\"Do Tocantins ao Madeira, passando pelo Xingu. Urbanização, Trabalho e Avanço das Fronteiras Hidroenergéticas\". Seminário Grandes Projetos, Território e Populações Locais. PPGAS/Museu Nacional, março de 2016.

June 4, 2017 | Autor: André Dumans Guedes | Categoria: Development Studies, Amazonia, Environmental Sustainability, Desenvolvimento sustentavel
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Do Tocantins ao Xingu, passando pelo Madeira.
Urbanização, Trabalho e Avanço da Fronteira Hidroenergética.

André Dumans Guedes (PPGAS/MN – UFF)





Antes de qualquer coisa, eu queria agradecer o convite, é uma honra falar nesse evento. Gostaria especialmente de agradecer ao Carlos Fausto, que me convidou, e à coordenação do PPGAS.
E começo dizendo que este convite, além de ser uma honra, me trouxe uma série de dificuldades. A primeira e mais óbvia delas: eu não trabalho na Amazônia, e conheço muito pouco da realidade local. Nunca fui a Altamira, nunca estive no Xingu. Por outro lado, eu venho trabalhando com essa questão das barragens ou dos "efeitos sociais de grandes projetos" há mais de dez anos, numa área estranhamente próxima ao Xingu (ou mesmo à Amazônia) – o alto Rio Tocantins. E é nessa "estranha proximidade" que eu quero investir aqui, pra tentar dizer alguma coisa sobre as barragens na Amazônia, a partir de certo esforço para relacionar estas duas realidades.


A necessidade de ampliar nossa imaginação conceitual

E já aí, buscando enfocar essas relações entre essas áreas, eu me envolvo numa certa heterodoxia para lidar com a questão das barragens. Nesse sentido, eu vou aproveitar essa oportunidade também para retomar uma questão que se tornou cara pra mim nos últimos anos. Grosso modo, quero argumentar em prol desse esforço para ampliar ou enriquecer a nossa imaginação conceitual (ou metodológica, ou analítica) a respeito de situações e empreendimentos como os que a gente considera aqui.
Em primeiro lugar eu queria abordar esse tema na medida em que fomos impactados por um acontecimento recente: o rompimento da barragem da Samarco, em Mariana. Nem me alongo aqui no que é secundário, mas que ao menos me situa: o fato de eu ser da cidade vizinha de Ouro Preto, filho de dois professores dessa Escola de Minas que, situada aí há mais de um século, constitui e qualifica a quintessência da engenharia "mineradora" desse país.
Mas o que mais interessa é o vou chamar aqui de "lição de Mariana", lição que me parece que nós, estudiosos e críticos destes empreendimentos precisamos de alguma maneira incorporar. Indo direto ao ponto: nem o mais paranoico e pessimista de nós todos jamais imaginou que a "área de influência" de uma mineradora como a Samarco, localizada no centro da zona metalúrgica de Minas Gerais, chegaria até Abrolhos, no litoral baiano.
Claro, todos estamos familiarizados com essas vulgarizações da teoria do caos, a borboleta que bate as asas em Tóquio e causa um furacão em Nova York. Mas aí, entre as causas e as consequências, existe um "salto" – no sentido que o Bruno Latour dá ao termo – que a gente simplesmente dá, sem pensar muito no que se passa nesse "meio". O problema é que a lama – ou a energia numa linha de transmissão, como veremos adiante – não dá saltos; ela é implacável e enlameia cada metro quadrado de seu caminho, de sua origem até sabe-se lá onde.
Toda essa discussão me lembrou de uma das possíveis razões da popularidade dessa ideia de "área de influência". Essa noção aparece nesse trecho fundamental da legislação ambiental brasileira, a famosa Resolução 001 (a primeira) do Conama, o Conselho Nacional de Meio Ambiente, em 1986. Eu não quero entrar aqui em qualquer discussão sobre a questão do cumprimento ou não dessa legislação, quero apenas apresentar essa resolução como um exemplo significativo da forma como estamos acostumados a pensar a questão dos efeitos ou impactos dos grandes projetos.


