Doce Amianto e a Teoria Queer

June 3, 2017 | Autor: O. De Oliveira Is... | Categoria: Queer Studies, Cinema Studies
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"tracing the processes by which we become subjects when we assume the sexed/gendered/'raced' identities which are constructed for us (and to a certain extent by us) within existing power structures" (tradução livre)
Grifos da autora


@ Amianto
O trabalho de Judith Butler sobre teoria de gênero mudou o jeito que se pensa o sexo, sexualidade, gênero e a linguagem. Grande parte das teorias de Butler questionam a formação da identidade e subjetividade "traçando os processos por quais nos tornamos sujeitos quando assumimos as identidades de sexo/gênero/raça que são construídos para nós (e, certamente, estendidas por nós) dentro das estruturas de poder existentes". Existe uma dificuldade de classificar os trabalhos da autora dentro de um campo específico. Por causa da grande importância dos pensadores Michael Foucault (1926-84) e Jacques Derrida (1930-2004) em seus trabalhos, alguns pesquisadores a classificam como pós-estruturalista, mesmo que Butler seja igualmente influenciada pelas teorias psicanalíticas, feministas e Marxistas.
A teoria de Butler sobre sexo, raça e gênero rejeita a noção essencialista de que eles são biologicamente determinados. O Essencialismo pregava a oposição binária de sexo, gênero e raça, onde, para qualquer identidade específica, existiram um grupo de atributos e características que seriam necessários para que fossem identificadas e funcionais. Ao invés disso, Butler – junto de outros teóricos – argumenta que eles seriam socialmente construídos e fluídos em sua interpretação e expressão. Ela propõe um grupo de "práticas rotineiras baseadas na teoria de performatividade de gênero". Partindo da célebre frase de Simone de Beauvoir, no livro O Segundo Sexo, "não se nasce mulher, torna-se", Butler afirmar que não há relação entre corpo e gênero. Um sujeito pode ter um corpo "feminino" não necessariamente precisa ostentar modos femininos da forma que o binarismo homem/mulher impele. É possível, até certo ponto, escolher o gênero, mesmo que seja apenas como se apresenta o gênero.
Um ponto importante a se ressaltar nos estudos de Butler é que, para ela, identidade de gênero não é uma perfomance, mas sim, que essa performance existe antes mesmo daquele que a performa. Não há um ator; a performance cria "a ilusão de um núcleo interno e organizador do gênero" (BUTLER, 2015 p.235). No livro Problemas de Gênero, ela constata o seguinte:
Nesse sentido, o gênero é sempre um feito, ainda que não seja obra de um sujeito tido como preexistente a obra. (...) Não há identidade de gênero por trás das expressões do gênero; essa identidade é performativamente constituída, pelas próprias "expressões" tidas como seus resultados. (BUTLER, 2015. P. 56)
Ao falar de identidade, Butler considera a coerência tanto desejada como idealizada. Esse desejo produz o efeito de um núcleo ou substância interna, mas é produzido através de palavras, atos e gestos na superfície do corpo. Uma identidade incoerente leva a dilemas de identidade, como pode ser visto em casos de transexualidade, onde o corpo não condiz com a identidade de gênero do sujeito.
No filme Doce Amianto, temos Amianto, um personagem feminino, interpretado por um ator. Amianto se caracteriza pela sua não conformidade com o que lemos como feminino. Sua masculinidade é aparente, apesar de sua voz aguda, suas roupas femininas, seus trejeitos e principalmente sua fragilidade emocional – algo que sempre foi tido como uma fraqueza das mulheres. Assim, não há certezas quanto à identidade de gênero de Amianto. Seria ela uma mulher transexual? Uma travesti? Ou então, a escolha por um ator seja apenas um artifício usado no filme para causar impacto no espectador?
Figura 1 – Amianto
Fonte: PrintScreen do filme Doce Amianto (2013)
Outro personagem emblemático é Blache. É a melhor amiga de Amianto e a conforta em suas desilusões amorosas. Sua aparência é muito impactante logo de início, pois Blanche apresenta uma vasta barba e cabelo bem curto. Além disso, Blanche está morta, o que é demonstrado visualmente com um leve brilho azulado a sua volta. Mesmo assim, Blanche é feminina. Existe suavidade em sua fala e em seu tom de voz; e os trejeitos delicados – que traz referencia das fadas – remetem a feminilidade. Visualmente, a maquiagem carregada nos olhos e a vestimenta – mesmo que bastante precária – a configuram como uma mulher. As dúvidas que se levantam sobre a identidade de gênero de Amianto também se apresentam em Blanche, talvez de forma mais intensa, em razão de seu visual muito mais ambíguo.
Figura 2 - Blanche

