Early Christian Ireland — Uma reflexão sobre o problema da periodização na escrita da História da Irlanda

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Estudos, revisões e diálogos

CAPÍTULO 7 EARLY CHRISTIAN IRELAND — UMA REFLEXÃO SOBRE O PROBLEMA DA PERIODIZAÇÃO NA ESCRITA DA HISTÓRIA DA IRLANDA 1 Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell Dominique Vieira Coelho dos Santos Elaine Cristine dos Santos Pereira Farrell

O

s textos produzidos pelos historiadores no Brasil reunidos sob as alcunhas “História Antiga” e “História Medieval” deixam transparecer de forma bastante nítida suas preferências por uma História da Europa de matrizes greco-romanas. Nossa maneira de escrever a História, de contar os acontecimentos passados organizando-os em narrativas de caráter científico, evoca tempos e espaços que, se mapeados, podem nos levar a uma série de recortes e temas que dificilmente escapariam deste sistema classificatório. A nossa “História Antiga”, de acordo com a maior parte dos livros de História escritos no Brasil, por exemplo, significa o estudo de certas culturas que fixamos sobre os rótulos: Mesopotâmia, Egito, Grécia e Roma. Enquanto que “História Medieval”, por sua vez, nunca foi uma História Medieval romena ou polonesa, etc., mas sempre esteve vinculada à França,

Agradecemos Charles Doherty pelas sugestões de leituras e a Russell Ó Ríagáin por nos fornecer acesso à sua dissertação antes desta ser publicada no site da Universidade de Cambridge. 1

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Alemanha, Itália, Inglaterra, Portugal e Espanha. Acrescenta-se ainda o fato de que mesmo dentro desta História Ocidentalizada da Europa, também há subdivisões, interesses e eleições, pois não é qualquer parte da Europa que está apta a integrar uma narrativa desta natureza, os holofotes têm sido mantidos sobre pontos específicos. Recentemente, e isso significa um recuo de uma década ou duas, talvez por questões políticas e econômicas, ou quem sabe por mudanças epistemológicas que se desenrolaram no campo da ciência histórica, temos visto uma inquietação por parte de alguns grupos de historiadores em relação à seleção dos temas a serem estudados, dos recortes espaços-temporais a serem aplicados e, até mesmo, uma crítica das “formas” utilizadas pelos historiadores para escrita de suas narrativas acerca do passado humano. Estas tentativas de repensar o passado e escrever novas histórias fazem emergir inúmeras questões, pois, diversas são as ocasiões em que a confecção destas narrativas provoca conflito de interesses religiosos, entraves filosóficos, disputas políticas, dificuldades para conciliar núcleos narrativos distintos e problemas de datação e periodização do tempo histórico vivido. Inclusive no que tange à conceitualização e criação de novas formas explicativas, quando as tradicionais não conseguem se adequar a estas novas necessidades2.

A respeito da discussão sobre a construção de conceitos históricos, recortes cronológicos, “formas” e o conceito de Antiguidade em si, ler: GUARINELLO, N. L. Uma Morfolofia da História: as formas da História Antiga. Politéia: História e Sociedade, v. 3, n. 1, p. 41‒61, 2003. Para Guarinelo, “formas” ou “f(ô)rmas” são as generalizações que os historiadores fazem para compreender o passado, definindo generalizações sobre uma sociedade, ou uma cultura, ou assumindo que um dado período possui características comuns de modo que os documentos produzidos em uma mesma “época” podem ser agrupados e dialogarem entre si, p. 42, 45‒46. Sobre o desenvolvimento dos estudos medievais no Brasil, por exemplo, e das tendências e abordagens desenvolvidas ver: FRANCO JÚNIOR, H., BASTOS, M. J. M. e RUST, L. D. Historiographie et Médiévistique Brésiliense: une approche d’ensemble. In: Magnani, E. Le Moyen Âge vu d’ailleus: voix croisées d’Amérique latine et d’Europe. Dijon: Universidade de Dijon, 2010. 2

