DOUBLE-BIND TECNO-ESTÉTICO: IMERSÃO, CÓDIGO, INCONSCIENTE E TRAUMA NA OBRA “SERIOUS GAMES” DE HARUN FAROCKI

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DOUBLE-BIND TECNO-ESTÉTICO: IMERSÃO, CÓDIGO, INCONSCIENTE E TRAUMA NA OBRA “SERIOUS GAMES” DE HARUN FAROCKI1

Harun Farocki, Serious Games - video still. [Courtesy Harun Farocki GbR]

Rui Matoso Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias Doutoramento em Ciências da Comunicação ECATI | CICANT

novembro 2015 [email protected] | https://grupolusofona.academia.edu/ruimatoso | http://www.eenc.info/expert/rui-matoso/

1 Draft for an english version to be published in the proceedings of Stereo and Immersive Media - 2015 International Conference: http://stereoimmersivemedia.ulusofona.pt/. Esboço para uma versão em língua inglesa a publicar nas actas da Stereo and Immersive Media — 2015 International Conference: http://stereoimmersivemedia.ulusofona.pt/ .

Resumo: O artigo toma como caso de estudo a vídeo-instalação da série Serious Games produzida por Harun Farocki em 2009. Esta é a primeira obra em que Farocki aborda directamente os media estereoscópicos modulados pelas tecnologias imersivas de realidade virtual. Nas investigações preliminares a Serious Games deparou-se com uma circunstância inesperada, a de que os simuladores de treino militar disponibilizam a mesma tecnologia que permite realizar terapias de traumas provocados pelo transtorno de stress pós-traumático de guerra (Virtual Reality Exposure Therapy). A nossa hipótese toma como ponto de partida o acesso ao evento traumático, e às respectivas memórias do inconsciente, mediado pelo dispositivo neotécnico e regime escópico correlativo. Assim, importa verificar a operatividade do conceito de inconsciente tecnológico, designadamente a partir das leituras que Derrida faz da teorização de Freud em torno do inconsciente como máquina de escrever. Ainda no âmbito concreto do caso de estudo em apreço é igualmente pertinente mobilizar os contributos de Katherine Hayles para um entendimento das afinidades estruturais e afectivas entre trauma e código. Por fim, veremos como a hauntologia derrideana e o subsequente spectral turn nas humanidades digitais, são parte integrante daquilo que Catherine Malabou postula, os traumas não são causados por eventos ou acidentes, mas por fantasmas.

Palavras-chave Harun Farocki – Serious Games – Realidade Virtual – Código – Trauma – Inconsciente

1. Serious Games - Immersion All But War Is Simulation. STRICOM2

Na série de instalações intituladas Serious Games3, projecto que Harun Farocki4 iniciou em 2009, investiga-se de que modo os videojogos produzidos com imagens virtuais da guerra do Iraque e desenvolvidos por empresas especializadas em design de simuladores 5, são utilizados em processos terapêuticos baseados em psicoterapias imersivas -Virtual Reality Exposure Therapy 6. A conexão entre projectos de simulação para treinos militares e a cultura de entretenimento fundada no consumo de imagens 3D é notória e globalmente reconhecida como constituindo um poderoso Military-Entertainment Complex. O avultado financiamento fornecido pela DARPA 7 à investigação em tecnologias de imagem e na micro-electrónica forma o nexo histórico entre a simulação computacional, a realidade virtual para fins militares e a indústria do entretenimento. A construção do Head-Mounted Display, capacitado para visualização estereoscópica de realidade virtual, coordenado por Ivan Sutherland, bem como o desenvolvimento da SIMNET (Simulator Networking) na década de 1980, foram momentos decisivos para o estabelecimento ao nível global de uma cultura cibernética pós-humana apoiada na inteligência artificial, na simulação e nas redes telemáticas ubíquas, consolidando assim a visão cyberpunk de William Gisbson em Neuromancer, i.e., o ciberespaço como alucinação consensual e a informação doravante fundindo-se na carne. Na exaustiva cronologia que Timothy Lenoir faz da arqueologia militar da indústria da imersão 3D (feitos especiais, realidade virtual e aumentada, cinema, medicina, ...), a sua hipótese é a de que estes novos media estão a reformular os canais da nossa experiência, transformando a concepção do “real” e a redefinir o significado de “comunidade” mas também da subjetividade 2 Army Simulation, Training and Instrumentation Command (STRICOM): https://en.wikipedia.org/wiki/United_States_Army_Simulation_and_Training_Technology_Center 3 Serious Games – Immersion: http://www.harunfarocki.de/installations/2000s/2009/serious-games-iii-immersion.html . Vídeo da instalação: https://youtu.be/TcKL-_RtU5Y 4 Para uma aproximação à obra e ao autor Cf. Matoso, R. (2015d). 5 Um desses simuladores criados para fins terapêuticos é justamente designado como Virtual Iraq e comercializado pela empresa Virtually Better, Inc. (http://www.virtuallybetter.com/virtual-iraq/) 6 Um dos projectos de investigação pioneiros no uso desta terapia em soldados traumatizados está integrado no Institute for Creative Technologies, da University of Southern California (ICT): http://ict.usc.edu/prototypes/pts/ . No entanto, o espectro terapêutico é muito mais amplo, e inclui a maior parte das fobias e medos inconscientes: vertigens, aracnofobia, agorafobia, glossofobia, etc. 7

Defense Advanced Research Projects Agency (http://www.darpa.mil/)

individual, pois à medida que habitamos mais tempo no espaço virtual da Internet, as nossas noções de materialidade e de realidade tendem a alterar-se (Lenoir 2000, 290). A afinidade entre o inconsciente psíquico e as imagens de realidade virtual pode ser verificada nos jogos de guerra utilizados pelo exército norte-americano como simuladores para finalidades paradoxais, desde o treino e reconhecimento (perceção e cognição) aos usos clínicos e terapêuticos. Estes sistemas de visualização perlaboram8 terapias cibernéticas em militares que sofrem de transtorno de stress pós-traumático de guerra, criando assim um isomorfismo entre a fase dos treinos pré-batalha, em simuladores de realidade virtual, e a terapia pós-trauma, ambas suportadas através das mesmas plataformas tecnológicas: imagens, algoritmos e equipamentos.

Img. 1. Harun Farocki, Serious Games - video stills. [Courtesy Harun Farocki GbR]

8 Perlaboração é um termo proposto por Sigmund Freud para expressar "o trabalho de travessia" e representa a capacidade dos pacientes para reelaborar as crises, sentimentos e conflitos interiores.

