Do (novo) espaço público

July 19, 2017 | Autor: M. Antunes da Cunha | Categoria: Public Space
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UNIVERSIDADE CATÓLICA PORTUGUESA Centro Regional de Braga Faculdades de Filosofia, Teologia e Ciências Sociais Sessão de abertura do ano lectivo 2012/2013 Auditório da Faculdade de Filosofia 16 de Outubro de 2012 (17h00)

Lectio Sapientiae “Do (novo) espaço público”

Atravessamos hoje dias conturbados. Colocam-se novas questões ao sistema democrático e aos mecanismos de participação dos cidadãos no debate sobre o ordenamento da res publica, da coisa pública. O espaço público, que podemos definir como sendo o espaço social constituído pelo conjunto dos lugares onde as pessoas se encontram para debater questões de interesse comum, está em mutação. O lugar do fenómeno religioso, o impacto dos movimentos sociais ou o papel das novas tecnologias são apenas alguns exemplos. É precisamente este novo espaço público – com as suas singularidades e os seus mitos – que vamos aqui abordar. A partir duma breve incursão histórica e sociológica, procuraremos ver como algumas ocorrências que hoje consideramos como verdadeiramente inovadoras não o são tanto assim, mas que há igualmente reais metamorfoses. Focalizar-nos-emos sobretudo no espaço nacional, em torno de dois temas específicos: os discursos sobre a portugalidade e a emigração. Mas antes, permitam-me uma nota metodológica. Em ciências sociais, a questão da motivação e/ou da proximidade relativamente às nossas áreas de pesquisa e de interesse nem sempre é claramente explicitada, o que constitui a meu ver uma lacuna… Enquanto alunos, professores e investigadores enveredamos por determinados áreas e temáticas de investigação por uma série de razões mais ou menos precisas. Como lembrava Alfred Schütz em 1954: “os objectos de pensamento construídos pelas ciências sociais, por forma a dominar esta realidade social, têm de ser fundados sobre objectos de pensamento construídos pelo senso comum dos homens que vivem a sua vida quotidiana no seu mundo social” (p. 267). A nossa vida quotidiana e o nosso mundo social não são certamente alheios à maneira como abordamos os objectos de pensamento científicos, 1

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neste caso específico a questão do espaço público do qual fazemos parte. A objectividade não é incompatível com a experiência pessoal. Quer queiramos ou não, a reflexão científica não se circunscreve ao mundo etéreo dos conceitos ou ao universo das relações que regem a sociedade. Encarna na nossa experiência concreta. Seja em termos de investigação ou duma outra prática profissional, é indispensável termos consciência das nossas motivações. No que às ciências sociais diz respeito, escusado seria recordar que essa consciência nos deve permitir separar o que é do domínio da análise científica daquilo que são os nossos juízos de valores. O que obviamente não significa, que não possamos ser – e devemos ser – mulheres e homens de convicções. Mas voltemos ao espaço público… Génese do espaço público É sobretudo durante o século XIX que se desenham, na Europa, narrações identitárias edificadas sobre uma língua, um território, uma « raça », valores, crenças, rituais, mitos, mas também um folclore e marcas identificadoras tais como tradições orais, especialidades culinárias, trajes típicos, animais emblemáticos, etc. A partir de então, a identidade nacional torna-se um modo de pertença privilegiado, um factor de inclusão e de exclusão, uma espécie de ideologia constituinte do Estado-nação. De modo diverso, historiadores como Gellner e Hobsbwam definem o conceito de nação como um artefacto com dois séculos de existência. Artefacto não quer dizer fraude ou falsificação, mas uma construção colectiva, neste caso específico com uma poderosa eficácia social. Perfilam-se, de início, duas visões da nação: uma primeira (jus soli, direito de solo) insiste na adesão voluntária dos seus membros a um projecto de sociedade partilhado ou, nas palavras d’Ernest Renan (em 1882, na Sorbonne), “um princípio espiritual, um plebiscito de todos os dias”. Uma segunda concepção (jus sanguinis, direito de sangue) – que encontramos já no oitavo Discurso de Fichte à nação alemã (1808) – define a nação como uma comunidade étnica e linguística de descendência à qual estão associadas uma série de características intrínsecas. Quer nasça da vontade ou corra no sangue, o sentimento de identidade nacional aponta, no espaço público, para aquilo que é suposto constituir uma colectividade cívica (os Portugueses, os Cabo-Verdianos, os Alemães) – com os seus direitos e deveres – em oposição ao Outro (o Estrangeiro). Progressivamente, todo o corpo social e cada um dos cidadãos que o constituem são interpelados enquanto membros dessa « comunidade 2

