Documentos privados em arquivos públicos: notas para uma discussão sobre o caso do Arquivo Nacional (Brasil)

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Documentos privados em arquivos públicos: notas para uma discussão sobre o caso do Arquivo Nacional (Brasil)1 Antonio Henrique Campello de Souza Dias Leonardo Augusto Silva Fontes

1. Introdução Previsto na Constituição de 1824, o Arquivo Público do Império foi criado somente em 2 de janeiro de 1838. Originalmente subordinado à Secretaria de Estado dos Negócios do Império, tinha por finalidade guardar os documentos públicos e estava organizado em três seções: Administrativa, responsável pelos documentos dos poderes Executivo e Moderador; Legislativa, incumbida da guarda dos documentos produzidos pelo Poder Legislativo; e Histórica. Em 1893 passou a se chamar Arquivo Público Nacional e em 1911 ganhou seu nome atual – Arquivo Nacional (AN), além de um novo regulamento interno, que estabelecia três seções: Administrativa, Histórica, e Legislativa e Judiciária. Como se vê, a lógica dessa época não reconhecia os “arquivos particulares” ou “privados”2 como “arquivos”. Embora tenha surgido para custodiar os arquivos públicos, o Arquivo Nacional desde seus primórdios adquiriu documentos privados, constituídos de aparente valor histórico. O primeiro acervo privado a ser oficialmente adquirido pelo AN é o do Visconde de Cairu, através de uma doação em 1850 (apenas doze anos após a criação do Arquivo Público do Império). Entretanto, nem sempre houve critérios institucionais bem definidos quanto à aquisição desse tipo de documentação. A partir de que momento se definiu interna e nacionalmente essa questão? 2. Marcos regulatórios e históricos dos “arquivos particulares” no Arquivo Nacional Somente em 1975, com a aprovação de um novo regimento interno através de portaria3 que se criou uma área específica para tratamento técnico da documentação produzida, recebida ou coletada pelas instituições não governamentais, famílias, pessoas ou associações empresariais, que, em decorrência de suas atividades de interesse público, passaram a ter interesse histórico ou cultural – a Seção de Arquivos Particulares (SAP). Esta seção, segundo a referida portaria, devia “adquirir, recolher, registrar, classificar, catalogar, inventariar e conservar: a) Documentação de caráter científico e cultural. b) Documentos de entidades privadas e pessoas físicas para guarda provisória.” Até então, os arquivos privados costumavam ser tratados pela Seção Histórica, onde já havia uma classe de Documentos de Família e Serviços ao Estado, segundo expressão de Machado Portela4. No regulamento anexo ao decreto nº 1580 de 31/10/1893, que mudou o nome da instituição de Arquivo Público do Império para Arquivo Público Nacional, o artigo 6º explicita que [...] Na mesma Seção Histórica haverá armários especiais em que, sob a denominação de – Documentos de Família e Serviços ao Estado – serão arquivados requerimentos e memoriais antigos que estiverem misturados com atestados de serviços, patentes, fés de ofício, certidões de idade, títulos de nomeações, diplomas de condecorações e mercês etc. Também ali serão arquivados os documentos não oficiais que qualquer cidadão queira doar ao Arquivo ou apenas nele depositar, relativos a genealogia; biografia e serviços prestados por si ou por seus antepassados, quer como simples particulares, quer 1

