DO CAMPO A CIDADE

October 8, 2017 | Autor: Dora Longo Bahia | Categoria: Punk Studies, Historia, Artes, Poéticas Artísticas, Ditadura Brasileira, Pixação
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Dora Longo Bahia

Do Campo a Cidade Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em Artes Visuais Área de Concentração: Poéticas Visuais Orientadora: Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross

São Paulo 2010

BAHIA, Dora Longo Do Campo a Cidade Tese apresentada à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo para a obtenção do título de Doutor em Artes Visuais.

Aprovada em: Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa.

Banca Examinadora: Catalogação da Publicação Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo

Bahia, Dora Longo Do Campo a Cidade / Dora Longo Bahia. -- São Paulo : D. L. Bahia, 2010. 284 p. : il. Tese (Doutorado) – Departamento de Artes Visuais / Escola de Comunicações e Artes / USP, 01/04/2010. Orientadora: Profa. Dra. Maria do Carmo Costa Gross. Bibliografia 1. Arte – Brasil – Século 21 2. Antiarte 3. Arte Jovem – São Paulo (SP) I. Gross, Maria do Carmo Costa II. Título.

CDD 21 ed. - 700

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Para Isabel e Augusto, meus pais, e Carmela e Nelson, meus mestres.

Resumo Bahia, D. L. Do Campo a Cidade. 2010. 284 p. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

Do Campo a Cidade é uma reflexão sobre o estatuto da obra e do artista contemporâneos. Trata da comparação entre o percurso dos jovens artistas Marcelo do Campo (1951 - ?) e Marcelo Cidade (1979 - ?). Por meio da investigação e reprodução do corpo de trabalhos de ambos, explora questões fundamentais para a arte: qual a natureza do autor contemporâneo, qual a importância do contexto de produção da obra para sua interpretação, e quais os limites entre a obra de arte, a documentação, a citação, a falsificação e o plágio.

Do Campo a Cidade é um objetolivro. Concebido como um textoimagem, propõe uma experiência de arte disfarçada de narrativa. Em sua apresentação gráfica, como em seu conteúdo textual, expõe uma reflexão sobre a relação entre o artista e a universidade, eliminando a lacuna entre a prática e a teoria, entre o fazer artístico e sua investigação acadêmica. Pretende responder, assim, às exigências da área de Poéticas Visuais, que privilegia pesquisas tanto teóricas quanto experimentais sobre os processos artísticos.

Palavras-chave: Arte. Política. Autoria. Documentação. Plágio.

Abstract Bahia, D. L. Do Campo to Cidade. 2010. 284 p. Tese (Doutorado) - Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.

Do Campo to Cidade is a reflection on the status of contemporary artists and their work. It is a comparison between the trajectories of the young artists, Marcelo do Campo (1951 – ?) and Marcelo Cidade (1979 – ?). By means of the investigation and reproduction of the body of work of each one of them, it explores fundamental questions about art: what is the nature of the contemporary author; what is the importance of the context in which the work of art is produced for its interpretation; and what defines the borders between a work of art, a documentation, a

quotation, a falsification and a plagiarism. Do Campo to Cidade is a book-object. It was conceived as a text-image to propose an art experience disguised as a narrative. In its graphic presentation as well as in its textual content, it exposes the relation between the artist and the university, eliminating the gap between practice and theory, between the making of art and its academic investigation. In this way, it aims to meet the demands of the Visual Poetics field that favors both theoretical and experimental researches about the artistic processes.

Key-words: Art. Politics. Authorship. Documentation. Plagiarism.

Sumário Prólogo

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Marcelo do campo

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marcelo cidade

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epílogo

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bibliografia

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Prólogo

Quando rejeitou o cubismo, Duchamp estava na realidade recusando a autossuficiência da pintura, sua “seriedade excessiva, sua concepção sagrada de missão e fervor religioso”1. Suas investigações estéticas eram permeadas pelo vulgar, pelo obsceno e pelo escabroso. Evidenciavam sua posição contra uma obra de arte autônoma e resguardada de qualquer contato com o mundo real. Duchamp comprovou que o modo de produção dos signos afetava o próprio processo de conhecimento. Abriu caminho para práticas artísticas inusitadas que pretendiam restabelecer a afinação entre a arte e o mundo real. Essas investidas formatavam a insatisfação dos artistas com

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relação à progressiva conversão da obra de arte em mercadoria, e invadiam outras áreas como as do político e do social. Apesar de muitas vezes espantarem o público e irritarem a crítica, acabaram por subverter paradigmas comportamentais e alterar os processos simbólicos e imaginários. Com o passar do tempo, o vulgar, o obsceno, o escabroso e outros procedimentos artísticos antes inusitados foram absorvidos pelo mercado. As manifestações culturais marginais foram capturadas, os procedimentos de resistência popularizados, a “subversão” transformada em mercadoria2. Toda insubordinação artística foi completamente anulada pelo capitalismo3.

KRAUSS, O fotográfico, 2002, pp. 77-78.

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Já em 1956, Guy Debord e Gil Wolman, em “Um guia prático para o desvio”, identificavam a necessidade de ultrapassar o mero escândalo e utilizar a herança literária e artística da humanidade com objetivos de guerrilha: “Já que a oposição à noção burguesa de arte e gênio artístico se tornou há muito um sapato velho, o bigode que Duchamp pintou na Mona Lisa não é mais interessante do que a própria Mona Lisa sem bigode. Nós precisamos empurrar este processo ao ponto de negar a negação” (DEBORD, Um guia prático para o desvio [A user’s guide to détournement], em Les Lévres Nues, 1956). 3 Rosalind Krauss descreve o capitalismo como o “senhor do détournement” pois ele absorve todo protesto de vanguarda, desviando-o em proveito próprio. Da mesma maneira, toda “crítica institucional” acaba sendo sugada pelas mesmas instituições de marketing global das quais depende para seu sucesso e apoio (KRAUSS, A voyage on the North Sea, 2000, pp. 33-34).

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Na atual conjuntura, toda “novidade”4 já surge obsoleta, como resultado de uma corrida frenética e infrutífera contra um mercado inelutável que tudo devora, digere e regurgita. Qualquer ação, situação ou experiência de arte “marginal” é anulada por meio de sua coisificação e mercantilização, ou esvaziada por meio de sua espetacularização. Pelo simples fato de existir, torna-se tão mercadoria quão uma pintura ou escultura tradicional5. Quanto mais “marginal” e “vanguardista” for o epíteto adotado pelo artista, mais satisfeito fica o mercado ao incorporá-lo ao sistema, e comprovar, assim, sua onipotência sobre a pretensa subversão. Quais são então as opções

do artista? Assumir o papel de bobo da corte? Reivindicar a posição alienada de “silêncio político”? Bravatear um comportamento marginal? Mas marginal a quê, se, no mundo capitalista, não existe “fora”?

Do Campo a Cidade é uma investigação a respeito dessas questões. É uma ficção equívoca, na qual o protagonista – Marcelo Cidade – personifica o artista insatisfeito. Esforça-se por subverter as relações amigáveis entre a arte e o poder representado pelo mercado, numa sociedade aprisionada num eterno presente que se autoconsome ininterruptamente. Sua história foi criada em paralaxe6 à de Marcelo do Campo, motivo de minha

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Walter Benjamin define o novo como “uma qualidade independente do valor de uso da mercadoria. É a origem desse halo intransferível das imagens produzidas pelo inconsciente coletivo. É a quintessência da falsa consciência cujo agente incansável é a moda. Este halo do novo se reflete, tal como um espelho noutro, no halo do sempre-outravez-igual” (Walter Benjamin, Poesía y Capitalism: Iluminaciones II, trad. Jesús Aguirre e Roberto Blatt [Madrid, Taurus, 1980], p. 186, citado em BUCK-MORSS, Walter Benjamin, 2005, p. 44).

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Na sociedade de consumo massivo, o “artista marginal” desapareceu como figura específica, pois a atitude perceptual que ele encarnava antes, agora impregna a consciência histórica. O mesmo se pode dizer das figuras históricas benjaminianas – a prostituta, o flâneur e o colecionador – nas quais todos nos transformamos. (BUCK-MORSS, 2005, op. cit., p. 123). 6 Segundo o filósofo esloveno Slavoj Zizek, “a paralaxe não é simétrica, composta de dois pontos de vista incompatíveis do mesmo X: há uma assimetria irredutível entre os dois pontos de vista, uma torção mínima. Não temos dois pontos de vista, temos um ponto de vista e o que foge a ele, e o outro ponto de vista preenche o vazio do que não podemos ver do primeiro ponto de vista” (ZIZEK, A visão em paralaxe, 2008, p. 47).

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dissertação de mestrado. Do Campo corporifica aquele artista ingênuo que, em meados do século passado, acredita ser capaz de subverter o mercado e agir na marginalidade, evidenciando o entrecruzamento entre arte e ação política7. Marcelo Cidade é Marcelo do Campo, renomeado, adaptado e transferido para o capitalismo tardio8. Sua história propõe um jogo simbólico de desestabilização social, revela as con-

tradições imbricadas no fazer artístico e propicia a formação de constelações revolucionárias com o presente9. Reafirma minha crença na relação entre arte e ação política10, e na responsabilidade do artista, tanto por sua obra quanto por suas implicações públicas. Da mesma forma que um governante, um cientista, um professor ou um religioso, o artista tem que estar ciente das articulações de sua obra com as instituições de poder – sejam elas, o Estado, a mídia ou o poder

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A palavra política pode ser definida como a arte de lidar com a cidade (do grego politikê: tékhné [arte] e polis [cidade]), ou seja, agir sobre a sociedade, questionar paradigmas, sinalizar novas formas de organização e preconizar mudanças.

8 Utilizo o termo capitalismo tardio para referir-me ao período caracterizado pela expansão das grandes corporações multinacionais, pela globalização dos mercados e do trabalho, pelo consumo de massa e pela intensificação dos fluxos internacionais do capital. No capitalismo tardio, a aceleração do tempo de giro do consumo e a superação das barreiras espaciais transforma a produção de imagens e sistemas de signos na “mercadoria” ideal para a acumulação do capital (HARVEY, Condição pós-moderna, 1992, p. 260). 9

Segundo Walter Benjamin, a arte tem um aspecto dialético que desempenha uma função política vital: a mútua desmistificação entre realidade material e expressão estética. Por um lado, a arte necessita de elementos da história material para sua interpretação para que esses “tesouros” culturais deixem de ser apetrechos da classe dominante. Por outro lado, ela proporciona uma iconografia crítica para decifrar essa mesma história material, de maneira que seus elementos ainda possam constituir uma constelação revolucionária com o presente (BUCK-MORSS, 2005, op.cit, p. 40).

10 Acredito que a arte é uma ação política pois interfere nas ações, no comportamento e nas crenças da comunidade, conectando memória e porvir, sujeito e objeto, situação e existência. Para salientar o paralelo entre arte e política (ou seria a paralaxe?), aproprio-me da definição dada pelo filósofo esloveno Slavoj Zizek para o ato político radical e aplico-a ao ato artístico experimental. Segundo Zizek, um ato político radical é “uma intervenção específica num contexto sociossimbólico.” Apesar de sempre estar situado num contexto concreto, não é inteiramente determinado por ele. Este “Ato” sempre envolve um risco radical, já que “é um passo no desconhecido, sem garantias quanto ao resultado final – por que? Porque um Ato altera retroativamente as próprias coordenadas em que interfere” (ZIZEK, Bem-vindo ao deserto do real, 2003, p. 75).

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econômico privado, representado pelos colecionadores e investidores. Se não está satisfeito com o estado dessas articulações, deve tentar subvertê-las por meio de estratégias condizentes com a conjuntura em que vive. Reproduzir manobras utilizadas pelas vanguardas históricas é tão ingênuo quanto fazer uma ilustração da situação. Reivindicar uma posição de silêncio político é, mais que ingênuo, perigoso – considerando o destino dos artistas nos regimes totalitários – ou mesmo criminoso – atentando para o poder público dos artistas11. Em meio ao ar-

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rastão cultural promovido pelo mercado que tudo consome e padroniza, o artista precisa criar estratégias de guerrilha. Marcelo Cidade foi estruturado sobre essas estratégias. É uma imagem disfarçada de verdade12. Apresenta um autor constituído por meio da utilização do plágio e da criação coletiva, que precipita sua própria diluição. É um discurso de resistência sequestrado da antiarte e dos situacionistas, que justifica procedimentos idiotas, sarcásticos e aflitivos. É uma obra composta por trabalhos

LIPPARD, O dilema, em BATTCOCK, A nova Arte, 1986, p. 185.

No primeiro volume de Em busca do tempo perdido, Marcel Proust define a imagem como o único elemento essencial na estrutura das emoções humanas: “Esses acontecimentos eram os que sucediam no livro que eu lia; na verdade, as personagens a quem afetavam não eram ‘reais’, como dizia Françoise. Mas todos os sentimentos que nos fazem experimentar a alegria ou o infortúnio de um personagem real só se produzem em nós por meio de uma imagem dessa alegria ou desse infortúnio; todo o engenho do primeiro romancista consistiu em compreender que, sendo a imagem o único elemento essencial na estrutura de nossas emoções, a simplificação que consistisse em suprimir pura e simplesmente as personagens reais seria um aperfeiçoamento decisivo. Um ser real, por mais profundamente que simpatizemos com ele, percebemo-lo em grande parte por meio de nossos sentidos, isto é, continua opaco para nós, oferece um peso morto que nossa sensibilidade não pode levantar. Se lhe sucede uma desgraça, esta só nos pode comover em uma pequena parte da noção total que temos dele, e ainda mais, só em uma pequena parte da noção total que ele tem de si mesmo é que sua própria desgraça o poderá comover. O achado do romancista consistiu na idéia de substituir essas partes impenetráveis à alma por uma quantidade igual de partes imateriais, isto é, que nossa alma pode assimilar. Desde esse momento, já não importa que as ações e emoções desses indivíduos de uma nova espécie nos apareçam como verdadeiras, visto que as fizemos nossas, que é em nós que elas se realizam e mantêm sob seu domínio, enquanto viramos febrilmente as páginas, o ritmo de nossa respiração e a intensidade de nosso olhar” (PROUST, No caminho de Swann, 2006, p. 118).

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alheios, precários, triviais e com divulgação incontrolada, que anulam seu valor de troca. Sua existência mitológica e suas obras de autoria duvidosa manifestam a supressão de qualquer resquício de heroísmo do artista marginal ou de aura da obra de arte. Contraditório, impreciso e escorregadio, ilustra o desmanche13 cultural da conjuntura atual, sinaliza o aparecimento de novos processos simbólicos e submete-os à reflexão histórica.

13 O professor Luiz Renato Martins, em seu curso Formação e desmanche de um sistema visual brasileiro moderno, chama de desmanche a situação atual da arte visual brasileira: “A tônica dominante se mostra bem outra desde o início da década de 1980. A tendência pró-capitalista predomina e permeia todos os setores da vida social e simbólica. A lógica deste ponto de vista é a de que não existe alternativa ao capitalismo e à ‘globalização’, ou a de que o ‘mercado’ constitui a única realidade possível. Concomitantemente, entraram em desuso as práticas de reflexão histórica. O fim do ciclo histórico da arte moderna ou das vanguardas, que no Brasil constituíram fenômenos tardios e vigentes até a década de 1970, foi acompanhado pela extinção da esfera simbólica e social da crítica.” (MARTINS, Formação e desmanche de um sistema visual brasileiro moderno, acesso em: julho de 2008).

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Do Campo

Cidade

Para meus alunos.

Ay, no; no, ay; for I must nothing be; Therefore no no, for I resign to thee. Now mark me, how I will undo myself... (Richard II, VI, i, 201-03)

Sumário Anos 80 • Universidade, punk, AIDS. A volta dos sem-futuro

Anos 90 • Pichação, hip-hop, prisão. Diário de um detento

MTAW • A transição para a arte. Cenas da vida cotidiana

FAAP • A educação artística.

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Marrom

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“Consumir e gozar! E não estocar!”

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O Museu do Vazio

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Ocupação • O monumento em colapso. O monumento em colapso

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Ficha técnica

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agradecimentos

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Marcelo Cidade nasceu em 1979, em São Paulo, no mesmo dia em que Sid Vicious morreu. Seu pai era um grafiteiro punk. Chamava-o, ainda no berçário, de Sid. Quase foi registrado como Sid Cidade, mas sua mãe, uma estudante universitária, proibiu. Achava cafona nomes aliterados e assonantes. 112

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Infância Infância

Infância Infância

A recém-constituída família Cidade morava no “Sheraton” do CRUSP, o bloco F. A jovem Mãe passava as manhãs na aula e as tardes em casa, pilotando sua Olivetti. Escrevia textos sobre música, anarquia, cinema, guerra, poesia, religião, moda e sexo. Ilustrava-os com colagens de fotos de amigos, imagens de revistas, xerox de capas de discos, livros e tudo o mais que lhe caísse às mãos. Todo sábado, pela manhã, encocurutava o pequeno Marcelo às costas e rumava para o centro da cidade. Fazia uma parada no Largo São Bento, para ver os amigos. Ia para as Grandes Galerias, na 24 de maio, apelidada de Galeria do Rock pelos punks. Lá transformava sua produção matinal em páginas de um fanzine.

O Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo (CRUSP) foi invadido em 1968 pelos militares. Tanques e soldados armados expulsaram os cerca de 1500 estudantes que moravam ali. O CRUSP só reabriu em 1979, com quatro blocos a menos, dois demolidos para o alargamento de uma avenida e outros dois tomados para sediar a reitoria.

Fazia 50 cópias de sua produção gráfico-literária e deixava para vender na Baratos Afins. Ficava lá ouvindo as cassetes recém-gravadas, namorando os vinis importados, compulsando os fanzines nacionais e espiolhando os finlandeses, alemães, franceses e italianos. Enquanto Marcelo e a Mãe embrenhavam-se na Galeria do Rock, o Pai dormia até tarde no CRUSP. Quando acordava, pegava o trem, o ônibus etc., e ia até a Vila Piauí. Na casa de amigos, tocava guitarra, fumava maconha, escrevia poemas e recortava estênceis, para grafitar pela cidade.

