\"E se não morreram, vivem até hoje\" - as experiências Moderna e Contemporânea em Branca de Neve

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UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

Ana Carolina Almeida Souza

“E SE NÃO MORRERAM, VIVEM ATÉ HOJE”: as experiências Moderna e Contemporânea em Branca de Neve

Ananindeua – PA Dezembro – 2012

Ana Carolina Almeida Souza

“E SE NÃO MORRERAM, VIVEM ATÉ HOJE”: as experiências Moderna e Contemporânea em Branca de Neve

Trabalho de Conclusão de Curso de Graduação apresentado ao Centro de Estudos Sociais Aplicados da Universidade da Amazônia como requisito para a obtenção do grau Bacharel em Comunicação – habilitação Jornalismo, sob orientação do Prof. Dr. Relivaldo Pinho de Oliveira.

Ananindeua, Pará Dezembro/ 2012

UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA (UNAMA) Ana Carolina Almeida Souza “E SE NÃO MORRERAM, VIVEM ATÉ HOJE”: as experiências Moderna e Contemporânea em Branca de Neve

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado, avaliado e aprovado no dia ____/_____ de 2012, pela banca examinadora constituída pelos professores:

Banca Examinadora

_________________________________________ Professor Doutor Relivaldo Pinho de Oliveira Orientador – Universidade da Amazônia

_________________________________________ Professor Doutor Heraldo de Cristo Universidade Federal do Pará

Apresentado em: ___/___/_____.

Conceito: __________________

Ananindeua – PA Dezembro – 2012

Dedico este Trabalho a todos aqueles que já perderam o medo do lobo mal e para os que ainda acreditam em príncipes encantados.

AGRADECIMENTOS Se fosse para lhes contar uma história, definitivamente teria que iniciar por onde as coisas, obviamente, começaram. Começaram lá no passado, quando um garotinho na faixa dos seus 6 anos disse para a mãe que queria uma irmãzinha. Ele bateu o pé repetindo isso tantas vezes que a mãe não teve escolha a não ser prometer que um dia ele teria. Pouco tempo depois a mãe descobriu que estava grávida e logo a expectativa estava por qual sexo teria essa criança. Era menina. E em nove meses a menininha branquinha, de cabelos arrepiados e cara redonda vinha ao mundo. E sem o irmão “pentelho” e os pais ela não existiria. Mas nesta família não tinha apenas um irmãozinho. Tinha outro. Aquele que enquanto a menininha crescia, levaria ela durante quase todo o ensino médio para a aula, aceitaria ouvir as suas músicas no som do carro e ainda a chamaria para ser madrinha do seu casamento. Não a história não para por ai, tem a mãe heroína e o pai herói. Personagens importantes dessa história e que nunca a negaram de onde vieram nem como chegaram onde estavam. A mãe inclusive ainda espera que ela escreva a sua biografia. Mas isso é outra história. Enquanto isso, irmão “pentelho” dava conselhos, falavam de lugares, pessoas, conhecimentos e dinossauros, povoava a imaginação da menina com imagens dançantes de coisas maravilhosas e sonhos gigantescos que culminaram com a vontade dela de ser escritora. Sim, ela de fato escrevia e também tentava recriar as mesmas coisas fantásticas que imaginava em papel e caneta. E era incentivada por uma babá que apostava todas as suas fichas na menina gorduchinha, que aprendeu com ela o valor das coisas que mais importam e dos Contos de Fada. Continuou assim, tanto que decidiu em algum momento que não mais só falaria de sonhos, mas também da realidade e foi assim, apoiada por todos naquela casa, que ela fez Jornalismo. Entre seu caminho passaram muitas pessoas que significaram bastante, não só a sua formação, como também a sua pessoa e enquanto a menina se tornava mulher, quatro amigas também. E como cinco mosqueteiras elas seguiram fiéis seus caminhos, lutando pelo que queriam e procurando sempre estar lá, umas pelas outras. A Loira, a Maddie a Vivinha e a Siamesa, sempre com ela. Também tinha o escudeiro silencioso, que foi de advogado à dentista e que nunca vai esquecer que dará tratamento de graça para a menina pelo resto da vida. Não diferente, ou assim ela pensa, de suas novas cavaleiras. Cavaleiras do Jornalismo, que embarcaram nessa loucura da informação junto dela. Jasmine, Ariel e Minnie. Três personagens da Disney que a lembrariam todo o tempo porque escolheu aquela profissão e como veria nelas as suas próprias vontades.

E o que seria da profissão sem seus mestres? Aqueles que ligam seus sonhos no mode realidade e que a ensinaram a diferença entre ser só um jornalista e ser um jornalista comunicólogo. Para a menina, agora graduanda, foi a letra R que a conduziu por caminhos práticos e teóricos, simultaneamente. Uma, sua orientadora e um, seu orientador. Uma representava muito bem o seu lado ligado ao Jornalismo, o outro o seu lado mais comunicóloga, e mesmo assim os dois se completam. Jornalismo. A ânsia de escrever, de relatar, de contar, de tratar. De apurar, de revelar e de despertar. Se pudesse descrever a sua profissão em uma palavra, ela definitivamente descreveria como apaixonante. Mas tinha a Comunicação. Seus processos, seus enlaces, suas interdisciplinaridade e possibilidades. Se pudesse descrever a sua área de estudo, ela diria amante. E quando a Comunicação se encontrava com o Cinema, aí mesmo que as faíscas rolavam. Faíscas. E ele se descreve com essa palavra. Como um vento gostoso de uma Boa Viagem de mãos dadas na praia. É quem se precisa para o conforto, para o cafuné, para a compreensão, para o beijo. E ele esteve com ela todo o caminho, sem nunca deixa-la duvidar, nem cair. Isso não é qualquer um que faz, e quem disse que ele poderia ser qualquer um? Ninguém nessa história o é. Todos estão com ela, lembrando-a de quem ela é, de quem ela se tornou e até onde pode chegar e assim como Walt Disney, uma das suas maiores inspirações, enquanto ela escreve essas últimas linhas de agradecimento, lembra-se que “você pode sonhar, criar, desenhar e construir o lugar mais maravilhoso do mundo…mas é necessário ter pessoas para transformar seu sonho em realidade.” (Walt Disney). E vocês são as minhas pessoas. Obrigada pelo sonho. Obrigada por estarem comigo me ajudando a torna-lo realidade.

RESUMO Demonstrações de uma condição de experiências moderna e contemporânea, os produtos audiovisuais são representações de um dado período e de uma dada sociedade, tanto por suas características efêmeras, quanto por sua estética própria adaptada para ser vista e ouvida. Mas o que acontece quando esses produtos, tão modernos, buscam inspiração em temas tão clássicos como os Contos de Fada? Neste trabalho, analisamos, não só a estética do filme Branca de Neve e os sete anões e da série Once Upon a Time; mas também fomentamos uma discussão a cerca dessa nova narração que se configura através de uma nova experiência, que não mais se assemelha às experiências propiciadas pela narração tradicional e, por consequência, dos Contos de Fada, mas é uma experiência que vive de elementos entorpecedores e da técnica pela técnica. O “Era uma vez…” reconfigurado e transvertido de novidade, nem sempre significa o felizes para sempre. Pode apenas ser uma sobrevida. Solo fértil para uma análise estética, onde Walter Benjamin e Fredric Jameson são as principais referências.

Palavras-Chave: Branca de Neve, Experiência, Inconsciente Óptico, Função Terapêutica do Cinema, Disney, Once Upon a Time, Pós-Modernidade, Pastiche.

ABSTRACT

Statements of a condition of modern and contemporary experiences, audiovisual products are representations of a given period and a given society, both for its ephemeral characteristics, as for their own aesthetics, adapted to be seen and heard. But what happens when those products, so modern, seek inspiration from classic themes like Fairy Tales? In this paper, we analyze not only the aesthetics of the film Snow White and the Seven Dwarfs and the series Once Upon a Time, but we also foster a discussion about this new narrative that is formed through a new experience, which no longer resembles the experiences offered by traditional narrative and therefore of Fairy Tales, but it is an experience that lives through numbing elements of the technique for the technique. The "Once upon a time ..." is reconfigured and covered as a novelty, but that does not always mean that the happily ever after always happens. It may just be a survival. Fertile ground for an aesthetic analysis, where Walter Benjamin and Fredric Jameson are the main references. Key-Words: Snow White, Experience, Optical unconscious, Therapeutic Function of the Cinema, Disney, Once Upon a Time, Postmodernity, Pastiche.

SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO

10

2. NARRAÇÃO, EXPERIÊNCIA E VIVÊNCIA

13

2.1 CONTOS DE FADA E NARRAÇÃO TRADICIONAL

13

2.2 EXTINÇÃO DA NARRAÇÃO TRADICIONAL

19

3. CINEMA, ANIMAÇÃO E SOCIEDADE

23

3.1 CINEMA COMO NARRATIVA

23

3.2 FUNÇÃO TERAPÊUTICA DO CINEMA E INCONSCIENTE ÓTICO

28

4. BRANCA DE NEVE E A MODERNIDADE

34

4.1 CONTEXTO E APRESENTAÇÃO

34

4.2 ERA UMA VEZ A MODERNIDADE

36

4.2.1

A MORAL QUE NÃO ENSINA

37

4.2.2

O RISO QUE NÃO CONTAGIA

41

4.2.3

A PRINCESA QUE NÃO DESPERTA

45

5. BRANCA DE NEVE E A CONTEMPORANEIDADE

48

5.1 ONCE UPON A TIME

48

5.2 ERA UMA VEZ A CONTEMPORANEIDADE

49

5.2.1

CONTOS DE PASTICHES PARA GERAÇÃO ROLLER COASTER

51

5.2.2

HETEROTOPIA DE UM LIVRO DE HISTÓRIAS

56

5.2.3

METASIMBOLOGIA: A MAGIA DA DISNEY

59

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS

62

7. REFERÊNCIAS

64

8. ANEXOS

68

1 INTRODUÇÃO O primeiro longa-metragem em animação criado em Hollywood foi Branca de Neve e os Sete Anões (1937). O filme, baseado no conto homônimo dos irmãos Grimm, além de ter sido um sucesso de bilheteria, também representou uma revolução na forma de se fazer animação, pois incorporava novas técnicas e ainda tornou possível um investimento maior neste tipo de seguimento. E a história da mocinha meiga, ameaçada por uma rainha invejosa, que foge e acaba sendo acolhida por anões mineiros, é considerada por muitos, uma das obras primas do cinema mundial. Ronald Bergman, autor de ...ismos para entender o cinema (2010) aponta que Branca de Neve foi significativa para que fosse possível uma sistematização na forma de se fazer animação e também na hora de se construir um prestígio, que mais de 80 anos depois ainda cerca a Disney. O sucesso que Branca de Neve e os sete anões teve em seu período, foi só um vislumbre para muitas outras (re)interpretrações da mesma temática, seja através de filmes também de animação, ou mesmo live action, seja através de contos contemporâneos que exploram um clima mais sombrio, ou mesmo em seriados de TV que misturam o conto com outras referências, como é o caso de Once Upon a Time, série norte americana de um dos prolongamentos da Disney Company, que se propõe a recontar os Contos de Fada sob um outro aspecto: o da contemporaneidade. Os dois produtos audiovisuais são objetos de diferentes experiências sociais onde seu período e o seu contexto influenciam diretamente em como as construções dos contos serão reapresentadas. Importante dizer, que os temas considerados atemporais, tais como bondade, amizade, amor e inveja, tão trabalhados e presentes nas versões da narração tradicional, parecem ter sido esquecidos e colocados em algum lugar escondido ou subjetivo, onde o que prevalece são disputas entre o bem e o mal e os enlaces, aparentemente complexos e irresolvidos entre os personagens. Branca de Neve dialogou com o passado, constituindo-se como uma história de referência, passou pela modernidade sendo reformulada para atender a um novo tipo de sociedade e ainda hoje, na contemporaneidade se faz presente. Nem sempre com a maçã, nem sempre com a madrasta invejosa, nem sempre nos fazendo questionar sobre o que tudo isso ensina. “E se não morreram, vivem até hoje”, aqui se pergunta: Vivem de que maneira? Pensando nesta questão, este trabalho se propõe em analisar as experiências moderna e contemporânea a partir de dois produtos audiovisuais: Branca de Neve e os sete anões e Once Upon a Time. Para tal, partimos da ideia de que os audiovisuais são representações de seu

tempo, que se reconfiguram para atender aos diferentes momentos, sendo assim será possível observamos as (re)significações que são dadas à história de Branca de Neve em distintos tempos, com distintas sociedades; mudanças observáveis, tanto na mudança postural das Brancas de Neve, quanto na composição estética. De fato nos deparamos com várias questões inerentes quando se analisam os Contos de Fada, e talvez a principal dela seja: por se tratar de uma fonte antiga e muito (re)visitada, será que essa fonte já não se saturou? E talvez ao se fazer uma mistura exacerbada de referências (como parece ser o caso de Once Upon a Time) tente-se resgatar uma linguagem não mais possível, pois a experiência não é mais a tradicional? As referências das teorias dos Contos de Fadas são escassas, então não foi possível apontar uma variedade grandiosa de autores que relacionam este tema com a estética, experiência, menos ainda com a comunicação, então além de um trabalho que pretende acrescentar uma nova pesquisa e novas perspectivas, também se propõe investigar com muita atenção de que maneira os produtos audiovisuais são representações de um dado período e contexto, não desconsiderando a cultura de massa como não cultura, mas realmente se parando para analisar a sua validade, quanto objeto importante de pesquisa da comunicação (não só dela). É importante dizer que, em nenhum momento neste trabalho se pretende qualificar tais objetos como sendo positivos ou negativos, a intenção sim, é a de discorrer – mesmo que brevemente – sobre as implicações de uma produção cinematográfica de uma empresa que existe há mais de 80 anos e que utiliza de auto referências, mercadorias-signos, símbolos, narrativas e memória para que se torne rentável e, porque não, atemporal. Assim, a Walt Disney Company se torna o objeto ideal para uma análise do contextos, tanto de uma época chamada de “moderna”, quanto a atual, chamada de “contemporânea”. Seja pela sua quebra de paradigmas, criando longa-metragens em animação, em um período em que animação era vista como uma arte inferior, seja por ser, como Gabler (2009) afirmou em seu livro Walt Disney: o triunfo da imaginação americana; a primeira corporação multimídia moderna.

Não é nenhum exagero afirmar que o século XX não teria as feições culturais que o caracterizaram sem a influência do imaginário do mundo da fantasia criado a partir dos desenhos animados de Walt Disney. E esse sucesso se deve, inicialmente, ao enfrentamento dos problemas então existentes para a formulação de uma linguagem que verdadeiramente dotasse a animação de características artísticas próprias – a correta equação envolvendo imagem desenhada e seu movimento no espaço/tempo. A mais pura conquista da arte sobre a tecnologia que lhe permitia existir. Em outras

palavras, ao sujeito que possuía lápis (a tecnologia) foi oferecido um alfabeto (arte), para que ele pudesse expressar-se. (LUCENA, 2005; p. 97).

E se ainda assim parece uma análise desnecessária, relembro que este estudo, além de trazer em pauta um assunto já considerado tantas vezes banal, como Contos de Fada no Cinema, aqui se pretende fazer um trabalho partindo de uma visão academicamente aplicada, compreendendo como e mesmo se é possível, observar o cinema disneyano, para enxergar o mundo. Ou seja, entender tais objetos estéticos, nos permite entender não apenas os contextos aos quais eles estão fazendo parte, mas também permite entender de que maneira estes contextos são refletidos. Ressaltamos também, a importância de um estudo que se pretende resgatar aspectos da teoria dos Contos de Fada que, além de escassos, estão perdidos em estudos que, nem sempre, objetivam a sua aplicabilidade.

2 NARRAÇÃO, EXPERIÊNCIA E VIVÊNCIA.

2.1 Contos de Fada e a Narração Tradicional. “Era uma vez…” Normalmente é assim que começa a ser contado um Conto de Fada. Sem dizer em que período, em que país ou em que ‘mundo’ a história vai se desenvolver. O “era uma vez…” neste caso apenas marca o início de uma narrativa, que em alguma parte da história da humanidade, ganhou o nome de Contos de Fada, mesmo que nem todas tenham uma fada envolvida1. Pouco se sabe sobre a origem dos Contos de Fada, apenas que eles advêm dos mais diversos cantos do mundo e das mais diversas raízes culturais, incluindo aquelas que são datadas da China, Japão, África do Sul, Holanda, Alemanha e outros. Fora isto, tem-se a certeza de que a grande maioria deles teve seu início na tradição oral por influência de histórias míticas. Marie Louise Von Franz, autora do livro “A sombra e o mal nos contos de fada”, fez uma pesquisa detalhada em relação aos contos de fadas e aponta uma variedade de hipóteses em relação à origem deles, afirmando que:

As teorias a respeito da origem dos contos de fada variam bastante: algumas dizem que são remanescentes degenerados de mitos e doutrinas religiosas, outras afirmam que eles provêm de uma parte degenerada da literatura. Já se disse também que eles são uma espécie de sonho, mais tarde contados como estórias. (FRANZ, 2002; p.12).

Como não existem documentos ou obras que falem exatamente como estas histórias deveriam ser contadas quando foram criadas, conforme elas viajavam, acabavam incorporando outros significados, outras interpretações e até mesmo, novas histórias iam surgindo daquela primeira que tinha sido contada, dando aos Contos de Fada esse caráter de história aberta e passível de adaptações.

E é opinião quase unânime no meio acadêmico que (Os Contos de Fada) foram resultado de uma poligênese. À medida que os contos foram, passados de geração a geração, cobrindo grandes distâncias geográficas e rompendo as barreiras da língua, sofreram inevitavelmente a ação do tempo e a falta de precisão, inerentes a registros orais, o que os levou a alterações significativas entre as dezenas de versões, muitas vezes mais de uma no mesmo país. (CALLARI, 2012; p.10). 1

Etimologicamente, “fada” é flexão de fadum, o fado ou destino do homem. A partir da Idade Média, a palavra envolveu as fadas, pois elas faziam os homens serem castigados pelos seus atos, ou atos de seus pais.

E estas questões apontadas por Alexandre Callari na introdução do livro “Branca de Neve: os contos clássicos”, nos dá possibilidade de falar introdutoriamente sobre o objeto deste trabalho: Branca de Neve. Acreditamos ser conveniente explorar um pouco do que se tem registro deste conto especificamente, tanto para exemplificar o que abordamos nestes primeiros parágrafos, quanto para já trazer ao centro o objeto que será trabalhado neste. Acredita-se que a história oral de Branca de Neve tenha surgido ainda na Idade Média, próximo de onde hoje ficam os países baixos e se espalhou por todo o território europeu, até chegar a terras germânicas, onde em 1812 (ver anexo 1) os Irmãos Grimm fizeram uma compilação para o livro Kinder-und Hausmaërchen (Contos de Fada para adultos e crianças). Esta é hoje, a versão mais conhecida da história. Porém a primeira versão registrada de Branca de Neve é A jovem escrava (ver anexo 2) de 1634. A história de Branca de Neve não tem variações consideráveis entre uma versão e outra e são facilmente identificadas entre outras histórias que também vieram da cultura oral e que provavelmente advém do mesmo período. As narrativas falam de forma semelhante de uma moça de beleza singular, de pele alva, cabelos negros e lábios vermelhos, que é caçada por sua madrasta invejosa. Em sua fuga acaba buscando abrigo e proteção com alguma figura masculina, algumas vezes representada pelos sete anões, outra por um rei ou príncipe que sempre prometem ajudá-la. No entanto, mesmo com a ajuda da figura masculina, Branca sempre cai em tentação com algo que a rainha má lhe oferece. Por vezes um vestido que não lhe deixa respirar, ou um pente envenenado, mas a maçã é definitivamente o elemento mais lembrado desta história. Mesmo com as várias características em comum, com a expansão da história por vários lugares, também existem outras narrativas que envolvem Branca de Neve e que guardam algumas características muito próprias, como a versão Escocesa em que Branca se chamaria Árvore-dourada e sua antagonista é a própria mãe; ou uma das versões italianas: Maria, a madrasta má e os sete ladrões, em que Branca se chama Maria e seu próprio pai a abandona na floresta. (ver anexos 3 e 4) Estes são alguns exemplos do que poderia acontecer quando os contos orais viajavam e se espalhavam, adaptando-se aos mais diversos contextos, agregando valores, adaptando passagens e até mesmo rescrevendo a narrativa. Para Jeanne Marie Gagnebin (1994) “cada história é o ensejo de uma nova história, que desencadeia uma outra, que traz uma quarta, etc.; essa dinâmica ilimitada da memória é a da constituição do relato, com cada texto chamando e suscitando outros textos” (p.13) onde a memória se torna infinita e se refaz conforme novos

contextos aparecem. Destacando que não se trata de qualquer memória, ou de qualquer história; estas histórias, segundo Gagnebin estão especialmente enraizadas na cultura popular, onde uma narrativa pode, realmente ser aberta, “portanto, em sua profusão ilimitada” (GAGNEBIN, 1994; p. 12). E justamente a possibilidade de atrelar outras histórias a partir da essência de uma primeira é uma das características que tornam os Contos de Fada acessíveis até hoje. A outra característica é apresentada por Bruno Bettelheim, autor do livro “A Psicanalise dos Contos de Fada” (2002). O psicanalista afirma que mesmo que estes contos fossem se modificando, algumas questões intrínsecas tornavam estas narrativas atemporais, ou seja, mesmo que o conto mude, o seu sentido, ou “moral da história” se mantem intacto.

Através dos séculos (quando não dos milênios) durante os quais, os contos de fadas, sendo recontados, foram-se tornando cada vez mais refinados e passaram a transmitir ao mesmo tempo significados manifestos e encobertos - passaram a falar simultaneamente a todos os níveis da personalidade humana, comunicando de uma maneira que atinge a mente ingênua da criança tanto quanto a do adulto sofisticado. (…)Lidando com problemas humanos universais, particularmente os que preocupam o pensamento da criança, estas estórias falam ao ego em germinação e encorajam seu desenvolvimento, enquanto ao mesmo tempo aliviam pressões préconscientes e inconscientes. (BETTELHEIM, 2002; p.6, grifo nosso).

Então, ao abordar estes aspectos, ditos atemporais, Bruno Bettlelheim atribui aos Contos de Fada um caráter de guia. Como se eles fossem capazes de transmitir em suas histórias conselhos e ideias sobre questões morais, éticas e de sobrevivência, os quais seriam indispensáveis tanto para uma criança em desenvolvimento, quanto mesmo para um adulto “sofisticado”. E estes conselhos e ideias, por mais que se modificassem conforme o contexto mudasse, conseguem manter em foco as questões humanas mais básicas, apontados por Bettelheim (p. 49) como: "Quem sou eu? Como devo lidar com os problemas da vida? Que serei eu?". Estas questões são, para a psicanálise de Bettelheim, inconscientes, motivo pelo qual tanto uma criança de seis anos, quanto um filósofo de 60 podem tê-las, no entanto a busca pelas respostas destas questões é que são diferentes. Uma criança passaria a acreditar nos conselhos dados pelos Contos de Fada, pois estes possuem características subjacentes aos processos de pensamento dela, sendo capaz de convencê-la de que aquela história é confiável. Os Contos de Fada possibilitam à criança investigar o mundo a sua volta, pois eles seriam as fontes de inteligibilidade infantil, capazes de mostrar à criança o que a espera no mundo. Em outras palavras: os Contos de Fada seriam o reflexo da procura infantil por respostas.