RESOLUÇÃO CONAMA Nº 001, de 23 de janeiro de 1986
... [resolução que estabelece os] critérios básicos e as diretrizes gerais para uso e implementação da Avaliação de Impacto Ambiental.
Artigo 5º - O estudo de impacto ambiental, além de atender à legislação (...) obedecerá às seguintes diretrizes gerais:
(...)
III - Definir os limites da área geográfica a ser direta ou indiretamente afetada pelos impactos, denominada área de influência do projeto, considerando, em todos os casos, a bacia hidrográfica na qual se localiza;
Artigo 6º - O estudo de impacto ambiental desenvolverá, no mínimo, as seguintes atividades técnicas:
(...)
II - Análise dos impactos ambientais do projeto e de suas alternativas, através de identificação, previsão da magnitude e interpretação da importância dos prováveis impactos relevantes, discriminando: os impactos positivos e negativos (benéficos e adversos), diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; seu grau de reversibilidade; suas propriedades cumulativas e sinérgicas; a distribuição dos ônus e benefícios sociais.
[negrito: grifos meus]

Dessa resolução, o que eu quero destacar então: em primeiro lugar, a referência à bacia hidrográfica sugere um cuidado em definir essa área de influência em termos à primeira vista amplos. Essa preocupação com a amplitude dos efeitos desses projetos é reforçada pela forma como os impactos são caracterizados: diretos e indiretos, imediatos e a médio e longo prazos, temporários e permanentes; há ainda a menção às propriedades cumulativas e sinérgicas destes impactos. Traduzindo esse ponto da discussão para outro domínio, eu poderia dizer que a história da luta dos atingidos por barragens no Brasil é também a história da ampliação da noção de atingido: das concepções meramente patrimoniais, que consideravam apenas os proprietários legais da terra como elegíveis a compensação, passamos à consideração de que atingidos são também os que foram prejudicados de outras formas; fomos dos atingidos diretos para os indiretos, estes últimos sendo pensados de modo cada vez mais diverso. E poderíamos depois pensar como esta própria noção se expandiu para dar conta dos efeitos de outros empreendimentos: dos atingidos por barragens hidrelétricas aos atingidos pela Vale ou pela base de Alcântara, e nós agora com os atingidos pelas barragens de rejeitos...
Parece-me, porém, que há certos limites ou barreiras para esses movimentos através dos quais estendemos o nosso entendimento, ou a nossa imaginação conceitual, do que são os efeitos desses projetos. Esses limites e barreiras tem sim sua positividade: pois funcionam como se chamassem a atenção para o que realmente importa, para as situações mais graves ou significativas. A definição destas últimas invariavelmente explicita essa outra dimensão do trabalho dos intelectuais envolvidos com o estudo destes empreendimentos: a imbricação de suas pesquisas com as lutas políticas concretas através das quais este ou aquele grupo ou povo reivindica direitos. Assim, usualmente o que limita e barra, foca ou chama a atenção são os conflitos, os enfrentamentos, a atuação dos movimentos sociais.
Acho que nenhuma categoria explicita melhor essa tensão do que a ideia de território. O território consolidou-se nestes debates também como resultado destes esforços para que nossa reflexão vá além da consideração do empreendimento discreto ou isolado, da escala local, dos efeitos mais imediatos ou mais visíveis. Essa ideia nos ajudou a perceber que, na consideração de como um modo de vida é transformado, é preciso atentar para conexões complexas entre fenômenos de diversas ordens, o econômico estando sempre imbricado lateralmente como o cultural, o natural, o comunitário, o cosmológico... Mas o território é também uma noção absolutamente fundamental nestas reivindicações políticas e lutas por direitos, em muito contribuindo para a explicitação das violências associadas a tais empreendimentos. E justamente por isso o território aparece como um ponto de parada nos movimentos analíticos através dos quais a gente mapeia aquelas transformações, efeitos, impactos; ele sugere limites e por isso torna possível a referência a direitos; ele limita barra a continuidade indefinida das conexões, ele "corta" a rede, para falar como a Marylin Strathern.