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O começo do fim do mundo, primeiro festival punk de São Paulo, aconteceu no SESC Pompeia, em 27 e 28 de novembro de 1982. Foram convidadas vinte bandas punk de São Paulo e da região do ABC, que, durante esses dois dias, fizeram uma trégua nas rivalidades territoriais. O público era relativamente eclético, constituído de punks, moradores dos arredores, curiosos e, pela primeira vez num evento punk, alguns jornalistas.

Na época de exames e seminários da Mãe, o Pai levava Marcelo à Vila Piauí. Na casa dos amigos do Pai, além da guitarra e da maconha, tinha um montão de tintas e papéis, e uma penca de revistas em quadrinhos. Pato Donald, Mickey, Homem-Aranha, Surfista Prateado, Super-Aventuras Marvel, Super-Amigos, Super-Homem, Super-Isto e Super-Aquilo. Marcelo acreditava piamente que a Vila Piauí ficava em algum lugar no meio do caminho entre Patópolis e Gotham City.

“O futuro é negro, eu sei... A visão apocalíptica é correspondida pelo espectro da ameaça de uma guerra nuclear. Novos ares no horizonte do Cristo Redentor? Novas nuvens talvez. Não pense que perspectivas sombrias desafiam a língua afiada da cidade... Quem matou Salomão Ayalla? Você já foi à Bahia? Não? Pois é, eu também não! Noutro dia uma senhora disse: ‘Mas isso não combina com meu sofá’. Ora, minha senhora, troque de sofá!” Editorial de Wilson José para o número 19 da revista Fanzine Madame Satã, de 1985.

Ainda na Vila, o Pai e Marcelo se distraíam assistindo aos ensaios dos amigos Ratos de Porão. Aos olhos do primeiro, eles eram o supra-sumo do punk, e aos ouvidos do segundo, eram o máximo do ruído. Além da USP, das Grandes Galerias e da Vila Piauí, o Pai e a Mãe dividiam seu tempo entre os concertos punk, as manifestações estudantis e os grafites na madrugada. Marcelo os acompanhava. Assistiu precocemente ao festival O começo do fim do mundo, em 1982. Manifestou-se junto aos estudantes pelas DIRETAS JÁ em 1983 e 1984. Aprendeu a fugir da polícia, grafitando ilegalmente nos túneis da cidade, em 1985, 1986, 1987...

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“De pé contra o muro, de pé contra a lei, pra ser condenado, pra ser fuzilado, não há esperança pra eu e você.” Letra da música Condenados, dos Ratos de Porão, banda punk formada em 1981, cujos ensaios Marcelo assistia com seu pai, na Vila Piauí.

Em 1985, a Mãe tornou-se possuidora de um diploma uspiano. Serviu-se de seu registro virgem de jornalista para legalizar a revista-fanzine do amigo Wilson José, um dos donos da danceteria Madame Satã. Wilson era o responsável por toda a vida cultural do Satã. Isso incluía desde a publicação do Fanzine Madame Satã, a organização da agenda de shows ecléticos que aconteciam no porão da casa, até o convite corajoso a jovens inexperientes e artistas marginais para apresentar performances, desfiles, filmes, vídeos e poemas. Tudo aquilo que quisessem ou que fosse chamado de sucata pelo establishment cultural. Wilson apaixonou-se por uma das histórias escritas e editadas pela Mãe, que, de tanto ir ao Madame Satã, transformou seus frequentadores em personagens de sua ficção. A prosa semiliterária, xerocada e distribuída pela Mãe nos subterrâneos paulistas, mostrava a mulher-repolho como líder da guerrilha urbana que pululava por uma megalópole decadente imaginária. A figura despudorada que degustava folhas de repolho cru numa jaula suspensa no teto do Madame Satã converteu-se em super-anti-heroína num futuro indeterminado. 118

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O Madame Satã era uma casa noturna na Bela Vista que sediava shows de rock, performances, desfiles de moda e exposições de arte. Era frequentado por uma grande variedade de tribos, desde punks, carecas, góticos, travestis e prostitutas, até estudantes, socialites, atores, escritores e artistas.

“A Madame Satã era sádica? Masoquista? Acreditava em superheróis, e sonhava em ser um mito? Tinha sangue alemão e alma nazista? Chamava bofe de veado, entendia tudo errado, ou foi uma bicha velha, jamais velada porque não morreu, desintegrou-se? Ela era brasileira, morena, amarela? Morreu de AIDS ou de tédio? Pulava carnaval, ou foi sapatão que tomou chá de cadeira a vida inteira? Tinha fé, tinha gula, tinha prazer? Ou morreu virgem, foi canonizada e, hoje em dia, virou maldita? Era aflita ou nordestina? Inteligente ou cretina? Tomava vodka ou creolina? Votou, em vida? Quem era ela? Filiada, filha da puta ou só mal falada? Fazia terapia? Cheirava pó? Tinha ressaca?... Ou ela foi mero pretexto pra vocês abrirem esse bafom?” Madame Satã é um superherói? Texto de Monica Montoro para o número 20 da revista Fanzine Madame Satã, 1986.

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A Mãe passava, não só as noites, mas também as tardes no bairro da Bela Vista, na casa/editora/produtora de Wilson José. Se mandava para lá, todos os dias bem cedinho, empolgada com a produção da revista Fanzine e de projetos de exposições que levariam a marginália cultural paulista às capitais do país. Para lá também ia Marcelo, bocejando a tiracolo, embalado pela cantilena do motor do ônibus. De manhã frequentava a escola do bairro. À tarde, o pandemônio cultural da casa do Wilson, onde fazia a lição de casa assistido por punks, artistas, poetas, travestis, atores e músicos. Assim foi a infância nada tradicional de Marcelo Cidade. Punks, universidade, madrugada, ilegalidade. Da USP à Bela Vista, de lá à Galeria do Rock, ao Viaduto do Chá, ao Largo São Bento, à periferia, ao ABC. Aprendeu a andar de ônibus, de trem, de skate. Aprendeu a ouvir punk rock, se vestir de preto e não lavar o cabelo.

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“Nesta altura do texto, caberia também perguntar: ‘medo de quê?’ Uma indagação que bagunçaria o ti-ti-ti das futilidades que se transformam em verdade cultural nessa hacienda chamada Brazil.” Trecho do editorial de Wilson José para o número 21 da revista Fanzine Madame Satã, 1986.

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Que vergonha - Olho Seco (1980) “Não, não, eu não sei, o que é e o que não é, por que o mundo anda em guerra, gerando violência. Que vergonha! Que vergonha!”

Nos anos 1980, em São Paulo, formouse uma fértil cena artística alternativa, influenciada pelas ideias e atitudes punk. Pela primeira vez na história do Brasil, um movimento cultural nasce do proletariado e promove um caldeirão igualitário de classes sociais e intelectuais. Anarquista e sem-futuro, o punk já nasceu morto. Entretanto, deixou vestígios e herdeiros entre ativistas, músicos e artistas. A frase chave do movimento punk era faça-você-mesmo. Para a cena inglesa, era uma crítica ao mundo capitalista, à sociedade de consumo, e representava o tédio cultural e a decadência social dos subúrbios industriais. Para nós aqui no “terceiro mundo”, sem grandes recursos financeiros ou culturais, era o aval para a produção pobre e tosca corrente. As partituras musicais punks eram supersimplificadas e as letras das canções eram curtas, diretas e pouco 124

elaboradas. Qualquer um podia tocar um instrumento ou gritar no vocal de uma banda punk; qualquer um podia compor uma música de, no máximo, três acordes e fazer uma letra autêntica mas banal; qualquer um podia fazer uma fita cassete, um fanzine xerocado, escrever errado, desenhar mal, pintar mal etc.

União entre punk’s do Brasil - Fogo Cruzado (1981) “Querem exterminar, querem acabar, querem mais espaço pro mundo se estourar. União entre punk’s do Brasil! Vamos nos juntar, temos que nos unir pra, juntos, levantar o movimento que não pode parar. União entre punk’s do Brasil.”

O punk era basicamente uma atitude anarquista, niilista e deliberadamente contra. Suas características remontam ao Dada e suas manifestações subversivas e provocadoras, ao culto ao plágio e ao anonimato de Guy Debord, aos slogans dos situacionistas, à viagem pelo submundo urbano do movimento Beat americano, e à miscelânea social e de meios

artísticos não tradicionais promovidos por Andy Warhol, na Factory. Malcom McLaren e Bernie Rhodes, empresários, respectivamente, do Sex Pistols e do Clash, foram figuras importantes para o surgimento do punk. Inspiraram-se abertamente na estética de apropriação, no nonsense e na anarquia Dada, quando estabeleceram as fundações do punk britânico. Ações como as de Marcel Duchamp, procedimentos como os de John Heartfield e atitudes como as de Yves Tanguy poderiam retroativamente ser chamadas de punks. Duchamp, na mostra Dada, em Colônia, em 1920, fez os patronos da exposição entrarem pelos banheiros de um café e depararem-se com uma jovem vestida para primeira comunhão, recitando versos obscenos. Heartfield utilizava recortes de fotografias para compor uma nova imagem, fragmentada e distorcida, que tornou-se o procedimento mais utilizado nos fanzines punks. Yves Tanguy, em 1924, usava um corte de cabelo arrepiado e extravagante, e dizem que fazia performances comendo aranhas vivas.1 Além da influência do Dada na fundação do punk, as ideias de Guy

Debord e dos situacionistas foram sequestradas e adaptadas pela música e moda punk. As letras ingênuas e agressivas das canções punks mesclam slogans dos grafites de maio de 1968 com a depravação vulgar dos escritos da geração Beat. Allen Ginsberg, Gregory Corso, Jack Kerouac, Charles Bukowski e William Burroughs tinham elevado a degradação e a banalidade à categoria de literatura, abrindo as portas para as poesias simplórias sobre drogas e decadência moral. O culto à juventude degradada foi também estimulado pelo artista norte-americano Andy Warhol, que misturava arte com cinema, moda e rock, e movia-se entre a alta sociedade, a elite cultural e o submundo das drogas e da prostituição. Recebia em seu estúdio – a Factory – colecionadores, artistas, travestis, performers, poetas, músicos e modelos. Além dessa colagem social, Warhol produzia filmes debochados nos quais apresentava uma juventude amoral, drogada e sem ideologias. Foi o responsável também pelo surgimento do Velvet Underground, que influenciou a música punk pelo barulho e 125

violência do som, pelas poesias underground e pelas atitudes niilistas. Uns dizem que o punk começou em Nova Iorque, em 1975, com o Ramones, suas canções superaltas e superrápidas. Outros, que começou em Londres, em 1977, com Malcom McLaren, o Sex Pistols e os slogans Do it yourself [Faça você mesmo] e No future [Sem futuro ou Nada de futuro]. Mas, independentemente de seu local de origem, o punk alastrou-se como uma teia não oficial por entre as periferias urbanas. A nação tradicional, definida por fronteiras geográficas e políticas, deu lugar a um tipo de nação que crescia por capilaridade, aglutinando os resíduos das sociedades industriais que constituíam seus limites. Uma nação configurada via música, afinidades descobertas, sentimentos de identidade criados e instituições compartilhadas.

Anarquia Oi - Garotos Podres (1982) “Um dia você vai descobrir que todos te odeiam e te querem morto, pois você representa perigo ao poder!!! Anarquia! Oi! Eles não querem 126

que você viva. Destrua o sistema antes que ele o destrua. Não acredite em falsos líderes pois todos eles vão te trair. Anarquia! Oi!”

No Brasil, pra variar, vivia-se tempos de crise. Em 1975, o general Ernesto Geisel começara o processo de “redemocratização lenta, gradual e segura” do país, que culmina com as eleições diretas em 1989. O projeto político dos 21 anos de ditadura militar foi enormemente eficiente em degradar o sistema educacional e desmobilizar o movimento estudantil no Brasil. A sede da UNE foi invadida e incendiada pelos militares em 1964, e obrigada a atuar na ilegalidade. O CRUSP, fechado em 1968, só voltou para as mãos dos estudantes em 1979. Em dezembro de 1968, o AI-5 estabeleceu o estado de sítio, proibindo qualquer tipo de reunião, determinando a censura prévia e suspendendo o “habeas corpus” para os chamados crimes políticos. Os centros acadêmicos foram substituídos pelos diretórios acadêmicos indicados pela diretoria da Universidade. Todas essas medidas dificultavam

a formação de líderes estudantis e acentuavam, ainda mais, o despreparo geral da juventude suburbana. Além disso, a economia local tinha sofrido um grave estrangulamento devido ao colapso do milagre brasileiro e a controvérsias internacionais: a crise do petróleo, a linha dura da era Thatcher + Reagan, os conflitos intermináveis na América Central, na Ásia e na África, promovidos pela incansável intervenção americana, a AIDS... A luta dos jovens por uma sociedade igualitária e pacífica não tinha dado muito certo. Ter esperança já não fazia mais sentido.

Papai Noel Velho Batuta - Garotos Podres (1982) “Papai Noel, filho da puta, rejeita os miseráveis. Eu quero matá-lo! Aquele porco capitalista, presenteia os ricos e cospe nos pobres.”

Quando chegaram à periferia de São Paulo no final dos anos 1970, o tédio cultural e a decadência social do punk inglês se transformaram numa forma de aceitação da condição de marginalidade social dos subúrbios

industriais e de rejeição à cultura tropicalista nacional. Para os jovens suburbanos da grande São Paulo era difícil acreditar no mito tropicalista da nação otimista. Não conviviam com as belezas naturais do país, não tinham uma tradição folclórica da qual se orgulhar e não se encaixavam nas reivindicações regionalistas de outras cidades brasileiras. Iam de metrô ou ônibus visitar as lojas de discos e trocar figurinhas no centro de uma cidade cinzenta e sem graça, ou deselegante e discreta como as meninas da música Sampa, escrita por Caetano Veloso, em 1978. No começo dos anos 1980, o largo São Bento e a Galeria do Rock, na Rua 24 de maio, tinham tornado-se pontos de encontro de jovens suburbanos. Ambos eram lugares abertos, pontos de passagem que propiciavam a vascularização da atitude punk. No Largo São Bento, os encontros aconteciam na estação do metrô. Na Galeria do Rock, aconteciam nas lojas de discos. Em 1978, Luiz Calanca inaugura a loja Baratos Afins, colocando discos do John Travolta no chão para os roqueiros pisarem. Em 1979, Fábio, futuro vocalista do 127

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Olho Seco, abre a Punk Rock Discos. Em 1982, mesmo ano do festival do SESC, lançou o disco Grito Suburbano, iniciando o primeiro selo brasileiro de música punk. As lojas de rock do centro da cidade importavam discos de vinil, copiavam-os em fitas cassete e vendiam por preços acessíveis.

Conexão Urbana. A exposição tinha participação de 250 artistas, entre músicos, atores, poetas e artistas visuais. Pretendia ser a primeira de uma série de exposições levando a produção artística urbana para diversas cidades do Brasil.

A condição volátil da música facilitou ainda mais a transmissão das ideias e procedimentos punks que se alastraram subterraneamente, ramificandose também pelas periferias de outros centros urbanos. Em São Paulo, surgem as casas noturnas inspiradas no modelo do Melkweg, de Amsterdam. São casas para dançar, assistir a shows, cinema, performances, desfiles de moda etc.: o Napalm, no centro da cidade, que fechou depois de alguns meses devido a uma briga de morte; o Ácido Plástico, na frente da antiga Casa de Detenção de São Paulo, no Carandiru; o Carbono 14 e o Madame Satã, na Bela Vista, que organizavam exposições de arte, apresentações de teatro, dança, performances e de bandas de rock de todos os tipos. Em 1985, o Madame Satã organiza, na FUNARTE do Rio de Janeiro, uma exposição chamada

Buracos Suburbanos – Psykóze (1981) “O dia anoiteceu e a noite esclareceu a repressão policial, o céu se fechou e a chuva começou a inundar este país. Favelados se mudando e a chuva inundando os buracos suburbanos.”

No âmbito das artes visuais, o emblema da geração 1980 foi a volta da pintura. Da mesma forma que a música e os fanzines, a bad painting (ou má pintura, como ficou conhecida por suas características pictóricas) conecta artistas em diversos lugares do mundo que, independentemente de nacionalidade ou língua, discutem problemas semelhantes com estratégias semelhantes. As diferenças sociais, a falta de futuro e a desilusão com o sistema eram apresentadas com muito peso, tamanho, rapidez

e sujeira. Eram expostas por meio da figuração e do texto, pelo uso do grotesco, da linguagem urbana, de materiais precários, de referências literárias, musicais, populares ou eruditas. Características que são facilmente reconhecíveis no trabalho de jovens artistas norte-americanos e europeus transformados em estrelas, como Jean-Michel Basquiat e Francesco Clemente. A pintura retratava o submundo das drogas e do rock – ou do hiphop – que, no início dos 1980, podia ser definido como o punk das periferias urbanas afro-europeias ou afroamericanas. Procurava acompanhar a estética tosca das canções punks. Misturava um estilo deliberadamente grosseiro com um senso de humor negro e ácido. Acreditava poder destruir sua condição histórica de objeto com qualidades estéticas, “feito por uma elite intelectual para uma classe dominante”. Era malfeita, suja e rápida, para contrapor-se à ideia de pintura como virtuosismo. Era grande e pesada, sobre suportes precários e transitórios (como os panos para decorar shows) ou fixos (como os grafites em muros e paredes), para opor-se à

pintura de cavalete feita para o prazer da burguesia. Era figurativa e narrativa, para contrariar o hermetismo intelectual das artes abstrata, modernista e conceitual. Mesclava procedimentos dos grafites urbanos que, nesta época, eram politizados, proibidos e anônimos, com referências advindas da história da arte, da literatura, da música e do teatro. Reutilizava símbolos conhecidos em contextos bizarros, esvaziando-os de sentido. Desprezava regras históricas e valores estéticos e utilizava figuração e texto, esperando atingir e relacionarse de forma direta com observadores que não tivessem conhecimento das “questões” da arte ou não estivessem interessados na “arte pela arte”. A pintura era teatral. Era um palco de imagens, discursos e outras manifestações, juvenis, espontâneas e inconsequentes. Além da miscigenação com o teatro e com a música, a pintura resvalava na literatura, da qual estava distante desde o começo do século passado. Textos autorais, slogans políticos, citações literárias ou letras de música eram incorporados como imagem pictórica ou como título da obra. 129

A presença do texto na pintura ou em seu título ampliava o campo de significados das imagens. Funcionava como uma legenda aberta que possibilitava a sobreposição de histórias variadas, pictóricas ou não, que ligavam a pintura a outros contextos que não o da própria pintura. Assim como as outras manifestações visuais – fanzines, capas de disco e moda –, a pintura apropriava-se, sem qualquer preocupação com o politicamente correto, de elementos da alta cultura, ícones populares, imagens obscenas, itens sadomasoquistas e símbolos políticos, que variavam desde suásticas e crucifixos, até foices, martelos e estrelas de Davi.