Utilizamos deste apontamento do psicanalista para estabelecer um diálogo entre o que ele defende e o que Walter Benjamin aborda, quando fala de infância e histórias infantis. Em seu texto “Livros infantis antigos e esquecidos” (1924), Benjamin levanta uma questão que está diretamente ligada com a abordada por Bettelheim, dizendo que “A criança lida com os elementos dos contos de fadas de modo tão soberano e imparcial como com retalhos e tijolos. Constrói o seu mundo com esses contos, ou pelo menos os utiliza para ligar seus elementos” (BENJAMIN, 1994; p, 238). Ou seja, mesmo que nessas histórias a criança consiga enxergar suas próprias questões, ela é soberana naquilo que acredita e naquilo que, de fato, relaciona para o seu aprendizado. Ainda no texto, Benjamin afirma que “a criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis, e muito menos as que os adultos concebem como tais.” (p. 236), sendo elas perfeitamente capazes de entender temas mais abstratos, pesados e sérios, desde que estes sejam apresentados com clareza e objetividade. Algo que os Contos de Fada seriam capazes de fazer. Estes contos funcionam como provedores de respostas, em que temas como morte, amor, solidariedade, abandono e esperança são, não só comuns, mas também são capazes dar às crianças o que elas buscam. Em outras palavras, mesmo de teor abstrato e também sérios, os Contos de Fada aparecem para explicar para a criança estas questões, sendo aqui possível perguntar o motivo de eles serem tão eficazes. A efetividade dos Contos de Fada pode ser justificada pela sua relação estreita com a narração tradicional. Para Walter Benjamin como principal referência, a narração tradicional seria entendida por uma história contada com o objetivo de transmitir uma mensagem, explicar uma situação e compartilhar conselhos e sugestões a partir da tradição daquele contexto. A narração teria partido de uma experiência própria ou apreendida por uma narração anterior e uma memória. A memória (Erinnerung) é um dos conceitos mais importantes da pesquisa benjaminiana e ela, aliada à experiência seriam capazes de projetar em uma narrativa o caráter de conselho aqui já citado. É ela que “repousaria sobre o dom de produzir e de perceber semelhanças; um dom que sofreu profundas modificações ao longo da história da espécie humana.” (TIEDEMANN. 2006; p.18). Aquele que narra algo da maneira tradicional o faz também trazendo a tona aspectos da sua memória, ou reminiscência. Estas memórias podem ser apreendidas de forma indireta, ao ter contato com outros narradores, ou de maneira direta, apontando sua própria experiência. A esta diferença, Benjamin recorreu a uma dicotomia proposta por Proust que diz que a memória seria classificada e dividida em: “memória involuntária” e a “memória voluntária”. A “memória voluntária” é causada por uma espécie

de ‘passe-livre’ a acontecimentos passados, ela nos faz sermos capazes de acessar nosso passado e nossa vivência de forma consciente. Já a “memória involuntária” seria causada pelo acaso. Com a possibilidade de nos lembrarmos de algo, não pela necessidade de lembrança, mas pelo despertar deste anseio através de algo (odor, sensação, paisagem, etc) não programado. Ao resgatar estes dois pontos, Benjamin os explora de forma a traçar um encontro entre as suas pesquisas e as proustianas, formulando outra dicotomia, na qual a “memória voluntária” seria parte da vivência e a “memória involuntária” seria parte da experiência. Ou seja, a narração tradicional, por seu caráter de remeter a uma memória involuntária, seria uma forma de transmitir experiência. Dessa forma, o narrador seria um sábio com domínio de síntese e que consegue abordar assuntos de interesses práticos, capaz de dar instruções e até mesmo ser uma espécie de referência que transmite/comunica o que viveu, mas de forma a acessar a memória involuntária, pois também é capaz de abordar a sua experiência (Erfahrung) 2. Assim, ultrapassando a questão de experimentar algo, ou vivenciá-lo, a experiência para Benjamin é um dos pontos centrais da sua pesquisa sobre narração, pois a narração tradicional seria esta capaz de fornecer experiência não só para aquele que conta, mas também para o que ouve, colocando os dois em uma sintonia. Uma sintonia de quem ensina algo sobre uma realidade e que pode nos ajudar a compreender nuances do passado, do presente e até mesmo do futuro. Talvez, muito mais do que ensejos de um sonho, como Marie Louise Von Fraz propôs, podemos apontar que estas histórias também representavam avisos, uma espécie de modus operandi de como viver em sociedade.

Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com a sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. (BENJAMIN, 1994; p. 114).

Jeanne Marie Gagnebin, no prefácio do livro de obras escolhidas de Walter Benjamin “Magia, Técnica, Arte e Política”, afirma que a experiência só pode ser transmitida através de uma narração se esta possuir algumas características, como:

2

Erfahrung (do verbo fahren, ir através de, atravessar, ir até o fim, percorrer) é um conceito de articulação no duplo sentido de expressão e de arranjo/concatenação (Verknüpfung): “Erfahrung é uma dimensão da práxis humana na qual é articulada a relação consigo mesmo e com o mundo, de modo que a relação com o mundo se torne articulável como relação consigo e vice-versa. (WEBER apud QUEVEDO. Op. cit., p. 105)

a)

A experiência transmitida pelo relato deve ser comum ao narrador e ao ouvinte,

ou seja, uma comunidade de vida e de discurso. b)

A narração deve ser trabalhada minuciosamente, como um trabalho de um

artesão. Dedicando tempo para dar forma à quantidade grandiosa de material narrável. c)

A narração tradicional deve servir de conselho, mas “o conselho não consiste

em intervir do exterior na vida de outrem, como interpretamos muitas vezes, mas sem ‘fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada’.” (BENJAMIN,1936 ; p. 200). Os Contos de Fada seriam estas narrações bem sucedidas, estando a sua força aí, na experiência apreendida, experiência compartilhada e a experiência construída. Ou seja, ao invés de uma imagem eterna do passado, os Contos de Fada estabelecem uma experiência com o passado, formando imagens mutáveis, porém pragmáticas e compreensíveis nas mais diversas épocas, entre as mais diversas gerações. Isto acontece, pois muito mais do que o aprendizado, a experiência também influencia nas próprias ideias do ser humano. Clifford Geertz afirma que “deve-se atentar para o comportamento, e com exatidão, pois é através do fluxo do comportamento – ou, mais precisamente, da ação social – que as formas culturais encontram articulação” (GEERTZ, 1989; p.12), mas se o comportamento está diretamente ligado à experiência, não podemos desconsiderar que então esta experiência também se modifica para se enquadrar em um novo contexto, uma nova época, com uma nova sociedade, motivo pelo qual ela (a experiência) serve como indicador social. A questão em analisar a narração tradicional na modernidade, porém, é que esta narrativa clara, simples e pragmática estaria extinta. Sua morte teria começado com as mudanças sociais causadas no século XVIII, como o êxodo rural e a revolução industrial, além disto, a nova experiência urbana teria culminado com o surgimento do romance e a individualidade que ele impõe, logo “a tradição comum já não oferece nenhuma base segura, outras formas narrativas tornam-se predominantes.” (GAGNEBIN, 1994; p.14). O que nos faz lembrar, que nos estudos benjaminiana existem dois tipos de experiência: a) a coletiva, que congrega o homem com a sociedade em que ele vive (Erfahrung) e b) a individual e cotidiana, relacionada aos sentidos, que pode ser vista também sob o nome de vivência (Erlebnis). Benjamin entende que o que se empobrece é a experiência como vivência comum, mas que novas formas de narrar aparecem e assim mesmo o devem, pois o homem está diferente, a vivência está diferente e “não se deve imaginar que os homens aspirem a novas experiências” (BENJAMIN, 1933; p.118). O que analisamos aqui é a compreensão de uma mudança no tipo de experiência, a partir de sua arte, uma arte que se encontrava sob o formato

de aura, representada pelo Conto de Fadas em sua forma oral, e aquela arte que no pósrevolução industrial passa a ser a arte pela sua reprodução, no caso de seus produtos audiovisuais; “isto é, a passagem de um tipo de experiência histórico-social, a do saber socialmente vivido (Erfahrung), a outro tipo, em que as pessoas passam a ter a emoção individualmente transmitida (Erlebnis)” (FILHO, 2011; p. 90). Então não é que a experiência pare de existir, é que ela se reconfigura para atender a uma demanda social diferente da que estava previamente inserida, uma demanda que não mais prima pela relação do narrador e do ouvinte “através da transmissão orgânica, ritmada da experiência de uma para o outro” (FILHO, 2011; p. 90), mas prevê uma relação individual e que não mais transmite experiências, torna-se muda.

2.2 Extinção da Narração Tradicional. No Pós 1ª Guerra, Benjamin notou que os soldados que sobreviviam e retornavam das trincheiras estavam traumatizados e não conseguiam contar suas experiências. As vivências de mortes, selvagerias e a fragilidade do corpo humano, faziam estes homens não conseguirem transmitir suas experiências de boca em boca e segundo Benjamin além de crucial, este fenômeno não é estranho,

porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano. (BENJAMIN, 1933; p.115).

O Pós 1ª Guerra marcou pela subjeção do homem diante da técnica e com isso a sua mudança de comportamento em relação à experiência coletiva. O homem torna-se recluso, buscando experiências mais cotidianas e pessoais, justificando o aumento na produção e distribuição dos romances neste período e marcando um novo tipo barbárie.

Barbárie? Sim. Respondemos afirmativamente para introduzir um conceito novo e positivo à barbárie. Pois o que resulta para o barbáro dessa pobreza de experiência? Ela o impele a partir para frente e começar de novo, a contentar-se com pouco, a construir com pouco, sem olhar nem para a direita, nem para a esquerda (…) algumas das melhores cabeças já começaram a ajustar-se a essas coisas. Sua característica é uma desilusão radical com o século e ao mesmo tempo numa total fidelidade a esse século. (BENJAMIN, 1994; p.115 e 116).

Esta barbárie é o elemento que antecede o novo. Graças à barbárie seria possível ter contato com um novo tipo de experiência que seria a condizente com a realidade e perspectivas do homem moderno. O homem moderno é este que vive sob o tempo mecânico, passeia pelas multidões e trabalha dentro das indústrias, seu dia a dia é recolhido e defensivo, procurando se preparar para a vivência entre “choques” 3 de estímulos sociais causados pelas novas condições cotidianas a ele, ou seja “assim como num bom automóvel a própria carroceria obedece à necessidade interna do motor. (…) ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras”. (BENJAMIN, 1994; p. 116, grifo nosso). Porém, da mesma forma que esta barbárie impele-nos a seguir em frente, ela também o matem inerte. Inerte porque a sua experiência (como concepção tradicional) teria se esvaído e se tornado um mero reflexo de uma individualidade coletiva. Ou seja, uma sociedade que, por mais que viva junta, não consegue conviver coletivamente.

A indiferenciação e a pobreza. (O mundo pós-aurático) não assinala apenas o fim da experiência artística, mas da experiência em geral. O homem perdeu a capacidade de rememorar, típica da experiência (Erfahrung) e vegeta na mera vivência (Erlebnis). Autômato desmemoriado, que esgota suas energias na interceptação dos choques da vida cotidiana, o homem sem aura perdeu sua própria história. Pois é pela aura que ele se relacionava com a tradição, e era a aura que assegurava a alienação necessária da cultura com relação à vida, sem a qual sua negatividade desaparece, tragada pelo existente. Quem não pode lembrar o passado, não pode sonhar o futuro e, portanto, não pode criticar o presente. (ROUANET, 1987; p. 113).

E já que Benjamin observa este homem moderno, torna-se claro a ele que existe sim o ambiente alienável de rotina, vivendo em um tempo transitório, no entanto também possível de ser rompido, então “observamos que o diagnóstico de Benjamin sobre a perda da experiência não se altera, embora sua apreciação varie” (GAGNEBIN, 1994; p. 10). É preciso ressaltar que a questão nesta “contradição” é que Benjamin vislumbra algumas possibilidades de ruptura com as condições de realização nesta sociedade do capitalismo moderno. Mesmo raras, quando estas rupturas são alcançadas, o resultado é uma visita ao passado sem se ater a historicidades e repetições, assim como na psicanálise, esse rompimento pretende reativar um passado adormecido e por vezes reprimido e esquecido pela própria condição moderna. 3

Com a transmissão da Erfahrung para a Erlebnis o cotidiano do homem moderno seria repleto de choques, que seriam estímulos externos que o levam a responder as coisas de forma automática, como um reflexo a um estímulo. “Benjamin, inspirado em Baudelaire, transformou em experiência esse constante vivenciamento dos choques aos quais é submetido o homem moderno, nesse caso, “experiência do choque”.” (TOMAIN, 2004; p.106).

É necessário dizer neste momento, que na medida em que a Erfahrung transformou-se e ficou muito mais próxima da Erlebnis, o passado também foi se modificando. Não o passado histórico, em termos de acontecimentos, mas o passado visto como memória e tradição. Com o declínio da narração tradicional e a interrupção da narração linear, Benjamin faz uma análise de uma imagem dialética, convergindo-se com a técnica e possibilitando a visão do passado de outra forma.

[...] a origem benjaminiana visa, portanto, mais que um projeto restaurativo ingênuo, ela é, sim, uma retomada do passado, mas ao mesmo tempo – e porque o passado enquanto passado só pode voltar numa não-identidade consigo mesmo – abertura sobre o futuro, inacabamento constitutivo. (GAGNEBIN, 1999; p.14, grifo nosso).

Porém retomar o passado não aqui se refere a reescrevê-lo, ou revisitá-lo como se ele fosse um momento pontual e histórico, mas revisitá-lo para apreendê-lo e revitalizá-lo.

Essa revitalização do passado, no entanto, é o mais distante do homem moderno. Para o homem do mundo técnico, falta o elo com o passado, o que se evidencia de dois modos: pela pobreza de experiência característica desse momento histórico e pela consequente perda da capacidade de narrar essas experiências (WU, 2004; p.25).

Com a arte de narrar tradicionalmente extinta, ao homem moderno sua conexão com o passado é um desafio grande, pois sua memória involuntária não recebeu subsídios para um contato de experiências. Ou seja, pela falta de relação que este tem com a experiência coletiva, ou pobreza de experiências, ele não tem habilidade na hora de narrar, o que o leva a uma procura de uma nova forma de narrar, para assim, obter uma nova experiência. Isto nos leva a crer que, por mais que a arte de narrar tradicionalmente concebida esteja extinta, Walter Benjamin não a interpreta apenas de maneira pessimista. Na verdade sua análise quanto a este declínio diz que “esse processo, que expulsa gradualmente a narrativa da esfera do discurso vivo e ao mesmo tempo dá uma nova beleza ao que está desaparecendo, tem se desenvolvido concomitantemente com toda uma evolução secular das forças produtivas”. (BENJAMIN, 1985, p.201). Vale acrescentar que estas mudanças não foram apenas notadas por Benjamin, mas também por Bettelheim, que além de trazê-las para o centro das discussões, ainda comenta a esta mudança nos Contos de Fada:

As versões populares têm constantemente modernizado a história, adicionando elementos e, muitas vezes, atenuando os pormenores mais

intrigantes, de acordo com as exigências sociais e os valores de cada época. Os contos foram perdendo suas passagens mais controversas e incorporando valores modernos, adaptados para o universo infantil, deixando muitas vezes de ser apenas entretenimento, para assumir a proporção de lição de moral ou mensagem de superação. (BETTELHEIM, 2002; p. 212).

Os Contos de Fada foram perdendo gradativamente o tom de narração tradicional e ganharam o corpo de demonstrações de sonhos, magia e infantilidade. Foram transportados para uma dimensão de realidade, onde sua existência é um milagre e seus personagens são produtos do sonho coletivo, um lugar onde é possível se transformar um sapo em príncipe, cair em sono eterno, morder uma maça envenenada e por fim, ser despertado por um beijo de amor verdadeiro. O “Era uma vez…” precisou se reinterpretar para que ainda pudesse caber na modernidade. Seus discursos foram se alterando, bem como estas histórias passaram a ser contadas. Principalmente no que diz respeito aos finais das narrativas, tradicionalmente violentos e por muitas vezes cruéis, logo foram, assim como as partes violentas das histórias, diminuídos com a linguagem em que elas passaram a ser contadas, de forma que o tom era outro, mas a mensagem (a chamada "Moral da História") ainda poderia ser mantida. E na “obsolescência sempre mais acelerada das inovações e invenções que se originaram das forças produtivas do capitalismo em desenvolvimento, Benjamin vislumbrou a ‘assinatura’ dos primórdios da modernidade” (TIEDEMANN. 2006; p. 16) ao notar que estas transformações eram na verdade a própria representação de uma nova realidade. Ou seja, elas marcavam este novo momento em que nos deparamos com uma existência que basta a si mesma e experiências que apesar de pobres, segundo Benjamin (1994) tornam-se formas de preparar o homem para um mundo de psicose massificada, compreendendo que a chamada psicose vive na falta de relacionamento do homem com a sua realidade, então quem faz esta relação para o homem são personagens como o príncipe encantado, a bruxa má, a princesa em perigo e a fada madrinha.

3 CINEMA, ANIMAÇÃO E SOCIEDADE Alguns milésimos de segundo é o tempo necessário que existe entre uma imagem e outra para que ao serem colocadas sobrepostas, elas se movam. Usando esse princípio básico, o cinema foi criado, assim como uma de suas subdivisões: o cinema de animação. O instante entre uma imagem e outra é tão diminuto que nem ao menos percebemos quando um frame muda e neste ritmo acelerado de (im)percepção, conceitos como o inconsciente ótico, a nova narração e a experiência devem ser tratados para que se compreenda, não só como o cinema funciona, mas como ele implica na realidade nossa, tanto contextualmente quanto socialmente. Neste capítulo também iremos além do cinema live action, traçando nosso caminho até o cinema de animação, para mostrar a sua história e características próprias.

3.1 O Cinema como narrativa Quando falamos da história da sétima arte, principalmente por se tratar de algo que congrega tantos tipos de técnicas, ferramentas e conhecimentos acabamos nos deparando com questões que podem ser respondidas de diversas formas. Quem criou o cinema? Como começou? Onde começou? A verdade, no entanto, é que é difícil ter respostas concretas sobre estas perguntas, pois “ao lado das máquinas e dos processos que constituem, digamos assim, a história oficial do cinema, ele arrola também uma coleção interminável de bricabraques e geringonças caseiras, destinas a projetar artesanalmente imagens em movimento” (MACHADO, 1997; p. 14). Segundo Arlindo Machado, autor do livro “Pré-Cinemas e Pós-Cinemas”, a invenção do cinema é cheia de ramificações, porque muito antes dos nomes Lumière, Marey e Londe e Muybridge, outros já faziam experimentos com câmaras escuras e reproduções de peças em sequência buscando um movimento. A fim de congregar os mais diversos apontamentos sobre a sua origem, criação e desenvolvimento, neste trabalho vamos considerar a história do cinema partindo da primeira sessão parecida com a que temos hoje, ou seja, numa sala pública de projeções. Esta exibição aconteceu, segundo Arlindo Machado, na imaginação de Platão e veio a ser conhecida posteriormente como a “alegoria da caverna”. “A caverna de Platão, basicamente uma sala de projeção, situa-se nesse lugar fronteiriço, nessa zona limítrofe que separa a aparência da essência, o sensível do inteligível, a imagem da ideia, o simulacro do modelo” (MACHADO, 1997; p. 30). Platão é aqui inserido de forma a fornecer uma visão para com cinema que vai além das suas formatações técnicas. Neste trabalho queremos olhar para ele como o precursor de uma nova sociedade que passou a se reconfigurar sendo

diretamente influenciada pela sétima arte. “As transformações da modernidade pós-1870 geraram um clima perceptivo de superestimulação, distração e sensação, caracterizado por Georg Simmel, em 1903, como o ‘rápido agrupamento de imagens em mudança, a descontinuidade acentuada no alcance de um simples olhar e a imprevisibilidade de impressões impetuosas’.” (CHARNEY, 2007; p. 317). Falamos no capítulo anterior que a construção de personagens como a dos Contos de Fada, inseridos no cinema, acabam sendo importantes para esta sociedade que se desprende das experiências tradicionais e passa a viver de uma nova e adaptada experiência. E entendese que partir da alegoria da caverna, passando pelas primeiras sessões do quinetoscópio de Edison e do cinematógrafo de Lumière fica claro para a sociedade que o cinema não era apenas um lugar onde se exibiam cenas em movimento, mas também se tratava do responsável por transmitir em uma projeção, sonhos e expectativas que, segundo Freud (apud MACHADO, 1997; p.38) ocorria na elaboração do sonho pelo sujeito. Walter Benjamin (1994; p. 189) aponta que o cinema “nos abre pela primeira vez, a experiência do inconsciente ótico, do mesmo modo que a psicanálise nos abre a experiência do inconsciente pulsional”.

Da mesma forma, o cinema surge como parte de uma cultura emergente do consumo e do espetáculo, que varia de exposições mundiais e lojas de departamentos até as mais sinistras atrações do melodrama, da fantasmagoria, dos museus de cera e dos necrotérios, uma cultura marcada por uma efemeridade e obsolescência aceleradas – de sensações, tendências e estilos. (HANSEN, 2007; p. 406).

E o cinematógrafo é exatamente este dispositivo que viabiliza a reprodução do imaginário, do que se sonha e do que se vivencia. É certo que no começo o cinema nem mesmo era considerado um tipo de arte, e a literatura (principalmente os romances) era a responsável por fazer esta reprodução do imaginário. Porém conforme o tempo foi passando e as técnicas cinematográficas melhorando, o cinema passa a ser um verdadeiro “gerador de alucinações”, como pontua Baltrusaitis (1977, p. 2 apud MACHADO, 1997; p. 76) sobre a anamorfose4, e se a comparação for permitida, se relaciona diretamente ao cinema, pois “como tudo o que pertence a cultura popular, ele formava também um outro mundo, um mundo paralelo ao da cultura oficial (…) um mundo extra-oficial (ainda que legalizado), que se baseia no princípio do riso e do prazer corporal. É um mundo invertido.” (MACHADO, 4

Anamorfose é um conceito que consiste no descolamento de um ponto de vista a partir do qual uma imagem é visualizada, sem eliminar, entretanto, a posição anterior, decorrendo daí um desarranjo das relações perspectivas originais. Em outras palavras, a anamorfose nasce de uma duplicidade de pontos de vista na construção de uma imagem. (MACHADO, 1997; p. 58).

