Dom Casmurro: perdas e personagens

August 25, 2017 | Autor: Peron Rios | Categoria: Portuguese and Brazilian Literature, Brazilian Studies, Brazilian Literature
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DOM CASMURRO : PERDAS E PERSONAGENS POR PERON RIOS

A morte é grande. Nós lhe pertencemos, Boca sorridente. Quando nos acreditamos no coração da vida Ela ousa de repente Chorar em nós. Rainer Maria Rilke

Os romances de Machado de Assis, desde Ressurreição a Memorial de Aires, atam um laço inextricável com a memória, com seu refazimento. Não se trata apenas de lembranças, já que estas não têm dinâmica, parasitando o que um imaginário poderia ofertar. A fotografia das lembranças até podem ser exatas, pelo menos do ângulo

em

que se deixam flagrar. Mas todo rememoriar

necessariamente ficcionalização, seleção das

implica

imagens que convêm, uma sintaxe

aliciante, fazendo-nos crer no realismo de sua descrição. Gaston Bachelard, em seu Poética do Devaneio, acentua ao leitor : memória e imaginação são um complexo insolúvel. De fato, o inconsciente individual filtra tudo o que pode asfixiar ou amortizar, fazendo possíveis vidas que, uma vez franqueadas ao livre acesso da memória perfeita, não iriam além de uma consumação inevitável. Nas Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador-personagem aparentemente põe à margem qualquer restante auto-estima que conviesse na sua escritura. Morto, de que lhe serviria alguma glória, afinal ? Obviamente que esse é um discurso que também escamoteia, não excluindo as possibilidades de uma suspeita do leitor. A melhor maneira de mascarar é, como faz o Diabo, misturar no meio de verdades luminares, as mentiras que mais nos interessam. Além disso, o niilismo que seria próprio a um morto não sintoniza com a necessidade de escrita. Tal qual Nietzsche ou Cioran, não poderia ser desapegado a tudo um sujeito que tem tamanho acuro com objetos de linguagem. Toda relação com a linguagem, com a cultura, se perfaz por via de um luto necessário. A memória coletiva, como lembra Françoise Dastur

em seu livro sobre a morte, já se lastreia por essa relação com os ancestrais, com os mortos que ecoam sua voz no alto silêncio das bibliotecas, por exemplo : “Que a vida do homem seja uma vida ‘com’ os mortos, eis aí, talvez, o que distingue verdadeiramente a existência humana da vida puramente animal, como sugere um fragmento de Heráclito, freqüentemente citado, o qual diz que ‘o caráter do homem é seu demônio’, a crença grega em um daimon pessoal que acompanha cada homem ao longo de sua vida não fazendo senão expressar essa comunidade de vida com o espírito dos ancestrais que é o fundamento unitário de todas as culturas ”1.

O romance Dom Casmurro, do mesmo Machado de Assis se inscreve nessa relação imediata com a morte. O narrador Bento Santiago, autor de suas memórias pessoais, inicia sua escrita por uma sugestão dos retratos de personalidades históricas, como Nero ou Massinissa. A partir daí, é exumado um passado sob a terra das lembranças, ressurgindo

na voz de “inquietas sombras”. O texto, aliás, vem

permeado de um entrelaçamento simbólico necessário à sublimação da dor ( processo essencial do personagem enlutado ), o que é enfaticamente demonstrado pela escritora americana Helen Caldwell, em seu estudo O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. Há elementos sempre recorrentes na narrativa, porém de modo descontínuo, surgindo vez por outra sob ícones diversos, mas num uníssono semântico. Existem, dessa forma, afluentes de sentidos que desembocam num mar infinito de relações, numa sintaxe rizomática, onde um símbolo não cessa de significar por baixo de um solo de silêncios. A casa, por exemplo, pode ser compreendida como um símile do próprio Santiago : embora meticulosamente reconstruída ( ela, pelos arquitetos e pintores, o personagem pelo seu cuidadoso processo escritural ), acaba por se desconhecer, como se tivesse diante de si um líquido espelho : o tempo é essa pedra lançada que põe rugas no rosto inicialmente intocável. Passagem bem conhecida vem demonstrar o que deixamos dito acima : “ O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a 1

DASTUR, Françoise. A Morte : ensaio sobre a finitude. Trad. Maria Tereza Pontes. Rio de Janeiro : Difel, 2002. pp.16-7.

fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”2.