A Santa Igreja – Mercenárias (1982) “O homem quer subir na vida em busca de fama e prazer. Daí encontra com Jesus e seu espírito de luz, vai renascer. Vai se foder! Salve! Salve! A Santa Igreja! O homem se revolta em suas condições, luta pra poder sobreviver. Daí encontra com Jesus, e só por estar vivo, vai agradecer. Vai se foder! Salve! Salve! A Santa Igreja! O jovem rebelde e criativo questiona e desobedece o poder. 130

Daí encontra com Jesus e as leis da Santa Igreja vai obedecer. Vai se foder! Salve! Salve! A Santa Igreja! O homem consciente dos seus direitos, com malícia, sabe se conduzir bem, pois esperta é a Santa Igreja, que graças aos ingênuos sabe viver muito bem! Salve! Salve! A Santa Igreja!”

As pinturas toscas e sujas dos anos 1980 foram, contudo, rapidamente apropriadas pelo mercado de arte internacional. O discurso crítico das obras foi esvaziado, deglutido e regurgitado na forma de fetiche da marginalidade e relíquia da juventude. Além disso, pelo fato de seus autores serem jovens do submundo das drogas e do rock, o mercado recuperou o mito do artista romântico – marginal e problemático –, que vinha sendo arduamente questionado e banido pelas vanguardas artísticas das últimas décadas. No caso nacional, a pintura jovem valorizada pelo mercado de arte recémformado oscilava entre um discurso infanto-hedonista e uma recuperação do formalismo “greenberguiano”. A produção plástica ligada ao movi-

mento e à estética punk não foi alçada para o domínio da história da arte. Nem então, nem agora. Também nas mostras retroativas recentes sobre a produção artística nos anos 1980, não se faz referência aos punks ou às manifestações alternativas da época. Por um lado, os problemas sociais, a violência e as desigualdades dos centros urbanos formados no capitalismo tardio não interessavam e não interessam, em nada, ao mercado de arte nacional. Só interessam ao mercado internacional como uma forma paliativa de redenção da culpa gerada por séculos de exploração. Por outro lado, os jovens dos anos 1980 que não acreditavam no futuro e sua produção visual não sobreviveram até os dias de hoje. Alguns morreram, vitimados pela violência, AIDS ou abuso das drogas. Alguns sobreviveram e tiveram que administrar um futuro inesperado, adequando-se ao sistema que condenavam e morrendo criativamente. A produção visual desses jovens exfuturos-artistas nunca foi documentada adequadamente. Afinal de contas, qual o sentido de se documentar qualquer coisa, se não existe futuro?

Haverá Futuro? - Olho Seco (1980) “Mãos estendidas, mãos trêmulas de um corpo fraco, mostrando sempre a palma da mão. Haverá Futuro? Olhares tristes, corpos encardidos apenas observam o movimento desta vida. Haverá Futuro? Houve passado, haverá futuro destes que observam o movimento da vida. Haverá Futuro?”

O movimento e a atitude punk, apesar de pouco documentados, deixaram uma herança que pode ser identificada em algumas manifestações artísticas contemporâneas locais. A primeira delas é a pichação paulista. Apesar de ser vista como sujeira e vandalismo pela maioria da população da cidade, é uma das manifestações artísticas urbanas mais interessantes da cena brasileira atual. A segunda é uma nova forma de arte de resistência, surgida nos últimos anos. Assim como o punk, o picho é também um movimento cultural proveniente da periferia e ramificado por toda cidade. Entretanto, lida com o tecido urbano como um suporte, um território selvagem ocupado por meio 131

de grafismos codificados e compreendidos apenas pelos integrantes da tribo urbana. Estes utilizam pseudônimos que os identificam para seus pares, mantendo-os paradoxalmente no anonimato público. Assinam com as iniciais da aliança a que pertencem, diluindo entre todo o grupo a autoria e a glória pela conquista do espaço público. Além da criação de uma língua urbana e da transformação da cidade em suporte real de comunicação entre gangues, os pichadores paulistas desenvolveram um procedimento e uma grafia próprios. Por falta de recursos para comprar sprays, pintam com rolinhos ou esponjas de engraxar sapatos, amarrados em cabos de vassoura. Pendurados pelas pernas ou equilibrando-se em parapeitos, conquistam os espaços públicos fixando suas bandeiras gráficas: palavras cifradas que imitam a verticalidade da cidade. A segunda manifestação artística contemporânea que pode ser relacionada com a atitude punk é a produção precária e banal de alguns artistas jovens. Sua existên132

cia mitológica e autoria duvidosa burla os parâmetros tradicionais de valorização das obras de arte. Mediante o sequestro de discursos de resistência como o da antiarte ou dos situacionistas, esses artistas realizam obras idiotas e aflitivas, que ilustram o absurdo de se fazer arte na sociedade contemporânea. Destruindo o autor através do plágio, da criação coletiva e da divulgação incontrolada, ludibriam os parâmetros que estabelecem o valor das obras. Suas obras toscas e sem valor de troca nos fazem lembrar que a arte é um jogo simbólico de desestabilização social, e não somente uma mercadoria sem valor de uso.2

Faça você mesmo – Sickterror (2000) “Faça você mesmo o seu produto, faça você mesmo o seu consumo, faça você mesmo o seu trabalho, faça você mesmo o seu mercado. Fanzine feito a mão tem público pra consumir, Maximun Rock’n’Roll tem público pra consumir, Victory Records tem público pra consumir, Hartattack tem público pra consumir. Faça você mesmo suas próprias drogas, faça

você mesmo seus novos dogmas, faça você mesmo seu mundo novo, faça você mesmo seu tapa-olhos. 7” ep tem público pra consumir, Preço de Capa tem público pra consumir, Born Against tem público pra consumir, Manliftingbanner tem público pra consumir. Eu consumo, eu consumo. Eu assumo, eu assumo. Faça você mesmo sua cena política, faça você mesmo suas evasivas, faça você mesmo sua demagogia, faça você mesmo sua hipocrisia.”

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COLEGRAVE, Punk., 2004, p. 18.

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A nova arte de resistência a que me refiro difere categoricamente da “antiarte” produzida atualmente. Esta é uma repetição de estratégias de negação da arte usadas nos anos 1960-70, com o objetivo – ingênuo – de criticar o mercado de arte e o sistema capitalista. Na realidade, só está alimentando-o e perpetuando-o, pois prevê a documentação de suas obras efêmeras ou processuais antes mesmo da obra se realizar. Esta documentação transforma qualquer manifestação “contra” em mercadoria, visto que é feita como um projeto de inserção futura no mercado.

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No início de 1993, o Pai morre de AIDS. A Mãe descobre ser portadora do HIV. Cai em profunda depressão e morre pouco tempo depois. 136

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Adolescência Adolescência Adolescência Adolescência Após a morte dos pais, Marcelo vai morar sob a guarda de sua avó materna, na zona sul de São Paulo. Sua vida muda completamente. Horário pra dormir, pra comer, pra estudar. O centro de São Paulo, o CRUSP, o punk ficam longe. Outra cidade, outra época, outro mundo.

Os desenhos da adolescência de Marcelo refletem as influências de seu convívio com o grafite e os quadrinhos. As experiências de sua infância reaparecem em anotações que se transformarão, a partir dos anos 1990, em pixações e tags.

Marcelo é acometido por uma nostalgia que o leva à apatia e ao esmorecimento. Raramente sai com seu skate pela vizinhança, como se fosse um alheado em terras estrangeiras, flanando pelas ruas cinzas e poluídas das redondezas do Largo Treze. Lá, conhece um povo do hip-hop. É apresentado ao mundo empolgante do rap engajado da periferia paulista. Volta a frequentar o centro de São Paulo, não mais vestido de preto, com a estampa dos Ramones no peito, mas com as calças caindo, uma camiseta GG e um moleton com capuz. Na mesma 24 de maio em que sua mãe vendia fanzines, Marcelo agora cascavilha tintas, canetões e sprays. Acaba por juntar-se à grife Os+Im. Explora os edifícios abandonados do centro em escaladas suicidas. Ocupa os muros dos subúrbios com grafismos herméticos. Encara o tecido urbano como uma selva que pede para ser conquistada.

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Marcelo explora as quebradas da cidade, encarnando o super-herói das HQs de sua infância. Em mergulhos quiméricos de pontes e viadutos, tenta superar a si mesmo, voar e vencer a urbe adormecida.

Em fevereiro de 1997, Marcelo atinge a maioridade. Para comemorar, sai prum rolê com os amigos da aliança. Depois de umas muitas e outras várias, termina a noite numa violenta briga com os Os*Rgs, eternos rivais dOs+Im. Marcelo é preso com outros pichadores no Centro de Detenção Provisória de São Bernardo do Campo. Depois de quase dois anos aguardando a sentença, acaba sendo condenado a cinco anos e quatro meses. É transferido de São Bernardo para a penitenciária de Marabá Paulista, onde trabalha na biblioteca, na cozinha e no parque agrícola. Fica culto, forte e bronzeado...

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Marcelo constrói sua identidade visual, revestindo os muros da cidade com suas assinaturas gráficas. A partir de 1995, junta-se à aliança Os+Im (Os Mais Imundos), uma organização de vários grupos de pichadores da zona sul de São Paulo. Eles executam pichações em locais de difícil acesso – como pontes, viadutos e arranhacéus – com instrumentos precários, tais como bastões de engraxar sapatos cheios de tinta látex e amarrados em cabos de vassoura. Um dos integrantes do grupo segura aquele que faz o “pixo” pelos pés, de modo que ele fique pendurado de ponta-cabeça e inscreva sua assinatura codificada nos prédios da cidade.

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O convívio com a aliança Os+Im infiltrou Marcelo na ilegalidade. A grife frequentemente entrava em grandes brigas com outras alianças, que acabavam em confrontos violentos com a polícia. Isso acontecia, principalmente, quando a outra aliança era Os*Rgs (Os Registrados do Código Penal), grupo arquiinimigo dOs+Im. Até hoje, há conflitos sempre que as duas facções se encontram.

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Marcelo foi preso no dia em que completou 18 anos. Devido a uma falha no sistema de assistência judiciária do Estado, sua fiança não pode ser paga.

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Diário de um detento São Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8h da manhã. Aqui estou, mais um dia. Sob o olhar sanguinário do vigia. Você não sabe como é caminhar Com a cabeça na mira de uma HK. Metralhadora alemã ou de Israel. Estraçalha ladrão que nem papel. Na muralha, em pé, mais um cidadão José. Servindo o Estado, um PM bom. Passa fome, metido a Charles Bronson. Ele sabe o que eu desejo. Sabe o que eu penso. O dia tá chuvoso. O clima tá tenso. Vários tentaram fugir, eu também quero. Mas de um a cem, a minha chance é zero. Será que Deus ouviu minha oração? Será que o juiz aceitou a apelação? Mando um recado lá pro meu irmão: Se tiver usando droga, tá ruim na minha mão. Ele ainda tá com aquela mina. Pode crer, moleque é gente fina. Tirei um dia a menos ou um dia a mais, sei lá... Tanto faz, os dias são iguais. Acendo um cigarro, vejo o dia passar. Mato o tempo pra ele não me matar. Homem é homem, mulher é mulher. Estuprador é diferente, né? Toma soco toda hora, ajoelha e beija os pés, E sangra até morrer na rua 10. Cada detento uma mãe, uma crença. Cada crime uma sentença. Cada sentença um motivo, uma história de lágrima, Sangue, vidas e glórias, abandono, miséria, ódio, 148

Sofrimento, desprezo, desilusão, ação do tempo. Misture bem essa química. Pronto: eis um novo detento Lamentos no corredor, na cela, no pátio. Ao redor do campo, em todos os cantos. Mas eu conheço o sistema, meu irmão, hã... Aqui não tem santo. Rátátátá, preciso evitar que um safado faça minha mãe chorar. Minha palavra de honra me protege Pra viver no país das calças bege. Tic, tac, ainda é 9h40. O relógio da cadeia anda em câmera lenta. Ratatatá, mais um metrô vai passar. Com gente de bem, apressada, católica. Lendo jornal, satisfeita, hipócrita. Com raiva por dentro, a caminho do Centro. Olhando pra cá, curiosos, é lógico. Não, não é não, não é o zoológico Minha vida não tem tanto valor Quanto seu celular, seu computador. Hoje, tá difícil, não saiu o sol. Hoje não tem visita, não tem futebol. Alguns companheiros têm a mente mais fraca. Não suportam o tédio, arruma quiaca. Graças a Deus e à Virgem Maria. Faltam só um ano, três meses e uns dias. Tem uma cela lá em cima fechada. Desde terça-feira ninguém abre pra nada. Só o cheiro de morte e Pinho Sol. Um preso se enforcou com o lençol. Qual que foi? Quem sabe? Não conta. 149

Ia tirar mais uns seis de ponta a ponta (...) Nada deixa um homem mais doente Que o abandono dos parentes. Aí moleque, me diz: então, cê qué o quê? A vaga tá lá esperando você. Pega todos seus artigos importados. Seu currículo no crime e limpa o rabo. A vida bandida é sem futuro. Sua cara fica branca desse lado do muro. Já ouviu falar de Lúcifer? Que veio do Inferno com moral. Um dia... no Carandiru, não... ele é só mais um. Comendo rango azedo com pneumonia... Aqui tem mano de Osasco, do Jardim D’Abril, Parelheiros, Mogi, Jardim Brasil, Bela Vista, Jardim Angela, Heliópolis, Itapevi, Paraisópolis. Ladrão sangue bom tem moral na quebrada. Mas pro Estado é só um número, mais nada. Nove pavilhões, sete mil homens. Que custam trezentos reais por mês, cada. Na última visita, o neguinho veio aí. Trouxe umas frutas, Marlboro, Free... Ligou que um pilantra lá da área voltou. Com Kadett vermelho, placa de Salvador. Pagando de gatão, ele xinga, ele abusa. Com uma nove milímetros embaixo da blusa. Brown: “Aí neguinho, vem cá, e os manos onde é que tá? Lembra desse cururu que tentou me matar?” Blue: “Aquele puta ganso, pilantra corno manso. Ficava muito doido e deixava a mina só. A mina era virgem e ainda era menor. Agora faz chupeta em troca de pó!” 150

Brown: “Esses papos me incomoda. Se eu tô na rua é foda...” Blue: “É, o mundo roda, ele pode vir pra cá.” Brown: “Não, já, já, meu processo tá aí. Eu quero mudar, eu quero sair. Se eu trombo esse fulano, não tem pá, não tem pum. E eu vou ter que assinar um cento e vinte e um.” Amanheceu com sol, dois de outubro. Tudo funcionando, limpeza, jumbo. De madrugada eu senti um calafrio. Não era do vento, não era do frio. Acertos de conta tem quase todo dia. Ia ter outra logo mais, eu sabia. Lealdade é o que todo preso tenta. Conseguir a paz, de forma violenta. Se um salafrário sacanear alguém, Leva ponto na cara igual Frankenstein Fumaça na janela, tem fogo na cela. Fudeu, foi além, se pã!, tem refém. Na maioria, se deixou envolver Por uns cinco ou seis que não têm nada a perder. Dois ladrões considerados passaram a discutir. Mas não imaginavam o que estaria por vir. Traficantes, homicidas, estelionatários. Uma maioria de moleque primário. Era a brecha que o sistema queria. Avise o IML, chegou o grande dia. Depende do sim ou não de um só homem. Que prefere ser neutro pelo telefone. Ratatatá, caviar e champanhe. Fleury foi almoçar, que se foda a minha mãe! Cachorros assassinos, gás lacrimogêneo... 151

Quem mata mais ladrão ganha medalha de prêmio! O ser humano é descartável no Brasil. Como modess usado ou bombril. Cadeia? Claro que o sistema não quis. Esconde o que a novela não diz. Ratatatá! sangue jorra como água. Do ouvido, da boca e nariz. O Senhor é meu pastor... Perdoe o que seu filho fez. Morreu de bruços no salmo 23, Sem padre, sem repórter. Sem arma, sem socorro. Vai pegar HIV na boca do cachorro. Cadáveres no poço, no pátio interno. Adolf Hitler sorri no inferno! O Robocop do governo é frio, não sente pena. Só ódio e ri como a hiena. Ratatatá, Fleury e sua gangue Vão nadar numa piscina de sangue. Mas quem vai acreditar no meu depoimento? Dia 3 de outubro, diário de um detento.

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Diário de um detento é um rap dos Racionais Mc, lançado em 1997, no álbum Sobrevivendo no Inferno. Foi escrito em colaboração com o ex-detento Jocenir. Aborda a rebelião do presídio do Carandiru, ocorrida em 2 de outubro de 1992, quando 111 presidiários foram mortos pela polícia. O evento ficou conhecido como “Massacre do Carandiru”.

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Marcelo fica três anos mofando em cana. Consegue um habeas corpus, num processo coletivo de um mano pichador. Sai da cadeia e volta pra casa da Avó. 156

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Formação Formação

Formação Formação

Marcelo não se anima mais com nada. Fica horas sentado sozinho, tomando sereno, vento, chuva; sentindo o calor do sol, a melancolia do luar, o peso da poluição. Quando sai de casa, é no meio da noite, munido de seus sprays velhos e de seus canetões ressecados para pichar túneis empoeirados e trens enferrujados. A Avó insiste para que ele faça alguma coisa útil. Preste vestibular, arranje um emprego, tome jeito na vida. Ele só quer saber de respirar, ouvir música e fumar maconha.