1997; p. 76). Um mundo o qual a experiência se faz presente por vias tortuosas e por vezes perdidas entre um instante e outro, vezes também nunca verdadeiramente alcançada, situada dentro de uma estética representativa de si mesmo. Como tal, o cinema se dissolvia dentro da sociedade das mais diversas formas, desde a exibição em casas de espetáculos como musicballs na Inglaterra, café-concerts na França, ou as penny árcades, até as vaudevilles ou casas de variedade, que foram onde o cinema pode evoluir consideravelmente. Segundo Arlindo Machado (1997; p. 78), os vaudevilles eram locais bastante populares, mas por causa de seus espetáculos burlescos e da atmosfera plebeia, eram considerados de mal gosto e abominados pelas pessoas sofisticadas. Fato é que nestes lugares o fazer cinema pôde, de maneira bastante livre, experimentar novas técnicas e também introduzir a narração dentro das obras5, o que reforçou a identificação e o entendimento da plateia. Conforme Arlindo Machado, os catálogos dos produtores da época não tinham uma grande variedade de tipos de narrações, porém eram muito populares, pois mostravam assuntos do cotidiano através das atualidades reconstruídas e ainda tratavam do imaginário ao trazer gags cômicos e situações fantásticas. Os filmes eram classificados como: paisagens, notícias, tomadas de vaudeville, incidentes, quadros mágicos e teasers (eufemismo para pornografia). Há de se pensar que os Contos de Fada são temáticas mais recentes, já da era Walt Disney, porém este tipo de história foi uma das primeiras a ser utilizada no cinema, já que se tratavam de narrativas muito conhecidas e que não exigiam muita explicação do roteiro do filme. Já aqui, é possível notar que o comportamento das massas em relação ao cinema já era o de tentar se enxergar nela, só que não apenas de uma maneira direta, mas também fantástica e até mesmo explicativa, mesmo que essa explicação não seja real, apenas ficcional. Apesar de na Europa os vaudevilles terem dominado boa parte da produção cinematográfica da virada do século, os Estados Unidos, fortalecido pelo grande número de imigrantes que se mudava para viver o “sonho americano”, começava a construir a sua própria história, tornando-se anos depois uma referência no fazer cinema. Os Estados Unidos começaram a se fortalecer quando alguns gêneros, principalmente a pornografia, foram fortemente combatidos, forçando os industriais que investiam no setor, a apelar para novos públicos, e foi aí que a classe média e os segmentos da burguesia foram incorporados.

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Nos primeiros dez anos de comércio do cinema, não se havia ainda desenvolvido um conjunto de técnicas e procedimentos de linguagem apropriados para elaboração de uma narrativa visual que fosse suficientemente autônoma a ponto de se poder dispensar a ‘explicação’ de um apresentador. (SOPOCY, 1979; p. 121 apud MACHADO, 1997; p. 74).

A extraordinária expansão do cinema americano e a sua ascensão ao domínio mundial depois do advento do som, foram consequência direta da criação dessa audiência durante o período 1905 – 1915. Já um país como a França, que continuou fazendo cinema popular dirigido ao proletariado dos cordões industriais até o final dos anos 20, acabou perdendo o vasto mercado internacional que havia conquistado nos primeiros tempos e teve de se contentar com a sua pequena audiência doméstica. (MACHADO, 1997; p. 83)

E em meio a esta expansão norte americana que o cinema de animação conseguiu espaço para se desenvolver. É certo que a animação é tão antiga quanto o próprio fazer cinema, porém só em 1906 que o artista plástico James Stuart Blackton realizou o primeiro desenho animado, Humurous Phases of funny faces. Segundo Alberto Lucena Junior (2005), apesar deste filme ter sido uma espécie de marco inicial do cinema de animação, ele não era completamente animado, pois possuía algumas falhas técnicas que o impediam de ser, de forma que a animação aplicada inteiramente em um curta metragem só foi possível dois anos depois com o Fantasmagorie do caricaturista francês Emile Cohl. Paralelamente, havia também Winsor McCay que foi o primeiro a colocar humor nos desenhos animados e estabeleceu uma espécie de padrão nas histórias que eram contadas neste tipo de cinema, ou seja gags espontâneos e de caráter clássico que, não importando em que período são vistos, as piadas são compreendidas. E esse padrão foi mantido até meados dos anos 1910, quando a procura por novos mercados fez com que os animadores buscassem novos recursos, inclusive na própria arte pictórica, o que possibilitou um crescimento técnico e visual considerável neste tipo de cinema. É neste período que alguns dos personagens mais icônicos da animação são criados, como Popeye, Betty Boop e o Gato Félix. É neste período também que Walter Elias Disney6 começa a mexer com as técnicas de animação e logo se torna uma referência ao ser capaz de unir a animação com a crescente necessidade do cinema de contar uma história.

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Walter Elias Disney nasceu em 5 de dezembro de 1901. Nacionalista convicto (servindo ao governo nas duas grandes guerras), fez parcerias inusitadas com artistas como Salvador Dalí, Ary Barroso, que compôs Aquarela do Brasil (1939) e o presidente Roosevelt. Disney foi o primeiro animador a desenvolver técnicas de sincronia para colocar som nos desenhos animados, lançando o primeiro desenho animado sonorizado (Steamboat Willie – 1928). Foi ele também que fez o primeiro desenho animado em cores da história (Flowers and Trees – 1932). Seu espírito empreendedor não parou na animação: em uma época em que a TV era vista como principal inimiga do cinema, Disney a utilizou para divulgar seus curtas e suas ideias. Walt passou os últimos anos da sua vida criando e colocando em prática o conceito do Disneyland (parque da Califórnia) e do Disney World em Orlando. Walt Disney morreu dia 15 de dezembro de 1966 e até hoje é considerado um dos maiores gênios do século XX. Hoje a empresa, que começou como um sonho é realidade, acumulando prêmios de todos os tipos Oscars – a maior quantidade já ganha por uma mesma empresa (mais de 70) – Grammys, Tonnys e afins; além de ter dois dos três filmes de maior bilheteria de estreia da história do cinema (A Branca de Neve e os Sete Anões e O Rei Leão).

E o que era verdade sobre o desenho, era igualmente verdade sobre as histórias que os desenhos contavam. Baseadas, primeiramente, em tiras de quadrinhos familiares, as primeiras animações não tinham mais refinamento narrativo que o capitulo de um dia daquelas tiras – não havia tentativa real de contar uma historia, muito menos de seguir um curso traçado. (…) Cerca de 20 anos após o aparecimento da animação, seu atrativo ainda era, (…) o fato de ser novidade. (GABLER, 2009; p. 75, grifo nosso).

Walt Disney percebeu que as histórias ainda eram muito pobres e que isso limitava a animação às histórias bonitinhas e engraçadinhas dos personagens que já existiam. Procurando um refinamento e uma experimentação de técnicas (que incluíam o som e a cor), a animação conseguiu ganhar grande destaque na década de 30. Segundo Howard Beckeman (2003) “era difícil que algum estúdio conseguisse um trabalho como o de Disney devido ao seu cuidado meticuloso com as histórias, efeitos sonoros, música e cor”, e finalmente, em 1937 Disney fez o que os cineastas de animação achavam impossível: o primeiro longametragem em animação7. Aqui é importante lembrar que até meados dos anos 30 o cinema de animação era sinônimo de desenho animado, já que tudo parecia muito fantasioso e caricaturado. Porém, em 1935 Walt Disney resolveu fazer um longa-metragem em animação para tentar quebrar com este paradigma. Dois anos depois, Branca de Neve e os sete anões surpreendeu a todos pela sua narração bem escrita, personagens cativantes e o surgimento de um novo paradigma da animação difundido por Walt Disney: a ilusão da vida, “para ele (Disney), o personagem de animação tinha de atuar, de representar convincentemente; parecer que pensa, respira; convencer-nos de que é portador de um espirito.” (LUCENA, 2005. p.99). E por esta habilidade de convencer que o inanimado ganhara vida e desenvolver tão amplamente as técnicas cinematográficas de animação, que Walt Disney precisa ser enfatizado quando falamos desse gênero. Sem Disney é possível que a animação tivesse demorado muito mais tempo para se desenvolver que os outros tipos fílmicos, principalmente porque a animação era um tipo muito mais caro e meticuloso que os live actions. Walt poderia ter desistido facilmente de ser animador, mas ele foi capaz de enxergar neste gênero cinematográfico a possibilidade de transmitir suas vivências e criar lugares alternativos.

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Apesar de ser considerado o primeiro longa-metragem em animação, existem registros de que Branca de Neve e os sete anões não foi o primeiro. Segundo Alberto Lucena Júnior, autor de A arte de animação, o título de pioneiro ainda é controverso, pois há quem diga que o primeiro foi o longa-metragem argentino El Apostol de Quirino Cristiani (1917), mas o autor deixa claro que o filme nunca foi exibido em telas comerciais e pouco é reconhecido, se quer. Então pontua Die Albenteur des Prinzen Achmed, da animadora alemã Lotte Reiniger (1925) como tal, mas afirma que mesmo que ele tenha recebido alguma atenção, não chegou a ser considerado significativo como o longa-metragem de Walt Disney. (LUCENA, 2001; p.117).

Na verdade, o animador criou seu próprio mundo – uma realidade alternativa de sua imaginação, na qual as leis da física e da lógica podiam ser relevadas. (…) Para um jovem que se irritava com o mundo austero, moralista e sem prazer de seu pai, era um canal de escape e, para alguém que sempre fora subjugado por esse pai, a animação fornecia controle absoluto. Com a animação, Walt Disney tinha um mundo próprio. Na animação, Walt Disney podia ser o poder. (GABLER, 2009; p. 77, grifo nosso).

Tanto Neal Gabler quanto Ginha Nader afirmam que Walt Disney apostava na animação muito mais por causa das suas características e possibilidades, do que realmente por ser um gênero fílmico que parecia ser rentável. Walt fazia filmes, onde a técnica se sobrepusesse a narração, onde o procedimento funciona como o criadoa de uma nova estética, que seria impossível na experiência tradicional, mas que é determinante na experiência moderna.

Dessa perspectiva, o cinema não constituiu apenas uma entre várias tecnologias de percepção, tampouco refletiu o ápice de uma determinada lógica do olhar; ele foi, sobretudo (…) o mais singular e expansivo horizonte discursivo no qual os efeitos da modernidade foram refletidos, rejeitados ou negados, transmutados ou negociados. Foi um dos mais claros sintomas da crise na qual a modernidade se fez visível. (HANSEN, 2007; p. 409).

3.2 Função terapêutica do Cinema e o Inconsciente Ótico A narração tradicional, como explicado neste trabalho no capítulo anterior, começou a morrer com o surgimento de uma nova experiência, a qual tanto os romances, quanto o cinema são sintomas. O cinema se trata de uma narrativa coletiva (feita coletivamente e para o público), porém apenas no caráter amplo da palavra, pois na verdade este tipo de arte está na mesma posição que os romances. Narrativas que “em sua necessidade de resolver a questão do significado da existência, visa à conclusão” (GAGNEBIN, 1994; p. 15), uma apreensão meramente individualista e que se encerra em si mesma. O cinema é considerado a primeira arte derivada completamente da técnica, justamente porque no “cinema, o olhar não contempla mais a aura do quadro, da cena, da realidade; agora ele é conduzido, essa é a magia da nova arte” (FILHO, 2011; p. 82). É aqui que Benjamin consegue enxergar o cinema como um instrumento de condução das grandes massas, capaz de promover o autoconhecimento. É aqui, também, que o seu estudo se diferencia dos demais integrantes da Escola de Frankfurt. Benjamin afirma, em seu texto sobre a reprodutibilidade técnica, que o uso político do cinema é possível, porém “o capital cinematográfico dá um caráter contra-revolucionário às oportunidades revolucionárias

imanentes e esse controle (das multidões) (BENJAMIN, 1994; p.180). Sobre isso Gagnebin afirma que:

Ele se atém aos processos sociais, culturais e artísticos de fragmentação crescente e de secularização triunfante, não para tentar tirar dali uma tendência irreversível, mas, sim, possíveis instrumentos que uma política verdadeiramente ‘materialista’, que deveria poder reconhecer e aproveitar em favor da maioria dos excluídos da cultura, em vez de deixar a classe dominante se apoderar deles e deles fazer novos meios de dominação. (GAGNEBIN, 1994, p.64).

Quando Benjamin analisa este lado da técnica cinematográfica, seu estudo demonstra um rumo onde a experiência não mais seria possível e sim uma demonstração de artificialidades, criadas por imagens mutáveis e que se dissolvem no mesmo instante em que são vistas. Imagens que apenas servem para se aproximar de uma realidade massificada e pobre de experiências.

Considerando a exposição do perigo à psicose como constituitiva da subjetividade contemporânea, à medida que expressa, com todas as letras, as condições históricas, concretas da humanidade em conflito com o poder da técnica, Benjamin pinta um retrato bastante sombrio das condições de vida do mundo contemporâneo. Ele confere um poder às imagens produzidas pela técnica mais avançada de sua época, que advém não apenas do caráter ilustrativo, explicativo, ou mesmo lúdico, ou seja, do potencial cognitivo das imagens, mas principalmente do seu potencial "alucinatório". (CHAVES, 2008; p. 139).

Um potencial que é explorado diversas vezes por líderes ditadores, mas não só por eles; usado por aqueles que simplesmente queriam explorar o lado lúdico do cinema. Ou seja, é possível ir além da sua visão sobre a relação cinema/política, pois Benjamin pontua que o cinema é importante para o homem moderno, pois o dá subsídios para aguentar a sua realidade. “Esta dimensão reflexiva do cinema, sua dimensão pública, foi logo reconhecida pelos intelectuais” (HANSEN, 2007, p. 409), assim como o relacionamento do homem com a realidade, onde Benjamin questiona e analisa esta habilidade cinematográfica através de um estudo de filmes da cultura de massa, como os de Chaplin e os desenhos de Mickey. No texto de Ernani Chaves, “Inconsciente ótico e função terapêutica do cinema”, o pensador deixa claro que esta análise benjaminiana se dá dentro de um período onde a crescente tecnização gerou uma psicose coletiva, na qual o cinema seria, tanto uma porta de entrada, quanto uma porta de saída.

A reflexão sobre as qualidades terapêuticas do cinema, Benjamin já havia anunciado um pouco antes, ao considerar a destruição da aura como uma catarse. Mas esta reflexão pressupõe, fundamentalmente, o aspecto mais controverso do ensaio, qual seja, o de que Benjamin não opõe os filmes consolidados pela indústria cinematográfica aos filmes de vanguarda. Não por acaso, as referências de Benjamin neste aspecto são os filmes de Chaplin e os desenhos animados do 'Camundongo Mickey' e não os filmes da vanguarda soviética, por exemplo. Em outras palavras, Benjamin leva a sério os produtos da cultura de massa e tenta fundamentar a fascinação que eles exercem sobre o público. (CHAVES, 2008; p. 133).

E é na fascinação pelos produtos da cultura de massa, unindo-se à noção de uma realidade de choque, que Benjamin analisa o cinema como peça terapêutica de uma sociedade cheia de psicoses. Em que esta psicose é a não aceitação ou afastamento do eu em relação ao mundo, onde o indivíduo anula sua relação, quando consegue ‘desligar’ os estímulos externos a ele e não mais olhar para a sua realidade como tal. Em outras palavras, proposto por Freud, trata-se de estímulos nos quais o “eu passa a criar tanto um novo mundo exterior, quanto um novo mundo interior, que tem a função de tornar suportável uma grave frustração, a frustração de um desejo” (CHAVES, 2008; p.137). Por causa dessas frustrações, o cotidiano do homem moderno é repleto de choques e por isso o cinema se torna uma válvula de escape e de compreensão dessa realidade ‘estimulante’.

A ideia da experiência ou vivência do choque relaciona-se à distração no momento da reação física que se procura ter diante de um determinado tipo de ameaça. (...) A ameaça física que retira o equilíbrio daquele que, ao andar, esbarra noutros e que, ao se desviar, tenta se defender de alguma forma, como a característica a figura do esgrimista em analogia com o andar do pedestre na grande cidade. A ameaça no plano psicológico é a do desconhecido e agressor de uma individualidade que se compunha de maneira íntegra. Não é possível, portanto, falar em "receber ou receptar" choques, mas em se defender da experiência da modernidade que dispõe o indivíduo a situações de completa instabilidade física e psíquica. (DAMIÃO, 2008; p.187, grifo nosso).

Porém, também no seu ensaio sobre a obra de arte na era da sua reprodução, Benjamin confere um caráter “útil” ao cinema, ao vê-lo como um modo de promover uma reconexão entre o indivíduo e a sua sociedade, através da possibilidade de enxergar a si mesmo, de alguma forma e até certo grau, exposto na tela grande. Esta reconexão é feita tanto pela possibilidade da técnica mostrar o que a olho nu não percebamos, quando reencontra o aspecto do passado no presente.

O cinema, desse modo, assume, na vida coletiva contemporânea, uma papel análogo ao da tragédia entre os gregos. Não se trata mais, evidentemente, de descarregar o terror e a compaixão cotidianos e perigosos, na fruição prazerosa de um espetáculo extremamente violento, mas (o) de descarregar, pelo riso igualmente prazeroso, o potencial psicótico que socialmente nos constitui. (CHAVES, 2008; p. 138).

E para essa reconexão do homem com a sociedade, os meios que possibilitam esta interação tiveram, também que ser alterados, sendo o cinema um desses exemplos de modificação e adaptação. Assim, mesmo que a arte de contar histórias da forma tradicional tenha se perdido e a “arte de intercambiar experiências” (BENJAMIN, 1994; p.197) também, o individuo está livre para relacionar a mensagem com a sua vivência, experimentando uma sensação de apreensão. Segundo Léo Charney esta sensação só é possível no cinema, pois nele existe o instante. Em primeiro lugar, é necessário que se compreenda que o instante está presente em toda a construção técnica do cinema. Desde o instante entre dois quadros sobrepostos, passando pelo instante entre o a entrada e a saída de um personagem, até o instante entre a percepção e o esquecimento de algo. O cinema fazia filmes (antes das digitalizações) através da sobreposição de imagens, ou como se dizia na época motion pictures (fotografia animada), onde, entre uma imagem e outra existia um quadro preto que tornava a percepção mais clara. Na animação não era muito diferente. Em papeis de acetato os desenhos eram construídos e colocados um sobre o outro, tornando o movimento possível, o que nos faz perceber que, mesmo indiretamente, a fugacidade tão presente na modernidade já estava sendo traduzida no cinema.

O instante existe na medida em que o individuo experimenta uma sensação imediata e tangível. Essa sensação é tal intensa, tão fortemente sentida, que esvaece assim que é sentida pela primeira vez. A experiência da sensação forte possibilita a vivencia de um instante, tanto por meio de diminuição de intensidade pela qual o instante contrasta com aquele menos intenso que o sucede. (CHARNEY, 2007; p. 317).

“Nós, conscientemente, não queremos perceber, mas a máquina revela. Ela torna legível o ‘óptico inconsciente’.” (FILHO, 2011; p. 74) e quando o faz é capaz de promover um despertar, como um pequeno ensejo de experiência que o faz ver as coisas claramente, porém é um despertar sonhador, pois ele acontece dentro do mundo criado pela técnica. Assim, é importante dizer que "o que caracteriza o cinema não é apenas o modo pelo qual o homem apresenta diante do aparelho, mas como ele, graças a esse aparelho representa para si o mundo que o rodeia." (FREUD, 1905 apud CHAVES, 2008, p. 134), transformando o

mundo “como se fosse um mundo de coisas sonhadas” (TIEDEMANN, 2006; p.17), porém reconhecíveis ao homem moderno. E ao interpretar o cinema desta forma, Benjamin acaba sendo visto como um frankfurtiano positivo à tecnização e de certa forma ingênuo. Sobre essa questão, Ernani Chaves afirma que a visão de Benjamin não deve ser considerada desta forma, uma vez que seu estudo girava em torno do entendimento sobre a reprodutibilidade técnica e compreensão de suas possibilidades.

Ao colocar a questão em termos das 'condições de possibilidade', Benjamin parece pensar adiante, ou seja, pensar que, muito em breve, o próprio cinema e o mundo das imagens, em geral iriam sofrer outros profundos abalos, em decorrência do avanço tecnológico. Em outras palavras, não podemos, de forma alguma atribuir a Benjamin uma ingenuidade, e tal maneira que ele acreditasse que o cinema, que muito recentemente 'falava', não fosse, em breve, sofrer o impacto das tecnologias, cujo avanço era extremamente rápido em sua época. (CHAVES, 2008; p. 128).

Em outras palavras, Benjamin não era ingênuo ao analisar o cinema sob uma percepção potencialmente positiva, onde somente a própria imagem seria capaz de ser emancipadora e ao mesmo tempo terapêutica. É apenas na modernidade e inseridos neste contexto que é possível se notar a fusão entre pessoas e coisas, em torno da criatividade, do sonho. “O vivo aproxima-se do mecânico, e o mecânico comporta-se como vivo” (KRACAUER, 1925 apud HANSEN, 2007), ou seja a técnica torna-se a própria estética e ela pode encerrar-se em si mesma, ou pode levar a um despertar.

O século XIX é um sonho do qual se deve despertar um pesadelo que pesará sobre o presente enquanto permanecer intacto seu fascínio. As imagens do sonho e o despertar desse sonho comportam-se, segundo Benjamin, como a expressão e a interpretação; para ele, somente a interpretação das imagens dissolveria o fascínio. (TIEDEMANN. 2006; p. 19).

O século XIX foi estudado por Benjamin analisando esta utilidade do cinema como capaz de dar uma resposta sensorial à condição moderna das massas, mesmo que este não se dê no exato momento em que acontece e mesmo que seja uma resposta sensorial isolada e muitas vezes inconsciente. Rolf Tiedemann aborda que “o indivíduo que vivência não está consciente de si mesmo no instante do acontecimento vivido” (p. 20) e isto se dá porque nenhum instante podia permanecer imutável. Segundo Léo Charney, o dilema da “imutalidade” do instante fez com que aparecessem dois conceitos interligados “que definiriam suas investigações do moderno e como momentâneo”. (p.318). O primeiro deles é aquele que pensa no instante como o

esvaziamento da presença estável pelo movimento e o segundo diz respeito a perceber o instante apenas depois de ele ter ocorrido. “Juntos, esses dois aspectos do instante moderno criaram uma nova forma de experiência no cinema.” (p.318). Se relacionarmos esta ideia de instante com o Inconsciente Ótico de Benjamin, vamos nos deparar com a visão de presente apresentada por Charney. É neste momento que podemos, não racionalmente, viver a experiência, ou seja ter algo há mais que a vivência de realidade, “e essa experiência nos preenche com a sensação de estar presente no presente.” (CHARNEY, 2007; p. 320), criando um equilíbrio entre o homem e o aparelho, só alcançado por aqueles que “reconheceram a impossibilidade da experiência tradicional na sociedade moderna e que se recusam a se contentar com a privacidade da experiência vivida individual (Erlebnis)” (GAGNEBIN, 1994; p. 10).

Benjamin fala de imagens golpeantes do filme. A imagem, por ele, não pode ser fixada e com isso não é possível estabelecer uma concatenação de ideias entre elas. A percepção ocorre pela distração, pelo hábito como uma espécie de conhecimento moroso e também como percepção onírica, inconsciente. (DAMIÃO, 2008; p. 188).

