Duas críticas ao contratualismo de John Rawls - liberalismo, fetichismo e violência de Estado

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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANERO

ALLAN MOHAMAD HILLANI – MESTRADO (2015/2016)

DUAS CRÍTICAS AO CONTRATUALISMO DE JOHN RAWLS: LIBERALISMO, FETICHISMO E VIOLÊNCIA DE ESTADO

Trabalho apresentado como avaliação da disciplina Teoria da Justiça, ministrada pela profa. Bethânia de Albuquerque Assy, no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

RIO DE JANEIRO 2015

1. Introdução: Rawls e os problemas fundamentais do liberalismo político

É relativamente comum que teóricos críticos rejeitem a teoria de John Rawls como mais uma teoria liberal. Rawls não considera a divisão social em classes, não se importa com a produção da riqueza, apenas com sua módica distribuição (para garantir a igual liberdade e o princípio da diferença), considera o indivíduo como prévio à sociedade e constrói esse indivíduo supostamente universal a partir da cultura ocidental (a principal crítica dos comunitaristas e multiculturalistas a sua obra), entre outras afirmações. As defesas a sua obra, por outro lado, raramente se debruçam seriamente sobre essas questões (com exceção do debate universalismo x multiculturalismo, que tomou por algum tempo a prioridade dos debates teórico políticos contemporâneos). Rawls, no entanto, não deve ser desprezado de forma tão simplista. Não porque sua teoria cumpriu um papel importante no seu contexto (os EUA dos anos 70, em um contexto pós-movimentos pelos direitos civis, ocupações de universidades, afloramento da questão racial e crise do new deal), mas porque sua teoria é coerente e harmônica. A teoria da justiça de Rawls não é rapidamente refutável e nos anos que seguiram a publicação de A theory of justice, o próprio Rawls foi atento aos argumentos e, no que achou necessário, adequou sua perspectiva (Oliveira, 2003, p. 10). Não é à toa que qualquer teorização sobre a justiça tenha que, sob pena de ser irresponsável teoricamente, voltar à sua perspectiva, ainda que seja para desconstruí-la de cabo a rabo. O presente trabalho se pretende a fazer uma crítica à teoria da justiça apresentada por John Rawls, mas uma crítica que reconhece que os seus principais problemas não são, primeiramente, um “erro” do autor, mas uma fundamentação teórica que remonta a toda uma corrente inconscientemente unânime do pensamento político: o contratualismo liberal. Em segundo lugar, reconhece que a teoria da justiça de Rawls apresenta a versão mais refinada dessa perspectiva, dando respostas a boa parte dos questionamentos superficiais feitos até então. Como o próprio autor afirma, seu objetivo era “generalizar e levar a um grau mais alto de abstração a doutrina tradicional do contrato social. Eu queria demonstrar que essa doutrina não estava exposta às mais óbvias objeções geralmente tidas como fatais” (Rawls, 2005, p. xv).

A presente crítica se divide em dois pontos fundamentais. O primeiro tem a ver com o fundamento da sociedade civil liberal: o indivíduo. Para além do debate com os comunitaristas, a crítica pretende explicar a razão da ficção do “estado de natureza”, qual é a dimensão de verdade envolvida nessa abstração, e qual é o seu aspecto limitador, que Rawls retoma na ideia da “posição original”. O segundo tem a ver com o fundamento da comunidade política (o que significa não somente seu surgimento, seu passado, mas também seu presente e seu futuro, suas possibilidades) sintetizado em Rawls na ideia de uma “sociedade bem ordenada”, isto é, um pressuposto social que ao mesmo tempo é um objetivo da comunidade política, algo que já foi teorizado em termos de “sociedade civil” (e que se opõe a uma situação hipotética ou concreta, geralmente chamada de “estado de natureza”). A crítica se resume a relação entre essa “sociedade civil” e esse “estado de natureza”, na razão dessa passagem, na superação/permanência resultante e no papel da violência nesse processo.

2. Uma primeira crítica: o fetichismo do indivíduo liberal por trás da posição original

Um dos pontos fundamentais da teoria da justiça proposta por Rawls consiste no par composto por “véu da ignorância” e “posição originária”. Para atingir os princípios de justiça, Rawls propõe que seja necessário se colocar, idealmente, em uma posição original. “A ideia principal é a de que os princípios de justiça para as estruturas básicas da sociedade são o objeto do acordo original. São os princípios que pessoas livres e racionais que objetivam alcançar seus próprios interesses aceitariam em uma posição inicial de igualdade como definidores dos termos fundamentais de sua associação” (Rawls, 1999, p. 10). Rawls propõe que sejam dois os princípios de justiça: o princípio da “igual liberdade”, que impõe a igualdade de direitos básicos e deveres aos membros da sociedade e o princípio que se subdivide nos subprincípios da diferença e da “igualdade razoável de oportunidades”, isto é, a tolerância à desigualdade econômica e social na medida em que for compensatória para os membros menos favorecidos de determinada formação social (Rawls, 1999, p. 107). Esses princípios, cujo conteúdo já foi muito debatido e questionado, aqui são secundários haja vista que o objeto da crítica é justamente o fundamento e não o resultado. No entanto, é a partir dessa concepção