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Dentro desta nova seleção de temas e recorte espaços-temporais, novas áreas geográficas da Europa estão sendo estudadas por pesquisadores brasileiros, como a Irlanda, por exemplo. Motivações inúmeras podem ser identificadas para essa busca de novos horizontes e novas áreas de pesquisas exploradas pela atual historiografia brasileira. Muito possivelmente a própria repetição espaço-temporal tenha cansado a nova geração de pesquisadores que precisava buscar novos caminhos para a elaboração de trabalhos originais. Talvez a popularização dos cursos de línguas estrangeiras, e a expansão do acesso ao uso dessas línguas a um público maior, e em particular a influência da língua inglesa no Brasil e com ela da literatura produzida em diferentes países de língua inglesa, seja outro possível fator influenciador. Provavelmente, os processos de globalização, de troca de informação e da discussão de temas de interesse por meio de listas virtuais, da intensa mobilização de pessoas e o florescimento do turismo como atividade praticada em escala cada vez maior tenha também o seu nível de intervenção neste processo. O interesse pelos estudos irlandeses, ou relacionados com as temáticas célticas de forma mais ampla, no Brasil, é um fenômeno recente. Do ponto de vista acadêmico e institucional, podemos recuar ao ano de 1989, quando surge na Universidade de São Paulo a ABEI—Associação Brasileira de Estudos Irlandeses sob a supervisão das professoras Munira H. Mutran e Laura P. Z. Izarra. Desde então, passa a existir o Brazilian Journal of Irish Studies, cujas publicações se concentram na área da literatura e, cronologicamente, enfoca, principalmente, os períodos moderno e contemporâneo. Em 1999, em meio a discussões realizadas na ABREM—Associação Brasileira de Estudos Medievais foi fundado o Brathair, Grupo de Estudos Celtas e Germânicos3, que, Para maiores informações sobre as organizações acadêmicas mencionadas acessar aos seguintes endereços eletrônicos: ABEI: http://irishstudies.webs.com/; ABREM: http://www.abrem.org.br/; e Brathair: http://www.brathair.com/, sítios acessados em 20 de março de 2011. 3

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desde então, também tem se esforçado para, no meio acadêmico brasileiro, apresentar publicações sistemáticas envolvendo as temáticas celtas e germânicas. Além destas publicações, é possível encontrar alguns trabalhos de pesquisadores independentes que, de uma forma ou de outra, abordam a temática céltica. Todavia, foi somente após o surgimento destes dois grupos, que houve uma tentativa mais coesa de reunir os pesquisadores interessados nestes temas para a criação de áreas específicas de estudos, com o foco em determinadas sociedades que, de certa forma, foram negligenciadas pela historiografia brasileira. Surgiam aí alguns dos problemas que passariam a acompanhar os estudos célticos realizados no Brasil: como vincular a uma disciplina específica, seja a história, literatura, ou qualquer outra, os resultados de pesquisas realizadas por profissionais dos campos mais distintos? Do ponto de vista da Ciência da História, em que período enquadrar uma civilização tão diversificada como a céltica, que ocupou geograficamente praticamente todas as partes da Europa, e, dependendo do ponto de vista, podem-se localizar fenômenos relacionados a ela desde o século XIV a.C até os dias atuais? Em uma delimitação mais precisa, nas narrativas elaboradas exclusivamente pelos historiadores, a forma “povos celtas” deve ir junto com a forma “História Antiga”, “História Medieval”, ou ainda “Antiguidade Tardia”4 ? Se insistirmos com esta demanda da historiografia pela classificação tradicional em História “Antiga”, “Medieval”, “Moderna” e “Contemporânea”, mesmo quando o recorte é feito com o objetivo de delimitar um locus específico, como a Irlanda, os Para uma discussão atualizada do conceito de antiguidade tardia, ler: JAMES, Edward. The rise and function of the concept of "Late Antiquity". Journal of Late Antiquity, v. 1, n. 1, p. 20‒30, 2008, (http://muse.jhu.edu/login?uri=/journals/ journal_of_late_antiquity/v001/1.1.james.pdf ) e SARTIN, Gustavo. O surgimento do conceito de ‘Antiguidade Tardia’ e a encruzilhada da historiografia atual. Brathair, v. 9, n. 2, p. 15‒40, 2009, (http://brathair.com/revista/numeros/09.02.2009/3_ sartin.pdf ), sítios acessados em 20 de março de 2011. 4

