Dos personagens, de suas ações e de como insistem em lhes tirar de cena: uma reflexão sobre os movimentos sociais
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D os personagens e de suas ações, e de como insistem em lhes tirar de cena: uma r eflexão s obre o s m ovimentos s ociais. 1 2
(...)Gostaríamos de dizer para o mundo inteiro que: o Complexo do Alemão não é feito só de “violência”. É que a violência é a Imprensa se omitir de mostrar o outro lado da moeda. Estamos nos referindo ao I Seminário do Morro do Adeus realizado no dia 11 de fevereiro do corrente e que só recebeu o apoio da rádio Tupi e do Cepel. A grande imprensa não ligou a mínima. Esse grito ficou preso em nossas gargantas. Isso é injustiça? O Morro do Adeus -‐ Complexo do Alemão não aguenta mais ser mostrado ao mundo como se fosse o “caldeirão do inferno”. O poder público precisa se dar conta da sua parcela para esse quadro de isolamento total do ser humano. Não nos deram a oportunidade de mostrar a cara que existe no outro lado da moeda. Isso prova que não querem repensar uma nova forma de política social. Fazem tudo sem nos consultar como se fossem eles os donos da verdade. Depois nos taxam de violentos (...) ( Antônio Cassiano da Silva) 3
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Capítulo da dissertação de mestrado Grotão, Parque Proletário, Vila Cruzeiro e outras moradas: História e
Saber nas favelas da Penha (1995), por Marize Bastos da Cunha 2
Recuperamos aqui o título do livro de Sader , Quando Novos Personagens Entraram em Cena (1988). A
intenção, esperamos, fica clara ao longo de nossa reflexão. 3
Carta escrita pelo presidente da Associação de Moradores do Morro do Adeus e publicada na coluna
“Fique por dentro”do Se liga no Sinal, informativo do Cepel (Centro de Estudos e Pesquisas da Leopoldina), o
n 21, ano 4, março/abril.95. Situado na região da Leopoldina, o Complexo do Alemão abriga em suas 11 favelas uma população de aproximadamente 52.000 habitantes , entre elas a Nova Brasília e o Morro de Adeus. Nos últimos meses, frequentemente, as favelas do Complexo tem ocupado as páginas policiais da grande imprensa sendo 1
Esta é uma citação que, propomos, enriqueça, nossa reflexão. Poderíamos
dizer, a fala, não de uma voz silenciada, mas de uma voz mal escutada. Literalmente ignorada pelo poder público e algumas entidades civis que se propõem a i nterlocutar c om o s m ovimentos p opulares 4.
O carta de Antônio Cassiano marca o protesto de sua comunidade diante
da crescente omissão do poder público, bem traduzida na ausência dos representantes dos órgãos governamentais convidados para o I Seminário do Morro do Adeus: A comunidade, suas lutas e desilusões, seus problemas e soluções. No Seminário, durante todo o dia, estiveram presentes em torno de cem pessoas, em sua maioria moradores e lideranças de outras comunidades da região, que participaram de grupos de trabalho para debater os problemas da comunidade, bem como soluções a estes e , em seguida, reuniram-‐se em uma plenária final. Nesta, decidiram pela elaboração de um relatório, onde contaram sua experiência de realização do Seminário, e sistematizaram as soluções e reivindicações p ara o s p roblemas d a c omunidade. ( A MMA/CEPEL, 1 995).
Mas p or q ue e stamos a qui a f alar s obre o M orro d o A deus?
O Seminário ocorrido e a carta de Antônio Cassiano nos parecem
significativos do momento em que vivemos. A ausência do poder público não é exatamente uma novidade, mas parece assumir uma dimensão ainda mais perversa e assustadora nestes tempos neo-‐liberais em que se decide culpabilizar e penalizar a maioria da população em prol da reprodução de um modelo de sociedade que já é nosso velho conhecido. 5 E a violência? Bem, esta é mais do mostradas como redutos do tráfico de drogas. A imprensa, silencia-‐se, no entanto, a respeito do estado de abandono em que vivem estas favelas no que se refere aos serviços públicos. 4
Foram convidados para o Seminário representantes das Secretarias de Desenvolvimento Social ( Município
do Rio de Janeiro) e de Obras e Meio -‐Ambiente ( Estadual ), além do Movimento Viva Rio e da Abrapia. 5
Compreende-‐se aqui que o modelo neo-‐liberal longe de redefinir as relações entre o privado e a esfera
pública vem reforçar o processo de privatização do público sobre o qual o capitalismo tem se desenvolvido historicamente em nossa sociedade, contribuindo assim para acirrar os processos de exclusão econômico-‐ social e reforçar o movimento de neutralização política dos grupos populares.