Estas duas operações associadas ao território – estender a rede, cortar a rede – são, justamente, duas. E se a gente quiser articular nossos estudos a lutas concretas, parece-me necessário recorrer a ambas. Sem extensão há conhecimento limitado de efeitos e impactos, sem corte não há direitos ou política. Mas desconfio que na articulação, complementaridade ou negociação das duas operações há mais complexidade do que parece à primeira vista. Em outros momentos coloquei essa questão como dizendo respeito a essa dissonância ou defasagem entre o funcionamento "político" e o funcionamento "etnográfico" de certas ideias e categorias – ou melhor, a questão diria respeito a essa defasagem entre o rendimento "político" e o rendimento "etnográfico" (ou descritivo, ou explicativo) destas ideias e categorias.
Nesse sentido, essa minha preocupação com a ampliação da nossa "imaginação conceitual" desses efeitos surge também em função do que eu aprendi no meu campo, essa cidade localizada no extremo-norte de Goiás chamada Minaçu. Pois esse município teve o "privilégio" de receber não apenas uma, mas três grandes barragens; para não falar na atividade das mineradoras... Claro que isso não é uma coincidência, e já desde os anos 80 temos alguma clareza sobre a necessidade de considerar como estes empreendimentos n o podem ser considerados isoladamente, principalmente por "puxarem" uns aos outros – uma barragem cria condições para e estimula a construção de uma segunda; usinas hidrelétricas são também comuns nas imediações de jazidas minerais, dada a imensa quantidade de energia para atividades como a mineração, metalurgia e siderurgia. É por isso também que aquela Resolução do CONAMA faz referência às propriedades "cumulativas e sinérgicas" dos impactos dos grandes empreendimentos, ou que mesmo bem antes de Mariana a luta contra as barragens se articulava à luta contra a mineração.
Nos estudos prévios de barragens a serem construídas na Amazônia vêm se tornando rotina a exigência da consideração da viabilidade do aproveitamento desses rios também como hidrovias. Não sei em que pé anda essa questão no momento, mas parece-me claro que no Tapajós a construção das usinas hidrelétricas está estreitamente vinculada à necessidade de escoar, pelo Teles Pires, a produção de nossa mais nobre área de agronegócio, o norte do Mato Grosso. Fico satisfeito de saber quão revoltados e engajados estão tantos de meus colegas com tais projetos e empreendimentos. Mas me assusta o fato de eu não ver muita gente assustada com a grandiosidade e dificuldade intelectual destas tarefas de mapear, descrever, compreender, explicar as relações e conexões sendo agora traçadas entre tais áreas ou regiões, e entre tais atividades e empreendimentos tão diversos. A soja de Sinop e Sorriso, sendo escoada através do Tapajós...
Para encerrar esse ponto. De certa forma, a gente pode dizer que essa tensão se expressa nos próprios títulos desse seminário: como pensar nos "territórios" e "populações locais" sem desconsiderar a Amazônia Ocupada, ou sendo ocupada? É claro que não acho que o que está em jogo aí é apenas uma questão de "escala". Acho sim que estamos diante de uma situação boa para pensar a própria relação de nosso conhecimento com a política, ou para refletir sobre estes esforços através dos quais nós tentamos usufruir de nossa liberdade e criatividade intelectual, conceitual, teórica, etnográfica sem que a gente se desengaje de enfrentamentos e conflitos concretos.

Fronteiras Energéticas

Fazendo referência ao título dessa mesa, chego ao que me parece ser o tema propriamente dito dela: porque pensar a Amazônia ocupada é também pensar como isso veio a acontecer, e porque isso vem ocorrendo de forma particularmente intensa agora. Grosso modo, trato aqui do avanço da fronteira energética na direção da Amazônia – ou seja, "ocupadas" outras regiões, chegou enfim e de fato a hora e a vez da Amazônia. Bom, se eu tenho então alguma coisa a dizer sobre a Amazônia, é então porque o avanço dessa fronteira se deu a partir da área em que eu trabalho. E eu queria então explorar esse "a partir de" de uma ou outra maneira. Em primeiro lugar, eu quero mostrar como a ocupação do "meu" Rio Tocantins tornou possível, facilitou, estimulou, viabilizou e/ou induziu essa proliferação de empreendimentos hidrelétricos na Amazônia.






