DOSSIÊ CULT LITERATURA DE TESTEMUNHO https://www.scribd.com/book/167172110

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literatura de testemunho

Passagens ñ Homenagem a Walter Benjamin, instalaÁ„o de Dani Karavan montada no Museu de Arte de Tel-Aviv em 1997

junho/99 - CULT 39

...die Narbe der Zeit tut sich auf... ìAbend der Worteî ...a cicatriz do tempo abre-se... ìAnoitecer das Palavrasî PAUL CELAN ìH· dois anos, durante os primeiros dias que sucederam ao nosso retorno, est·vamos todos, eu creio, tomados por um delÌrio. NÛs querÌamos falar, finalmente ser ouvidos. Diziam-nos que a nossa aparÍncia fÌsica era suficientemente eloq¸ente por ela mesma. Mas nÛs justamente volt·vamos, nÛs trazÌamos conosco nossa memÛria, nossa experiÍncia totalmente viva e nÛs sentÌamos um desejo frenÈtico de a contar tal qual. E desde os primeiros dias, no entanto, parecia-nos impossÌvel preencher a

dist‚ncia que nÛs descobrimos entre a linguagem que nÛs disp˙nhamos e essa experiÍncia que, em sua maior parte, nÛs nos ocup·vamos ainda em perceber nos nossos corpos. Como nos resignar a n„o tentar explicar como nÛs havÌamos chegado l·? NÛs ainda est·vamos l·. E, no entanto, era impossÌvel. Mal comeÁ·vamos a contar e nÛs sufoc·vamos. A nÛs mesmos, aquilo que nÛs tÌnhamos a dizer comeÁava ent„o a parecer inimagin·vel.î Robert Antelme abre com essas palavras o seu relato sobre a sua experiÍncia nos campos de concentraÁ„o nazistas que ñ na qualidade de um dos primeiros ñ ele redigiu j· em 1947 (com o tÌtulo Lí espËce humaine). Essa passagem descreve o campo de forÁas sobre o qual a literatura de testemunho se articula: de um lado, a necessidade premente de narrar a experiÍncia vivida; do outro, a percepÁ„o tanto da insuficiÍncia da linguagem

diante de fatos (inenarr·veis) como tambÈm ñ e com um sentido muito mais tr·gico ñ a percepÁ„o do car·ter inimagin·vel dos mesmos e da sua conseq¸ente inverossimilhanÁa. Continuando a passagem acima, Antelme afirma ainda: ìEssa desproporÁ„o entre a experiÍncia que nÛs havÌamos vivido e a narraÁ„o que era possÌvel fazer dela n„o fez mais que se confirmar em seguida. NÛs nos defront·vamos, portanto, com uma dessas realidades que nos levam a dizer que elas ultrapassam a imaginaÁ„o. Ficou claro ent„o que seria apenas por meio da escolha, ou seja, ainda pela imaginaÁ„o, que nÛs poderÌamos tentar dizer algo delas.î O testemunho se coloca desde o inÌcio sobre o signo da sua simult‚nea necessidade e impossibilidade. Testemunha-se um excesso de realidade e o prÛprio testemunho enquanto narraÁ„o testemunha

A literatura do trauma M·rcio Seligmann-Silva

A literatura de testemunho, conceituada a partir dos relatos de sobreviventes dos campos de concentraÁ„o nazistas, se articula como tens„o entre a necessidade de narrar a experiÍncia da barb·rie e a percepÁ„o da insuficiÍncia da linguagem diante do horror ñ redimensionando a relaÁ„o entre literatura e realidade, salientando o car·ter traum·tico de toda experiÍncia e pondo em xeque a equaÁ„o pÛs-moderna que transforma a histÛria em ficÁ„o. Este ìDossiÍî ñ concebido e organizado pelo professor e ensaÌsta M·rcio Seligmann-Silva ñ analisa o papel da literatura de testemunho na histÛria dos gÍneros liter·rios, a possibilidade da poesia e da cultura depois de Auschwitz, a tarefa dos historiadores do Holocausto e a formulaÁ„o de uma Ètica da memÛria a partir da obra do escritor Primo Levi. 40 CULT - junho/99

uma falta: a cis„o entre a linguagem e o evento, a impossibilidade de recobrir o vivido (o real) com o verbal. O dado inimagin·vel da experiÍncia concentracion·ria desconstrÛi o maquin·rio da linguagem. Essa linguagem entravada, por outro lado, sÛ pode enfrentar o real equipada com a prÛpria imaginaÁ„o: por assim dizer, sÛ com a arte a intraduzibilidade pode ser desafiada ñ mas nunca totalmente submetida. ìAli onde cessa a filosofia, a poesia tem de comeÁarî, afirmou Friedrich Schlegel no limiar do sÈculo XIX, criticando justamente a falta de imaginaÁ„o dos filÛsofos contempor‚neos a ele. Para esse pensador de Iena, a imaginaÁ„o est· no centro do nosso entendimento. J· para a testemunha de um evento-limite, como o assassinato em massa perpetrado pelos nazistas, coloca-se ñ ou melhor: impıese ñ uma quest„o incontorn·vel: a

ìopÁ„oî entre a ìliteralidadeî e a ìficÁ„oî da narrativa. Nesta encruzilhada encontramos v·rias das principais questıes que est„o na base da literatura de testemunho. Tentemos discutir alguns desses pontos.

O real e o trauma Literatura de testemunho È um conceito que nos ˙ltimos anos tem feito com que muitos teÛricos revejam a relaÁ„o entre a literatura e a ìrealidadeî. O conceito de testemunho desloca o ìrealî para uma ·rea de sombra: testemunha-se, via de regra, algo de excepcional e que exige um relato. M·rtir ñ no sentido de alguÈm que sofre uma ofensa que pode significar a morte ñ vem do grego ìmarturî, testemunha. Devemos, no entanto, por um lado, manter um conceito aberto da noÁ„o de testemunha: n„o sÛ aquele que viveu um ìmartÌrioî

pode testemunhar; todos o podem. E, por outro lado, o ìrealî È ñ em certo sentido, e sem incorrer em qualquer modalidade de relativismo ñ sempre traum·tico. Pensar sobre a literatura de testemunho implica repensar a nossa vis„o da HistÛria ñ do fato histÛrico. Como lemos em Georges Perec ñ autor de W ou a memÛria da inf‚ncia ñ, ìo indizÌvel n„o est· escondido na escrita, È aquilo que muito antes a desencadeouî. A impossibilidade est· na raiz da consciÍncia. A linguagem/ escrita nasce de um vazio ñ a cultura, do sufocamento da natureza; o simbÛlico, de uma reescritura dolorosa do real (que È vivido como um trauma). Aquele que testemunha se relaciona de um modo excepcional com a linguagem: ele desfaz os lacres da linguagem que tentavam encobrir o ìindizÌvelî que a sustenta. A linguagem È antes de mais nada o traÁo ñ substituto nunca perfeito e

Reprodução do livro After Auschwitz (Northern Centre for Contemporary Art, Londres)

Memorial em Treblinka, projetado por Adam Haupt e Franciszek Duszenko, edificado em 1964 com 17 mil pedras de granito dispostas em torno de um obelisco, representando um cemitÈrio

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Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust (editora Prestel, Munique)

¿ esquerda, The Holocaust (1984), escultura ao ar livre de George Segal, no Lincoln Park, S„o Francisco (EUA)

satisfatÛrio ñ de uma falta, de uma ausÍncia. O mesmo Perec afirma ainda: ìsempre irei encontrar, em minha prÛpria repetiÁ„o, apenas o ˙ltimo reflexo de uma fala ausente na escrita, o esc‚ndalo do silÍncio deles [os pais de Perec, assassinados pelos nazistas] e do meu silÍncio... A lembranÁa deles est· morta na escrita; a escrita È a lembranÁa de sua morte e a afirmaÁ„o de minha vidaî. A experiÍncia traum·tica È, para Freud, aquela que n„o pode ser totalmente assimilada enquanto ocorre. Os exemplos de eventos traum·ticos s„o batalhas e acidentes: o testemunho seria a narraÁ„o n„o tanto desses fatos violentos, mas da resistÍncia ‡ compreens„o dos mesmos. A linguagem tenta cercar e dar limites ‡quilo que n„o foi submetido a uma forma no ato da sua recepÁ„o. DaÌ Freud destacar a repetiÁ„o constante, alucinatÛria, por parte do ìtraumatizadoî, da cena violenta: a histÛria do trauma È a histÛria de um choque violento, mas tambÈm de um desencontro com o real. (Em grego, vale lembrar, ìtraumaî significa ferida.) A incapacidade de simbolizar o choque ñ o acaso que surge com a face da morte e do inimagin·vel ñ determina a repetiÁ„o e a constante ìposterioridadeî, ou seja, a volta aprËs-coup da cena. … interessante notar que Freud desenvolveu o seu conceito de trauma, entre outros textos, em Para alÈm do princÌpio do prazer (1920), um trabalho que inicia com uma reflex„o sobre o car·ter acidental e excepcional do acidente traumatizante, mas que depois se ocupa em descrever as pulsıes estruturais (eros e ñ sobretudo! ñ tanatos) com base em termos muito semelhantes. Portanto, a leitura que Walter Benjamin fez desse texto de Freud ñ no seu ensaio Sobre alguns temas em Baudelaire (1939) ñ e que normalmente È vista como uma apropriaÁ„o indevida do conceito freudiano de trauma, por alarg·-lo demais, de certo modo est· in nuce em Freud. Para Benjamin, o choque È parte integrante da vida moderna: a experiÍncia

agora deixa de se submeter a uma ordem contÌnua e passa a se estruturar a partir das in˙meras ìinterrupÁıesî que constituem o cotidiano moderno. Evidentemente, na medida em que tratamos da literatura de testemunho escrita a partir de Auschwitz, a quest„o do trauma assume uma dimens„o e uma intensidade inauditas. Ao pensar nessa literatura, redimensionamos a relaÁ„o entre a linguagem e o real: n„o podemos mais aceitar o vale-tudo dito pÛs-moderno que acreditou ter resolvido essa complexa quest„o ao afirmar simplesmente que ìtudo È literatura/ficÁ„oî. Ao pensarmos Auschwitz fica claro que mais do que nunca a quest„o n„o est· na existÍncia ou n„o da ìrealidadeî, mas na nossa capacidade de percebÍ-la e de simboliz·-la.

ìObservaÁ„o do significado ausenteî Saul Friedl‰nder, um dos maiores historiadores da Shoah (ìcat·strofeî, em hebraico, termo que prefiro utilizar por n„o ter as conotaÁıes sacrificiais incluÌdas em Holocausto), resumiu o estado atual das pesquisas sobre esse evento com as palavras: ìTrÍs dÈcadas aumentaram o nosso conhecimento dos eventos em si, mas n„o a nossa compreens„o deles. N„o possuÌmos hoje em dia nenhuma perspectiva mais clara, nenhuma compreens„o mais profunda do que imediatamente apÛs a guerra.î O trabalho de luto que realizamos com relaÁ„o ‡ Shoah ñ um trabalho d˙bio, fadado a sempre recomeÁar, muito mais melancolia que propriamente luto ñ, Fridl‰nder compara ao que Maurice Blanchot denominou de ìobservaÁ„o do significado ausenteî. Portanto, o ìparaÌso liberal do ceticismo espertalh„oî ñ na express„o de Gertrud Koch ñ, que nega a existÍncia do real (em vez de negar apenas a existÍncia de uma determinaÁ„o ˙nica e ontolÛgica do mesmo), serve de guardachuva para as idÈias dos (in)famosos

negacionistas de Auschwitz e simplesmente evita a reflex„o sobre o ìespaÁoî entre a linguagem e o real. N„o È fora de contexto, ali·s, recordar que Lacan descreveu a constituiÁ„o do simbÛlico como um passo anterior ‡ constituiÁ„o do ìreal, na medida em que este constitui o ‚mbito do que fica fora da simbolizaÁ„oî. Para ele ìo que n„o veio ‡ luz do simbÛlico aparece no realî (nas palavras de Lacan: ìCe qui níest pas venu au jour du Symbolique, apparaÓt dans le RÈelî). O real resiste ao simbÛlico, contorna-o, ele È negado por este ñ mas tambÈm reafirmado ex negativo. O real se manifesta na negaÁ„o: daÌ a resistÍncia ‡ transposiÁ„o (traduÁ„o) do inimagin·vel para o registro das palavras; daÌ tambÈm a perversidade do negacionismo que como que ìcoloca o dedo na feridaî do drama da irrepresentabilidade vivido pelo sobrevivente. Este vive a culpa devido ‡ cis„o entre a imagem (da cena traum·tica) e a sua aÁ„o, entre a percepÁ„o e o conhecimento, ‡ disjunÁ„o entre significante e significado. Primo Levi abriu o seu livro Os afogados e os sobreviventes ñ uma das mais profundas reflexıes j· escritas sobre o testemunho ñ lembrando a incredulidade do p˙blico de um modo geral diante das primeiras notÌcias, j· em 1942, sobre os campos de extermÌnio nazistas. E mais, essa rejeiÁ„o das notÌcias diante de seu ìabsurdoî fora prevista pelos prÛprios perpetradores do genocÌdio. Estes estavam preocupados em apagar os rastros dos seus atos, mas sabiam que podiam contar com a incredulidade do p˙blico diante de barbaridades daquela escala. Levi lembra a fala de um SS aos prisioneiros narrada por Simon Wiesenthal: ìSeja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocÍs nÛs ganhamos; ninguÈm restar· para dar testemunho, mas, mesmo que alguÈm escape, o mundo n„o lhe dar· crÈdito... Ainda que fiquem algumas provas e sobreviva alguÈm, as pessoas dir„o que os fatos narrados s„o t„o monsjunho/99 - CULT 43