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que um fenômeno urbano. Ela se imbrica em nosso cotidiano, traduzindo muito bem o padrão das relações que permeiam nossa sociedade. Para lá da ameaça constante que nos espreita dia a dia no asfalto, o que dizer da realidade que dia e noite atinge grande parte da população moradora das favelas e periferias da cidade, invadindo suas casas, cerceando seus passos, fiscalizando suas ações , e segmentando seu existir? Não por acaso, esta população é, em sua maioria, aquela que cotidianamente trabalha sob precárias condições, colocando sua vida em risco, debaixo de guindastes, em cima de andaimes, no alto das janelas, no fogo-‐cruzado d os t iroteios e tc.
Esta é uma das dimensões do momento em que vivemos. Mas a declaração
de Cassiano nos faz pensar em outras tantas. Por isso, trazemos seu protesto aqui. Enquanto presidente da AMMA, desanimado com o descaso do poder público, e sobretudo morador e liderança comunitária combatendo a precariedade de uma realidade que bem conhece, ele nos parece autorizado a falar d os m ovimentos s ociais u rbanos e d as l utas d a p opulação.
E estas lutas não são exatamente uma novidade mas parecem causar
surpresa, num momento em que, mais ainda, as adversidades se intensificam: omissão da esfera pública se traduzindo numa total falta de interlocução com os grupos organizados da sociedade civil de caráter popular 6; e a violência como parte integrante do cotidiano das classes populares desfavorecendo suas lutas ao cercear suas ações e a articulação entre as comunidades; a violência também como instrumento usado, pelo poder público e privado, para reproduzir a
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Recuperamos aqui uma distinção feita por Valla, em referência aos movimentos populares organizados da
sociedade civil, para qualificar os grupos dos quais estamos tratando. Segundo Valla, a amplitude do termo sociedade civil não dá conta da diferenciação qualitativa dos interesses das entidades civis que surgem no âmbito daquela. Daí a necessidade de qualificar as entidades civis voltadas para as lutas populares, diferenciando-‐as de outras entidades civis, como por exemplo, o Rotary Club. Esta distinção é mais atual do que nunca, num contexto em que, nos parece, há uma dissonância entre os interesses de algumas entidades civis que vem interlocutando com o Estado, e os interesses da maioria da população. O descaso de algumas destas entidades com o Seminário do Morro do Adeus é significativa deste fato.
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exclusão destas classes , estigmatizando-‐as e confinando-‐as a um “lugar do crime e d a d esordem”. 7
É sem perder de vista estas adversidades que lançamos nosso olhar para o
movimento organizado pelo Morro do Adeus. No Seminário, o primeiro (I) anuncia de certa forma, a disposição de boa parte da comunidade em intensificar suas lutas apesar da falta de respostas dos órgãos públicos. A proposta concretizada de se fazer um seminário traduz um esforço de discussão entre os moradores, de articulação destes com outras comunidades, e de interlocução com o poder público e com algumas entidades civis. Finalmente, a carta do presidente da Associação reflete a indignação da comunidade e a necessidade de torná-‐la p ública.
Não queremos ver heróis onde só existe gente lutando pela humanização
da vida. Mas há de reconhecer mais do que incômodos e iniciativas isoladas num movimento que reúne aproximadamente 100 pessoas durante todo um sábado, numa região bastante visada pela ação policial, que inibe qualquer movimento individual e, mais ainda, mobilizações coletivas. Percebemos aí combate, reflexão e o rganização.
Com o Morro do Adeus na mente ( um exemplo, entre outras evidências)
nos interrogamos: será que os atores coletivos dos anos 70/80 estão renascendo das cinzas?; voltando à cena política?; ou jamais teriam saído do palco e deixado de integrar a cena; e nós, é que, atentos sobretudo ao cenário, perdemos o movimento d os p ersonagens?