Até que um dia, bate uma saudade, e Marcelo resolve ir procurar os amigos. Vai ao Centro Cultural São Paulo, num encontro de pichadores, ver se encontra alguém das antigas. Mas em quatro anos, muita coisa mudou. Muita gente morreu ou desviou-se dessa vida.

Após sair da cadeia, Marcelo abandona a aliança de pixadores e retoma os grafites de sua adolescência. Descrente da justiça brasileira e sem esperanças de vir a conhecer um mundo melhor, assina a maioria de seus grafites como Ateu. Pinta sobre veículos e lugares de passagem. Vive um momento de transição, um intervalo entre a experiência traumática na penitenciária e um futuro ignorado.

Sem encontrar ninguém conhecido e sem nada mais interessante pra fazer, Marcelo resolve dar uma banda pelo Centro Cultural. Fica intrigado com o que vê. A partir de então, passa a frequentar as exposições de arte, bisbilhotar a biblioteca, assistir aos concertos gratuitos, aos filmes, às peças de teatro.

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Numa dessas perambulações pelo CCSP, Marcelo conhece alguns integrantes de um movimento artístico com pretensas atividades políticas (ou vice-versa), o Movimento Terrorista Andy Warhol (MTAW).

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O Movimento Terrorista Andy Warhol (MTAW) recuperava as ideias do movimento homônimo surgido em São Paulo, no final dos anos 1970. Formado por jovens artistas e estudantes de arte e arquitetura de várias faculdades, o MTAW baseava-se nas ações de antiarte dos anos 1960-1970, na ironia niilista de Andy Warhol e na incoerência entre a figura do artista pop norte-americano e a ideia de terrorismo. Realizava intervenções no espaço de instituições ligadas às artes, com o intuito de fragmentar sua estabilidade social, escancarar a apatia política dos artistas e desmascarar a falta de ética que assolava as elites brasileiras. Na FAAP, o MTAW pintou com cores fortes, em apenas 15 minutos, todas as portas das salas de aula da Faculdade de Artes Plásticas. A ação foi um protesto contra as recentes reformas que promoviam ambientes ora luxuosos e intocáveis, ora assépticos e conformados.

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Marcelo entra em contato com diversos grupos de ativismo, desde movimentos sociais, pastorais e organizações de base, até coletivos de mídia independente, arte e teatro.

Na Pinacoteca, numa das comemorações pelos 500 anos do descobrimento do Brasil, os integrantes do MTAW, com camisetas e máscaras de Mickey Mouse, ofereceram narizes de palhaço para os convidados VIP. Alardeavam a grande palhaçada que era comemorar 500 anos de colonialismo, opressão, corrupção e bandalheira.

Marcelo interessa-se pelas ações do MTAW, mesmo sem entender por completo a parte artística. Associa-se ao grupo em suas intervenções, passeatas e atentados, ora inofensivos e quase bobos, ora violentos e perversos. Participa ativamente do planejamento de seus atos públicos, e passivamente de suas discussões artísticas. Julga tediosos os intermináveis debates sobre autoria, conceito, contexto e demais lenga-lengas. Em maio de 2000, Marcelo se apresenta como representante do MTAW no Seminário Movimentos Populares e Universidade, organizado por estudantes da Universidade de São Paulo (USP), pela Central dos Movimentos Populares (CMP) e pela União dos Movimentos de Moradia (UMM).

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Cerca de cinco mil pessoas participaram, na sexta-feira, dia 20 de julho de 2001, de um protesto contra a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas). Os manifestantes incluíam estudantes, representantes de partidos políticos de esquerda, membros da CUT (Central Única dos Trabalhadores) e do MST (Movimento das Trabalhadores sem Terra). Saíram da Praça Osvaldo Cruz, próxima ao metrô Paraíso, e dirigiram-se ao Consulado dos Estados Unidos, na rua Padre João Manoel. O protesto foi uma das manifestações deflagradas pela reunião do G8, em Gênova, Itália. Apesar de alguns punks e anarquistas provocarem o policiamento, o evento na capital paulista começou e terminou sem incidentes.

Em dezembro, Marcelo colabora na fundação coletiva do Fórum Centro Vivo, organização que articulava as pessoas e as organizações que lutam pelo direito de permanecer no centro da cidade, transformando-o num lugar melhor e mais democrático. No ano seguinte, participa de grande número de manifestações. Em janeiro, viaja para Porto Alegre por ocasião do Primeiro Fórum Social Mundial. Em fevereiro, toma parte do F6, manifestação contra a homofobia. Em março, ocupa uma festa da Nokia, no MAC da USP, em protesto contra a apropriação do sistema universitário por empresas privadas. Em abril, protesta contra a criação da ALCA. Em julho, contra o encontro do G8, em Gênova,... A Avó vive de cabelo em pé. Morre de medo de que ele seja preso novamente.

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(Senhora recostada numa chaise longue Luis XVI, vestindo um pegnoir cor-de-rosa e sandálias de salto da mesma cor. Ela fala num telefone apoiado numa mesinha redonda de mahogany. Um abajur Lalique ilumina a cena. Na parede, um grande mural do artista americano Sol Lewitt compõe o cenário.)

(Vários estudantes de faculdade estão reunidos na sala esfumaçada de um sobrado velho. As paredes têm pé direito alto, infiltrações, cartazes e rabiscos. Os móveis são dois colchões, algumas almofadas, uma antiga prensa de gravura, uma bancada de marcenaria e um aparelho de som. Vários livros, discos e CDs estão empilhados pelos cantos.)

– Você tem que ir. Todo mundo vai estar lá! – (Voz feminina em off) Ah, mas da última vez que fui a um coquetel desses, foi horrível! Foi naquela exposição no Giardino, em Venezia. Estava um calor indecente, lotadíssimo de gente da pior qualidade e, ainda por cima, destruí meus Jimmy Choo metálicos naquele piso de pedrinhas brancas horroroso... – Mas este coquetel vai ser ótimo! Vai ser um petit comité com convidados selecionadíssimos. Além do mais, não vai ser preciso andar quilômetros sob um sol de amargar: é à noite e obviamente há manobristas no local.

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– Você não foi no outro coquetel, na semana passada... – Você foi??!! Não acredito que você foi na casa daquela p pontinhos!!! Você sabe que eles são rivais, né? Vai parecer que você está apoiando ela... – Ai, que coisa... E depois, a festinha era na casa dela... Porque ele tem que escolher esse lugar tão fora de mão? É no centro, não é verdade? Lá onde tem um monte de drogados... Dizem que é um ambiente pesadíssimo... Cinemateca, não é? - Pinacoteca. - É. Foi isso que eu quis dizer.

– No meu tempo era da hora. Podia entrar quem quisesse na aula que quisesse. Se a aula do professor era legal, tava sempre cheia de bico. E dizem que, nos anos 1980, tinha um monte de grafites nas paredes e que o jardim era aberto pra quem quisesse ir passear com cachorro, andar de skate... Hoje em dia não pode nem bater um prego na parede! Grafite então, nem pensar! Tem que estar tudo branquinho, bem nos conformes.

– Ué? E o nu “artíshtico”!!?? E o Renoir e os truta machista dele, lá da história da arte? Já se esqueceram deles? – É, cara. Neguinho pelado nem pensar! Acho que faz parte da política de limpeza deles. – Meu, e aquela catraca pra entrar? Também é política de limpeza? Parece um clube, sei lá. E aí você entra e parece um shopping: granito, dourado, câmeras de vigilância e um monte de loira de cabelo liso. – É. Pra entrar, tem que dizer que vai no museu, no teatro ou pagar alguma dívida. Aí, sim, eles deixam você entrar correndo. Pra assinar o cheque, sempre pode. – Eu queria soltar umas mil bombas lá! Ia voar merda dourada pra tudo quanto é lado!!

– E outro dia que uma mina foi fazer uma performance e dois seguranças ficaram seguindo ela, com medo que ela tirasse a roupa!

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cena 3

cena 4

(Mulher sentada na frente de um Macintosh branco, sobre uma mesa de trabalho branca, numa sala branca. Entra um homem de terno branco e sapatos coloridos. Várias pinturas coloridas, emolduradas em branco, estão encostadas na parede. No centro da sala, há uma jaula de aço inox de aproximadamente 200 x 100 x 100 cm.)

(Uma punk toda no “visu” conversa com um rapaz gordinho de camisa polo sentado na calçada. A rua está deserta mas cheia de panfletos, vidros quebrados, pedras e fumaça.)

ele – Você vai pra Nova Iorque, montar seu trabalho?

ela – Ai, é que eu não entendo nada dessas coisas...

ele – Ué, por que não?

ele – Vai ter um catálogo lindão, e o nosso trabalho vai estar mais valorizado e inserido em todas exposições, revistas e coleções internacionais que importam! E depois todo mundo vai estar lá...

ela – E esse escândalo todo, não vai dar sujeira?

ela – Ai, tá bom, tá bom... E aí, por falar nisso, você trouxe um teco?

ela – Ainda não sei se vou participar da itinerância... você vai?

ele – Ah! E você acha que vai fazer alguma diferença você boicotar a exposição? Não acredito que você é tão ingênua! Só vai acabar sobrando pra você mesma. ela – Você acha que todo mundo vai topar continuar fazendo parte da exposição, mesmo depois de tudo?

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ele – Claro! Vamos pro MOMA e etc. Depois de uns anos, ninguém vai se lembrar de mais um escândalo de corrupção no Brasil. E depois, é um banco ou o outro... Dá tudo na mesma, ou você acha que o outro banco é do bem?

– Acho que teve tipo uns 100 feridos. A polícia foi super truculenta. Parece que tudo o que fizemos não valeu de nada: as oficinas de sit in, a ocupação de rua não violenta... Ela veio mesmo é disposta a silenciar os atos... – É, a gente não fala a mesma língua. Você acredita que acabaram de me ligar de um hospital aqui perto da Paulista, contando que os médicos se recusaram a atender os manifestantes?! – Pior que isso, só a cara de pau do coxinha dando entrevista. Ele disse que “perdeu” a identificação durante a bagunça... Sei... E o que você achou dos sindicatos?

– Eu tô ligada. A gente tava pensando era numa manifestação tipo pacífica, com street party... mas os caras ainda estão nesse mesmo esquema tipo “carro de som e liderança” dando a linha pro movimento. – É. Mas eu acho que a luta antiglobalização não acaba aqui e que a gente tá caminhando pra um entendimento, na organização e até na forma dos atos... – Haha! Foda é que entidade ligada aos ruralistas manja muito isso de tratorar decisões... – É. É difícil dialogar com quem fala mais alto porque tem um carro de som... Bom, mas nossas divergências internas não vão ajudar ninguém na fila do hospital, né? Bora lá?

– Putz, foi difícil desde o começo. De novo, a gente não se entende. A galera autônoma temeu comprometer essa tal autonomia, se envolvendo demais nos esquemas burocratizados.

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Influenciado pelos amigos do MTAW e pressionado pela Avó para fazer uma faculdade qualquer, pelo amor de Deus!, Marcelo decide prestar vestibular para Artes Plásticas. 178

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Desmanche Desmanche

Desmanche Desmanche

No início de 2002, Marcelo é aprovado no curso noturno da Faculdade de Artes Plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Receia matricular-se, devido às mensalidades exorbitantes. Entretanto, como tinha rodado nos exames da USP e da UNESP, fica sem opção. Decide tentar uma bolsa e pagar pra ver.

A FAAP foi fundada em 1947, num prédio classicista desenhado por Auguste Perret. Abriga o Museu de Arte Brasileira desde 1961 e a Faculdade de Artes Plásticas desde 1967.

Na FAAP, descobre a história da arte e seu mercado milionário. Toma conhecimento tanto das investidas da neovanguarda e da antiarte contra os sistemas de poder, quanto do vínculo desses mesmos sistemas com a produção, mercantilização, manutenção e divulgação das obras de arte. Em junho de 2002, é convidado, com outros vinte jovens artistas e estudantes de arte, a participar da exposição inaugural da Galeria Vermelho.

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Cidade acredita ser capaz de coordenar sua vivência nas ruas, transpassada por violência, anonimato e adrenalina, com sua recente experiência com a “grande arte”, protegida, autoral e reflexiva.

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Os primeiros trabalhos de Cidade, na FAAP, eram impregnados de uma violência patética e regidos por um humor negro simplório. A série de ações Desencubando e o vídeo #10, por exemplo, relacionam nomenclaturas, procedimentos e formas artísticas com condutas e vocabulários cotidianos. Em Desencubando, de 2002, Cidade ataca a forma racional perfeita, paradigma das artes moderna e conceitual: o cubo. Cubos de diversos materiais são destroçados pacientemente numa série de ações privadas, filmadas em vídeo. No primeiro vídeo da série, um cubo feito de carne é macerado com instrumentos de marcenaria, até virar um tecido disforme que é devorado por um cão. O massacre resulta na destruição da forma, na desaparição do corpo e, posteriormente, na deglutição derradeira das sobras. Nos demais vídeos da série, Cidade destroça cubos de ferro, madeira e gordura, entre outros. Em #10, também de 2002, Cidade grampeia o próprio braço, num cenário minimalista. O instrumento usado na academia de artes para grampear folhas, telas e tecidos, sobre a madeira ou a parede, é utilizado sobre um suporte, simultaneamente inusitado e vulgar: o corpo do artista.

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Em Artista descendo a escada no 3, Cidade explicita sua admiração por Marcel Duchamp. Protegido apenas com um capacete de bicicleta, serra as pernas de uma escada de madeira que acabara de subir, despencando vertiginosamente. A releitura tragicômica da obra-prima Nu descendo a escada no 2 de Duchamp subverte a posição do artista, transformando-o em modelo de uma empreitada patética de autossabotagem. A tarefa árdua de serrar a escada culmina com a queda do artista/modelo de seu pedestal precário.

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marrom A partir da metade do século XX, a obra de arte adquire uma natureza cada vez mais complexa. O território das artes visuais se expande para outras áreas artísticas, como a música, a literatura e o teatro, e invade os campos da arquitetura, da ciência e do desenvolvimento social. Nessa situação de contaminação entre meios, áreas e discursos, como se estabelecer uma definição objetiva para a obra de arte? Até a 2a Guerra Mundial, existiam critérios formais objetivos para definir uma obra de arte. As características da estrutura plástica de um objeto determinavam sua qualidade artística. O recém-criado mercado de arte usufruía de critérios objetivos, como materialidade, unicidade e autoria, para estimar comercialmente o objeto artístico. Uma obra de mármore valia mais do que uma de feltro; uma pintura, mais do que um múltiplo; e uma escultura feita por um mestre, mais do que uma feita por um de seus discípulos. No entanto, os experimentos artísticos ocorridos a partir do pós-guerra ocasionam a expansão da definição 188

de arte, flexibilizando suas fronteiras com outros campos, como a ciência, a filosofia ou simplesmente a vida cotidiana. Com as pesquisas artísticas de nomes como Yves Klein e James Lee Byars, e, no Brasil, Hélio Oiticica e Lygia Clark, a obra de arte deixa de ser apenas um objeto a ser possuído para tornar-se um sistema de relações a ser experimentado. Já em 1962, Klein apresenta Zone de sensibilité picturale immatérielle, anunciando a desnecessidade do objeto material para a fruição da experiência de arte. A partir de então, vários artistas desmontam ainda mais a noção tradicional de obra de arte. Andy Warhol radicaliza a proposta duchampiana de que qualquer objeto poderia ser arte. Com as caixas de sabão Brillo Box, de 1964, Warhol relativiza a importância da forma, fragilizando os limites entre objetos artísticos e bens de consumo. Joseph Beuys invade o território da sociologia, pregando que todo homem é um artista, que todo trabalho físico é um trabalho criativo e que a criatividade é o capital gerador dos bens mais importantes para o fortalecimento de uma economia.

A exposição Marrom, na Galeria Vermelho, aconteceu de 7 de junho a 10 de agosto de 2002. Consistiu na ocupação do espaço da galeria com conversas, palestras, jantares, festas, concertos musicais e intervenções artísticas, efêmeras e experimentais. Dela participaram jovens artistas e estudantes de arte cujas propostas questionavam os limites da obra de arte e as possibilidades de se fazer uma arte experimental, utópica e subversiva. A mostra alardeava a crença insistente na arte como um vetor capaz de interagir, questionar, subverter ou simplesmente misturar-se à realidade política e econômica.

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O nome Marrom – geleia indefinida de matizes – sugeria a mistura anulatória de cores com significados políticos, artísticos ou simbólicos, como o verde e amarelo da nação, o branco do espaço expositivo tradicional, o preto do lugar de formação da imagem fotográfica e o vermelho das revoluções, das vanguardas, e do nome da galeria. Ambicionava despertar uma sensação de indefinição, sujeira, merda, e conectar-se, assim, ao Brasil diarreia de Helio Oiticica. Em seu texto de 1969, (in Arte Brasileira Hoje, org. Ferreira Gullar), Oiticica define a formação brasileira como “diarréica”. Declara que para se construir algo no Brasil é necessário se reconhecer a falta de caráter de sua formação e “dissecar as tripas dessa diarreia”, ou seja, “mergulhar na merda.”

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Finalmente, ainda nas décadas de 60 e 70, nos Estados Unidos, os artistas da chamada neovanguarda começam a formular uma teoria e prática de arte que se concentrava menos na execução de um objeto que fosse formalmente pertinente e terminado do que numa arte que revelasse os processos de sua execução ou “inexecução”. A relação tempo-espaço torna-se um fator fundamental para a experiência de arte. Além de realizarem trabalhos efêmeros, os artistas situam a obra fora do espaço tradicional da arte, ressaltando a importância da duração e do percurso para que ela seja compreendida. A obra de arte definida como uma estrutura sólida e compacta com um mínimo de estabilidade, unidade e composição desaparece, tornandose difusa e quase imperceptível. Sua aura agonizante se dissipa por completo devido à utilização cada vez maior de tecnologias industriais. A possibilidade de reprodução de um objeto e de uma imagem indefinidamente, sem prejuízo de “qualidade estética,” faz a obra de arte totalmente impessoal e extingue a relação indicial que esta mantinha com o artista.