Machado de Assis, no capítulo V de Esaú e Jacó ( “Há contradições explicáveis” ), mais uma vez dentre tantas ( Machado instaurou uma discreta, mas profunda pedagogia da leitura ), alerta o seu leitor : “ Explicações comem tempo e papel, demoram a ação e acabam por enfadar. O melhor é ler com atenção” 3.

Seguindo suas

instruções, podemos perceber que no romance Dom Casmurro não existe ênfase na perda de nenhum dos entes queridos, nem mesmo da própria Capitu. O desespero maior é a perda de si, de um “eu” sonhado e localizado alhures, em algum lugar no tempo. O filósofo dinamarquês Sören Kierkegaard, em seu ensaio O Desespero Humano, nos diz que “ o desespero pode tomar três formas : o desespero inconsciente de ter um ‘eu’ – o que é verdadeiro desespero; o desespero que não quer; e o desespero que quer ser ele mesmo” 4.

Bento Santiago sente a necessidade de construção de um “eu”, de flagrar uma identidade imóvel e eterna, uma vez que ele não consegue perceber a existência como uma fluência heraclítica, como um eterno devir que se fabrica nas mudanças que não se percebem em pequenos espaços de tempo. A idéia fixa ( leitmotiv da escrita machadiana ), o fixo olhar, fazem ver na curvatura sutil das duas pontas do horizonte um largo fio, retilíneo e imutável. Essa carência de amplitude é que permite o comentário final de D. Casmurro relativo a Capitu : “ se te lembras bem da Capitu menina, hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a fruta dentro da casca”.

Esse positivismo determinista da personagem, a sua resistência às

mudanças são uma evidente incapacidade de lidar com elas. Bento Santiago, além de não ter sabido enlutar o seu amor por Capitu, criou uma transferência, uma aderência da imago materna na figura da esposa. A mãe protetora, porém, não se pôde espelhar na independência de Capitu. O nosso advogado não conseguiu assimilar que entre a infância e a madureza existe um descompasso. Entre a longínqua 2

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. p. 14. ASSIS, Machado de. Obras Completas. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1997. p. 955. 4 KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Trad. Alex Marins. São Paulo : Martin Claret, 2002. p. 19. 3

lembrança do passado e a percepção do imediato presente há o que Freud chama de unheimlich, desfamiliar. Na casa velha em que habitou, Bentinho vê o tronco da árvore, em forma de ponto de interrogação, que “pasmava do intruso”. Dentre essas desfamiliaridades, temos a da relação amorosa. A Capitu de outrora não poderia coincidir com a do presente, e o amor de ambos ganha uma nova fisionomia. Bentinho não estava preparado para perceber que às vezes amamos até com mais intensidade, porém sempre de um modo diverso. O que é evidente, já que nem eu nem o outro somos os mesmos, nossas necessidades passam a ser ligeiramente diferentes, assim como os afetos e ideais que cultivamos. A diferença quebra confortáveis expectativas. Sempre há uma distância entre o amor da infância e o da “maturidade”. Entretanto, Bento – até pela educação de excessiva proteção que recebeu – jamais conseguiu, ao contrário da precoce Capitu, revelar essa compreensão. A forma de amor, os gestos que se fizeram durante tanto tempo cotidianos, as rotinas que repassam uma idéia de estabilidade, o fato de tudo isso ganhar outra fisionomia nos faz sempre imaginar que o outro está amando menos. Essa imaginação ( aliás bem fecunda em Santiago ) é o próprio Iago shakespeariano. Note-se porém que tudo teve seu início na ausência de um luto necessário. Não se repõem perdas. Bento Santiago tem sempre uma impressão dual de tudo que o circula. A simbologia dos pares casados, também acentuada no estudo de Helen Caldwell, vem mostrar que há uma potencialidade esquizofrênica na personagem Santiago, sempre cindido entre a lei de Deus ( do seminário ) e a lei dos homens ( da advocacia ), entre a mãe santíssima e a Capitu diabólica, findando por ele próprio se dividir entre o Santiago de outrora e o Dom Casmurro escritor. Somos, aliás, levados a crer que o estado esquizóide foi atenuado graças à linguagem que o espalhou, retirou essa concentração até certo ponto psicótica pelas vias de uma purificação catártica da escrita. O que só vem nos fazer crer mais uma vez que, de fato, o homem só se salva na linguagem. O trabalho restaurador da psicanálise, que é ele senão essa possibilidade de organizar a entropia da angústia, do recalque, do não-luto, num equilíbrio, ainda que frágil, da expressão ? É a dualidade entre desordem e geometria