A cena política no país vem sofrendo alterações e, com ela, parece se
alterar também a perspectiva do pensamento intelectual a respeito dos movimentos sociais urbanos, acumulando-‐se um conjunto de questões: como se 7
Reconhecemos aqui não só o caráter violento dos processos de exclusão econômica-‐social que
subalterniza de forma crescente amplos segmentos sociais, produzindo o que Valla chama de população descartável (1993) mas também a atuação pontual do Estado e da iniciativa privada no que se refere aos mecanismos de repressão e controle social, como a ação da imprensa denunciada pelo presidente da Associação do Morro do Adeus e da polícia que atua na favela como se esta fosse o “caldeirão do inferno”.
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constituem os movimentos?; quais suas características?; de que forma se articulam c om o i nstituído?; q ual s eu p otencial d e t ransformação d a s ociedade?
Os anos 70 marcaram o surgimento de toda uma literatura a respeito dos
chamados novos movimentos sociais urbanos, cuja visibilidade política, especialmente dos acontecimentos dos anos 78/80, inspirava em muitas análises, a aposta no potencial destes movimentos em relação a uma radicalização do processo d emocrático.
Concordamos com Sader & Paoli quando, em relação a esta nova
literatura, assinalam a ruptura das representações aí subjacentes com um imaginário que vinha pontuando o modelo de interpretação da história e da sociedade brasileira. Um imaginário que colocava o Estado como razão única, lugar exclusivo e sujeito de realização de um projeto para o país e percebia as classes populares como meros objetos, seja deste Estado ordenador, seja da intelectualidade q ue a s g uia ( 1986).
A emergência destas novas representações, reinterpretativas dos
processos e dos atores sociais da sociedade brasileira é compreendida no âmbito das m udanças q ue o corriam n esta ú ltima. M udanças q ue i ndicavam o f echamento do Estado à experiência social e a perda da ilusão de que uma boa política rearticularia uma sociedade desigual e impolitizável (S ADER , 1988). Um fechamento que abre caminho à redescoberta da sociedade civil, de onde emergiam relações de sociabilidade potenciais no enfrentamento com o Estado autoritário (W EFFORT , 1984). E uma desilusão que era reforçada pelos processos que marcavam, internacionalmente, uma revisão da teoria marxista e um reposicionamento político, particularmente face ao caráter do Estado Burguês e ao chamado socialismo real. Processos que vinham amadurecer as discussões a respeito d o E stado e d a c onstrução d emocrática 8.
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No que se refere a este último processo destaca-‐se a influência do trabalho de Althusser que vinha
reforçar a desilusão com o Estado Burguês e seus aparelhos ideológicos e a crescente leitura e reinterpretação da obra de Gramsci, revelando-‐se os conceitos de hegemonia e sociedade civil.
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Estas mudanças, condições fundamentais ao alargamento do campo de
perspectivas e da ação política da intelectualidade acadêmica e militante, não podem ser entendidas enquanto um dado “objetivo” que se impôs à esquerda, determinando um sentido para sua produção. Se a atenção for dada somente a elas, enquanto móveis do processo de reinterpretação da sociedade brasileira, perdemos parte significativa da cena. Assim, pensamos que a possibilidade histórica de reelaboração teórica realizou-‐se mediada pela própria experiência dos intelectuais no âmbito das mudanças que ocorriam na sociedade e que não se esgotavam na dominação do Estado e do capital. É importante assinalar, então, a gestação de novos padrões de prática coletiva e a recriação de novas representações no seio da classe trabalhadora que vão apontar alternativas para a p rodução a cadêmica e a a ção p olítica d e e squerda 9.
Neste período, predomina, assim, uma visão profundamente permeada
pela desilusão com o Estado e pela aposta no potencial dos movimentos e em sua prática política, marcada pela defesa da autonomia, pelo exercício da democracia participativa e pela importância dada à organização de base. Os trabalhos enfatizam o espontaneísmo dos movimentos e a ruptura que traziam em relação aos t radicionais c anais d e p articipação p olítica, b em c omo s ua a ção a nti-‐Estado.
Na primeira metade dos anos 80, contudo, configura-‐se uma nova visão do
espaço público entre os intelectuais. A mudança no quadro institucional, com a retomada do pluripartidarismo, a formação do Partido dos Trabalhadores, a 9
É neste sentido, que E.Sader, examinando os procedimentos dos "antigos" centros organizadores ( Igreja
católica, esquerda marxista e sindicato ) neste período e procurando analisar como experimentaram a crise pela qual passavam, destaca que as três agências abrem espaço para a reelaboração de suas matrizes discursivas, incorporando as práticas e representações culturais populares, procurando assim novas vias para reatar suas relações com os públicos respectivos. Surgem, pois, as comunidades de base, o "novo sindicalismo" e as novas formas de integração com os trabalhadores, no caso da esquerda desarticulada pela derrota política. Dessa forma, “a potencialidade das novas matrizes está, portanto, tão ligada à consistência interna de suas categorias e modalidades de abordagem do vivido quanto à sua abertura, às fissuras que deixa para poder incorporar o novo, aquilo que era ainda indizível e para o que não poderia necessariamente haver categorias feitas” (Sader, 1988, p.143).