Ele, muitas vezes, não chega nem mesmo a tocá-la, terceirizando sua execução e montagem. Além disso, a matriz digital, diferentemente das utilizadas nas práticas tradicionais de gravura ou fotografia, além de poder ser reproduzida, não se desgasta com uma tiragem grande. Tanto a matriz, quanto o original e as cópias passam a ser formal e conceitualmente idênticos. A estrutura plástica de uma obra deixa, portanto, de ser determinante para seu estatuto de arte. Assim como um objeto artístico pode ser igual a um artefato doméstico, industrial ou mesmo a um acidente natural, uma imagem de arte pode ser formalmente idêntica a uma imagem documental, publicitária ou científica. Uma obra de arte passa a ser “qualquer coisa” feita por um artista. Essa indefinição da obra de arte faz com que o mercado alicerce seus paradigmas sobre a crença renascentista na condição genial do artista e em seu toque mágico. Enquanto no Renascimento essa crença se reportava a uma habilidade técnica do artista, hoje em dia ela fundamenta-se apenas na sua intenção em fazer arte. 191

Devido à vulgarização do objeto artístico, essa intenção do artista torna-se essencial para a definição de arte, e sua marca registrada, fundamental para a valorização da obra. A autoria passa a ser determinante para a avaliação de um trabalho artístico. Um objeto qualquer é mais valorizado do que outro por ter sido magicamente tocado por este ou aquele criador. O artigo de arte distingue-se, assim, de seu similar não artístico, porém confunde-se com o fetiche ou com a relíquia histórica. Objetos banais são colocados em redomas de cristal e passam a ser tratados como pedras preciosas e raras, por terem sido tocados por determinado artista, numa determinada época. Coisas como um guardanapo com a caligrafia de Basquiat ou um cartão postal com a assinatura de Beuys passam a ser consideradas falaciosamente obras de arte. O que diferencia esses objetos do capacete assinado de Ayrton Senna ou do retrato autografado de James Dean? Obras efêmeras, criações coletivas, intervenções específicas e todo tipo de experiências “contaminadas” são algumas das inúmeras tentativas de 192

resistir à reificação da experiência de arte e de confrontar a recuperação de valores antigos como a ideia renascentista do toque mágico do artista genial. Apesar de todas essas investidas que, nos últimos 50 anos, transformaram radicalmente as noções de obra de arte, o mercado continua ditando as regras da produção artística. Além de atribuir excessivo valor a fatores obsoletos e extrínsecos à obra de arte contemporânea – como autoria, unicidade1 e materialidade2 –, estimula a proliferação dessas mesmas manifestações artísticas, que surgiram originalmente com o objetivo de criticá-lo ou subvertê-lo. As tais obras efêmeras, criações coletivas, intervenções específicas e experiências “contaminadas” transbordam por todas as partes, adquirindo o mesmo estatuto que vieram condenar. A experiência artística contemporânea, na realidade, espelha o capital fictício. Ambos podem ser definidos como “um processo de reprodução da vida social por meio da produção de mercadorias.” As regras são “concebidas de maneira a garantir que ele [ou ela] seja um modo dinâmico e revolucionário de

A exposição pretendia recuperar a ideia do espaço expositivo “operacional” idealizado por Walter Zanini nos anos 1970. Zanini foi o curador de uma série de exposições no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo, chamadas Jovem Arte Contemporânea (JAC). Ele acreditava que o museu devia ser um espaço “operacional” que pudesse abrigar a arte conceitual, processual e desmaterializada que vinha sendo feita. Em 1972, na VI JAC, os espaços expositivos foram loteados e sorteados entre os artistas inscritos, gerando uma exposição eclética e polêmica. O projeto de Genilson Soares e Francisco Iñarra, por exemplo, era o de incluir, em um lote de excluídos, artistas que eles consideravam importantes e que não tivessem sido contemplados no sorteio.

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organização social que transforma incansável e incessantemente a sociedade em que está inserido[a].”3 Mascara, fetichiza e cresce mediante a destruição criativa. O capital fictício, assim como a obra de arte desmaterializada, gira sem lastro. Agora, a mercadoria já não é mais a experiência de arte, difusa e impalpável, e sim o próprio artista, substituído a cada nova estação. A produção contínua de “jovens artistas” mantém o novo sempre sob controle – sempre igual – e priva a modernidade de seu direito a se tornar antiguidade.4 Cabe aos artistas contemporâneos estabelecer uma resistência contra a reificação da experiência de arte e a mercadização do artista. Não devem se contentar com a abordagem capitalista e perversa da obra de arte. Devem, por meio da criação e divulgação de espaços para debates e troca de reflexões sobre o território expandido da arte, lutar por manter as conquistas das gerações anteriores, aprender com seus desacertos e procurar, assim como seus antecessores, ampliar ainda mais as fronteiras da arte. 194

1

O estabelecimento de limites à reprodução ilimitada de uma obra de arte produzida por meios tecnológicos é um dos artifícios de valorização criados pelo mercado, com a finalidade única de atribuir-lhe um valor postiço de raridade.

2

A “desmaterialização” da obra de arte suscita a necessidade da documentação que acaba por substituíla como obra, deturpando seu estatuto artístico original. A documentação de uma experiência de arte é, portanto, problemática. Por um lado, ela mantém a dimensão utópica da obra por remeter a ela de maneira incompleta. Por outro, dilui essa dimensão ao tornar-se uma relíquia ou um fetiche.

3

HARVEY, Condição pós-moderna, 1992, p. 307.

4 Baudelaire descrevia a tarefa da arte como um fazer por merecer se tornar antiguidade (BENJAMIN, Charles Baudelaire, 1989, p. 80).

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Na Marrom, Cidade coordenou o happening Guerra ética, no último dia da exposição. Elegeu, entre amigos e jovens artistas, duas equipes adversárias: o time da arte, cujo território era o espaço de exposição e a farda era uma camiseta branca, e o time da rua, vestido com camiseta cinza e alojado fora do portão de entrada da galeria. Muniu ambos os times com máscaras, óculos protetores, estilingues, armas e munição de jogos de paintball. Fixou uma bandeira em cada território, que deveria ser arrancada pelo time adversário. Em poucos minutos, o time da rua invadiu e ocupou o território da arte, maculando de laranja as vestes e as paredes brancas do adversário, roubando sua bandeira e vencendo a guerra-jogo entre arte e vida. Para Cidade, Guerra ética representava a luta simbólica entre o mundo da arte e o mundo da vida. A vitória do time da rua foi um sintoma da morte da arte como resistência efetiva ao poder, já que, ao ocupar o espaço da arte, a vida transforma-se rapidamente em fetiche simbólico ou relíquia histórica. Após a exposição, Cidade chega à conclusão de que toda experiência artística, por mais subversiva que seja, é engolida ainda recémnascida pelo mercado da arte. Desiste de seus ideais de mesclar a ilegalidade à arte e percebe a inefetividade da antiarte, na atualidade. Acredita que os artistasmarginais da década de 1960, a quem tanto admirava, foram transformados em heróis para poderem ser domesticados pelo sistema capitalista. Passa a realizar ações sem pretensões artísticas ou políticas. Brincadeiras infantis, ora arriscadas, ora singelas, de violência idiopática e marginalidade sem nenhum heroísmo.

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“QUALQUER ATO DE SUBVERSÃO, QUANDO ASSUMIDO PELO CONTEXTO ARTÍSTICO, PERDE O CARÁTER TRANSGRESSOR E TORNA-SE APENAS MAIS UMA MERCADORIA. MC” 197

Em Encarn-ação, de 2003, Cidade debocha do uso de drogas para alcançar estados alterados de consciência. Registra rápidas perdas de domínio do corpo e da mente, conquistadas por meio de hiperventilação. Destrói-se a si e a seus companheiros de sessão, alterando o lugar do entorpecimento na arte: de instrumento de criação da obra para atividade de destruição (física e moral) do artista e/ou do modelo. Em Desenho + – livre, também de 2003, Cidade tatua o braço de um amigo como se estivesse fazendo um rabisco numa folha de papel, sem um modelo, luvas ou preparação adequada. A liberdade infantil do desenho se sobrepõe à inconsequência juvenil da tatuagem caseira. A atitude punk que preconizava a ausência de futuro e o façavocê-mesmo reaparece sem revolta e sem ideologia. Cidade aceita e acomoda-se à inexistência do porvir.

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Em 1999, o artista espanhol Santiago Sierra tatuou uma linha de 250 cm sobre seis pessoas remuneradas com trinta dólares cada uma, em Havana. Seis jovens cubanos se deixaram tatuar, sem nenhum engajamento ideológico. O artista escancara a natureza niilista do contrato de trabalho atual e os jogos de poder implícitos na arte. Porém, Sierra não fez mais do que perpetuar uma situação colonialista de exploração do mais fraco. Apesar do consentimento dos jovens cubanos, eles estavam em situação de inferioridade em relação ao artista. Para um artista espanhol, trinta dólares correspondem a uma refeição. Para um cidadão cubano, a dois meses do salário de um médico. A desigualdade entre o empregador e o empregado retoma inadvertidamente uma tradição de exploração. Cidade repete a ação de Sierra. Porém, no lugar da remuneração, surge a celebração; do discurso político, surge o humor negro de um suicídio grupal malfeito; do formalismo da linha negra, irrompe a violência ilustrativa do corte vermelho; da arte, assoma o burlesco. Em Suicídio burro (a.k.a. Sierra Benetton), de 2003, Cidade realiza uma cerimônia coletiva, na qual uma linha vermelha é tatuada na parte superior do pulso de 6 amigos. A obra é uma sátira à obra do artista Santiago Sierra e à campanha publicitária da Benetton. Ilustra uma tentativa de suicídio malsucedida – o corte no lado errado do pulso – e declara a burrice suicida da própria ação – o perigo de contaminação pela utilização da mesma agulha e tinta em todas as tatuagens. 200

A partir de 2003, Cidade incorpora em seu trabalho procedimentos que, apesar de marginais ou ilegais, são comuns entre os jovens. Explora práticas – como as tatuagens e as drogas – que se tornaram moda, transformando-se num simulacro de marginalidade. Ridiculariza a proliferação, entre seus colegas de faculdade, de tatuagens iguais às da máfia japonesa e de roupas inspiradas nos traficantes dos guetos americanos. Sem emprego fixo, Cidade vive de bicos, que vão desde a montagem de exposições até assistência para artistas. Tem dificuldade para pagar as exorbitantes mensalidades do curso de artes plásticas. Inadimplente, passa a frequentar as aulas clandestinamente, burlando o sistema de vigilância repressor da faculdade. Seus trabalhos transformam-se num reflexo de suas experiências. Identificam-se, muitas vezes, mais com atos de sabotagem do que com arte.

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“consumir e gozar! e não estocar!” Setenta empresárias e socialites se reuniram numa mansão do Jardim Europa, na semana passada, para ouvir uma palestra do “filósofo do luxo” Silvio Passarelli, coordenador do MBA da FAAP sobre o tema. Entre flutes de Chandon rosé, cumbuquinhas de bobó de vieira e camarão e copinhos com salmão, relish de beterraba e ovas, elas assistiram à palestra “O Seu Tempo É o Seu Luxo”, em que o economista, a convite da revista Wish Report, fala sobre o tempo, o marxismo. o hedonismo – e o prazer inigualável do consumo sem grilos ou culpas de qualquer espécie.

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adianta acumular os bens se não temos tempo de usufruí-los”, disse o professor. “É isso mesmo! É isso mesmo!”, gritava, batendo palmas, a empresária Yara Baumgart, seguida pelas demais mulheres presentes. “Será a grande batalha do século 21: consumir e gozar, consumir e gozar! E não estocar”, completava Passarelli. “Sabe a Imelda Marcos [ex-primeiradama das Filipinas] e os 500 calçados? Será que elas os conhecia a todos? Será que estabeleceu com cada um deles uma história pessoal?”

A predominância do pensamento marxista impregnou o século 20, disse o professor. “Depois da superação do materialismo histórico, todos viveriam felizes e iguais. E eu me pergunto: como, se um tem cabelos loiros, o outro é moreno; um tem Q.I. de inteligência bruta maior, outro tem inteligência emocional?”

A anfitriã, Carin Mofarrej, da rede de hotéis, pede o microfone: “Eu considero um luxo fazer as coisas que você tem vontade. Fui fazer um curso na FGV, já com seis filhos, eles diziam: ‘Mãe, você é louca?’. Mas respondi, remocei. Nem sempre o luxo significa... óbvio, se agente puder ter o melhor relógio, a melhor bolsa, a gente gosta. Mas usar uma sandália havaiana, em casa, é um luxo que só a idade te dá.”

Já o atual liberalismo, diz, inaugurou a era do padrão individual de escolhas. Mas é preciso tempo. “De nada

O microfone passa para a empresária Dayse Gasparian, que recomenda que as pessoas expressem

A psicóloga Carin Mofarrej recebeu convidadas para a palestra sobre consumo ministrada pelo professor Silvio Passarelli.

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O professor Silvio Passarelli, economista, administrador de empresas, especialista em Planejamento e mestrando em Criatividade na Universidade de Santiago de Compostela, acumula os cargos de diretor do Programa FAAP - MBA em Gestão de Luxo e de diretor da Faculdade de Artes Plásticas, ambos na Fundação Armando Alvares Penteado (FAAP).

seus sentimentos. “É preciso chegar em casa e dizer ao marido: ‘Eu te amo!’.” Rosângela Lyra, da Dior, conta que vai sempre à praça da Sé, de madrugada, cuidar “dos meninos que cheiram crack”. E completa: “As pessoas me perguntam: ‘Como você consegue fazer tanta coisa?’ É simples. Tomei uma medida radical: não ver televisão”.

Passarelli insiste na idéia de que as pessoas têm que “melhorar o seu estoque” de tempo. “Vamos perder a vergonha quando alguém perguntar: ‘O que você vai fazer amanhã?’. Nada! Eu comprei um carro novo e vou passar o dia dedicado a esse brinquedo que eu me proporcionei. É preciso tempo para que o projeto emocional que o levou a adquirir aquele bem possa ser explicitado”, prosseguiu o professor.

Para ele, é preciso “gradativamente trocar compromissos inúteis pelos úteis na busca de uma nova ética do consumo, que não seja marcada pela condenação de um produto supérfluo. Ora, quem tem condição de 204

dizer o que é supérfluo? É supérfluo para ele, mas pode ser a diferença entre felicidade e tristeza para outro”.

Fim da palestra. Carin serve sucos de uva com carambola e de maracujá com figo. A conversa continua em torno da mesa de doces – salada de frutas vermelhas, tortas, copinhos de merengue de fruta-do-conde com marshmallow brulée. Algumas das convidadas elogiam a serpente de ouro branco e safiras que Carin carrega no pulso. “Agora sem culpas”, diz ela. O evento chega ao fim.

(Matéria e fotos publicadas em 14 de abril de 2004, na coluna de Mônica Bergamo, na Folha de São Paulo). 205

Em Telhado, de 2004, Cidade invade secretamente o telhado do prédio central da FAAP. Amarra um cifrão de ferro na frente da boca do canhão de luz que é aceso durante as noites de festa para convidados VIP da Diretoria Mantenedora da Fundação. Na festa da abertura da exposição Rockers, no Salão Cultural da FAAP, o céu é tingido pelo signomor do capitalismo que rege a FAAP: o cifrão. Telhado escancara os valores da presidência da Fundação. Faz uma referência irônica ao pedido de socorro clássico das histórias em quadrinhos: os moradores de Gotham City acionam um canhão de luz com o símbolo de um morcego, sempre que estão em perigo e precisam da ajuda de Batman, o justiceiro mascarado. Na ação Encouraçado, Cidade joga-se da escadaria do saguão principal da FAAP. Veste capacete e roupa de motoqueiro negra, que o transforma num mascarado ninja de histórias em quadrinhos, ou num Power Ranger urbano com sua armadura contemporânea. Conquista provisoriamente o espaço nobre da faculdade, forrado de granito e dourado, emoldurado por vitrais coloridos e interditado para os alunos.

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Em meados do ano, Cidade encarna O pior eletricista do mundo. Sabota as instalações elétricas das salas de aula e provoca blecautes fugazes. Inutiliza momentaneamente as câmeras de vigilância colocadas para controlar alunos e professores e deixa buracos e fiações como rastros de suas intervenções vandálicas.

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Com a ação (missão) Projeto muro, de 2004, Cidade finaliza sua série de trabalhos que sabotam as diretrizes insensatas estabelecidas pela FAAP para fiscalizar os estudantes. Passa meses levando material de construção escondido em sua mochila para a aula. Constrói clandestinamente um muro de tijolo, atrás da porta trancada de uma sala. Empareda-se dentro da classe durante o fim de semana e foge na madrugada de domingo, por uma janela aberta para o corredor. Volta, na segunda-feira de manhã, no anonimato, para ver os resultados de sua ação: professores e alunos atônitos com o aparecimento de um muro, atrás da porta, que os impede de entrar na sala. Projeto muro ataca de forma irônica a pretensa vigilância da Fundação, parodiando seu espaço protegido e cheio de regras autoritárias e infundadas.

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Os atentados acadêmicos de Marcelo desencadeiam a formação da Anarcademia. O grupo – composto por estudantes de arte de diversas faculdades – reivindicava uma escola sem coerção ou autoridade, influenciada pela atitude faça-vocêmesmo dos amigos punks dos pais de Marcelo. Os “anarcadêmicos” reuniam-se nas noites de sexta-feira. Entre cálices de vinho e tragos de cigarro, entorpeciam-se, falavam de banalidades, assistiam a filmes, ouviam música, faziam tatuagens, analisavam, liam ou discutiam textos relacionados a arte, arquitetura, história, filosofia, política. Em 2005, Cidade chega anarquicamente ao último ano da faculdade. Quase não frequenta as aulas. Quando o faz, é de corpo presente e espírito ausente. Estrutura seu trabalho de final de curso com base nas discussões com os Anarcadêmicos. Chama-o de “museu do vazio”.