O mapa indica então como, nos últimos quarenta anos, o Rio Tocantins foi povoado por barragens; e sugere também como não há mais muito espaço para novos empreendimentos aí. Não vou me alongar nisso, mas apenas lembrar que o início desse processo, com Tucuruí, tem a ver com a disposição da ditadura militar de oferecer energia barata e acessível para a produção de alumínio na Amazônia Oriental. E quero lembrar também que a construção subsequente de outras barragens neste Rio Tocantins, a partir dos anos 80, está relacionada com o progressivo esgotamento do potencial hidro-enérgico dos rios do centro-sul do país, já eles próprios suficientemente ocupados.
Isso fica ainda mais claro se a gente se volta mais uma vez para Minaçu, essa cidade no norte de Goiás onde eu trabalho.



Se havia tantas pessoas trabalhando na instalação de subestações e torres de transmissão de energia quando eu estive lá em 2008 e 2009, isso se deve também à posição chave desta cidade no Sistema Elétrico Interligado Brasileiro: com a construção da Usina de Serra da Mesa, foi nesta área que se realizou a ligação entre os dois principais subsistemas do país, pela união do subsistema Sul/Sudeste/Centro-Oeste com o subsistema Norte/Nordeste.
O que isso significa? Imagino que não é exatamente uma novidade para muitos de vocês o fato de que a maior parte da energia gerada por Belo Monte não será destinada ao Pará ou ao Norte do país. Ela vai para o sul, é claro. E como o próprio diagrama sugere, a transmissão dessa energia por uma distância tão vasta não é feita pelo ar, mas envolve ela própria uma complexa infraestrutura de subestações, torres e linhas que, ela própria, não se implanta sem impactos e efeitos que nem tenho como abordar aqui.
Mas se eu quero chegar no Xingu a partir do Tocantins, não é nem tanto via essas cadeias produtivas, ou conexões e redes materiais: quero sim fazer isso a partir dos circuitos e transações associados aos trabalhadores que vêm construindo estas barragens e a infraestrutura correlata. Abordo a questão sob essa ótica, é claro, também em função do que o campo me ofereceu. Quero assim considerar algumas implicações do fato de Minaçu, ao longo de mais de 20 anos, ter sediado as obras daquelas três barragens.

Num primeiro momento, as histórias de meus interlocutores mais velhos me ensinaram o quão traumático foi, para os garimpeiros e agricultores que viviam lá, verem-se obrigados a empregar-se naqueles mesmos empreendimentos que haviam destruído seus modos de vida. Expulsos das margens dos rios e sem outra forma de sobreviver, eles pouco podiam fazer então senão aceitar estes mal remunerados e degradantes serviços e bicos.
Nos dias de hoje as coisas são bem diferentes.



Pois estes vinte anos em que Minaçu foi ocupada com a construção destes empreendimentos, num contexto histórico e geográfico que pouco posso explorar aqui, levaram a cidade a transformar-se num dos principais centros fornecedores de mão de obra qualificada do Brasil para o setor elétrico, as mineradoras e as empreiteiras no geral. Armadores, eletricistas, mecânicos, operadores de máquinas pesadas, caminhoneiros, técnicos das mais diversas ordens foram não apenas formados durante a construção destas 3 barragens – eles foram também inseridos em redes de relações pessoais e profissionais que então se forjavam ou se ramificavam, disseminando-se com o tempo para milhares de canteiros de obra espalhados pelo Brasil, a América Latina e a África.