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eleição de quadros oposicionistas para os governos do Estado em 1982, resgata a potencialidade da intervenção na esfera pública, percebida agora enquanto espaço de conflito, onde pode se enfrentar a luta política. Fertilizando esta percepção, há o reconhecimento da luta pela hegemonia, indicado pela reinterpretação d a o bra d e G ramsci.
Deste modo, ao longo da chamada transição democrática, delineia-‐se uma
nova visão do Estado. Nem o Estado ordenador, lugar exclusivo de ação política, nem o Estado essencialmente perverso, reflexo dos interesses burgueses e impermeável à experiência social. O Estado passa a ser percebido enquanto espaço de conflito e luta, materializando-‐se em agentes e ações visíveis e palpáveis. Surgem novas interpretações a respeito da relação dos movimentos com o Estado, vista como uma relação dinâmica, de conflito mas também de negociação, onde os dois pólos são passíveis de se transformar. O Estado começa a ser percebido como propulsor dos movimentos, não em função de sua ausência ou inoperância na provisão de um serviço mas porque o aceno concreto de implantação de um serviço, e a seletividade específica na resposta, funciona como fator de mobilização e organização da população excluída deste serviço ( J ACOBI , 1 989).
Porém, diante das mudanças político-‐institucionais do período e dos
desafios apontados na relação com o instituído, os movimentos sociais urbanos são como que desaprovados no teste do potencial de intervenção e mudança por várias análises que enfatizam a dispersão, debilidade e corporativismo das demandas de muitos destes movimentos. Ressaltam-‐se a sua dimensão local e sua inata incapacidade para dimensionar a sua ação na sociedade como um todo e implementar um projeto de transformação. As análises passam a apontar, então, para a sua frágil visibilidade enquanto fenômenos políticos capazes do comando d o p rocesso d e d emocratização n a s ociedade b rasileira ( S ILVA , 1 994).
De forma geral, dos anos 70 a fins dos anos 80, os movimentos sociais
passam de redentores da ordem a mobilizações débeis e cooptadas, incapazes de enfrentar o desafio da institucionalização. Interrogamo-‐nos então o que levou a
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esta mudança de percepção. A alteração no contexto político institucional e os desafios por ela trazidos seriam suficientes para nos levar a uma maior compreensão a respeito desta mudança? Ou esta também não estaria referenciada na experiência da intelectualidade diante do processo da chamada transição democrática e nas expectativas lançadas em relação ao potencial dos movimentos sociais? Assim, além das mudanças no cenário político-‐social, coloca-‐se como fundamental à alteração em tais representações, a forma como a intelectualidade experimentou a “transição democrática”, quando se revalorizam os antigos canais de intervenção política, agora, se não mais vistos como lugares únicos da mudança social, pelo menos como principais espaços de luta e conflito, por o nde d evia p assar t al m udança e o nde o s m ovimentos e stariam l egitimados.
Pensamos que ao longo dos anos 70, na percepção da cena que então se
delineava, vê-‐se o movimento dos atores. Mas até que ponto, apesar da ruptura com antigas representações, nas novas interpretações, este movimento dos atores ainda não aparece condicionado à atuação do Estado e do capital, a quem são atribuídos à direção da cena? Não seria este o caso das análises que enfatizam o fechamento imposto pelo Estado autoritário como elemento definidor na constituição dos movimentos? Ou daquelas que reduzem a emergência dos movimentos à pauperização crescente das classes populares, resultante do processo de industrialização? De certa forma, o movimento dos atores aparece aí como um intervalo, um momento possível que deveria evoluir para formas mais plenas e transformadoras de atuação política. Ou aparece como um m ovimento f atal, c apaz d e t razer o g olpe f inal à s ociedade b urguesa.