O trabalho prévio de pré-produção em torno do conceito para a vídeo-instalação Immersion (2009), incluída na série Serious Games, teve início quando Matthias Rajmann mostrou a Farocki um recorte de imprensa com a notícia de que nos E.U.A estava a ser utilizado um programa de computador designado Virtual Iraq para tratamento de veteranos de guerra. Desde esse momento, o cineasta deparou-se com a inquietante estranheza de que as imagens usadas para preparar soldados para os campos de batalha serem idênticas às que servem para curar os traumas causados pela guerra, mas com pequenas diferenças e uma certa ironia, é que as imagens terapêuticas têm menor qualidade gráfica (entre outros pormenores, não têm sombras) devido ao orçamento destinado às terapias ser mais reduzido do que o destinado aos simuladores para treino de guerra (Farocki 2014, 116). Neste ponto específico relativo à qualidade da definição gráfica das imagens, podemos de facto questionar acerca da diferença que Farocki aponta ironicamente e cujo corolário seria afirmar que o investimento na industria militar é sempre superior ao investimento nos sistemas de saúde. Mas talvez haja outra razão que se prende com a caracterização imersiva da realidade virtual e o poder anestético (anestesiante) daí resultante. É que, como se sabe, quanto maior for a naturalização do interface e quanto maior o nível de sofisticação do sentimento de omnipresença do imersor9 no ambiente virtual, menor será a distância crítica do sujeito face ao dispositivo, até ao ponto de simbiose alucinatória com o medium. A empatia extrema com o dispositivo e com o simulacro apresenta sintomas físicos e psicológicos conhecidos à medida que a ilusória simbiose entre observador e a realidade virtual progride e o distanciamento psicológico se desvanece, provocando o surgimento de efeitos secundários como apatia, desorientação, indisposição generalizada, náuseas e vómitos (Grau, 2003, p. 204). É neste limite sintomático que nos parece que a diferença entre a realidade virtual enquanto arte ou entretenimento (videojogos) e os designados serious games destinados a finalidades didáticas ou terapêuticas, se estabelece. Ainda assim há que ter em consideração as diferenças e as especificidades médicas dos casos clínicos (fobias, dor, traumas, etc.) e o nível de distanciamento consciente e crítico na imersão promovida por ciberterapias10 de realidade virtual. Para dar um exemplo contraditório com que dissemos anteriormente, no caso de alívio da sensação de dor em pacientes com queimaduras, o estudo desenvolvido por Hoffman11 e publicado em 200412, evidencia que nestes caso é importante a

9 O termo immersant é usado por Char Davies (apud. Grau, p. 198) para se referir ao operador participante na imersão em ambientes de realidade virtual. 10 Cf. The Annual Review of CyberTherapy and Telemedicine (http://journalofcybertherapy.webs.com/) 11 Director do Virtual Reality Analgesia Research Center - University of Washington Human Interface Technology Laboratory (HITLab) – Seattle ( www.hitl.washington.edu/ e www.e-therapy.info ) 12 Hoffman, H. (2004). Virtual-Reality Therapy. Scientific American, august 2004, 58-65.

qualidade do flow13 que o paciente experimenta enquanto agente sintético (avatar) na realidade virtual, ou seja, no alívio dos sintomas da dor os terapeutas prescrevem a imersão anestesiante num ambiente de Virtual Reality Distraction. A evidência cientifica da redução da dor pela imersão cibernética do paciente tem a sua explicação no facto de que a sensação de dor contem um forte componente psicológico, pois «o mesmo sinal de dor pode ser interpretado mais ou menos dolorosamente dependendo daquilo em que o paciente está a pensar (…) há factores psicológicos que influenciam a quantidade de sinais de dor que chegam ao cortex cerebral» (Hoffman, 2004, p. 60, tradução nossa). Os testes realizados pelo The Human Interface Technology Lab (HITLab)14, através de Imagem de Ressonância Magnética Funcional15 (Img.2.), mostram claramente as alterações cerebrais na resposta à dor, com ou sem realidade virtual.

Img. 2. Redução da resposta cerebral à dor em pacientes imersos e não imersos em ambiente virtual. [Courtesy Image by Todd Richards and Aric Bills, UW, copyright Hunter Hoffman, www.vrpain.com ].

Quer seja para uma utilização recreativa, quer em simuladores de guerra para fins de treino dos operacionais militares ou em terapias de stress pós-traumático, o ecrã «cria uma nova liturgia onde se jogam novas transubstanciações (…) o ecrã instaura uma nova relação entre a mimesis e a ficção» (Mondzain 2009, p.42), dando assim lugar a um dispositivo com poderes fusionais e 13 Flow é um conceito oriundo dos estudos em vídeo-jogos para designar o estado semi-hipnótico dos jogadores, usado para descrever a imersão física e psíquica numa terminada tarefa. Requer feedback imediato sem que ocorram perturbações externas e sentimento de frustração devido a erros de software ou falhas de rede. No estado de flow, os indivíduos estão totalmente focados nas suas acções, as distrações são ignoradas e o sentido do tempo é distorcido. Cf. Shinkle, 2010. 14 http://www.hitl.washington.edu/home/ 15 Functional magnetic resonance imaging (https://en.wikipedia.org/wiki/Functional_magnetic_resonance_imaging)