a que se refere Osman Lins. Ou a fixação de vertigens, desejo maior do adolescente Arthur Rimbaud. Uma das hipóteses de Kierkegaard para o desespero humano era a ausência de juízo de um Deus superior. O desespero se edifica com a pedra fria de um silêncio de Deus. Na solidão, esse silêncio ecoa ( “vindes outra vez, inquietas sombras?” ). A impossibilidade da certeza da retidão de nossos atos cria esse estado de angústia, não raro insaciável. É possível que a extradição de Capitu o tenha afundado numa angústia mascarada de leveza. A partir dessa esteira, poderíamos supor que, no romance, a escritura de Santiago é um modo de sufocar não somente o próprio silêncio, mas talvez mais do que isso : uma forma de atenuar o eco do silêncio de Deus. O desânimo, a ironia cética diante do mundo, são atitudes próprias de quem já alcançou o desencanto. Aliás, a maioria das personagens machadianas revelam a ironia como uma defesa, maneira de subtrair uma melancolia profunda, retirar-lhe o peso, esvaziá-la na fenda dos lábios, ocasionada pelo riso. O abandono, a renúncia são corolários de um processo do sujeito enlutado. Em Sol Negro : depressão e melancolia, Julia Kristeva pontua que “examinando o desencanto, mesmo cruel, que sofro aqui e agora, este parece entrar em ressonância com traumas antigos, a partir dos quais me apercebo de que jamais soube realizar o luto”5.

Freud, por sua vez, já nos havia dito algo semelhante em seu texto sobre o luto e a melancolia : “ O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama, encerra o mesmo estado de espírito penoso ,a mesma perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que este não evoca esse alguém -, a mesma perda da capacidade de adotar um novo objeto de amor ( ... ) ”6.

Com efeito, qual a intenção de confluir energias na escrita acusativa de um amor que não retorna ? Quando faço isso, lembraria Chico Buarque de Holanda, é 5

KRISTEVA, Julia. Sol Negro : depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro : Rocco, 1989. p. 12. 6 FREUD, Sigmund. Obras Completas. trad. Jayme Salomão. v. 14. Rio de Janeiro : Imago, 1967.

um modo de “me vingar a qualquer preço, adorando pelo avesso”. Afinal de contas, finaliza Kristeva, “minha depressão assinala-me que não sei perder : talvez não tenha sabido encontrar uma contrapartida válida para a perda”7.