4 BRANCA DE NEVE E O MODERNISMO 4.1 – Contexto e apresentação A empreitada de Disney, considerada a mais arriscada de sua carreira, ficou conhecida como a “loucura de Disney”. Esta empreitada pretendia acabar com a máxima do cinema de animação, que seria impossível se produzir um longa-metragem em tempo hábil. Disney queria produzir um filme de 97 minutos contando a história de Branca de Neve, baseada na compilação dos Irmãos Grimm, mas tirando alguns dos momentos cruéis da história para torná-la um pouco mais amena para o público infantil. O filme levou três anos para ser concluído e foi refeito várias vezes, logo o orçamento inicial de US$500 mil, chegou à US$1,7 milhão. E mesmo que Hollywood já estivesse em pleno vapor, produzindo filmes sob a égide do Star Sistem a expectativa criada em torno deste longa-metragem foi tão grande que ela, em si, bastou para fazer o primeiro final de semana do filme ter uma das maiores bilheterias da história do cinema8. Surpreendido pela beleza dos desenhos e encantado com as possibilidades que o cinema de animação poderia ter, o público passou a cultivar uma verdadeira paixão pelas produções disneyanas e Branca de Neve foi só o começo de uma série de outros longasmetragens produzidos pelos estúdios Disney que marcaram época, tanto pelo seu conteúdo, quanto pela sua técnica. Walt Disney manteve a mesma narrativa de todas as outras histórias, no que diz respeito aos acontecimentos, pois aqui se manifesta “toda a tradição verbal, segundo a qual só pode centrar no domínio dos signos e ganhar sentido aquilo que se encontra linearizado.” (MACHADO, 1997; p.101). Mas por ser uma transposição, a história é “automaticamente diferente e original, devido à mudança do meio de comunicação” (STAM, 2003; p.20), então mesmo que Walt tenha se apropriado do texto dos Irmãos Grimm, o filme, tanto pela sua linguagem, quanto pela construção imagética da história, é diferente, uma vez que tem a possibilidade de utilizar suas potencialidades técnicas, indo além da ideia original. Uma das modificações que Walt fez, foi de excluir completamente as passagens mais violentas da história, assim como inserir certa dose de humor através das figuras dos sete anões. Em essência, os personagens principais da trama continuam sendo Branca de Neve, a

8

Branca de Neve e os sete anões teve uma renda bruta de US$8 milhões em sua primeira exibição. Foi a maior bilheteria de todos os tempos, só superada pela de …E o vento levou. É preciso lembrar, portanto, que no desenho de Disney foram cobradas meias-entradas, que custavam apenas 25 centavos, pois a maioria do público era formada por crianças. Se isso for levado em conta, o número de bilhetes vendidos em Branca de Neve chega a bater o recorde superado apenas em 1994, por O Rei Leão, outra produção dos estúdios Disney, e, em 1998, por Titanic. (NADER, 2007; p.85). É importante acrescentar que hoje esses números já sofreram modificações com filmes como Harry Potter e as relíquias da morte II, Batman, o cavaleiro das trevas e mais recentemente com Os Vingadores.

Madrasta e os sete anões e na versão disneyana a presença do príncipe e do caçador são diminuídas a uma ou duas cenas, apenas para apresentá-los, mesmo que os dois personagens sejam de extrema importância para que Branca continue viva. A Madrasta continua sendo uma mulher fria, arrogante e muito vaidosa, que vê em sua beleza a maior de todas as dádivas, por isso não admite que sua enteada seja considerada mais bela que ela. Resolve montar um plano para que não pare de ser a mais bela de todas, mandando um caçador matar Branca, porém, o caçador não consegue matá-la e manda que ela fuja. Na sua fuga, Branca encontra a casa dos sete anões, inclusive em estado deplorável, cheio de sujeira e bagunça. Branca limpa a casa e por fim deita-se para descansar, até a volta dos sete anões, que até então, ela pensa serem crianças. Quando os anões voltam aceitam acolher e proteger a princesa, sob a promessa dela de que cozinharia e arrumaria a casa para eles. Os anões saem para trabalhar e a fazem prometer que não vai abrir a porta para ninguém. Porém neste meio tempo a Madrasta descobre que Branca ainda está viva e morando com os sete anões. Ela, enfurecida, prepara uma maçã envenenada para Branca e se transforma em uma velha senhora, para que ela não a reconheça. Quando chega a casa dos sete anões, facilmente engana a princesa e logo a segunda morde a maçã e cai em sono profundo. Os anões, avisados pelos animais da floresta correm de volta para sua casa, quando chegam perseguem a Madrasta, que acaba caindo de um penhasco na floresta e morrendo. No final, deitada em uma esquife de cristal, Branca é velada pelos anões, até que o príncipe, a vê e lhe dá um beijo de amor verdadeiro. A única força capaz de acordá-la. E claro, eles viveram felizes para sempre. Esta organização de acontecimentos facilita, tanto na compreensão de quem assiste ao filme, quanto é um reflexo da época em que o filme foi lançado, pois neste momento o cinema refletia a vida de pessoas que compreendiam as coisas “em termo de causa e efeito, ação e reação, anterioridade e posterioridade.” (MACHADO, 1997; p. 103). E apesar de ser uma história clara, em termos de começo, meio e fim, a técnica de animação utilizada para que a tornasse possível era muito complicada e, mais do que isso, uma novidade para a época. A novidade era justamente a própria ilusão da vida. O fato destes personagens já tão presentes no imaginário popular, ganharem rosto, cor, voz e até respiração, mas serem desenhos, de forma que é possível perceber que “um texto (literário ou cinematográfico) fala por seus procedimentos estilísticos e não pelo eventual caráter fotográfico de sua escrita. Ver um filme não se reduz a uma leitura direta do que vemos na tela no momento da projeção.” (AVELLAR, 2007; p.56), e assim o cinema percebia e ampliava suas potencialidades através de uma linguagem própria, de repente tão exposta através da animação.

Um fato que encantou e também assustou a todos, tanto que no ano de lançamento de Branca de Neve e os sete anões, Walt foi capa da Time, que fez uma matéria dizendo:

Branca de Neve é uma combinação de Hollywood e dos irmãos Grimm, com a fantasia melancólica e sonhadora das crianças do mundo inteiro. Trata-se de uma obra-prima que vai ser assistida e amada por novas gerações, muito depois que as atuais estrelas de Hollywood estiverem dormindo em algum lugar onde nenhum beijo de príncipe poderá acordá-las. (Time, Nova York, 1937).

A citação fala da fantasia tomando a frente do real, onde esses personagens, criados de papel e lápis podem sobreviver para sempre. Uma mistura da técnica com a criatividade humana, onde uma existe graças à outra, e uma torna a outra mais potente, um filme onde o “eu” é projetado no outro e a sua realidade é resumida a ser realizada através dele. O sujeito deixa de ser “si” e passa a ser “nós”, quando opta por viver sob a projeção da magia de sonhos alucinados possibilitados pela técnica. Para Benjamin a arte provinda dos mecanismos, no entanto, é desprovida de aura e mesmo que a obra esteja presente, ela também está ausente, “o que importa, nessas imagens, é que elas existem, e não que sejam vistas” (BENJAMIN, 1985; p. 173). 4.2 – Era uma vez a modernidade Assim como o número sete está presente em grande parte das versões conhecidas do conto, em todas existe algum ‘agrado’ dado pela Madrasta (ou mãe em algumas versões) que faz com que Branca caia em sono profundo. Na maioria das versões Branca não sofre apenas um atentado, mas três e os dois primeiros são objetos de vaidade, como um pente envenenado ou um vestido belo que não a deixa respirar9. A terceira vez, no entanto é normalmente representada pela maçã vermelha e com aparência suculenta, que Branca morde e então cai sem condições de se defender. Talvez sem consciência direta do que fazia, Walt Disney escolheu apenas o último atentado para ser representado em Branca de Neve e os sete anões, de forma que se remetermos à nossa tradição religiosa, normalmente relacionaremos a fruta com o a história 9

Branca de Neve é uma história sobre vaidade, mas, acima de tudo, sobre o caro preço a ser pago por colocar suas paixões acima de todas as outras coisas. As metáforas estão presentes a todo o momento, expressas de maneira sutil, como, por exemplo, na cor vermelha da maçã (vermelho é a cor do pecado) (…) As três tentações às quais a menina cede quando visitada pela velha bruxa também encerram em si importante significado. São todas objeto da vaidade feminina e manifestações claras do desejo de ter da personagem. Ao ceder aos seus impulsos, Branca sofre graves consequências, o que mais uma vez demonstra o modelo comportamental que a fábula pretende passar. A vida simples é incentivada, o martírio e a subserviência recompensados, o desejo e as paixões, condenados. (CALLARI, 2012; p.14 – 15).

de Adão e Eva e como ao comê-la os dois personagens adquiriram o conhecimento sexual. Não distante deste pensamento, a construção da análise psicanalítica de Bruno Bettelheim sobre os contos de fada perpassa nesta questão, propondo que “o vermelho da maçã evoca associações sexuais, como as três gotas de sangue que precederam o nascimento de Branca de Neve, e também a menstruação, um acontecimento que marca o começo da maturidade sexual” (BETTELHEIM, 2002; p. 227), também representa o amor que Branca está para (re)encontrar na figura do príncipe.

4.2.1 A moral que não ensina Apesar de importante a interpretação dada por Bettelheim, neste momento, não se faz necessário nos aprofundarmos nas questões presentes na análise psicanalítica dele, ou mesmo supor significações inerentes à maçã e a cor vermelha, no entanto é importante comentarmos sobre essa análise, pois é apenas quando Branca de Neve morde a maçã que seu destino muda. Caso ela ficasse escondida na floresta e a Madrasta não a encontrasse mais, ou mesmo se o espelho tivesse mentido à Rainha, os caminhos da trama seriam consideravelmente diferentes e mesmo que os Contos de Fada possibilitem essas versões e o cinema tenha o aparato e a técnica que poderiam viabilizá-las, esse momento da história é visto como o grande clímax, responsável pelas lições da narrativa. É quando a maçã chega às mãos de Branca e é mordida, que somos ensinados sobre o valor da vida, sobre a vaidade como destruidora de caráter e sobre a inveja como força capaz de causar mal ao outro e até mesmo matar. Lições que, mesmo inerentes à história, podem não ser visitadas de acordo com a forma que essa narração é contada, algo que parece acontecer com o filme de Walt Disney, uma vez que nesta nova experiência, refletida pelo cinema, não se pretende aprender nada. A experiência massificada e por assim dizer coletiva, transporta-se para o cinema sob uma linguagem em que, mesmo que compreendamos o que está acontecendo, não abstraímos nada daquilo. É como Benjamin fala sobre o camundongo Mickey, em seu texto “Experiência e pobreza”:

A existência do camundongo Mickey é um desses sonhos do homem contemporâneo. É uma existência cheia de milagres, que não somente superam os milagres técnicos, como zombam deles. Pois o mais extraordinário neles é que todos, sem qualquer impovisamento, saem do corpo do camundongo Mickey, dos seus aliados e perseguidores, dos móveis mais cotidianos, das árvores, nuvens e lagos. A natureza e a técnica, o primitivismo e o conforto se unificam completamente, e aos olhos das pessoas, fatigadas com as complicações infinitas da vida diária e que veem o objetivo da vida apenas como o mais remoto ponto de fuga, numa

interminável perspectiva de meios, do modo mais simples e mais cômodo, e na qual um automóvel não pensa mais que um chapéu de palha, e uma fruta na árvore se arredonda como uma gôndola de um balão. (BENJAMIN, 1994; p 118 e 119).

Mickey tem vida para Benjamin. Uma vida que precisa da técnica para existir, uma vida que não apenas faz parte de uma nova condição humana, mas também é uma demonstração do que se busca neste período. Não se precisam mais de morais, ensinamentos e modus operandi. Precisam-se de divertimento, abstração, magia e milagres. Sim, e porque Mickey é um objeto estético, essa “vida” dada a ele funciona como tanto um reflexo da sociedade e sua experiência, como um mantenedor dela, pois se não objetiva ensinar ou rememorar, apenas entorpece seu espectador e o torna mais ausente de seu próprio sujeito. Sobre isso, Clifford Geertz sugere que é necessário notar o comportamento de uma sociedade para entender os seus objetos estéticos, de forma que “não se deve desprezar, evidentemente, a técnica, e sim observar que a forma que é representada faz parte de teias de significados situados na experiência humana” (OLIVEIRA, 2011; p.21). Experiência esta que a história de morte, fragilidade humana, vaidade e consequências, não mais são necessárias. Não porque essas questões não sejam importantes, mas porque uma luta entre o bem e o mal é muito mais adequada, talvez, para uma geração situada entre duas guerras, divergências ideológicas e constantes lutas pelo poder. Esta dicotomia é representada por figuras nítidas e bem maniqueístas, que não podem ser interpretadas de várias maneiras. A princípio entende-se que com esta distinção bem evidente a compreensão da trama não fica comprometida, de forma que o bom é apenas bom e incapaz de fazer o mal; enquanto que o mal é completamente mal e incapaz de fazer o bem.

O tema também conseguiu tocar um ponto crítico da sociedade. A luta de Branca de Neve contra sua terrível madrasta transformou-se em vívida metáfora dos temores de uma nação prestes a entrar em um conflito mundial, quando as sombrias forças do mal pareciam ameaçar a própria existência dos Estados Unidos. Em todos os níveis, então Branca de Neve e os sete anões foi uma conquista gigantesca, tão cativante quanto qualquer obra jamais produzida por um cineasta ou estúdio norte-americano. (NADER. 2007; p.86).

De fato bondade contra a maldade é um tema recorrente, tanto nas narrações mais tradicionais quanto nas tramas mais atuais, porém na modernidade a nitidez com que herói e vilão são apresentados é que marca este período. São arquétipos bem desenhados que sempre tendem para o bem ou para o mal, mas que nunca um e outro. Desde o começo fica claro para

o espectador quem é quem, e para quem ele deve torcer e tentar se identificar. Em Branca de Neve, a princesa passa por situações traumáticas, mas mesmo assim nunca deixa de ser positiva e acreditar que tudo vai ficar bem. Sua meiguice e ingenuidade são suas maiores fraquezas, mas ao mesmo tempo são suas maiores virtudes, pois possibilitam a ela ser querida por todos os outros personagens da história, inclusive é o que lhe poupa a vida. Já a maldade da Rainha é tamanha que além de medo nas outras personagens, ela também causa asco, mesmo que seja bela. Um dos castigos da Rainha é, inclusive, morrer feia e esquecida em algum lugar na floresta, onde seu corpo só servirá de alimento para os abutres. Para nós, filhos de uma nova experiência as histórias que se seguem desta maneira são muito comuns, pois é assim que fomos inseridos nesta sociedade, sem os conselhos das histórias tradicionais, mas com os “conselhos” de personificações de bondade e maldade. Aqui percebemos que as recomendações, advindas do Conto de Fadas e da sua matriz tradicional se perdem. O cerne da história de Branca de Neve é substituído por uma luta entre o bem e o mal, onde a trama não foi criada para ensinar alguma coisa e sim para dá ao homem moderno a possibilidade de fugir de sua realidade cronológica e massificada, adentrando noutra realidade que existe apenas no mesmo lugar onde os sonhos habitam. Os sonhos, no entanto, acabam não sendo objetos de contemplação, pois permanecem onde os olhos apenas passeiam entre um momento e outro logo em seguida, “para as massas, a obra de arte seria objeto de diversão.” (BENJAMIN, 1985; p. 192). O que não quer dizer que estes ensinamentos não estão mais presentes. Não. Eles estão ali. Sim, podem não serem eles mais o centro da história e seus objetivos terem se perdido, mas as mesmas recomendações e guia ainda existem, pois a matriz do filme de Branca de Neve é o conto clássico, sua origem ainda é a maçã transcrita pelos irmãos Grimm. Pode-se apontar, inclusive que em Branca de Neve e os sete anões é possível se notar a fusão de duas coisas que talvez parecessem desconexas quando pensamos sobre a extinção da narração: a “moral da história” e “o sentido da vida”. Benjamin pontua que quando falamos da “moral da história” estamos nos referindo à narração tradicional e por consequência de um conto de fadas; enquanto que quando falamos sobre o “sentido da vida”, nos referimos aos romances. Mesmo que estas duas ideias pareçam, de alguma forma concatenadas, elas funcionam sob aspectos diferenciados e atingindo partes diferentes do ser, de forma que acabam se anulando uma a outra. A “moral da história” dialoga com a experiência e por mais que não se pense diretamente sobre o que quer dizer determinada narrativa se apreende algo dela. Uma mensagem, ou o conselho, como queira. Já quando nos referimos ao “sentido da vida” falamos de uma apreensão individual e que precisa de um pensamento sobre, um pensamento

voluntário. No cinema não seria possível se ter a “moral da história”, porque quando falamos de cinema compreendemos que se trata de uma nova forma de narrar, que rejeitaria a forma de experiência tradicional, pois é fundado em outra configuração de experiência, a moderna. Em outras palavras, mesmo que as duas estejam presentes na narrativa cinematográfica, o “sentido da vida” acaba se sobrepondo a “moral da história”, pois a técnica é mais importante que a narração.

A aura declina junto com a experiência e, nesse sentido, segue o pressuposto materialista histórico do autor ao identificar a transformação do modelo de produção artesanal para o modelo de produção industrial do capitalismo como a razão da mudança a que se reflete na cultura, na produção das obras de arte e na recepção destas. (DAMIÃO, 2008; p. 182).

E se o objeto estético é fruto da técnica e espelho da sociedade, fica claro que não é possível se observar as experiências e suas temporalidades desatrelando-as da compreensão dessa técnica moderna, qual estamos falando. A princípio é importante ressaltar uma característica bem distintiva entre a experiência tradicional e a experiência moderna, as quais talvez sejam determinantes para a compreensão do que virá em seguida neste trabalho. Quando falamos de uma experiência tradicional, conectada aos Contos de Fada, percebemos que a recepção dela era dada pela audição, a ela não se atrelavam nenhuma imagem, exceto as que eram criadas pelo próprio imaginário daquele que ouvia; enquanto que ao pensarmos sobre esta experiência moderna e sua relação com a técnica percebemos que as imagens são construídas e a recepção se apreende ali, naquilo que pode ver, naquilo que pode enxergar.

E nessa dimensão que o cinema, como arte, constitui-se em analogia aos perigos existenciais do trabalho industrial e ao ritmo ininterrupto da metrópole. Ao cinema caberia a tarefa quase mecânica de exercício e resposta a engrenagem externa à sala de cinema. (DAMIÃO, 2008; p. 188).

Mas a técnica se resume a isso? A ela mesma? Sim. Pelo menos no que se pensa sobre a produção disneyana e por consequência Branca de Neve e os sete anões. É importante lembrar que o resultado dessa intervenção é que o indivíduo cria para si, um novo mundo exterior e um novo mundo interior. Única maneira capaz de tornar o cotidiano chocante suportável e enfim, sobreviver a supressão de seus próprios desejos. É por isso que os milagres da animação (de maneira geral) são tão bem sucedidos. Eles são o que são, mimetizadores de uma realidade as quais fora de seu contexto não fazem sentido e acabam se esquecendo de si.

Mesmo assim, Benjamin analisa que na verdade é possível se enxergar potencialidades na tecnização, aquela que ele vê como uma “vacina”, capaz de agir na “imunização contra (as) psicoses de massa (…) capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigoso.” (BENJAMIN, 1994; p.190). É aqui que o inconsciente ótico e a função terapêutica do cinema se encontram, para suscitar uma interpretação benjaminiana sobre esta outra potencialidade do cinema, onde enxergava em Chaplin um grande expoente.

Se levarmos em conta as perigosas tensões que a tecnização, com todas as suas consequências, engendrou nas massas – tensões que em estágio críticos assumem um caráter psicótico -; perceberemos que essa mesma tecnização abriu a possibilidade de uma imunização contra tais psicoses de massa através de certos filmes, capazes de impedir, pelo desenvolvimento artificial de fantasias sadomasoquistas, seu amadurecimento natural e perigosos. A hilaridade coletiva representa a eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa. (…) É aqui que se situa Chaplin, como figura histórica. (BENJAMIN, 1994; p. 190).

Se em Chaplin Benjamin enxergava potencialidades, em Disney a grande questão era a sua realidade que se encerrava em si mesmo. Sem nada a acrescentar, sem nada a ensinar, sem nada para “vacinar”. 4.2.2 – O riso que não contagia É interessante dizer aqui, que uma das fontes de inspiração de Walt Disney era Chaplin (NADER, 2007) e que por isso o humor estaria presente em todas as suas produções, sempre buscando dialogar com a maior parte do público, desde crianças pequenas até adultos bem idosos. Porém, mesmo com a inspiração, o tipo de humor conquistado por Chaplin que é capaz de atingir o público, não só de maneira hilariante, mas também o liberta; é muito diferente do de Disney, que o faz rir sem contagiá-lo. Resultado disso é um abandono consecutivo das peças que fazem o homem, um sujeito histórico, um sujeito que se lembra. Em Branca de Neve e os sete anões, o humor aparece na figura dos sete anões: Mestre, Zangado, Soneca, Atchim, Dunga, Feliz e Dengoso. Desastrados e bobos, os anões nos levam ao riso, pois são muito caricaturados. Feitos de acordo com os seus próprios nomes para criar uma atmosfera de constante alegria e festa, tanto que mesmo a cena em que eles voltam para casa e notam a casa toda iluminada, o que os causa medo, por acharem que se trata de um monstro; toda a estrutura do quadro nos leva ao riso. É riso, porém, debochado. Bobo, que acaba logo depois que começa e assim que é presente, já se torna passado e esquecido.

Enquanto Branca de Neve mora com eles não se sente ameaçada em nenhum momento. Nem ao menos parece cogitar a possibilidade de ser encontrada por sua madrasta. É uma segurança que nos faz também, acreditar, que ela está salva. As cenas são todas de comunhão, onde Branca passa a agir quase como mãe adotiva para os sete homenzinhos. Esta é, inclusive, uma questão bem interessante, pois sendo homens os anões poderiam se interessar romanticamente pela princesa, porém eles agem mais como crianças tolas que precisam ser cuidadas. Estas características estão inseridas num dos grandes “cuidados” que Walt Disney teve na hora de (re)construir a narrativa de Branca de Neve. O animador retirou os momentos considerados mais sombrios e cruéis dos contos clássicos e substituir por cenas cômicas, na tentativa de criar um ambiente alegre e divertido. Talvez more aí, a diferença entre o riso contagiante de Chaplin e o lúdico de Disney. Ambos nos provocam a mesma ação, no entanto nos deixam tão diferente. Chaplin não age como uma mãe que cuida e apenas limpa, passa, cozinha e sorrir para os seus filhos. Na verdade, Chaplin debocha do que vê, educa através de um riso em tom bárbaro, “perfeito. No meio tempo, possa o indivíduo dar um pouco de humanidade àquela massa, que um dia talvez retribua com juros e com os juros dos juros” (BENJAMIN, 1994; p. 119). Aquele que impulsiona para frente. Mas Disney não. Disney é a mãe representada pela Branca de Neve, adorável e generosa, inclusive com a sua própria realidade, que mesmo diante da iminência de ser morta, prefere cantarolar e fazer uma comida gostosa. E segue. Indo adiante, mas não indo para frente, não em tom bárbaro.

Podemos agora tomar distância para avaliar o conjunto. Ficamos pobres. Abandonamos uma depois da outra todas as peças do patrimônio humano, tivemos que empenhá-las muitas vezes a um centésimo do seu valor para recebermos em troca a moeda miúda do ‘atual’. (BENJAMIN, 1994; p. 119).