Reprodução do livro After Auschwitz

Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

Nesta p·gina e na p·gina oposta, o Monumento contra o Fascismo, em Hamburgo-Harburg

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Reprodução do livro After Auschwitz

Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

Antimonumento foi concebido para desaparecer O Monumento contra o Fascismo em Hamburgo-Harburg, na Alemanha, de autoria do casal Jochen Gerz e Esther Shalev-Gerz, È na verdade um antimonumento: o pilar de aÁo de 12 metros de altura e recoberto por uma pelÌcula de chumbo foi instalado em 1986 e depois, aos poucos, enterrado no seu pedestal atÈ desaparecer por completo em 1993. O p˙blico participou da obra escrevendo no monumento com cinzÈis: palavras antifascistas, mas tambÈm neonazis. Os Gerz expressaram a necessidade e a impossibilidade da memÛria literalizando o dito de Nietzsche: ìFora com os monumentos!î

truosos que n„o merecem confianÁa: dir„o que s„o exageros e propaganda aliada e acreditar„o em nÛs que negaremos tudo, e n„o em vocÍs. NÛs È que ditaremos a histÛria dos Lager (campos de concentraÁ„o).î

MemÛria e narraÁ„o Auschwitz pode ser compreendido como uma das maiores tentativas de ìmemoricÌdioî da histÛria. A histÛria do Terceiro Reich, para Levi, pode ser ìrelida como a guerra contra a memÛria, falsificaÁ„o orwelliana da memÛria, falsificaÁ„o da realidade, negaÁ„o da realidadeî. Os sobreviventes e as geraÁıes posteriores defrontam-se a cada dia com a tarefa (no sentido que Fichte e os rom‚nticos deram a esse termo: de tarefa infinita) de rememorar a tragÈdia e enlutar os mortos. Tarefa ·rdua e ambÌgua, pois envolve tanto um confronto constante com a cat·strofe, com a ferida aberta pelo trauma ñ e, portanto, envolve a resistÍncia e a superaÁ„o da negaÁ„o ñ, como tambÈm visa um consolo nunca totalmente alcanÁ·vel. Aquele que testemunha sobreviveu ñ de modo incompreensÌvel ñ ‡ morte: ele como que a penetrou. Se o indizÌvel est· na base da lÌngua, o sobrevivente È aquele que reencena a criaÁ„o da lÌngua. Nele a

morte ñ o indizÌvel por excelÍncia: que a toda hora tentamos dizer ñ recebe novamente o cetro e o impÈrio sobre a linguagem. O simbÛlico e o real s„o recriados na sua relaÁ„o de m˙tua fertilizaÁ„o e exclus„o. A memÛria ñ assim como a linguagem, com seus atos falhos, torneios de estilo, silÍncios etc. ñ n„o existe sem a sua resistÍncia. Elie Wiesel, que resolveu redigir o seu relato testemunhal, Nuit, dez anos apÛs a libertaÁ„o do Campo de ConcentraÁ„o de Auschwitz ñ portanto, apÛs dez anos de silÍncio e de resistÍncia ‡ memÛria ñ, narra-nos que o seu testemunho nasceu de uma promessa que ele fizera na sua noite de chegada a Auschwitz. Jamais je níoublierai cette nuit, la premiËre nuit de camp qui a fait de ma vie une nuit longue et sept fois verrouillÈe, ìNunca me esquecerei dessa noite, a primeira noite do campo que fez da minha vida uma noite longa e sete vezes seladaî. Como Harald Weinrich nos chama atenÁ„o no seu belÌssimo livro Lethe. Kunst und Kritik des Vergessens (Lete. Arte e crÌtica do esquecimento), Elie Wiesel utilizou a dupla negativa para a sua promessa ñ ìnunca me esquecereiî ñ em vez da forma afirmativa: ìvou me lembrarî. A memÛria sÛ existe ao lado do esquecimento: um complementa e alimenta o

outro. Esses conceitos n„o s„o simplesmente antÌpodas, existe uma modalidade do esquecimento ñ como Nietzsche j· o sabia ñ t„o necess·ria quanto a memÛria e que È parte desta. O geÛgrafo Paus‚nias narra que, na BeÛcia, o rio do Esquecimento, o Lete, corria ao lado da fonte da MemÛria, MnemÛsina. Segundo os antigos, as almas bebiam do rio Lete para se livrar da sua existÍncia anterior e posteriormente reencarnar em um novo corpo (como se lÍ em VirgÌlio, Eneida, VI, 713-716). Para o sobrevivente, a narraÁ„o combina memÛria e esquecimento. Primo Levi afirma que n„o sabe se os testemunhos s„o feitos ìpor uma espÈcie de obrigaÁ„o moral para com os emudecidos ou, ent„o, para nos livrarmos de sua memÛria: com certeza o fazemos por um impulso forte e duradouroî. Jorge Semprun, que foi libertado de Buchenwald em 11 de abril de 1945, compÙs o seu testemunho sobre a sua experiÍncia no Lager apenas em 1994. A explicaÁ„o para esse ìatrasoî, esse aprËs-coup, est· clara no texto: Semprun optara pelo esquecimento. GraÁas a LorËne, ele narra em Lí Ècriture ou la vie, ìque n„o sabia de nada, que nunca soube de nada, eu voltei para a vida. Ou seja, para o esquecimento: a vida era o preÁoî. junho/99 - CULT 45

Por outro lado a modalidade da memÛria da cat·strofe tem uma longa tradiÁ„o no judaÌsmo ñ uma cultura marcada pelo pacto de memÛria entre Deus e seu povo: um n„o dever· esquecer-se do outro. A religi„o judaica È antes de mais nada estruturada no culto da memÛria. Suas principais festas s„o rituais de rememoraÁ„o da histÛria (no Pessah a leitura da Haggadah traz a histÛria do  xodo com o intuito de transportar as geraÁıes posteriores ‡quele evento; no Purim recorda-se a salvaÁ„o dos judeus da perseguiÁ„o de Haman; no casamento judaico, em um ato de luto, um copo È quebrado para recordar, em meio ‡ comemoraÁ„o, a destruiÁ„o do Templo e a impossibilidade de reparo ñ o tikkun na tradiÁ„o da mÌstica judaica ñ desta perda). A Tor·, como È conhecido, È mantida atual graÁas aos seus coment·rios midrachÌsticos. O filÛsofo norte-americano Berel Lang aproximou de modo particularmente feliz a literatura sobre a Shoah e a tradiÁ„o do coment·rio bÌblico: em ambos os casos trata-se de uma reatualizaÁ„o, de uma recepÁ„o aprËs-coup de algo que nunca pode ser totalmente compreendido/traduzido. O comentador, assim como o que compıe seu testemunho, tenta preencher os espaÁos abertos no texto/histÛria, sabendo que essa tarefa È infinita, e, mais importante, com a consciÍncia de que a leitura È perpassada por um engajamento moral, por um compromisso Ètico com o ìoriginalî. A necessidade de testemunhar Auschwitz fica clara se nos lembrarmos dos in˙meros livros de memÛria redigidos logo apÛs aquela tragÈdia. Os chamados Yizkor Bikher n„o s„o nada mais do que uma continuidade tanto da tradiÁ„o iconoclasta judaica como da outra face dessa tradiÁ„o: a da escrita e a da narraÁ„o como meio de manter a memÛria. Em um desses livros podemos ler: ìO livro memorial que ir· imortalizar as memÛrias dos nossos parentes, os judeus de Pshaytsk, servir·, portanto, como um substituto do t˙mulo. Sempre que nÛs tomarmos este livro, nÛs sentiremos que 46 CULT - junho/99

nÛs estamos ao lado do t˙mulo deles, porque atÈ isso os assassinos negaram a eles.î Escritura e morte se reencontram aqui nos livros de memÛria, mas agora no sentido oposto, ou seja, n„o mais da morte como estando na base da linguagem, mas sim na medida em que o texto deve manter a memÛria, a presenÁa dos mortos e dar um t˙mulo a eles.

Cat·strofe e a arte da memÛria O texto de testemunho tambÈm tem por fim um culto aos mortos. N„o por acaso esse culto est· na origem de uma antiq¸Ìssima tradiÁ„o da arte da memÛria ou da mnemotÈcnica (ars memoriae). Vale a pena recordar nesse contexto a anedota acerca do poeta SimÙnides de Ceos (apr. 556-apr.468 a.C.), considerado o pai dessa arte, e que foi narrada, entre outros, por CÌcero (De oratore II, 86, 352-354), por Quintiliano (11,2,11-16) e por La Fontaine. Nessa anedota, SimÙnides È salvo do desabamento de uma sala de banquete onde se comemorava a vitÛria do pugilista Skopas. O que nos importa nessa histÛria È o que se sucedeu apÛs essa cat·strofe. Os parentes das vÌtimas n„o conseguiram reconhecer os seus familiares mortos que se encontravam totalmente desfigurados sob as ruÌnas. Eles recorreram a SimÙnides ñ o ˙nico sobrevivente ñ que graÁas ‡ sua mnemotÈcnica conseguiu se recordar de cada participante do banquete, na medida em que ele se recordou do local ocupado por eles. A sua memÛria topogr·fica procedia conectando cada pessoa a um locus (ou topos: daÌ se ver a mnemotÈcnica como um procedimento topogr·fico, como a descriÁ„o/criaÁ„o de uma paisagem mnemÙnica). A memÛria topogr·fica È tambÈm antes de mais nada uma memÛria imagÈtica: na arte da memÛria conectamse as idÈias que devem ser lembradas a imagens e, por sua vez, essas imagens a locais bem conhecidos. Aquele que se recorda deve poder percorrer essas paisa-

gens mnemÙnicas descortinando as idÈias por detr·s das imagens. Essa anedota que est· na origem da tradiÁ„o cl·ssica da arte da memÛria deixa entrever de modo claro n„o apenas a profunda relaÁ„o entre a memÛria e o espaÁo, e portanto notar em que medida a memÛria È uma arte do presente, mas tambÈm a relaÁ„o entre a memÛria e a cat·strofe, entre memÛria e morte, desabamento. Em portuguÍs, note-se, fica acentuada a dialÈtica Ìntima que liga o lembrar ao esquecer, se pensarmos na etimologia latina que deriva o ìesquecerî de cadere, cair: o desmoronamento apaga a vida, as construÁıes, mas tambÈm est· na origem das ruÌnas ñ e das cicatrizes. A arte da memÛria, assim como a literatura de testemunho, È uma arte da leitura de cicatrizes. (Georges Perec, ali·s, narra na sua obra autobiogr·fica a import‚ncia que ele atribuÌa a uma cicatriz no seu l·bio superior, uma marca de ìuma import‚ncia capitalî que ele nunca tentou dissimular. Outra revelaÁ„o para nÛs central no seu livro È um plano de redigir um livro que justamente deveria se chamar Les lieux [Os locais ] ñ ìno qual eu tento descrever o devir, no decorrer de doze anos, de doze lugares parisienses aos quais, por uma raz„o ou outra, estou particularmente ligadoî. Walter Benjamin realizara em parte esse projeto ñ tendo Berlim como topos ñ nos seus textos autobiogr·ficos Inf‚ncia berlinense e CrÙnica berlinense.)

EstÈtica e Ètica Mas voltemos por ˙ltimo ao tema inicial da ìinimagibilidadeî da Shoah, ‡ sua inverossimilhanÁa. Para Aharon Appelfeld ñ um judeu da Bucovina, local de origem de outros dois escritores centrais na literatura de testemunho: Paul Celan e Dan Pagis ñ ìtudo o que ocorreu foi t„o gigantesco, t„o inconcebÌvel, que a prÛpria testemunha via-se como uma inventora. O sentimento de que a sua experiÍncia n„o pode ser contada, que ninguÈm pode entendÍ-la, talvez seja um dos piores que foram sentidos pelos sobreviventes apÛs a

guerraî. J· AristÛteles, o primeiro grande teÛrico da recepÁ„o das obras de arte, dizia na sua PoÈtica: ìDeve-se preferir o que È impossÌvel, mas verossÌmil, ao que È possÌvel, mas n„o persuasivoî (1460a). E Boileau, no sÈculo XVII, escreveu ecoando AristÛteles: ìO espÌrito n„o se emociona com o que ele n„o acreditaî (Arte poÈtica, III, 59). Os primeiros document·rios realizados no imediato pÛs-guerra, extremamente realistas, geravam esse efeito perverso: as imagens eram ìreais demaisî para serem verdadeiras, elas criavam a sensaÁ„o de descrÈdito nos espectadores. A saÌda para esse problema foi a passagem para o estÈtico: a busca da voz correta. A memÛria da Shoah ñ e a literatura de testemunho de um modo geral ñ desconstrÛi a Historiografia tradicional (e tambÈm os tradicionais gÍneros liter·rios) ao incorporar elementos antes reservados ‡ ìficÁ„oî. A leitura estÈtica do passado È necess·ria, pois essa leitura se opıe ‡ ìmusealizaÁ„oî do ocorrido: ela est· vinculada a uma modalidade da memÛria que quer manter o passado ativo no presente. Em vez da tradicional representaÁ„o, o seu registro È do Ìndice: ela quer apresentar, expor o passado, seus fragmentos, cacos, ruÌnas e cicatrizes. N„o sÛ na literatura, tambÈm nas artes pl·sticas percebe-se esse percurso em direÁ„o ao testemunho, ao trabalho com a memÛria das cat·strofes (lembremos apenas das obras de Cindy Sherman, Anselm Kiefer, Samuel Back e Francis Bacon). As fronteiras entre a estÈtica e a Ètica tornamse mais fluidas: testemunha-se o despertar para a realidade da morte. Nesse despertar na e para a noite ñ como dizia Walter Benjamin: ìa noite salvaî ñ despertamos antes de mais nada para a nossa culpa, pois nosso compromisso Ètico estende-se ‡ morte do outro, ‡ consciÍncia do fato de que a nossa vis„o da morte chegou tarde demais.