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imaginada », para retomar a expressão de Benedict Anderson. A fibra patriótica é cultivada na escola primária, na imprensa, nas forças armadas, na toponímia, nas datas e festas comemorativas, na bandeira e no hino, nos panteões nacionais e outros “lugares de memória” como diria o historiador Pierre Nora. O povo torna-se uma espécie de indivíduo colectivo. Cada um dos seus membros passa também a ser olhado e definido a partir de um « carácter étnico », com um conjunto de características que o distinguem dos estereótipos dos países vizinhos e que, numa linguagem weberiana, configura aquilo que poderíamos chamar um “tipo ideal”. Mas qual é então o espaço de manobra e de liberdade de cada um no âmbito desta configuração social e dos grupos que a constituem? Qual é o nosso papel, enquanto indivíduos singulares, no espaço público? O filósofo alemão Jürgen Habermas considera que a emergência do conceito de espaço público está intimamente associada ao aparecimento, sobretudo no século XVIII, da burguesia enquanto classe social com uma certa autonomia relativamente à Corte e ao Povo. Num contexto de gestação das monarquias constitucionais, essa mesma burguesia discorre, de forma racional, acerca das questões de sociedade. Assiste-se então ao nascimento duma nova forma de poder que repousa sobre o princípio de publicidade, termo que aqui designa o processo a partir do qual os argumentos de cada um são levados ao conhecimento dos pares, alimentando assim um laborioso processo de debate que contribui para a formação de uma opinião pública esclarecida, preocupada com o interesse geral. Neste modelo ideal e deliberativo de inspiração kantiana, no qual não tem lugar o cidadão de base (o operário, a mulher, o camponês, etc.), a imprensa de opinião estimula um debate público sobre o qual se alicerça o poder legislativo. Todavia – considera Habermas – o declínio, no final do século XIX, dos jornais de opinião em favor de publicações mais populares (onde pontificam os faits-divers, a publicidade comercial e os folhetins) marca também o declínio do debate de ideias em detrimento duma produção cultural dominada pela ditadura da audiência e do lucro. Por exemplo, na década de 1890, Le Petit Journal, uma publicação de cariz sensacionalista, é vendida a um milhão de exemplares. Este movimento – prossegue Habermas – arrasta consigo a degenerescência da esfera pública, transformando a imprensa num instrumento de opressão cultural dum público que conta agora nas suas fileiras com os membros do povo recém-alfabetizados, na sequência da criação da escola pública. O cidadão esclarecido deixa lugar ao consumidor de conteúdos 3