Porém, reduzir o papel da escritura a um ato tão mesquinho quanto a vingança seria fazer estreitas as areias que margeiam um rio caudaloso. Bento Santiago foi, nesse ponto, mais feliz do que a mãe, D. Glória, personagem enlutada do início ao fim da narrativa. O luto infindável dessa mãe “imaculada” exclui, extingue o desejo ( do mundo por ela, dela pelo mundo ) : com um xale preto, sempre de roupas escuras, escondia os encantos do corpo, “por mais que a natureza quisesse privá-la da ação do tempo”. Somos tentados a acreditar que o processo de libertação escolhido pelo filho ( agenciamento da dor por via de linguagem ) preserva maior eficácia. Aqui, o desejo não é expurgado, mas canalizado para uma escrita que, como toda ela, guarda um laço amoroso. Valéria Jacó Monteiro, em Dom Casmurro : escritura e discurso, lembra um capítulo do romance ( “Prazer das dores velhas” ) no qual algumas “doses de masoquismo, segundo o protagonista, ‘se espiritualizam com o tempo’ e ‘chegam a diluir-se no prazer’ ( cap. LXXVII ). Aqui, talvez pudéssemos observar um gozo ( além do prazer ) de escriturar o prazer da dor. Um pressuposto sublimatório que toda escritura, já sustentada por uma certa simbolização, pode construir, ‘espiritualizar com o tempo’ ” 8.

A fala, a escrita, são um processo necessário à sublimação. A insistência, porém, do sujeito na fala sobre o objeto amado e definitivamente extraviado, a atenção em retomar alguma ponta de linguagem que desate toda a cadeia de inquietações, é sempre uma amostra de que o luto ainda se perfaz, não foi definitivamente realizado. Às vezes, negar é denegar ( no sentido freudiano ). Recordo, sublinho, uso modalizadores na minha fala, jogo entonações que apontam para uma 7 8

Idem. MONTEIRO, Valéria Jacó. Dom Casmurro : escritura e discurso. Ensaio em literatura e psicanálise. São Paulo : Hackers Editores : Cespuc, 1997. p. 100.

paixão inscrita e subliminar... mas ainda assim digo a quem faz o favor de me ouvir que esse assunto já me é algo superado e extinto. Em verdade, o fluxo lingüístico tenta ainda fertilizar um terreno ressequido, pleno de carências, e a negação de sua espessura não deixa de ser um modo de auto-persuasão. Desejo afirmar a mim mesmo, e não exatamente ao outro, que isso não tem importância, ou melhor, não pode, não deve ter importância. No instante em que há uma renúncia à glosa, em que se quer de bom grado tergiversar e o tema é, não excluído, mas ignorado, então já se podem vislumbrar sinais de uma cura que o elixir das palavras permitiu sedimentar. A partir dessa reflexão, não seria absurdo sugerir ( embora não se possa afirmar ) que o processo de enlutamento de Bento Santiago se fechou. Assim como Marcel, na Recherche, a escrita atou as duas pontas da vida, fechou o circuito de energia produzindo talvez a luminosidade da leveza. O último capítulo de Dom Casmurro dá suporte a essa possibilidade : “ É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me... A terra lhes seja leve ! Vamos à História dos Subúrbios ”9.

Textualmente, na camada de linguagem concreta ( excluindo-se as entrelinhas ), há uma recusa, uma saturação do assunto. Santiago desloca a direção de seu discurso, quer agora falar de outra coisa. É claro que se poderia contradizer essa suposta leveza com o argumento de que a modulação exclamativa ( “a terra lhes seja leve!” ) esconde ainda algum ressentimento, e que, possivelmente, o desvio para a História dos Subúrbios não passa de mais uma ironia. Não é pretensão, contudo, pôr aqui nada de definitivo no que se refere ao sucesso do caminho sublimatório. Apenas hipóteses a ser consideradas. Antes, porém, deve-se ter idéia da amplitude melancólica – corolário imediato do enlutamento - que habita o protagonista. No capítulo CXXXVI, Bento Santiago planeja dar um fim à existência numa xícara de café : “ O meu plano foi esperar o café,

9

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. p. 184.

dissolver nele a droga e ingeri-la10”. Essa

agressividade contra si mesmo é atitude comum,

e a personagem machadiana ganha também aí uma grande verossimilhança. Freud, no mesmo texto acima referido, nos relata que “se se ouvir pacientemente as muitas e variadas auto-acusações de um melancólico, não se poderá evitar, no fim, a impressão de que freqüentemente as mais violentas delas dificilmente se aplicam ao próprio paciente, mas que, com ligeiras modificações, se ajustam realmente a outrem, a alguém que o paciente ama, amou ou deveria amar” 11.