Reproduzido do catálogo Passages – Homage to Walter Benjamin, Tel-Aviv Museum of Art

SaÌda para a luz, parte do monumento Passagens, construÌdo por Dani Karavan em homenagem a Walter Benjamin no cemitÈrio de Portbou, na Espanha (fronteira com a FranÁa), local onde o filÛsofo se suicidou em 1940

Márcio Seligmann-Silva professor de teoria literária na PUC-SP, autor de Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: Romantismo e crítica poética e tradutor de O conceito de crítica de arte no romantismo alemão, de Walter Benjamin, e de Laocoonte, de G.E. Lessing – todos pela editora Iluminuras

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Talvez a frase mais conhecida do

Fotos/Reprodução

filÛsofo alem„o e judeu Th. W. Adorno seja essa afirmaÁ„o peremptÛria de um ensaio de 1949: ìEscrever um poema apÛs Auschwitz È um ato b·rbaro, e isso corrÛi atÈ mesmo o conhecimento de por que hoje se tornou impossÌvel escrever poemas.î Uma frase polÍmica, cuja recepÁ„o foi bastante infeliz, como se ela significasse uma condenaÁ„o pura e simples da poesia contempor‚nea. No contexto do ensaio sobre CrÌtica ‡ cultura e ‡ sociedade que ela conclui, essa sentenÁa ressalta a urgÍncia de um pensamento n„o harmonizante, mas impiedosamente crÌtico, isto È, tambÈm a necessidade da cultura como inst‚ncia negativa e utÛpica contra sua degradaÁ„o a uma m·quina de entretenimento e de esquecimento (esquecimento, sobretudo, do passado nazista recente nessa Alemanha em reconstruÁ„o).

Adorno retomar·, por duas vezes e explicitamente, essa polÍmica afirmaÁ„o: em 1962, no ensaio intitulado Engagement, e em 1967, na ˙ltima parte da DialÈtica negativa. Ele n„o trata de ameniz·-la, pedindo desculpas aos poetas, mas, ao contr·rio, radicaliza e amplia seu alcance. N„o È somente a beleza lÌrica que se transforma em inj˙ria ‡ memÛria dos mortos da Shoah, mas a prÛpria cultura, na sua pretens„o de formar uma esfera superior que exprime a nobreza humana, revela-se um engodo, um compromisso covarde, sim, um ìdocumento da barb·rieî, como disse Walter Benjamin. Cito a passagem bastante provocativa da DialÈtica negativa: Que isso [Auschwitz] possa ter acontecido no meio de toda tradiÁ„o da filosofia, da arte e das ciÍncias do Esclarecimento, significa mais que somente o fato desta, do espÌrito, n„o ter conseguido empolgar e transformar os homens. Nessas repartiÁıes mesmas, na pretens„o

enf·tica ‡ sua autarquia, ali mora a n„overdade. Toda cultura apÛs Auschwitz, inclusive a crÌtica urgente a ela, È lixo. Por sorte, esse livro bem mais comprido e bem mais difÌcil que o ensaio de 1949 n„o se tornou t„o famoso! ìCultura como lixoî, essa express„o poderia gerar muito mais mal-entendidos ainda do que aquela sentenÁa sobre a impossibilidade da escrita poÈtica. Minha tentativa de compreens„o se atÈm ‡ definiÁ„o a menos polÍmica possÌvel daquilo que constitui o ìlixoî: n„o È somente aquilo que fede e apodrece, mas antes de mais nada È aquilo que sobra, de que n„o se precisa, aquilo que pode ser jogado fora porque n„o possui existÍncia independente plena. A inverdade da cultura, portanto, estaria ligada ‡ sua pretens„o de ìautarquiaî, de existÍncia soberana. N„o que ela seja perfumaria in˙til, como o afirmam tanto alguns comunistas obtusos quanto posi-

A (im)possibilidade da poesia Jeanne Marie Gagnebin

Acima, Theodor W. Adorno. Na p·gina oposta, Paul Celan 48 CULT - junho/99

Para Adorno, a violaÁ„o nazista da dignidade humana destitui a soberania da raz„o e da arte, impondo-nos um novo ìimperativo categÛricoî que consiste em fazer com que Auschwitz n„o se repita e com que a poesia rejeite o ìprincÌpio de estilizaÁ„oî que torna o Holocausto represent·vel e assimil·vel

tivistas de v·rias proveniÍncias. Mas ela tampouco constitui um reino separado, cuja ordem somente precisaria seguir uma verdade intrÌnseca. Quando a cultura consagra a separaÁ„o entre ìespÌrito e trabalho corporalî, quando se fortalece pela ìoposiÁ„o ‡ existÍncia materialî, em vez de acolher dentro dela esse fundo material, bruto, animal no duplo sentido de bicho e de vivo, esse fundo n„o-conceitual que lhe escapa, ent„o, segundo Adorno, a cultura se condena ‡ ìideologiaî. N„o È simples compreender essa condenaÁ„o da autarquia da esfera cultural em Adorno se lembrarmos que ele, simultaneamente, sempre defendeu a possibilidade e mesmo a necessidade da arte autÙnoma, em oposiÁ„o ao entretenimento da ìind˙stria culturalî. Tentemos pensar essa aparente incoerÍncia. Proponho lanÁar m„o de uma dimens„o essencial nesse texto, a dimens„o Ètica que n„o pode se

subordinar, segundo Adorno, nem a uma postura estÈtica nem a uma sistem·tica especulativa, mas que deve se afirmar como exigÍncia incontorn·vel, inscrevendo uma ruptura no fluxo argumentativo. Assim como o conceito de autonomia da arte reenvia, antes de mais nada, ‡ necessidade de resistÍncia (e n„o a uma suposta independÍncia da criaÁ„o artÌstica), assim tambÈm a recusa da autarquia em relaÁ„o ‡ esfera cultural remete ao corte que o sofrimento, em particular o sofrimento da tortura e da aniquilaÁ„o fÌsica, o sofrimento provocado, portanto, pelo mal humano, instaura dentro do prÛprio pensar. Podemos nos arriscar a dizer que ìAuschwitzî como emblema do intoler·vel, isto È, daquilo que fundamenta a ìfilosofia moral negativa de Adornoî (express„o feliz de G. Schweppenh‰user), domina com sua sombra de cinzas a reflex„o estÈtica. A inst‚ncia Ètica,

que nasce da indignaÁ„o diante do horror, comanda, pois, sua elaboraÁ„o estÈtica. Nas mesmas p·ginas da DialÈtica negativa encontramos a famosa transformaÁ„o adornania do imperativo categÛrico kantiano: Hitler impÙs um novo imperativo categÛrico aos homens em estado de n„o-liberdade: a saber, direcionar seu pensamento e seu agir de tal forma que Auschwitz n„o se repita, que nada de semelhante aconteÁa. Esse imperativo È t„o resistente ‡ sua fundamentaÁ„o como outrora os dados (die Gegebenheit) do kantiano. Querer trat·-lo de maneira discursiva È blasfemo: nele se deixa sentir de maneira corpÛrea (leibhaft) o momento, no Ètico, de algo que vem por demais (des Hinzutretenden). Sem poder entrar numa an·lise detalhada dessa citaÁ„o, gostaria de fazer duas observaÁıes. Esse novo imperativo categÛrico n„o È mais fruto de nossa livre de-

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FUGA SOBRE A MORTE

Leite-breu díaurora nÛs o bebemos ‡ tarde nÛs o bebemos ao meio-dia e de manh„ nÛs o bebemos ‡ noite bebemos e bebemos cavamos uma cova grande nos ares onde n„o se deita ruim Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve que escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margarete ele escreve e aparece em frente ‡ casa e brilham as estrelas [ele assobia e chama seus mastins ele assobia e chegam seus judeus manda cavar uma cova na terra ordena-nos agora toquem para danÁarmos Leite-breu díaurora nÛs te bebemos ‡ noite nÛs te bebemos de manh„ e ao meio-dia nÛs te bebemos ‡ tarde bebemos e bebemos Na casa mora um homem que brinca com as serpentes e escreve que escreve para a Alemanha quando escurece teus cabelos de ouro Margarete Teus cabelos de cinza Sulamita cavamos uma cova grande [nos ares onde n„o se deita ruim Ele grita cavem mais atÈ o fundo da terra vocÍs aÌ vocÍs ali cantem e toquem ele pega o ferro na cintura balanÁa-o seus olhos s„o azuis cavem mais fundo as p·s vocÍs aÌ vocÍs ali continuem tocando [para danÁarmos Leite-breu díaurora nÛs te bebemos ‡ noite nÛs te bebemos ao meio-dia e de manh„ nÛs te bebemos ‡ tardinha bebemos e bebemos Na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete teus cabelos de cinza Sulamita ele brinca com as serpentes Ele grita toquem mais doce a morte a morte È uma mestra díAlemanha Ele grita toquem mais escuro os violinos depois subam aos ares como fumaÁa e ter„o uma cova grande nas nuvens onde n„o se deita ruim Leite-breu díaurora nÛs te bebemos ‡ noite nÛs te bebemos ao meio-dia a morte È uma mestra díAlemanha nÛs te bebemos ‡ tarde e de manh„ bebemos e bebemos a morte È uma mestra díAlemanha seu olho È azul ela te atinge com bala de chumbo te atinge em cheio na casa mora um homem teus cabelos de ouro Margarete ele atiÁa seus mastins contra nÛs d·-nos uma cova no ar ele brinca com as serpentes e sonha a morte È uma mestra díAlemanha teus cabelos de ouro Margarete teus cabelos de cinza Sulamita PAUL CELAN TraduÁ„o de CLAUDIA CAVALCANTI 50 CULT - junho/99

Sai no Brasil antologia de Paul Celan O poema ìFuga sobre a morteî, reproduzido ao lado, faz parte do volume Cristal, uma antologia de poemas de Paul Celan (1920-1970) que ser· lanÁada em breve pela editora Iluminuras, com traduÁıes de Claudia Cavalcanti.

cis„o pr·tica-moral, sendo ao mesmo tempo a condiÁ„o transcendental dessa liberdade, como o era o imperativo de Kant. Ele nos foi aufgezwungen (imposto por coerÁ„o) por Hitler, por uma figura histÛrica precisa, manifestaÁ„o da crueldade e da contigÍncia histÛricas. Como Schweppenh‰user o ressalta, ìAuschwitzî instaura na reflex„o moral uma ruptura essencial (e, para Adorno, definitiva) com a tradiÁ„o Ètica cl·ssica em busca de princÌpios universais e trans-histÛricos. Agora devemos nos contentar com as sobras dessa bela tradiÁ„o ñ que provou sua impotÍncia em relaÁ„o ao nazismo como j· afirmava a DialÈtica do Esclarecimento, obra seminal de Adorno e de Horkheimer (1947). Devemos, antes de mais nada, construir Èticas histÛricas e concretas orientadas pelo dever de resistÍncia, afim de que ìAuschwitz n„o se repita, que nada de semelhante aconteÁaî; a ressalva È essencial: n„o h· repetiÁıes idÍnticas na histÛria, mas sim retomadas e variaÁıes que podem ser t„o cruÈis mesmo que diferentes. Ver Srebrenica etc.... A insistÍncia dada ‡ corporeidade do sofrimento e do impulso de indignaÁ„o que lhe responde È um outro elemento importante a ser notado. Adorno retoma v·rios elementos da ìÈtica da compaix„oî (Mitleidsethik) de Schopenhauer, isto È, de uma Ètica cujo fundamento n„o se encontra numa norma racional abstrata, mesmo que consensual, mas sim num impulso prÈ-racional em direÁ„o ao outro