Face a tal perspectiva a respeito dos movimentos sociais, não é
surpreendente pois, que, nos anos 80, eles comecem a ser vistos como débeis, fragmentados e em refluxo. Uma vez que o referencial não deixara de ser o Estado, então apresentado como espaço de luta, ou a dinâmica imposta pelo capital, e a expectativa da intelectualidade ainda repousava na ruptura com eles, os novos atores já não são mais vistos em movimento pois não correspondiam às apostas de parte da intelectualidade de esquerda: que fossem móveis de uma
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transformação radical da sociedade, agora percebida na efetividade da resposta aos desafios do que se acreditava ser o jogo político-‐institucional. De movimentos, eles deveriam passar a organizações, ou delas serem instrumentos. 10 N a memória, restaram suas promessas não cumpridas e o que parece esquecido é que se a formas de interlocução com o institucional se alteraram e se os antigos canais de ação política são reabertos e novos surgem, isto foi em resultado em grande medida da pressão exercida pelos movimentos sociais.
Assim, interrogamo-‐nos se a avaliação dos movimentos sociais a partir das
noções de refluxo e crise, não se relaciona a uma certa forma de pensar sua visibilidade política de acordo com antigas referências que marcam tais movimentos enquanto mobilizações em enfrentamento direto com o Estado, sem considerar a dinâmica de suas formas de organização e a temporalidade de suas lutas. Até que ponto ao se relevar uma unidade para o ponto de chegada -‐ a conquista do Estado segundo a tradição jacobina da qual somos tributários -‐ não se imputa também uma identidade para os pontos de partida e para a forma como t ais m ovimentos s e d esenvolvem? 11
As reflexões até aqui colocadas traduzem o esforço de compartilhar a
construção de um referencial que interprete os movimentos sociais para além das noções de refluxo ou crise, buscando alternativas que, sem cair em uma 10
A imagem aqui utilizada recupera uma distinção analisada por J.Souza Martins em A Chegada do Estranho
quando destaca que há uma grande disputa que marca as organizações políticas e os movimentos sociais. “As organizações sindicais e partidárias têm insistido que os movimentos sociais são espontâneos e, por serem espontâneos, não contém um projeto político. (...) Trabalharam em favor das mediações políticas das quais os movimentos sociais deveriam ser instrumento. (...) A concepção que domina é a de que os movimentos sociais são transitórios, devem existir apenas na fase de mobilização dos trabalhadores.” ( 1993, p.92) 11
A referência à tradição jacobina recupera a questão apontada por Francisco de Oliveira, entre outros, que
destaca que tendo em vista o fato de termos nos formado na tradição jacobina que prega a reforma do Estado para que este reforme a sociedade, é problemático invertermos o encaminhamento e percebermos o movimento em que a sociedade redefine , dá novos limites e desenha o Estado (1994,p.5)
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perspectiva heroica, não os aprisione nos marcos tradicionais de ação política e considerem a particularidade da dinâmica e dos significados políticos inscritos nestes m ovimentos.
Neste caminho algumas reflexões nos parecem fundamentais e vamos aqui
abordar aquelas mais implicadas com a temática de nossa pesquisa e que nos conduzem particularmente ao processos culturais imbricados nos movimentos sociais
Começamos apontando uma questão colocada por J.Souza Martins em
referência a sua experiência de mais 15 anos em pesquisa sobre os movimentos sociais no campo quando observa que provavelmente vai ser aposentado antes de terminar o trabalho e que a pesquisa ainda não fechou pois “há coisas que estou acompanhando desde o começo, que começaram a acontecer e ainda não acabaram de acontecer”. O autor faz tal avaliação para ilustrar a dificuldade de acompanhar os movimentos no campo, uma vez que seu tempo da luta é outro. E nos dá vários exemplos significativos, entre eles o caso dos Xavantes, no Mato Grosso, que foram expulsos de suas terras, onde fazendas foram instaladas, com suas sedes construídas em cima dos cemitérios dos índios, que aparentemente estavam c onfinados e c onformados c om s eu t erritório r eduzido m as q ue:
O que os fazendeiros não viram e, aliás, ao que parece, os pesquisadores também não, é que de vez em quando um xavante escapava da aldeia e ia visitar terras ancestrais (...) Resultado, depois
dessas
visitas
aparentemente
turísticas,
todos
conformados, os fazendeiros, felizes, recebendo os incentivos fiscais do governo federal, os Xavante se organizaram e começaram a tomar as fazendas, com sede e tudo. Foi o caso da Fazenda Xavantina, que construiu sua sede sobre o antigo cemitério xavante. (1993, p.37/38)
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A história dos Xavante revela a particular dimensão temporal da luta no
campo, onde os processos são demorados e que é “no âmbito desta demora que o teor mais profundo dos movimentos sociais se revela”. Por isso é que se impõe a necessidade de meditar sobre uma concepção de tempo diferente da nossa que “envolve uma ideia ampla de espera. E a Espera perturba a situação da pesquisa”.(p.39/40). É assim que a temporalidade das lutas no campo torna-‐se uma questão teórica mas também metodológica para pesquisa, pois mais do que nunca o conhecimento se produz parcial e provisoriamente, com interpretações inacabadas.