Fonte: PrintScreen do filme Doce Amianto (2013).
Ao longo desse capítulo, analisarei essas suas personagens e suas performances a luz das teorias de Butler.
Aparência e comportamento
Ao falar de identidade pessoal, a autora sublinha a importância de coerência e consistência entre a performance e a percepção que o sujeito tem de si mesmo e ela se refere a criação de uma identidade como que fantasia encenada ou incorporação. A ideia de uma produção da identidade ideal de gênero criada no exterior do corpo através de gestos, atos e palavras, e não vindo de um núcleo interno, advoga contra a "ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade reprodutora" (BUTLER, 2015 p. 235). Esses gestos, atos e palavras, junto dessa "ilusão de gênero" são repetições de que é percebido como uma identidade preexistente "original". Segundo Butler (2015 p. 242):
A ação de gênero requer uma performance repetida. Essa repetição é a um só tempo reencenação e nova experiência de um conjunto de significados já estabelecidos socialmente; e também é a forma mundana e ritualizada de sua legitimação.
O sujeito vivenciaria o processo de assumir um sexo, e tal processo se dá por intermédio da identificação com os discursos do imperativo heterossexual , que permite determinadas identificações e nega outras, Nessa matriz de identificação, afirma Butler, há a produção de seres abjetos, constituídos no exterior do domínio do sujeito mas necessários à própria delimitação do que vem a ser sujeitos legítimos.
 [...] a construção do gênero atua através de meios excludentes, de forma que o humano é não apenas produzido sobre e contra o inumano, mas através de um conjunto de exclusões, de apagamentos radicas, os quais, estritamente falando, recusam a possibilidade de articulação cultural. (BUTLER, 2007, p. 161)
Sexo seria uma categoria que engedra a política normatizadora. A materialização do sexo em um corpo é uma imposição social por meio de normas que buscam regular e controlar corpos e subjetividades. Para que a materialidade do sexo e do corpo seja garantida, essa norma precisa ser constantemente citada. É ela que controla os corpos e usa o aparato da sexualidade e o argumento da diferença entre sexos para que essa materialidade seja "concretizada". A constituição do sujeito depende da identificação com a norma do sexo. Nesse processo, a materialidade do sexo envolve a negação da identificação com a abjeção do sexo, ou seja, a emergência do sujeito relaciona-se diretamente à regulação de práticas identificatórias. Para Butler:
Se a formulação de um ego corporal, de um sentimento de contorno estável, se a fixação da fronteira espacial é obtida através de práticas identificatórias e se a psicanálise descreve o funcionamento hegemônico daquelas identificações, podemos, então, ler a psicanálise como uma descrição da matriz heterossexual ao nível da morfogênese corporal? (BUTLER, 2007, p. 168)
Em vários aspectos, Doce Amianto quebra com o sistema de repetição dos rituais de normalização binária de gênero, expondo-os. Nele, o gênero é expresso através de ações, gestos e através da aparência das personagens.
Nas primeiras cenas do filme, vemos Amianto correndo de forma "afetada", isto é, saltitante e com gesticulação teatral, em uma estrada cor-de-rosa. Durante a corrida, ela troca de roupa várias vezes. Todas as suas roupas se enquadram no que reconhecemos como roupas femininas. São vestidos e saias, todos muito coloridos, em cores e estampas que remetem ao universo das mulheres – rosa, roxo, estampa de onça, brilhos, etc. Essa apresentação da personagem dialoga com a performatividade de gênero de Butler quando pensamos na performance da drag. Se considerarmos Amianto uma drag queen, estaremos lidando com três dimensões contingentes da corporeidade significante: sexo anatômico, identidade de gênero e performance de gênero. Quando a anatomia do performista não se relaciona com seu gênero, e os dois não se relacionam com o gênero que está sendo performado; fica claro a dissonância não apenas entre sexo e performance, mas entre sexo e gênero e entre gênero e performance.
Por mais que se crie uma imagem unificada da "mulher" (..), o travesti também revela a distinção dos aspectos da experiência do gênero que são falsamente naturalizados como uma unidade através da ficção reguladora da coerência heterossexual. Ao imitar o gênero, a drag revela implicitamente a estrutura imitativa do próprio gênero – assim como sua contingencia. (BUTLER, 2015, p. 237)
Figura 3 – Apresentação de Amianto

