\"Do outro lado\", Artigo sobre o livro, Massacre Português de Wiriamu_Expresso_4 estrelas

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Descrição do Produto

Periodicidade: Semanal

Temática:

Sociedade

Expresso

Classe:

Informação Geral

Dimensão:

1917

29­10­2016

Âmbito:

Nacional

Imagem:

S/PB

Tiragem:

131300

Página (s):

70/71

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Do outro lado

O trabalho mais exaustivo sobre o maior massacre cometido pelos militares portugueses na guerra colonial em Moçambique TEXTO JOSÉ PEDRO CASTANHEIRA

a10 dejulho de1973 Naprimeira

Anotícia saiu no Times de Londres

página discreta uma coluna titulava Massacre português denunciado por padres Local Wiriamu na província de Tete em Moçambique fazendo duas centenas de vítimas todas civis Volvidos 43 anos Wiriamu ainda não ganhou direito a fazer parte dos massacres listados na Wikipedia como nota no prefácio o jornalista Peter Pringle do Sunday Times o então enviado especial a Tete Apesar de vigiado e até revistado pela polícia política DGS o repórter britânico entrevistou um sobrevivente António Mixone de 15 anos baleado num ombro enquanto os pais foram mortos na aldeia de Chaworha Identificado e fotografado era a primeira prova cabal de que ocorrera de facto um massacre Mixone salvou se e esta é uma história fantástica porque o missionário espanhol José Sangalo ao ouvir no transístor de ondas curtas a BBC citar a reportagem do Sunday Times pegou na motorizada e foi buscá lo à aldeia para o entregar à Frelimo que o levou até um local seguro Há outros heróis nesta tragédia que vale a pena nomear Um deles é Domingo Kansande que fez um primeiro registo das vítimas na própria noite do massacre À luz de uma

pequena fogueira e com um lápis anotou

os nomes em bocados de papel pardo que usávamos para enrolar os cigarros Entregou a lista ao padre moçambicano negro Domingo Ferrão que a completou com os nomes dos que pereceram nos três dias seguintes A lista de Ferrão trazia 178 vítimas com os nomes idade sexo estado civil e descendentes sendo 42 de Chaworha e 136 da aldeia vizinha de Wiriamu O relatório incluía pormenores macabros como a descrição de uma partida de futebol improvisada usando cabeças decapitadas como bola Desta documentação foram feitas várias cópias entregues aos bispos de Moçambique e aos responsáveis das missões Alguns exemplares saíram de Moçambique e chegaram ao Vaticano e à Amnistia Internacional Os textos foram mesmo publicados a 4 de junho de 1973 pela Cablo Press uma pequena agência de notícias A denúncia porém não surtiu qualquer efeito Foi neste contexto que o caso chegou ao conhecimento do padre Adrian Hastings Pertencente à congregação dos Padres Brancos fora missionário em África e obteve uma cópia do relatório relativo a Wiriamu em finais de Junho na sede da Sociedade de São Francisco Xavier conhecido por Padres de Burgos em Madrid Autorizado a

Periodicidade: Semanal

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Expresso

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Dimensão: 1917

29­10­2016

Âmbito:

Nacional

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Tiragem:

131300

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divulgar o documento Hastings escolheu o Times para onde telefonou a 6 de julho O interlocutor foi Louis Heren um editor que chefiara o escritório do jornal em Washington aquando do massacre de My Lai cometido pelos militares norte americanos na guerra do Vietname O texto foi publicado nas vésperas de uma visita do primeiro ministro Marcello Caetano a Londres no âmbito do sexto centenário da Aliança Luso Britânica Propositada ou não a coincidência estragou completamente a visita de Caetano e deu uma enorme projeção mediática à denúncia Até porque o Governo de Lisboa começou por negar a existência da localidade que não existiria no mapa