“razoável” de justiça que Rawls vai derivar toda a sua fundamentação de posição original. “Esses princípios são aqueles que pessoas racionais preocupadas em garantir seus interesses aceitariam em uma posição de igualdade para estabelecer os termos básicos de sua associação” (p. 102) e é a estes princípios que, necessariamente, deve chegar uma escolha racional em uma posição original que desconhece o futuro desenvolvimento da sociedade e que busca assegurar a todos os seus membros as melhores condições possíveis. Os mesmos princípios devem ser sempre escolhidos (p. 120) se obedecidas as condições da posição original, pois só eles garantem a igualdade e a liberdade pressupostas e almejadas Essa posição original remeteria diretamente “ao estado de natureza da teoria tradicional do contrato social” (Rawls, 1999, p. 11), à sua ideia de pacto e de situação a ser evitada e superada. Evidentemente que essa posição original não é um estado historicamente existente, nem uma condição “primitiva” de cultura. “Ele é entendido como uma situação puramente hipotética caracterizada como tal por levar a uma certa concepção de justiça” (p. 11). O mérito de por sua teoria da justiça em termos contratuais, para Rawls, é o de garantir que os princípios a serem escolhidos o seriam por pessoas racionais, e que essa escolha seria explicada e justificada (p. 15). Esse momento fundacional estabeleceria os termos do pacto, e os princípios que regulamentariam a justiça daquela sociedade. A posição original é uma ficção consciente, e por isso Rawls propõe que essa posição seja atingida por meio de uma outra ficção, o “véu da ignorância”, feito por pessoas reais, concretas, inseridas em sociedades, que podem refletir abstratamente sobre os princípios de justiça. O véu da ignorância teria como objetivo garantir que “ninguém [estaria] em vantagem ou desvantagem na escolha dos princípios pelo resultado do acaso natural ou da contingência das circunstâncias sociais” (Rawls, 1999, p. 11). O importante é perceber, no entanto, que a ficção da posição original e do véu da ignorância não é uma simples abstração da desigualdade do mundo, uma mera cegueira ideológica liberal. Como afirma o próprio Rawls, a razão pela qual a posição original deve abstrair das e não ser afetada pelas contingências do mundo social é “eliminar as vantagens barganhadas que inevitavelmente surgem nas instituições básicas [background institutions] de qualquer sociedade com tendências sociais, históricas e naturais acumuladas” (Rawls, 2005, p. 23). A ficção do véu da ignorância e da posição original não implica em uma anterioridade ontológica do sujeito perante o mundo. O véu da

ignorância é uma verdadeira performance, uma representação, uma atuação (Rawls, 2005, p. 27) e nós podemos “entrar” na posição original a qualquer momento, basta refletirmos sobre os princípios de justiça que gostaríamos que regessem a nossa sociedade levando em consideração que poderíamos estar em qualquer posição (econômica, cultural, social) dela. Nisso reside a principal potência do pensamento rawlsiano: a possibilidade de refletirmos sobre a realidade e questionarmos a estrutura social tendo em vista a abstração de podermos estar em qualquer parte dela. Dessa forma é possível defender políticas redistributivas, serviços básicos universais, proteção aos direitos civis de todos os membros da sociedade, etc., pois se levarmos em consideração que nós poderíamos ser desfavorecidos por determinada estrutura, então essa não seria uma estrutura justa. “A ideia é usar a posição original para modelar tanto igualdade como liberade e restrições às razões de uma forma que seja perfeitamente evidente que acordo seria feito se as partes fossem representantes de cidadãos” (Rawls, 2005, p. 26). Nesse sentido, a crítica que questiona a possibilidade de retirar do indivíduo suas ideologias, sua história concreta, e que os valores universais que desse exercício surgiriam estariam “viciados” por essa situação real é um argumento válido, mas ainda insuficiente. Primeiro, porque desconsidera a operação ficcional e performativa proposta por Rawls. Segundo, porque implicaria que seria impossível ter ideias que abstraíssem de uma condição concreta determinada – uma leitura apressada da ideia marxiana de que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência” (Marx, 2008, p. 47). A nossa realidade concreta não condiciona absolutamente a nossa visão da realidade. Essa perspectiva foi central para o desenvolvimento no início do século XX, dentro da Escola de Frankfurt, da perspectiva que ficou historicamente conhecida como Teoria Crítica. Se o sujeito não está cindido da realidade que o cerca (seja natureza seja sociedade), isso não implica que sua consciência seja determinada por essa realidade natural/social. Há uma condição epistemológica para isso: a contradição estar não no pensamento (como foi característico do pensamento ocidental desde os primórdios do que pode-se pensar como sendo a ciência moderna, até o positivismo do século XX), mas na própria realidade. Localizar a contradição no pensamento é dizer que há um erro teórico que precisa ser “corrigido” com a observação adequada da realidade. Localizar a contradição na realidade significa dizer que as contradições no pensamento, e as