No estado de melancolia, o sujeito ataca a si mesmo, mas na verdade o alvo é o objeto amado. O suicídio é a forma máxima e radical de assassinar o outro. Destruir esse objeto com eficácia significaria extinguir o corpo que o contém por inteiro : navio sabotado levando consigo uma indesejável tripulação. Freud já havia nos dito, aliás : “ De há muito ( ... ) sabemos que nenhum neurótico abriga pensamentos de suicídio que não consistam em impulsos assassinos contra outros, que ele volta contra si mesmo”.

Essa

vontade desmedida de assassinato, velada, já tinha sido confessada, sem nenhum pudor, no capítulo intitulado “O desespero” ( cap. LXXV ), no qual Bento relata as conseqüências do segundo dente de ciúme que o mordeu ( o episódio do cavaleiro, o dandy do cavalo baio ) : “ Corri ao quarto, e entrei atrás de mim. Eu falava-me, eu perseguia-me, eu atirava-me à cama, e rolava comigo, e chorava, e abafava os soluços com a ponta do lençol. Jurei não ir ver Capitu aquela tarde, nem nunca mais ( ... ). Chamei-lhe perversa. Duas vezes dei por mim mordendo os dentes, como se a tivesse entre eles ( ... ). A vontade que me dava era cravar-lhe as unhas no pescoço, enterrá-las bem, até ver-lhe sair a vida com o sangue”12.

Nas mínimas sutilezas se percebe o trabalho lento, o cuidado formal de Machado com a linguagem, com o efeito estético. A reflexividade, visualizada na ênclise dos pronomes oblíquos, enfatiza o desespero, a solidão da personagem, o esmagamento de seu corpo narcísico, o vislumbre de si num acesso de histeria. É verdade que as ações organizadas por Machado de Assis na fabricação do texto são 10

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. p.172. FREUD, Sigmund. Obras Completas. trad. Jayme Salomão. v. 14. Rio de Janeiro : Imago, 1967. 12 ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. p. 109. 11

uma amostra verossímil dos processos de enlutamento de uma personagem. Entretanto, o acuro escritural ultrapassa o campo da ação, para se perfazer também na figuração do espaço. Na casa, por exemplo, há um quadro em que se retratam a mãe, D. Glória, e o seu marido, Pedro de Albuquerque Santiago13. A mera colocação desse objeto no cenário guarda algumas implicações. A primeira é referente ao abandono de D. Glória, à

desistência, como



foi

acima

pontuado. O

seu

enlutamento

seria

dificilmente realizado, como de fato não foi, com essa lembrança explícita dos objetos de amor, sobretudo uma imagem, “fotografias instantâneas da felicidade”. O olhar, a conservação cotidiana da memória, a preservação da idolatria ( como parece estar dizendo no retrato : “sou toda sua, meu guapo cavalheiro !” ), são adversários demasiado poderosos para que o desejo ali depositado migre para um novo objeto, para que se faça possível uma catexia nova. Uma outra implicação é gravíssima, para usar o vocabulário do agregado José Dias. A convivência com essa fotografia da felicidade cria em Santiago um ídolo, uma ilusão de ideal ( não é gratuitamente que êidolon, em grego, significa imagem ). Não há a relação amorosa concreta no seio familiar. Sem poder conviver com os conflitos, é como se eles de fato não existissem, e houvesse uma adesão em seu imaginário apenas da felicidade intocável, como a que se flagra no retrato. Essa ideologia romântica se faz mais notável em outro instante da narrativa, no capítulo XIV, “A Inscrição” : “Não soltamos as mãos, nem elas se deixaram cair de cansadas ou de esquecidas. Os olhos fitavam-se e desfitavam-se, e depois de vagarem ao perto, tornavam a meter-se uns pelos outros... Padre futuro, estava assim diante dela como de um altar, sendo uma das faces a Epístola e a outra o Evangelho. A boca podia ser o cálix, os lábios a patena. ( ... ) Estávamos ali com o céu em nós. As mãos, unindo os nervos, faziam das duas criaturas uma só, mas uma só criatura seráfica” 14.