A

Confiante na fonte e sentindo se obrigado a aprofundar o assunto o Times dedicou lhe 208 artigos nos seis meses seguintes e também o Sunday Times seguiu a história Os efeitos foram em cadeia contribuindo para o próprio derrube do regime colonial nove meses depois a 25 de abril de 1974 O autor deste livro Mustafah Dhada chegara a Londres a 16 de agosto de 1972 vindo de Moçambique e colaborava com o Comité para a Liberdade para Angola Moçambique e Guiné Natural de Búzi optara pelo exílio ao contrário de muitos jovens nacionalistas da sua geração que se alistaram nas fileiras da Frelimo Em Londres e como acentua Boaventura de Sousa Santos no prefácio à edição portuguesa Dhada ajudou o padre Hastings no processo de denúncia do massacre Após a independência de Moçambique seguiu a carreira académica Doutorado em História em Oxford é professor na Universidade do Estado da Califórnia e colabora com o Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra Nos anos noventa com uma bolsa do Programa Fulbright instalou se em Moçambique num prolongado e minucioso trabalho de campo sobre o massacre Ao todo procedeu a 216 entrevistas sobreviventes familiares outras testemunhas padres e freiras ex guerrilheiros da Frelimo jornalistas militares portugueses Com uma superfície superior à de Portugal em Tete jogava se muito do futuro da guerra de libertação Era por lá que a Frelimo decidira penetrar para Sul e abrir uma nova frente em Manica e Sofala Como era em Tete que Lisboa fizera o maior investimento do regime colonial a gigantesca barragem de Cahora Bassa cuja progressão a guerrilha apostara em travar Já antes houvera mais do que um massacre em Tete O de Mucumbura fora testemunhado pelo padre espanhol Alberto Font Castellá que chefiava a missão de Uncanha e cujo relato é das melhores páginas do livro Seguira se um massacre idêntico em Inhaminga documentado pelo padre português Luís Afonso da Costa Próxima de Cahora Bassa a região ou triângulo como lhe chama o autor de Wiriamu era uma das rotas de abastecimento

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de armas da Frelimo e fonte de recrutamento da guerrilha Constituída por cerca de 40 aldeias o próprio régulo de Wiriamu tomara a decisão historicamente relevante de apoiar a Frelimo tendo o cuidado e a habilidade de preservar os seus habitantes Os militares e a DGS porém estavam convencidos de que haveria guerrilheiros infiltrados na população o que o autor desmente afiançando que nenhum foi identificado Mas se na perspetiva colonial Wiriamu fora contaminada pelos turras havia que a limpar Foi o que aconteceu a 16 de dezembro de 1972

sob a designação de Operação Marosca envolvendo a 6ª Companhia de Comandos o batalhão de Caçadores 17 e a Força Aérea Manhã bem cedo o alferes Antonino Melo

foi chamado ao quartel general de Tete onde recebeu uma ordem muito clara Vá a Wiriamu e limpe tudo Habituado a inúmeras operações semelhantes partiu O primeiro helicóptero a chegar à aldeia de Chaworha transportava dois agentes da DGS e a terceira unidade da 6ª Companhia de Comandos A população foi reunida no largo principal cujo local exato é mostrado numa foto Foi aí que um agente da DGS Johnny Kongorhogondo ajustou contas com um seu inimigo de nome Consenbera matando o a

tiro Seguiu se a ordem gritada pelo segundo agente Chico Cachavi Aphani wens na língua local ou seja matem nos a todos

A tropa disparou indiscriminadamente enquanto outros habitantes foram trancados numa cubata onde explodiram várias granadas Antonino Melo em entrevista ao autor assumiu e justificou Usámos granadas para poupar balas e por isso empurrámo los para dentro das palhotas Os cadáveres foram amontoados e queimados com a ajuda de capim Nos três dias seguintes o massacre alargou a quatro povoações vizinhas A investigação conduzida por Dhada indicia que a lista compilada pelo padre Ferrão estava muito incompleta A contagem total é de 385 mortos identificados pelo nome

Listados em cinco quadros págs 300 305 repartiam se por cinco aldeias 118 em Chaworha 55 em Juwau 41 em Wiriamu 104 em Djemusse e 1 em Riachu não tendo sido possível determinar a origem dos restantes 66 Ao todo foram dizimados 28 52 da população das cinco povoações Apagadas depois do massacre as aldeias de Juwau e de Wiriamu foram reconstruídas mais tarde por alguns sobreviventes em locais vizinhos dos anteriores Dhada que concluiu o livro vinte anos depois do trabalho de campo termina o interrogando Deverá Portugal limitar se a arquivar tudo e esquecer Deverá pedir desculpa pelos atos de violência em massa cometidos durante a guerra colonial Deverá distribuir indemnizações … resposta que oiço é o som ensurdecedor de um silêncio que me gela o sangue

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