contradições entre realidade e pensamento, são a condição de crítica da realidade, e de apontamento para uma outra realidade possível. Caso contrário, seria impossível questionar a realidade, pois qualquer parâmetro surgido dela deveria ser condizente com ela ou “errado” a partir de seus parâmetros. Como afirmou Max Horkheimer no seminal Teoria tradicional e teoria crítica, “o caráter discrepante cindido do todo social, em sua figura atual, passa a ser contradição consciente” (Horkheimer, 1975, p. 138). Ao se focar em um suposto idealismo de algo que se propõe conscientemente a ser ficcional, se perde a oportunidade de criticar o verdadeiro idealismo rawlsiano: o seu fundamento contratual – e, por consequência, individual e racional – da justiça. E para criticar a ideia de indivíduo presente em todas as teorias contratualistas é preciso voltar a Marx, um dos primeiros autores modernos a pensar a política fora da jaula contratual. Na sua “Introdução”, que deveria ser a introdução à sua economia política, mas que acabou sendo abandonada – e posteriormente publicada junto com os Grundrisse, nos anos 30 do século XX –, Marx apresenta uma crítica bastante interessante aos economistas políticos, mais especificamente ao seu fundamento contratual: O caçador e o pescador, singulares e isolados, pelos quais começam Smith e Ricardo, pertencem às ilusões desprovidas de fantasia das robinsonadas do século XVIII, ilusões que de forma alguma expressam, como imaginam os historiadores da cultura, simplesmente uma reação ao excesso de refinamento e um retorno a uma vida natural mal-entendida. Da mesma maneira o contrato social de Rousseau, que pelo contrato põe em relação e conexão sujeitos por natureza independentes, não está fundado em tal naturalismo. Essa é apenas a aparência, apenas a aparência estética das pequenas e grandes robinsonadas. Trata-se, ao contrário, da antecipação da ‘sociedade burguesa’, que se preparou desde o século XVI e que, no século XVIII, deu largos passos para a sua maturidade. Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo aparece desaprendido dos laços naturais etc. que, em épocas históricas anteriores, o faziam um acessório de um conglomerado humano determinado e limitado (Marx, 2011, p. 39).

As “robinsonadas” a que Marx se refere é uma das suas diversas referências literárias de sua obra madura, dessa vez a Robson Crusoé, que ao se perder em uma ilha reproduz uma forma burguesa de organização social feita de um homem só, apresentando uma suposta naturalidade nesse modo de agir, metáfora melhor explica n’O Capital (Marx, 2013, p. 149). O que essa ideia oculta é justamente a interdependência social entre os indivíduos, ou, ainda, o próprio fato de que os “indivíduos” não existem naturalmente,

nem foram a regra nas sociedades humanas. O indivíduo é histórico, não só porque todo indivíduo possui sua história, mas porque a própria ideia de individualidade é historicamente determinada. “Somente o capitalismo constitui uma formação social – isto é, uma multiplicidade organizada de pessoas – unida pela ausência de comunidade, pela separação e pela individualidade”, todas as outras formações sociais não capitalistas tinham como fundamento a coletividade (Jameson, 2014, p. 16). A sociedade capitalista – e Rawls, é interessante perceber, faz questão de marcar a diferença entre “comunidade” e “sociedade” (Rawls, 2005, p. 42) –, no entanto, apesar de pressupor indivíduos independentes, precisa simular uma unidade que seja análoga àquelas sociedades não-capitalistas, ou que ao menos pareça coletiva. Assim se forma a ideia de “mercado (reduzido por Marx como ‘a esfera da circulação’, ou simplesmente ‘troca’) é então proclamado como um princípio unificador e uma forma equivalente (mas melhor e, de alguma forma, mais natural) de coletividade” (Jameson, 2014, p. 17). Os indivíduos são independentes entre si, mas interdependentes, posto que, dada a divisão social do trabalho, cada um produz uma parte do que a sociedade como um todo precisa, e se alcança o que se precisa por meio da troca, da compra e venda de mercadorias. As mercadorias, objetos que possuem utilidade para alguém, só são mercadorias se são trocadas por outras mercadorias (a dualidade de valor das mercadorias que a economia política já teorizara). No entanto, uma troca só ocorre quando se trocam equivalentes e o cerne da questão passa a ser o de como equivaler quantitativamente coisas qualitativamente distintas (fruto de trabalhos qualitativamente distintos). Marx, na contracorrente da teoria econômica da época, vai explicar que o valor (isto é, o que há de comum em diferentes valores de troca em uma relação de equivalência) é medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário (Marx, 2013, p. 117), isto é, pela abstração do “trabalho”, que unifica diversas atividades humanas distintas e as compara pelo tempo igualmente abstrato de execução, definido pelo grau de produtividade, tecnologia, habilidade médios de dada sociedade ou ramo de produção. No entanto, é o mesmo Marx que percebe que quando fazemos uma troca, não pensamos sobre tempos de trabalho, muito menos temos a possibilidade de afirmar o que caracterizaria o “socialmente necessário”. Por um lado, sua teoria do valor fundamenta toda sua teoria social, sem ela não há exploração, não há trabalho não pago, não há força de trabalho como mercadoria, não há tendência à pobreza, à crise e ao monopólio. Por

