Do “lugar de onde se fala” ao “lugar de fala”

May 25, 2017 | Autor: Carlos Palombini | Categoria: Identidade, Identidades, Identidades sociales, Identidades Políticas
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Do “lugar de onde se fala” ao “lugar de fala” Carlos Palombini Ontem uma amiga de Facebook fez uma postagem restrita em que dizia: “Começou com ‘homem-branco-cis-hétero’, nem leio”. Perguntaram: “Te incomoda, então, que seja uma militância repetitiva e sem pensamento crítico sobre os próprios atos, que ganhou proporções enormes sem de fato trazer benefícios sociais que não sejam meramente acusatórios?” Ela responde: “Acho que esse caô já produziu e pode continuar a produzir benefícios sociais. Mas é naïf além dá conta pra mim e, claro, tem sua quota inevitável de efeitos perversos”. Hoje pela manhã Mariana Gomes chamou-me a atenção para um texto de Pablo Ortellado sobre a expressão lugar de fala. Ele observa: A adoção desse tipo de reflexão modifica também uma longa tradição racionalista que tratava como inválidos os argumentos ad hominem (aqueles que desqualificam quem enuncia, ao invés de se deter no teor do argumento). De certa maneira, a reflexão sobre o lugar de fala reconhece a força persuasiva deste tipo de argumento, a aceita e a reverte no contexto da luta social no campo discursivo. Ela ressignifica o argumento ad hominem, transformando a desqualificação preconceituosa em qualificação do discurso de luta socialmente situado: ao invés de desqualificar o discurso do subalterno, o qualifica por não ser contraditório, por ter experiência direta, autenticidade e conhecimento de causa. (Ortellado 2017)

Uma crítica à política tradicional de identidades está embutida na teoria queer e é portanto assunto antigo. Não é minha intenção retomá-la. Descobri a expressão lugar de onde se fala entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, a um tempo em que ainda se podia usá-la e ser lido por minha amiga anônima. Em palestra proferida durante o Primeiro Congresso da Associação Internacional de Semiótica, em Milão, no início de junho de 1974, Roland Barthes utilizou-a duas vezes no curso de uma retrospectiva de sua trajetória: O terceiro momento é efetivamente o do Texto. Teciam-se discursos à minha volta que deslocavam preconceitos, inquietavam evidências, propunham novos conceitos: Propp, descoberto a partir de Lévi-Strauss, permitia conduzir seriamente a semiologia a um objeto literário: a narração; Júlia Kristeva, remanejando profundamente a paisagem semiológica, me fornecia, pessoal e principalmente, os conceitos novos de paragramatismo e intertextualidade; Derrida deslocava vigorosamente a própria noção de signo ao postular o recuo dos significados, o descentramento das estruturas; Foucault acentuava o processo do signo ao atribuir-lhe um lugar histórico passado; Lacan oferecia-nos uma teoria acabada da cisão do sujeito, sem a qual a ciência está condenada a permanecer muda e cega acerca do lugar de onde ela fala; Tel Quel, finalmente, desencadeava a tentativa, ainda hoje singular, de recolocar o conjunto dessas mutações no campo marxista do materialismo dialético.1 (Barthes 1974: 38)

Alguns parágrafos adiante, ele constata: não posso hoje acreditar, e não desejo, que a semiologia seja uma ciência simples, uma ciência positiva, e isso por uma razão primordial: compete à semiologia, e talvez, de todas as ciências humanas hoje, apenas à Semiologia, colocar em questão seu próprio discurso: ciência da linguagem, das linguagens, ela não pode aceitar sua própria linguagem como um dado, uma transparência, uma ferramenta, em resumo, uma metalinguagem; nutrida das descobertas da psicanálise, ela se interroga quanto ao lugar de onde ela fala, interrogação sem a qual toda a ciência e toda a crítica ideológica são derrisórias: para a Semiologia, pelo menos assim o desejo, não existe uma extraterritorialidade do sujeito, ainda que erudito, em relação a seu discurso; em outras palavras, finalmente, a ciência desconhece qualquer lugar de segurança, e nisso ela deveria reconhecer-se enquanto escrita.2 (Barthes 1974: 39)

Nessa perspectiva, o uso atual da expressão reifica a extraterritorialidade do sujeito de modo paradoxal através de sua intraterritorialidade. Em síntese, o fato de estar dentro do problema pode e deve conferir-lhe precedência no debate, mas não lhe garante a superioridade dos argumentos nem tampouco a validade, e muito menos o encerra. Entre as figuras que participam dessa construção vernácula local estão: a força mágica do apelo emocional; o sadomasoquismo                                                                                                                 1 2

Tradução do autor, itálicos no original. Id.

católico da redenção pelo sofrimento; o sabe-com-quem-está-falando; o ponha-se no seu devido lugar.

Referências Barthes, Roland. 1974. “L’aventure sémiologique”. Le Monde, 7 jun. 1974. Citado de Œuvres complètes III. Paris: Seuil, 1994, 36–40. Guimarães, Antônio Sérgio A. 2006. “Depois da democracia”. Tempo social 18 (2): 269–287. http://goo.gl/7mLJBP. Ortellado, Pablo. 2017. “Sobre o ‘lugar de fala’”, 7 jan. http://goo.gl/XxZGsd.

 

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