E se o riso não contagia, resta-nos olhar para além das cenas maniqueístas e que fizeram Branca de Neve e os sete anões uma história adorável e tentar procurar um relance de barbaridade positiva em momentos de conflito. Porém, com a falta desse contágio bárbaro, mesmo quando analisamos a cena em que Branca de Neve adentra na floresta negra, nos deparamos com uma cena entorpecedora. Sim, é possível pensar que a floresta é, ao mesmo tempo este lugar mágico e assustador, onde a sequência que se segue não é apenas um flanar pelo campo como Branca de Neve fazia quando achava que estava segura, mas o horror da cena mais assusta só pelo ato de assustar, do que realmente é capaz de suscitar algo. Na floresta negra, Branca de Neve vê todos os seus medos refletidos nas copas das árvores, nos barulhos de animais que vagam pelo lugar e no solo irregular que a faz tropeçar e

cair diversas vezes. Sua realidade muda de uma hora para outra e vira algo que ela precisa enfrentar sozinha, inclusive ser capaz de se proteger de uma ameaça iminente à sua própria vida. Branca de Neve é forçada a conhecer uma nova realidade e isto a deixa indefesa, de forma que nesta cena o ritmo se acelera, bem como o som dos gritos de medo da personagem ficam mais fortes, o que nos faz entender que ela está apavorada. Esse sentimento e percepção só são possíveis de serem transmitidas através da técnica que o cinema tem, mesmo que de toda essa magia e técnica não, necessariamente, se sinta algo. É a técnica, pela técnica. Apesar de rápida, a cena da floresta consegue abarcar características que só são compreendidas através de uma vivência moderna, como a fragilidade de sua própria existência, bem como enfrentar a fugacidade da vida e a ideia de morrer. Talvez esta cena, a da floresta negra, tivesse potencial para ser um daqueles momentos em que algo pudesse se tirar dela, como uma cena capaz de transformar a psicose coletiva em algo, tornando-se um sonho coletivo, ao mesmo tempo uma metáfora para algo maior. Uma realidade em que o medo, a efemeridade e a fugacidade são realidades vistas de costas e entorpecidas pelos choques, mas que não sujeita o homem à técnica. A cena até poderia funcionar, poderia ser um daqueles momentos criados para representar a “eclosão precoce e saudável dessa psicose de massa” (BENJAMIN, 1994; p. 190), como Benjamin falava das cenas hilariantes de Charlie Chaplin:

É evidente, pois, que a natureza que se dirige à câmara não é a mesma que se dirige ao olhar. (…) O gesto de pegar um isqueiro ou uma colher nos é aproximadamente familiar, mas nada sabemos sobre o que se passa verdadeiramente entre a mão e o metal, e muito menos sobre as alterações provocadas nesse gesto pelos nossos vários estados de espírito. (BENJAMIN, 1994; p. 189).

Poderia funcionar, repetimos. Porém, em meio à explosão de estímulos da floresta causados pelos próprios medos de Branca e uma eclosão de sensações, uma luz se acende e a esperança volta para a vida da princesa. Os animais da floresta (todos amigáveis e bonitinhos) observam aquela moça caída e chorando e oferecem-na ajuda. O otimismo volta para a vida da moça e mesmo que estivesse desolada há um segundo, logo encontra novos motivos para ser feliz. Uma pausa do momento tenso se segue com um momento de alegria, em que Branca canta uma canção na companhia dos animais da floresta e pede ajuda para encontrar um lugar para passar a noite. Essa pausa na tensão é uma forma de aliviar a sensação de desolamento e medo que a cena poderia estar causando nos espectadores, como quem diz: “tudo vai ficar bem...”. E fica, como sempre. Branca de Neve encontra a casa dos sete anões, passa a noite e

as coisas seguem com o mesmo ritmo de antes, alegres, musicais, como se nada de ruim tivesse acontecido. E logo, todo o medo causado em um minuto e meio, simplesmente acaba. O choque se esvai e o caráter de evasão continua, sem nenhuma intenção de sumir.

A ideia de eternidade sempre teve na morte sua fonte mais rica. Se essa ideia está se atrofiando, temos que concluir que o rosto da morte deve ter assumido outro aspecto. Essa transformação é a mesma que reduziu a comunicabilidade da experiência, à medida que a arte de narrar se extinguia. (BENJAMIN, 1994; p. 207).

Foi efêmero, breve e entorpecedor. A riqueza de detalhes, desde o medo da personagem até o movimento técnico de recortes e o som agudo dos gritos poderia ser capaz de transportar o individual, citado anteriormente por Benjamin na sensação do isqueiro em contato com a pele, para o “si”, porém ele mesmo retorna para onde a magia e a técnica são usadas justamente para a perda do “eu”, um indivíduo que perde sua memória histórica e que nos remete ao que Sergio Rouanet propõe ao discutir uma nova experiência moderna, a partir da leitura de Benjamin e Freud. Freud fala, em seu trabalho titulado “A psicologia das massas” de um indivíduo que se perde na multidão. Não porque ele é suscetível a uma alienação fácil, mas porque dentro de um determinado meio, ele se torna “amado”. “São as relações amorosas, as ligações emocionais que formam a essência da alma das massas.” (FILHO, 2007; p.192), ou seja o indivíduo abre mão de quem é, ou potencialmente poderia ser, para deixar-se seguir pelos outros. Rouanet aborda que a relação desse indivíduo que perde sua memória histórica é o mesmo que perde sua experiência, seguindo o conceito trabalhado por Benjamin. Na cena melancólica da Floresta Negra, o medo que se instaura não é pela condição reles e mortal da personagem, que pode ser relacionada à condição humana reles e mortal de todos os que assistem; mas porque com ela se cria uma identificação, uma espécie de amor 10 que coloca um objeto no lugar de seu ideal11 do ego proporcionando a identificação com outros. Com os outros espectadores que fizeram o mesmo. Essa identificação substitui a comunicabilidade de uma experiência, encerrando-se no momento que o filme acaba, quando o Ego não consegue mais ser um indivíduo, pois não consegue se projetar como tal.

“No fundo, conclui Freud, ama-se a completude que se gostaria de ter para si mesmo: quanto maior a sobrevalorização sexual e a paixão, tanto mais reduz-se o ego: o objeto, por assim dizer, devora o ego” (FILHO, 2007; p. 193). 11 “A matriz do comportamento de massa é o mecanismo de identificação, que corresponde, do ponto de vista do psiquismo, à expressão ambivalente de carinho e desejo de superação do pai.” (FILHO, 2007; p. 192). 10

Em outras palavras, os indivíduos massificados se empobrecem radicalmente, pois são privados de uma instância que lhes assegurava, embora ambiguamente, alguma autonomia. O Superego, embora represente, através do pai introjetado, a normatividade social, representa também uma perspectiva de negação: ele censura o desejo, por ser contrário ao modelo, mas pode também pela mesma razão, censurar o social. E se empobrecem, mais fundamentalmente, porque com a perda do Superego se privam da instância que assegurava a continuidade da tradição. Perdem a memória histórica, e são condenados ao eterno presente de um psiquismo incapaz de transcender o aqui e agora da identificação narcisista com a autoridade. (ROUANET, 1990 apud OLIVEIRA, 2011; p. 178).

4.2.3 A princesa que não desperta Não podemos esquecer que o filme está dentro de uma nova narrativa, criada para um novo público que vive sob uma nova forma de experiência, direcionada às massas que precisam de entretenimento. Estamos falando de uma nova forma de se viver e também de interpretar as mensagens, mesmo que ao fazê-la nada de fato seja interpretado. Walter Benjamin talvez interpretasse Branca de Neve da mesma forma com a qual ele analisa a existência de Mickey Mouse, uma realidade cheia de milagres, onde o divertido e o impressionante tornam a narrativa uma mera distração para a sociedade, um passear pela técnica de animação cinematográfica, sem nenhuma pretensão de se reconhecer como ser social. Restringe-se a um identificar-se. E não é isso que o cinema, principalmente o cinema disneyano fez e faz continuamente? Habita o imaginário popular como principais referências dos Contos de Fada, pois reconfigura narrações tradicionais recriando estas histórias e dialogando com o seu tempo, fato que pode ser observado, por exemplo, na mudança postural das personagens femininas disneyanas desde 1937 com Branca de Neve, até 2012 com a princesa mais atual da corte, Mérida12. Com isso, mesmo que seja considerado um clássico do cinema, Branca de Neve e os sete anões não atende mais ao público de hoje, que consideraria as ações da personagem principal como obsoletas para os moldes do século XXI, mesmo que de suas narrações clássicas tenham advindo tantas outras versões. As possibilidades de mesclar, modificar e cortar detalhes dessas histórias são possíveis graças à matriz oral presente nestes contos, onde “cada versão traz consigo o poder de retratar os fenômenos arquétipos de uma 12

A jovem princesa Mérida foi criada pela mãe para ser a sucessora perfeita ao cargo de rainha, seguindo a etiqueta e os costumes do reino. Mas a garota dos cabelos rebeldes não tem a menor vocação para esta vida traçada, preferindo cavalgar pelas planícies selvagens da Escócia e praticar o seu esporte favorito, o tiro ao arco. Quando uma competição é organizada contra a sua vontade, para escolher seu futuro marido, Mérida decide recorrer à ajuda de uma bruxa, a quem pede que sua mãe mude. Mas quando o feitiço surte efeito, a transformação da rainha não é exatamente o que Mérida imaginava... Agora caberá à jovem ajudar a sua mãe e impedir que o reino entre em guerra com os povos vizinhos.(Fonte: Site Interfilmes, http://migre.me/bHVYB, acesso 07 de out. 2012).

cultura, com o objetivo de satisfazer, ainda que inconscientemente, o imaginário de um povo” (ORRÚ, 2008; p.6).

Se pensarmos, especificamente na produção de Walt Disney, compreende-se que sua transposição, por ter capturado de forma tão abrangente o imaginário do espectador, tornou-se símbolo legítimo dos contos de fadas, ou seja, a transposição entendida como uma tradução intersemiótica, ilustrou perfeitamente o processo de desenvolvimento de um signo simbólico longe do objeto inicial, origem de sua significação. Para justificar esta afirmação, seria suficiente, nos tempos atuais, perguntarmos a um individuo, independente da idade, quem é o autor de Branca de Neve. (ORRÙ, 2008; p.15).

Ao criar uma imagem com traços, cores e vozes, onde sua história não mais pretende ser uma lição sobre vaidade, inveja e morte e sim uma visão que se contextualiza e para no tempo, Branca de Neve e os sete anões acaba fazendo justamente aquilo que a narração tradicional não fazia: se torna uma imagem eterna do passado, onde sua realidade se encerra em si mesmo, não possibilitando uma releitura e reinterpretação do passado e é por isso que Branca de Neve e os sete anões não consegue ser uma “vacina”, pois a identificação que o filme suscita para em seu contexto, não consegue ser transportado para outras conjunturas e outras realidades. Sua matriz sim, mas seu produto, este tipicamente moderno, não. Ou seja, este produto se encerra em si mesmo, sendo improdutível fora do momento que foi criado. Uma das discussões mais importantes de Benjamin é justamente o seu conceito sobre História, não só o contar uma história ou a história de um determinado tempo, trata-se de uma história “capaz de levar em consideração os sofrimentos acumulados e de dar uma nova face às esperanças frustradas” (GAGNEBIM, 1994; p. 8). É uma história que depende de uma experiência que rememora e se reconfigura para poder, finalmente, visitar o passado. E se pensarmos sobre o final do filme, a frase “e eles viveram felizes para sempre” podemos vê-la tanto sob uma visão que a interpreta como uma narração tradicional, suscitando dúvidas sobre o que aconteceu depois, o que levou eles a viverem felizes para sempre; ao mesmo tempo em que esta frase marca o “fim” da narrativa, como se não fosse possível dar algum passo além daquela parte. E no filme não pode mesmo. Sua história se encerra no momento em que Branca de Neve e o príncipe encantado cavalgam em direção do horizonte, onde poderão morar, “‘E se não morreram, vivem até hoje’, diz o conto de fadas.” (BENJAMIN, 1994; p. 215), vivem até hoje, mas não mais felizes para sempre. Sim, ele se torna um clássico, isso com certeza. Sua técnica o torna um clássico, sua quebra de paradigmas estéticos também, mas não pela sua narração, não pela experiência que suscita. Estas se perdem e acabam com o

último frame, onde Branca e o Príncipe cavalgam juntos e felizes para o castelo onde morarão para sempre. A questão, então, parece ser muito mais a de entender que não é que a moral da história não exista, é que a sociedade talvez seja amoral, pois o teor dos Contos de Fada continua existindo em algum lugar. As técnicas, no entanto, usadas para transmiti-los são outras, adaptando-se a esta dita sociedade cronológica, que mesmo tendo em sua disposição ensinamentos, não precisa de mais nada para ser ensinado. Pelo menos não em relação a estas narrações. E se os Contos de Fada são, como Benjamin diz “ainda hoje o primeiro conselheiro das crianças, porque foi o primeiro da humanidade, e sobrevive, secretamente, na narrativa” (1994; p. 215) sobrevivem sob outros formatos, outras experiências, outros desenhos. Relembram-nos um pouco da sua tradição, com personagens e situações mutáveis, porém não mais ensinam. Sua estética é produto de seu tempo e se adaptam como imagens de um momento e só dele. Não são capazes de trazer à tona os significados morais e sentidos atemporais e até mesmo universais que eles tinham.

Mesmo que essas novas circunstâncias deixem inato o conteúdo da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fenômeno não seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem, que aparece num filme aos olhos do espectador, ele afeta a obra de arte em um núcleo especialmente sensível que não existe num objeto da natureza: sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa é quintessência de tudo o que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvida, só esse testemunho desaparece, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional. (BENJAMIN, 1994; p. 168).

Ainda hoje no período que chamamos de contemporâneo (pós-modernidade), eles estão presentes, buscando dialogar com os nossos cotidianos, nossas múltiplas identidades e nossa saturação de informações. Em versões que ainda “bebem da mesma fonte”, mas conseguem estar e se fazer presentes na contemporaneidade, os Contos de Fada sobrevivem e seguem, nunca saindo totalmente de moda e se estendendo a um dos gêneros que só são possíveis hoje: as séries de TV.

5 BRANCA DE NEVE E A CONTEMPORANEIDADE Apesar de ter herdado muito do cinema e também do teatro, a televisão ganhou com o tempo uma linguagem própria, com produtos próprios e se tornando um media independente dos outros, sendo até mesmo motivo de temor entre os cineastas, que achavam que com o seu desenvolvimento e expansão as salas de cinema iam se esvaziar. Não foi o que aconteceu e discutir esta parte da relação entre as duas não cabe neste momento. O que nos interessa, na verdade é notar que, por ter conquistado o seu próprio espaço, a TV foi capaz de ser dona de uma variedade de produtos comunicacionais que são só seus, com linguagens próprias. Como já abordamos neste trabalho, uma das principais características dos Contos de Fada é a sua possibilidade de ser (re)interpretada de acordo com o tempo, o espaço e o meio em que eles se difundem. Branca de Neve é um dos Contos de Fada mais conhecidos e também por isso, é um dos que mais são readaptados, seja para o cinema, para a literatura, para a fotografia e, neste capítulo, para a TV. 5.1 – Once Upon a Time Once Upon a Time é uma serie norte-americana, produzida pela emissora ABC/Disney, que estreou na temporada de 2011. A série começa onde os Contos de Fada normalmente terminavam, na frase “E viveram felizes para sempre”, sendo que no caso da série, o “felizes para sempre” não chega a acontecer. Tudo porque a bruxa má da história de Branca de Neve lançou uma maldição no reino encantado, onde todos os personagens que habitam este mundo seriam banidos para um lugar onde não existem os felizes para sempre: o mundo real. Na série, as histórias se cruzam e as influências de diferentes personagens ajudam a explicar como estas narrações estariam conectadas e como elas podem ser salvas desse mundo real e ruim. Antes que a maldição tomasse todo o reino mágico, Branca de Neve e o Príncipe Encantado salvam sua filha, Emma, mandando-a para o mundo real antes de todos, assim ela não seria afetada pela maldição e poderia voltar para resgatar a todos. Mas enquanto Emma cresce sozinha em algum lugar de Boston, os personagens vivem suas vidas como habitantes comuns de uma cidade suburbana chamada StoryBrooke. Eles se esqueceram de quem eram no reino encantado e suas vidas pararam no tempo, de forma que eles passam 28 anos sem envelhecer um dia sequer. Emma acaba indo à StoryBrooke após ser procurada por Henry, seu filho, que ela deu ainda bebê para adoção; coincidentemente Henry foi adotado por Regina, a prefeita da cidade,

mais conhecida por ter sido a madrasta de Branca de Neve. Na cidade inteira, apenas ela, Rumplestilskim, o chapeleiro maluco e Henry sabem da maldição; o último tem um livro onde todas as histórias do passado desses personagens estão registrados. Mesmo achando que Henry está exagerando, Emma fica em StoryBrooke e é aqui que a história começa a se desenrolar. O espectador acompanha uma parte das histórias cruzadas destes personagens, onde em cada episódio um personagem é a “estrela principal” levando a sua própria narração ao encontro da trama central. Tudo é contado de forma deslinear, usando imagens do presente e do passado, do mundo real se chocando com o mundo mágico, não sendo possível saber a ordem dos acontecimentos, apenas que todos eles são partes de uma narrativa cíclica, já conhecida: a história de Branca de Neve. Como não é possível, neste trabalho, analisarmos todos os episódios, nos concentramos em selecionar aqueles que recontam a trajetória de Branca de Neve e seus personagens principais, como o Príncipe Encantado, a Bruxa, os Sete Anões e o Caçador. Também analisaremos apenas os episódios da primeira temporada, pois é exclusivamente nela que a história de Branca de Neve é recontada, com as suas passagens mais significativas; e também porque no período deste trabalho a segunda temporada ainda estava em andamento. 5.2 – Era uma vez a Contemporaneidade… Como já falamos, os Contos de Fada continuam sendo uma fonte rica de inspiração na criação de produtos contemporâneos, principalmente aqueles que misturam diversas referências, como é o caso da série Once Upon a time, aqui analisada. Primeiramente se faz necessário entendermos que desde Branca de Neve e os sete anões as produções audiovisuais sofreram muitas transformações, inclusive transformações significativas no que diz respeito a sua técnica. O papel de acetato, usado para fazer os desenhos animados foi substituído pelo computador, que através de seus artifícios digitais não só diminuíram consideravelmente o período de produção de um desenho, mas também possibilitaram a eles um aprimoramento de cor, luz, efeitos e som. Estes avanços possibilitaram, também, uma produção mais intensa de produtos, o que nos é refletido através das séries de TV, por exemplo, que toda a semana vemos um episódio de 40 minutos sendo exibido. Por seguinte, se faz crucial compreender que no período contemporâneo, chamado muitas vezes de “pós-moderno”, cada vez mais ganham destaque diversas (re)discussões sobre categorias, identidades, culturas. Fronteiras e processos nos mais diversos campos, como nas artes e culturas são revistos: dicotomias como erudito e popular, alta e baixa cultura, cultura regional e global, entre outras, apresentam-se como fronteiras cada vez mais fluidas,

discutíveis, talvez ultrapassadas. Assim, conceitos por vezes já existentes reaparecem reconfigurados dentro de uma ótica contemporânea rompendo com antigas crenças cartesianas de pensamento, mas justamente por não se tratar de uma “classificação” consensual, para alguns teóricos a Pós-Modernidade poderia ser, nada mais, do que uma aceleração dos sintomas já notados na modernidade.

O Pós-Moderno, nas suas infinitas contradições e relativizações, em seu aparente irracionalismo e desdobramentos energéticos desviantes, não seria mais, numa primeira análise, do que uma espécie de disfarce da última e mais sofisticada feição do conservadorismo expresso em todos os âmbitos da cultura; ao mesmo tempo, ele servirá de categoria de análise, “periodizante” para a compressão do status histórico-social global contemporâneo. (SOUZA, 2008; p.95).

Percebemos, desta forma, que ao falar de Pós-Modernidade, não podemos generalizála, no sentido de fechar certas características em apenas um teórico, ou limitar o entendimento dos conceitos à simples totalizações. A maioria dos conceitos ditos como caracterizantes da Pós-Modernidade foram visitados por diversos pesquisadores, como Steve Connor, David Harvey, Michel Foucault, e como base para este trabalhado, vamos utilizar Frederic Jameson que não só analisa este momento como estilístico, mas também o contextualiza como um período

cuja principal função é correlacionar a emergência de um novo tipo de vida social e de uma nova ordem econômica. Podemos datar esta nova esta nova fase do capitalismo a partir do crescimento econômico do Pós-Guerra nos Estados Unidos (40-50), ou então na França a partir da instituição da Quinta República, em 1958. (JAMESON, 1985; p. 17).

E é nesta contemporaneidade pontuada por Jameson que é possível se questionar ideias fechadas, principalmente com os aspectos generalistas e universais, mas não com a finalidade de destruir com a modernidade, ou desconsiderá-la por completo, na verdade procurando por uma multiplicidade de razões e possibilidades. Tornando possível não só a análise de objetos antes desconsiderados, como também os considerando de importância, a fim de trazer um “rompimento com a tradição do verossímil, a existência de simulacros, pastiches, intertextualidade além de uma psicanálise pop, um fim das ‘fronteiras históricas’ entre a baixa e alta cultura” (OLIVEIRA, FERREIRA, SOUSA. 2008).

5.2.1 Contos de Pastiches para geração roller-coaster O objeto Pop (ou de cultura de massa) se insere neste contexto, pois ele está dentro de uma lógica própria, que de maneira geral nem mesmo intenciona ser único, ousado ou quebrar barreiras. A lógica do pop perpassa para além do simples consumismo, abrangência e simulação. Ele quer criar uma identificação com o coletivo, suscitando a “psicologia das massas” em uma estética que diferentemente da avant garde, apresenta o novo sem inovar, colocando novas vestes no mesmo corpo e cantando sem ter voz (OLIVEIRA, 2010). De maneira geral podemos dizer que a Pós-Modernidade além de possibilitar convergências (e divergências) de conceitos e ideias, também é possível afirmar que se trata de um período fértil de experimentação. É possível, sim, que se trate de um momento em que vivemos do reconhecível e do referenciável, no entanto também podemos reutilizar todas estas referencias entre muitas combinações e versões. “O segundo traço desta linha de pós-modernismos é a dissolução de algumas fronteiras e divisões fundamentais, notadamente o desgaste da velha distinção entre cultura erudita e cultura popular (a dita cultura de massa).” (JAMESON, 1985; p. 17). E entre tantas as características da Pós-Modernidade, podemos dizer, então, que esta sociedade, chamada por muitos nomes é uma sociedade que sobrevive sob outros tipos de experiência, que já não se parece tanto com a da narração tradicional, e nem é exatamente a mesma da Branca de Neve disneyana. É uma experiência ainda mais fragmentada, onde “os estilos idiossincráticos teriam sumido, e só disporíamos então da diversidade e da heterogeneidade estilística.” (JAMESON, 1985; p.18). Uma experiência onde, não mais se cria, não mais se ensina, não mais se inova. Apenas entretém, diverte e copia. Cria personagens, cenários e elementos, que se perdem no seu próprio tempo e que sobrevivem através de imagens falhas e arquétipas, onde “nos vemos condenados a buscar o passado histórico através de nossas imagens pop e de nossos estereótipos a seu respeito” (JAMESON, 1985; p. 20). Sendo que o passado de verdade e a sua revisita permanecem em um local longínquo, em que a experiência tida, principalmente através dos aparelhos midiáticos, se esvai e o mais próximo que conseguimos chegar disso é quando reconhecemos referências e momentos aparentemente perdidos em algum lugar nesses produtos. Quando localizamos o pastiche. O pastiche, segundo Fredric Jameson, não é plágio nem paródia, mas sim “o imitar de um estilo único, peculiar ou idiossincrático” (2002; p.43-44), feito sem o objetivo de provocar o riso, satirizar, buscar a reflexão ou ser irônico. Não se constitui em técnica, muito menos método, mas sim em uma possibilidade estética, uma alternativa que ganha força no chamado

pós-modernismo e suas “permissividades” na arte e na cultura. Em geral, com o pastiche se visa homenagear alguém, alguma obra ou estilo e no pastiche são mantidas as características originais do autor e/ou obra “imitado(a)”, “repetindo(a)”, mas empregam-se novos elementos e estruturas. Para Affonso Romano de Sant’Anna, “o pastiche é a impotência travestida de potência. A vontade de ser aquilo que não se é. O pastiche é o oposto da paródia, esta sim, uma revivificação da linguagem” (2003). O Pastiche é visto em Once Upon a Time o tempo todo, pois estabelece, através da mistura de contos, referências contínuas às mais diversas versões existentes de suas historias. No caso de Branca de Neve, a linha narrativa que se segue é a mesma que já se viu tantas vezes na história: a menina de características bem peculiares, que perde a mãe muito nova e vê o pai se casando novamente e é maltratada pela segunda esposa; tudo isto culminando com a sua mordida em uma maçã envenenada e o seu despertar por um beijo de amor verdadeiro. No entanto, mesmo remetendo-se a esses acontecimentos, Branca de Neve e seus personagens se vestem com outras roupas e a sua história é contada de maneira deslinear, onde o começo (sua infância e o casamento de seu pai) é contado em algum lugar na metade da 1ª temporada, diferentemente do seu despertar que é a primeira cena da narração. Segundo Luiz Nazário, esse tipo de narração é um reflexo de um público jovem que os filmes de narrativas lineares e contínuas não agradavam mais, “os novos filmes ‘montanhas-russas’ – roller coaster movies –conquistam a geração shopping center, que não consegue imaginar mais nada, apenas consumir, vorazmente, imagens prontas” (NAZÁRIO, 2005; p. 341).