13 14

Capítulo VII, “D.Glória”. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. p.31.

Kierkegaard, na obra que mencionamos, diz que “o homem é espírito. Todavia, o que é espírito ? É o ‘eu’. Mas, nesse caso, o ‘eu’ ? O ‘eu’ é uma relação que não se estabelece com qualquer coisa de alheio a si, mas apenas consigo mesmo” 15.

A ilusão romântica de Bento Santiago o leva ao extremo, a um extravio desse “eu” , de modo que ele se reconheça com pouquíssima unidade. Sua personalidade se encontra estilhaçada entre as relações afetivas que enlaça. A sua identidade, longe de adquirir uma autonomia que a solidão acentua, é uma dependência sintática, relacional16. Apenas no olhar do outro é que Bento se reconhece, característica infantil que não foi laborada ou refinada ( basta lembrar que José Dias ofertou a Bentinho o reconhecimento do amor que há muito tempo fermentava, sem ser no entanto percebido ). Bento é o exemplo de personagem que se faz depressivo por não ter realizado um luto essencial. A ironia mais sutil do romance foi o fato de Santiago apenas velar ( e veja-se a ambigüidade da palavra ) o passado, sem havê-lo enterrado. A memória, símbolo da vitalidade e identificação do homem, foi paradoxalmente o elemento originário de uma fragmentação identitária que aloja, inevitavelmente, nuances de seu próprio luto. Na passagem acima citada ( “uma só criatura seráfica” ), a ilusão romântica de fusão dos seres é uma das causas do ciúme doentio de Bento Santiago. A independência de Capitu é sempre interpretada como uma espécie de traição. Eis aí mais uma conjectura : ainda que não houvesse suspeitas de adultério, Capitu seria, de modo indistinto, uma traidora, uma vez que estaria contradizendo a todo instante as expectativas não só do protagonista, como de toda a sociedade patriarcal do Brasil no Segundo Reinado. Outros elementos espaciais vão sendo colocados no decorrer da narrativa, sinalizando no veículo da linguagem a sedimentação do luto, não ocorrido numa concretude além da escritura. As flores que aparecem nas mãos de D. Glória no 15

KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Trad. Alex Marins. São Paulo : Martin Claret : 2002. p. 19. 16 Essa afirmação não contradiz, apesar de parecer, a defesa do devir, do fluxo heraclítico que foi acima observado. De fato, a palavra ‘identidade’ só é aqui posta por falta de outra melhor, já que oferece espaço a similares confusões. O que dizemos, contudo, aqui : a identidade é mutável, sempre exposta ao dasein, à experiência vital, ao tempo corrosivo. Mas mutabilidade não quer dizer ‘deriva’. Afirmando que Santiago não tem unidade, estamos dizendo que só pode se encontrar a partir das relações, do olhar alheio, sem que haja uma âncora que o prenda a um ‘eu’ que, embora móvel, preserve alguns sentidos que o conduzam.

retrato também surgem como parte da decoração da casa. Helen Caldwell analisa detalhadamente esses símbolos do espaço : “ O significado deste símbolo parece bastante claro : amor – juvenil, puro, entregue. O mote do soneto que Santiago nunca terminou é ‘Oh ! flor do céu ! oh! Flor cândida e pura’. ‘Quem era a flor?’, pergunta Santiago, que responde : ‘Capitu, naturalmente’ ”17.