Este artigo é resultante de uma iniciativa de nossa colega de equipe Aline Camargo Torres. Além dela, contou com a colaboração de outros colegas da Coordenação-Geral de Processamento e Preservação do Acervo (COPRA): Ana Carolina Reyes, Ana Lúcia Jatahy Messeder, Antônio Laurindo dos Santos Neto, Beatriz Moreira Monteiro, Diego Barbosa da Silva, Mariza Ferreira de Sant´ana, incluindo a coordenadora-geral Carmen Tereza Coelho Moreno. 2 Entende-se por arquivo privado o “arquivo de entidade coletiva, de direito privado, família ou pessoa. Também chamado arquivo particular.” (DIBRATE, 2005, p.34). É mais abrangente que arquivo pessoal, ou seja, “o arquivo de pessoa física [...] o conjunto de documentos produzidos, ou recebidos, e mantidos por uma pessoa física ao longo de sua vida e em decorrência de suas atividades e função social” (OLIVEIRA, 2011, 35). 3 Portaria 600-B, de 15/10/1975, do Ministério da Justiça. 4 Joaquim Pires Machado Portela foi diretor do atual Arquivo Nacional de 1873 a 1898.

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em cargos públicos, civis, militares ou eclesiásticos. Todos esses documentos poderão ser consultados, pelo público, mas, dos de família, que apenas forem depositados, não se 5 poderá dar certidão senão a quem provar pertencer à família respectiva (grifo nosso)

Essa redação permaneceria inalterada no Regulamento de 1911 (a que se refere o Decreto nº 9.197 de 09/12/1911) e no Regulamento de 1923 (a que se refere o Decreto nº 16.036 de 14/05/1923). De acordo com o regulamento de 1958 (aprovado pelo Decreto nº 44.862 de 24 de novembro de 1958), a documentação de arquivos particulares fazia parte do acervo da Seção de Documentação Histórica e continuava a ser pesquisada, mas não tinha divulgação nem tratamento adequados, devido à prioridade dada aos outros acervos da seção e à falta de quantitativo de pessoal efetivo para atender à demanda: À Seção de Documentação Histórica incumbe recolher, classificar, catalogar, guardar e conservar: Letra J - os documentos de caráter genealógico de origem imperial; Letra L - os relatórios ou memórias de caráter literário, artístico ou econômico apresentados por comissões nomeadas pelo Governo ou oferecidas por particulares.; Letra M – memórias, relatórios, roteiros ou notícias; Letra O – os documentos de origem privada, obtidos por compra, doação ou permuta que tenham interesse histórico.6 (grifo nosso) Mesmo após a formalização regimental da Seção de Arquivos Particulares (SAP), os arquivos privados continuaram sem tratamento e acesso adequados. A SAP ficou até 1980 com uma equipe limitada a estagiários, que realizavam identificações sumárias dos acervos. “Não existiam interesses imediatos, não existiam possibilidades de transferência da documentação, não tínhamos mão de obra necessária para atender à demanda, enfim não existíamos.”7 Esse quadro institucional de descaso com a documentação privada começou a mudar de forma efetiva a partir de 1981, quando uma nova política administrativa do órgão permitiu à SAP cumprir suas atribuições específicas – com a dedicação do trabalho de servidores à documentação nãoidentificada, que consistia na quase totalidade do acervo da seção. Desde então, esse panorama inverteu-se e não há acervo privado sem identificação de conteúdo. Apesar disso, de 369 coleções e fundos privados custodiados pelo Arquivo Nacional, 43 (ou 11,5% do total) têm a forma de entrada e/ou data ainda desconhecida (s)8. Dentro desse contexto de estruturação da SAP, apresentou-se, em 1982, uma comunicação no V Congresso Brasileiro de Arquivologia, intitulada A Experiência da Seção de Arquivos Particulares do Arquivo Nacional9, que descreveu os procedimentos de identificação do acervo adotados pela seção. A mudança de nomenclatura de Seção de Arquivos Particulares para Seção de Documentos Privados ocorreu com o novo regimento interno aprovado na Portaria 384, de 12 de julho de 1991. Estabelecia-se aí uma definição mais nítida de suas atribuições, passando a competir à seção: I - registrar, arranjar e descrever os documentos de pessoas físicas e jurídicas de Direito Privado sob sua guarda; II - elaborar instrumentos de pesquisa, com vistas à divulgação do acervo e à disseminação das informações; III - prestar informações e apoiar as atividades de consulta, garantindo o acesso aos documentos; IV - emitir certidões de documentos; V - abrir depósitos de documentos privados, com vistas a facilitar a sua localização e a otimizar as áreas de estocagem. (grifo nosso) A portaria n. 173, de 8 de abril de 1992, alterou o nome da Seção para Setor de Documentos Privados; contudo, a redação do texto, no que tange às atribuições, permaneceu idêntica. Esta regulamentação, em relação aos documentos privados, não foi alterada pelo regimento de 17 de agosto de 1994 (Portaria n. 617). O Arquivo Nacional deixou de ser subordinado ao Ministério da Justiça em 2000 e passou a se vincular diretamente à Casa Civil da Presidência da República. 5 Relatório de Atividades de 1982 da Seção de Arquivos Particulares do Arquivo Nacional. 6 Idem. 7 Idem. 8 Dados atualizados, de junho de 2012. 9 De autoria dos membros da SAP à época: Georgina Koifman, Josélia do Carmo Tavares, Luiz Antônio da Costa Chaves, Marcos Luiz Bretas da Fonseca e Marly dos Santos Casal de Vasconcellos.