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A Anarcademia de Cidade foi criada em homenagem ao projeto coletivo Anarchitecture [Anarquitetura], formado em 1973, por Gordon Matta-Clark, Laurie Anderson, Tina Girouard, Suzanne Harris, Jene Highstein, Bernard Kirschenbaum, Richard Landry e Richard Nonas. A Anarquitetura de MattaClark pretendia expressar em seu nome e suas propostas a tensão dialética entre o enigma apolíneo (a arquitetura) e a libertação dionisíaca (a anarquia). O grupo reunia-se, de forma variada e informal, para refletir sobre vazios metafóricos e discutir o caráter ambíguo, cinético e ilegível do espaço.

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o museu do vazio

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Em outubro de 2005, Cidade é convidado para participar da exposição Vorazes, Grotescos e Malvados, no Paço das Artes. Decide sublocar o espaço para seu grupo Anarcademia. Com base nas discussões sobre o “museu do vazio”, apresenta o projeto cole), uma exposição tivo ( dentro de uma exposição. ( ) pretendia ressaltar a ideia da arte enquanto celebração ou festa, que é, ao mesmo tempo, coletiva e plena, e subjetiva, fugaz e indisciplinável.

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Durante ( ), os encontros da Anarcademia foram transferidos para o museu/galeria. As reflexões, referências e experimentos plásticos do grupo foram materializados na forma de projetos, individuais ou coletivos, sobrepostos uns aos outros, contaminando-se, anulando-se ou completandose. O espaço expositivo foi transformado num espaço participativo; num híbrido entre ateliê, galeria, sala de estar, bar, cinema.

Inadimplente por diversos meses, Cidade acumula uma dívida de R$ 22.685,00 para com a FAAP. Num ato de vingança patética, vai até um banco e troca todo o dinheiro por moedas variadas, com as quais enche uma maleta de alumínio. Leva sua valise cheia de moedas até a tesouraria da Faculdade de Artes Plásticas e salda seu débito. Manifesta, assim, a dificuldade de jovens estudantes de classe média/baixa de conseguirem juntar, por meio de subempregos, o dinheiro das mensalidades.

Entretanto, para poder graduar-se e apresentar seu “museu do vazio” a uma banca examinadora, Cidade precisa pagar as treze mensalidades de R$ 1.745,00 que ficara devendo. Para saldar sua dívida, começa a trabalhar de dia, numa marcenaria, como assistente, e de noite, num bar, como garçom. Sem tempo para a estudar, segue o último ano do curso cada vez mais vagamente. Curiosamente, quanto menos energia despende com arte, mais oportunidades e convites para exposições aparecem. Em julho, é convidado a participar da 27a Bienal de São Paulo. Em outubro do mesmo ano, de uma coletiva no Paço das Artes. Os convites o ajudam a conseguir credibilidade junto a galeristas e colecionadores. Consegue um empréstimo para pagar sua dívida com a FAAP e poder graduar-se. Promove mais uma revolução na Faculdade de Artes Plásticas, ao decidir convidar para sua banca de graduação o espírito de Helio Oiticica invocado por um médium. Argumenta que qualquer um – até mesmo um grande artista morto, incorporado por um médium charlatão ou por um ator convincente – estaria habilitado para participar de sua banca. Acredita que a avaliação de uma obra de arte contemporânea é feita sempre por meio de critérios subjetivos e

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Na noite de abertura da exposição, Cidade incita o happening Mato sem cachorro não tem dono. Constrói dois canteiros de madeira, forrados com plástico e cheios de areia, e instala-os nos cantos da sala principal do museu. Num dado momento, como um gato, Cidade urina numa das caixas de areia, marcando seu território artístico, como um cão. Logo outros o imitam e os canteiros de areia se transformam num urinol masculino aberto, numa competição lasciva e instintiva pela conquista de um território. O happening é interrompido pelos seguranças da instituição sob a alegação de “atentado ao pudor”. No dia seguinte, tanto a curadora da exposição quanto o artista recebem um e-mail da administração do Paço das Artes exigindo satisfações.

questionáveis. Afirma que uma banca numa faculdade de Artes Plásticas deve ser proposta como um evento artístico e não como um exame de verificação da competência ou do progresso do aluno. Organiza seu trabalho final como uma farsa precisamente dirigida, seguida de uma grande festa com música ao vivo, pão e vinho.

“Prezada curadora, após a sua saída da vernissage do Paço das Artes ontem constatamos que um ou dois artistas urinaram no espaço do trabalho do artista Marcelo Cidade. Solicitamos que você compareça ao Paço das Artes para confirmar se de fato essas ações fazem parte da sua curadoria. O artista Marcelo Cidade nos informou que você sempre esteve ao par dessas ações. Sendo assim, causou-nos surpresa o fato de você não ter informado à administração do Paço das Artes para que tomássemos providências necessárias a essas ações quais seguem: 1- Informações adequadas aos seguranças e explicações conceituais aos demais da equipe do Paço das Artes; 2- Procedimentos em relação à limpeza do espaço após essas ações, uma vez que não faz parte de nosso contrato com a equipe de manutenção e limpeza a retirada de excrementos fecais, urina, saliva, sangue e outros fluídos corporais. Salientamos ainda, que a Instituição também gostaria de ser informada da intenção de quaisquer outras ações e transgressões, ainda que de forma poética, a fim de garantir respeito ao nosso público, além da integridade física de artistas, funcionários e do público em geral. Informamos, outrossim, que o Paço das Artes e o Governo do Estado de São Paulo se eximem de qualquer responsabilidade sobre o que possa ocorrer, tal como os casos de violência, agressões e outros, em caso da omissão da curadoria, a responsabilidade será transferida à mesma. Atenciosamente, Administração do Paço das Artes.” (E-mail enviado dia 7 de outubro de 2005, para a curadora da exposição Vorazes, Grotescos e Malvados, no Paço das Artes, com cópia para Marcelo Cidade).

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A banca de graduação de Cidade é invalidada pela direção da FAAP. Ele não consegue seu diploma universitário. Fica puto e manda tudo à merda. 226

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Passagem Passagem

Passagem Passagem

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Em 2006, Cidade começa a desenvolver seu trabalho para a 27a Bienal de São Paulo. Entusiasma-se com a possibilidade de realizar um trabalho com um orçamento grande e mostrá-lo para um público numeroso. Entretanto, depois de vários problemas com a curadoria, acaba optando por um trabalho que é uma pequena amostra de seu projeto original. Entra numa crise existencial ao perceber que, com a adaptação de sua proposta à vontade dos curadores, permitiu que sua obra ficasse à serviço dos sistemas de poder que outrora condenara.

O projeto de Marcelo Cidade para a 27a Bienal de São Paulo consistia da instalação de dois bloqueadores de celular com eficácia para quatro quilômetros cada um. Isso impediria toda e qualquer transmissão e recepção de sinal no espaço expositivo e em grande parte do Parque do Ibirapuera. Cidade fazia referência à alegada impossibilidade de se impedir a comunicação via celular entre líderes do tráfico nas prisões e seus comparsas fora delas.

Insatisfeito com seu trabalho artístico e totalmente cético com relação ao sentido da arte, mergulha de cabeça nas baladas paulistas. Passa o começo de 2007 imerso num desmedido consumo de álcool e drogas.

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Num ônibus, na volta de uma balada no centro da cidade, Cidade conhece PT, uma jovem anarcopunk que o seduz para as passeatas e manifestações anarquistas.

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Em maio, Cidade, guiado por PT e seus amigos anarcopunks, participa da ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo. Lá, retoma tanto seu ativismo político quanto seu trabalho artístico. Define tudo como um “monumento em colapso.” Alega que a experiência de arte é semelhante à produzida e vivenciada durante a ocupação da reitoria da USP. Descreve a ocupação como a “autorrepresentação completa da cidade e de sua historicidade.” Daí deduz que a obra de arte é a própria cidade, e que ele, devido a seu sobrenome, é o artista escolhido, aquele cuja missão é difundir o verdadeiro sentido da arte.

A ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo teve início no dia 3 de maio de 2007, quando um grupo de estudantes decidiu aguardar, no local, a reitora Suely Vilela, a fim de entregar-lhe uma série de reivindicações. A reitoria ficou ocupada por 51 dias, com a adesão de professores e funcionários. No decorrer do mês de maio, ocorreram protestos e ocupações em diversas universidades públicas, inspirados pela manifestação dos estudantes da Universidade de São Paulo.

Após a ocupação, Cidade decide por em prática sua teoria da arte como “monumento em colapso.” Resolve eliminar a lacuna entre sua individualidade e seus ensinamentos. Abandona PT e os anarcopunks. Converte-se em morador de rua e parte para uma vida errante na selva urbana. Desde então, não se tem mais notícia de seu paradeiro.

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Toda cidade é uma obra de arte. É a expressão de uma soma de componentes que fazem dela o que é. Embora não seja a cidade ideal renascentista, concebida como uma obra de arte, a cidade real encerra-a em seu âmago. A cidade ideal é a forma, o modelo, enquanto a cidade real é a própria obra de arte, refletindo as dificuldades do fazer artístico e as circunstâncias contraditórias do mundo em que se faz.1 Tal como a obra de arte, a cidade provoca uma sobrecarga sensorial e expande o sistema nervoso humano até seus extremos. Neste processo, ensina uma variedade de novos reflexos e abre caminho para uma série complementar de valores estéticos.2 Tal como a obra de arte, a cidade é um sistema complexo. Além de ser surpreendente, é uma mistura de ordem e anarquia, uma organização criada inadvertidamente por componentes diversos e descoordenados.3 Tal como a obra de arte, a cidade constitui-se por oposição à natureza, ao campo. Para Leon Battista Alberti, o que qualifica e caracteriza uma cidade é o monumentum, um edifício histórico porquanto antigo ou destinado a 236

durar, que exprime valores históricos, comuns a todos os membros da agremiação urbana. O monumento manifesta, na estabilidade das suas formas, o equilíbrio da ordem social e de suas principais instituições.4 Não é a representação global do espaço, mas sim algo que está no espaço e que nele atua. Um edifício-personagem, que manifesta seu significado históricoideológico, por sua presença e ação, isto é, por sua espacialidade. Para o homem renascentista, o monumento é, portanto, um corpo material5 com uma realidade própria e incontestável de objeto, que carrega valores históricos comuns à toda comunidade.

de superar a passagem do tempo, ou mesmo recusá-la. Com sua presença física, pretende criar um lapso no tempo que converte o passado em presente, e estabelece uma conexão transparente com o evento ou a pessoa homenageados. Sua função primeira é manter a memória viva; aprisionar o manso processo de esquecimento da história. Para o monumento intencional, portanto, o envelhecimento é sempre um obstáculo. Ele precisa conservar uma aparência nova para manter sua função memorial. Qualquer sinal de decadência sugeriria uma perda de interesse no tema que sua presença representa.

No começo do século XX, o arquiteto Alois Riegl, então presidente da Comissão de Monumentos Históricos da Áustria, escreve Der moderne Denkmalkultus [O culto moderno dos monumentos], expondo suas reflexões sobre o monumento moderno. Riegl estabelece dois grupos distintos de monumentos: os intencionais e os não intencionais.

O segundo grupo de monumentos, os não intencionais, têm valor devido a suas características históricas e artísticas, e não apenas por ser memoriais.6 Os monumentos históricos são objetos do passado, cultuados pelo homem moderno exclusivamente pelos sinais da passagem de um considerável período de tempo. De maneira contrária ao primeiro grupo, aqui, a antiguidade é um dos signos que faz dos objetos, monumentos. Este valor de antiguidade está presente nos traços de decomposição

O monumento intencional é aquele erigido em comemoração a alguma pessoa ou evento e tem o objetivo

impostos à obra pelas forças da natureza: sinais de uma ruína que, segundo o olhar modernista de Riegl, são manifestações do ciclo natural ao qual toda obra humana é inelutavelmente submetida. Assim, para o homem moderno, o monumento, além de ser um corpo material cuja presença no espaço manifesta valores da comunidade, é também uma ruína cuja decomposição é aquilo que lhe confere valor. O monumento em decomposição é o tema dos escritos do artista plástico Robert Smithson. Em seu ensaio Entropy and the new monuments [Entropia e os novos monumentos], de 1966, Smithson questiona a validade do conceito de monumento, em relação aos novos centros urbanos em formação.7 Alega que a cidade de Nova Iorque, a partir do fim da Segunda Guerra, havia sido infestada por uma mesmice de soluções arquitetônicas repetitivas, de uma “modernidade maneirista”, sem “valor de qualidade” e livre das exigências de “pureza e idealismo.”8 Estas soluções possibilitavam uma percepção clara da realidade material, impulsionando o 237

desenvolvimento de uma tendência entrópica na arte e contribuindo para a concepção de um novo tipo de monumento. Este novo monumento, em vez de sediar memórias do passado, serviria para promover o esquecimento do futuro. Não mais representaria os longos intervalos entre os séculos, e sim uma sistemática redução do tempo, situando tanto o passado quanto o futuro num presente objetivo, num tempo sem espaço, estacionário e sem movimento.9 Além de Smithson, vários artistas passam a questionar – e desprezar – o valor de uma obra em sua plenitude, em favor das etapas processuais de desconstrução ou desintegração do objeto de arte. Transformam-no num momento significativo, numa situação a ser experimentada, e identificam a obsolescência dos monumentos tradicionais. Para esses artistas, o monumento é uma ação, uma experiência, uma prática, que acontece precisamente no momento de sua ruína. Faz-se presente e se autodestrói simultaneamente. Tanto pode ser um depósito de madeira coberto por um monte de sujeira que progressivamente racha sua estrutura 238

de sustentação central, quanto uma estrutura feita de um material frágil, estendida sobre uma grota profunda, um conjunto de linhas engolidas e vomitadas ou uma pintura que só se mostra plenamente se alguém a vestir e dançar.10 É uma comemoração crítica do valor de antiguidade, pois evidencia seu caráter transitório ao pressupor sua própria destruição, sua perda histórica. É o chamado monumento entrópico, isto é, um monumento cuja progressiva desintegração é irreversível.11 Para os artistas dos anos 1960, o monumento não era, portanto, nem representação de espaço e nem um corpo material no espaço – por mais histórico, antigo ou decomposto que fosse. Tinha tornado-se tempo, e o tempo, por sua vez, tinha se tornado um lugar privado de movimento, uma infinidade de superfícies ou estruturas estáticas, um presente objetivo perdido em meio a um torpor monumental. Um tempo muito diferente daquele entendido como decadência ou evolução biológica. É o tempo do acontecimento, que se expande por inércia, irreversivel e desordenadamente.

A valorização da dimensão temporal desse novo tipo de monumento era, no entanto, ilusória. Sua suposta transitoriedade era neutralizada. Por um lado, por registros, maquetes, projetos e demais documentos que com frequência o acompanhavam e, por outro lado, pela marca do autor que o mantinha coeso e permanente enquanto parte da oeuvre do artista. Os documentos restabeleciam novo corpo material, que substituía aquele que fora desintegrado. Corpo que, por resultar de uma memória reificada, acarretava riscos de desentendimento12 e de confusão entre aquilo que devia ser lembrado e aquilo que devia ser esquecido. A autoria reconhecida conferia legitimidade aos documentos e vestígios, estabelecendo uma contradição entre a vontade de desaparecimento do monumento entrópico e a consolidação de sua unidade e integridade, promovida pelos registros assinados. Este tipo de monumento, que se caracterizava precisamente pelo processo de degradação, acabou sendo coisificado. Perdeu, assim, sua função semântica e confrontou-se com um problema sem solução: se

permanecia, igualava-se aos antigos monumentos; se desaparecia, transformava-se em documento-obra com identidade própria, que favorecia o esquecimento dos significados das práticas sociais que o geraram. Na sociedade atual – desmaterializada, heterogênea, transitória, diversificada e fragmentada –, o fluxo de informação predomina sobre o fluxo de pessoas e coisas. O espaço público se contrai. A ideia de uma nação coesa é substituída por campos de conflitos e diferenças ideológicas. O monumento, “dessemantizado”, perde grande parte de sua razão de ser.13 Torna-se invisível.14 No caso da cidade de São Paulo, a situação é ainda mais grave. Sua anarquitetura15 eclética, ora sóbria, ora eufórica, ora nula, alastra-se como um câncer, dominando e agregando subúrbios e favelas cada vez mais distantes. Seu tecido urbano constitui-se de diversas subcidades com interesses conflitantes, aglomeradas sob um único nome. Além de seu crescimento desenfreado e descomunal, a cidade é suja, cinzenta, heterogênea, caótica e apavorante. 239

É ela própria monumental, favorecendo a invisibilidade de monumentos e intervenções de uma pretensa arte pública, deglutindo-os e regurgitando-os como simples matéria urbana. Hoje em dia, numa megalópole como São Paulo, para que um monumento ainda seja a mais completa autorrepresentação da cidade e da sua historicidade, é necessário repensar algumas premissas. Em primeiro lugar, é importante retomar a definição de monumento, ressaltando seu caráter coletivo e sua habilitação para funções de memória social. Por suas raízes etimológicas (do latim moneo, que significa chamar a atenção, tanto como foco de interesse quanto como reprimenda) o monumento se apresenta como um lugar de memória exemplar. Funciona caso sua recepção seja integrada. Basicamente, pode-se defini-lo como um vetor voluntário, intencional, de criação e circulação da memória da coletividade. Conta com um emissor, individual ou coletivo, e um destinatário, que é sempre social.16 Entretanto, deve se levar em conta que um 240

emissor individual pode ser prejudicial para a efetivação do monumento enquanto lugar da memória da coletividade. Pode diluir o caráter coletivo do monumento, ao direcionar o foco de interesse para um único sujeito – o autor –, causando confusão entre os valores históricos que o monumento deveria representar e os valores relacionados à vida, obra ou personalidade desse autor. Em segundo lugar, é fundamental evitar a recriação de monumentos invisíveis, corrompidos ou mutilados, como as esculturas institucionais sem relevância social, os entulhos históricos transformados em relíquias sagradas ou os documentos fetichizados resultantes dos monumentos entrópicos. Isto posto, o monumento merece uma nova abordagem: ser encarado como um acontecimento vivo, que nasce da comunidade urbana, dela se alimenta e dela se torna vítima. Algo que não possa ser reificado sem perder o sentido, que exiba os valores da comunidade, que possua uma condensação de significados e uma pregnância semântica que as outras coisas não têm, ou têm em grau menor.17