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produzidos pela sociedade de massas. O ideal das Luzes é progressivamente absorvido pela lógica instrumental do capitalismo. Esta visão simultaneamente pessimista e elitista não concebe que possa então haver qualquer forma de opinião pública popular. O povo, à maneira dos escritos de Le Bon e de Gabriel Tarde sobre a multidão, é aqui reduzido a um conjunto de indivíduos mais ou menos manipuláveis. Esse discurso enjeita qualquer possibilidade de emancipação social. Contrariamente aos membros cultivados da burguesia, esta massa acrítica é vista como uma colectividade passiva que consente as transformações que outros imprimem ao corpo social. Posteriormente, Habermas temperou a radicalidade do seu discurso, passando a incluir no seu vocabulário expressões como sociedade civil, movimentos sociais ou conflitualidade entre actores dominantes e dominados. De facto, a realidade é muitas vezes mais complexa do que inicialmente se supõe. A historiadora Arlette Farge (1992) chama a atenção para o facto « que todas as sociedades funcionam sempre, em parte, ao lado daquilo que constitui a sua organização formal, e que nesse hiato emergem outras configurações do real ». A partir da análise dos arquivos de cronistas e da polícia, Farge narra-nos a constituição duma « opinião pública popular » já no Paris do século XVIII. Por essa altura, um conjunto de escritos (gazetas, manuscritos, cartazes, panfletos) e de eventos (cerimónias reais, execuções públicas) procuram influenciar a arraia-miúda de modo a que esta « tome partido pelo poder». Sem negar a influência destas manifestações, a historiadora salienta todavia que há outras formas de percepção do fenómeno político patentes nas práticas quotidianas populares. « O essencial – escreve – está nesta nova postura que tem a ver com a legitimidade de reivindicar, de pensar contra… As elites vêem-se obrigadas a reconhecer que o povo também produz um saber social. (…) Não quer dizer que seja cultivado, mas dispõe sem dúvida de um modo prospectivo de compreensão do real (…). Regra geral, as pessoas sabem que são constantemente enganadas. Mas a sua postura é outra, é estar sempre noutro lugar, estar sempre ao corrente: aqui está uma prova de inteligência”, conclui. Já no século XVIII, há então uma verdadeira opinião pública popular com as suas manifestações próprias (caricaturas, relatos orais, humor sarcástico, escritos anónimos, etc,) e que encontramos hoje, sob novas roupagens, por exemplo, nas redes sociais (comentários à actualidade sociopolítica, imagens transformadas, petições, máximas intemporais, anedotas, provérbios,

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curiosidades, etc). Mas como se foi configurando o espaço público português ao longo dos últimos duzentos anos? O espaço público português: portugalidade e emigração No entender d’Eduardo Lourenço, os Portugueses não padecem propriamente de problemas de identidade, mas antes de hiperidentidade, “de fixação quase mórbida na contemplação da diferença que nós imaginamos possuir no contexto dos outros povos, nações e culturas” (1990). A tal ponto que, prossegue o ensaísta, “a nossa história literária dos últimos 150 anos está marcada pela preocupação obsessiva de descobrir quem somos e o que somos enquanto Portugueses” (1988). É sobretudo nos momentos de crise que as nações operam movimentos de introspecção colectiva. É, por exemplo, em torno do Ultimato inglês de 1890, a que Eduardo Lourenço chamou “o traumatismo-símbolo de um século de existência traumatizada” (1988) que se cristalizam medos, frustrações, reivindicações. Não é por acaso. Em Portugal, o século XIX é verdadeiramente um período traumático, de instabilidade. As invasões francesas, o exílio da família real, a independência do Brasil, a guerra civil e as revoltas republicanas fomentam um sentimento de incerteza, um pessimismo existencial no qual a famosa Geração de 70 mergulha a sua inspiração. Os vencidos da vida encetam um movimento de reflexão colectiva, de busca de identidade, movimento esse que paulatinamente se estende a outros sectores do espaço público. Sobretudo duas metáforas vão fazer a ponte entre a esfera intelectual e o grande público neste esforço de definição da portugalidade: a metáfora da genealogia lusitana e a metáfora simbólica da saudade. Ser Português significa, a partir de então, fazer parte duma linhagem étnica, partilhar uma história e encarnar uma alma colectiva. Deixamos aqui apenas dois ou três exemplos. Em 1880, Adolfo Coelho define os seus compatriotas como hipocondríacos, pessimistas, fatalistas e servis perante a autoridade. Por seu turno, em 1885, Teófilo Braga considera que os Portugueses são pouco dados à especulação, de brandos costumes, mas aventureiros. Em 1912, Teixeira de Pascoaes repreende aqueles que não acreditam na existência de uma alma portuguesa originária que atravessou séculos e gerações, uma alma condensada na palavra “saudade”. Poderíamos enumerar uma série doutros contributos de escritores, filólogos, etnólogos, arqueólogos, filósofos ou historiadores envolvidos na construção social do conceito de portugalidade. Um autor como Ricardo Severo (1916) chega mesmo a justificar um certo determinismo étnico com base em estudos sobre a dolicocefalia dos Portugueses, termo para designar uma forma específica de crânio. Não podemos, é claro, colocar no mesmo plano todos estes contributos, nem afirmar que todos os intelectuais integraram este movimento, 5