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Acompanhando essa mudança, o órgão aprovou (pela Portaria n°16, de 4 de julho de 2001) uma nova estrutura interna, em que os antigos setores foram extintos, sendo criadas equipes, como a de Documentos Privados, com praticamente as mesmas atribuições do extinto Setor de Documentos Privados. A volta do Arquivo Nacional ao quadro institucional do Ministério da Justiça, em janeiro de 2011, em nada alterou essa estrutura. A Equipe de Documentos Privados, atualmente subordinada à Coordenação de Documentos Escritos (CODES) do Arquivo Nacional em sua sede no Rio de Janeiro, é a única cujo trabalho é voltado exclusivamente para acervos privados; limitando-se, contudo, aos textuais10. Esta equipe mantém sob sua guarda cerca de 223 fundos e coleções, com datas-limite de 1545 a 2011, incluindo o documento mais antigo da instituição (Ordem do Carmo, 1545). 3. Os arquivos privados na legislação arquivística A partir das transformações no mundo dos arquivos privados, decorrentes tanto de uma nova historiografia quanto, no caso do Brasil, da Lei Federal de Arquivos nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991, esse tipo de acervo adquiriu maior relevância. Além disso, a incumbência do poder público de receber, dar tratamento técnico e guardar os arquivos privados se tornou um dever, desde que a documentação seja identificada como de interesse público e social. Nesses casos, é garantida inclusive a preferência ao Estado na aquisição desses acervos: Art. 2º Consideram-se arquivos, para os fins desta lei, os conjuntos de documentos produzidos e recebidos por órgãos públicos, instituições de caráter público e entidades privadas, em decorrência do exercício de atividades específicas, bem como por pessoa física, qualquer que seja o suporte da informação ou a natureza dos documentos. […] Art. 12. Os arquivos privados podem ser identificados pelo Poder Público como de interesse público e social, desde que sejam considerados como conjuntos de fontes relevantes para a história e desenvolvimento científico nacional. Art. 13. Os arquivos privados identificados como de interesse público e social não poderão ser alienados com dispersão ou perda da unidade documental, nem transferidos para o exterior. Parágrafo único. Na alienação desses arquivos o Poder Público exercerá preferência na aquisição. (grifo nosso)