O cinema constitui um lócus ideal para a orquestração de múltiplos gêneros, sistemas narrativos e formas de escritura. O mais impressionante é a alta densidade de informação que se encontra à sua disposição. Se o clichê sugere que ‘uma imagem vale mais que mil palavras’, quantas vezes mais valem as características centenas de planos (cada um deles formado por centenas, se não milhares, de imagens) em sua simultânea interação com o som fonético, os ruídos, os materiais escritos e a música? (STAM, 2003; p. 26).

Segundo Maria Beatriz Furtado Rahde essa geração pós-moderna se encontra sob uma amálgama onde “tudo inclui e nada exclui” (RAHDE, 2005; p.196) e por isso mesmo nenhuma construção imagética pretende seguir cegamente escolas e movimentos artísticos, e sim “caminha noutras direções, numa união entre conhecimento (racional) e imaginário (onírico) que traduz, reinterpreta e, por isso mesmo, transforma conceitos estéticos em novas formulações imagísticas complexas” (RAHDE, 2005; p. 196). Ou seja, não se torna possível, nem se classificar concretamente a imagem Pós-Moderna, nem se pensar nela como

homogênea, na verdade sua heterogeneidade é fortemente traduzida em seu produtos, assim sendo a Pós-Modernidade “torna a imagem um outro reflexo do já existente na simbologia iconográfica, quando então, o imaginário constrói e se torna presente ao se expressar em imagens simbólicas” (RUIZ, 2003 apud RAHDE, 2005; p. 196). Meramente simbólicas. Pois se adaptam para uma geração que vive de referências e referências das referências, não precisando de uma construção de “causa e consequência”, já que tudo já o é reconhecível. Branca de Neve não precisa mais ser contada desde o seu nascimento, até a mordida da maçã. Ela pode ser contada da maçã para o seu nascimento e possibilita também várias outras reconexões.

Então, atualmente se valorizam certas características que na modernidade seriam consideradas defeitos e falhas inadmissíveis: em vez da linearidade, o desejável é a complexidade; em vez da certeza, a dúvida; em vez da constância, a variação; em vez da permanência, a efemeridade; e, mais que tudo, em vez da mesmice, o diferente – seja ele belo, regular ou feio. (RAHDE, 2005; p.199).

Características que, incorporadas para uma “sociedade industrial” (NAZARIO, 2005; p. 339), marcam a Pós Modernidade como máscaras estilísticas que só podem ser usadas neste período. A própria deslinearidade, só possível pelo reconhecido, pode ser apontada como um dos atributos mais presentes na série, uma vez que é vista nos próprios personagens, que não mais se parecem com os propostos por seus filmes anteriores em outros períodos; como é o caso da postura da própria protagonista da série, Branca de Neve, que limpar, passar, cantar e costurar não suas únicas habilidades. Na verdade, Branca se transforma em uma mulher forte, que luta por sua sobrevivência e pela sobrevivência dos seus amados. Branca de Neve é revestida de uma postura ainda mais contemporânea e que pode ser vista como um reflexo da fluidez identitária do período contemporâneo, onde não é possível se ver uma padronização de caráter e a identidade torna-se instável, fragmentada, múltipla, permeável às mudanças que ocorrem, quer ao nível dos sistemas de pensamento, quer das formas de sociabilidade e de organização da vida coletiva em geral. O que vemos é uma Branca de Neve depois do beijo do príncipe encantado. Ela é mais velha, mais madura e mais certa do eu próprio destino. É uma Branca de Neve pronta para dialogar com a mulher jovem-adulta contemporânea, que se identifica ali. Porém não se reconhece como Benjamin defendia; este reconhecimento que leva a ver os personagens e suas personalidades como representações nossas e uma revisitação do passado, a fim de, talvez, modificá-lo. Não. Trata-se de um reconhecível da sensação, do “já vi isto antes”. Uma

revisita a um passado, porém a um passado imagético e que, de fato ficou projetado nas lembranças dos espectadores, não o passado narrado, o qual o ensejo dessas histórias tiveram sua matriz envolvida. Já que é assim, podemos apontar que todas as personagens da trama são imagens frágeis de uma imagem anterior, que sofrem uma alteração de identidade para caber na contemporaneidade e serem vistos por ela como representações de si mesmo, mesmo que não o sejam exatamente e mesmo que não suscitem nada. A contemporaneidade sobrevive dessas imagens frágeis, mas que parecem inovadoras e brilhantes. Não surpreende a série fazer tanto sucesso, Relivaldo de Oliveira, em seu texto sobre Lady Gaga aponta que:

Julgamos ser um produto excelente porque repleto de referências à cultura pop e que nós, com nosso imaginário repleto dessas formas, reconhecemos imediatamente e, por essa identificação, atribuímos qualidade. Para nós contemporâneos, o original é a repetição, a criatividade é a citação. (OLIVEIRA, 2010).

Como acontece com Once Upon a time, sendo que o pastiche aqui, não se dá através da história dos Irmãos Grimm, ou mesmo às várias outras versões clássicas desses contos. Seu pastiche se dá através de produtos modernos, como a própria referência de uma Branca de Neve ao estilo Branca de Neve e os sete anões, mas sem ser a mesma personagem. Faz-se uma referência constante do conhecido, não porque tudo no mundo se acabou, mas porque a “inovação estilística não é mais possível, tudo o que restou é imitar estilos mortos, falar através de máscaras e com as vozes dos estilos do museu imaginário” (JAMESON, 1985; p. 19). Percebe-se que esta realidade contemporânea, onde as linhas entre o que era antes a arte erudita e a arte popular ficaram tão finas e ultrapassáveis que não mais se julga valor sobre elas, convive-se numa “falência da estética e da arte, a falência do novo, o encarceramento no passado” (JAMESON, 1985; p. 19 e 20). Um passado de fato, mas não um passado que rememora e que se reconhece ali, mas um passado que se referencia de forma contínua para não ser esquecido. Once Upon a Time revisita esse passado através de dois aspectos que são, ao mesmo tempo díspares e conectados. Estamos falando de uma série que se rememora tanto sob a égide do Conto de Fadas, quando bebe dessa fonte e a recontextualiza; quanto rememora nos elementos de sua construção os filmes disneyanos que já beberam dos Contos uma vez.

Nas transposições analisadas, independente se bem ou mal sucedidas, nos parece certo afirmar que a tradução intersemiótica do Conto de Fadas, dos

irmão Grimm, para os produtos audiovisuais, ainda que sejam consideradas as características intrínsecas de cada objeto, o conto já é uma representação de outra representação – a memória popular -, e o seu primeiro objeto está, assim infinitamente afastado. (ORRÙ, 2008; p.15).

Se considerarmos que Branca de Neve e os sete anões também é uma espécie de pastiche, por ser capaz de trazer referências e homenagens à história dos irmãos Grimm e de todas as outras histórias que inspiraram esta compilação; podemos então enxergar a diferença do Pastiche apresentado no seriado e o desse filme, já que o primeiro não faz referência às histórias clássicas (pelo menos não de maneira direta), na verdade as cenas e os momentos, tais como os personagens e suas sequências, remetem aos filmes da Disney, com tipos não apenas “copiados”, mas também uma espécie de rememoração, como um Filme Nostalgia. Segundo Jameson essa categoria de filmes não se limita apenas a filmes sobre o passado, mas sim “sobre momentos geracionais deste passado” (JAMESON, 1985; p. 20), ou seja procurase resgatar detalhes estilísticos de um dado período, tanto para possibilitar a fruição das novas gerações, quanto para rememorar as antigas e “saciar um desejo mais profundo e propriamente nostálgico de retornar àquele período antigo, de viver uma vez mais suas estranhas engenhocas estéticas do passado”. (JAMESON, 1985; p. 20). Podemos considerar que o Filme Nostalgia se dá e aparece com tanta evidência na contemporaneidade, como um de seus grandes sintomas, pois é um tipo de rememoração que se encaixa na experiência desse tempo. Um tempo que, em sua memória de curto prazo, vive sob referências mais simplificadas e imagéticas, sem condições de reconhecer algo novo (talvez porque o novo nem mesmo exista), então revisita as mesmas feições, os mesmo símbolos e as mesmas situações – mesmo que transvertidas de outra coisa – dá a este homem uma desfocalização do próprio presente. E não é o que ele procura?

Parece-me extremamente sintomático constata que o estilo dos filmes de nostalgia esteja invadindo e colonizando até mesmo os filmes atuais que tem cenários contemporâneos: como se, por alguma razão, fôssemos hoje incapazes de focalizar nosso próprio presente, como se tivéssemos nos tornado inaptos para elaborar representações estéticas de nossa própria experiência corrente. (JAMESON, 1985; p. 21).

Essa forma fílmica não pretende reinventar o passado, ou mesmo o ser, mas sim despertar a identificação com produtos imagéticos “esquizofrênicos” 13

13

, sem uma noção de

Antecipadamente quero refutar possíveis equívocos quanto ao emprego feito aqui desta palavra: sua intenção é descritiva, e não diagnóstica. Nunca me ocorreu que alguns dos artistas pós-modernos mais significativos sejam de alguma maneira esquizofrênicos. Nem se trata de um diagnóstico do tipo cultura-e-personalidade de

fato temporal, apenas “vivendo em um presente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra nenhum futuro no horizonte” (JAMESON, p. 22).

5.2.2 Heterotopia de um livro de histórias Once Upon a Time é uma série que prima pelo encontro entre dois mundo “diferentes”, mas que estão conectados por alguns elementos. Essa seria a grande “novidade” da série. Uma convivência entre um mundo real e um mundo que parecia existir apenas nos livros de história, mas é, na verdade, uma heterotropia. Algo que Harvey, quando fala da obra de Foucault especifica como “é a coexistência num ‘espaço impossível, de um grande número de mundos possíveis fragmentários’, mas simplesmente, espaços ilimitados que são justapostos e superpostos uns aos outros.” (HARVEY, 2003; p. 52 e 53). Como o recontar das histórias conhecidas em dois ambientes, um reconhecível por ser o “mundo real” e o outro por ser o “mundo das histórias”. Foucault afirma que:

Primeiro, há as utopias. As utopias são espaços sem lugar real. São espaços que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou oposta. É a própria sociedade aperfeiçoada, ou é o contrário da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias formam espaços que são fundamental e essencialmente irreais. Também há, e isso provavelmente existe em todas as culturas, em todas as civilizações, lugares reais, lugares efetivos, lugares que estão inscritos exatamente na instituição da sociedade, e que são um tipo de contra-espaços, um tipo de utopias efetivamente realizadas nos quais os espaços reais, todos os outros espaços reais que podemos encontrar no seio da cultura, são ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, tipos de lugares que estão fora de todos os lugares, ainda que sejam lugares efetivamente localizáveis. Esses lugares, porque são absolutamente diversos de todos os espaços que refletem e sobre os quais falam, eu os chamarei, por oposição às utopias, de heterotopias (FOUCAULT, 1994, vol. IV: 755). nossa sociedade e de sua arte: obviamente há coisas mais comprometedoras a dizer contra o nossos sistema social do que permite o uso de uma psicologia de almanaque. Nem estou seguro de que a teoria da esquizofrenia que vou esboçar – uma teoria amplamente desenvolvida na obra do psicanalista francês Jacques Lacan – é clinicamente precisa; o que pouco importa aos meus propósitos. A originalidade de Lacan neste campo está no fato de haver considerado a esquizofrenia substancialmente como uma desordem de linguagem associando-a a toda uma teoria da aquisição da linguagem como o elo esquecido da concepção freudiana da formação do psiquismo adulto. (…) a esquizofrenia se formam a partir da deficiência infantil em aceder plenamente ao domínio da fala e da linguagem e ao adotar uma visão estrutural, com razão, notamos que frases não funcionam desse modo: não traduzimos uma a uma as palavras ou significantes. (…) tudo isso nos coloca em condições de compreender a esquizofrenia como um distúrbio do relacionamento entre significantes (…) estando condenado, portanto, a viver em um presente perpétuo, com o qual os diversos momentos de seu passado apresentam pouca conexão e no qual não se vislumbra nenhum futuro no horizonte. (…) O esquizofrênico não consegue desse modo reconhecer sua identidade pessoal no referido sentido, visto que o sentimento de identidade depende do “eu” e de “mim” através do tempo. (…) O esquizofrênico está sujeito desse modo a uma visão indiferenciada do mundo no presente, uma experiência que não é modo algum agradável. (JAMESON, 1985; p. 21 a 23, grifo nosso).

Foucault considera a questão da heterotropia um paradoxo da convergência e da divergência e que só é possível nos espaços fluídos e esquivos de um lugar que só existe no irreal, mas que muito tem a ver com a realidade; mesmo que esta seja uma realidade representativa. Esta sobreposição é representada pela cidade, que com um nome muito sugestivo14 mostra-se com o tal lugar de conexão entre dois mundos, onde por um lado esses personagens são pessoas comuns e reles habitantes de uma cidadezinha do interior dos Estados Unidos, e por outro são esses seres incríveis, cheio de poderes, magia e possibilidades.

A cidade é o lugar em que o fato e a imaginação simplesmente tem que se fundir (…) por que a cidade também era um lugar em que as pessoas tinham relativa liberdade para agir como queriam e para se tornarem o que queriam. ‘A identidade pessoal tinha se tornado suave, fluída, interminavelmente aberta’ ao exercício da vontade e da imaginação (HARVEY, 2003; p. 53, grifo nosso).

A cidade suburbana e de aparência real é um sintoma contemporâneo, em que se tenta dar um caráter verossímil às narrativas fantásticas, onde o caos impera a fim de dar uma ressignificação aos personagens e às suas histórias. Neste momento, é interessante pensarmos sobre os cenários e figurinos que aparecem na série no momento em que visitamos a cidade mágica. Todos usam roupas que nos remetem a um tempo medieval, onde cortes, castelos, príncipes e princesas são possíveis, onde supostamente acreditaríamos em magia e ela mesma seria possível. Não estamos falando de um passado que, de fato existiu, mas um passado criado, buscado alguma verossimilhança entre o fantástico e “impossível” e o real e possível. Esta parece ser a forma mais eficaz para falarmos de Contos de Fadas na contemporaneidade, já que elas acabam sendo para nós, velhas histórias que nos eram contadas quando crianças (às vezes nem isso). Mesmo que para nós o passado mágico destes personagens esteja claro, não esqueçamos, porém, que estamos falando de personagens que se perderam de si próprios. Eles não se lembram de quem são, mas enquanto retornamos ao morder da maçã da Branca de Neve, o adormecer da personagem e o finalmente despertar através de um beijo, nos sentimos próximos de quem eles seriam de verdade. Se a metáfora for permitida, o estar na cidade, 14

O nome da cidade StoryBrooke faz alusão à “Livro de Histórias” (Story Book, em inglês). As palavras que servem de chaves de análise não se restringem ao nome da cidade. O próprio nome da madrasta, Regina, é “aquela que reina, ou rainha”, assim como também possível notar que os nomes dos episódios fazem alusão a alguma passagem ou momento dos Contos de Fada, uma vez que pretendem despertar a sensação de identificação entre a série e seu público.

apesar de determinante para ser quem é a estes personagens, não é o suficiente para que eles se lembrem de quem verdadeiramente são, assim como nós, seres da contemporaneidade. Na verdade, eles são os caminhantes sem rumo, que vivem vidas pacatas e sem memória de si, quase como uma abstenção do “eu” em propósito do outro, ou seja a massa melancólica que não sabe porque está melancólica, mas decide ficar melancólica junto.

Aqui se revela, com toda a clareza, que nossa pobreza de experiências é apenas uma parte da grande pobreza que recebeu novamente um rosto, nítido e preciso como o do mendigo medieval. Pois qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais a vincula a nós? (BENJAMIN, 1994; p. 115).

A melancolia só é substituída pela magia. Pelo sonho técnico de um cenário construído para parecer outro mundo, outro tempo, pelos personagens adoráveis que lembram a nós o que gostaríamos de ser, pela referência constante de si mesmo e, finalmente, a sensação de libertação. Não uma libertação que vem por meio da experiência que se apreende da arte, mas uma libertação através da falta dela. Um caos organizado que se reconhece em si mesmo e se possibilita dentro de uma quantidade confusa de referências.

Não se deve imaginar que os homens aspirem novas experiências. Não, eles aspiram a libertar-se de toda experiência, aspiram um mundo em que possam ostentar tão pura e tão claramente sua pobreza externa e interna, que algo de decente possa resultar disso. (…) eles devoram “tudo”, a “cultura” e os “homens”, e ficam saciados e exaustos. (BENJAMIN, 1994; p. 118).

Sendo os personagens demonstrações de tal sintoma da experiência Pós-Moderna, quando se perdem dentro de si e não mais são Branca de Neve e a Madrasta e sim, Mary Margaret e Regina, mulheres comuns que ficam satisfeitas e não mais buscam seu misticismo. Suas identidades são simulações e é neste momento que fica claro aos espectadores que elas sentem falta de alguma coisa. Porém é algo que é logo é substituído pelas pequenas alegrias da vida cotidiana. Um mero ir e vir dentro de uma existência que basta em si mesma. Só conseguimos encontrar o misticismo que envolve estas mulheres, quando elas voltam para o seu mundo. Apenas neste momento que a consideramos importantes e queremos acompanhar suas histórias. E é assim que somos convidados a passear entre as duas realidades propostas na série. Realidades que parecem conectadas, mas ao mesmo tempo separadas por estilos visuais que afastam muito cuidadosamente uma realidade da outra, seja através de cores, cenários, figurinos e até mesmo formas de falar. Acontece aqui, uma hibridização entre o real e o

imaginário, objetivando uma ambiguidade, uma visão conotativa repleta de interferências consecutivas em imagens que sempre parecem abertas e suscetíveis a mais informações, mais detalhes, mais “mistérios” e mais nada de fruição.

Assim, o ponto central do pós-modernismo é a realidade vista como uma construção social que combina as representações dos meios de comunicação com os da cultura e das artes populares e ainda agrega a vivência particular de cada sujeito. A realidade compartilhada é aquela oferecida pela mídia e pela cultura, mas ela costuma ser apresentada em várias versões. (RAHDE, 2005; p. 198).

5.2.3 Metasimbologia: a magia da Disney De fato o próprio Pós-Modernismo suscita diversas questões, principalmente no que diz respeito ao seus próprios princípios. Para alguns teóricos, a Contemporaneidade é uma época de crise do próprio conhecimento, que leva a um ceticismo, já “alguns veem o Pós Modernismo como decretando a morte das alternativas utópicas, enquanto usam a linguagem utópica para descrever ‘o capitalismo realmente existente’.” (STAM, 2005; p. 217), como Jameson, interpretam-no como um conceito de periodização diretamente conectando a estética ao capitalismo tardio. Em uma época em que “uma vasta e desencorpada fantasmagoria mundial” (JAMESON, 2002; p. 142) dita o movimento do imaterial, tornando-o ainda mais próximo do cotidiano, facilitando essa fusão.

Os meios de comunicação de massa parecem ter canibalizado a teoria da reflexividade para os seus próprios propósitos “culinários”. Muitos dos procedimentos distanciadores, caracterizados como reflexivos, nos filmes de Godard, tipificam, agora, muitos programas de televisão: a designação do aparato (câmeras, monitores, interruptores), a “ruptura” do fluxo narrativo (via comerciais), a justaposição de gêneros e discursos heterogêneos – a mistura de modelos documentais e ficcionais. (STAM, 2008; p. 218 – 219).

Então, para este produto híbrido que dialoga com a nova experiência e um capitalismo próprio, o consumo não poderia ser esquecido, uma vez que “o processo pelo qual a produção de objetos como o motor da vida social tem sido substituída pela produção e proliferação de signos difundidos em massa” (STAM, 2005; p. 220). Com isso em mente, podemos apontar que através de um pastiche nostálgico, um signo pode, não só ser difundido e fazer muito sucesso, como é o caso de Once Upon a Time, mas se tornar muito rentável – até mesmo para o signo que ele faz referência. Once Upon a Time não só faz referência aos filmes disneyanos anteriores a si porque eles que se configuraram como a marca de alusão imagética, mas também porque a série pertence a um conglomerado comunicacional, que insere em seus

produtos legendas e valores subjetivos, individuais e não inerentes a si mesmo, o que Baudrillard (2007) denomina como “mercadoria-signo”, ou seja, o objeto vendido pela empresa associa as imagens e os símbolos, que podem ou não ter a ver com o que está sendo vendido, de forma a dar um valor de aparência a ele. Baudrillard (2007, grifo nosso) destaca que “Raros são os objetos que hoje se oferecem isolados, sem o contexto de objetos que os exprimam. Transformou-se a utilidade específica, mas ao conjunto de objetos na sua significação total”, ou seja, quando falamos da contemporaneidade existe algo além do valor de troca, existe um valor maior, cheio de significado para quem compra, afinal “cada filme de sucesso transforma-se hoje, numa inteira indústria cultural” (NAZARIO, 2005; p. 340). Em outras palavras, estes objetos são produzidos não somente para saciar uma necessidade humana, mas para diferenciar e significar os indivíduos dentro de seus grupos. Assim, marcas, imagens e significações valem mais do que a própria mercadoria e o valor que foi pago por ela. O consumo, portanto, não deve ser compreendido apenas como consumo de valores de uso, de utilidades materiais, mas primordialmente como consumo de signos. (FEATHERSTONE, 1995), “somos agora, antes de mais nada, consumidores de signos, objetos de desejo. A diferença passa a ser mais valorizada que a uniformidade, o excesso mais que a economia de elementos.” (RAHDE, 2005; p. 198). É aqui que, inspirada pelo conceito apresentado por Luiz Martins no vídeo “A fórmula do Sucesso da Disney” de 2000, a Metasimbologia aparece. Este conceito trata-se de uma forma de utilizar a Indústria Cultural para obter valor usando nada mais do que seus próprios símbolos, seus próprios produtos e sua própria memória. A Disney, e não apenas ela, utiliza seus elementos de criação (em sua grande parte personagens), tanto para vender seus filmes, como para vender a marca como um todo. A Sinestesia imagética e a impressão persistente de que se está realmente dentro do Mundo da Disney é provavelmente uma das características mais marcantes da utilização da Metasimbologia pela Disney, mas não só isso, desde que Walt Disney era vivo e apresentava o programa Disneyland15, a empresa trabalha com contratos exclusivistas e assim garante seu nome ligado a apenas algumas outras empresas. Este é o caso da ABC, que era sua parceira até ser comprada pela empresa. Mesmo de linguagens diferentes, aparentemente formatadas para outros públicos, tanto a ABC quanto os estúdios Disney, mantem entre si um contato direto, lançando produtos que se interligam e citam-se mutuamente, procurando uma espécie de “lucro tridimensional” 15

O Disneyland foi um programa criado por Walter Disney para promover sua produção de curtas com os personagens criados por ele, como Mickey, Donald e Pateta; bem como para divulgar suas ideias quanto a construção de um parque temático. Na época a Disney na TV foi um escândalo, uma vez que o cinema considerava a televisão uma grande vilã.