outro, o valor é imperceptível na realidade cotidiana, bem como impossível de ser “provado” empiricamente (posto que se difere do “preço”, a expressão do valor de uma mercadoria na mercadoria-dinheiro). No entanto, o valor tem uma realidade inquestionável que independe da consciência humana. Ao se por uma mercadoria em um mercado e estipular um preço, ele precisa ser condizente com o seu valor sob pena de não conseguir ser vendido. Da mesma forma, não basta questionar individualmente o preço de determinada mercadoria com base em um cálculo lógico de valor, o preço precisa ser pago para adquirir a mercadoria (e adquirir mercadorias é a única forma de sobreviver dentro da legalidade no capitalismo). O valor, portanto, se revela na dinâmica do capitalismo como uma “objetividade fantasmagórica” (Marx, 2013, p. 116), uma compulsão externa e objetiva que carrega em si a cristalização de relações sociais aptas a coagir os sujeitos de uma sociedade (Postone, 2014, p. 301). Essa ideia, de uma objetividade que gera um movimento compulsivo em todos os agentes com que interage é, inclusive, a ideia central do conceito de capital, de “valor que se autovaloriza” (Marx, 2013, p. 230), de sujeito automático que se importa com a “acumulação pela acumulação” (p. 667). Mas mais do que uma abstração pura e simples que constrange as pessoas (que se assemelharia à ideia de “mão invisível” do Adam Smith), Marx quer mostrar como essa “abstração real” que domina os sujeitos é fruto de suas próprias relações sociais e que tanto as pessoas tanto não têm ciência disso, como que sua ciência é completamente dispensável. Essa ideia, Marx sintetiza no seu conceito de fetichismo da mercadoria (p. 146), uma forma de ocultamento desse movimento real do valor que, ao mesmo tempo, constitui e sustenta essas relações sociais que geram a dominação abstrata. O fetichismo naturaliza relações sociais e históricas, faz parecer que as mercadorias se relacionam entre si, faz parecer que o valor das coisas está nelas mesmas e não nas relações sociais constituídas por pessoas por trás delas (p. 146-148). No entanto, Marx atenta para o fato de que a consciência disso não exime ninguém de estar enredado em relações fetichistas e de lidar de forma fetichista com o mundo (como quando vai no mercado e se preocupa com o preço e com o dinheiro no bolso, e não com todo o processo de trabalho e de valorização envolvido) (Harvey, 2013, p. 48-49). O fetichismo, ainda, se caracteriza por naturalizar e projetar retroativamente na história formas sociais tipicamente capitalistas. O “mercado” passa a ser a forma “natural” de socialização de “indivíduos”, a ganância passa a fazer parte da essência humana, bem como a concorrência e o desejo por empreender. O que é tipicamente moderno passa a

ser “humano”, e é com base nesse tipo de projeção fetichista que é possível tanto afirmar que o “homem é o lobo do homem”, e por isso deve haver uma autoridade pública que restrinja a “guerra de todos contra todos”, como que o ser humano é um ser associativo por excelência, cuja natureza lhe impõe a troca (que pressupõe a propriedade) e os empreendimentos coletivos – concorrência e associação, dois elementos fundantes do capitalismo que se estruturam não por biologia, mas pela própria compulsão abstrata da acumulação de capital, de valorização do valor, “efeito do mecanismo social, no qual ele [o capitalista] não é mais do que uma engrenagem” (Marx, 2013, p. 667). Como afirma explicitamente Marx, a divisão social do trabalho confronta produtores autônomos de mercadorias, que não reconhecem outra autoridade senão a da concorrência, da coerção que sobre eles é exercida pela pressão de seus interesses recíprocos, assim como, no reino animal, o bellum omnium contra omnes [guerra de todos contra todos] preserva em maior ou menor grau as condições de existência de todas as espécies (Marx, 2013, p. 430).

O fetichismo é o mecanismo social fundamental sem o qual é impossível unir uma “sociedade” de “indivíduos”, diferentemente de outras formas sociais em que “as relações pessoais de dependência constituem a base social dada que os trabalhos e seus produtos não precisam assumir uma forma fantástica distinta de sua realidade”. Nessas comunidades, “as relações sociais das pessoas em seus trabalhos aparecem como suas próprias relações pessoais e não se encontram travestidas em relações sociais entre coisas, entre produtos do trabalho” (Marx, 2013, p. 152). Toda a arquitetura institucional contratualista liberal (indivíduos, liberdade, igualdade, direitos individuais, autoridade pública, legitimidade do poder, etc.), nesse sentido, pode ser resumida como um grande construto fetichista, que por um lado oculta e por outro lado fundamenta a acumulação capitalista: A esfera da circulação e da troca de mercadorias (...) é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe

apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo. A única coisa que os une e os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal, de seus interesses privados. E é justamente porque cada um se preocupa apenas consigo mesmo e nenhum se preocupa com o outro que todos, em consequência de uma harmonia preestabelecida das coisas ou sob os auspícios de uma providência todaaustuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral (Marx, 2013, p. 251).