Criado igualmente por essa lei e vinculado ao Arquivo Nacional, o Conselho Nacional de Arquivos (Conarq) tem por missão definir a política arquivística nacional e assumir a posição central no Sistema Nacional de Arquivos (Sinar)11: Segundo regulamentação vigente12, os arquivos privados, pessoais ou institucionais podem ser declarados de interesse público e social pela Presidência da República, por meio de decreto. Com exceção dos que são assim declarados automaticamente: § 2ºSão automaticamente considerados documentos privados de interesse público e social: I - os arquivos e documentos privados tombados pelo Poder Público; II - os arquivos presidenciais, de acordo com o art. 3º da Lei nº 8.394, de 30 de dezembro de 1991; III - os registros civis de arquivos de entidades religiosas produzidos anteriormente à vigência da Lei nº 3.071, de 1º de janeiro de 1916, de acordo com o art. 16 da Lei nº 8.159, de 1991.13 10 Documentos privados também são tratados por outras equipes sediadas no Rio de Janeiro, subordinadas à Coordenação de Documentos Audiovisuais e Cartográficos; além da Coordenação Regional no Distrito Federal. 11 A formulação da política nacional de arquivos foi tema da I Conferência Nacional de Arquivos, durante a qual foi amplamente discutida por representantes do campo arquivístico e da sociedade civil. Durante a conferência, realizada em 2011, foram aprovadas várias propostas relativas à alteração da legislação, inclusive no Decreto 4.073/2002 – a desvinculação do Conarq ao Arquivo Nacional. 12 Decreto Nº 4.073, de 3 de janeiro de 2002, alterado em partes pelo Decreto nº 7.430, de 2011. 13 Idem.

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Por iniciativa própria ou por solicitação de pessoa física ou jurídica detentora de arquivo que tenha interesse em qualificá-lo como de interesse público e social, é o Conarq quem legitima e oferece subsídios técnicos a essa declaração presidencial, salvo os casos automáticos supracitados. Art. 23. O CONARQ, por iniciativa própria ou mediante provocação, encaminhará solicitação, acompanhada de parecer, ao Ministro de Estado da Justiça, com vistas à declaração de interesse público e social de arquivos privados pelo Presidente da República. § 1º O parecer será instruído com avaliação técnica procedida por comissão especialmente constituída pelo CONARQ. [...] Art. 26. Os proprietários ou detentores de arquivos privados declarados de interesse público e social devem manter preservados os acervos sob sua custódia, ficando sujeito à responsabilidade penal, civil e administrativa, na forma da legislação em vigor, aquele que desfigurar ou destruir documentos de valor permanente.[...]14 (grifo nosso)

Tal solicitação é encaminhada a uma Comissão Técnica de Avaliação, constituída pelo Conarq, e composta por servidores do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico, Biblioteca Nacional e do próprio Arquivo Nacional, segundo resolução do próprio Conarq15. Não há, contudo, nenhum acervo privado do Arquivo Nacional que tenha sido declarado de interesse público e social pelo conselho, pois esse instrumento jurídico tem sido usado até agora para garantir a integridade de acervos sob a guarda de outros detentores. A avaliação quanto ao interesse no recebimento de arquivos privados pela instituição é realizada por técnicos especialistas, do seu quadro funcional – por meio de visitas técnicas, laudos e pareceres. Ao dar entrada na instituição, é agregado a estes acervos o interesse público e social, independente de aprovação pela referida comissão interinstitucional do Conarq. 4. O acervo privado do Arquivo Nacional Cabe ressaltar que, ao longo das décadas, concomitantemente ao crescente interesse pelos arquivos privados, o número de doações desse tipo de acervo disparou. Isso se deu sobretudo nos anos 2000, devido principalmente a dois fatores: o recebimento de filmes em regime de comodato e o chamamento do projeto Memórias Reveladas para a doação de acervos relativos ao regime militar brasileiro (1964-1985). De 161 fundos e coleções adquiridos pelo Arquivo Nacional de 2000 para cá, 90 (ou 83% do total neste período) deram entrada através de um desses dois processos. A tabela seguinte mostra as formas de aquisição do acervo privado do Arquivo Nacional por década, a partir do ano de 1900 (antes disso só 4 fundos/coleções deram entrada no AN, por isso ignorou-se esse quantitativo)16: 140 120 100 80

Doação Compra Comodato Outros

60 40 20 0 1910-1919 1930-1939 1950-1959 1970-1979 1990-1999 2010-2012 1900-1909 1920-1929 1940-1949 1960-1969 1980-1989 2000-2009

14 Idem. 15 Resolução nº17 do Conarq, de 25 de julho de 2003. 16 Nota 1: 43 fundos/coleções têm a forma de entrada e/ou data desconhecida. Nota 2: Fundos/coleções com duas formas de entrada ou com duas datas de entrada, foi considerada a primeira. Nota 3: Outras formas de entrada são: recolhimento, captura, custódia, transferência e incorporação.