Algo que se faça lembrar, mesmo contra a vontade daqueles no poder; que permita a reciclagem de conceitos como justiça, identidade, testemunho, memória e esquecimento; que tenha como ideia definidora da ética, o reconhecimento obrigatório do lugar do outro.18 Um monumento ético-político em substituição a um cognitivo-afetivo. Um monumento efervescente, constituído por matéria humana modificada e que modifica um determinado contexto. Um monumento-acontecimento que recupera a memória adormecida e ilumina caminhos possíveis de futuro; que é criado em conjunto e permanece dentro de cada indivíduo da comunidade como uma parte coletiva de seu ser. Um monumento tal qual a recente ocupação da reitoria da Universidade de São Paulo,19 que nos fez acreditar na possibilidade de uma universidade livre, promoveu a restauração do movimento estudantil efetivamente politizado e comprovou o sucesso de um comportamento emergente da própria comunidade, sem a intervenção de um líder autoritário. A universidade livre, com educação e pesquisa interdisciplinares e aces-

síveis a todos, é um projeto já ensaiado diversas vezes, inclusive por artistas, como Yves Klein e Joseph Beuys, preocupados com a ampliação dos limites da definição de obra de arte. Yves Klein idealizou, em 1959, com a colaboração do arquiteto Werner Ruhnau e de um grupo de amigos próximos, a Escola de Sensibilidade e Desmaterialização, que propunha a co-habitação de professores e alunos, e a interdisciplinaridade curricular. Pretendia “reativar as capacidades de responsabilidade pessoal, efetivar as qualidades espirituais e imateriais” e “transformar os seres humanos e o meio ambiente por meio da imaginação”.20 Joseph Beuys fundou, em 1974, com o escritor Heinrich Böll, a Universidade Internacional Livre para Criatividade e Pesquisa Interdisciplinar (FIU), que tinha o objetivo de ajudar a tornar real a capacidade inerente a cada pessoa de ser um ente criativo. Formulava o conceito de liberdade individual como uma habilidade de modelar formas sociais por meio da transformação de recursos. Para Beuys, a esfera de ação da ciência 241

econômica estendia-se para além do estudo de fenômenos relacionados a bens materiais. O Capital seria, também, a criatividade, e os centros de produção de cultura – como as universidades, a imprensa, as gravadoras musicais – seriam os fornecedores dos bens econômicos de uma sociedade.21 Tanto a escola de Klein quanto a universidade de Beuys já pregavam, nos anos 1960-1970, a miscigenação ideal entre o emissor-professor e o receptoraluno como o vetor de criação e circulação da memória social. Ambas sinalizavam a necessidade da interdisciplinaridade, da isonomia política e da democratização do ensino. A ocupação da reitoria da USP assemelha-se aos projetos de universidade livre de Klein e Beuys, mas acrescenta a eles uma característica nova: a emergência. No caso da ocupação, não houve uma liderança autoritária que organizou a mobilização dos estudantes. Um pequeno grupo se autoorganizou, capturou e trocou entre si informação sobre o comportamento da coletividade. A ocupação emergiu do próprio grupo em que se estabeleceu. Funcionou como memória 242

viva de eventos como os protestos de maio de 1968, em Paris, ou as manifestações contra a ditadura militar, no Brasil dos anos 1960. As greves estudantis em Paris de 1968 dispararam um processo contra o governo do General De Gaulle, que culminou com o desmantelamento da Assembleia Nacional e a instauração de novas eleições. No Brasil, a UNE (União Nacional dos Estudantes) se posicionou firmemente contra a ditadura e a favor de uma reforma universitária, acabando por tornarse um dos principais adversários do governo militar. Em ambos os casos, situações complexas foram detonadas por massas de elementos relativamente simples que se ordenaram sem uma “divisão executiva”. A informação – capturada e trocada entre os pequenos grupos – retornou à comunidade, fazendo com que as pequenas modificações de comportamento dos grupos menores tivessem a possibilidade de se amplificar em movimentos maiores. Também na ocupação da reitoria pode-se identificar este tipo de sistema: a ação de um pequeno grupo de

alunos repercute em todo o território nacional, num âmbito muito maior do que o circuito universitário. Instaura-se o verdadeiro monumento contemporâneo; a autorrepresentação completa da cidade e da sua historicidade; o amálgama ideal entre emissor e receptor; o centro de criação e circulação da memória emerso da própria coletividade em que se estabelece, e que é, simultaneamente, a matéria-prima, o autor e o produto de arte, sem possibilidade de reificação. Nós somos a ocupação, ocupamos e fomos ocupados. Somos a cidade e sua representação, o monumento em eterno colapso, a obra de arte contemporânea.

6

Riegl chamava de histórico “tudo aquilo que foi, e não é mais hoje em dia”. (ARGAN, op. cit., p. 37).

7

Smithson refere-se às mudanças ocorridas nas cidades norte-americanas após o fim da Segunda Guerra: a construção de vias expressas ligando o centro à periferia, grandes conjuntos habitacionais nos subúrbios e os arranha-céus modernistas da Park Avenue em Nova Iorque.

8

FLAM, ed. Robert Smithson, 1996, pp. 12 e 13.

9

Ibidem, p. 11.

10

Refiro-me às obras Partially buried woodshed [1970], de Robert Smithson, Rope bridge [1968], de Gordon MattaClark, Baba antropofágica [1973], de Lygia Clark, e Parangolé [1964], de Hélio Oiticica. 11

LEE, Object to be destroyed, 2000, p. 39.

12

Ibidem.

13

BEZERRA DE MENEZES, A crise da memória e as ambiguidades da amnésia social (Simpósio Internacional FIAT 30+ / São Paulo). 14 Para o escritor austríaco Robert Musil, não há nada mais invisível do que um monumento. Os monumentos são “eminentemente inconspícuos”, e só deixariam de ser invisíveis se seus criadores adotassem as medidas usadas pela publicidade moderna (MUSIL, “Monuments” in: Posthumous papers of a living author, 1995, pp. 61 - 64). 15

Termo apropriado de Gordon Matta-Clark para referir-se a espaços sem princípios organizadores ou fundações estruturais. (LEE, op. cit., 2000, p. 105).

1

ARGAN, História da arte como história da cidade, 1992, pp. 73 - 76.

2

JOHNSON, Emergência, 2003, p. 28.

3

16

BEZERRA DE MENEZES, op. cit.

17

ARGAN, op. cit., pp. 124.

18

BEZERRA DE MENEZES, op. cit.

A criação de um sistema complexo a partir de padrões mais simples é chamada de emergência, isto é, quando uma ordem global, de nível mais alto, é construída inadvertidamente a partir de ações locais descoordenadas ou de uma rede de auto-organizações dessemelhantes. (JOHNSON, op. cit., 2003, p. 17 e 29).

Em 3 de maio de 2007, a reitoria da Universidade de São Paulo foi ocupada por estudantes. Durante 51 dias, alunos, professores e funcionários organizaram debates, ciclos de palestras e projeções de filmes.

4

21

Alberti procura definir e explicar a forma do espaço urbano, diferenciando-a do espaço natural, no tratado De re aedificatoria, escrito em 1450. 5

ARGAN, op. cit., pp. 114 e 123.

19

20

WEITEMEIER, Yves Klein 1928-1962, 1995, p. 48.

Joseph Beuys fala sobre a relação entre o Capital e a criatividade em entrevista, gravada no vídeo Jeder Mensch ist ein Künstler: Joseph Beuys, dirigido por W. Krüger, à disposição no Instituto Goethe, São Paulo.

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Ficha Técnica pp. 102-109 Desenhos de Marcelo Cidade, 1999. pp. 110-111 Fotografia de cena do filme The great rock’n’roll swindle (COLEGRAVE, Punk., 2004, p. 327). p. 114 Estudantes sendo transportados para o presídio de Tiradentes, após a queda do XXX Congresso da UNE, num sítio em Ibiúna, 1968 (FELIX. A Revista, 2002, p. 49). pp. 116-117 Fanzines editados pela casa noturna Madame Satã entre 1983 e 1985 (FANZINE MADAME SATÃ, n. 19, 1985, p. 10); fotografia do festival O começo do fim do mundo, por Priscila Farias. p. 118 Fotografia da banda punk Ratos de Porão, por Rui Mendes (FANZINE MADAME SATÃ no 22, 1986, p. 62). p. 120 Fotografia do clube Madame Satã (FANZINE MADAME SATÃ, n. 21, 1986, p. 48-49). p. 121 Anúncio do Fanzine Madame Satã (FANZINE MADAME SATÃ, n. 19, 1985, p. 15). pp. 122-123 Página de rosto da revista Fanzine Madame Satã (FANZINE MADAME SATÃ, n. 21, 1986); fotografias do festival O começo do fim do mundo, por Priscila Farias. pp. 124-133 Fanzines punks do acervo particular de Priscila Farias.

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pp. 134-135 Fotografia de prédio abandonado e lacrado na rua Asdrúbal do Nascimento, por Raphael Maureau, 2006 (FÓRUM CENTRO VIVO, Violações dos direitos humanos no Centro de São Paulo, 2006, p. 18). pp. 138-139 Desenhos de Marcelo Cidade, 1999. pp. 140-141 Desenhos de Marcelo Cidade, 1999. pp. 142-143 Desenho e grafite de Marcelo Cidade, 1999. pp. 144-145 Desenho e grafite de Marcelo Cidade, 1999. p. 146 Grafite de Marcelo Cidade, 1999. p. 147 Nota de culpa de Marcelo Cidade, 2004. pp. 148-153 Desenhos de Marcelo Cidade, 1999; Massacre no Carandiru (EXAME NACIONAL DE ENSINO MÉDIO. Competência 5 - texto referencial, acesso: abril de 2008). pp. 154-155 Anarchitecture, Untitled, 1974 (MOURE, Gordon Matta-Clark, 2006, p. 388). p. 158 Fotografia do acervo pessoal de Marcelo Cidade. pp. 160-161 Grafites de Marcelo Cidade, 1998-2006. pp. 164-165 Fotografia de protesto na Av. Paulista, por André Ryoki, 2001 (RYOKI, Estamos vencendo!, 2004, pp. 82-83).

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pp. 166-167 Fotografias de André Ryoki, 2000-2002 (RYOKI, Estamos vencendo!, 2004). pp.168-169 Camisetas e nariz de palhaço distribuídos pelo MTAW, 2000. p. 170 Fotografia de protesto na Praça da República, por André Ryoki, 2001 (RYOKI, Estamos vencendo!, 2004, pp. 70-71). p. 171 Fotografia de protesto contra o G8 em Gênova, por André Ryoki, 2001 (RYOKI, Estamos vencendo!, 2004, p. 113). pp. 172-174 Maquetes de Wall Drawing #808, 1996, de Sol Lewitt, desenhado pelo Watanabe Studio (SOL LEWITT, Of sun and stars / sobre o sol e as estrelas, 1996, p. 1). p. 175 Maquetes de Wall Drawing #808, 1996, de Sol Lewiit, desenhado pelo Watanabe Studio (SOL LEWITT, Of sun and stars / sobre o sol e as estrelas, 1996), texto de Juliana Ferraz Leite. pp. 176-177 Fotografia da fachada da FAAP (FUNDAÇÃO ARMANDO ALVARES PENTEADO, Trigésima Anual da Fundação Armando Alvares Penteado-FAAP, 1998, pp. 2-3). pp. 180-181 Fotografia da fachada da FAAP, por Matangra, 2009. p. 184 Fellipe Gonzalez, Desencubando, 2000.

246

p. 185 Mauro Giarda, #10, 2001. pp. 186-187 Felipe Salem, Descendo uma escada, 2008. pp. 188-189 Performance de Mauro Giarda e Maurício Ianês durante a exposição Marrom, Galeria Vermelho, 2002. pp. 190-191 Jantar de Fellipe Gonzalez durante a exposição Marrom, Galeria Vermelho, 2002. pp. 192-193 Exposição Marrom, Galeria Vermelho, 2002. pp. 194-197 Marcelo Cidade, Guerra ética, 2002. p. 198 Fellipe Gonzalez (com a participação de André Komatsu e Marcelo Cidade), Encarn-ação, 2003. p. 199 Fellipe Gonzalez (com a participação de Adriano Costa e Raquel Wendi), Desenho + – livre, 2002. p. 200 Santiago Sierra, Línea de 250 cm tatuada sobre 6 personas remuneradas, 1999, Espacio Aglutinador, La Habana, Cuba (SIERRA, Santiago Sierra, acesso: janeiro de 2009). p. 201 Alejandro Flores, Carmen Moncada, Javier Calvo, Dora Longo Bahia, Michael Hammond, Diana Barquero, Sierra benetton, 2007. pp. 202-205 Coluna de Mônica Bergamo, publicada pela Folha de São Paulo, em 14 de abril de 2008 (BERGAMO, Folha de São Paulo, 2008, p. E 2).

p. 206 Fernando Pirata, Telhado, 2006. p. 207 André Komatsu, Encouraçado, 2001. pp. 208-209 Gabriel Zimbardi, O pior eletricista do mundo, 2008. pp. 210-211 Marcelo Cidade, Projeto Muro, 2001. p. 212 Anarchitecture, convite para “Anarchitecture,” 112 Greene Street, Nova York, maio de 1974 (LEE, Object to be destroyed, 2000, p. 106). pp. 214-219 “O museu do vazio” transcrito por Felipe Salem, 2009. p. 220 Em 1997, Marcius Galan pagou as 5 mensalidades que devia à FAAP com moedas. A FAAP contou o dinheiro e percebeu que ainda faltava um pouco. Marcius reclamou o desconto referente ao valor das mensalidades da Atlética e a FAAP teve que devolver-lhe troco. A FAAP lhe pagou em moedas de um centavo. p. 221 Fotografia de eventos durante a exposição Vorazes, grotescos e malvados, Paço das Artes, 2005. pp. 222-223 André Komatsu, Mato sem cachorro não tem dono, 2005.

pp. 224-225 Fotografia do ataque ao World Trade Center (CRAVEN. About.com:Architecture, acesso: janeiro de 2009). p. 228 Pavilhão da Bienal de São Paulo, 2008. p. 234 Fotografia de protesto em frente ao Teatro Municipal, por André Ryoki, 2000 (RYOKI, Estamos vencendo!, 2004, p. 97). p. 235 Manifesto transcrito por Gabriel Zimbardi sobre folheto de divulgação de um ciclo de debates durante a ocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, 2007 (acervo particular de Luiz Renato Martins). pp. 236-243 Fotografias da ocupação da Reitoria da Universidade de São Paulo, 2007 (acervo particular de Luiz Renato Martins). pp. 244-249 Desenhos de Marcelo Cidade, 1999.

247

Agradecimentos Agradeço a meus queridos pais por terem me incentivado a insistir na carreira das artes e a persistir na universidade; a Carmela Gross por transformar a experiência do doutorado num prazer; a Regina Araki e Eduardo Brandão por gastarem seu tempo ouvindo meus problemas; a Paula Tinoco por abraçar o projeto; a Marcelo Cidade por emprestar seu nome e parte de sua obra; a Marcius Galan, Mauro Giarda, Fellipe Gonzalez, Felipe Salem, André Komatsu, Fernando Pirata, Gabriel Zimbardi por disponibilizarem seus trabalhos; a Leandro da Costa por dividir sua expertise gráfica; a Celso Favaretto e Arlindo Machado

por participarem de minha banca de qualificação; a Priscila Farias por ceder seus fanzines e fotografias punks; a Luiz Renato Martins por repartir seu acervo de imagens e informações sobre a ocupação da reitoria da USP; a Juliana Ferraz Leite por pesquisar referências sobre ativistas e grupos de resistência urbana; a Maria de Fátima Cordeiro por compartilhar suas histórias tristes sobre a cadeia; a Matangra por fotografar “ilegalmente” a FAAP; a Carolina Caliento por sua assistência; a Carolina Aboarrage por sua paciência; à Anarcademia, ao LAMA, ao grupo de sexta e aos meus alunos pela interlocução estimulante.

Dora Longo Bahia Abril de 2010

248

249

Epílogo

In in Mu fân fân ndo cia cia 253

Trinta anos separam Marcelo do Campo de Marcelo Cidade. O intervalo entre eles é determinado, de um lado, pelas revoluções políticas e culturais de 1968 e, do outro, pelo atentado terrorista às torres gêmeas em 2001. Do Campo forma-se artista na transição entre a modernidade e a pós-modernidade. A imaterialidade, a desconstrução e a efemeridade ainda parecem ser armas eficientes contra a opressão capitalista. Cidade desmancha-se artista na conjuntura entorpecida do capitalismo flexível. A ficção ocupa o lugar

da “realidade” destruída, e o falso é apresentado como verdade. Marcelo do Campo inicia seu percurso artístico em 1969, estimulado pela recente irrupção de práticas e críticas contraculturais, pelas manifestações estudantis, trabalhistas ou de minorias excluídas. Esses movimentos, somados às ondas de greve que sobrevêm pelo mundo ocidental, anunciam a crise do “capitalismo fordista”1 e a falência do “alto modernismo”2. Em 19753, no auge da recessão mundial, do Campo

1

Chama-se de capitalismo fordista ou fordismo o regime de acumulação de capital da “sociedade democrática, racionalista, modernista e populista”, no qual impera a forma corporativa de organização de negócios, a divisão de trabalho e o aumento de produtividade. Ford, idealizador desse sistema, percebeu que “produção de massa significava consumo de massa, um novo sistema de reprodução da força de trabalho, uma nova política de controle e gerência do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia” (HARVEY, Condição pós-moderna, 1992, p. 121-122).