confusionais na constituição do imaginário sintético e fantasmático da pós-modernidade, e acrescentando um novo regime escópico à logística da perceção. Não se trata portanto de ver somente nas imagens técnicas a extensão das possibilidades de conhecimento, nem nos ecrãs apenas uma expansão da visão, mas essencialmente de diversos modos de operacionalização da informação visual. A aliança entre a indústria militar e a indústria da cultura visual é, como se sabe, fruto de uma relação cujo laço se fortificou na produção e difusão de propaganda militar, e que Paul Virilio inclui no campo da «logística da percepção» (Virilio, 1994, p. 49). A esta ponte entre criatividade artística digital e destruição bélica deve juntar-se obviamente a industria da automatização para termos uma ideia global da «perspectiva fantasma da guerra, uma perspectiva de uma imaginada subjetividadede-guerra» (Farocki, 2004, p. 20, tradução nossa). Uma conclusão possível, adianta Orit Halpern (2015), é que estamos sendo condicionados a evitar experimentar a guerra como dor ou como trauma, e, por conseguinte, como diria Nietzsche, para além do bem e do mal. A indústria dos videojogos em especial dos jogos de guerra, ao incorporar imagens de cenários provenientes do vasto arquivo militar dão origem ao desenvolvimento de parcerias estratégicas fundamentadas pelo regime tecno-estético16 comum à guerra e à indústria dos jogos. O negócio faz-se deste modo: o dispositivo militar fornece as imagens e a cartografia dos territórios, e as empresas de software lúdico disponibilizam algoritmos de realidade aumentada, modulação e interatividade em tempo real. Um destes casos, referido por Farocki, é o jogo Full Spectrum Warrior17, cuja produção foi inclusive financiada pelo Departamento de Defesa dos E.U.A. Aliás, sublinha o realizador, o exército norte-americano ultrapassou todos os artistas na capacidade de dar a ver e reconhecer o inconsciente visível (Farocki, 2004, p. 18). Com aquela referência à ideia de insconsciente óptico de Walter Benjamin, o cineasta posiciona a indústria militar na vanguarda da produção da imagem-fantasma-operativa 18, do mesmo 16 A carta de Gilbet Simondon a Jacques Derrida, datada de 3 de julho de 1982, sobre tecno-estética, revela a sua vontade de revitalização da filosofia contemporânea, a qual, no entendimento de Simondon, deve fundar-se num «pensamento dos interfaces, onde nada deve ser excluído a priori» (Simondon, G. (1982). On Techno-Aesthetics. PARRHESIA nº 14 (1-8)) Traduzindo-se numa nova categoria de objetos produzidos pela fusão intercategorial da técnica e da estética, objetos perfeitamente funcionais, bem sucedidos e belos (idem).A noção de tecno-estética possibilita-nos assim enquadrar a relação “sinestésica” entre os desenvolvimentos tecno-científicos e a sua assombração estética nas diversas fases da modernidade. Desde a invenção da lanterna mágica no séc. XVII, e das apresentações públicas sob a forma de Fantasmagorias, que a emanação espectacular da técnica conflui com um modo tecnológico de fruição estética. 17 http://en.wikipedia.org/wiki/Full_Spectrum_Warrior 18 Imagens-operativas, são imagens que não sendo abstractas também não cumprem a função de representação, formam parte de uma operação que permite memorizar e reconhecer padrões visuais. As imagens-operativas são produto do desenvolvimento de uma nova geração de máquinas inteligentes capazes de definir um novo espaço visual e uma visão pós-humana. Comparando com os phantom shots do cinema do principio do Séc. XX, vulgarizados nas sequências filmadas em comboios onde a câmara ocupa um lugar inacessível ao olhar humano (desubjectivado), Harun Farocki faz notar que existe hoje uma nova categoria de imagens-fantasma, com propriedades subjectivas traumáticas: "We can interpret the film that takes up the perspective of the bomb as a phantom-subjective image. The film footage from a camera that is plunging towards its target, a suicidal camera, stays in our mind." (Farocki 2004,

modo que foi a psicanálise que nos proporcionou o acesso ao inconsciente pulsional19. No entendimento de Walter Benjamin, existem entre os dois inconscientes – pulsional e óptico - as mais estreitas relações: Os múltiplos aspectos que o aparelho pode registar da realidade situam-se em grande parte fora do espectro de uma perceção sensível normal. Muitas deformações e estereótipos, transformações e catástrofes que o mundo visual pode sofrer no filme afectam realmente esse mundo nas psicoses, alucinações e sonhos. Desse modo, os procedimentos da câmara equivalem aos procedimentos graças aos quais a percepção colectiva do público se apropria dos modos de percepção individual do psicótico ou do sonhador. (Benjamin, 1992, 105)

Deste modo, podemos entender que a duplicidade imagem-operativa / imagem-fantasma, formulada por Harun Farocki, executa um curto-circuito double bind, i.e., cumpre a dupla função esquizofrénica de trabalhar os fenómenos; por um lado, através de um processo de captura, codificação e cognição que concede à imagem um estatuto operacional; mas por outro, a mediatização da imagem-fantasma, enquanto contrapartida visual da imagem-operativa, convoca uma nova mitologia e cultura visual elaboradas a partir de imagens não intencionais e não-autorais, mas subjetivadas pelo processo de recepção. São estas imagens-fantasma que contribuem para a formação de um inconsciente visível que nos permite aceder a aspectos da realidade tangível mediada através de imagens inacessíveis à visão natural, transformando assim o olho humano num órgão de visão anacrónico, declarado já ultrapassado pelas exigências e acelerações da tecnociência.

13). Esta nova categoria de imagem-fantasma, mediatizada massivamente durante a Guerra do Golfo (1991), emergiu com o aparecimento dos misseis de cruzeiro nos anos 1980 (bombas inteligentes), mas na actualidade são parte integrante das operações realizadas por drones. Para uma abordagem mais pormenorizada Cf. o ensaio: OperativeImages / Phantom-Images: The Synthetic Perception Media in the late Harun Farocki (Matoso, 2015). 19 "A câmara leva-nos ao inconsciente óptico, tal como a psicanálise ao inconsciente das pulsões." (Benjamin, 1992, 105).

2. Inconsciente, cinema, desejo e Pavlov What pictures want from us, what we have failed to give them, is an idea of visuality adequate to their ontology. W.J.T Mitchell (1996)