Por isso é precisa deixar a “essa esfera rumorosa” do mercado e acompanhar os “possuidores de dinheiro e de força de trabalho até o terreno oculto as produção, em cuja entrada se lê: No admittance except on business [Entrada permitida apenas para negócios]” (Marx, 2013, p. 250), isto é, a esfera da produção, da divisão social do trabalho, da exploração capitalista e da acumulação de capital. Ao fundar uma teoria da justiça em termos contratuais como faz Rawls, não apenas ignora-se as desigualdades sociais (fato que Rawls era ciente e buscava suprir em sua proposta); mais do que isso, ignora-se a própria forma de pensar com base em indivíduos autônomos e soberanos que conscientemente podem tomar decisões coletivas. O que Marx apresenta, em suma, é que essa proposta é idealista pois ela ignora a materialidade das relações sociais, não só a desigualdade material, mas a própria necessidade material capitalista que envolve trabalho e compra de mercadorias para sobreviver. E é essa mesma necessidade material que é fruto de uma sociabilidade construída em cima da dinâmica de acumulação capitalista, que inevitavelmente “solapa os mananciais de toda a riqueza: a terra e o trabalhador” (Marx, 2013, p. 574). Portanto, para corrigir as desigualdades sociais e garantir igualdade e liberdade, não basta relocar recursos ou debater princípios de justiça, o problema está novamente no fundamento, mas dessa vez no próprio fundamento da sociedade capitalista. A solução para os problemas sociais gerados pelo próprio capitalismo não podem ser resolvidos por um movimento ficcional de retorno a uma “posição original”. Se por um lado esse movimento permite afirmar a injustiça do presente, a teoria de Rawls não permite explicar porque esse movimento não é feito pelos governantes, legisladores e julgadores em incontáveis oportunidades, nem pode explicar que talvez seja realmente impossível fazer isso em determinadas situações, pois a urgência do capital não permite outras escolhas.

3. Uma segunda crítica: a violência fundadora e mantenedora de qualquer “sociedade bem ordenada”

Outro conceito sem o qual a teoria da justiça rawlsiana não pode existir é o de “sociedade bem-ordenada”. Rawls a define, primeiramente, como uma sociedade “pensada para aprimorar os bens de seus membros e regulada efetivamente por uma concepção pública de justiça (...) uma sociedade em que todos aceitam e sabem que os outros aceitam os mesmos princípios de justiça, e as instituições sociais básicas satisfazem e são conhecidas por satisfazerem esses princípios” (Rawls, 1999, p. 397). Em seu Liberalismo Político, Rawls mantém a definição e acrescenta a ideia de um “senso de justiça” comum aos cidadãos, que faz com que eles enxerguem as instituições da sociedade como justas, uma dimensão de certa forma pressuposta anteriormente (2005, p. 35). A sociedade bem-ordenada é baseada na democracia liberal, com instituições públicas funcionando, um aparato burocrático que garante o funcionamento das coisas, uma divisão de poderes, eleições livres, publicidade nos processos, garantia de direitos e prerrogativas básicas, etc. A sociedade bem-ordenada está na linha limítrofe da teoria ideal e da teoria nãoideal de Rawls. Por um lado, ela é idealmente pressuposta para que os mecanismos pelos quais pode-se chegar a princípios de justiça (o véu da ignorância e o retorno à posição original) se efetivem – um movimento intelectual que não faria sentido em sociedades não democráticas nem liberais. Por outro lado, Rawls sabe que as democracias liberais reais não são perfeitas e não são sociedades plenamente bem-ordenadas (possuem miséria, criminalidade, violência, etc.) e é para melhorá-las que Rawls propõe sua teoria da justiça. O argumento de que Rawls seria meramente “idealista” não se sustenta: é a partir de uma reflexão ideal de justiça que se pode questionar a realidade injusta, sem essa reflexão ideal a teoria da justiça teria de ser eminentemente conformista, uma teoria que afirmasse que o que é justo pois não haveria parâmetro real para o critério de justo. Sua abstração não é uma ignorância, é um procedimento teórico consciente (Rawls, 2005, p. 35). O foco na abstração da sociedade bem-ordenada oculta o tema que mais inquieta Rawls quando ele reflete, no Liberalismo político, sobre os fundamentos políticos de uma sociedade liberal: o problema da estabilidade, ou como ele não se cansa de repetir, “como