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mas é inegável que se trata de uma vaga de fundo que atravessará – com os ajustes próprios a cada regime – a Monarquia Constitucional, a República, o Estado Novo e o pós-25 de Abril. O Estado vai desempenhar, ao longo de todo o século XX, um papel crucial em todo este processo, socorrendo-se da implantação progressiva, entre outros meios, de práticas administrativas comuns, da alfabetização, do direito de voto e da comunicação social. O controlo desses recursos – certo, de forma diversa – constitui mesmo um dos elementos-chave da afirmação quer do conceito de portugalidade, quer da legitimação de cada um dos regimes. Deixamos aqui mais dois exemplos. Em Janeiro de 1907, Afonso Costa escrevia: “Estou absolutamente convencido de que no dia em que o número de analfabetos for inferior a 40%, nesse dia a República será proclamada”. Nos primórdios do Estado Novo, o Decreto-Lei n° 27/279 de 24 de Novembro de 1936 também não podia ser mais claro: « O ensino primário elementar trairia a sua missão se continuasse a sobrepor um estéril enciclopedismo racionalista, fatal para a saúde moral e física da criança, ao ideal prático de ensinar bem a ler, escrever e contar e a exercer as virtudes morais e um vivo amor a Portugal.» Durante quatro décadas, a máquina de propaganda salazarista fará uso dos meios mais diversos, desde a imprensa, radio, cinema, televisão até aos manuais escolares, exposições, comemorações, concursos, etc. Como ilustrou Claúdia Castelo (1998), a adulteração da teoria lusotropicalista de Gilberto Freire vai inclusivamente servir de caução científica para veicular a imagem dum Portugal plurirracial e pluricontinental, sintetizado na célebre fórmula “o modo português de estar no mundo”. Os “nossos emigrantes” Em contexto de ditadura, a confiscação do espaço público pelo poder deixa aos indivíduos a escolha entre o apoio incondicional, o silêncio, a prisão, a clandestinidade e/ou exílio. Uma das mais poderosas e colectivas manifestações da opinião pública portuguesa do século XX teve precisamente lugar nas décadas de 1960/70. O êxodo migratório de centenas de milhares de pessoas pode ser considerado – retomando a expressão do economista e geógrafo americano Charles Tiebout (1956) – como um verdadeiro “voto pelos pés”. Embora esta saída massiva se deva a uma diversidade de razões, encontramos aqui também uma verdadeira tomada de posição por parte da população, até às aldeias mais recônditas. Aliás, nas dezenas de entrevistas que efectuamos ao longo de anos na região de Paris, apercebemo-nos que o silêncio e/ou o afastamento do espaço público nem sempre são sinónimos de desinteresse. Um operário fabril originário do concelho de Guimarães, hoje na reforma, relatavanos, com profunda mágoa, essa manhã da segunda metade da década de 70 em 6