A conjunção entre inconsciente e imagem no inconsciente óptico de Walter Benjamin, tem sido constituída ao longo dos últimos séculos enquanto teoria psicanalítica do cinema, e, neste campo, muito se deve ao facto de os primeiros estudos de Freud sobre a histeria terem coincidido no tempo com as primeiras sessões de cinema dos irmãos Lumiére. Além disso, é notório que o desenvolvimento de uma teoria da psicanálise tenha sido favorecido pela obra, A Interpretação dos Sonhos, publicada por Sigmund Freud em 1899. Nesta obra, Freud procurou seguir a sua intuição concentrada na análise dos sonhos, onde teria descoberto a chave de um inconsciente orientado para o desejo. Ainda que seja razoável comparar o cinema ao sonho, há uma diferença significativa, é que enquanto a produção e visualização de um filme se pode equiparar à metáfora de um sonho colectivo que circula entre realizadores e espectadores, já o sonho é uma produção individual que, segundo Freud, têm origem em desejos eróticos ilícitos recalcados pelo superego. O que nos parece relevante na análise freudiana dos sonhos é que o cinema mental que nos acompanha durante o sono revele a estrutura do nosso desejo inconsciente, permitindo assim um conhecimento das atividades inconscientes da mente. Podemos então dizer que não há filme, tal como não há sonho, que não se dirija a esse apelo secreto do desejo inconsciente. Porém, como salienta Todd McGowan numa confrontação entre cinema e inconsciente: A similaridade principal não é o que possamos esperar – que o meio substitui ideias com imagens, como no ideograma e como no sonho. Ainda que isto seja significante, o paralelismo crucial reside na posição que o sujeito ocupa no sonho e no cinema. O cinema é tanto a via principal para o inconsciente tal como o sonho porque marginaliza a vontade consciente e privilegia o desejo mais do que qualquer outro meio artístico até este momento na história 20» (McGowan, 2015, p. 9, tradução nossa). 20 Todd McGowan não descarta a hipótese do aparecimento de um novo medium que marginalize a consciência ainda mais do que o cinema, tal como certos cineastas o imaginaram, e dá como exemplo a máquina de imersão da consciência no sonho, de Wim Wenders em Until the End of the World (1991), ou o artefacto que Kathryn Bigelow inventa e que permite às pessoas partilharem experiências mentais de outros através da conexão entre cérebros, em Strange Days (1995). Poderíamos acrescentar outros filmes cujo imaginário remete para a relação eidética entre a realidade virtual dos videojogos e os sonhos como em Existenz (Cronenberg, 1999). Contudo, a maior parte dos projectos desenvolvidos no campo da arte dos media constituem-se pela presença da interactividade, o que representa um afastamento do inconsciente e uma aproximação ao controlo efectuado pelo sujeito consciente.

O carácter ambíguo da relação com o desejo inconsciente, resultante do conflito com a censura do superego, faz do desejar uma linha de fuga infinita 21, um desejo de desejo. Este mecanismo que visa contornar o núcleo psíquico do desejo, deve-se ao facto de o encontro com o desejo ser sempre traumático, talvez por isso os grandes filmes nos perturbem porque promovem o encontro traumático com o nosso desejo inconsciente (ibid, p. 10). A forma como alguns realizadores fazem uso da inquietante estranheza teorizada por Freud (uncanny)22 após Jentsch (1906), e.g., David Lynch, Andrei Tarkovsky, Luis Buñuel ou Tod Haynes, demonstra essa capacidade que a imagem cinematográfica possui para nos levar até às regiões mais inóspitas e fantasmáticas da mente, do desejo e do trauma23. A este respeito é pertinente a comparação que Harun Farocki faz do acesso ao trauma através do cinema e da realidade virtual imersiva, Hitchcock fez mais do que um filme em que o cenário onde o personagem ficou traumatizado é eventualmente mostrado no ecrã. Mas aqui, em Fort Lewis 24, podemos ver o que o paciente parece imaginar. Então, Hollywood refere-se a Freud; mas aqui e agora a terapia refere-se a Pavlov.» (Farocki, 2014, p. 116, tradução nossa).

No intuito de comentar a referência algo enigmática a Pavlov que o cineasta não desenvolve, seriamos levados a uma outra análise acerca dos desenvolvimentos correlacionados da cibernética e do behaviourismo, ou seja, da extensão cibernética da psicologia comportamental, designadamente das

aplicações

do

reflexo

condicionado,

conjugando-os

naquilo

que

designo

como

ciberbehaviourismo25. A articulação entre as formulações oriundas do darwinismo, behaviourismo e mecanicismo, continuam ainda hoje actuantes na investigação das redes telemáticas e da interação 21 « The dreamer … does not have a simple and unambiguous relationship to his wish. He rejects it, he censures it, he doesn’t want it. Here we encounter the essential dimension of desire - it is always desire in the second degree, desire of desire.» Jacques Lacan, The Seminar of Jacques Lacan, Book VII: The Ethics of Psychoanalysis, 1959-1960, ed. Jacques-Alain Miller, trans. Dennis Porter (New York: Norton, 1992), 14. 22 A sensação de estranheza que emerge daquilo que é familiar. Cf. Freud, S (2003) .The Uncanny. The Uncanny. Londres: Penguin Books, Pp. 297-324. 23 Uma paródia desta relação entre cinema e psicanálise encontra-se na curta-metragem de Roman Polansky, A Therapy (2012). Visualizar em: http://www.lacan.com/actuality/2015/09/roman-polanski-a-therapy/ 24 Fort Lewis é uma das localizações militares onde Farocki filmou algumas das sequências de Serious Games. 25 A fusão cibernética entre o cérebro (e sistema nervoso central) e a emergência fenomenológica da mente (funções mentais, estados emocionais, pensamento,...) – referida em diversos momentos por Wiener – representa desde então uma nova linha de actuação do behavorismo cibernético (ciberbehaviourismo), o qual tem vindo a implementar-se como meioambiente cibernético imersivo e holístico (totalitário ?), isto é, que procura agir em todo o ciclo do processo de feedback, automatizando a administração de inputs lógicos e afectivos (racionalidade e emoção) na expectativa de recolher outputs calculáveis e preemptivos (algoritmos), e assim exercer uma forma de controlo difuso e manter a “homeostase” nos colectivos sociotécnicos (redestelemáticas). Cf. Redes, Cibernética e Neuropoder breve estudo do contexto cibernético actual. (Matoso, 2015b)