uma sociedade democrática bem-ordenada atinge uma necessária (mas certamente insuficiente) condição de realismo e estabilidade” (Rawls, 2005, p. 38). Esse problema o leva a desenvolver dois conceitos importantes da sua revisão teórica, a ideia de um “consenso sobreposto” [overlapping consensus] (a possibilidade de indivíduos e grupos de, concordando com a concepção de justiça, discordar do conteúdo político) e de “doutrinas compreensivas desarrazoadas” [unreasonable comprehensive doctrines] (a impossibilidade de doutrinas compreensivas que ameacem essa sociedade bem-ordenada de ganharem força para determinar os aspectos fundamentais dessa sociedade). A concepção política de justiça, em Rawls tem portanto dois estágios: um primeiro é o de concepção da estrutura básica da sociedade, o segundo se dá na capacidade de determinados princípios de justiça de gerarem estabilidade para essa sociedade (Rawls, 2005, p. 141). Essa estabilidade não seria, de acordo com sua teoria de justiça como equidade, simplesmente a capacidade de impor sanções a quem discorda, mas a possibilidade de ganhar apoio a sua concepção de justiça (p. 143). O que se oculta, no entanto, é o fundamento político prévio compartilhado. Quando Rawls se questiona sobre a própria possibilidade de existir um liberalismo político, ele apresenta duas condições para o funcionamento de um regime constitucional. A primeira é a de que a sociedade política é “fechada”, “nós entramos nela pelo nascimento e só saímos após a morte”, “a aceitação da autoridade política não é voluntária” (Rawls, 2005, p. 135-136). A segunda é a de que o poder político é “sempre poder coercitivo respaldado pelo uso de sanções pelo governo, pois o governo sozinho tem a autoridade para usar a força para assegurar suas leis”, sendo esse poder o “poder público”, isto é, o poder dos cidadãos livres e iguais (p. 136). Surge aqui a velha questão da legitimidade do poder político na teoria liberal, que Rawls “soluciona” da forma tradicional: o exercício político do poder só é próprio quando exercido em consonância com uma constituição constituída de princípios razoavelmente aceitáveis por cidadãos livres e iguais e tentar impor pela força uma concepção de mundo, reprimir concepções de mundo razoáveis por serem discordantes, seria uma medida autoritária e inaceitável (p. 137-138). É aqui que a segunda crítica deve se concentrar. A concepção contratualista de Rawls não propõe um “estágio anterior” à sociedade civil, nem teoricamente nem historicamente. A reflexão sobre a posição original é uma reflexão que busca a imparcialidade no estabelecimento de princípios abstratos de justiça. Mas o que ela compartilha silenciosamente da teoria contratualista é

que as sociedades liberais são sociedades políticas na medida em que o dissenso é resolvido de forma pacífica dentro de um “pluralismo razoável” (Rawls, 2005, p. 36), isto é, o banimento da violência na política. Desde os gregos a teoria política sempre dispôs em polos antagônicos a política e a violência, sendo aquela apresentada como a superação desta, o momento de criação daquilo que alguns chamam de direito, poder, ou civilização (Balibar, 1993, p. 12). A superação da força pelo diálogo e pela discussão, a realização de uma sociedade liberal perfeita, fundada na liberdade e na igualdade. O problema dessa concepção é justamente o ocultamento da violência intrínseca à civilização, à política e ao direito tidos nesses moldes. Walter Benjamin em seu célebre artigo Para uma crítica da violência1 põe o problema da impossibilidade de afirmar se a violência está a priori de acordo com o direito quando é exercida, pois para estar de acordo com o direito ela precisa ser justificada, isto é, uma sanção que só pode ser afirmada após o fato: “o direito positivo exige de qualquer violência um atestado de identidade quanto a sua origem histórica, de que depende, sob determinadas condições, sua conformidade ao direito, sua sanção” (Benjamin, 2011, p. 125). Uma saída possível seria analisar a violência de acordo com os seus fins, se eles teriam ou não um “reconhecimento histórico geral” (p. 126) e, portanto, uma probabilidade de poderem ser atingidos por meios legítimos. Os que dependessem de reconhecimento seriam fins de direito, os que não dependessem seriam fins naturais. A tendência do direito seria proibir o indivíduo de utilizar a violência para atingir esses fins naturais, pois se eles fossem historicamente relevantes, o Estado os tornaria fins de direito e preveria procedimentos legais e legítimos para resolver a situação (p. 126) – a clássica vedação aos indivíduos de fazerem justiça com as próprias mãos, também implicitamente presente em Rawls. O direito afirmaria que todos os fins naturais colidem com fins de direito quando perseguidos por meio da violência (Benjamin, 2011, p. 126), pois “um sistema de fins de direito torna-se insustentável se em algum lugar ainda se permite que fins naturais sejam perseguidos de maneira violenta” (p. 127). No entanto, Benjamin percebe que – e essa é a principal contribuição de seu ensaio – a proibição de perseguição de fins naturais por

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O trabalho original é intitulado Zur Kritik der Gewalt. O termo Gewalt em alemão pode significar tanto violência como poder, o que torna difícil a tradução do termo no texto. Na história, inicialmente Gewalt foi associada à potestas e ao poder político e posteriormente foi sendo utilizada como excesso de força, violência. Neste sentido ambíguo e intraduzível que deve-se ler o termo violência aqui (N. E. em Benjamin, 2011, p. 122).