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Como se vê, o comodato foi a principal forma de entrada de acervos privados no AN nos últimos anos. A partir de 2002, parte do acervo da Cinemateca do Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro foi transferida, via comodato, para as dependências do Arquivo Nacional, que passou a ser responsável pela guarda e conservação desses filmes, além de vários outros transferidos posteriormente, que não constavam desse acervo original. Estão sob a guarda do AN, atualmente, 123 acervos audiovisuais17, classificados como fundos, recebidos entre 2002 e 2010, sob este regime. Em 2011, a partir de uma decisão político-administrativa, o Arquivo Nacional deixou de receber acervos através desse instrumento legal, a partir da construção de uma política de destinação de espaços reservados para acervos públicos – sua missão institucional –, e acervos depositados. Outro fator para o aumento de doações foi a criação do projeto Memórias Reveladas – Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional em 2009, com a finalidade de “reunir informações sobre os fatos da história política recente do País” 18. Este projeto teve à época grande divulgação midiática, inclusive por meio do Edital de Chamamento Público de Acervos 001/2009 (com base na Portaria Interministerial nº 205, de 13 de maio de 2009), que tornou pública chamada para “a apresentação de documentos e informações sobre o período de 1º de abril de 1964 a 15 de março de 1985, que estejam sob posse de pessoas físicas ou jurídicas, servidores públicos e militares”. Atualmente, a entrada de documentos permanentes no Arquivo Nacional ocorre sobretudo através de recolhimento (no caso dos documentos públicos) e doação (no caso dos privados). Além disso, já se adquiriu acervos por compra e comodato, entre outras formas, o que não ocorre mais. O Dicionário Brasileiro de Terminologia Brasileira (DIBRATE) assim define esses termos:   

Comodato: Empréstimo gratuito por via contratual, com direito de uso por tempo predeterminado. Doação: Entrada de documentos resultante da cessão gratuita e voluntária de propriedade feita por uma entidade coletiva, pessoa ou família. Recolhimento: 1) Entrada de documentos públicos em arquivos permanentes, com competência formalmente estabelecida. 2) Operação pela qual um conjunto de documentos passa do arquivo intermediário para o arquivo permanente.

A tabela a seguir demonstra o fluxo de entrada de acervos privados no Arquivo Nacional:

ETAPAS DE UMA DOAÇÃO DE ARQUIVO PRIVADO NO ARQUIVO NACIONAL 1 - Contato entre doador e Arquivo Nacional. 2 - Transporte por conta do doador, caso não seja possível, caberá ao Arquivo Nacional fazê-lo. 3 - Listagem preliminar do acervo. 4 - Conferência do acervo com a listagem preliminar e elaboração de anexo único. 5 - Assinatura do termo de doação (somente após a conferência e com o parecer da área jurídica do órgão superior). 6 - Processo encaminhado à gerência do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (SIAN) para atribuição de código de fundo/coleção e inserções e/ou alterações de dados do nível 1 do multinível (Esta etapa ocorrerá quando da primeira entrada do acervo). 7 - Processo encaminhado à Coordenação-Geral de Gestão de Documentos para o registro de entrada (REGENT). 8 - Oficialização da doação por meio de publicação no Diário Oficial.

17 Estes dados foram obtidos junto à Coordenação de Documentos Audiovisuais, que informou que os fundos oriundos da Cinemateca do MAM estão em processo de “desmembramento” e sendo autonomizados paulatinamente no SIAN. 18 Texto de apresentação do projeto, retirado do sítio www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br (consulta em 05/06/2012), assinado pela então Ministra-Chefe da Casa Civil Dilma Vana Rousseff.