homem-máquina, sendo o conjunto de práticas experimentais e terapêuticas designado como neurofeedback aquele que actualmente se evidencia como legado do determinismo behaviourista, designadamente no que concerne aos fenómenos de condicionamento desencadeados pela activação dos centros neuronais de recompensa (estímulo-resposta), evidentes por exemplo no contexto tecnológico multitasking em que estamos imersos. O entendimento de que o mecanismo de reflexo condicionado pavloviano - ou de affective tone como Norbert Wiener prefere designar (Wiener, 1948: 150-151) - é um mecanismo biológico de retroação relacionado com os sistemas de aprendizagem e de associação de ideias, o que permitiu a Wiener especular acerca das capacidades de aprendizagem dos computadores. Em suma, aquilo a que Farocki pretende aludir é a existência de um novo medium que possibilita a conexão com o inconsciente e com o trauma, não pela via do desejo traumático e do cinema psicanalítico, mas pela senda das neurociências e da cibernética aplicadas a múltiplas psicoterapias26, onde os interfaces, mais ou menos naturais, possibilitam a interactividade com o sensório produzido por tecnologias de realidade virtual imersiva e que nos facultam um novo tipo de sentimento de (tele)presença. Uma extensão protésica do dasein heideggeriano ? Na perspetiva da arqueologia dos media demonstra-se claramente que a dimensão experiencial da realidade virtual (presença, espaço-tempo) não é uma novidade histórica, a fotografia estereoscópica do Séc. 19 é tida como precursora da concretização dos objectos técnicos posteriores, e.g., panorama, sensorama, televisão estereóscópica, óculos 3D ou HMD (Head-Mounted Display), cujos processos de individuação técnica se estabilizam em torno de traços comuns: ilusão espacial, imersão, interactividade, alucinação ou presença. A correlação entre imersão e presença em ambientes digitais virtuais, é explicada por Oliver Grau como sendo resultante da estratégia do medium para produzir um sentimento elevado de imersão, de presença (uma impressão sugestiva de “estar ali”), que pode ser aprofundada através da interação com ambientes e cenários dinâmicos em tempo real (Grau, 2003, p.7). A imersão, enquanto processo mentalmente estimulante e absorvente pode ser caracterizada pela diminuição crítica e envolvimento emocional no contexto sintético em que se desenrola a acção. Contudo, aquilo que hoje designamos por realidade virtual é constituído por um vasto conjunto de práticas e projectos em diversos sectores (artístico, terapêutico, militar, educacional,…). As diferenças conceptuais, finalidades práticas ou experiências fornecidas ao imersor são de vária ordem, no caso de projectos artísticos como o do já clássico da estereoscopia digital, Osmose27 (Char Davies, 1995), a imersão 26 Das diversas empresas já existentes no mercado, veja a oferta terapêutica em terapias de realidade virtual da Virtually Better: http://www.virtuallybetter.com/products-training-technology/ 27 «Simply stated, Osmose is about being-in-the-world in its most profound sense, i.e., our subjective experience as sentient, embodied, incarnate, living beings embedded in enveloping flowing space. Osmosis: a biological process involving passage from one side of a membrane to another. Osmosis as metaphor: transcendence of difference through mutual absorption, dissolution of boundaries between inner and outer, intermingling of self and world.

resulta num processo radical de dissolução da consciência da dualidade, aproximando-se de estados alterados da consciência como acontece no transe místico ou na alucinação psicadélica. No aprofundamento da tendência ideológica para uma cada vez maior naturalização do interface promovida pelas indústrias de realidade virtual estereoscópica, nos videojogos por exemplo, õ protagonismo do interface natural começa agora a desenvolver a sua influência psicológica tendo como pano de fundo o ilusionismo da realidade virtual, que tem como alvo mobilizar todos os sentidos para a ilusão, ou seja, a dissolução do interface torna-se uma questão política (Grau, 2003, p. 203). No caso das terapias de exposição à realidade virtual descritas por Harun Farocki em Serious Games, o paciente imerge na imagem digital através do interface gráfico designado como First Person Shooter, exercendo assim parcialmente a transferência28 psicológica para o agente virtual (avatar) cuja acção de desenrola num cenário digitalmente reconstruido que simula a realidade tramáutica site specific, aquela que foi concretamente vivida durante a sua dolorosa experiência de guerra. Obviamente que, quer quando Harun Farocki se refere a Pavlov e ao inconsciente, quer quando pensamos na formação neuronal da imagem estereoscópica - a imagem 3D não tem existência física, é por isso uma terceira imagem29 formada no córtex visual -, podemos ter de repensar se estas entidades eidéticas ainda pertencem à categoria da “imagem”, uma vez que dispensam qualquer suporte que não seja o cérebro. Com o exemplo dos laser scanners que projectam imagens, ou mais precisamente raios de luz modulada, directamente na retina (virtual retinal display), Oliver Grau reconhece que sendo ainda a retina um medium, estas são as imagens mais privadas que até agora conhecemos, e nesse sentido, a dimensão ontológica da imagem parece dissolver-se. Portanto, na época das imagens numéricas baseadas no calculo computacional é plausível questionar se “imagem” é ainda a caracterização correcta ou se a imagem virtual não deve ser interpretada como uma categoria neural (ibid., p 251). A investigação em torno da imagem-neural (neuro-image), conceito desenvolvido por Patrícia Pister (2012), requer ainda o reconhecimento das propriedades constituintes dos modos de afeção e Osmose as an artwork is motivated by the desire to heal the Cartesian split between mind/body, subject/object, which has shaped our cultural values and contributed to the West's dominating stance towards (and estrangement from) life. In this context, Osmose seeks to re-sensitise—reconnecting mind, body and world.» (Davies, 2002). Cf. também http://www.immersence.com/osmose/ . 28 A transferência constitui-se a partir da realidade psíquica do paciente, através dos seus desejos, medos e outros aspectos da sua personalidade. Em Recordar, Repetir e Elaborar, Freud (1914) esclarece que a transferência cria uma região intermediária entre a doença e a vida real, através da qual a transição de uma para a outra é efetuada (Freud, S. (n.d.). Papers on technique. Remembering, repeating and working-through. (Further recommendations on the technique of psycho-analysis II) (1914). PsycEXTRA Dataset.). 29 A exposição “A Terceira Imagem” é dedicada à fotografia estereoscópica , organizada pelo projeto de investigação Stereo Visual Culture (CICANT, ULHT) https://stereovisualculture.ulusofona.pt/

da imbricação entre a neurociência dos afectos e a computação afectiva30. Assim, é importante observar que a formação da imagem-neural é resultante da interação transdutiva entre o dispositivo tecnológico e as bases neuronais da afeção (emoções e sentimentos), e permite por isso a manipulação dos estados emocionais e dos sentimentos (Pister, 2012, p. 113). A neuro-imagem é indubitavelmente um componente das práticas mediais em rede e das tecnologias digitais ubíquas. Como corolário, Pister argumenta ainda que na cultura contemporânea a imagem passou do estatuto de “ilusão da realidade” para passar a ser considerada como “realidade da ilusão” a operar directamente no nosso cérebro como agentes reais no mundo (ibid., p. 6). Ora, estes agentes eidéticos que operam no mundo são aquilo que Farocki, já o referimos anteriormente, designa como imagemoperativa. A neuro-imagem, enquanto imagem-operativa é, por um lado, parte e parcela integrante do dispositivo mediático (media machines) e, por outro, pertence ao conjunto técnico que Paul Virilio designou como vision machine (1994). Talvez seja neste âmbito que o aforismo de Deleuze, «The brain is unity. The brain is the screen» (apud. Gregory, 2000, p. 283), ganhe pertinência hermenêutica na problemática do nosso ensaio. Afinal, é sempre tudo uma questão cerebral, «o cérebro é a face oculta de todos os circuitos, que podem fazer triunfar os reflexos condicionados mais rudimentares, do mesmo modo que deixar uma oportunidade a traçados mais criadores, a ligações menos 'prováveis'» (Deleuze, 2003, p. 89). É pois necessário ir além das questões dominantes da retórica e interpretação das imagens e saber o que é que as imagens querem, como sugere W.J.T. Mitchell, deslocando as questões do campo dos usos e efeitos, para o do desejo: O que as imagens querem não é o mesmo que as mensagens por elas comunicadas ou o efeito que elas produzem; nem é sequer igual ao que elas dizem que querem. Tal como as pessoas, as imagens não sabem o que querem; elas têm de ser ajudadas a reconhecer isso através de um diálogo com outros. (Mitchell 1996, p.81, tradução nossa)

