DOBES: o \"Projeto RADAM\" das línguas indígenas

July 28, 2017 | Autor: Wilmar DAngelis | Categoria: Research Ethics, Indigenous Languages
Share Embed


Descrição do Produto

DOBES: O “PROJETO RADAM” DAS LÍNGUAS INDÍGENAS 1 Wilmar R. D’Angelis (lingüista da UNICAMP; bolsista Pós-Doc do CNPq)

Por uma “penada” do Presidente da FUNAI o Brasil passa a colaborar oficialmente com um projeto do Instituto Max Planck de Psicolingüística, da Holanda, de “documentação de línguas indígenas”, o DOBES: Dokumentation bedrohter Sprachen, apoiado com recursos da Fundação Volkswagen, da Alemanha. A forma como se deu essa institucionalização já é, em si, passível de muitíssimos questionamentos, inclusive legais, mas sobretudo éticos. Mal chegado à Presidência da FUNAI, ou mais precisamente, 15 dias depois de assumir a presidência do órgão, o antropólogo Márcio Meira – que nunca atuou como indigenista e igualmente desconhece as questões envolvendo a pesquisa de línguas indígenas no Brasil – apressou-se em assinar um estranho “acordo de cooperação científica e tecnológica” com o Projeto DOBES, do Instituto Max Planck. Tal projeto não vinha sendo discutido dentro da FUNAI, por seus técnicos ou setores responsáveis de pesquisa, e não o foi, igualmente, depois que o novo Presidente decidiu encampá-lo. Apenas o Diretor do Museu do Índio (que também não é lingüista, dirigindo um Museu que não conta com lingüistas) sabia do Projeto e negociava pessoalmente tal convênio. A comunidade acadêmica brasileira, sobretudo aquela envolvida na pesquisa e documentação de línguas indígenas, igualmente não foi consultada. Apenas alguns pesquisadores, já pessoalmente envolvidos no projeto DOBES, participavam das articulações com o Museu do Índio. Em outras palavras, trata-se de um “acordo de cooperação” que, apesar de oficial, apesar de envolver dinheiro público, e apesar de passar a ser parte da política de Estado para as populações indígenas, foi encaminhado e resolvido como uma “ação entre amigos”, ou um “negócio de compadres”. Essa é, pois, sua falha ética congênita. O que é, afinal, o DOBES? É um empreendimento internacional, apresentado aos “nativos” (no Brasil, na Argentina, em países do sudeste asiático, etc.) como uma proposta de cooperação ou de “atuação conjunta” (como uma união de parceiros “de igual para igual”), para produção e armazenamento de informação sobre línguas (ameaçadas) de todo o planeta. No caso brasileiro, documentação de línguas indígenas. Os aficcionados ou afiliados ao DOBES no Brasil, para defendê-lo, às vezes tem incorrido no erro de dizer, insinuar ou escrever que esse projeto inaugura o registro digital de línguas indígenas no Brasil, ou coisas semelhantes. Nada mais equivocado. Há muitos registros sendo feitos em formato digital e multimídia, há vários anos, e alguns pelas próprias comunidades indígenas. O que não há é uma centralização dessa documentação em um único lugar e, menos ainda, seu controle por parceiros estrangeiros (o que é o caso do DOBES). O que o DOBES oferece? 1. Dinheiro para pesquisadores selecionados (bolsa e recursos). Realmente é atrativo, em países como o nosso em que os recursos para pesquisas são escassos e, muitas vezes, mal empregados. Mas, curiosamente, as bolsas do DOBES para pesquisa de línguas indígenas do Brasil foram destinadas, até aqui, a pesquisadores estrangeiros ou a brasileiros que moram no exterior. Logo, não parece ser o caminho para desenvolver a pesquisa brasileira. 2. Tecnologia de armazenamento digital de arquivos de som e imagem e sua catalogação informatizada. Isso não seria impossível fazer no Brasil, com recursos de 1

Publicado em http://www.jornaldaciencia.org.br/Detalhe.jsp?id=51538 (Jornal da Ciência, 18.out.2007)