meio da violência é proibida não porque colide com os fins de direito, mas para garantir o próprio direito (Benjamin, 2011, p. 127). A violência fora do monopólio estatal é, segundo Benjamin, em si mesma perigosa, independentemente de seus fins. O poder jurídico identifica neste desafio uma ameaça (Seligmann-Silva, 2009, p. 3). Dessa forma, afirma Benjamin, “o Estado reconhece uma violência cujos fins, enquanto fins naturais, ele às vezes considera com indiferença, mas em caso sério (...) com hostilidade” (Benjamin, 2011, p. 129). Benjamin encontra na greve geral um exemplo dessa relatividade da violência, mas é possível estender a reflexão para as manifestações políticas que não podem ser inseridas a priori nos limites do aceitável e do inaceitável em uma democracia. Quando a greve geral toma grandes proporções (a ponto de poder ser considerada revolucionária), “o Estado a classifica como abuso (Missbrauch, ou seja, como uma ameaça ao Estado de direito) e apelará para decretos especiais” (Seligmann-Silva, 2009, p. 4) para manter a situação como está, pois o direito de greve não teria sido pensado para ser exercido “dessa maneira” (Benjamin, 2011, p. 129). Para Benjamin, a violência não é encarada da mesma forma pelo Estado e por aqueles que se manifestam (no seu exemplo, pelos trabalhadores grevistas): por um lado, o Estado permite a greve (não violenta) e tem o poder de declará-la ilegal (caso passe a ser violenta), ao passo que os manifestantes acreditam ter uma espécie de “direito à violência (Gewalt)2”, um direito de usar a força (política ou física) para reivindicar suas demandas, possibilitando ao Estado reconhecê-la como legítima ou violenta e, nesse caso, reprimi-la com a sua própria violência (sancionada, reconhecida, legítima). O crucial, então, seria estabelecer a linha divisória entre o “uso” e o “abuso” do direito de greve, uma linha objetiva prevista em lei que regulasse tanto a ação dos manifestantes como do Estado, mas a grande questão é que essa decisão cabe, no fim das contas, ao próprio Estado, justamente aquele que se sente ameaçado: “quando deixados falar por si, os Estados têm poucos problemas em distinguir o uso legítimo e o uso ilegítimo da violência: o uso da força é legítimo porque é legitimado (pelo Estado)” (De La Durantaye, 2009, p. 338-339). Percebe-se, então, que não há uma divisão a priori entre a violência legítima e ilegítima, mas sim uma disputa pela sua sanção, pela possibilidade de considerá-la

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Aqui fica evidente a ambiguidade do termo Gewalt, que hora pode ser traduzido como violência, ora deve ser traduzida como força ou poder.

legítima. É nesses casos limites, na passagem do uso aceitável de um direito e sua possibilidade de desestabilizar a ordem jurídica, que o direito torna-se violência (em ambos os sentidos, tanto o direito de manifestação passa a ser encarado como violento pelo Estado como o direito estatal passa de mero direito para violência em forma de direito). E é aqui que a “faceta de preservação interna do ordenamento se vê diante da violência como método de autoproteção, revelando uma espécie de núcleo violento no interior do próprio ordenamento” (Vieira, 2012, p. 83). A greve geral é tida como perigosa pelo Estado, não pelos fins que busca, mas porque ela pode resultar na criação de um direito novo, “ela é capaz de fundamentar e modificar relações de direito” (Benjamin, 2011, p. 130). Em contraposição a isso, surge uma outra violência, com uma função diametralmente oposta: a função de manutenção do direito posto, a violência estatal utilizada (de forma sancionada) para manter a ordem (Benjamin, 2011, p. 132). Para Benjamin, toda violência fundadora depende inevitavelmente de uma violência que a mantenha e a legitimidade dessa violência mantenedora não se dá pelo direito, pelas normas, pelos princípios de justiça, mas, em último caso, pela ameaça à ordem fundada, ainda que possa coincidir com essas normas e princípios. Como afirma Slavoj Žižek, apesar da essência autoquestionadora da democracia, esse questionamento sempre teve um limite estrutural: não se pode por em cheque a própria democracia (Žižek, 2008, p. 31). Esse problema está longe de ser uma exclusividade de Rawls. É um fantasma que assombra toda a teoria liberal desde os seus primórdios, uma proximidade inevitável e malquista com o absolutismo de Thomas Hobbes e que pode ser resumida na dificuldade de todos os autores de lidarem com o problema da segurança em relação à liberdade estabelecida pela sociedade civil (Neocleous, 2008, p. 32). Mark Neocleous demonstra como John Locke não rompe definitivamente com Hobbes nesse pressuposto (Locke se utiliza do termo “prerrogativa” para legitimar a possível violação de direitos para atingir determinados fins por parte do Estado), bem como que toda a filosofia política liberal setecentista colocava a segurança (isto é, a medida de restrição da liberdade) como um pressuposto consensual de qualquer teoria (p. 32). Assim sendo, não é à toa que Giorgio Agamben afirma que “a declaração do estado de exceção é progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo” (Agamben, 2004, p. 28) e remeta justamente ao pensamento hobbesiano para desenvolver sua categoria de bando soberano. Agamben vai definir a relação de exceção