30 Cf. http://affect.media.mit.edu/ e Affective computing: challenges (Rosalind Picard - MIT Media Laboratory).

3. Double-bind tecno-estético: Imersão, código, inconsciente, trauma, hauntologia e fantasma cibernético The brain has lost its Euclidean co-ordinates, and now emits other signs. Gilles Deleuze (1989) Code is the unconscious of language. Katherine Hayles (2006)

Aquilo que de facto nos comprometemos a examinar neste artigo é o veículo através do qual se acede a uma memória traumática gravada no insconsciente, e o modo como psicoterapias assistidas pela imersão em ambientes de realidade virtual 31 se adequam a uma acepção do inconsciente como substracto técnico residente no código informático subjacente à produção da imagem digital e, por conseguinte, da realidade virtual imersiva. A correspondência entre trauma e realidade virtual ou entre trauma e código informático é reconhecida por Katherine Hayles, nos seguintes termos: Experienciado conscientemente mas memorizado não-linguisticamente, o trauma possui afinidades estruturais com o código. Tal como o código, está relacionado com a narrativa sem que ele mesmo seja narrativa (…) Esta possibilidade foi explorada desde os primeiros dias da realidade virtual, através de simulações desenhadas para ajudar pessoas a ultrapassarem fobias como vertigens, agorafobia, e aracnofobia. A ideia era a de tornar presente uma experiência simulada, através da qual a pessoa afectada com a fobia a pudesse confrontar, digamos, à distância, onde o medo permanecesse num nível tolerável. (Hayles 2006, p. 141, tradução nossa)

Em Traumas of Code, Hayles começa por propor uma analogia semelhante à de Walter Benjamin, pois tal como o inconsciente está para o consciente, também o código informático está para a linguagem, na nossa intensa cultura computacional, «o código é o inconsciente da linguagem» (Hayles 2006, p. 137). O exemplo prático mais contundente da analogia pode ser observado nos designados algoritmos genéticos, incluídos em múltiplos programas de inteligência artificial e cujo código é autopoiético, i.e., escreve-se automática e iterativamente por si mesmo. Esta opacidade do código, mas também do inconsciente, pode ainda ser equiparada ao que os filósofos da técnica designam como caixa-preta, designadamente em Bruno Latour (1991) e Vilém Flusser, para se referiram ao colectivo sócio-técnico constituído pelo «aparelho-operador» (Flusser 1998, p.35), como um conjunto de codificações e operações de que apenas conhecemos o input e o 31 Virtual Reality Exposure Therapy

output. Ainda que de forma dissimulada, o código produz agenciamentos no mundo tal como o inconsciente, ou seja, a agência do código demonstra a sua semelhança com o inconsciente na produção de efeitos, mesmo quando ele permanece escondido sob uma superfície linguística. Este agenciamento do código conjugado com a activação de enormes fluxos de dados (big data) dão forma a um contexto cibernético condicionador da percepção e dos comportamentos (ciberbehaviourismo). Fenómeno este prosaicamente verificável em contexto de multitasking imposto pela profusão de aparelhos e processos informáticos, e no uso de redes sociais como o Facebook, cujos algoritmos geradores do feed de notícias e respectivas conexões (Edgerank) é um bom exemplo de agenciamento maquínico (código, algoritmos) inconsciente ou não-consciente32. A noção de inconsciente-código (Hayles), tal como a de inconsciente-óptico (Benjamin) ou de inconsciente-visível (Farocki), podem ser englobadas num conjunto maior que Nigel Thrift nomeia como inconsciente-tecnológico (Thrift 2004). Afinal, esses inconscientes parcelares foram historicamente constituídos pelo aparelhamento tecno-estético do humano, e podem ser subsumidos hoje no contexto da problemática pós-humanista, o que implica uma teoria do cérebro como membrana33 transdutiva, como interface imerso no colectivo sociotécnico. Esta perspectiva de um cérebro ciborgue (Matoso 2015c) permite-nos entender que o inconsciente e a consciência sejam influenciados e modulados pela interação com o ambiente tecnológico em que habitam, bem como da existência de uma dimensão histórica e contextual do inconsciente. Portanto, se aceitarmos, que a mente, o corpo e o ambiente não podem ser absolutamente separados de forma estanque, teremos que concluir que a consciência e os processos de individuação psíquica, ou formação do self, não podem ser isolados do ambiente biotecnológico em que se encontram imersos, e desde a epigénese no caso dos natural-born cyborgs, como defende Andy Clark (2003). Ainda assim, esta conjuntura não é tão recente como possa eventualmente parecer, Marshal McLuhan já havia referido que um dos principais aspectos da era da eletricidade é o de estabelecer uma rede global expandida do sistema nervoso, a qual não é meramente uma rede eléctrica mas que se constitui como consciência ou campo unificado de experiência (Mcluhan 1964, p. 384). Dando por sua vez origem a um sistema cognitivo expandido ou a sistemas cognitivos emergentes34, do qual faz parte a visão e a percepção maquínicas (artificiais ou sintéticas). 32 Cf. experiências de manipulação das emoções – contágio emocional - dos utilizadores da rede social Facebook (Experimental evidence of massive-scale emotional contagion through social networks (Kramer e outros, 2014)) 33 Deleuze: «the brain’s precisely this boundary of a continuous two-way movement between Inside and Outside, this membrane between them.» (Deleuze, Negotiations, 176) 34 Nesta quarta vaga dos regimes cibernéticos da computação, também denominada, entre outras, como computational turn ou affective computing, a noção de cibercultura que emergiu da Galáxia Gutenberg (M. McLuhan) como nova fase de interdependência imposta pela electricidade que recria o mundo à imagem de uma aldeia global, vem sendo reconhecida como noosfera (Teillard de Chardin), semiosfera (Yuri Lotman) ou cognisfera (Thomas Whalen), cuja capacidade para distribuir a «realidade sensível ao domicílio», que Paul Valéry já antevia em 1928, se encontra hoje