Museu de Israel, Jerusalém

O anjo da HistÛria ¿ direita, Angelus Novus (1920), aquarela de Paul Klee que Walter Benjamin comprou em 1921 em Munique, por ocasi„o de uma visita ao seu amigo Gershom Scholem. Ela o acompanhou por toda sua vida e inspirou a sua famosa nona tese ìSobre o conceito da HistÛriaî: ìExiste um quadro de Klee chamado Angelus Novus. Nele vemos um anjo que parece estar na iminÍncia de se afastar de algo para o qual ele olha fixamente. Seus olhos est„o arregalados, sua boca est· aberta e suas assas estendidas. O anjo da HistÛria deve ter essa aparÍncia. Ele volta sua face para o passado. Onde aparece para nÛs uma cadeia de acontecimentos, ele vÍ aÌ uma ˙nica cat·strofe, que de modo ininterrupto acumula escombros sobre escombros e os lanÁa diante dos seus pÈs. Ele gostaria de tardar-se, despertar os mortos e juntar o destruÌdo. Mas uma tempestade sobra do ParaÌso, prendeu-se nas suas assas e È t„o forte que o anjo n„o pode mais fecha-las. Essa tempestade impele-o de modo irresistÌvel para o futuro, para o qual ele vira as costas, enquanto diante dele a pilha de escombros cresce atÈ o cÈu. O que nÛs denominamos de progresso È essa tempestade.î (traduÁ„o de M·rcio Seligmann-Silva)

sofredor. Simultaneamente, porÈm, esses motivos s„o transformados materialisticamente, numa tentativa de despoj·-los de qualquer elemento de condescendÍncia ou de aceitaÁ„o do dado, elemento facilmente presente na categoria de ìcompaix„oî. O pensamento de Adorno sobre Auschwitz o leva a tematizar uma dimens„o do sofrer humano pouco elaborada pela filosofia, mas enfaticamente evocada nos relatos dos assim chamados sobreviventes: essa corporeidade primeira, no limiar da passividade e da extinÁ„o da consciÍncia que uma vontade de aniquilaÁ„o ñ esta sim, clara, precisa, operacional ñ se esmera em pÙr a nu para melhor extermin·-la. Forma-se aqui esse pacto sinistro entre uma racionalidade rebaixada ‡ funcionalidade da destruiÁ„o e uma corporeidade reduzida ‡ matÈria passiva, sofredora, objeto de experiÍncias nos campos da morte como ratos ou sapos nos laboratÛrios da ciÍncia. E a violaÁ„o desse corpo primeiro (Leib), passivo e tenaz, vivo e indeterminado, acarreta a violaÁ„o do corpo como configuraÁ„o fÌsica singular de cada sujeito individual (Kˆrper). Como nos livros de Primo Levi ou de Robert Antelme, uma afirmaÁ„o radical nasce nessas p·ginas de Adorno: a mais nobre caracterÌstica do homem, sua raz„o e sua linguagem, o logos, n„o pode, apÛs Auschwitz, permanecer o mesmo, intacto em sua esplÍndida autonomia. A aniquilaÁ„o de corpos humanos nessa sua dimens„o origin·ria de corporeidade

indefesa e indeterminada como que contamina a dimens„o espiritual e intelectual, essa outra face do ser humano. Ou ainda: a violaÁ„o da dignidade humana, em seu aspecto primevo de pertencente ao vivo, tem por efeito a destituiÁ„o da soberba soberania da raz„o. No domÌnio mais especificamente estÈtico, esse abalo da raz„o e da linguagem tem conseq¸Íncias dr·sticas para a produÁ„o artÌstica. Criar em arte ñ como tambÈm em pensamento ñ ìapÛs Auschwitzî significa n„o sÛ rememorar os mortos e lutar contra o esquecimento, uma tarefa por certo imprescindÌvel, mas comum a toda tradiÁ„o desde a poesia Èpica. Significa tambÈm acolher, no prÛprio movimento da rememoraÁ„o, essa presenÁa do sofrimento sem palavras nem conceitos que desarticula a vontade de coerÍncia e de sentido de nossos empreendimentos artÌsticos e reflexivos. Adorno analisa essa exigÍncia paradoxal de uma rememoraÁ„o estÈtica sem figuraÁ„o no ensaio de 1962, Engagement, no qual cita novamente sua afirmaÁ„o sobre a impossibilidade da poesia apÛs Auschwitz e a retrabalha, reelabora-a, tentando pensar juntas as duas exigÍncias paradoxais que se dirigem ‡ arte de hoje: lutar contra o esquecimento e o recalque, isto È, igualmente lutar contra a repetiÁ„o e pela rememoraÁ„o, mas n„o transformar a lembranÁa do horror em mais um produto cultural a ser consumido; evitar, portanto, que ìo princÌpio de esti-

lizaÁ„o artÌsticoî torne Auschwitz represent·vel ñ isto È, com sentido, assimil·vel, digerÌvel ñ, enfim, que transforme Auschwitz em mercadoria que faz sucesso (como fazem sucesso, ali·s, v·rios filmes sobre o Holocausto para citar somente exemplos oriundos do cinema!). A transformaÁ„o de Auschwitz em ìbem culturalî arrisca tornar mais leve e mais f·cil sua integraÁ„o na cultura que o gerou, afirma Adorno. Desenha-se assim uma tarefa paradoxal de transmiss„o e de reconhecimento da irrepresentabilidade daquilo que, justamente, h· de ser transmitido porque n„o pode ser esquecido. Um paradoxo que estrutura as mais l˙cidas obras de testemunho sobre a Shoah (e tambÈm sobre o Gulag), perpassadas pela necessidade absoluta do testemunho e, simultaneamente, pela sua impossibilidade ling¸Ìstica e narrativa. Ser·, ali·s, este paradoxo que vai reger a obra do grande poeta que Adorno reconhece e homenageia na ˙ltima parte da sua ˙ltima obra, a Teoria estÈtica (1970), Paul Celan, cuja poesia, ao transformar o corpo das palavras em alem„s, como que lembra os corpos sem palavras e sem nome aniquilados por algozes que tambÈm falavam alem„o. Jeanne Marie Gagnebin professora de filosofia na PUC-SP e na Unicamp, autora de História e narração em Walter Benjamin (Perspectiva) e Sete Aulas sobre Linguagem, Memória e História (Imago), entre outros; o presente ensaio retoma teses de uma conferência apresentada no Colóquio de Estética em Belo Horizonte, em setembro de 1997

junho/99 - CULT 51

No conto autobiogr·fico ìA morte

do meu paiî, no livro Holocausto: Canto de uma geraÁ„o perdida, o escritor Elie Wiesel dilacera-se na d˙vida sobre rezar ou n„o o kadish, a reza judaica dos mortos, no anivers·rio da morte de seu pai, assassinado pelos nazistas. O eixo principal da narrativa est· na revolta do homem diante do que Wiesel chama de ìausÍncia de Deusî, que teria tornado possÌvel o genocÌdio. Rezar o kadish, buscar Deus, escreve Wiesel, constituiria o mais duro protesto diante da sua ausÍncia. Em ìA morte do meu paiî, o conflito central de Wiesel È com Deus. N„o h· conflitos entre homens. Os judeus n„o reagem e n„o se revoltam contra os nazistas, e estes encarnam uma espÈcie de mal teolÛgico, sobrehumano. Em outro conto, o desfecho se d· no plano divino. Um judeu deportado de trem foge ìmilagrosamenteî do vag„o.

O homem era um profeta, escreve Wiesel, e sabia o seu destino. O sobrevivente n„o resistiu com armas, n„o ajudou os companheiros; tampouco se salvou por suas prÛprias forÁas. Foi um milagre. Esses dois contos de Elie Wiesel s„o bastante significativos n„o apenas de sua obra, mas de uma recorrente e dominante abordagem da memÛria do Holocausto. … como se Wiesel nos dissesse que n„o È possÌvel reconhecer uma dimens„o humana no nazismo, humano no sentido de entender o nazismo na histÛria, que n„o È possÌvel reconhecer homens nos nazistas. Essa idÈia È compartilhada por alguns dos mais conhecidos historiadores e filÛsofos do pÛs-guerra, como Saul Friedlander e George Steiner. Essa recusa de um plano histÛrico de compreens„o faz com que ao mesmo tempo que Wiesel insista na necessidade de lembrar e de contar, ele acabe blo-

queando o acesso para um compartilhamento da sua experiÍncia. Porque seus contos falam sempre da impossibilidade de entender e de comunicar. ìTalvez algum dia alguÈm explique como, no nÌvel humano, Auschwitz foi possÌvel; mas, no nÌvel de Deus, Auschwitz constituir· para sempre o mais desnorteante dos mistÈriosî, escreveu Wiesel. Como entender que Wiesel ñ escritor e prÍmio Nobel da Paz, tornado o homem-memÛria do Holocausto, cuja voz È ouvida sempre que se trata da violaÁ„o dos direitos humanos ñ afirme a impossibilidade de comunicar? Nas palavras de Wiesel, ìos eruditos e filÛsofos de todos os matizes que tiverem a oportunidade de observar a tragÈdia recuar„o ñ se forem capazes de sinceridade e humildade ñ sem ousar penetrar no ‚mago do assunto; e, se n„o o forem, a quem interessar„o as suas conclusıes grandi-

MemÛria e histÛria do Holocausto Roney Cytrynowicz

A Torre das Faces, no United States Holocaust Memorial Museum 52 CULT - junho/99

qualquer reaÁ„o das vÌtimas, negando ‡s prÛprias vÌtimas, atÈ a consumaÁ„o ˙ltima da sua prÛpria morte, que elas seriam assassinadas. Nas c‚maras de g·s atingiu-se o limite m·ximo de capacidade fÌsica de matar com o m·ximo de n„o-envolvimento pessoal dos prÛprios nazistas e m·xima possibilidade de negaÁ„o da morte e posterior destruiÁ„o dos vestÌgios. As vÌtimas recebiam cabides numerados para encontrar as roupas apÛs o ìbanho de desinfecÁ„oî. Dentro das c‚maras de g·s era calculada uma luz para atenuar o p‚nico. O Zyklon B foi utilizado apÛs testes com v·rias tipos de g·s. Uma novilÌngua utilizada pela burocracia impedia qualquer referÍncia direta ‡ morte: assassinato em massa era ìtratamento especialî, c‚maras de g·s eram ìcasas de banhoî, ìbanho de desinfecÁ„oî, ìaÁıesî ou ìtratamento apropriadoî.

O genocÌdio dos judeus foi concebido para evitar a reaÁ„o das vÌtimas e o envolvimento pessoal dos nazistas, eliminando os vestÌgios dos assassinatos, provocando nos sobreviventes um efeito de estranhamento em relaÁ„o ‡ vida fora dos campos de extermÌnio e conferindo ao historiador a tarefa de recuperar memÛrias e fragmentos individuais que tornem compreensÌvel a gram·tica de uma ideologia que organizou o plano sistem·tico de destruiÁ„o de um povo

No plano ideolÛgico, os nazistas se consideravam soldados biolÛgicos que estavam executando uma miss„o que a prÛpria natureza se encarregaria de fazer contra as ìraÁasî consideradas inferiores, em um processo de ìseleÁ„o naturalî. Para o nazismo, a histÛria era luta de raÁas e eles estavam fazendo ìbiologia aplicadaî. Eram mÈdicos, como mostrou Robert Jay Lifton, que faziam todo o processo de ìseleÁ„oî na entrada dos campos e operavam as c‚maras de g·s. Todo o processo de extermÌnio foi medicalizado segundo uma concepÁ„o eugenista, central no nazismo, de que matar judeus significava manter a sa˙de do ìcorpo arianoî, associada ‡ propaganda milenarista e anticomunista de que matar o povo judeu era a salvaÁ„o do ìReich de Mil Anosî. Diante do processo de dissimulaÁ„o e negaÁ„o da morte, as vÌtimas sofriam

Fotos/Reprodução do livro Mahnmale des Holocaust

loq¸entes? Por definiÁ„o, Auschwitz fica alÈm do seu vocabul·rioî. Esta frase pode ser entendida como uma ruptura profunda entre os planos da memÛria e da histÛria. Os sobreviventes do Holocausto, como Wiesel, sentem uma solid„o insuper·vel, como se a memÛria constituÌsse um peso terrÌvel do qual jamais se est· livre. A histÛria (entendida como o ofÌcio do historiador) jamais os ampara, n„o importa quantos livros sejam escritos ou centros de documentaÁ„o organizados. Apenas o curso da memÛria suspende temporariamente a ang˙stia. A ruptura ou dist‚ncia entre histÛria e memÛria pode ser entendida ñ como uma hipÛtese ñ a partir de uma aproximaÁ„o histÛrica que pesquise a prÛpria concepÁ„o e execuÁ„o do extermÌnio nazista. O processo de genocÌdio dos judeus europeus foi concebido e executado, entre 1941 e 1945, para evitar

Entrada do campo de concentraÁ„o de Auschwitz junho/99 - CULT 53

um processo ainda mais violento de estranhamento. Tudo era conduzido na mais absoluta ìordemî e ìnormalidadeî; n„o havia Ûdio, mas sim uma burocratizaÁ„o limite da morte. Em Eichmann em JerusalÈm, Hannah Arendt mostrou que a personalidade emblem·tica do nazismo È Eichmann, o burocrata cumpridor de ordens, um ìvazio de pensamentoî, sem Ûdio pelas vÌtimas. Isso È muito mais perturbador do que perceber os nazistas como o mÈdico de Auschwitz, Mengele, que suscita explicaÁıes do tipo ìloucura coletivaî ou do nazismo como a ìloucuraî de lÌderes como Hitler e Mengele. Em um filme alem„o sobre o julgamento dos carrascos de um campo de concentraÁ„o vÍ-se a esposa de um guarda contar como era boa a vida na casa a poucos metros das c‚maras de g·s, o amor do marido pela filha, os cuidados com o jardim. Como pode o sobrevivente retomar a vida no mundo, ressignific·-la, retomar os vÌnculos e os laÁos que alicerÁam uma vida corriqueira em um mundo que se tornou, repentina e inexplicavelmente, do ponto de vista subjetivo, inteiramente estranhado? Uma visita ao campo de extermÌnio de Auschwitz-Birkenau e aos campos de concentraÁ„o, como Dachau, revela a inaceit·vel proximidade fÌsica dos campos com a vida cotidiana polonesa ou alem„. Onde estava a fronteira entre o genocÌdio e as tramas do cotidiano? Esta fronteira nunca existiu, mas a experiÍncia do sobrevivente È a de que ele teria sido deportado para outro planeta, tamanha a sensaÁ„o de isolamento e falta de sentido do que estava ocorrendo. ìO verdadeiro horror dos campos de concentraÁ„o e de extermÌnio reside no fato de que os internos, mesmo que consigam manter-se vivos, est„o mais isolados do mundo dos vivos do que se tivessem morrido, porque o horror compele ao esquecimentoî, escreveu Hannah Arendt. 54 CULT - junho/99