Sonhos e realidades neodesenvolvimentistas: Minaçu hoje

Neste ponto do meu argumento, e considerada a conjuntura atual, é difícil resistir à tentação de considerar essa realidade à luz do que cientistas políticos e sociólogos vêm chamando de "neodesenvolvimentismo petista" ou "lulismo". Não consigo, assim, deixar de lembrar deste "projeto" político explicitado pelo José Dirceu numa entrevista à Folha de São Paulo, há mais ou menos um ano atrás. "Questionado sobre o que faria se voltasse ao poder, [ele] fez uma longa peroração, coalhada de cifras, sobre a vocação do Brasil na América Latina: construir estradas, aeroportos, usinas, linhas de ferro, portos, a infraestrutura inteira do continente".
Pois para parte da população de Minaçu parece ter sido esse o "prêmio" ou a "compensação" que a cidade recebeu por ter "hospedado" ali 3 usinas hidrelétricas. Tal "compensação", é claro, tem que ser pensada no âmbito de um processo, no tempo. E aqui eu volto para aquela comparação, o que significou para o povo de Minaçu empregar-se em barragens nos anos 80, o que significa hoje. Pois como já sugeri estes jovens profissionais dos dias atuais vivenciam sua experiência de trabalho de forma bastante diversa daquela experimentada por aquela outra geração que mencionei – a dos seus pais e tios, a dos que foram obrigados a apelar a serviços grosseiros e temporários nas mesmas barragens que os atingiram. Entre os anos 80 e o final da década passada, as condições de trabalho nestes setores parecem mesmo ter se transformado muito – e não apenas porque não é mais comum perder um braço ou morrer num canteiro de obra; mas também porque um jovem desses, hoje, tem o que é considerado um ótimo emprego, na sua própria avaliação e na dos que lhe são próximos. Conheço mais de um encarregado – um chefe de turma, sem curso universitário – com salários superiores a 13 mil reais, trabalhando em Rondônia ou no Xingu. E se consideramos os acertos, certas mutretas e outros benefícios, os rendimentos destes encarregados podem chegar a uma média mensal superior a 20 mil reais.
E é um pouco sobre isso que eu quero falar agora, sobre umas poucas e significativas implicações decorrentes da ascensão social desses novos trabalhadores – implicações disso para Minaçu, e também para essa Amazônia hoje sendo ocupada.
Lembro assim que aquelas discussões sobre o "lulismo" e/ou o "neodesenvolvimentismo" destacam com frequência que há aí algo como uma dupla face, uma dupla dimensão. O surgimento, ascensão e virtual decadência desse segmento profissional recém-mencionados articula-se assim ao que vou chamar de primeira face: falo aqui da intervenção estatal em certos setores chave, fortalecendo grandes grupos econômicos privados via o BNDES, estimulando grandes eventos, projetos de infraestruturas ou aqueles capazes de assegurar superávits na balança comercial – destaque aí, claro, para as commodities agrícolas, minerais e energéticas. A Operação Lava-Jato e tudo o que envolve as empreiteiras e a Petrobrás hoje podem também ser situados nessa chave. Aqui me interessa mais articular essa primeira face àquele mercado de trabalho que se apresenta para os jovens de Minaçu. Com tantos canteiros de obras por este país, as disputas entre os diferentes empreendimentos por certos profissionais os leva a ser cada vez mais valorizados.
É claro, porém, que estes últimos são uma parcela restrita da população da cidade, e pela consideração do que se passou com outros segmentos encontramos também uma entrada para a discussão do que chamo de "segunda face" do modelo de desenvolvimento em questão: aquela associada ao fortalecimento de programas e políticas sociais voltadas para os grupos mais vulneráveis.
Pessoas de meia idade, mulheres, crianças, idosos, doentes ou deficientes, os imensos contingentes que nunca se aproximaram da escola, vindos da roça ou não: para a maioria deles a construção das barragens esteve atrelada a transformações substanciais nos modos pelos quais eles se reproduziam materialmente. O garimpo foi extinto; a pesca, a caça e outras formas de extrativismo tornaram-se inviáveis; as áreas rurais foram progressivamente sendo abandonadas – volto a isso adiante. Na cidade, a subsistência dessas pessoas passou cada vez mais a depender de programas de renda mínima, de aposentadorias, de políticas sociais diversas, de ajudas de todo tipo. Aprendi muito sobre isso acompanhando o povo que se vinculou a uma secretaria local do Movimento dos Atingidos por Barragens, fundada em 2001. Até hoje o funcionamento desse movimento está diretamente atrelado à distribuição de disputadas cestas básicas que chegam até ali via o governo federal – ninguém ali passa fome, é certo; mas não são poucos os que se ultrajam com o cativeiro que é viver de ajuda.
A quebradeira geral que caracterizou a cidade na década passada, seja pela inviabilização de uma série de atividades pelas barragens, seja pelo próprio término das obras construindo essas últimas, foi aliviada nos últimos 5 ou 6 anos: de modo aparentemente paradoxal, por outras obras de construção de barragens. E aqui nos encontramos com esse tema clássico da antropologia do desenvolvimento gringa: o papel assumido pelas "remittances", pelas remessas de dinheiro enviadas por "migrantes".
Pois aqueles jovens profissionais começaram a gastar mais e mais, em sua terra natal, do que amealhavam no Rio Madeiro, em Estreito ou no Xingu: seja em investimentos e poupanças, no mercado imobiliário ou um em pequenos negócios montados para os familiares; seja via gastanças e farras potlatchianas. Propício também foi o ambiente econômico em que isso se deu, aí se fazendo presentes outros processos associados àquela face "políticas para os pobres" do neodesenvolvimentismo: aumentos reais do salario mínimo, sobretudo na sua incidência sobre aposentadorias; abundante oferta de crédito incentivando o consumo, associada a um aumento nos índices de bancarização e/ou inclusão financeira desses grupos; e as inéditas possibilidades associadas ao financiamento habitacional, articulados ou não ao onipresente Minha Casa, Minha Vida.
Uma implicação particularmente significativa desses processos, ou da conjunção desses processos, é uma espécie de radicalização daquela urbanização já intensificada após a construção das barragens. Com isso me refiro a essa impressionante e rápida expansão extensiva das periferias e subúrbios da cidade, aliada a essas reformas e transformações em praticamente todas as suas moradias e edificações (em seis ou sete anos as casas de alvenaria substituíram quase que inteiramente as antes frequentes casas de madeira ou pau a pique). Na prefeitura de Minaçu, meu livro não é exatamente popular – não que alguém o tenha lido, o problema está na capa, que retrata um tipo de moradia que, segundo as autoridades, "não representa mais Minaçu".