O código, através destas múltiplas associações, torna-se um poderoso recurso através do qual novos canais de comunicação podem ser abertos entre operações cognitivas conscientes, inconscientes e não-conscientes, sendo certo que um desses canais de comunicação promoverá a ligação ao trauma, como sugere Katherine Hayles (2006, p. 140). Tal como o código e o inconsciente, o trauma ultrapassa a capacidade humana para processá-lo e verbalizá-lo, pois, uma vez dissociado da linguagem, o trauma resiste à narrativa, e daí a necessidade de recurso a psicoterapias. Tal como o código, o trauma está ligado a estados somáticos abaixo do limiar da consciência, esta similitude sugere que o código pode ser concebido como um veículo que permita o entendimento, a representação e a intervenção operativa no trauma (Hayles 2006, p. 141). Em Serious Games estamos perante uma obra artística que esclarece o modus operandis de uma tecnologia cultural (computador) que explora, através da imersão em ambientes de realidade virtual, o modo como o código informático se tornou apropriado para lidar operacionalmente com o trauma. Neste sentido, esta obra tem muito a dizer acerca «das formas em que o não-consciente35 tecnológico opera através de um poder cognitivo sem precedentes e em conjugação com as performances das máquinas inteligentes» (idem), provocando por isso mesmo o questionamento ético e filosófico do significado deste entrelaçamento entre agenciamento humano, inteligência artificial, bases de dados, fibras ópticas e com a cognisfera em geral. É exactamente neste contexto de produção estética post-media, de acordo com Lev Manovich (2001), que mais necessitamos de novas categorias que possam descrever o modo como um objecto cultural organiza os dados (informáticos) e estrutura a experiência do utilizador desses mesmos dados. Tais categorias são hoje fundamentais para a construção de um novo information behaviour, cujo substracto reside na capacidade do sistema nervoso para lidar com informação digital omnipresente e na correspondente neuroplasticidade do cérebro humano para sobreviver em ambientes simulados. N. Katherine Hayles, no artigo citado, aborda três casos de estudo 36 que partilham de uma dupla articulação do código, entre humanos e artefactos inteligentes, e da relação entre código e trauma. As implicações suscitadas pelas obras dos três artistas, sugerem que o código é uma espécie de agente virulento capaz de transformar o contexto da vida humana numa metamorfose simultaneamente perigosa e artisticamente libertadora. Apesar das diferentes abordagens em cada um dos trabalhos, há uma ideia comum que consiste em ver no código um componente central do complexo sistema onde inteligência artificial interage e influencia a consciência, o inconsciente e o expandida na ubiquidade do acesso à Internet. A cognisfera é assim um termo que permite identificar um ecossistema de interconexão cognitiva, no qual as máquinas e os organismos humanos estão cada vez mais integrados. 35 No original: nonconscious. 36 Três obras de três autores: o romance Pattern Recognition, de William Gibson; o filme Avalon, de Mamoru Oshii; e a ficção hipertextual Dreamaphage, de Jason Nelson.

subconsciente do comportamento humano, incluindo uma sintomatologia diversa: ataques de pânico, flashbacks, paranóia, despersonalização ou náusea (Hayles 2006, p. 146). Manifestações aliás frequentemente descritas por imersores da realidade virtual alucinatória. Coincidentemente, o filme Avalon (2001), de Mamoru Oshii e Serious Games de Farocki, concentram-se na mesma problemática: a da imersão no código, na experiência da simulação da guerra e no investimento de energia emocional na realidade virtual esteroscópica. A diferença entre as duas obras dá-se todavia em torno da abordagem ao trauma, enquanto em Oshii a imersão é causadora de trauma - porque os danos físicos simulados no avatar geram sintomas psicossomáticos-, em Farocki a imersão tem finalidades terapêuticas. De qualquer modo, este double-bind tecnoestético está desde logo presente na ambiguidade enraizada no imersor, será esse mundo realidade ou simulacro? Corre-se perigo de morte efectiva ou é apenas uma alucinação temporária? Na sua abordagem ao substrato técnico da memória inconsciente, Patricia Ticineto Clough recorre a Jacques Derrida como intercessor de Sigmund Freud na apresentação da metáfora de inconsciente como máquina-de-escrever (Clough 2000, p.28). Derrida sugere (em Archive Fever37) a existência de uma relação entre a memória insconsciente e as metáforas específicas de máquinas e que, desse modo, a memória inconsciente é inextirpável dos seus diversos substractos técnicos. Na era das tecnologias telemáticas a metáfora da máquina-de-escrever assemelha-se a um brinquedo de crianças, contudo no imaginário de Freud era suficiente para conotar a fita impregnada de tinta com os traços inconscientes da percepção. Estes traços, adianta Clough, significavam a descarga de energia no sistema nervoso, pois, segundo Freud a principal função dos neurónios é receber uma excitação sensorial e transformá-la em sinais elétricos e, complementarmente, reter parte dessa energia no funcionamento do sistema nervoso e na criação plástica de rede neuronal. É portanto através de um sistema de inscrição, organizado entre o sistema nervoso e a rede neuronal, que se estabelecem simultaneamente a memória, o inconsciente e o trauma (ibid, pp. 32-33). Quando Derrida desconstrói a relação entre a máquina-de-escrever e a neurobiologia freudiana é para aproximar a natureza da técnica, o corpo da máquina e o real do virtual, mas também para elaborar o seu conceito de différance enquanto síntese de marcas ou traços subindividuais, inspirando-se no mecanismo psíquico de tradução que Freud estabelecera entre a memória inconsciente e a percepção consciente ou cognição, e mais concretamente, na hipótese de uma interpretação textual (hieroglífica) dos sonhos. Mas esta hipótese, como sabemos, foi revogada posteriormente por Freud ao afirmar que os hieróglifos dos sonhos não são traduzíveis, no sentido comum do termo. Os sonhos possuem apenas uma “qualidade cénica” intraduzível e sem significação e, consequentemente, não existe uma base textual dos sonhos presente na memória 37 Derrida, J. e Prenowitz, E. (1995). Archive Fever: A Freudian Impression. Diacritics. Vol. 25, No. 2 (Summer, 1995), pp. 9-63.