Na análise da particularidade dos movimentos no campo, Martins critica,
pois, as interpretações prisioneiras do universalismo que definem o tempo do camponês por imputação, “decorrente da transformação ‘a priori’ da temporalidade do capital da grande indústria em medida de tempo de outras relações sociais” (1989, p.102). Aponta então a necessidade de considerar a especificidade da relação do camponês com o capital que propõe e revela aspectos f undamentais d o c aráter d esumanizador d esta r elação.
Ainda que atentos às distintas formas de relação com o capital no campo e
na cidade, e às especificidades das lutas no campo, pensamos que a análise de J.S.Martins pode ser levada a uma abordagem a respeito das lutas urbanas que envolvem as populações mais pobres que vivem na periferia das grandes cidades. As relações de tais grupos com o capital se processam sob uma forma e uma dinâmica diversa daquelas que marcam as relações entre o operariado e o capital, e cuja referência tem servido como eixo para se pensar a mudança histórica e s ocial.
O próprio Martins ao retomar a concepção de desenvolvimento desigual,
sob sua forma mais antiga que considera mais rica e dialética, discute a relação entre formas de exploração consideradas atrasadas e o próprio processo de acumulação capitalista que no seu entender “explicam a natureza diversa das lutas e das organizações de luta, dos movimentos sociais no campo e também entre a s p opulações m ais p obres d as c idades b rasileiras” ( 1993, p .111).
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A literatura sobre Movimentos Sociais urbanos tem se voltado para a
forma como as contradições do capitalismo vem se desenvolvendo historicamente na cidade, dando particular atenção ao papel desempenhado pelo Estado na acumulação de capital no espaço urbano. Muitas destas análises têm sido fundamentais para a compreensão do processo através do qual o capital reproduz dialeticamente o arcaico no moderno, articulando relações com formas históricas aparentemente inconciliáveis, e produz a exclusão crescente e ampliada de grandes parcelas das classes trabalhadoras 12 . Da mesma forma, importantes têm sido as abordagens a respeito do lugar do Estado no processo de acumulação através da privatização do que é público, com o repasse financeiro sob a forma de subsídios, reservas de mercado, intervenção financeira etc, e também da socialização dos custos de reprodução da força de trabalho, que vem viabilizar a superexploração da força de trabalho 13. Significativas são também as análises que apontam a esfera pública enquanto espaço de conflito e a importância da disputa pelo controle e manejo do fundo público na construção de u ma s ociedade e fetivamente d emocrática 14.
Tais abordagens têm se revelado pontuais na busca de linhas
interpretativas que, buscando alternativas a concepções clássicas da luta de classes, procuram contemplar a heterogeneidade das classes subalternas, bem como os processos que marcam suas formas de mobilização e organização. E neste âmbito que o conceito de reprodução assume um lugar importante, relacionando movimentos sociais às relações de classe. Porém, o conceito de reprodução da força de trabalho tem se mostrado restrito para explicar integralmente a heterogeneidade social e a complexidade de objetivos que caracterizam tais movimentos, enquanto o conceito de reprodução das condições de r eprodução p arece s er d emasiado g eral ( D URHAM , 1 984b).
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A este respeito Francisco de Oliveira (1972 e 1978) e Lucio Kowarick (1975, 1979 e 1988).
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Kowarick (1979) e Oliveira ( 1988)
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Oliveira (1988)
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Estas linhas de análise são fundamentais na compreensão dos processos
que marcam a exclusão do trabalhador urbano do processo de trabalho capitalista e sua integração a formas indiretas de subordinação do trabalho ao capital e que se traduzem nas condições de vida das populações mais pobres da cidade. P orém, s ão i nsuficientes s e n os c olocarmos d iante d o d esafio d e e ntender a dinâmica específica dos movimentos através dos quais tais populações se expressam politicamente. Isso porque não contemplam os elementos de inventividade política e de criatividade histórica que se referem a um âmbito muito mais amplo, onde talvez o mais importante não seja a tomada do Estado mas a luta por uma porção de mudanças que apontam para a humanização da vida ( M ARTINS , 1 993, p .57).