órgãos federais (como o IPHAN-MinC e a própria FUNAI, que vai destinar recursos ao convênio DOBES), estaduais (como FAPESP, FAPEAM, etc.) e de empresas (Petrobrás, por exemplo, que tem apoiado programas de documentação e patrimônio). A pergunta é: na falta desse investimento brasileiro, devemos embarcar em qualquer proposta de origem e interesses focados no exterior? Antes de decidir que investirá milhões do dinheiro público e destinado às comunidades indígenas brasileiras, em um projeto dirigido do exterior, o Presidente da FUNAI não deveria perguntar-se se é possível construir algo melhor e mais interessante em nosso próprio país? 3. Acesso (controlado, mediado, filtrado) a fontes de línguas ameaçadas, de muitos lugares do planeta. Isso acontecerá, de uma forma ou outra, como meio de justificar e garantir a legitimidade do projeto. Pouquíssimos pesquisadores no mundo iriam colaborar com um projeto que só pedisse entrada de informações sem oferecer alguma contrapartida. No entanto, parte considerável da documentação reunida não será de acesso irrestrito (parte dela, pode-se dizer, será mesmo de nenhum acesso, porque o próprio pesquisador que carregou os arquivos não precisa do DOBES para acessar seu material, e será ele o único a poder acessá-la). Pergunta-se: que ingenuidade poderá crer que o material armazenado no Instituto Max Planck – detentor das máquinas (inclusive aquela que, no Museu do Índio, fará o link com a central na Holanda), de sua tecnologia e da tecnologia dos softwares – permanecerá intocado, atuando o Instituto simplesmente como armazenador desinteressado de toda essa informação? E o que espera ou pretende o Instituto Max Planck para o médio prazo (digamos, daqui a 50 ou 60 anos), quando boa parte dos investigadores que fornecerá o material dos arquivos estiver já desaparecida? Queimará os arquivos? Irá declará-los patrimônio brasileiro e devolvê-los ao país? O que o DOBES precisa? – Pessoas que realizem ou possam realizar registros documentais (em suporte digital) de línguas e práticas culturais de sociedades indígenas e que alimentem, com esses registros, o acervo do Instituto Max Planck de Psicolingüística. O que o DOBES não pretende e o Max Planck não precisa? – Desenvolver a pesquisa de línguas indígenas no Brasil e promover a formação de pesquisadores brasileiros em línguas indígenas. A perspectiva aqui em jogo é a velha perspectiva colecionista do século XIX, que levou para a Europa um incalculável acervo de cultura material indígena. As diferenças são duas: (a) no século XXI, o suporte é digital e o envio é on-line; (b) no século XXI o Brasil não é um país desprovido de condições materiais e tecnológicas, e muito menos desprovido de pesquisadores capazes. A propósito, em recente evento muitíssimo representativo do esforço brasileiro em favor das línguas indígenas (I Workshop sobre Línguas Ameaçadas – Brasília, 4 e 5 de outubro), apresentei breves considerações sobre duas perspectivas pelas quais são encaradas as línguas indígenas no Brasil e seu futuro: à primeira, denominei de “perspectiva de conservação in vitro” ou “museológica”, e à segunda, denominei “perspectiva de preservação in loco” ou “ecoglótica”. O Projeto DOBES é tipicamente uma ação voltada à “conservação in vitro”, quando o momento é de investir pesados recursos na manutenção e fortalecimento das línguas indígenas, para garantir sua “preservação in loco”. Por fim, há uma leitura política, não apenas possível, mas absolutamente necessária. O DOBES é um projeto concebido na Holanda e Alemanha, voltado para uma ação mundial. Não há qualquer particular relação com o Brasil, a não ser o especial interesse em um país com diversidade lingüística muito grande e uma rede hoje bastante ampla de pesquisadores, agentes oficiais e ONGs que podem alcançar a maior parte da população falante dessas muitas línguas. O DOBES é um projeto para concentrar informação que, por si só, constitui importante fonte de poder e, a médio e longo prazos, fonte de recursos.

Em suma: o DOBES padece, na origem, do vício colonialista que parte da Europa ainda mantém, ao relacionar-se com o Terceiro Mundo. Não é um projeto em que a comunidade acadêmica brasileira e as organizações indígenas brasileiras foram chamadas a dizer o que é necessário ou mais urgente fazer, no que diz respeito ao registro e ao salvamento de línguas indígenas brasileiras, e de que modo o Instituto Max Planck poderia contribuir, em parceria. O DOBES é um projeto com arquitetura pré-definida, longe do Brasil e das populações indígenas, para o qual se busca o engajamento dos pesquisadores nativos. Seus objetivos e interesses estão fora do Brasil, mas alguns benefícios individuais buscam garantir a adesão de uma parcela da comunidade acadêmica e, no caso, por vias indiretas – e bastante questionáveis – levaram à adesão da Presidência da FUNAI (não, necessariamente, do órgão, mas isso não muda os impactos e conseqüências). Na década de 1970, a ditadura militar brasileira firmou um convênio de cooperação com os Estados Unidos, para execução do Projeto RADAM (Radares da Amazônia). O projeto foi executado por uma aeronave da empresa texana Litton Industries, usando câmaras espectrais, sensores infravermelhos e radar lateral, que revelaram os contornos topográficos da selva, incluindo anomalias geológicas que sugeriam depósitos minerais. Segundo Colby e Dennet (Thy will be done: the conquest of Amazon, 1995), “quando a elaboração de mapas terminou 6 anos depois, a Amazônia tinha perdido muitos dos seus últimos segredos. Por 7 milhões de dólares, a Litton conseguiu detalhes cartográficos dos minerais, da sua densidade, os tipos de vegetação de uma área que cobria 4 a 5 milhões de quilômetros quadrados, que incluiam o solo da selva até à profundidade dos seus minerais”. As conseqüências todas do projeto RADAM não se esgotaram (a continuidade da exploração mineral – sem fiscalização – nas terras dos Waimiri, separadas, a propósito, do território indígena pelo General Figueiredo, é apenas um exemplo). Sobre aquela obra da ditadura brasileira, escreveu Eduardo Galleano (As veias abertas da América Latina): “Os relatórios e as fotografias obtidas no levantamento da extensão e profundidade das riquezas secretas da Amazônia foram postos nas mãos das empresas privadas interessadas no assunto, graças aos bons serviços da Geological Survey, do governo dos EUA. Nesta imensa região, comprovou-se a existência de ouro, prata, diamantes, gipsita, hematita, magnésio, titânio, tório, urânio... etc.”. No Brasil, com algum descompasso temporal, também tivemos acesso, pouco a pouco, à maior parte da informação reunida por aquele projeto, mas os grandes beneficiários dela não foram os brasileiros, nem a Amazônia. Parece que temos chance de repetir a experiência, por uma ‘penada’ inconseqüente do Presidente da FUNAI: vem aí o RADAM das línguas indígenas.

Lihat lebih banyak...

Comentários

Copyright © 2017 DADOSPDF Inc.