(NARARIO, 2005; p. 342), onde o pastiche sempre remete a si próprio. Isto quer dizer que além de trazer a referência de seu passado, tornando-o presente, a Disney a utiliza sempre em tom de rememória, em tom saudosista, como uma sobrevida além daquela imagem que teria ficado no passado. De repente Branca de Neve, Cinderela, Belle e outras personagens voltam a serem personagens da moda, voltam a serem rentáveis, voltam a serem lembradas e reassistidas. Não mais porque suas histórias são novidades, ou porque a moral da história, perdida em algum lugar, precisa ser resgatada. Na verdade elas voltam à moda porque estão sendo mostradas de outra maneira, com outras roupas, com novas atitudes, mas lembrando de onde vieram. E é nesta cadeia que a Indústria Cultural, a mercadoria-signo e a metasimbologia se encontram e dialogam dentro do contexto disneyano. Não basta apenas se ter uma técnica para vender a mercadoria, atribuindo signos e mensagens, mas é também preciso criar uma sensação constante de visita entre o vivido e o lembrando, sendo que este efeito acaba sendo alcançado pela utilização de mercadoria-signos e também pela utilização das autoreferências e reatualização constante do passado, tornando-o presente, mas só por um segundo. Segundo Benjamin (1994) um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois. E ele não se encerra. Vive, sobrevive, retorna, é citado novamente, depois é vendido sob novas roupas. E sim, ‘se não morreram, vivem até hoje’ e viverão até amanhã, porém com o seu caráter de vivência. Só são relembrados como fracas representações de alguma outra imagem e não mais retomam lições, ensinamento e questões importantes, servem de gancho para muitas outras versões de uma mesma história, mesmo que essa história não seja a mesma.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Quando começamos este trabalho, uma das principais questões apontadas pelo orientador foi: “A atualização constante de um conteúdo pode indicar um sintoma de que ele não pode mais ser revisitado? Sua saturação?” e agora, no momento de trazer este trabalho para suas colocações finais, podemos repensar sobre esta questão e ver que ela continua tão complexa quanto no início deste, a diferença é que agora é possível apontar algumas questões a se pensar. Pensar que esses Contos de Fada viajaram quilômetros e quilômetros, expandiram seu vocabulário, agregaram inspirações e se alteraram conforme o tempo e o espaço influenciavam nele, faz-nos crer que uma história não se satura, pois ela não se encerra em si mesma. Cada povo, cada cultura e cada experiência aborda esta história de uma maneira diferente, aborda sentimentalizando algo, editando falas, imaginando ou não os cenários, e talvez até mesmo removendo as partes mais violentas. Estas histórias vêm de matrizes e momentos sociais tão diferentes dos que vivemos hoje, que tentar analisa-las fora de seu contexto é uma espécie de anacronismo desrespeitoso, em que se desconsidera toda uma tradição embebida nesses clássicos, ao mesmo tempo em que não se pensar sobre o que, à princípio eles foram formatos para serem, é desconsiderar todo um momento, uma história e um ser social que via nesses contos os ensinamentos que levaria para sua vida e também para os seus filhos, netos e gerações seguintes. Só que, o que acontece quando essas gerações que se seguem de filhos e netos talvez não precisem mais desses ensinamentos? Será que nem mesmo do seu caráter de guia? Provavelmente não. Não porque seus referenciais não mais são a Branca de Neve e a madrasta dos irmãos Grimm, ou de qualquer outra versão clássica conhecida. São referenciais imagéticos de um determinado período que ficaram ali. Os referenciais, não as histórias. Porque essas continuam sendo fonte de inspiração na hora de “criar” uma nova narração. Benjamin não só via no cinema uma espécie de arma cultural, capaz de alienar, mas também enxergava um potencial de vacina, capaz de implodir em uma nova de ver e se rever como ser social, “a partir disso, podemos considerar que as reflexões do autor são no sentido de alertar para as mudanças no aparelho sensorial da moderna sociedade, de que o cinema também faz parte” (TOMAIN, 2004; p. 109). Assim, é possível notar que Benjamin leva em consideração que mesmo sob uma pobreza de experiência, o homem é reflexo de seu próprio tempo, de suas próprias necessidades. Seu contexto é o seu principal guia, até mais do que essas narrações tradicionais que em suas conjunturas anteriores funcionam como tal. Uma sociedade, na verdade se

modifica e se amolda (adaptando seus próprios produtos) de acordo com o que sente necessidade de ter. Branca de Neve e os sete anões é uma demonstração clara disso, pois se dispõem a dialogar com o seu tempo sendo a representação dele, porém a grande questão é que o tempo para em si e não mais é capaz de dialogar com outros tempos. A experiência, então, não pode ser encontrada ali, pois é uma história desprovida de ensinamento, barbaridade positiva e mesmo uma mutabilidade temporal, capaz de se adaptar para onde quer que vá. A Branca de Neve disneyana desperta de seu beijo vai embora e por lá mesmo fica, só (re)despertando na contemporaneidade, onde, mais madura enfrenta uma realidade fragmentada, esquizofrênica e cheia de entrelaces entre uma ficção que tenta ser verossímil, com uma realidade que tenta ser ficcional. E se antes Branca de Neve só precisava de um beijo para despertar, agora ela precisa reconstruir a sua história para não ser esquecida. Precisa ser uma multiplicidade de identidades que dialoguem com o espectador e ainda assim sejam o suficiente para fazê-lo compreender aquele signo. Comprar aquele signo. Usá-lo. Revendê-lo. Ressalta-se, no entanto, que o ponto principal dos Contos de Fada é o ensinamento, é a moral da história, é o que se apreende dessas narrações, não as representações arquétipas de um dado período, ou o desenrolar da trama. Estes se modificam, se adaptam e sobrevivem. Sempre o fizeram e sempre o farão, mesmo que não mais “felizes para sempre”.

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ANEXOS Anexo 1 – Pequena Branca de Neve (Irmão Grimm, 1812). Era uma vez, em meio ao inverno, quando flocos de neve caíam como plumas do céu, uma bela rainha, sentada ao pé de sua janela cuja madeira era feita de ébano escuro. Enquanto bordava, ela olhou para os flocos caindo e picou o dedo com sua agulha. Três gotas de sangue se derramaram na neve. O vermelho sobre o branco era tão lindo, que ela pensou: “se ao menos eu tivesse uma filha tão alva como a neve, tão carmesim como o sangue e tão negra quanto esta moldura!”. Algum tempo depois ela teve uma filha cuja pele era alva como a neve, carminada como sangue e com cabelos tão negros como ébano e, portanto, chamaramna de Pequena Branca de Neve. Mas assim que a criança nasceu, a rainha faleceu. Um ano depois, o rei casou-se uma segunda vez. Sua esposa era uma mulher muito bela, mas extremamente orgulhosa e arrogante, e não conseguia suportar a ideia de que alguém sobrepujasse sua beleza. Ela possuía um espelho mágico, e diariamente ficava de frente para ele, admirava-se, e dizia: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. A isto o espelho respondia: “Tu, minha rainha, és a mais bela de todas.” Então, ela sentia-se satisfeita, pois sabia que o espelho dizia a verdade. Branca de Neve cresceu e se tornou cada vez mais bonita. Aos 7 anos de idade era tão linda como a luz do dia, até mais do que a própria rainha. Um dia, a rainha perguntou ao espelho: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho respondeu: “Tu, minha rainha, és bela; é verdade. Mas Branca de Neve é mil vezes mais bela que a senhora.” A rainha estremeceu, e ficou verde e amarela de ciúmes. Deste momento em diante, cada vez que olhava para Branca de Neve seu coração disparava, tamanho era o ódio que tinha pela menina. Sua inveja e orgulho cresceram ainda mais como uma erva daninha no coração, até que ela se tornou incapaz de ter paz, fosse dia, fosse noite. Enfim, a rainha mandou chamar um caçador e lhe disse: “Leve Branca de Neve até a floresta. Não quero jamais tornar a vê-la. Mate-a e, como prova de que está morta, traga-me seus pulmões e fígado.” O caçador obedeceu e conduziu Branca de Neve para o interior da floresta. Levou sua faca de caça, e estava pronto para esfaqueá-la no coração, quando ela desandou a chorar, dizendo: “Ó, querido caçador, deixe-me viver! Fugirei para dentro das matas selvagens e prometo nunca mais voltar.”

Como era demasiada linda, o caçador apiedou-se e disse: “Fuja, pobre criança”. Ele pensou: “Os animais selvagens logo irão devorá-la, de qualquer modo.” Mas, ainda assim, sentiu como se uma rocha tivesse saído de seu coração por não ter precisado assassiná-la. Naquele momento, um jovem veado passou correndo. O caçador matou-o, tirou seus pulmões e fígado e levou-os para a rainha, como prova da morte de Branca de Neve. O cozinheiro preparou as vísceras com sal, e a Rainha Má comeu tudo, supondo que saboreava os pulmões e fígado de Branca de Neve. Nesse meio tempo, a pobre menina estava só e por sua própria conta na grande floresta. Sentia tanto medo, que ficava apenas olhando para todas as folhas e árvores, sem saber o que fazer. Então, começou a correr. Correu por sobre pedras pontiagudas, espinhos, e animais selvagens saltaram sobre ela, mas não a feriram. Ela correu o mais longe possível que seus pés puderam leva-la e, quando a noite estava para cair, viu uma pequenina casa e nela entrou para descansar. Dentro da casa, tudo era pequeno, porém muito limpo e arrumado, tanto que ninguém poderia dizer o contrário. Havia uma pequena mesa coberta com uma toalha branca e sete pratinhos, e cada um tinha uma colher, e havia sete garfos e facas, e também sete canecas. Próximo à parede, estavam sete caminhas, todas enfileiradas e cobertas por lençóis alvos. Como Branca de Neve estava faminta e com sede, comeu alguns vegetais e um pouco de pão servido em cada pratinho e, de cada caneca, bebeu apenas um gole de vinho. Depois, não se aguentando mais de cansaço, foi se deitar em uma cama, mas nenhuma parecia lhe servir – a primeira era muito comprida, a seguinte curta demais. Finalmente, a sétima tinha a medida correta. Ela permaneceu deitada, confiando seu destino a Deus, e adormeceu. Após o anoitecer, os donos da casa retornaram. Eram sete anões que escavavam minérios nas montanhas. Eles acenderam suas sete lamparinas e nem tudo estava conforme haviam deixado ao sair. O primeiro disse: “Quem sentou na minha cadeira?” O segundo: “Quem comeu do meu prato?” O terceiro: “Quem comeu o meu pão?” O quarto: “Quem comeu meus vegetais?” O quinto: “Quem usou o meu garfo?” O sexto: “Quem cortou com a minha faca?” O sétimo: “Quem bebeu da minha caneca?”

Então, o primeiro reparou que sua cama havia sido mexida, e disse: “Quem se deitou na minha cama?” Os outros vieram correndo e gritaram: “Alguém se deitou na nossa também!” E o sétimo, olhando para a sua cama, encontrou Branca de Neve deitada e adormecida. Os sete anões vieram todos, e exclamaram cheios de admiração: “Oh, meu Deus! Oh, meu Deus!” foi o que disseram. “Esta criança é tão bela!” Eles estavam tão felizes, que não quiseram acordá-la, e a deixaram dormir. O sétimo anão teve que dormir com seus companheiros, uma hora com cada um. E assim a noite passou. Na manhã seguinte, Branca de Neve acordou e, quando viu os sete anões ficou assustada. Mas eles foram amigáveis e perguntaram: “Qual o seu nome?” “Eu me chamo Branca de Neve” “Como chegou até a nossa casa?”, os anões perguntaram. Então ela contou como sua madrasta havia tentado assassiná-la, que o caçador poupara sua vida, e que ela tinha corrido um dia inteiro, antes de finalmente chegar até a casa deles. Os anões disseram: “Se você guardar a casa para nós, cozinhar, fizer as camas, lavar, costurar e tricotar, e mantiver tudo limpo e em ordem, então pode ficar conosco, e terá tudo o que quiser.” “Sim”, Branca de Neve respondeu. “Aceito com todo o meu coração!”. E ela passou a guardar a casa para eles. Toda manhã, eles iam para as montanhas em busca de ouro e minérios e, à noite, quando voltavam, suas refeições tinham que estar prontas. Durante o dia, a menina ficava só. Os bons anões a advertiram, dizendo: “Cuidado com a sua madrasta. Em breve ela descobrirá que você está aqui. Não permita que ninguém entre.”. A rainha, acreditando que comera o fígado e os pulmões de Branca de Neve, só conseguia pensar que era, novamente, a primeira e mais bela de todas as mulheres. Então postou-se diante do espelho e disse: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho respondeu: “Tu, minha rainha, és bela; é verdade. Mas Branca de Neve morando além das montanhas com sete anões, é mil vezes mais bela que a senhora.” Aquilo deixou a rainha furiosa, pois sabia que o espelho não mentia, e percebeu que o caçador a enganara, e que Branca de Neve ainda estava viva. Então, pensou e repensou como poderia matar Branca de Neve, pois enquanto não fosse a mulher mais bela do mundo, sua inveja jamais lhe daria descanso.

Enfim, elaborou algo. Maquiando o rosto, disfarçou-se como uma velha vendedora de quinquilharias, de modo que ninguém pudesse reconhece-la. Com esse disfarce, foi até a casa dos sete anões. Batendo à porta, gritou: “Belos produtos à venda, à venda!” Branca de Neve espiou pela janela e disse: “Bom dia, minha senhora, o que tem para vender?” “Produtos bons e lindíssimos”, ela respondeu. “Laços, bordados de todas as cores”, e a velha mostrou um cinto trançado com seda colorida. “Você gostaria deste?”. “Eu posso deixar esta mulher honesta entrar”, Branca de Neve pensou antes de destrancar a porta, e então comprou o belo cinto. A velha falou: “Criança, como és bela! Venha, deixe-me prender o cinto de forma apropriada”. Branca de Neve ficou diante dela sem nada suspeitar, e deixou que a mulher afivelasse o cinto, mas ela apertou-o tão rápido, e com tanta força, que a menina, sem conseguir respirar, perdeu os sentidos. “Você era a mais bela!”, disse a velha, e fugiu apressadamente. Pouco depois, ao cair da noite, os anões voltaram para casa. Ficaram apavorados ao ver sua querida Branca de Neve estendida no chão, rígida, como se estivesse morta! Eles a ergueram e, ao ver que ela estava sendo pressionada pelo cinto, cortaram-no ao meio. Então Branca de Neve começou a respirar e, pouco a pouco, voltar a si. Quando os anões escutaram o que tinha acontecido, lhe disseram: “Aquela velha era, sem dúvida, ninguém senão a terrível rainha. Tenha cuidado, e não deixe mais ninguém entrar quando não estivermos com você!”. Quando a rainha má chegou ao castelo, correu ao espelho e perguntou: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho respondeu: “Tu, minha rainha, és bela; é verdade. Mas Branca de Neve morando além das montanhas com sete anões, é mil vezes mais bela que a senhora.”. Ao escutar aquilo, a rainha sentiu o sangue ferver, pois soube que Branca de Neve ainda vivia. “Desta vez, pensarei em algo que irá destruí-la”, disse a rainha. Então, fazendo uso de bruxaria, ela preparou um pente envenenado. Depois, disfarçouse, assumindo a forma de uma velha diferente da anterior. Assim, cruzou as sete montanhas em direção à casa dos sete anões e bateu na porta, gritando: “Belos produtos à venda, à venda!" Branca de Neve olhou e disse: “Siga vosso caminho. Não posso deixar ninguém entrar.”

“Mas você pode, com certeza, olhar.”, disse a velha, tirando o pente envenenado e segurando-o no alto. A jovem gostou tanto dele que se deixou enganar e abriu a porta. Após terem acertado a compra, a velha disse: “Agora, permita que eu penteie seus cabelos da forma como se deve.” Ela mal havia tocado os cabelos de Branca de Neve com o pente, quando o veneno fez efeito e a garota caiu no chão, inconsciente. A Rainha Má resmungou antes de ir embora: “Você, exemplo de beleza, agora está acabada!” Felizmente já era quase noite, e os anões voltaram para casa. Quando viram Branca de Neve caída no chão, como se estivesse morta, desconfiaram imediatamente da madrasta. Eles a examinaram e encontraram o pente envenenado. Assim que o removeram, Branca de Neve voltou a si e contou o que havia acontecido. Novamente eles a preveniram para que permanecesse alerta e não abrisse a porta para ninguém. De volta ao castelo, a rainha, diante do espelho disse: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho respondeu: “Tu, minha rainha, és bela; é verdade. Mas Branca de Neve morando além das montanhas com sete anões, é mil vezes mais bela que a senhora.”. Ao ouvir as palavras do espelho, ela estremeceu de raiva. “Branca de Neve tem que morrer, mesmo que isso custe a minha própria vida!”, ela gritou. Então, foi ao seu quarto mais secreto – ninguém mais podia entrar lá -, onde criou uma maçã muito venenosa. Por fora era linda, com a casca vermelha, e qualquer pessoa que a visse a desejaria. Mas todo aquele que mordesse um pedaço, morreria. Então, a rainha maquiou o rosto, disfarçando-se de camponesa, e cruzou as sete montanhas para ir à casa dos sete anões. Ela bateu à porta. Branca de Neve esticou a cabeça para fora da janela e disse: “Não posso deixar ninguém entrar, os anões me proibiram.” “Tudo bem”, respondeu a camponesa “Irei facilmente me desfazer de minhas maçãs. Veja, permita-me lhe dar uma de presente.” “Não, não posso aceitar coisas.”, Branca de Neve respondeu. “Temas que ela seja envenenada?”, indagou a velha. “Olha, vou cortá-la ao meio. Você come a metade mais vermelha e eu a esbranquiçada.”. A maçã tinha sido tão habilmente preparada, que somente a parte vermelha estava envenenada. Branca de Neve ansiava pela bela maçã e, ao ver que a camponesa estava

comendo sua parte, não conseguiu resistir, e estendeu a mão, apanhando a metade envenenada. Ela mal havia dado a primeira mordida quando caiu no chão, morta. A rainha olhou para ela com ar feroz, riu alto e exclamou: “Branca como a neve, rosada como o sangue e negra como ébano! Desta vez os anões não poderão despertá-la!” De volta ao castelo, perguntou ao espelho: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho finalmente respondeu: “Tu, minha rainha, és a mais bela de todas”. Então, seu coração invejoso pôde descansar. Quando os anões regressaram para casa à noitinha, encontraram Branca de Neve, deitada no chão. Ela não respirava. Eles a levantaram e procuraram por algo venenoso. Desabotoaram lhe o vestido. Pentearam seus cabelos. Lavaram-na com água e vinho. Mas nada adiantou. A querida menina estava morta, e assim permaneceu. Então, a colocaram em uma esquife, e todos os sete anões se sentaram próximos a ela e lamentaram, chorando durante três dias. Eles iam enterrá-la, contudo, ela ainda parecia tão fresca quanto uma pessoa viva, e conservava as bochechas rosadas. Então disseram: “Não podemos enterrá-la na terra negra!” Fabricaram-lhe um caixão de vidro transparente para que ela pudesse ser vista por todos os lados. Puseram-na dentro e, com letras douradas, escreveram seu nome, identificando-a como uma princesa. Depois, colocaram o caixão do lado de fora, no topo de uma montanha, e um deles sempre ficava ao seu lado para guarda-lo. Os animais também vieram para velar por ela, primeiro uma coruja, depois um corvo e finalmente uma pomba. Branca de Neve ficou dentro da esquife durante um longo, longo tempo, e não se deteriorou. Parecia apenas estar adormecida, pois sua pele continuava alva como a neve, a boca rosada pelo sangue, e os longos cabelos pretos como ébano. Certo dia, um príncipe adentrou aquelas matas e encontrou, por acaso, a casa dos anões, onde buscou abrigo para passar a noite. Ele viu o caixão nas montanhas com a bela Branca de Neve dentro, e leu o que estava gravado sobre ela com letras douradas. Mais tarde, disse aos anões: “Deixem-me ficar com a esquife. Eu darei qualquer coisa que quiserem em troca.” Mas os anões responderam: “Não. Não o venderíamos nem por todo o ouro do mundo!” O príncipe retrucou: “Então, dê-me de presente, pois já não posso viver sem poder ver Branca de Neve. Irei honrá-la e respeitá-la como se fosse o ser mais amado deste mundo.”

Ao ouvirem aquelas palavras, os anões sentiram pena e lhe deram o caixão. O príncipe pediu que seus criados a carregassem nos ombros. Contudo, aconteceu de um deles tropeçar em um arbusto e o solavanco fez com que o bocado que Branca de Neve havia dado na maçã envenenada se desalojasse de sua garganta. Pouco depois, ela abriu os olhos, levantou a tampa do caixão, sentou-se e viveu novamente. “Meu Deus, onde estou?”, ela exclamou. O príncipe respondeu radiante: “Está comigo!”, e contou-lhe o que havia acontecido, lhe dizendo em seguida: “Eu amo você mais do que tudo no mundo. Venha comigo ao castelo de meu pai e você será a minha esposa!” Branca de Neve encantou-se com ele e o seguiu. O casamento foi planejado com grande esplendor e suntuosidade. A madrasta de Branca de Neve também foi convidada para a cerimônia. Após vestir seus trajes mais ricos, ficou diante do espelho e perguntou: “Espelho, espelho na parede. Quem nesta terra é a mais bela de todas?”. O espelho respondeu: “Tu, minha rainha, és bela; é verdade. Mas a jovem rainha é mil vezes mais bela que a senhora.” A perversa mulher berrou uma maldição, e ficou tão exasperada que não sabia o que fazer. A princípio, não queria ir ao casamento, mas foi incapaz de ficar em paz. Ela tinha que ir ver a jovem rainha. Quando chegou e reconheceu Branca de Neve, ficou tão aterrorizada que não conseguiu sequer se mover. Então, sob as ordens do príncipe, os criados colocaram um par de sapatos de ferro em um braseiro incandescente, os quais foram trazidos com tenazes e colocados diante dela. Ela foi forçada a calçá-los e a dançar até cair morta. GRIMM, J.; GRIMM, W. Pequena Branca de Neve (1812). In VARIOUS. Branca de Neve, os contos Clássicos. São Paulo. Editora Évora. 2012. p. 3 a 16.