Pensamos que a construção de um caminho que contemple tais elementos
exige uma maior compreensão da forma como os chamados processos histórico-‐ sociais objetivos são experimentados e interpretados pelas classes subalternas. Isso nos leva ao campo da cultura, aos processos de produção do saber subalterno e a seus elementos explicativos e interpretativos do real. Leva-‐nos a incorporar na construção do conhecimento, e pontualmente na pesquisa, o conhecimento p roduzido p or e stas c lasses.
Assim, se nos debruçarmos somente sobre a forma como vem se dando a
espoliação urbana através do Estado, e atentarmos apenas para visibilidade pública dos movimentos populares, perdemos parte substancial da experiência popular, de suas relações com a sociedade e do que vem sendo historicamente construído p elas c lasses s ubalternas.
Um exemplo ilustrativo deste desencontro, que faz com que
pesquisadores, mediadores políticos e técnicos deixem de lado a experiência e as interpretações produzidas pela população, vem das lideranças das favelas na região da Leopoldina. Elas não aceitam a recomendação de mediadores, baseada numa acumulada discussão teórica, de que o Estado, isto é a CEDAE (Companhia Estadual de Água e Esgoto) deva assumir e dirigir a distribuição de água nas
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favelas. E mesmo recebendo água no máximo três vezes por semana, argumentam:
Se nós moradores entregarmos a responsabilidade de distribuir água à CEDAE, vai ser o fim de nossa água. Se as favelas têm água é por causa das Associações de Moradores, mesmo com todos os seus problemas. (V ALLA , 1994)
A este respeito, Valla analisa que o que está por trás da orientação dos
mediadores é uma concepção do que o Estado deveria estar fazendo, ou seja uma concepção de previsão, de futuro enquanto do lado da liderança o que está presente é uma concepção de provisão, do presente, isto é a certeza de que a CEDAE não existe para os moradores destas favelas, a não ser a partir da pressão permanente exercida por eles. O que se percebe neste embate é que Estado tem significados d iferentes p ara o s d ois l ados.
Assim, se considerarmos as condições de vida da população apenas
enquanto condições objetivas, neste caso materializadas no acesso a um serviço público de baixa qualidade, não damos conta, por exemplo, da dinâmica de sua forma de enfrentamento do Estado e numa avaliação redutora, vemos apenas apatia e conformismo onde talvez exista uma avaliação rigorosa da sobrevivência na cidade. E neste sentido é que se faz necessário refletir sobre as condições de vida da população em sua dimensão subjetiva, ou seja considerando que a forma como experimentam historicamente estas condições produz um conhecimento, uma determinada percepção de sua realidade e de sua inserção na sociedade, bem c omo a lternativas d e c ondução d e s uas v idas.
Isso nos leva a outra questão que também nos parece importante e que é
apontada pelo já citado J.S.Martins: a consciência dupla das populações do campo. Esta noção contempla o duplo código que regula a fala das populações indígenas e camponesas com o estranho. Duplo código que marca a existência destas populações que, passando por um amplo e profundo processo de 14
repressão, ocultam elementos de sua cultura e revelam apenas o que é sancionado pelos que as dominam. Mas a dupla consciência não é uma manifestação da incapacidade de perceber o que ocorre. É uma estratégia de sobrevivência e uma arma de luta pois põem juntos o afirmar e o negar, o obedecer e o desobedecer Muitas vezes se materializa numa linguagem do silêncio que fala mais do que qualquer outra coisa e que coloca desafios metodológicos a o p esquisador ( 1989 e 1 993).
Mais uma vez podemos considerar a questão colocada por Martins no
âmbito urbano, onde as populações mais pobres vivem cotidianamente um violento processo de exclusão. O processo de repressão pelo qual passam não possui as mesmas características dos processos que atingem, por exemplo, as populações indígenas que não perdem apenas a terra mas às vezes muito concretamente sua língua, como os Xokó que não conhecem mais nenhuma palavra de sua língua -‐ após serem expulsos de suas terras, cada vez que abriam a boca e diziam uma palavra em sua língua, levavam uma surra dos jagunços dos fazendeiros que os explorava. (Martins, 1993, p.35). Mas o reconhecimento desta diversidade não nos leva a conceber uma escala de intensidade em termos de exploração n o c ampo e n a c idade.
