. E ele cria em Pernambuco o Serviço de Orientação Rural de Pernambuco, para cuidar da constituição dos sindicatos rurais. O MEB já tinha começado a trabalhar com a organização de sindicato, muito devagar, porque era um trabalho educativo de organização. Como eu tinha dois pertencimentos, era coordenadora do MEB e funcionária do SORPE – que depois vira SUPRA – a tensão interna na igreja era tanta, abandonei a coordenação do MEB, deixei nas mãos de Lucinha, e fui fazer a organização dos sindicatos pela SUPRA que, com a mudança de governo ela não reconhecia o convênio com o MEB.
O acirramento da tensão interna está diretamente vinculado ao aprofundamento da solidariedade de classe que emerge na ação pedagógico-política do MEB. A arregimentação de intelectuais oriundos dos movimentos sociais e eclesiais pelo Estado ocorria neste momento, em função dos projetos de políticas públicas insurgentes. Naquele momento, interessava ao governo Arraes contribuir com os processos de Reforma Agrária. Esta ação dependia e implicava na organização dos camponeses. A presença de uma assistente social, educadora popular, na administração pública, para trabalho de campo, era uma vantagem relativa neste cenário.
(...) Tudo isso é antes do golpe. No momento do golpe, a gente tinha fundado a Federação dos Trabalhadores na Agricultura (Fetape). (...) Nessa altura, eu já era militante de AP. (...) A Liga Camponesa, o movimento cristão, estava lá dentro. A Fetape estava criada. Era nova, recente, quando foi deflagrada a primeira greve de canavieiros na Zona da Mata de Pernambuco. Teve uma marcha de trabalhadores rurais, de enxadas na mão, pelas ruas de Recife. (...) A cidade ficou assombrada, a Federação foi chamada. (...) Nós vamos assumir essa greve. Foi a primeira greve. Durou nove dias esta greve. Era de uma inexperiência total para a federação e para nós. Foi até o oitavo dia, porque no oitavo dia a elite do Recife tinha conseguido do Presidente da República a ameaça de intervenção no Estado. Era um momento muito tenso. A gente assumiu a paralisação da greve com o governador. Lembro que Biu de Condado, que estava na presidência, porque o outro que era presidente estava em São Paulo, Biu disse: E"u já sabia que nós íamos perder, agora, ninguém tira esse governo que nós botamos lá, só nós..." Isso é em novembro de 1963 e o golpe é em abril de 1964.
Este momento pré-golpe acentua a tensão, também, entre o movimento camponês e o governo estadual de Pernambuco. O governo apóia os trabalhadores na luta contra os usineiros. Porém, a tensão entre usineiro e governo leva à possibilidade de uma intervenção da União. O que fazer? A construção da decisão política é um processo pedagógico. Deixar de fazer a leitura das ações políticas como parte do processo de educação popular é um equívoco grotesco. O que se acentua é a solidariedade de classe e a construção de um bloco histórico, no sentido gramsciano, em busca de afirmação política. E a sábia decisão da liderança sindical camponesa indica o grau de maturidade que se ia adquirindo. O relato nos faz ver como a educação popular, iniciada no MEB, toma outros segmentos, e até por meio da administração pública, atuando em espaço nãoformal, remete à construção de estratégias de cidadania. No entanto, eram tempos nãodemocráticos a se fortalecer.
Quando o golpe chegou o que a gente teve que recorrer foi a Igreja. A Federação, os presidentes dos sindicatos estavam ameaçados e a gente concordou que a gente tinha que apelar para os representantes da igreja, dentro da Federação para que eles cuidassem de proteger os colegas. Fizeram! (...) Era um momento que via todo apoio de dom Carlos Coelho, era o arcebispo de Recife, morreu poucos dias antes do golpe. Dom Helder chega, nos primeiros dias de abril, no Recife. É o primeiro discurso público, que a gente tem no Recife, é de dom Helder. Parecia que todo mundo respirava, alguém falava. Porque a maioria de nós estava desaparecido, eu estava desaparecida.(...) Mas, dom Helder foi a palavra de respiração no Recife. Não me lembro se foi quatro ou cinco de abril, foi bem no começo. E eu sei que ele deve ter tido dificuldade de se confrontar imediatamente com o poder militar, não só porque a cultura da igreja é essa, sou a igreja de todos (...) acho que ele sabia o que poderia acontecer (...) No dia que ele se recusou a ser conveniente as coisas começaram a acontecer...
O relato de Maria Aída Bezerra indica como o compromisso com os camponeses implicava numa relação tensa com os proprietários e com o poder militar assim que o golpe foi dado. A construção da solidariedade de classe, naquele momento, articulou-se com a Igreja Católica como meio de proteção de direitos. No entanto, as violações de direito vieram em seguida. Camponeses foram assassinados pelo regime, o MEB foi desbaratado, muitas de suas lideranças foram, literalmente, caçadas pela Ditadura. O golpe não poupou ninguém.
Considerações finais
O processo histórico não é um conjunto de lembranças. A memória, como nos ensina Benjamin, por meio da análise do anjo de Paul Klee, tem um efeito esperançador, porque os ventos impetuosos que nos lançam adiante, precisam estar abertos a lidar com os desastres que realizamos. Desde Vico aprendemos que somos nós os autores da história. Não importa que hoje alguns autores da neurociência queiram afirmar que inexiste a liberdade da vontade, e que, ao fim, a discussão sobre a responsabilidade ética carece de legitimidade. Estão errados os que não percebem, como ensina Habermas, que é necessário conciliar a psicologia popular e a descrição científica, ambas nos autorizam afirmar a noção de autoria e responsabilidade, que se dá em meio à nossa condição de falantes, e participantes, de uma comunidade viva, que busca a verdade e a solução de problemas. Somos um monte de natureza, para repetir Adorno.
Nossa presença histórica, em meio à nossa inserção no mundo impõe opções. O relato histórico é memória subversiva na medida em que permite aos silenciados urrarem. O urro que emerge dos processos de silenciamento das classes populares e das interações propiciadas por meio da educação popular, indicam a generosidade necessária à construção das superações de violações de direito. Ontem, como hoje, notar os direitos violados e estar com aqueles que são vulnerabilizados sistemicamente é uma necessidade. E é papel da educação, como ação social coletiva, organizada por meio do sistema escolar ou de experiência não-formal, criar as condições de transformações que sejam promotoras dos direitos humanos, em sua integralidade e interdependência, nas duas dimensões dos direitos civis e políticos e dos direitos econômicos, sociais, culturais e ambientais.
O não-escolar é de definição complexa.


Como citar os depoimentos: SILVA, Luiz Inácio Lula da. Luiz Inácio Lula da Silva: depoimento [abr. 1991]. Entrevistadores: V. Tremel e M. Garcia. São Paulo: SENAI-SP, 1991. 2 cassetes sonoros. Entrevista concedida ao Projeto Memória do SENAI-SP.

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