Fonte: PrintScreen do filme Doce Amianto (2013)
Em uma cena dramática no filme, Amianto avista seu amado Rapaz com uma mulher em um bar. Não fica claro se essa visão é do passado, no qual ela retorna à um momento em que os dois estiveram juntos naquele lugar, ou um momento presente, de seu amado com outra. De qualquer forma, Amianto fica arrasada com a cena e foge correndo. Em seguida, a encontramos deitada em sua cama, ao que parece tendo um pesadelo. Nele, Amianto está sendo levada por um longo corredor, usando uma camisa de força. O que mais chama atenção é seu cabelo, que está curto e escuro, bem diferente dos longos cabelos loiros que normalmente ostenta.
A visão de Amianto "desmontada" em o que pode se presumir um manicômio traz à tona a violência com que o binarismo de gênero é imposto em nossa sociedade. Segundo pesquisa realizada pela ONG Transgender Europe em 2015, o Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo inteiro.
Performance de gênero pode ser considerada uma estratégia de sobrevivência quando vista de dentro de um sistema compulsório social. Existem leis e restrições na vida social, cultural e familiar que determinam como é aceitável apresentar – ou performar – o gênero. O estigma atrelado ao ato de sair do binarismo pode ser perigoso para algumas pessoas, dependendo de onde e como elas vivem. Butler assinala que
Os gêneros distintos são parte do que "humaniza" os indivíduos na cultura contemporânea; de fato, habitualmente punimos os que não desempenham corretamente seu gênero. (BUTLER, 2015, p. 241)
Amianto ousa ir contra o sistema que nos encarcera dentro de binarismos performáticos, por isso merece ser punida. É considerada doente, louca, uma ameaça a razão e ao sistema. A sua não conformidade é vista como loucura e a loucura como uma doença pelo mundo psiquiátrico, fazendo-se necessária a busca por uma cura. A cura da loucura se dá pela internação. Foucault, em seu livro A História da Loucura na Idade Clássica, irá dizer que:
A loucura é percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da impossibilidade de integrar-se no grupo; o momento em que começa a inserir-se no texto dos problemas da cidade. As novas significações atribuídas à pobreza, a importância dada à obrigação do trabalho e todos os valores éticos a ele ligados determinam a experiência que se faz da loucura e modificam-lhe o sentido. (...) O internamento seria assim a eliminação espontânea dos 'a-sociais'. (FOUCAULT, 1978, p. 78-79)
Esse acaba sendo o destino daqueles que não se enquadram na regra, a exclusão. Seja ela causada pela internação, morte ou a invisibilidade social que assola os transexuais e travestis no Brasil.
Figura 4 – Pesadelo de Amianto
Fonte: PrintScreen do filme Doce Amianto (2013)
A última sequência do filme é a cena de sexo de reconciliação entre Amianto e o Rapaz. Amianto se entrega a ele sem que ele precise dizer nada e assume o lado passivo da relação. Apesar da dúvida sobre a identidade de gênero de Amianto, não há incertezas em seu papel nesse relacionamento. Amianto é a mulher. Aqui vemos uma representação do contrato sexual, termo forjado por Carole Pateman, nos moldes heterossexuais de relacionamento. Nesse contrato, a mulher tem um papel passivo e de inferioridade social. Tânia Navarro Swain escreve:
Ao assumir a identidade "mulher" estou, de fato, assinando o contrato sexual, heterossexual, assumindo a representação que marca minha inferioridade social. Assumindo o gênero "mulher" e seus atributos de forma acrítica, estou reafirmando a diferença como evidência, diluindo assim as marcas do poder que a estabelece. Assumindo um corpo sexuado nomeado "mulher" estou adotando os caracteres e atributos sociais, corpo imanente e vulnerável às violências materiais e simbólicas do social. (NAVARRO-SWAIN, S/D, p. 3)
Paul B. Preciado, em seu livro Manifesto Contassexual (2014) descreve o sexo como
Tecnologia de dominação heterossocial que reduz o corpo a zonas erógenas em função de uma distribuição assimétrica de poder entre os gêneros (feminino/masculino), fazendo coincidir certos afectos com determinados órgãos, certas sensações com determinadas reações anatômicas. (PRECIADO, 2014, p. 25)
Amianto assume esse papel de inferioridade para ter seu amor de volta, mesmo que não seja considerada uma "mulher real" – que seu corpo não se enquadre nos limites do que se considera feminino biologicamente – ela tem o papel social da mulher. Neste caso, o feminino não é um gênero imposto a corpos preexistentes, mas sim, configura-se como o criador de corpos adequados às limitações deste gênero. Caracterizar o feminino como "sexo frágil", liga-o ao biológico, tornando todas as mulheres obrigatoriamente mais fracas e condenadas à imanência de seus corpos, fracos e deficientes e Amianto é frágil. Como mulher, cabe a Amianto aceitar a penetração e ao homem da forma mais passiva e dócil possível.

Figura 5 – Sexo entre Amianto e o Rapaz

Fonte: PrintScreen do Filme Doce Amianto (2013).

Figura 6 – Blanche e sua barba.

Fonte: PrintScreen do Filme Doce Amianto (2013).



BIBLIOGRAFIA
BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do "sexo". In: LOURO, G. L. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007. p. 151-172.
BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.
EUROPE, T. Trans Murder Monitoring (TMM). IDAHOT. [S.l.]. 2015.
FOUCAULT, M. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Prespectiva, 1978.
KIRKVIK, A. Gender Performativity in Handmaid's Tale and The Hunger Games. Norway: The Arctic University of Norway, 2015.
NAVARRO-SWAIN, T. Corpos construídos, superfícies de significação, processos de subjetivação. Intervenções Feministas, S/D. Disponivel em: . Acesso em: 02 abr. 2016.
PRECIADO, P. B. Manifesto Contrassexual: Práticas subversivas de identidade sexual. São Paulo: n-1 edições, 2014.
SALIH, S. Judith Butler e a Teoria Queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.


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