Por isso, pensamos que não cairíamos em nenhuma aberração se
começássemos a refletir sobre esta dupla consciência em relação aos grupos subalternos das grandes cidades. Uma melhor compreensão da forma como estes grupos subalternos experimentam e interpretam o processo de repressão que historicamente os tem atingido cotidianamente, nos daria pistas importantes para decifrar não só suas falas, mas também suas formas de estar no mundo. Um caminho necessário especialmente se considerarmos o aprofundamento e a sofisticação dos mecanismos de repressão, num momento em que, particularmente no Rio de Janeiro, a investida contra o tráfico de drogas se confunde com o controle social sistemático das populações faveladas e da periferia d a c idade.
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O misto de desconfiança e complacência presente na forma com que tais
populações tratam o estranho, não é uma novidade para os técnicos ou pesquisadores que procuram uma interlocução com elas, mesmo antes destes agudos tempos de desconfiança trazidos pela ação policial contra o tráfico de drogas. Se considerarmos que historicamente estes grupos têm sido alvos de promessas e barganhas políticas e constituídos como cobaias científicas, compreendemos melhor a desconfiança, expressa no olhar e nos gestos curtos, nas meias palavras e evasivas, que contrasta com a difundida imagem de generosidade do povo brasileiro. E provavelmente não percebemos tal generosidade na complacência uma vez que esta última nos parece muito mais um sinal de uma espera incerta em relação ao que o estranho tem a oferecer, da expectativa q ue e fetivamente t raga a lguma c oisa.
A noção de igualdade que atravessa o esforço de pesquisadores e técnicos
na sua relação com os grupos subalternos referencia-‐se em uma expectativa daqueles, forjar igualdade numa relação que é socialmente desigual. Uma expectativa não compartilhada pelos grupos subalternos, não porque não lutem por relações de iguais mas porque sabem, referenciados em sua experiência de vida, que aqueles que possuem dinheiro ou saber não são seus iguais. Assim, desconfiança e complacência, mais do que visão fragmentada da realidade, afirmam e denunciam relações de poder e, uma vez que constituem-‐se em interpretação do social, inscrevem o pesquisador ou técnico no lugar de objeto do c onhecimento, d o c onhecimento d eles.
Lembro-‐me d a m inha e xperiência d e p esquisa n a f avela d a C hácara d o C éu.
Perguntados se achavam que suas vidas estavam boas, muitos entrevistados respondiam categoricamente que sim, mas depois acrescentavam alguns apesares seguidos de problemas que identificavam em suas vidas. Referenciada na i deia d e a c riticidade e star s empre n a c onsciência d os p roblemas, p ercebia n os apesares a criticidade dos entrevistados. Mas, ao mesmo tempo, interrogava-‐me se ela não podia se inscrever também na afirmação categórica de estar tudo bem. Hoje reflito se esta afirmação talvez não traduza a ideia de Martins de que “o
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sociólogo não vai ouvir deles senão aquilo que eles decidiram que devem dizer-‐ lhe” e não indique a dimensão de resistência inscrita na prática dos subalternos, através da percepção do que o outro deve ouvir e pela afirmação combativa de que e stá t udo b em, a inda q ue e ste o utro v eja c arências p or t odos o s l ados.
Assim, o tensionamento da fala popular, entendida na expressividade de
seus gestos, silêncios e nas contradições de seu ditos, e um aprofundamento do que Martins chama de dupla consciência, decifrando-‐a enquanto parte de um conjunto da situação social que leva à duplicidade, é fundamental à percepção dos significados políticos inscritos na experiência e na luta popular. Significados que talvez não estejam aquém do que classicamente se concebe como luta política. Q ue p rovavelmente e stão e m o utro l ugar.
Olhar além da visibilidade pública dos movimentos sociais exige mais do
que boa vontade. Exige a construção coletiva de um caminho que incorpore as massas na sociedade civil, incorporando seu conhecimento (Valla, 1993). Exige o esforço de busca de referenciais de análise que, sem deixar de lado os chamados processos histórico-‐sociais objetivos, contemple uma maior compreensão da forma c omo e stes s ão e xperimentados e i nterpretados p elas c lasses p opulares.
Seguir nossa viagem por este caminho implica reconhecer a dimensão
subjetiva d os p rocessos h istóricos. M as o q ue q ueremos d izer c om i sso?
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