ìEste mundo n„o È este mundoî poderia ser a frase dita por todos os sobreviventes. ìQuem n„o esteve ël·í jamais vai poder entenderî, dizem muitos sobreviventes Trabalhando em um document·rio do exÈrcito brit‚nico sobre campos de concentraÁ„o e de extermÌnio ao final da Segunda Guerra Mundial, o cineasta Alfred Hitchkock, ao encarar a vis„o de valas com milhares de cad·veres em Bergen Belsen, decidiu filmar de forma que a c‚mera deslizasse das testemunhas que olhavam em direÁ„o ‡s valas sem operar nenhum corte de imagem. Para Hitchkock, aquelas imagens eram t„o terrivelmente inÈditas que era preciso filmar sem truques, para que nunca alguÈm pudesse acusar as cenas de montagem. De certa forma, a memÛria e o testemunho negam o acesso do historiador a uma aproximaÁ„o racional do nazismo e do Holocausto. Entre memÛria e histÛria parece haver, em certos momentos, uma impossibilidade de comunicaÁ„o, conforme os contos de Wiesel. O que est· em quest„o com Auschwitz n„o È a morte individual, que pode ser contada pela memÛria, mas o genocÌdio de um povo executado por um Estado moderno no coraÁ„o da Europa em pleno sÈculo XX. Ao historiador cabe recuperar as memÛrias e os fragmentos individuais e torn·-los compreensÌveis, a ele cabe superar a barreira do intangÌvel para entender a organizaÁ„o do Estado alem„o a partir de 1933, para entender a gram·tica interna da ideologia, sua potÍncia, em que esferas da vida social e psicolÛgica ela atua, a emergÍncia desta ideologia na histÛria da Alemanha e da Europa e como ela se apossou do Estado e como este organizou, pela primeira vez na histÛria, um plano sistem·tico de destruiÁ„o de todo um povo. O nazismo condensou em grau m·ximo ñ atÈ agora conhecido ñ as

possibilidades de destruiÁ„o neste sÈculo. A partir do trabalho de historiadores, psicanalistas e pesquisadores de ciÍncias sociais, compreendemos hoje significativamente mais do que ao fim da guerra, se pensarmos em Breviaire de la haine, de Leon Poliakov e depois em Raul Hilberg, e estudos mais especÌficos como Robert Jay Lifton, sobre mÈdicos e medicina nazista, em Martin Broszat, George L. Mosse, Arno Mayer, Martin Gilbert, sobre o n„o bombardeio de Auschwitz pelos aliados, o trabalho ˙nico sobre os ciganos de Grattan Puxon e Donald Kenrick, entre dezenas de estudos decisivos. Os sobreviventes testemunharam fatos que n„o tÍm paralelo na histÛria, fatos para os quais nenhuma experiÍncia pessoal pode contribuir para um entendimento coletivo. Na memÛria reside, portanto, muitas vezes, um presente sem codificaÁ„o, sem atualizaÁ„o possÌvel do conhecimento e da experiÍncia. Sem tradiÁ„o, escreveu Arendt, que selecione e nomeie, que transmita e preserve, parece n„o haver nenhuma continuidade consciente no tempo e, portanto, humanamente falando, nem passado nem futuro, mas apenas o ciclo biolÛgico. E o que pode ser mais desesperador do que isso? N„o devemos esperar do testemunho que ele explique algo, nÛs n„o devemos lhe fazer perguntas, apenas garantir-lhe o direito de falar, de contar. A solid„o do sobrevivente È a dor de descobrir-se em um mundo em que tudo tem a mesma aparÍncia, homens, carros, mÈdicos, caminhıes, chuveiros, e n„o poder entender como tudo isso transfigurou-se em uma gigantesca m·quina de morte. … dor pela sensaÁ„o de absoluto isolamento em um mundo no qual seres humanos ñ m·xima semelhanÁa ñ tornaram-se assassinos de um povo. Pode-se

BIBLIOGRAFIA Literatura de testemunho

compreender Elie Wiesel. … como se sua fala fosse o sentido da sua vida. Porque n„o importa mais o que ele conta, e muito menos sua descrenÁa na possibilidade de contar. Importa apenas falar (ouvir), como a manter-se vivo, falar para si mesmo que se est· vivo, que se sobreviveu e buscar restabelecer algum tipo de vÌnculo com a idÈia de que existe uma humanidade fundada em leis como ìN„o Assassinar·s!î. Em muitos de seus contos, Wiesel n„o escreve para comunicar, mas para n„o deixar morrer, para si mesmo, seu prÛprio testemunho, garantia de continuidade, de vida. A literatura È o testemunho de sua prÛpria sobrevivÍncia. NÛs precisamos que o sobrevivente conte sem compartilhar e ele precisa que nÛs escutemos sem indagar. MemÛria e histÛria devem se respeitar, mesmo que se desencontrem. A histÛria deve resgatar as histÛrias de vida, as dores e as intensidades subjetivas, mas jamais pode recusar a aproximaÁ„o com a mais (aparentemente) incompreensÌvel destruiÁ„o. … preciso que cada documento da barb·rie seja recuperado, estudado, criticado, entendido, conservado, arquivado, publicado e exposto, de forma a tornar a histÛria uma forma presente de resistÍncia e de registro digno dos mortos, muitos sem nome conhecido e sem t˙mulo. Entender cada vez mais como Auschwitz tornou-se realidade histÛrica È um imperativo para compreender o horror que reside no centro da histÛria deste sÈculo e sustentar a resistÍncia contra o horror que nunca deixa de se aproximar.

Roney Cytrynowicz historiador, doutor em história pela USP, autor de Memória da barbárie. A história do genocídio dos judeus na Segunda Guerra Mundial (Edusp), e escritor, autor do volume de contos A vida secreta dos relógios e outras histórias (Scritta)

ï At the mindís limits. Contemplations by a survivor on Auschwitz and its realities, de Jean AmÈry. TraduÁ„o de Sidney Rosenfeld e Stella Rosenfeld, Nova York, Schocken Books, 1990. ï LíespËce humaine, de Robert Antelme. Paris, Gallimard, 1957. ï Badheim 1939; Tzili, de Aharon Appelfeld. Trad. de R. Berezin e N. Rosenfeld. S.P., Summus, 1986. ï Nuit et brouillard, de Jean Cayrol. Paris, Fayard, 1997. ï Cristal, de Paul Celan. TraduÁ„o de Cl·udia Cavalcanti. S„o Paulo, Iluminuras, 1999. ï Sete rosas mais tarde. Antologia poÈtica, de Paul Celan. TraduÁ„o de Jo„o Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa, Cotovia, 1993. ï A dor, de Marguerite Duras. TraduÁ„o de Vera Adami. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1986. ï Ver: Amor, de David Grossman. Trad. de Nancy Rosenchan. RJ, Nova Fronteira, 1993. ï Di·rio do gueto, de Janus Korczak. TraduÁ„o de Jorge Rochtlitz. S„o Paulo, Perspectiva, 1986. ï A tabela periÛdica, de Primo Levi. Trad. de Luiz S. Henriques. RJ, Relume-Dumar·, 1994. ï … isto um homem?, de Primo Levi. TraduÁ„o de Luigi del Re, Rio de Janeiro, Rocco, 1988. ï Os afogados e os sobreviventes, de Primo Levi. Trad. de Luiz S. Henriques. RJ, Paz e Terra, 1990. ï A trÈgua, de Primo Levi. Trad. de Marco Lucchesi. S„o Paulo, Companhia das Letras, 1997. ï Se n„o agora, quando?, de Primo Levi. Trad. de Nilson Moulin. S.P., Cia. das Letras, 1999. ï W ou a memÛria da inf‚ncia, de Georges Perec. Trad. de Paulo Neves. S.P., Cia. das Letras, 1995. ï Am I a murderer?: Testament of a jewish ghetto policeman, de Calel Perechodnik. TraduÁ„o de Frank Fox, Boulder (Colorado, EUA), Westview Press, 1996. ï LíÈcriture ou la vie, de Jorge Semprun. Paris, Gallimard, 1994. ï Maus, de Art Spiegelman. S„o Paulo, Brasiliense, 1995. ï Os di·rios de Victor Klemperer, trad. de Irene Aron. SP, Companhia das Letras, 1999.

Ensaios ï Quel che resta di Auschwitz. Líarchivio e il testimone, de Giorgio Agamben. Turim, Bollati Boringhieri Editore, 1998. ï Arbeit am nationalen Ged‰chtnis, de Aleida Assmann. Frankfurt a. M., Campus Verlag, 1993. ï Zeit und Tradition. Kulturelle Strategien der Dauer, de Aleida Assmann. Kˆln, Bˆhlau, 1998. ï Shoah. Formen der Erinnerung, org. de Nicolas Berg. Munique, Wilhelm Fink Verlag, 1996. ï Trauma. Explorations in memory, org. de Cathy Caruth. Baltimore/Londres, Johns Hopkins University Press, 1995. ï Reflections of nazism: An essay on kitsch and death, de Saul Friedl‰nder. Bloomington, Indiana University Press, 1991. ï Probing the limits of tepresentation. Nazism and the final Solution, org. de Saul Friedl‰nder. Cambridge, Massachusetts/Londres, Harvard University Press, 1992. ï The longest shadow in the aftermath of the Holocaust, de Geoffrey Hartman. Bloomington, Indianapolis, Indiana University Press, 1996. ï Twilight memories. Marking time in a culture of amnesia, de Andreas Huyssen. N. Y., Routledge, 1986. ï La Shoah et les nouvelles figures mÈtapsychologigues de Nicolas Abraham et Maria Torok, de F·bio Landa. Paris, Lí Harmattan, 1999 (o tÌtulo ser· lanÁado no Brasil pela Editora Unesp) ï Act and idea in the nazi genocide, de Berel Lang. Chicago/Londres, University of Chicago Press, 1990. ï Holocaust testimonies. The ruins of memory, de Lawrence L. Langer. New Haven/Londres, Yale University Press, 1991. ï Preempting the Holocaust, de Lawrence Langer. New Haven/Londres, Yale Universityu Press, 1998. ï Testimony: Literature, psychoanalysis, history, de Dorie Laub e Shoshana Felman. Londres, Routledge, 1991. ï Les lieux de mÈmoire, org. de Pierre Nora. Paris, Gallimard, 1984. ï Pulsional. Revista de Psican·lise, n˙meros 116/117, dez. 1998/ jan. 1999. (DossiÍ sobre ìCat·strofe e RepresentaÁ„oî organizado por Arthur Nestrovski e M·rcio Seligmann-Silva) ï Breaking crystal. Writing and memory after Auschwitz, org. de Efraim Sicher. Urbana/Chicago, University of Illinois Press, 1998. ï Em face do extremo, de Tzvetan Todorov. Trad. de Egon de Oliveira Rangel e Enid Abreu Dobr·nszky. Campinas, Papirus, 1995. ï Les assassins de la mÈmoire. ìUn Eichmann de papierî et autres essais sur le rÈvisionisme, de Pierre Vidal-Naquet. Paris, La DÈcouverte, 1987. ï Art of memory, de Francis A. Yates. University of Chicago Press, 1974. ï The texture of memory: Holocaust memorials and meaning, de James Young. New Haven/Londres, Yale University Press, 1993. junho/99 - CULT 55

ì...um texto belo e verdadeiro, verdadeiro como unicamente a ficÁ„o pode ser...î Emmanuel LÈvinas Na obra de Primo Levi h· dois temas, ou melhor, duas referÍncias liter·rias marcantes: A Divina ComÈdia de Dante Alighieri e a BÌblia, mais precisamente, o Antigo Testamento. Ambos remetem ‡ quest„o da Ètica, central na literatura de testemunho. O tÌtulo de seu primeiro e mais famoso livro narra a experiÍncia do autor no campo de concentraÁ„o de Auschwitz: … isto um homem? (Se questo Ë un uomo de 1947). O tÌtulo originalmente proposto por Levi foi Afogados e sobreviventes (Sommersi e salvati), que se tornou posteriormente tÌtulo de seu ˙ltimo livro, publicado em 1986. Pelo que o prÛprio autor afirma, os afogados do tÌtulo aludem a um verso do sexto canto do Inferno, e a Divina ComÈdia como um todo est· presente nos dois livros. Ademais, o capÌtulo mais impressionante e significativo de … isto um

homem? È sem d˙vida alguma ìO canto de Ulissesî, onde o narrador autobiogr·fico Primo faz uma interpretaÁ„o do canto XXVI do Inferno com a finalidade de ensinar a lÌngua italiana a seu colega de deportaÁ„o Pikolo. O interessante deste capÌtulo È que o Ulisses do texto de Dante È um herÈtico e rebelde, que desafia a ira dos deuses sabendo estar fadado ‡ morte. Ulisses, cujo parentesco com o protagonista de Homero È muito remoto, quer alcanÁar o conhecimento e a virtude. ìSeu projeto explorador nasce de um ato de vontade individual, de um estado de insatisfaÁ„o, de um sentimento de insaciabilidade que culmina no vislumbre da montanha do paraÌso e na sentenÁa infernalî, nas palavras de Guilhermo Giucci (Viajantes do maravilhoso). O texto de Levi pode ser lido como uma dupla met·fora, pois o inferno do campo de concentraÁ„o se apresenta mais monstruoso e unheimlich (ìsinistroî, n„o-familiar) do que a prÛpria fonte liter·ria. Por outro lado, o valor Ètico da impossÌvel operaÁ„o de traduÁ„o (para Pikolo que n„o entende o italiano),

o car·ter lacunar da memÛria de Primo e sua ang˙stia em tentar juntar os fragmentos da memÛria representam a sublime mÌmese liter·ria da tentativa de elaborar posteriormente o trauma: Levi relata que, para escrever o capÌtulo todo, levou a meia hora do intervalo do almoÁo na firma onde trabalhava como quÌmico. O narrador alcanÁa, nesse contexto impossÌvel, uma nova intuiÁ„o para interpretar o texto: ìAlgo de gigantesco que eu mesmo vi sÛ agora, na intuiÁ„o de um momento, talvez o porquÍ de nosso destino, de nosso estar hoje aqui...î.