inconsciente, apenas a produção inconsciente de uma “memória-ecrã” (ibid., pp. 35-36). Derrida assumirá idêntica conclusão, de que o movimento entre o inconsciente e a cognição não se faz pela tradução de um texto presente no inconsciente, pois este não possui uma estrutura ontológica representável (uma presença), apenas uma rede neuronal de traços estratificados, um domínio, digamos, pré-textual. Em substituição da metáfora tecnológica da máquina-de-escrever (substrato técnico) que transduz38 estímulos sensoriais em sinais elétricos traçáveis enquanto inscrições na rede neuronal e operativos na formação pré-individual e pré-textual da memória inconsciente, Derrida actualiza-a pela imagem e função das novas tecnologias de informação e comunicação. A máquina-de-escrever transmuta-se em sistema de telecomunicações, uma «rede distribuída de transmissões sem principio ou fim, cuja função é permitir a pura repetição da memória insconsciente» (ibid., p. 38). Em suma, a instância arquivística do inconsciente freudiano é actualizada por Derrida para a noção de arquivo digital e hipertextual, onde a máquina não é apenas uma metáfora de algo reificado fora do insconsciente e onde memória inconsciente é inseparável do seu substrato técnico. Não tem por isso de haver, afirma Clough, separação face à natureza ou à biologia, nem oposição entre natureza e cultura, biologia e tecnologia, o inconsciente e a máquina; em vez disso, «para Derrida a máquina é o inconsciente diferido, como cultura e tecnologia são a natureza diferida» (idem.). Na desconstrução levada a cabo por Derrida ao legado freudiano do insconsciente como máquina, acabará por concluir que a memória inconsciente, diferida tecnicamente pelas redes telemáticas, configura a formação de um inconsciente maquínico pré-individual. A propósito das reconfigurações que os media impõe ao agenciamento humano no contexto das teletecnologias, Derrida postula a existência do medium como um elemento «nem vivo nem morto, nem presente nem ausente», portanto sem uma ontologia específica, mas que espectraliza39 e que requer portanto uma outra hermenêutica fundada na hauntologia (Derrida 1994, p. 63), substituindo a prioridade do ser e da presença pela figura do fantasma cibernético, e dando origem aquilo que desde 1993 vem sendo designado como spectral turn40, onde temas como the ghost in the machine ou haunted media, são trabalhados por diversos autores41. 38 O termo “transdução”, em Gilbert Simondon, pode ser entendido como uma operação vital expressa no sentido de individuação biológica; pode operar no funcionamento mental - pensar transdutivamente é mediar entre ordens diferentes e colocar realidades heterogéneas em contacto, e transformando-as em algo diferente- e representa a verdadeira marcha da invenção, não sendo por isso dedutiva nem indutiva. Um evento transdutivo é então aquele que articula realidades diferentes, fazendo emergir o que antes existia separadamente (Simondon 2009, p.39) 39 No original lê-se « it spectralizes». 40 Cf. Blanco, M e Peeren, E (2013). The spectralities reader ghosts and haunting in contemporary cultural theory. New York: Bloomsbury Academic. 41 Entre outros: The ghost in the machine ( Koestler, A. (1968). New York: Macmillan) ; Cybernetics and Ghosts (Calvino, I. (1986). The Uses of Literature. San Diego, New York, London. Harcourt Brace & Company. pp. 3 to 27); Haunted media: Electronic presence from telegraphy to television (Sconce, J. (2000). Duke University Press.)

4. Coda By changing space, by leaving the space of one's usual sensibilities, one enters into communication with a space that is psychically innovating. … For we do not change place, we change our nature. Gaston Bachelard42

O double-bind tecno-estético opera, enquanto mecanismo de feedback meta-estável, entre a imagem operativa e a imagem fantasma, na simulação entre a terapia e a guerra ou entre fantasma e trauma. Neste enquadramento43, os soldados são treinados para os combates através de simuladores, depois participam em operações militares em cenários reais, onde por sua vez, ficam sujeitos aos acontecimentos traumáticos da guerra e, por fim, regressam novamente à imersão na realidade virtual para fins terapêuticos. Será que a simulação estereoscópica da guerra, patente nos videojogos não produz também micro-eventos traumáticos através da modulação da intensidade da afeção? Matteo Pasquinelli, após Kurt Goldstein, sugere que o cérebro está afinal «num permanente e constitutivo estado de trauma activo», mas também que as «máquinas estendem continuamente os traumas humanos» (Pasquinelli 2015, p. 10, tradução nossa). Talvez por isso, estar traumatizado, como defende Cathy Caruth, signifique estar possesso por uma imagem ou evento localizado no passado, mas também descreve a condição de estar assombrado por fantasmas (Blanco, M e Peeren, E 2013, p.p. 10-12). Assombrações que neste caso constituem parte integrante da sintomatologia do trauma e do traumatizado, ou, como relembra Catherine Malabou da sua leitura de Freud, os traumas não são causados por eventos ou acidentes, mas por fantasmas (Malabou 2015, 196). No contexto de proliferação das imagens virtuais e no ambiente pós-media, a metáfora do fantasma (referente não indicial) continua a ser útil e, enquanto conceito, o fantasmático ganha uma nova valência como elemento da cultura visual contemporânea. A genealogia das imagens técnicas está, desde as suas origens, potenciada por um devir fantasmático da visão moderna. A história da fotografia é habitada desde o seu começo por sombras e pela morte. A fotografia nasce da morte e é uma presença habitada por ausências (Batchen 2004, p. 317). A «arte de fixar uma sombra», foi com semelhante descrição que Henri Fox Talbot definiu o desenho fotogénico que as suas primeiras provas de contacto fixavam. Talvez afinal as psicoterapias de realidade virtual analisadas por Farocki em Serious Games sejam ainda parte integrante dessa antiga arte de fixar as sombras e aceder aos fantasmas, reabrindo canais de comunicação com o trauma através do inconsciente tecnológico, do código e da sua representação estereoscópica. 42 The Poetics of Space, 1964. 43 Potência reticular de computação e recomposição/enquadramento (Ge-stell). « Por toda a parte, assegura-se o controle. Pois controle e segurança constituem até as marcas fundamentais do desencobrimento do explorador (...) Chamamos aqui de com-posição (Ge-stell) o apelo de exploração que reúne o homem a dis-por do que se des-encobre como dis-ponibilidade» (Heidegger 2002 : p.p. 20-23)

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