Urbanização quer dizer aqui também saída do campo para a cidade – e me arrisco a dizer que, hoje, o município de Minaçu tem certamente mais de 90% de sua população na sede urbana. Como já disse, de 2009, quando terminei o campo para o doutorado, até o início desse ano, esse movimento se radicalizou. Agora são os próprios reassentamentos rurais construídos em função da Usina de Cana Brava que são abandonados pelos que aí viviam. Também a maior parte dos kalungas, os quilombolas ocupando a região desde o século dezoito, reside hoje nesta ou naquela periferia urbana.
Mais de dez anos após a inauguração da Usina de Cana Brava, agora vão se delineando, para alguns dos moradores mais atentos da cidade, certos movimentos fundiários que parecem convergir numa mesma direção. Como vários de seus vizinhos, meu amigo Jonas vendeu sua terra a preço de banana, pouco antes do lago encher. Hoje toda aquela região onde ele morava está nas mãos daquele que é considerado o homem mais rico da cidade, e seu provável futuro prefeito. Na paisagem rural do município, vêm surgindo assim essas instituições que, sendo relativamente raras por aquelas bandas, distinguiam Minaçu de outros municípios do norte goiano: as fazendas. As que se estabelecem por ali estão ainda muito aquém de suas congêneres no sul do Estado ou no Tocantins: mas já se pode identificar, no comércio da cidade, novos estabelecimentos destinados a fornecer serviços e mercadorias a esse incipiente e local "agronegócio".
Ao mesmo tempo, multiplicam-se as chácaras e sítios ocupados por gente vinda de Anápolis, Brasília e Goiânia. As autoridades ambientais parecem ser menos rigorosas com os que constroem tais residências na beira do lago das barragens do que com os pescadores ocasionais; se estes últimos são presos, as primeiras continuam a proliferar, mesmo após essa invasão de piranhas no lago jogar por terra os planos de quem pretendia fazer de Minaçu um balneário e cidade turística.