A extensão do romantismo de Bento, que também se considerava uma flor, foi mais tarde aniquilada por Dom Casmurro. Sua alma “não ficou aí para um canto como uma flor lívida e solitária”. Da mesma forma, o mar é elemento recorrente na textura narrativa. Helen Caldwell lembra que Afrodite – deusa do amor - é filha de Tétis - deusa do mar. Daí Bento se sentir tragado pelos olhos de ressaca de Capitu e comparar a perda de seu amor por ela a um naufrágio. Recém-casados, vão viver na praia da Glória, passando as noites a contemplar o mar. Caldwell finaliza dizendo : “( ... ) A implicação do símbolo do mar, até onde respeita a Santiago, é a mesma que a da casa, do soneto e do sonho : fracasso; naufrágio; perda da alma, do paraíso, da vida, do amor ” 18.

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, no entanto, ampliam um pouco a nossa percepção da simbologia na narrativa de Machado. Em seu Dicionário de Símbolos, relatam que além do mar ser “o lugar dos nascimentos, das transformações e dos renascimentos”19 ( tudo do mar sai e tudo a ele retorna ), também representa o lugar da ambivalência, da dúvida, da incerteza. É, portanto, o espaço da transitoriedade, da alternância ininterrupta entre a vida e a morte. Mas também simboliza, como a água envolve o rochedo, toda a ambigüidade insolúvel que percorre o romance. É notável, só a partir desses poucos exemplos pontuados, o quanto a figuração espacial é um fator semântico indispensável à manutenção não da fábula, mas da trama, da tensão que a habita. A ambigüidade se mantém em razão dessa atenção 17

CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002.. p. 131. 18 Idem. p. 145. 19 CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos.Trad. Ângela Melim et al. 14. ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1999. p. 592.

estética, desse

entrelaçamento

infalível

das

estruturas

do

romance ( espaço,

personagens, foco narrativo ). Texto que responde tão bem à problemática da perda, Dom Casmurro finda por ser um enlutamento não apenas de sua personagem, mas de uma literatura. Para sermos exatos, o escritor Machado de Assis realiza o processo, já desde as Memórias Póstumas, garantindo não exatamente uma identidade ( algo esboçado já desde o Romantismo ), mas certamente uma maturidade formal só possível nesse luto da dependência ultramarina, no abandono sem culpa de suas formas, sua sintaxe, da memória melancólica, habitada por um imaginário alheio e apócrifo.

Recife, 29 de outubro de 2003.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo : Ática, 1994. ______.__________. Obra Completa. Rio de Janeiro : Nova Aguilar, 1997. CALDWELL, Helen. O Otelo Brasileiro de Machado de Assis. São Paulo : Ateliê Editorial, 2002. CHEVALIER, Jean & GHEERBRANT, Alain. Dicionário de Símbolos. Trad. Ângela Melim et al. 14. ed. Rio de Janeiro : José Olympio, 1999. DASTUR, Françoise. A Morte : ensaio sobre a finitude. Trad. Maria Tereza Pontes. Rio de Janeiro : Difel, 2002. FREUD, Sigmund. Obras Completas. trad. Jayme Salomão. v. 14. Rio de Janeiro : Imago, 1967. KIERKEGAARD, Sören. O Desespero Humano. Trad. Alex Marins. São Paulo : Martin Claret, 2002. KRISTEVA, Julia. Sol Negro : depressão e melancolia. Trad. Carlota Gomes. Rio de Janeiro : Rocco, 1989. MONTEIRO, Valéria Jacó. Dom Casmurro : ensaio em literatura e psicanálise. São Paulo : Hacker Editores : Cespuc, 1997.



Peron Rios é graduado em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco e atualmente cursa o mestrado em Teoria da Literatura, pela mesma instituição.

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