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Convém destacar que o Arquivo Nacional custodia aproximadamente 933 fundos e coleções19, de natureza pública, privada e mista, sob responsabilidade técnica de sete equipes, vinculadas à COPRA, além da subsede em Brasília. O acervo privado possui a mesma quantidade de fundos e coleções do poder executivo, o que não representa seu volume documental. Entretanto, esse quantitativo absoluto representa a enorme diversidade de conteúdos dessa documentação. Os fundos e coleções sob a guarda do Arquivo Nacional estão assim distribuídos na tabela seguinte de acordo com sua natureza jurídica20:

No Arquivo Nacional encontra-se parte importante da história do Brasil, por meio de aproximadamente 369 coleções e fundos privados, em diferentes suportes documentais, representantes dos períodos da Colônia (Ordem do Carmo, Padre Anchieta, Marquês do Lavradio, Maurício de Nassau e Padre Antônio Vieira), do Império (Gabinete de D. João VI, Marquês de Barbacena), da República Velha (Floriano Peixoto, Prudente de Morais, Afonso Pena), da Era Vargas (Góes Monteiro, Apolonio de Carvalho, Luiz Carlos Prestes), do Regime Militar (João Goulart, Campanha da Mulher pela Democracia, Informante do Regime Militar); além de temas, entidades e personalidades, como os intelectuais (Eulália Lobo, Mário Lago, Humberto Moraes Franceschi), o feminismo (Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, Hildete Pereira de Melo), a imprensa (Correio da Manhã), o rádio (Rádio Mayrink Veiga), a fotografia (Família Ferrez), cartografia (Paulo de Assis Ribeiro, Francisco Bhering), o empresariado e a economia (Bolsa de Valores do Rio de Janeiro), a cinematografia (Cinemateca do MAM), entre outros, que ajudam a contar um lado da história que de outra maneira não seria conhecido. Embora alguns desses acervos sirvam à comprovação de direitos, como Paulo de Assis Ribeiro, Bolsa de Valores e Rádio Mayrink Veiga, seu principal valor é acadêmico, devido a seu aspecto não-oficial. Mas a partir de que momento esses arquivos de vida (diários, correspondências, artigos, textos avulsos, fotografias, contratos, filmes, mapas, sons, passaportes, extratos bancários, atestados médicos, desenhos, currículos, etc) tornam-se relevantes do ponto de vista social, a ponto de integrarem o acervo de instituições públicas? 5. A importância dos arquivos privados como pontes de saber entre a História e a Arquivologia Seja classificado como fundo ou como coleção, os arquivos privados ganharam lugar de destaque crescente na historiografia, sobretudo a partir da renovação trazida pela Nova História, a partir da Escola dos Annales, na fase dos anos 1970, associada mais a uma história cultural, à microhistória e ao âmbito da vida privada. No Brasil, destaca-se a criação de diferentes centros de documentação como demonstração da relevância cada vez maior desses acervos, sendo o caso mais notável o do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil 19 Segundo dados coletados internamente, além de consulta no SIAN (Sistema de Informações do Arquivo Nacional), em processo constante de atualização e inserção de dados no dia 05/06/2012, http://www.an.gov.br/sian. 20 Gráfico da natureza jurídica dos fundos e coleções do Arquivo Nacional (elaborado por Diego Barbosa da Silva e atualizado pelos autores deste artigo).