Anexo 2 – A jovem escrava (Giambattista Basile, 1634). Nos dias de antigamente, em tempos já há muito idos, havia um barão de Serva-secura que tinha uma jovem irmã, uma rapariga de rara beleza, que costumava sempre ir brincar no jardim na companhia de outras donzelas de sua idade. Um dia, elas encontraram uma adorável rosa em pleno desabrochar, então fizeram uma aposta: quem conseguisse saltá-la sem tocar em uma única pétala, ganharia algo. Porém, embora muitas fatoras pulassem como sapos cima da flor, todas tocavam, e nenhuma conseguia um salto perfeito. Até chegar a vez de Cilla (a irmã do barão). Ela recuou um pouco e deu tamanha corrida que conseguiu pular perfeitamente a rosa. Somente uma única pétala caiu no chão, mas ela foi tão rápida e de tal prontidão, que a apanhou sem que ninguém reparasse e a engoliu, ganhando assim, o prêmio. Não menos que três dias depois, Cilla sentiu que estava grávida, e quase morreu de pesar, pois bem sabia que não fizera nada comprometedor ou desonesto, e não conseguiu entender como era possível que sua barriga inchasse. Recorreu imediatamente a algumas fadas que eram suas amigas; quando escutaram a história, disseram que não havia dúvidas de que ela carregava uma criança da pétala de rosa que havia engolido. Ao entender isso, Cilla tomou precauções para esconder sua condição o máximo possível, e quando chegou a hora de parir, ela deu à luz às escondidas uma adorável garotinha, seu rosto como a lua em sua décima quarta noite. Chamou-a de Lisa e a enviou para as fadas para ser consagrada. Cada uma delas lhe concedeu um encanto, porém, a última escorregou e torceu o pé tão feio enquanto corria para ver a criança, que em sua dor aguda lançou lhe uma maldição, que dizia que, quando tivesse sete anos de idade, sua mãe, ao pentear seus cabelos, esqueceria o pente preso em suas tranças, e isso levaria a menina a morte. Ao término de sete anos, o desastre ocorreu, e a mãe desesperada, lamentando-se amargamente, colocou o corpo dentro de sete caixões de cristal, um dentro do outro, e a deixou em um cômodo distante do palácio, mantendo a chave em seu poder. Entretanto, após um período, a tristeza levou-a ao túmulo. Quando percebeu que seu fim se aproximava, ela chamou seu irmão e lhe disse: “Meu irmão, sinto o gancho da morte arrastando-me para longe, polegada por polegada. Deixo a você os meus pertences para dispor da forma como bem entender, mas preciso que me prometa jamais abrir o último quarto desta casa, e sempre manter a chave neste estojo”. O irmão, que a adorava acima de todas as coisas, deu-lhe a sua palavra; no mesmo instante ela suspirou: “Adieu, pois os grãos estão maduros”. Após alguns anos, este senhor (que neste ínterim havia se casado) foi convidado para uma caçada. Ele deixou os cuidados da casa para sua mulher, e lhe implorou que, acima de

tudo, não abrisse o quarto, cuja chave ele mantinha no estojo. No entanto, assim que virou as costas, ela começou a ter suspeitas e, compelida pelo ciúme e consumida por curiosidade, que é o primeiro atributo das mulheres, apanhou a chave e foi abrir a porta. Lá, encontrou uma jovem garota, claramente visível dentro dos caixões de cristal, então os abriu um a um e descobriu que ela parecia estar adormecida. Lisa havia crescido como nenhuma outra mulher, e os caixões tinham se alongado com ela, mantendo o ritmo conforme ela crescia. Ao contemplar aquela adorável criatura, a ciumenta mulher pensou de imediato: “por minha vida, esta é uma coisa bela! Bravo, meu senhor; chaves na cintura, um aríete no interior! Esse é o motivo pelo qual ele jamais deixou alguém abrir essa porta e ver o Maomé que adora dentro desses caixões.” Ao dizer isso, ela puxou a garota pelo cabelo, arrancou-a para fora e, ao fazê-lo, acabou derrubando o pente, de forma que a adormecida Lisa acordou, gritando: “Mãe! Mãe!” “Eu vou lhe dar mãe, e pai também!”, bradou a baronesa, que era tão amarga quanto uma escrava, tão raivosa quando uma cadela com uma ninhada de filhotes e tão venenosa quanto uma cobra. Ela imediatamente cortou os cabelos da garota, espancou-a com as tranças, vestiu-a com trapos, e todos os dias distribuía golpes em sua cabeça e ferimentos no rosto, arroxeando seus olhos e fazendo com que sua boca parecesse como se tivesse comigo pombos crus. Quando seu marido chegou da caçada e viu a garota sendo tratada tão mal, perguntou quem era ela. A esposa respondeu que era uma escrava enviada por sua tia, que só servia para propósitos da corda e que merecia apanhar para sempre. Porém, aconteceu de certo dia o barão ter que ir a uma feira, e perguntar a todos na casa, do mais alto ao mais baixo e não deixando de fora nem mesmo os gatos, o que queriam que ele comprasse, e quando todos já tinham escolhido, cada qual uma coisa diferente, ele afinal se voltou para a escrava. Mas sua esposa encheu-se de ódio e agiu de forma impensável para uma cristã, dizendo: “É isso, iguale a todos os outros essa escrava de lábios grossos, permita que todos os demais sejam nivelas por baixo e que todos usem o urinol. Não preste atenção a tal rameira sem valor; que ela vá para os diabos!”. Mas o barão, de maneira gentil e cortês, insistiu para que a escrava também pedisse algo. Ela lhe disse: “Não quero nada além de uma boneca, uma faca e uma pedra de amolar. E se você se esquecer, que não seja capaz de cruzar o primeiro rio que encontrar em sua jornada.”

O barão comprou todas as outras coisas, mas esqueceu bem aquelas que sua sobrinha havia pedido; então, ao chegar a um rio, este cuspia pedras e carregava árvores até a margem, o que estabeleceu as fundações do medo e erguei uma parede de temor, a ponto de ele julgar impossível atravessá-lo. Então, lembrou-se do feitiço lançado sobre si pela escrava e deu meia-volta para comprar os três artigos que ela havia pedido. Quando Lisa recebeu o que queria, foi até a cozinha e, colocando a boneca diante de si, começou a chorar e lamentar, e recontou toda a história de seus problemas para aquele embrulho de pano, como se fosse uma pessoa de verdade. Quando a boneca não respondeu, a garota apanhou a faca e afiou-a na pedra de amolar, dizendo: “se você não me responder, irei enfiar esta faca em mim e colocar um fim ao jogo!”. E a boneca, inchando como um saco ao ser soprado, respondeu enfim: “Tudo bem, eu entendi! Não sou surda!” Aquilo continuou por alguns dias, até que o barão, que estava pendurando um de seus retratos próximos a cozinha, calhou de escutar o choramingo e falatório da jovem escrava e, querendo ver com quem ela conversava, colocou o olho no buraco da fechadura. Ele viu Lisa relatando à boneca sobre o pulo de sua mãe por cima da rosa, como ela a engoliu, seu próprio nascimento, o feitiço, a maldição da última fada, o pente deixado em seus cabelos, sua morte, como ela fora fechada nos sete caixões e colocada dentro daquele quarto, a morte de sua mãe, a chave confiada ao irmão, sua partida para a caçada, o ciúme da esposa, como ela abriu o quarto contra as ordens do marido, a forma como cortara seus cabelos e a ameaçara como uma escrava, e os muitos tormentos que lhe havia afligido. E todo o tempo ela chorava e dizia: “Responda-me boneca, ou irei me matar com essa faca!” E, afiando-a na pedra de amolar, ela a teria enfiado em ci mesma se o barão não tivesse chutado a porta e arrancado a lâmina de sua mãos. Ele pediu que ela contasse a história novamente de forma mais completa, e então a abraçou, reconhecendo-a como sua sobrinha, e a levou embora daquela casa, deixando-a sob os cuidados de um de seus parentes para que melhorasse, pois o duro tratamento imposto pelo coração de uma Medeia a tinha deixado magra e pálida. Após vários meses, quando ela havia se tornado tão linda quanto uma deusa, o barão a trouxe para casa e contou a todos que ela era sua sobrinha. Ele pediu um grande banquete, e quando a mesa foi retirada, pediu que Lisa relatasse a história das dificuldades que passara e da crueldade da baronesa – um conto que fez tosos os convidados chorarem. Então ele mandou sua esposa embora, enviando-a de volta para seus pais, pois, por causa do seu ciúme e inveja, ela não era mais digna de estar ao seu

lado; e após certo tempo, ele deu à sua sobrinha um lindo e digno marido de sua escolha. Diante de tudo isso, Lisa disse: “Quando um homem menos espera bens de qualquer tipo, os céus irão polvilhá-lo com sua graça.”. BASILE, Giambattista. A jovem escrava (1634) In VARIOUS. Branca de Neve, os contos Clássicos. São Paulo. Editora Évora. 2012. p.17 a 24.

Anexo 3 – Árvore-dourada e Árvore-prateada (Joseph Jacobs, 1892). Era uma vez, um rei que tinha uma preciosa esposa cujo nome era Árvore-Prateada. Certo dia, Árvore-Dourada e Árvore-Prateada foram a um vale estreito onde havia uma nascente, e nela havia uma truta. Árvore-Prateada falou: “Pequena truta, minha amiguinha, eu sou a rainha mais bonita do mundo?”. “Oh, decerto não és.” “Quem, então?” “Árvore-Dourada, sua filha.” Árvore-Prateada voltou para casa cega de ódio. Deitou-se na cama e jurou que jamais descansaria enquanto não obtivesse o coração e o fígado de sua filha, Árvore-Dourada, para comer. Ao cair da noite, o rei voltou para casa e recebeu a notícia deque sua esposa estava muito doente. Ele foi até onde ela estava e perguntou o que havia de errado. “Só há algo que pode fazer para me curar, se assim quiser.” “Oh, não há nada no mundo que eu possa fazer por você que não faria.” “Se eu tiver o coração e o fígado da minha filha para comer, ficarei bem.” Acontece que, nessa época o filho de um grande rei havia vindo do exterior para pedir Árvore-Dourada em casamento. O rei concordou, e o casal foi para o exterior. Um ano depois do ocorrido, Árvore-Prateada foi até o vale, onde havia a nascente na qual havia a truta. “Pequena truta, minha amiguinha, eu sou a rainha mais bonita do mundo?”. “Oh, decerto não és.” “Quem, então?” “Árvore-Dourada, sua filha.” “Bem, já faz tempo que ela não está mais entre os vivos. Há um ano eu comi seu coração e fígado.” “Oh! É seguro que ela não está morta. Ela se casou com um grande príncipe de outro país.” Árvore-Prateada voltou para casa e implorou que o rei preparasse um grande navio, e disse: “Vou visitar minha querida Árvore-Dourada, pois faz muito tempo desde que a vi pela última vez.” O grande navio foi preparado e eles zarparam. Foi a própria Árvore-Prateada quem se manteve ao leme, e dirigiu tão bem a embarcação, que levou pouco tempo para que chegassem.

O príncipe estava fora, caçando nas colinas. Árvore-Dourada sabia que o grande navio do seu pai estava chegando, então disse a seus servos: “Oh, minha mão está vindo. E ela vai me assassinar.” “De forma alguma ela a matará; nós trancaremos você em uma sala onde ela não poderá se aproximar.” E assim foi feito; e quando Árvore-Prateada ancorou, começou a gritar: “Venha encontrar sua própria mãe, quando ela vem visita-la”. Árvore-Dourada disse que não podia, que estava trancada naquela sala, e não podia ir até lá. Sua mãe perguntou: “E você não colocaria seu pequeninho dedo no buraco da fechadura para que sua mãe possa lhe dar um beijo?” Quando a garota colocou o dedinho, Árvore-Prateada enfiou uma agulha envenenada nele, e Árvore-Dourada caiu morta. Quando o príncipe retornou e encontrou a esposa morta, mergulhou em grande tristeza e, ao ver o quanto era bonita, não teve coragem de enterrá-la, mas trancou-a em uma sala onde ninguém pudesse se aproximar. Com o passar do tempo, ele se casou novamente, e a casa inteira pertencia a sua nova esposa, exceto aquele único quarto, do qual ele mesmo se mantinha longe. Certo dia, o príncipe se esqueceu de levar a chave consigo e sua segunda esposa entrou no quarto. O que viu lá dentro foi a mulher mais bela na qual já tinha colocado os olhos. Ela começou a tentar acordá-la, e notou que havia uma agulha envenenada em seu dedo. Ela removeu a agulha e Árvore-Dourada acordou novamente, tão linda como sempre fora. Quando a noite chegou, o príncipe retornou ao lar, vindo de uma caçada nas montanhas, parecendo bastante abatido. Sua esposa perguntou: “Que presente eu poderia lhe dar que o fizesse rir novamente?” “Em verdade, nada poderia me fazer rir de novo, exceto se Árvore-Dourada tornasse a viver.” “Bem, você a encontrará com vida novamente naquela sala.” Quando o príncipe viu Árvore-Dourada viva, teve enorme regozijo, e começou a beijála, beijá-la e beijá-la. A segunda esposa disse: “Uma vez que ela é sua primeira esposa, é melhor que fique com ela e eu irei embora.” “Oh, mas você não irá embora, eu ficarei com ambas!”

No final do ano, Árvore-Prateada retornou ao vale estreito, no qual havia a nascente onde morava a truta. “Pequena truta, minha amiguinha, eu sou a rainha mais bonita do mundo?”. “Oh, decerto não és.” “Quem, então?” “Árvore-Dourada, sua filha.” “Bem já faz um empo que ela não está mais viva. Eu coloquei uma agulha envenenada em seu dedo.” “Oh, é seguro dizer que ela não está morta!” Árvore-Prateada voltou para casa e implorou que o rei preparasse o grande navio para que ela visitasse sua querida Árvore-Dourada, pois fazia muito tempo desde que a vira pela última vez. O grande navio foi preparado, e eles zarparam. Foi a própria Árvore-Prateada quem se manteve ao leme, e dirigiu tão bem a embarcação, que levou pouco tempo para que chegassem. O príncipe estava fora, caçando nas colinas. Árvore-Dourada sabia que o navio de seu pai estava se aproximando. “Oh não!” – ela disse. “Minha mãe está vindo. E vai me assassinar!”. A segunda esposa disse: “De forma alguma. Iremos lá nos encontrar com ela.” Árvore-Prateada ancorou e chamou pela filha: “Venha cá Árvore-Dourada, meu amor, pois sua própria mãe vem até você trazendo-lhe uma preciosa bebida.” A segunda esposa falou. “É costume neste país que a pessoa que oferece um drinque prove-o primeiro.” Árvore-Prateada encostou a boca na bebida, e a segunda esposa golpeou-a de forma que parte do líquido descesse por sua garganta, fazendo-a cair no chão, morta. Seu corpo sem vida foi carregado de volta para casa e enterrado. O príncipe e suas duas esposas viveram por muito tempo disso, satisfeitos e felizes. Deixe-os lá.

JACOBS, Joseph. Árvore-dourada e Árvore-prateada (1892) In VARIOUS. Branca de Neve, os contos Clássicos. São Paulo. Editora Évora. 2012. p.25 a 30.

Anexo 4 – Maria, a madrasta má e os sete ladrões (Laura Gonzenbach, 1870). Era uma vez, um homem cuja mulher falecera, ele ficara apenas com uma filhinha, chamada Maria. Maria ia à escola onde uma mulher a ensinava a bordar e costurar. À noite, quando ela voltava para casa, a mulher sempre dizia: “Dê meus sinceros cumprimentos ao seu pai.” Por causa desses sinceros cumprimentos, o homem pensou “Ela poderia ser uma esposa para mim.” – e casou-se com a mulher. Após o casamento, a mulher tornou-se pouco amigável com Maria, pois madrastas sempre são assim, e, com o tempo, ela sequer conseguia suportar a menina. Então, disse a seu marido: “A menina come demais de nosso pão. Temos que dar um jeito de nos livrarmos dela”. Mas o homem respondeu: “Não posso matar minha filha!” Então a mulher disse: “Amanhã, leve-a consigo para o campo e a deixe só, de forma que não seja capaz de encontrar o caminho de volta para casa.” No dia seguinte, o homem chamou a filha e lhe disse: “Vamos passear no campo. Vamos levar conosco algo para comer. Então, ele pegou uma grande fatia de pão e seguiram em frente. Entretanto, Maria era esperta e encheu os bolsos de farelo. Conforme caminhava ao lado de seu pai, de tempos em tempos jogava um punhadinho de farelo no caminho. Após caminharem por muitas horas, chegaram ao topo de um precipício íngreme. O pai derrubou a fatia de pão no precipício e gritou: “Oh Maria, nosso pão caiu lá embaixo.” A menina respondeu: “Pai, vou descer até lá para busca-lo”. Então ela desceu pelo precipício e apanhou o pão, mas ao retornar à beirada, seu pai havia desaparecido, e Maria estava sozinha. Ela começou a chorar, pois estava longe de casa e num lugar desconhecido. Porém, logo pensou nos punhadinhos de farelo e tomou coragem. E seguindo o rastro de farelo ela finalmente chegou em casa, bem tarde, naquela mesma noite. “Pai, por que me deixou sozinha?”, ela perguntou. O homem confortou-a e conversou com ela até conseguir tranquiliza-la. A madrasta ficou muito zangada por Maria ter conseguido voltar, e pouco tempo depois tornou a dizer ao seu marido que a levasse até o campo e a abandonasse nas matas. Na manhã seguinte, o homem chamou sua filha mais uma vez e, juntos seguiram em frente. Novamente, o pai apanhou uma fatia de pão, mas Maria se esqueceu de levar o farelo consigo. Nas matas chegaram até um precipício ainda mais íngreme e alto. O pai deixou o pão cair na beirada e, novamente, quando a menina foi busca-lo, a abandonou. Ela chorou

amargamente, e correu sem destino durante bastante tempo, embrenhando-se cada vez mais no interior da escura floresta. A noite caiu e, de repente, ela viu uma luz. Foi em direção a ela e chegou até uma pequena casa. Dentro, encontrou a mesa posta e sete camas, mas não havia ninguém. A casa pertencia a sete ladrões. Maria se escondeu atrás de uma amassadeira, e logo os sete ladrões retornaram para casa. Eles comeram e beberam, e então foram para a cama. Na manhã seguinte, saíram, porém o irmão mais novo ficou em casa para cozinhar e limpar. Após todos terem ido embora, o irmão mais jovem foi comprar comida. Então, Maria saiu de trás da amassadeira, varreu e limpou a casa, e colocou uma panela no fogo para cozinhar feijão. Depois, mais uma vez, se escondeu atrás da amassadeira. Quando o irmão mais novo voltou para casa, ficou maravilhado ao ver tudo tão limpo, e, quando seus irmãos retornaram, relatou-lhes o que tinha acontecido. Todos ficaram pasmos, e não tinham ideia do que pudesse ser aquilo. No dia seguinte, o segundo irmão ficou em casa sozinho. Ele fingiu que estava saindo, mas voltou de supetão e viu Maria, que deixara seu esconderijo novamente para limpar a casa. Maria ficou apavorada ao ver o ladrão. Ela implorou: “Oh, pelo amor de Deus, não me mate!”. “Quem é você?”, o ladrão quis saber. Então ela contou sobre sua madrasta má e como seu pai a havia abandonado na floresta, e como por dois dias havia se escondido atrás da amassadeira. “Não há necessidade de nos temer”, disse o ladrão. “Fique aqui conosco e seja nossa irmã. Cozinhe e lave para nós.”. Quando os demais voltaram para casa, ficaram satisfeitos. Então, Maria ficou com os sete ladrões, fazendo o trabalho doméstico, sempre quieta e diligente. Um dia, estava sentada junto a janela, bordando, quando uma velha mulher pobre passou pedindo esmolas. Maria lhe disse: “Oh, não tenho muito, pois eu mesma sou uma garota bastante pobre e infeliz, porém darei o que tenho para a senhora.” “Por que você é tão infeliz?” – a velha perguntou. Então Maria contou como havia saído de casa e ido parar lá. A velha seguiu seu caminho e contou para a madrasta que Maria ainda estava viva. Quando a madrasta soube disso, ficou muito zangada e deu à mendiga um anel para que o levasse à pobre Maria. O anel era mágico.

Oito dias depois, a velha foi novamente até Maria para mendigar, e quando Maria lhe deu algo, a velha falou: “Olhe, minha criança, eu tenho aqui um belo anel. Como foi tão boa para mim, quero dá-lo a você.” Sem suspeitar de nada, Maria apanhou o anel, mas, ao coloca-lo em seu dedo, caiu no chão, morta. Quando os ladrões voltaram para casa e encontraram Maria caída no chão, ficaram muito tristes e choraram amargamente por ela. Então, construíram um belo caixão e nele a deitaram, após terem adornado a garota om as mais belas joias. Também colocaram uma grande quantidade de ouro no caixão, que puseram em um carro de bois. Dirigiram o carro até a cidade. Quando chegaram ao castelo do rei, viram que a porta da estrebaria estava aberta. Isto fez com que os cavalos ficassem bastante inquietos e começassem a empinar e relinchar. Ao escutar o barulho, o rei enviou alguém lá embaixo para perguntar ao chefe da estrebaria o que tinha acontecido. O chefe respondeu que um carro havia sido levado até a estrebaria. Não havia ninguém no carro, mas dentro jazia um belo caixão. O rei ordenou que o caixão fosse trazido até sua sala, e, lá, pediu que fosse aberto. Ao ver a bela menina morta dentro, começou a chorar e foi incapaz de deixa-la. Pediu que quatro grandes velas fossem acesas e as colocou nos quatro cantos do caixão, sobre a tampa. Depois, pediu que todos saíssem da sala, fechou a porta, dobrou os joelhos e diante do caixão derramou lágrimas quentes. Quando chegou o momento da refeição, sua mãe pediu que o chamassem. Ele não respondeu e, ao invés, chorou ainda mais fervorosamente. Então, a própria velha rainha foi até ele e bateu a porta, exigindo que abrisse, mas sem obter resposta. Ela olhou pelo buraco da fechadura e, ao ver que seu filho estava ajoelhado ao lado de um cadáver, ordenou que a porta fosse abaixo. Entretanto, quando viu de perto a bela moça, ela também se sentiu comovida, inclinouse sobre Maria e tomou sua mão. Vendo o belo anel, pensou que seria um desperdício deixalo ser enterrado junto com o cadáver, e o removeu. Imediatamente Maria voltou a viver. O jovem rei disse com alegria à sua mãe: “Esta menina será minha esposa!” A velha rainha respondeu: “Que assim seja!” e então abraçou Maria. Assim, Maria tornou-se esposa do rei e sua rainha. Eles viveram felizes e em esplendor até o dia em que morreram.

GONZENBACH, Laura. Maria, a madrasta má e os sete ladrões (1870) In VARIOUS. Branca de Neve, os contos Clássicos. São Paulo. Editora Évora. 2012. p.31 a 35.

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