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que um funcionário do centro de emprego lhe perguntava porque não tinha emigrado como todo a gente. Dizia-nos ele: “Eu queria ficar em Portugal. Ainda hoje aquelas palavras continuam a magoar-me. O meu país não quis mais de mim”. Por isso, partiu na semana seguinte… Nunca mais votou. Nunca mais quis regressar a título definitivo. A relação de Portugal com “os nossos emigrantes” é deveras singular. Constitui um verdadeiro estudo de caso. Aqui o possessivo “nosso” tanto traduz uma marca de afecto como um nacional paternalismo. Antropologicamente, os símbolos servem para simplificar os conceitos, permitem o acesso a uma determinada dimensão do real e a inclusão de cada um dos membros na comunidade, no espaço público. Para Portugal, a figura do emigrante é – sobretudo desde o século XIX – inegavelmente um desses símbolos. Para não abusar da vossa paciência, poupar-vos-ei a uma nova retrospectiva histórica. O certo é que, sob o impulso dum discurso político que quase sempre omitiu as causas do êxodo em favor duma representação romântica, a diáspora foi sendo entronizada embaixadora da nação, independentemente da diversidade dos laços que, de facto, unem os seus membros ao país de origem. Na senda dos Descobrimentos, a figura do Português-emigrante evoca as metáforas de navio-nação e de povo-peregrino ou, mais prosaicamente – mas não menos deliciosamente – a personagem de Oliveira da Figueira, dos álbuns de Tintim. O discurso não é novo. Em 1859, o Conde de Tomar já se regozijava, no Parlamento, com o facto de os nossos compatriotas preservarem o espírito português no Brasil. Apesar da descolonização, depois de 1974, Portugal continua a sonhar-se à escala planetária, recusando a etiqueta de pequeno país, como martelava, durante a ditadura, o título dum dos cartazes espalhados pelas escolas primárias. Para materializar essa “nação (doravante) desterritorializada” (Feldman-Bianco, 1995), o vocabulário transformou as colónias do antigo império em “comunidades lusófonas”, os núcleos da diáspora em “comunidades portuguesas espalhadas pelo mundo” e os membros da segunda e terceira geração em “lusodescendentes”. Muito mais do que uma simples viragem semântica, trata-se – na feliz expressão de Maria-Beatriz Rocha-Trindade – dum «sucedâneo psicológico» ou, para retomar um conceito de Boaventura Sousa Santos, duma estratégia de adaptação ao novo estatuto de “nação pós-colonial semiperiférica no sistema mundial capitalista moderno” (2001). De facto, o espaço público não se resume a uma questão semântica. Como refere Louis Queré (1992), o espaço público é simultaneamente um espaço de discussão (dimensão deliberativa) e um espaço de aparição (dimensão dramatúrgica). Não é só aquilo que dizemos, mas também o modo 7

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como o fazemos. É uma questão de identidade. O conceito de identidade, indissociável do de alteridade, está intimamente ligado aos mecanismos de identificação e de diferenciação, aquilo a que Erving Goffman apelida de estratégias de apresentação de si na vida quotidiana (1973). Quem sou eu aos olhos dos outros ? A questão coloca-se constantemente. Numa perspectiva interaccionista simbólica, os contornos de cada face a face entre dois ou mais indivíduos só podem ser entendidos à luz do historial e das representações dos grupos de pertença respectivos. Assim sendo, categorias como o Português, o emigrante, o lusodescendente, o lusófono ou o estrangeiro – associadas a um conjunto doutros grupos de referência dos quais fazemos parte – conferem a cada um dos seus portadores lugares e funções diversificados no âmbito do espaço público. As imagens do sucesso além-fronteiras e da fidelidade às raízes constituem, de facto, duas faces do imaginário colectivo sobre a diáspora, mas a distância traz também consigo algum distanciamento. Em Imagens e clivagens Os residentes face aos emigrantes (1996), o sociólogo Albertino Gonçalves dissecou as razões que levam uma parte dos Portugueses residentes no território nacional – em função do seu estatuto social e económico – a emitir algumas críticas relativas aos compatriotas radicados no estrangeiro. Condenam sobretudo aquilo que consideram ser um exibicionismo estival, o culto do dinheiro e um recurso obsessivo aos estrangeirismos (vocabulário, arquitectura, gostos, etc.). Por seu turno, os membros da diáspora sentem-se injustiçados com este tipo de reacção. «Somos duas vezes estrangeiros; estrangeiros no país que nos acolhe e no nosso próprio país», dizem. As razões desta incompreensão mútua – que não é incompatível com uma relação intensa – são profundas… e remetem para a complexidade do nosso espaço público. A emigração – até aos anos 90, é bom relembrar que se trata sobretudo duma emigração económica com um limitado percurso académico – é um sinal incómodo que recorda incessantemente ao país de origem as suas limitações. Por isso, nos orgulhávamos até há bem pouco tempo de já não sermos um país de emigrantes, mas de imigrantes. Entretanto, a nossa sociedade voltou a mudar. O (novo) espaço público O espaço ou a esfera pública, enquanto espaço mediador entre o Estado e a sociedade, é um espaço – marcado por uma certa liberdade de expressão, de reunião e de associação – em que o público se organiza como portador de 8