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(CPDOC), da Fundação Getúlio Vargas. Criado em 1973, ele tem o objetivo de abrigar conjuntos documentais relevantes para a história recente do país, que constituem, atualmente21, o mais importante acervo de arquivos pessoais de homens públicos do país, integrado por aproximadamente 200 fundos, totalizando cerca de 1,8 milhão de documentos. No caso desses políticos e ocupantes de cargos públicos, é muito comum dissociar seus documentos pessoais dos públicos. Em sua correspondência, tida como particular, discutem-se assuntos administrativos e de Estado. Como classificá-los? Diversos países, em suas respectivas legislações, se preocupam com a necessidade de se definir a categoria de documentos dos arquivos de políticos, assim como a necessidade de “regulamentar as formas de custódia e de aquisição – por incorporação, depósito ou doação – e os regimes de comunicação da documentação” (GARCIA: 1998, 179). Portanto, dentro dos fundos e coleções privados, há também muitos documentos públicos, mas não é somente por isso que esse tipo de acervo é relevante. Diferentemente das aparentes oficialidade e monumentalidade dos documentos públicos, os documentos privados são em sua maioria fontes não-oficiais que podem servir à historiografia de modo a colaborar com o dinamismo científico-tecnológico dessas áreas. Entretanto, sua suposta "espontaneidade" também pode ser apenas aparente. Há uma extensa bibliografia sobre a importância desse tipo de documentação para a História e para a Arquivologia, que traz diferentes desafios metodológicos e epistemológicos para as duas áreas e cria, igualmente, pontes de saber entre elas. Os documentos de arquivo, inclusive os privados, nascem com uma função específica, o registro de um momento, de atividades únicas. Uma das maiores dificuldades de se reconhecer como “arquivo” esse tipo de documento tem a ver com o atributo da "naturalidade" ou organicidade comumente associado aos arquivos (públicos, por excelência). O privado não é visto como arquivo porque sua produção não é "natural" - como se o público fosse natural, como se qualquer coisa social pudesse ser natural. Se a produção e/ou acumulação de um arquivo é de uma pessoa, família ou entidade, ele é considerado privado. Muitos arquivistas, até hoje, excluem os “arquivos privados” do conceito maior de arquivo. Ademais, esses arquivos têm ocupado um espaço de discussão teórico-metodológico pouco privilegiado e “poderíamos atribuir essa situação ao próprio lugar em que os documentos produzidos e acumulados pelos indivíduos ocuparam e ainda ocupam no âmbito das instituições com vocação para a preservação dos registros da sociedade” (OLIVEIRA: 2011, 26). Deve-se avaliar, assim, seu valor para a história e para a memória nacionais. Os arquivos privados representam vestígios fragmentados de nossas vidas, parcelas da realidade, registros parciais da (des)organização de pessoas, famílias e entidades. Chega-se, portanto, à sua “artificialidade”. Philippe Artières sintetiza bem tanto a injunção social que nos motiva a “nos arquivar” quanto ao caráter constitutivo desses arquivos: passamos assim o tempo a arquivar nossas vidas: arrumamos, desarrumamos, reclassificamos. Por meio dessas práticas, minúsculas, construímos uma imagem, para nós mesmos e às vezes para os outros [...] Arquivar a própria vida é se pôr no espelho, é contrapor à imagem social a imagem íntima de si próprio, e nesse sentido o arquivamento do eu é uma prática de construção de si mesmo e de resistência (ARTIÈRES: 1998, 9-10)

A identidade de nós mesmos ajuda a constituir uma memória coletiva, até mesmo nacional. Por isso essa prática de arquivamento pessoal sistemático se intensificou a partir do século XIX, com o fortalecimento dos estados nacionais. O reconhecimento dos arquivos pessoais como “fonte de pesquisa para a identidade de uma sociedade – para estudos antropológicos, historiográficos, culturais e até mesmo como fonte para uma análise comparativa em relação ao que é preservado como resultado da gestão pública – implica o arquivista no processo de modo muito particular” (OLIVEIRA: 2011, 40). Podese dizer que implica não apenas o arquivista, mas também o historiador e os demais profissionais das ciências humanas – os arquivos privados suscitam diversas reflexões. Por exemplo, convém diferenciar fundo de coleção. Fundo é o “conjunto de documentos de uma mesma proveniência” (DIBRATE: 2005, 97). Lúcia Velloso Oliveira explica que a coleção pode ser temática e que seu tema pode ser uma pessoa ou uma família. “A coleção constitui-se como uma obra do colecionador e é de responsabilidade somente do colecionador a reunião do conjunto desses 21 Segundo o próprio site da instituição: http://cpdoc.fgv.br/sobre (consultado em 04/06/2012).