do soberano com seus súditos (a soberania) como uma relação de bando, no sentido de que “aquele que foi banido não é, na verdade, simplesmente posto fora da lei e indiferente a esta, mas é abandonado por ela, ou seja, exposto e colocado em risco” (2010, p. 34). A relação de bando é a exposição dos súditos ao poder do soberano. Para Agamben, aquele que está exposto, colocado em risco, se chama homo sacer (figura simetricamente oposta ao soberano) e a sua vida exposta se chama vida nua3. É pela relação de bando que o autor resgata o pensamento hobbesiano, mostrando que o fundamento da soberania não é a cessão livre do direito natural de liberdade para a própria proteção, mas sim a manutenção do poder do soberano de fazer qualquer coisa com qualquer um, de tratar a todos como vida nua. A relação entre o soberano de um lado e o homo sacer e sua vida nua do outro é fundamental. Ambos se apresentam como figuras correlatas, simétricas, “no sentido de que soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são potencialmente homines sacri e homo sacer é aquele em relação ao qual todos os homens agem como soberanos” (Agamben, 2010, p. 86). Agamben afirma que, em Hobbes, o estado de natureza sobrevive na pessoa do soberano, que é o único a conservar o seu natural ius contra omnes. A soberania se apresenta, então, como um englobamento do estado de natureza na sociedade, ou, se quisermos, como um limiar de indiferença entre natureza e cultura, entre violência e lei, e esta própria indistinção constitui a específica violência soberana (Agamben, 2010, p. 42).

O estado de natureza não é uma externalidade, estado de natureza e estado de exceção são apenas as duas faces de um único processo topológico no qual “o que era pressuposto como externo (o estado de natureza) ressurge agora no interior (como estado de exceção), e o poder soberano é justamente essa impossibilidade de discernir externo e interno, natureza e exceção” (Agamben, 2010, p. 43). Uma tese que, de certa forma, Marx já havia antecipado em pleno século XIX em seu fundamento: “os economistas burgueses têm em mente apenas que se produz melhor com a polícia moderna do que, por exemplo, com o direito do mais forte. Só esquecem que o direito do mais forte também é um direito,

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Homo sacer era uma figura do direito romano que remetia ao sujeito cuja morte não poderia se dar por meio de sacrifícios (direito divino) nem ser considerada homicídio (direito dos homens) pois sua morte não era contemplada nem pela justiça divina nem pela justiça profana. Era vida sacra: matável, mas insacrificável (Castro, 2012, p. 64; Agamben, 2010, p. 84).

e que o direito do mais forte subsiste sob outra forma em seu ‘estado de direito’” (Marx, 2011, p. 43). Uma das teses principais de Giorgio Agamben é a de que o estado de exceção não é um mero recurso interno ao Estado de direito a ser reivindicado em momentos de crise (um evento excepcional que difere do “estado normal” de coisas a ser restituído), como geralmente se encontra nos manuais de direito constitucional. O estado de exceção surge da tradição democrática revolucionária e não da tradição absolutista (como é o caso do golpe de Estado). Trata-se de um espaço vazio e não ditatorial de direito: o estado de exceção é condição do direito e não um remédio para o caos, para a anomia, ou seja, para a ausência de direito. Isso permite que, hoje, “a declaração do estado de exceção [seja] progressivamente substituída por uma generalização sem precedentes do paradigma da segurança como técnica normal de governo” (Agamben, 2004, p. 28). Agamben insiste no rompimento com a visão dualística entre norma e exceção que sempre permeou esse conceito por compreender que o estado de exceção não consegue mais retornar as coisas ao “normal”, não existe a normalidade prévia e a exceção a ser corrigida, norma e exceção se confundem e se indeterminam sendo impossível distingui-las (Agamben, 2005, p. 293). Como toda teoria liberal, Rawls ignora o problema da exceção e reduz o problema da divergência à questão da razoabilidade de doutrinas compreensivas divergentes (cuja decisão está aberta e se legitima de forma tautológica na sua própria legitimidade razoável). Mesmo a proposta de consenso sobreposto esbarra na possibilidade de uma demanda política, articulada nos termos de sua teoria da justiça, ser considerada ilegítima, violadora da constituição ou dos direitos fundamentais (ironicamente, os Estados Unidos dos anos 60 e a polêmica em torno dos métodos do movimento negro de reivindicação de direitos se encaixam perfeitamente como exemplo). Rawls tenta inserir a política em sua teoria, mas o faz de forma apaziguada, carregando consigo o fantasma da segurança, da violência e do estado de exceção. Assim sendo, o que se pretende político é, em realidade, a verdadeira interdição do político.

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