2

O movimento político-cultural de 1968 surgiu no apogeu do capitalismo fordista como resposta à tendência positivista e elitista do “alto modernismo” (hegemônico desde 1945) e à rigidez do sistema econômico em vigor: “havia problemas com a rigidez dos investimentos de capital fixo de larga escala e de longo prazo em sistemas de produção em massa que impediam muita flexibilidade de planejamento e presumiam crescimento estável em mercados de consumo invariante. Havia problemas de rigidez nos mercados, na alocação e nos contratos de trabalho” e o “único instrumento de resposta flexível estava na política monetária, na capacidade de imprimir papel em qualquer montante que parecesse necessário para manter a economia estável”. Isto gerou a onda inflacionária, que precipitou a recessão de 1973. As tentativas para conter a inflação ascendente produziram uma crise nos mercados imobiliários e sérias dificuldades nas instituições financeiras, agravadas pelo aumento do preço do petróleo devido à guerra árabeisraelense (HARVEY, op. cit., 135-136).

3

Entre 1973 e 1975, estabelece-se uma forte deflação no mundo capitalista. Instaura-se um período conturbado de reestruturação econômica e reajuste social e político. Sistemas de produção e de mercadização – caracterizados por processos de trabalho e mercados mais flexíveis –, de mobilidade geográfica e de mudanças no consumo determinam uma época de fluidez e de incertezas. A queda dos custos dos transportes, a comunicação via satélite, a internet, a aceleração do tempo de giro na produção e a redução do tempo de giro no consumo transformam a experiência humana do espaço e do tempo. As distâncias diminuem e as fronteiras nacionais se diluem. Forma-se um mercado mundial e disperso, controlado pelo capital fictício (HARVEY, op. cit., 137, 119, 140).

254

abandona sua carreira artística, sinalizando o fim de uma época de valores sólidos, ideologias e heroísmos. A partir de então, “o novo, o fugidio, o efêmero, o fugaz e o contingente”4 transformam-se em palavras de ordem. A realidade torna-se um produto do discurso, uma ficção simbólica que é percebida como uma entidade autônoma real.5 Marcelo Cidade entra em cena. Inicia sua formação artística em 2002, em meio ao entorpecimento mundial desvelado pelo atentado espetacular de 11 de setembro. As imagens das explosões no World Trade Center de Nova Iorque invadem ao vivo as telas de televisão do mundo globalizado e escancaram o lado ficcional da realidade “real”. Entretanto, ao invés de atirar o mundo de volta ao

4

HARVEY, Condição pós-moderna, 1992, p. 161.

5

ZIZEK, Bem-vindo ao deserto do real!, 2003, p. 34.

Real,6 a catástrofe do WTC é usada como o sedativo que permite à ideologia dominante – agora no lugar da vítima inocente – aparentemente “renormalizar-se”. O chamado ao enfrentamento da dura realidade7 que poderia sanar a incerteza e a dispersão mundiais, na verdade, apenas perpetua o estado de adormecimento. Em 2007, Cidade renuncia ao papel de artista, movido pela mesma inércia que, anos antes, o levara a adotá-lo.

6

O filósofo esloveno Slavoj Zizek chama de Real aquilo que só é suportável se transformado em ficção (ZIZEK, op.cit., 2003, p. 34). 7

Segundo Zizek, esse “chamado ao enfrentamento da dura realidade” pós-11 de setembro é ideologia em estado puro. Ele alerta para a semelhança entre o slogan de hoje “Americanos, acordem!” e o brado de Hitler para o povo alemão: “Deutschland, erwache [Alemanha, acorde]!”, que significava exatamente o contrário (ZIZEK, op.cit., 2003, p. 13).

255

Adol Adol Bra escê escê sil ncia ncia 257

No âmbito nacional, o intervalo de trinta anos entre a atuação dos dois Marcelos é demarcado por situações de oposição. Do Campo atua durante a vigência do AI-58, no auge da repressão política e cultural. Assim como seus contemporâneos, acredita numa revolução que solucione ou, pelo menos, diminua as diferenças sociais no país. Sua arte subversiva fala da vida, sinaliza controvérsias, questiona regras. Visa denunciar os problemas nacionais: a desigualdade social, o poder das forças armadas, o colonialismo perpetuado sob o disfarce do imperialismo norte-americano. Cidade nasce no fim da ditadura, em meio à euforia das eleições diretas e do pluripartidarismo. Forma-se em meio à desilusão nacional com o pretenso governo de esquerda do Presidente Lula. Não acredita na situação, na oposição, nem na revolução. Sua arte banal e despretensio-

sa ilustra a condição desmanchada da conjuntura atual. Do Campo vive em plena ditadura militar mas acredita na possibilidade de mudança, seja na política, seja na arte. Otimista, confia na efetividade do fazer artístico como resistência ao poder político, julga poder excluir seu trabalho do mercado da arte e crê na existência da obra de arte desvinculada da mercadoria. Cidade, por sua vez, vivencia a frustração pós-Collor.9 Acomodado, não acredita mais em grandes mudanças ou melhorias, sabe que não existe fora do mercado e debocha tanto da arte quanto da vida. Do Campo é ingênuo e heróico, Cidade é malicioso e trocista. Do Campo age para encontrar-se, Cidade deriva para perder-se. A crença numa mudança advinda de uma liderança revolucionária é

8

O Ato Institucional número 5 foi uma medida provisória redigida em 13 de dezembro de 1968 e extinta em 1978. O AI-5 deu poderes absolutos ao regime, fortalecendo a linha dura do governo militar. Entre outras coisas, fechou o Congresso Nacional, autorizou a intervenção nos estados e municípios, determinou a censura prévia e suspendeu o habeas corpus para os chamados crimes políticos.

9

Fernando Collor de Mello foi o primeiro presidente eleito por voto direto após o regime militar. Ficou no governo de março de 1990 até dezembro de 1992. Renunciou após um processo de impeachment deflagrado por uma série de acusações de corrupção.

258

substituída pela fé numa transformação através da emergência; a tentativa de driblar o mercado, pela aceitação de sua onipresença e da impossibilidade de se estar fora dele; o projeto de uma arte desvinculada da mercadoria, pelo sequestro dos procedimentos da antiarte e pelo humor negro estilo Jackass10.

do simples. Pressupõe a existência do devir, da diferença entre o aqui e o lá, o antes e o depois, o dentro e o fora. O segundo Marcelo não vem de lugar nenhum, ele é. É Cidade, é arte, é malícia, é complexidade. Não existe mais possibilidade de deslocamento. Não existe nenhum lá, nem depois, nem fora.

A identidade contraditória mas complementar entre do Campo e Cidade é realçada pela utilização dos sobrenomes locativos. Por um lado, ao evocarem lugares, expressam afinidades entre os dois Marcelos. Por outro lado, a relação entre prenome e sobrenome dá-se de maneira diferente: um Marcelo vem de, o outro é. O primeiro Marcelo conecta-se ao Campo por meio da partícula “do,” que sugere uma relação de proveniência, de deslocamento. Ele representa o êxodo para a cidade em busca de uma situação melhor. Vem do Campo, do rústico, do primitivo,

10 Jackass é um programa que estreiou na MTV americana em 2000, a partir de filmagens feitas por Johnny Knoxville e amigos, para o filme de skate Big Brother. Nelas, Knoxville apresenta-se testando vários aparatos de autodefesa em si mesmo. A série norte-americana mostra os protagonistas em cenas violentas, ridículas, idiotas e perigosas. Foi interrompida em 2002, após diversas controvérsias.

259

For For São ma ma Pau ção lo ção 261

Tanto do Campo quanto Cidade atuam em São Paulo, numa megalópole cujo tecido urbano constitui-se de diversas subcidades com interesses conflitantes. Suja, cinzenta, heterogênea e caótica, São Paulo é também o maior polo cultural e financeiro do Brasil. Não é rodeada por uma natureza exuberante como algumas capitais brasileiras, nem permeada por maravilhas arquitetônicas como outras. Não é cosmopolita e glamorosa como as megalópoles norteamericanas ou europeias, nem atrasada ou provinciana como algumas capitais latino-americanas. Destituída de cultura original, evidencia a condição brasileira de nação construída na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro, à qual nada parece estrangeiro, porque tudo o é.11 Nessa pista imprecisa e escorregadia, do Campo dissipa-se com o tempo e Cidade patina exaustivamente sem sair do lugar. O intervalo temporal entre os dois Marcelos determina territórios de atu-

ação distintos: o da crença otimista e o da acomodação desmanchada. Essa diferença é realçada pela disparidade entre a formação artística de ambos. Do Campo estuda arquitetura na FAU-USP, pois acredita numa obra de arte integrada e politicamente atuante na sociedade. Criada em 1948, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo foi um dos centros artísticos e políticos mais ativos durante a ditadura militar no Brasil. Em 1969, a FAU é transferida para a Cidade Universitária, como parte da estratégia do governo para diminuir a agitação estudantil potencializada pela proximidade com a Faculdade de Filosofia (localizada, até 1969, no atual Centro Universitário Maria Antonia). O edifício no novo campus é projetado por João Batista Vilanova Artigas, em 1962. No mesmo ano, uma reforma curricular propõe a escola como um espaço para a convergência das “artes, das humanidades e das técnicas.”12

Artigas projeta o prédio da FAU-USP como um lugar para “a espacialização da democracia.”13 O aprendizado político e a socialização são tão importantes quanto especulações estéticas e desenvolvimentos técnicos. Os ambientes são fisicamente interligados. As divisões utilizadas para separá-los marcam as diferenças de usos e funções, sem seccioná-los totalmente. No vão livre central, situa-se o Salão Caramelo, sede de eventos cívico-culturais, que manifesta enfaticamente a importância dada por Artigas à convivência entre alunos, professores e funcionários. Os amplos espaços abertos e a comunicação entre os diferentes setores propagam o ideal de uma vida acadêmica coletiva e politizada.

Decretam a necessidade da continuidade espacial para a socialização da informação e das decisões. A arquitetura não é simplesmente uma arte, mas uma manifestação social. A faculdade não forma apenas arquitetos, mas “artistas completos”14. Suas instalações são a materialização do ideário – utópico – de seus professores15: um lugar onde as decisões pedagógicas são tomadas em conjunto, por docentes, alunos e funcionários. O projeto educativo da FAU-USP combate o controle autoritário e coibitivo, posto em prática pelo governo então vigente16. Já Cidade presta vestibular para artes plásticas por acaso, e acaba na

13 ENCICLOPÉDIA ITAÚ CULTURAL ARTES VISUAIS. O Edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo - FAU/USP. 14

ARTIGAS, Caminhos da arquitetura, 1999, p. 156.

15

Em 1969 – ano da instauração do AI-5, da ocupação da Maria Antonia e da intervenção norte-americana no ensino superior –, o novo edifício da FAU acabou adquirindo um sentido contrário ao imaginado originalmente por Artigas. Ao invés de um lugar para a “espacialização da democracia,” onde seria projetada a nova sociedade justa, tornavase um exílio (entre idílico e lúgubre) daqueles que lá permaneceram (ARANTES, Arquitetura Nova, 2002, p. 95). 16

11

No ensaio Cinema: trajetória no subdesenvolvimento, Paulo Emílio Sales Gomes descreve assim a nós brasileiros. (GOMES, Cinema, 1997, p. 90). 12

262

FAUUSP, FAU.

Entretanto, se, por um lado, os espaços interligados e comunitários da FAU-USP propagavam um ideário democrático contrário ao programa repressor da ditadura em vigor, por outro lado, esses mesmos espaços abertos e permeáveis dificultavam os encontros furtivos necessários para o planejamento de atos de insurgência, e facilitavam a infiltração dos espiões do governo. Criavam, assim, condições ideais para que a vigilância ubíqua e incontrolável da sociedade de controle se instalasse comodamente (ver nota 18).

263

Fundação Armando Alvares Penteado por falta de opção. Instituída em 1947, por meio do testamento do conde Armando Alvares Penteado, a FAAP cria, em 1967, uma das mais importantes escolas de artes visuais do Brasil. A origem “aristocrática” e elitista da Faculdade de Artes Plásticas da FAAP não impede que ela abrigue professores e alunos recalcitrantes e controversos, como Nelson Leirner e Leonilson. A partir de 1990, a FAAP implementa uma série de reformas com a intenção de construir uma “escola do futuro.” Inspirada pelo modelo acadêmico norte-americano, visa se transformar num “centro de discussão de problemas brasileiros e internacionais e aproximar os alunos do empresariado”17. O patrimônio imobiliário é

17

recuperado, a faculdade e a biblioteca são informatizadas, e os centros de convenção e o teatro, reformados. Professores e alunos começam a ser beneficiados com programas de intercâmbio internacionais, ampliando suas referências culturais e perspectivas profissionais. As novas instalações exigem medidas de segurança mais eficazes, tais como catracas eletrônicas, portais detectores de metal e câmeras de vigilância18. Nesse ambiente protegido/vigiado, os formandos em artes plásticas estudam, lado a lado, obras que nascem de relações amigáveis com o sistema de poder e práticas “marginais” ou “subversivas,” legitimadas pela historiografia da arte. Sob a vigilância horizontal e pandêmica da instituição, os estudantes

aprendem a ser “jovens artistas”. Repetem estratégias “marginais” das gerações anteriores, antes consideradas arte de resistência, agora transformadas em puro espetáculo. Abastecem assim a demanda capitalista pelo “novo-sempre-igual”19. Os jovens-artistas-mercadoria da FAAP diluem-se na autoridade onipresente e dispersa da instituição. Contaminam-se mutuamente e emaranhamse nas teias da disciplina20.

FAAP. FAAP - desde 1947.

18

As instalações vigiadas da FAAP ilustram o que Deleuze chamou de “sociedade de controle”: um sistema de controle aberto e contínuo, que vem substituindo o encarceramento completo da “sociedade disciplinar” de Foucault. Esta organiza-se sob a forma de uma série de espaços fechados – a família, a escola, o quartel, o hospital, o hospício –, cujo paradigma é a prisão ou a fábrica. Nela, o indivíduo transita de uma clausura para outra, sempre submetido a alguma forma de vigilância e disciplina, até ser finalmente trancafiado no espaço fechado derradeiro que é o cemitério (Cf. FOUCAULT, Vigiar e punir, 2004). Na “sociedade de controle” de Deleuze – cujo paradigma é a empresa ou o comércio –, os espaços já não são rigidamente demarcados, as fronteiras vão tornando-se cada vez mais permeáveis, e a vigilância monocêntrica vem sendo substituída pelo controle virtual e ubíquo (O FRANCO ATIRADOR, A mutação do estado de sístase).

264

19 O efeito dessa inovação contínua é destruir os investimentos e habilidades do passado, promovendo a destruição criativa embutida na própria circulação do capital. O capitalismo internaliza regras que garantem que ele permaneça uma força permanentemente revolucionária e disruptiva em sua própria história mundial (HARVEY, Condição pós-moderna, pp. 102-103). 20

O controle e a repressão não vêm mais de uma força externa e centralizada, e sim das “formas clandestinas assumidas pela criatividade dispersa, tática e paliativa” daqueles já presos nas redes da “disciplina” (HARVEY, op.cit., p. 197).

265

Des Ma Des man man rce che lo che 267

Marcelo do Campo é a lógica para compreender Marcelo Cidade. Este é o fantasma daquele. Aquele é o lastro deste. Entretanto, do Campo é um lastro fantasmático, pois, apesar de ser o sustentáculo de Cidade, não passa de um espectro, de uma evocação obsedante, de um sonho que sonha outro sonho. Cidade é, portanto, uma espécie de projeção invertida da projeção, um eco distorcido de um reflexo, o som fora de sincronia de do Campo.

Marcelo do Campo e Marcelo Cidade são fantasmas impressos na realidade, cicatrizes espectrais originadas por contato direto, ausência e espelhamento.

Marcelo do Campo vive através da legitimação do falso. Suas obras foram construídas para remeter a um tempo e a um lugar específicos. Marcelo Cidade se enterra em meio a realidades falsificadas. Sua biografia e obra são ora compartilhadas, ora espelhadas, ora incompatíveis com as de outros. Episódios genuínos acumulam-se sobre percursos possíveis mas não trilhados. Memórias miscigenam-se a delírios. Desejos disfarçam-se em imagens. Reconstruções revezamse com plágios para estimular desvios e alucinações.

269

Ocu Ocu Do pa pa ra ção 271

Desterritorialização. Fugir sem sair do lugar. Abrir uma fenda e vazar. Tornar-se outro permanecendo o mesmo. Devir-Marcelo. Obsessão. Saciar uma falta indefinida. Reencenar. Recontextualizar experiências de outros. “Fazer à maneira de”. Repetir incessantemente um estribilho para preencher uma lacuna que não existe. Consolidar terapeuticamente um novo sujeito reterritorializado, uma imitação desviada. Marcelo do Campo.

21

Cf. ZIZEK, How to read Lacan, 2006, p. 70.

22

Ibidem, pp. 35, 68, 69 e 70.

Histeria. Ocupar uma identidade sem substância. Vestir uma máscara. Roubar experiências de outros. Anamorfosear a realidade.21 Adquirir forma do ponto de vista desviado do próprio desejo. Criar um espectro aglutinante sem consistência simbólica, uma mera sombra daquilo que não é.22 Marcelo Cidade. Esquizofrenia. Ser transformado enquanto autor. Desordenar. Transformar-se enquanto leitor. Romper. Destruir-se enquanto artista.

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Este livro foi editado em 2010, como parte das exigências da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Doutor em Artes Visuais. É composto por duas partes: Marcelo do Campo 1969-1975 e Marcelo Cidade 2002-2007. A primeira parte é uma versão comentada de minha dissertação de mestrado, apresentada na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, em 2003, sob a orientação do Prof. Dr. Marco Giannotti. Ao texto original foram acrescentadas anotações feitas a partir das observações da banca examinadora, composta pelos Profs. Drs. Carmela

Gross e Miguel Chaia. A versão atual é uma rediagramação feita a partir da edição publicada pelo Instituto Itaú Cultural, em 2006. A segunda parte deste livro – Marcelo Cidade 2002-2007 – foi desenvolvida para apresentar e contextualizar um tipo de produção artística que presenciei como professora do curso de Artes Plásticas da FAAP, entre 1994 e o presente. Do Campo a Cidade foi diagramado por Paula Tinoco (www.nocampo.com.br) e revisado por Regina Araki. O tratamento das imagens e o acompanhamento gráfico foram feitos por Leandro da Costa.

Esta é uma obra de pura ficção. Qualquer semelhança com lugares, fatos e pessoas conhecidas é mera coincidência.

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