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documentos, que seguem critérios determinados por suas escolhas” (OLIVEIRA: 2008, 33). Muitas vezes coleções aparentemente desimportantes possuem maior relevância histórica que muitos fundos de personalidades de grande vulto social. Assim, a discussão de conceitos arquivísticos pode se relacionar diretamente ao campo da História e da Memória. Nesse sentido, quem são os homens, mulheres, famílias e entidades merecedoras de se destacar e figurar no rol das instituições arquivísticas, principalmente as públicas? Após adquiridos e tidos como históricos, como recompor em arranjos documentais a estrutura de vida de cada um deles? Esses desafios vão além da própria importância social que lhes foi conferida. Homens simples têm lugar nesse universo? Será que as políticas arquivísticas conseguem retirar o caráter subjetivo desse tipo de avaliação? Para além dos ocupantes de cargos e funções públicas, como comprovar o interesse histórico-social dos documentos, em si só “historicizáveis”? O que é relevante hoje, pode não sê-lo amanhã. As pessoas mudam; os arquivos e a história, também. Sendo assim, como estabelecer uma política para a entrada de acervos privados no Arquivo Nacional? 6.

Por uma política de acervo

A preocupação com a forma de entrada e o caráter diverso desses acervos não vem de hoje. No já citado trabalho A experiência da Seção de Arquivos Particulares do Arquivo Nacional isso fica explícito: Da análise do acervo já identificado, do material do Arquivo do Arquivo relativo à documentação privada e dos regulamentos e regimentos legais da instituição em seus itens específicos, foi possível observar que até então a definição de uma linha de acervo para os documentos de caráter privado era tão fluida que pode ser considerada inexistente, o que define a grande variedade de conteúdos da documentação (grifo nosso) Essa indefinição ainda perdura. Nesse sentido, cabe destacar a reativação, em maio de 2012, do Grupo de Trabalho Política de Acervo, composto por diversos técnicos da CoordenaçãoGeral de Processamento e Preservação do Acervo do Arquivo Nacional, que discutirão essa questão e deverão entregar em fevereiro de 2013 uma proposta de política de acervo para a instituição – pois cabe a esta coordenação (conforme o item III do art. 7º, da portaria nº 2.433 de 24 de outubro de 2011) “sugerir ao Diretor-Geral, em articulação com a Coordenação-Geral de Gestão de Documentos, o recebimento de acervos por doação”. Os processos de aquisição de documentos privados em arquivos públicos ainda carecem, portanto, de critérios mais objetivos, como no caso do Arquivo Nacional. Muitos acervos privados, de possível interesse público e social, continuam, entretanto, sob a posse de particulares que não sabem para onde e como destinar essa documentação. Apesar de sua importância para a história, “o interesse do Estado pelos fundos de proveniência privada é, em grande medida, uma novidade dos tempos recentes” (GARCIA: 1998, p. 176). Referências: ARTIÈRES, Philippe. Arquivar a própria vida In: Arquivos pessoais – Revista Estudos Históricos. Rio de Janeiro: Ed. FGV, vol 11, nº 21, 1998. ARQUIVO NACIONAL. http://www.arquivonacional.gov.br BARBOSA DA SILVA. Diego. Os documentos do Poder Judiciário no Arquivo Nacional: Descrição e acesso à informação. In: 2º Congresso Brasileiro dos Arquivos do Poder do Judiciário. Brasília: TSE, 2012. (Prelo) BRASIL. Lei no 8.159, de 8 de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8159.htm BRASIL.

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janeiro janeiro

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