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opinião, a chamada opinião pública. Mas que realidade se esconde por de trás do termo “público”? Que mecanismos e processos sociais estão em jogo? Enquanto substantivo, o termo “público” designa um conjunto de pessoas que manifestam um certo interesse à volta dum tema específico. É o público de uma peça de teatro ou de uma exposição. Por oposição a « privado », o adjectivo faz referência a algo que diz respeito a todos os indivíduos ou a uma realidade manifesta. É o caso do « serviço público » ou dum facto de « notoriedade pública ». Por fim, os verbos « publicar » ou « tornar público » evocam o acto de divulgar alguma coisa junto de uma população mais ou menos extensa. Em suma, o termo “público” – diferente do conceito quantitativo de audiência – refere-se simultaneamente a um colectivo, a um registo da experiência e a uma performance. No livro Les Portugais de France face à leur télévision. Médias, migrations et enjeux identitaires (2009) – que sintetiza o nosso trabalho de doutoramento sobre a recepção da RTP Internacional junto da comunidade portuguesa em França – definimos o público da seguinte forma: “uma comunidade de indivíduos em interacção, num dado contexto e em torno do mesmo objecto, e dotado de uma certa capacidade de reflexão e de representação de si”. De facto, quando publicamos um comentário numa rede social, quando damos a nossa opinião num círculo de amigos ou colegas acerca das últimas medidas do Governo, quando compramos este jornal e não aqueloutro, quando decidimos o nosso sentido de voto, quando participamos numa manifestação ou ficamos em casa, mesmo quando desvalorizamos as práticas culturais doutrem, etc., etc… Cada uma destas tomadas de posição – por vezes, mesmo os nossos silêncios e omissões – traduzem uma forma de nos situarmos no espaço público. Os problemas públicos (as questões de sociedade) nascem dum conflito de pontos de vista em torno dos quais se reúnem grupos em competição que se dão em espectáculo perante outros grupos. Cada um de nós faz parte de um ou vários grupos, participando a uma certa mise en scène no espaço público. Eric Macé concebe a sociologia dos meios de comunicação social como “uma sociologia da configuração das relações sociais num processo de mediação” (2000). Os media – em função duma série de factores, entre os quais o posicionamento ideológico de cada um – procuram reflectir as representações simbólicas e os quadros de interpretação considerados legítimos naquele momento, no contexto duma luta entre actores inscritos em relações sociais de poder e de dominação. O espaço público é deveras complexo. Uma vez que o tempo não nos permita grandes análises – graças a Deus diria eu se estivesse no vosso lugar – concluímos referindo apenas uma característica – não é obviamente a única – 9

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deste novo espaço público: o seu alargamento ao testemunho pessoal e a consequente diluição das fronteiras entre espaço público e privado. Encontramos este fenómeno na individualização/personalização da vida política, nos programas de televisão sobre a vida de indivíduos anónimos, na aprovação de leis na sequência duma tragédia ou duma história de vida, nas sanções disciplinares a funcionários por comentários partilhados numa rede social, no teletrabalho etc… Já presente na televisão da intimidade, analisada por Dominique Mehl (1998), esta dimensão reactualiza um pouco a velha tensão entre razão e técnica que opunha idealistas e sofistas no espaço público da antiga Grécia. Raciocínio intelectual e testemunho nem sempre são compatíveis. Podemos perfeitamente rebater argumentos, mas dificilmente podemos contradizer uma história de vida. Se é inegável que o testemunho em si se tornou uma forma de comunicação específica no espaço público, também é certo que avaliação do seu impacto não reúne consenso. Por exemplo, a propósito do tratamento da questão dos direitos humanos nos meios de comunicação social, Marcel Gauchet diz que mobilizações emotivas fortes se traduzem, com alguma frequência, em mobilizações cívicas fracas. Outros autores analisam a realidade de modo diferente. O impacto da chamada sociedade civil e das suas manifestações sociais (olhemos para o que se passa hoje na Europa, mas também para a Primavera árabe) tem forçosamente leituras diversificadas. Como sempre aconteceu, há actores e grupos (políticos, económicos, mediáticos, culturais, religiosos, etc.) com maior peso no espaço público, mas não modelam a eles só o corpo social. Os dias conturbados que hoje atravessamos demonstram-no.

Obrigado pela vossa paciência.

Braga, 16 de Outubro de 2012

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