Shem· Israel As alteraÁıes no tÌtulo do poema colocado como epÌgrafe de … isto um homem? s„o tambÈm algo muito significativo, j· que o poema possui um estilo fortemente bÌblico. Seu tÌtulo original era Salmo, na primeira vers„o (1946), quando o texto foi publicado ainda em capÌtulos separados numa revista. Na ediÁ„o de 1947, o tÌtulo do poema mudar· para Se questo Ë un uomo (idÍntico ao tÌtulo do livro), atÈ ser

A Ètica da memÛria Andrea Lombardi

Na obra do escritor italiano Primo Levi, que escreveu livros fundamentais sobre a experiÍncia de Auschwitz, coexistem uma Ètica pragm·tica e uma Ètica da leitura que remonta ao modelo de exegese permanente da tradiÁ„o judaica, cujo apelo ao livre-arbÌtrio est· na raiz do anti-semitismo 56 CULT - junho/99

Na p·gina oposta, Shulamite (1983), tela de Anselm Kiefer

mudado novamente, na colet‚nea de poemas A ora incerta, para Shem·. O tÌtulo Numa hora incerta se origina do famoso poema de Coleridge, The rime of the ancient mariner, e simboliza a ang˙stia oriunda da compuls„o ‡ repetiÁ„o do ato de contar a prÛpria histÛria, estabelecendo uma significativa analogia entre testemunha e escritor: ìDesde ent„o, numa hora incerta,/ Essa agonia retorna:/ Enquanto n„o narrar minha f·bula medonha/ Esse coraÁ„o em mim continuar· ardendoî, que se tornar· a epÌgrafe de A trÈgua, um relato da aventura do narrador Primo em sua volta para a It·lia apÛs a libertaÁ„o do campo pelas tropas soviÈticas. A escolha n„o È casual: Shem· Israel ìrepresenta a profiss„o de fÈ pela tradiÁ„o religiosa judaica, seu princÌpio m·ximo e a condensaÁ„o de seus ideaisî (segundo A Lei de MoisÈs e as ëHaftarotí do Rabino Meir Matzliah Melamed). O texto de Shem· È formulado pela primeira vez em GÍnesis, 49. Num coment·rio que se apÛia no do Talmud, aparecem dois elementos interessantes: Levi È um dos filhos

de Jacob e Shem· È interpretado como o texto que funda a noÁ„o de testemunho, pois se liga ‡ afirmaÁ„o de um Deus ˙nico: ìO Midrash conta que Jacob reuniu ao redor de sua cama todos os filhos e antes de abenÁoar fez-lhes esta ˙ltima pergunta: ëMeus filhos! Estais bem firmes na vossa crenÁa num ˙nico Deus?í. Como resposta, os filhos levantaram suas m„os ao cÈu e disseram: ëShema Yisrael. Ouve, Israel (Jacob)! O Eterno È nosso Deus, o Eterno È umí!.... A frase da Shem‡ ficou desde ent„o como a profiss„o de fÈ do judaÌsmo, seu princÌpio m·ximo e a condensaÁ„o de seus ideais. Essas palavras foram as ˙ltimas pronunciadas pelos m·rtires israelitas que caÌram em todas as geraÁıes ëAl kidush Hashemí (pela santificaÁ„o do nome de Deus de Israel). ëShema Yisrael, Hashem ElohÈnu Hashem Ehadí (O Eterno È nosso Deus, o Eterno È um) ... em qualquer idioma que ouÁas, mesmo que n„o compreendas o que ouves... deve penetrar directamente no teu coraÁ„o e na tua alma.î

E o coment·rio do Talmud acrescenta: ìA ⁄ltima letra da primeira palavra de Shem· e a ˙ltima letra da ˙ltima palavra Ehad do versÌculo quatro se acham escritas na Torah com letras grandes. O exegeta Baal Haturim faz notar que essas duas letras compıem a palavra ed, o que significa testemunho. Cada um de nÛs, recitando a Shem·, testemunha a divinidade do Eterno e aceita o jugo de seu reino.î

Duas perspectivas da Ètica A literatura de testemunho ñ e n„o unicamente os textos de Levi ñ se caracteriza pela presenÁa constante do tema da Ètica, de forma direta ou indireta, com ou sem referÍncias ‡ BÌblia. Tome-se como exemplo a recente publicaÁ„o de Se n„o agora, quando?, o ˙nico livro de ficÁ„o dos quatro escritos por Primo Levi sobre o tema. Em seu PÛsf·cio o autor declara: ìN„o tive como meta escrever uma histÛria real, mas reconstruir o itiner·rio, plausÌvel, porÈm imagin·rio, de um desses

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bandos.î O tÌtulo do livro remete a uma frase atribuÌda ao rabino Hilel, do sÈculo I, e indica a urgÍncia do imperativo moral na tradiÁ„o judaica. Hilel teria afirmado, segundo fonte do Talmud: ìN„o faÁa aos outros aquilo que vocÍ mesmo combate; esta È toda a Tor·. O resto È coment·rio. Essa frase contÈm toda a Tor·, o restante È coment·rio...î (Sergio Sierra. La lettura ebraica delle Scritture). O texto atribuÌdo a Hilel, fundador de uma escola que ter· muita influÍncia na tradiÁ„o judaica, mostra uma impressionante analogia com o pensamento crist„o. Em relaÁ„o ‡ Ètica, as observaÁıes de Levi apontam para problem·ticas novas, antes n„o examinadas, verdadeiras descobertas: a situaÁ„olimite, segundo sua descriÁ„o, deixa aflorar uma ìzona cinzentaî da Ètica para efeito de um julgamento posterior: ìUma zona cinzenta, cujas bordas s„o indefinidas, que separa e ao mesmo tempo re˙ne os dois campos dos senhores e dos escravos (...). Quanto mais dura È a opress„o, tanto mais difusa entre os oprimidos a disponibilidade em colaborar com o poder... ñ N„o existe proporcionalidade entre a piedade que provamos e a extens„o da dor que suscita essa piedade: uma ˙nica Anne Frank suscita mais comoÁ„o do que as in˙meras que sofreram como ela, mas cujas imagens permaneceram na sombra.î Se o narrador autobiogr·fico È testemunha, ser· o leitor posterior a ser induzido a tomar o lugar do juiz: ìEm quem lÍ (ou escreve) hoje a histÛria dos Lager, È evidente a tendÍncia, ali·s a necessidade, de dividir o mal e o bem, de poder tomar partido, repetindo o gesto de Cristo no JuÌzo Universal [grifo meu]î (Afogados e Sobreviventes, p. 25). Note-se: nas Notas do segundo volume das Obras de Levi consta: ìrepetindo o gesto de Cristo no JuÌzo Universal de Michelangeloî [grifo meu], que desloca a observaÁ„o de Levi para o universo Ètico crist„o (analogamente ‡ citada frase de Hilel). Isso nos leva ‡ hipÛtese de que existem duas perspectivas da Ètica para tratar dos textos de Levi e nos textos da literatura de testemunho: por um lado, uma referÍncia (implÌcita ou explÌcita) a um Deus da justiÁa, que inspira (ou deveria inspirar!) nosso comportamento como cidad„os. Trata-se de uma Ètica pragm·tica, cujos efeitos afetam nossa cidadania de seres humanos, aquela que inspira nosso comportamento cotidiano, mas que n„o neces58 CULT - junho/99

sariamente È idÍntica ‡ noÁ„o de Ètica que se origina da perspectiva do leitor e da leitura. Por outro lado, mesmo realizando uma leitura laica de seus textos (em v·rias entrevistas Levi reafirma seu agnosticismo), teremos de admitir que o Deus de Shem· apresenta um elemento dram·tico que poder· ser lido como um Deus do texto, hipÛtese que o crÌtico Harold Bloom atribui aos cabalistas (em Cabala e crÌtica), um elemento de interesse enorme para a crÌtica contempor‚nea. Trata-se do mesmo Deus que se manifesta em  xodo 3, 14 e que responde ‡ pergunta sobre seu nome, formulada pela primeira e ˙nica vez em todo o texto do Velho Testamento. A resposta, altamente enigm·tica, È a seguinte: ìSerei tudo aquilo que ser·.î Contrariamente ‡ opini„o manifestada por Martin Buber (em seu texto MoisÈs), que afirma tratar-se de ìuma frase realmente pronunciadaî, o texto pode ser lido como uma met·fora no horizonte hermenÍutico do judaÌsmo: o momento de simbolizaÁ„o da invenÁ„ointroduÁ„o da escrita na tradiÁ„o ocidental. Essa reinterpretaÁ„o simbÛlica (pois a escrita alfabÈtica j· existia na Època a que se refere o relato bÌblico) ir· se contrapor de forma evidente ao relato da invenÁ„o da escrita descrito por Plat„o no Fedro. Os dois mitos relatados em textos diferentes (que correspondem a contextos diferentes), ambos fundantes dentro da tradiÁ„o ocidental, n„o sÛ provÍm de perspectivas diferentes, como podem ser tomados como base para visıes opostas: otimista e libertadora, a vis„o de MoisÈs fundamenta a exegese da escrita em permanente tens„o com a oralidade; pessimista e conservadora, a vis„o de Thoth no Fedro estabelece um limite e desautoriza o texto escrito, atribuindo-lhe o efeito de favorecer o esquecimento. Os atributos dessa nova ìdescobertaî atribuÌda a MoisÈs ser„o idÍnticos ‡ funÁ„o da escrita para o leitor contempor‚neo: seu poder È criador (ou m·gico), ela È eterna e onipotente, ou seja, possui os atributos de Deus.

O que È judaÌsmo? Em segundo lugar, convÈm deter-se na problem·tica da definiÁ„o de judaÌsmo, tanto em relaÁ„o aos textos de Levi quanto em relaÁ„o aos textos que formam a literatura de testemunho em geral. Renato Mezan formula a seguinte pergunta em Psican·lise e judaÌsmo: Resson‚ncias: ìO que significa, para os judeus, o ser judeu?î A definiÁ„o que ele d· È ìuma

variante... de algo que podemos chamar de ëespÌrito judaicoí, ëpensamento judaicoí, ëmaneira judaica de ver o mundoíî. Sua conclus„o em relaÁ„o ao fundador da psican·lise È que ìFreud retÈm do judaÌsmo algo que È tambÈm conseq¸Íncia dos complexos processos histÛricos e sociais que afetaram os judeus da Europa Central no sÈculo XIX: a idÈia de que o judaÌsmo È, essencialmente, uma Ètica.î (p. 28). … extremamente significativo que em Freud haja, como efeito do anti-semitismo nazista, um consciente deslocamento de sua identidade em relaÁ„o a sua prÛpria tradiÁ„o familiar e cultural: de alem„o para judeu, analogamente ao que relatam muitos dos autores da literatura de testemunho: ìMinha lÌngua È alem„ ñ afirma ele em 1930 ñ, minha cultura, minha formaÁ„o s„o alem„s e eu me via espiritualmente como alem„o atÈ perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na ¡ustria alem„; desde ent„o, prefiro denominar-me judeu.î Para Primo Levi, a quest„o se apresenta em termos an·logos: ìAdaptei-me ‡ condiÁ„o de judeu unicamente como efeito das leis raciais, promulgadas na It·lia em 1938..., e da deportaÁ„o em Auschwitz.î Ou, expresso de forma mais contundente: ìAdmiti ser judeu: em parte pelo cansaÁo, em parte por uma irracional teimosia provocada pelo orgulho...î, segundo afirmar· o narrador autobiogr·fico Primo Levi em A tabela periÛdica, ao relatar sua pris„o anterior ‡ deportaÁ„o para Auschwitz. Segundo o historiador LÈon Poliakov (em O mito ariano), a definiÁ„o especÌfica de judaÌsmo no contexto do sÈculo XX se d· como um produto original do anti-semitismo. Nesse sentido, portanto, a prÛpria definiÁ„o de ìformaÁ„o culturalî, utilizada por Mezan, deveria ser, por sua vez, reinterpretada segundo um modelo de exegese permanente, caracterÌstico da prÛpria tradiÁ„o judaica. O conceito de judaÌsmo do sÈculo XX ter· de ser submetido a uma reinterpretaÁ„o a partir da afirmaÁ„o de uma suposta tradiÁ„o indo-germ‚nica de cunho nazista, cujo produto final ser· o genocÌdio. Como n„o ver que os ìjudeusî n„o constituem um povo, n„o possuem uma lÌngua comum, n„o est„o unificados pela crenÁa em Deus, nem h· um Estado que afirme a pretens„o de representar todos eles? O ìjudaÌsmoî pode assim vir a significar metaforicamente o ìretorno do recalcadoî (ou do reprimido?) na tradiÁ„o