Circuitos, circulações, conexões – e interdependências

Aproximo-me do fim.
Gustavo Lins Ribeiro costumava se referir a um "circuito dos grandes projetos" para falar das relações entre diferentes barragens. Mas esse termo me parece hoje limitado por referir-se sobretudo à circulação e mobilidade dos fatores de produção (o trabalho, sobretudo) necessários para tais empreendimentos.
Ao sugerir aquelas articulações entre a "urbanização" de Minaçu e o trabalho nas obras na Amazônia, eu busco também mostrar que esses avanços da fronteira energética implicam processos e transformações que vão além dessa circulação e mobilidade dos trabalhadores. Mas – imagino que vocês perceberam – eu posso falar isso apenas de acordo com a perspectiva daqueles que já foram anteriormente "engolidos" por esses avanços; e que, hoje, dependem da continuação desses avanços para a sua própria "reprodução".
Com as obras em Altamira já avançadas, com a Lava Jato, com a queda no preço do petróleo e dos minérios, a "economia" de Minaçu já começa a flertar com a crise, de novo. E é todo mundo lá quem tem a perder com isso.
Acho que agora entendo melhor o que, na discussão do desenvolvimento, os economistas chamam de "path dependency", a dependência do trajeto: uma vez que tal ou qual caminho foi tomado, fica muito complicado ou custoso voltar atrás. Durkheim e Norbert Elias não sugeriam coisas análogas, sinalizando que o progresso ou modernidade passam pelo aprofundamento da divisão do trabalho e pela ampliação das cadeias de interdependência?

Pensemos por exemplo nestas redes de relações que constituem, no sentido nativo, a "economia" desta cidade, atrelando toda uma gama de instituições e de pequenos, médios e grandes negócios – tais como aqueles necessários para a instalação, conservação, logística, reparação, abastecimento e/ou transporte das atividades econômicas principais que "puxam" esse avanço das fronteiras energéticas. Para sobreviver na cidade, agora Dona Flor costura uniformes rasgados. E esse senhor abriu com seu filho uma pequena retífica de motores. E é claro que essas imbricações e interdependências "econômicas" envolvem e arrastam praticamente todo mundo, transformando e ampliando o universo no qual vivem e circulam estas pessoas: o desentendimento do adolescente com o traficante de crack implica assim que ele seja mandado para o irmão trabalhando em Altamira; e que a segurança física de sua mãe no norte de Goiás será assegurada por recursos e parentes que afluem e refluem de Estreito, Xinguara e Porto Velho.
Para concluir. Não sei muito bem o que estou sugerindo com isso tudo, ou com o que significa encontrar-se nessa posição de quem foi "englobado" e "alcançado" por estes avanços e fronteiras, "integrando-se" compulsoriamente a... sei lá o quê.
Ocorrem-me agora aquelas escolhas infernais evocadas pela Isabelle Stengers, para essas situações agenciadas pelo capitalismo que capturam por não deixarem qualquer margem à ação. Naquilo que o Henri Acselrad chama de "chantagem locacional" é algo dessa ordem o que está em questão: a necessidade de emprego, renda ou receita pública torna-se de tal forma premente que os investimentos que os assegurarem estão como que perdoados pelo trouxeram junto: poluição, desastres, regressão de direitos sociais.
Moramos todos agora na cidade, e dependemos de emprego e renda para que ela não acabe e se torne mais uma dessas "cidades mortas" que abundam no interior. Como, então, rechaçar as investidas dessa ou daquela grande empresa, ou como não ansiar por mais desenvolvimento? Agora que fomos tragados por esse jogo, parece mesmo cada vez mais complicado deixar de jogá-lo.

Obrigado.
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