Grazia Neni/Divulgação

ocidental, ou seja uma das respostas ‡ pergunta implÌcita sobre nossa prÛpria origem (posta e negada por Nietzsche) e remete a uma luta ferrenha contra a democracia interpretativa que o mito mosaico no texto bÌblico introduz. A tradiÁ„o judaica expressa, entre outros elementos, a negaÁ„o da existÍncia de limites na interpretaÁ„o, pois reconhece, incentiva e postula uma interpretaÁ„o infinita. A indagaÁ„o sobre o judaÌsmo pode ser considerada j· uma resposta ‡ quest„o radical posta por Adorno e, ao mesmo tempo, ‡ pergunta acerca de nossa identidade ocidental. SÛ È possÌvel escrever poesia, literatura, refletir sobre Ètica, depois de Auschwitz, indagando acerca do lugar do judaÌsmo em nossa tradiÁ„o. Em outras palavras: somos todos meio judeus (pois nosso outro lado È, com certeza, grego ou greco-crist„o). De fato, coexistem duas vertentes dentro da tradiÁ„o ocidental: uma tradiÁ„o filosÛfica e religiosa greco-crist„, ontolÛgica ou essencialista (segundo an·lise de Jacques Derrida em Gramatologia e A farm·cia de Plat„o), e uma tradiÁ„o exegÈtica fundamentada num Deus do texto, produto simbÛlico da introduÁ„o da escrita, como descrito no texto do Antigo Testamento, que apresenta a relaÁ„o entre oralidade e escrita de maneira diametralmente oposta ‡ vis„o contida no Fedro de Plat„o. A tradiÁ„o judaica antecipa o ponto de vista defendido pela crÌtica contempor‚nea, ou seja, afirma a centralidade do leitor no ato interpretativo, d· Ínfase ‡ oralidade ñ uma quest„o pertinente, a este propÛsito, È a do por que Plat„o introduziu um mito egÌpcio, evidentemente fundamentado na vis„o antidemocr·tica dos sacerdotes tebanos em relaÁ„o ao uso da lÌngua e de seu poder, em vez de utilizar mitos gregos, bem mais prÛximos de seu contexto. A mesma tradiÁ„o exegÈtica baseada no Deus do texto admite e incentiva uma possibilidade infinita de interpretaÁ„o, o que leva a uma reelaboraÁ„o interpretativa do prÛprio conceito de tradiÁ„o, ao menos em sua vers„o cabalista ou hassÌdica. Efeito desse percurso È que o texto examinado ir· sugerir o caminho interpretativo. Caso contr·rio, qualquer an·lise ir· tornar-se uma confirmaÁ„o tautolÛgica de suas prÛprias premissas metodolÛgicas. Nesse sentido, n„o È pertinente nem produtiva uma definiÁ„o ìontolÛgicaî do conceito de ìjudaÌsmoî (ou seja, v·lida para todas as Èpocas e todas as correntes). Um bom exemplo de atitudes

favor·veis ‡ ruptura nessa tradiÁ„o (dentro de uma substancial continuidade) È dada pela tradiÁ„o hassÌdica, assim como a relata Martin Buber nas HistÛrias do Rabi. Nela, os sucessores do Baal Shem Tov entram quase que permanentemente em conflito com seus mestres e precursores. O anti-semitismo pode ser interpretado como brutal, radical e monstruosa oposiÁ„o ‡ interpretaÁ„o infinita, manifestada a partir da irritaÁ„o de Plat„o contra os sofistas e os poetas em sua Rep˙blica. Posteriormente, a reflex„o platÙnica-crist„ dos padres da Igreja ir· alimentar essa oposiÁ„o, que se manifestar· na rejeiÁ„o veemente da liberdade interpretativa infinita (notadamente contra a Cabala), afirmada reiteradamente por pensadores do porte de Pico della Mirandola, na RenascenÁa, e Friedrich Schleiermacher, no sÈculo XIX. O anti-semitismo nazista poderia representar uma das manifestaÁıes dessa oposiÁ„o e a falta da reflex„o acerca de suas causas permite a repetiÁ„o de atos perversos e extremos. N„o se trata de uma manifestaÁ„o obrigatÛria. N„o h· determinismo nisso. Nesse sentido, o anti-semitismo pode ser tomado como radicalizaÁ„o, modelo-limite da opÁ„o de impedir ou simplesmente limitar (mais ou menos radicalmente, de forma mais ou menos brutal) a liberdade e, particularmente, a liberdade de interpretaÁ„o. Sendo assim, a indagaÁ„o acerca da definiÁ„o de literatura de testemunho poder· originar dois pontos de vista igualmente produtivos para um trabalho de recuperaÁ„o da histÛria passada e recente: 1. A literatura de testemunho apresenta em forma liter·ria o momento de elaboraÁ„o do trauma dos sobreviventes do genocÌdio e ter· como modelo o trabalho propriamente psicanalÌtico. Estando repletos de referÍncias ‡ BÌblia, sejam elas religiosas, histÛricas, culturais e hermenÍuticas, os textos que a compıem remetem necessariamente ‡ problem·tica do judaÌsmo como conceito surgido no sÈculo XX a partir da oposiÁ„o ao anti-semitismo, com as implicaÁıes j· vistas, o que remete a uma ìautoan·liseî da tradiÁ„o cultural e ‡ relaÁ„o entre tradiÁ„o judaica e tradiÁ„o greco-crist„. 2. De um ponto de vista especificamente hermenÍutico, a literatura de testemunho pode ser vista como designaÁ„o daqueles textos que tÍm como referÍncia, de forma direta ou indireta, o Deus do texto proclamado perem-

O escritor italiano e judeu Primo Levi

ptoriamente em Shem· e no  xodo 3, 14. Consequentemente, ir· se originar uma indagaÁ„o sobre a Ètica do livre-arbÌtrio, fundamentada ma interpretaÁ„o do texto do Velho Testamento citado. O primeiro ponto de vista torna-se, assim, o ponto de partida de uma Ètica pragm·tica ou do comportamento, pois sua referÍncia È um Deus da justiÁa. O segundo ponto de vista poderia constituir-se num primeiro passo para definir uma Ètica da leitura ou da literatura como Ètica da memÛria, que evoca a cena prim·ria da escrita. Essa Ètica da leitura se identifica evidentemente com a Ètica do livre-arbÌtrio, que esse Deus do texto defende, como ampliaÁ„o do espaÁo de liberdade interpretativa, que em ˙ltima inst‚ncia se torna uma Ètica da liberdade. Andrea Lombardi professor de literatura italiana da USP

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NinguÈm pode tornar-se aquilo que ele n„o pode encontrar nas suas memÛrias. Jean AmÈry Existe uma identidade que pode ser estabelecida sem recurso ‡ nossa memÛria? N„o È verdade que cada um È o que È, porque acredita, por assim dizer, na histÛria da sua vida? Se nossas aÁıes s„o garantidas apenas por traÁos de memÛria, inscritos na nossa mente e na memÛria da nossa coletividade, como podemos ter uma garantia quanto ‡ verdadeira identidade/histÛria de cada um? Um evento que abalou o mundo das letras nos ˙ltimos meses e que envolve a trajetÛria de um livro pode nos ajudar a refletir sobre essa fragilidade da nossa identidade. Poucas obras de literatura tiveram uma carreira t„o vertiginosa como o livro Fragmentos de autoria de Binjamin Wilkomirski editado no Brasil no ano passado pela Companhia das Letras. Publicado em 1995, j· foi traduzido para mais de doze lÌnguas. Com base nele, trÍs

filmes foram rodados e uma peÁa teatral encenada. Desde a sua publicaÁ„o, o seu autor n„o parou de dar palestras nas melhores universidades europÈias e norte-americanas. Wilkomirski vive em Thurgau, na SuÌÁa, e tambÈm tem sido freq¸entemente solicitado a falar nas escolas, desse e de outros paÌses, para contar a histÛria da sua vida. O livro Fragmentos narra a histÛria da sua inf‚ncia mais remota ñ entre os trÍs e os sete anos de idade ñ passada nos campos de concentraÁ„o nazistas de Majdanek e Auschwitz, na PolÙnia. Ali os leitores se confrontam com o ìlimite do humanoî, melhor dizendo, com a mais bestial brutalidade de que o homem È capaz. CrianÁas s„o assassinadas com a mesma facilidade com que se acende um isqueiro ou se mata uma mosca. Infantes de um ano de idade famintos comem seus prÛprios dedos. Wilkomirski narra seus fragmentos de memÛria de modo caÛtico, porque, como ele afirma, trata-se de uma memÛria longÌnqua da sua primeira inf‚ncia que, alÈm do mais, foi sistematicamente negada e ìcensuradaî por seus pais adotivos suÌÁos.

O motivo da recepÁ„o ampla e positiva que o livro mereceu È simples: a obra testemunhal de Wilkomirski È, de fato, uma das mais impressionantes realizaÁıes no gÍnero. NinguÈm sai incÛlume da leitura desse livro. O seu leitor fica impregnado por um paradoxal e aterrorizador ìexcesso de realidadeî. Ao lÍlo, n„o podemos deixar de refletir sobre a humanidade e sobre os seus limites; sobre a Ètica e a maldade humana. Sobre a morte e sobre a dor como realidades onipresentes e incontorn·veis. Nunca um testemunho das atrocidades nazistas tinha atingido o detalhamento que essa obra contÈm. O livro se estrutura todo com base nos fatos histÛricos. Ele È antes de mais nada um documento da barb·rie. Tanto o autor no posf·cio como o texto da orelha da ediÁ„o brasileira informam sobre a vida de Wilkomirski. Ficamos sabendo que ele n„o apenas È m˙sico e construtor de instrumentos, mas tambÈm um pesquisador do Holocausto (ou da Shoah, termo academicamente e politicamente mais correto para indicar o assassinato de cerca de seis milhıes de judeus pelos nazistas).

Os fragmentos de uma farsa M·rcio Seligmann-Silva

Livro de Binjamin Wilkomirski, que foi considerado um dos exemplos m·ximos da literatura de testemunho e foi resenhado por M·rcio SeligmannSilva na CULT 11, È na verdade uma obra ficcional que, ao ser lida como invenÁ„o liter·ria, se transforma em artefato de m·-fÈ e de estÈtica duvidosa 60 CULT - junho/99

Wilkomirski x Doessekker O jornal suÌÁo Weltwoche publicou duas reportagens, em 27 de agosto e em 3 de setembro de 1998, que logo se tornaram o epicentro de um dos maiores esc‚ndalos da vida liter·ria dos ˙ltimos anos. Nelas lia-se de modo inequÌvoco: ìOs Fragmentos de Binjamin Wilkomirski, a obra suÌÁa que mais faz sucesso atualmente, s„o uma ficÁ„o.î O autor dessas reportagens, o escritor e jornalista Daniel Ganzfried, È filho de judeus h˙ngaros e autor de um romance, Der Absender (O Remetente), sobre a segunda geraÁ„o dos sobreviventes da Shoah, e, logo, n„o teria motivos pessoais ou polÌticos para ìdesmontarî a obra de Wilkomirski. No seu extenso trabalho, ele conta como a partir de uma simples reportagem sobre Wilkomirski aos poucos ele foi desvendando a criaÁ„o e invenÁ„o do personagem Binjamin Wilkomirski. Wilkomirski chama-se na verdade Bruno Doessekker. Bruno Doessekker n„o È judeu ou de origem judaica: ele conheceu os campos de concentraÁ„o de Auschwitz e Majdanek

ìapenas na condiÁ„o de turistaî. Ele nasceu em 12 de fevereiro de 1941. Esse ˙ltimo dado, ali·s, o prÛprio Wilkomirski tambÈm afirmou no ìposf·cioî do seu livro, mas logo acrescentando: ìEssa data, porÈm, n„o coincide com a histÛria de minha vida ou com minhas lembranÁas. Tomei medidas legais contra essa identidade decretada. A verdade juridicamente atestada È uma coisa; a verdade de uma vida È outra.î Por que isso haveria de ser assim È o que Ganzfried comeÁou a se perguntar. Afinal de contas, a SuÌÁa È uma paÌs civilizado, sobretudo no que tange ‡ burocracia: dificilmente alguÈm nasceria e viveria cinq¸enta anos nesse paÌs sem deixar traÁos. Ganzfried por assim dizer n„o aceitou o postulado ñ coerente dentro do universo, digamos, de um Kafka ñ segundo o qual existem duas verdades: uma ìda vidaî e outra ìjuridicamente atestadaî. Ele iniciou o confronto entre os traÁos de memÛria criados por Wilkomirski/Doessekker e os ñ n„o menos criados ñ do paÌs onde ele sempre viveu. Para Wilkomirski, cada um tem ìa sua verdade, a sua verdadeira vidaî e pode narr·-la. No caso dos sobreviventes da Shoah, essa narraÁ„o È sempre penosa e

necess·ria: ela È tecida tanto como uma forma de se ìlibertarî do passado como tambÈm se desdobra como um penoso exercÌcio de construÁ„o da identidade. Ela È uma narraÁ„o necess·ria tanto em termos individuais como tambÈm ñ pensando universalmente ñ deve funcionar como um testemunho para a posteridade. Ela È um ato subjetivo e objetivo, psicolÛgico e Ètico. Wilkomirski, ali·s Bruno Doessekker, como est· escrito na sua caixa de correio, sabe muito bem disso. Ele sabe em que medida ele poderia desarmar os seus leitores com a sua narraÁ„o articulada do ponto de vista de quem passou pelo inferno. Apenas apÛs as pesquisas de Ganzfried percebemos em que medida nÛs nos abrimos de modo sentimental e n„o suficientemente racional para essa literatura. De agora em diante os estudiosos da Shoah ser„o mais cautelosos. O jornalista Ganzfried descobriu que Wilkomirski/Doessekker tinha ainda um outro nome quando veio ao mundo. Ele È na verdade um filho ilegÌtimo de Yvonne Berthe Grosjean que foi parar em um orfanato em Adelboden e que, finalmente,

Foto do livro-objeto ControvÈrsia iconoclasta II, de Anselm Kiefer

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Imagens de ControvÈrsia iconoclasta II, de Anselm Kiefer (1980)

foi adotado pelo casal Doessekker em 1945. O casal de ricos mÈdicos que adotou a crianÁa conseguiu mudar o seu nome ainda antes do inÌcio da sua vida escolar. Bruno ent„o deixou de se chamar Grosjean e passou a atender pelo nome de Doessekker. A Senhora Grosjean morreu em 1981; os seus pais adotivos em 1985. Bruno Doessekker estudou em Zurique, tornou-se m˙sico e È pai de trÍs crianÁas. Um dado da sua biografia tambÈm È digno de nota: ele estudou histÛria em Genebra. A sua paix„o pela histÛria È comprovada tambÈm pelo enorme arquivo que ele organizou sobre o tema: o que deve ter servido de ajuda para a compilaÁ„o da sua 62 CULT - junho/99

ìoutraî vida, a fictÌcia, de um ìsobreviventeî de Auschwitz. Como se j· n„o bastassem as provas trazidas a p˙blico pela corajosa reportagem de Daniel Ganzfried, na ediÁ„o de 22 de setembro do Frankfurter Allgemeine Zeitung, Lorenz J‰ger trouxe mais um dado que funcionou como um golpe definitivo na farsa armada por Wilkomirski/Doessekker. Ele recordou que em 21 de abril de 1995 uma histÛria emocionante foi publicada em um jornal berlinense. O clarinetista Bruno Wilkomirski de Zurique viajara para Israel para reencontrar o seu pai Jaacov Morocco ñ um sobrevivente do campo

de concentraÁ„o Majdanek ñ, que ele perdera de vista desde a guerra. O reencontro de ambos, pai e filho, no aeroporto foi cheio de emoÁ„o e Wilkomirski declarou ent„o a um repÛrter da AP: ìNÛs possuÌmos recordaÁıes em comum. Eu ainda vejo na minha memÛria diante de mim como o meu pai foi levado em direÁ„o ‡ c‚mara de g·s.î Quando alguns meses depois o livro Fragmentos foi lanÁado, Wilkomirski j· n„o se chamava mais ìBrunoî, mas sim ìBinjaminî (nome do filho desaparecido de Morocco). Mais estranho ainda: a sua histÛria narrada em Fragmentos n„o fala nada sobre esse reencontro com o pai em Israel. No livro, Wilkomirski conta como seu pai foi assassinado pela milÌcia let„, esmagado por um carro. Por algum motivo, Morocco deixara entrementes de reconhecer em Wilkomirski o seu filho e este teve de encontrar um outro pai para a sua histÛria. Wilkomirski, confrontado com esses fatos, se limitou a falar em uma conspiraÁ„o armada contra ele. Para ele, Ganzfried ñ que perdeu seus pais no Terceiro Reich ñ seria simplesmente alguÈm da ìsegunda geraÁ„o (de sobreviventes) que sofreu o destino do pai e foi atingido psiquicamente por uma inf‚ncia e uma juventude difÌceis. Eu acho ñ continua Wilkomirski ñ que ele necessita de um substituto da figura paterna que ele possa destruir e tornar respons·vel pelo seu desastreî! A sua editora, a Judische Verlag ñ que È propriedade da toda-poderosa editora alem„ Suhrkamp ñ, recusou-se a comprovar a veracidade dos fatos narrados no livro. Unseld ñ o presidente da Suhrkamp ñ afirmou que isso n„o È parte da sua responsabilidade. James Young, um renomado pesquisador dos monumentos dedicados ‡ memÛria do Holocausto, considerou a obra em quest„o ìum testemunho maravilhosoî. Diante das descobertas que justamente negam ‡ obra a qualificaÁ„o de um testemunho no sentido tradicional deste termo, ele se limitou a afirmar que o ìvalor liter·rioî da obra n„o fica abalado desse modo!

Como ler os Fragmentos como se se tratassem de uma ficÁ„o? … sÛ tentar para que o leitor se depare com uma obra que n„o funciona mais e atÈ mesmo beira o mau gosto: o que se espera e se acha admissÌvel na leitura de uma obra autobiogr·fica de um menino que conheceu Auschwitz e Majdanek torna-se imediatamente m· literatura de ficÁ„o. Existe uma excelente literatura de ficÁ„o sobre o Holocausto, como È o caso de um famoso texto de Zvi Kolitz (Yossel Rokover volta-se para Deus), que narra os ˙ltimos momentos de um judeu no gueto de VarsÛvia. O filÛsofo LÈvinas afirmou que esse texto de Kolitz È ìverdadeiro como unicamente a ficÁ„o o pode serî. Cada gÍnero liter·rio possui as suas ìregrasî, propıe um determinado ìjogoî com o leitor. Sabemos que n„o existe uma autobiografia ìpuraî, sem ìcorreÁıes estÈticasî, que ela È apenas uma construÁ„o motivada pelo que vivemos. O caso em quest„o È peculiar. Se o livro Fragmentos È composto apenas ìao modoî de uma autobiografia, ele deixa de ter um efeito estÈtico: e ganha apenas um teor amoral. Mas isso n„o È t„o simples. Devemos fazer uma distinÁ„o clara: Wilkomirski/Doessekker joga de um modo equivocado na medida em que ele assume perante o mundo uma falsa identidade. Ele deve ser condenado, creio, n„o por causa da sua obra, mas sim por ter simulado de m·-fÈ essa identidade. Se a sua obra continua a ter ou n„o um valor estÈtico, mesmo apÛs a descoberta da farsa, È uma outra quest„o que cada um deve decidir individualmente. Mas o prÛprio Wilkomirski/Doessekker parece tambÈm ter seguido a saÌda pelo ìestÈticoî, proposta por Young, tentando encobrir assim ou desculpar a sua farsa. Numa declaraÁ„o ao jornal suÌÁo Tages-Anzeiger podemos ler: ìCada leitor pode deduzir do posf·cio do livro que os meus documentos n„o coincidem com as minhas memÛrias. A uma identidade suÌÁa mal costurada eu sÛ posso opor essas memÛrias. Isso estava claro desde o princÌpio. Os leitores sempre estiveram livres para aceitar o meu livro como literatura ou como documento pessoal.î

Ser· que um sobrevivente dos campos de concentraÁ„o seria capaz de afirmar algo semelhante? Charlotte Delbo, uma sobrevivente, de fato, escreveu na epÌgrafe da sua trilogia Auschwitz et aprËs que ìhoje, eu n„o estou certa se o que eu escrevi È verdadeî; mas, em seguida ela acrescentou: ìEu estou certa de que È verÌdico.î Para o sobrevivente, a realidade do campo de concentraÁ„o È t„o intensa que vai alÈm daquilo que normalmente denominamos de verdade: pelo simples motivo que Auschwitz vai alÈm dos nossos padrıes (superados!) de humanidade, de Ètica, de cultura etc. Wilkomirski, pelo contr·rio, parece satisfazer-se ñ sem relut‚ncia ñ com uma concepÁ„o ìpÛs-modernaî absolutamente relativista quando se trata de estabelecer a distinÁ„o entre o real e a ficÁ„o. Ruth Kl¸ger, outra sobrevivente do Holocausto, respondeu a essa postura de Wilkomirski com as seguintes palavras: ìA mentira n„o se torna literatura sÛ por causa da boa-fÈ dos leitores.î Resta saber como Doessekker chegou ‡ idÈia de criar essa sua autobiografia fictÌcia. H· alguns anos uma australiana fizera o mesmo. Uma vez descoberto o embuste, ela disse que escolhera esse tema por saber que conseguiria muita publicidade com ele. Talvez encontremos aÌ uma resposta. Por outro lado, Doessekker trabalhou intensamente junto a terapeutas (e historiadores) que utilizam a tÈcnica de ìterapia para recuperar a memÛriaî (ìrecovered memory therapyî). Nessa terapia, parte-se dos fragmentos de memÛria dos pacientes que passaram por traumas ñ normalmente de cunho sexual ñ para ent„o tentar remontar toda a sua histÛria/identidade. Aparentemente esse mÈtodo ñ diga-se de passagem, muito em moda ñ pode levar a uma confus„o entre ìreconstruÁ„oî e ìconstruÁ„oî ex nihilo. Mas como escapar dessa encruzilhada? O prÛprio Freud, ali·s, que a princÌpio direcionou a terapia psicanalÌtica no sentido de iluminar a cena de abuso (sexual) de suas pacientes histÈricas, aos poucos foi deixando esse mÈtodo de lado. Ele percebeu a dificuldade de se estabelecer a ìrealidadeî das cenas trau-

m·ticas que povoavam as mentes das suas pacientes. Raul Hilberg foi um dos poucos leitores que desconfiou da veracidade do conte˙do dos Fragmentos desde a primeira leitura. Quando ele encontrou Wilkomirski em um congresso na universidade de Notre Dame (EUA), perguntou se a obra era uma ficÁ„o. O autor negou enfaticamente. Hilberg, o maior especialista na histÛria da Shoah, estranhou diversos ìfatosî narrados no livro, que para ele s„o incompatÌveis com os dados histÛricos. Hilberg foi astuto ao constatar a armadilha armada por Doessekker. Ele aproveitou a polÍmica para condenar de um modo geral o que ele denomina de ìverdadeiro culto do testemunhoî. N„o posso, no entanto, compartilhar desse seu desprezo pela literatura testemunhal. A literatura de testemunho deve mais do que nunca ser lida de modo sÈrio. Mas uma coisa deve ficar clara. Aqueles que negam a existÍncia de Auschwitz n„o tÍm por que se alegrar com a descoberta dessa farsa. Com o passar dos anos, a realidade da Shoah torna-se n„o mais distante, mas sim cada vez mais prÛxima graÁas ‡s pesquisas histÛricas e tambÈm aos testemunhos, escritos ou gravados e conservados nos in˙meros arquivos de vÌdeos com testemunhos espalhados pelo mundo. O nosso sÈculo se identifica e ser· identificado com Auschwitz. Se a ìrealidadeî descrita por Wilkomirski/Doessekker È terrÌvel e insuport·vel, a dos campos de concentraÁ„o era muito pior. As crianÁas pequenas n„o tiveram a sorte de saÌrem vivas. Consultei, entre outros, os seguintes artigos de jornal para redigir este ensaio: Jonathan Kozol, “Children of the Camp”, Nation (28.10.1996); Wolfgang Benz, “Deutscher Mythos”, Die Zeit (03.09.1998); Daniel Ganzfried, “Die geliehene HolocaustBiographie”, Weltwoche (27.08.1998); Lorenz Jäger, “Hystorie [sic]: Wilkomirskis Erinnerung” , Frankfurter Allgemeine Zeitung (07.09.1998); Daniel Ganzfried, “Fakten gegen Erinnerung”, Weltwoche (03.09.1998); Jörg Lau, “Ein fast perfekter Schmerz”, Die Zeit (17.09.1998); Daniel Ganzfried, “Bruchstücke und Scherbenhaufen”, Weltwoche (24.09.1998); Lorenz Jäger, “ Gutgläubig. Die Zwei Wilkomirskis” , Frankfurter Allgemeine Zeitung (22. 09.1998); Hans Saner, “Wilkomirskis Wahl”, Weltwoche (01.10.1998); Silke Mertins, “Von der Sehnsucht, Opfer zu sein”, die tageszeitung (10.10.1998); Helmut Schmitz, “Wilkomirski beharrt auf Identität”, Frankfurter Rundschau (27.10.1998); Nicolas Weill, “La mémoire suspectée de Binjamin Wilkomirski”, Le Monde (23.10.1998); e Lionel Richard, “Une dangereuse imposture”, Le Monde Diplomatique (Novembro, 1998).

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