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mesmos problemas parecem continuar. Pois, quando é que podemos falar em “História Antiga” na Irlanda, quais são suas balizas cronológicas? Quando é que este período começa e termina? Um dos marcos mais conhecido quando a forma “História Antiga” é evocada é o ano de 476 d.C, considerado como o ano da “queda do Império Romano do Ocidente”. Como sistematizar na mesma narrativa uma “História Antiga”, que termina em 476 para uns, mas que, no caso da Irlanda, está ainda em seu início levando-se em consideração o mesmo marco cronológico? Como aplicar teorias e conceitos válidos para uma escrita da História do Império Romano a uma História da Irlanda e estabelecer um diálogo baseado em comparações desta natureza, quando as conclusões as quais diversos autores chegam parecem caminhar em outra direção? De acordo com alguns historiadores, “a Roma que a Irlanda conheceu não foi a dos Césares, mas a de Pedro e Paulo”5, “devemos lembrar que a Irlanda jamais conheceu a organização romana e não possuía a forma administrativa que formou o contexto necessário para o bispado de estilo romano”6. O mesmo vale para “História Medieval”. O que é “Medieval” no que diz respeito à História da Irlanda? Quais são seus limites temporais? O estabelecimento de uma periodização tão precisa faz-se realmente necessário? O principal interesse deste trabalho é discorrer sobre a problemática periodização que gira em torno da noção de “Early

“Nos enim, ut ante dixi, devincti sumus cathedrae sancti Peter; licet enim Roma magna est et vulgata, per istam cathedram tantum apud nos est magna et clara”. “Porque nós, como eu [Columbano] disse antes, somos ligados à cadeira de São Pedro; pois, embora Roma seja grande e famosa, entre nós é somente desta cadeira que esta grandeza depende”. Tradução livre de trecho da carta de Columbano ao papa Bonifácio IV, WALKER, G.S.M. Sancti Columbani Opera. Dublin: Dublin Institute for Advanced Studies, 1997, 3ª ed., (Scriptores Latini Hiberniae, v. II). Ver também: Ó CRÓINÍN, Dáibhí. Early Medieval Ireland 400-1200. London: Longman, 1995, p. 110; e: BRACKEN, Damian. Authority and Duty: Columbanus and the Primacy of Rome. Peritia. v. 16, p.168‒213, 2002, p. 9. 6 HUGHES, Kathleen. Early Christian Ireland: Introduction to the Sources. London: Sources of History in association with Hodder and Stoughton, 1972, p. 73 5

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Christian Ireland”, forma histórica que salta aos olhos do pesquisador brasileiro disposto a escrever uma “História Antiga” da Irlanda, se é que houve uma, e também sua dita “História Medieval”. Apesar de esses conceitos terem sido amplamente criticados nos últimos anos, eles continuam ainda conformando a nossa maneira de entender o passado e são ainda categorias úteis ao trabalho do historiador. Todavia, nós criamos categorias de pensamento, dividimos a história em frações de tempo e depois ficamos a tentar resolver os problemas destas nossas barreiras artificiais de tempo. Ainda assim, nós, historiadores, continuamos, em diferentes regiões do mundo, seja no Brasil ou no exterior, a construir divisões artificiais e sessões departamentais em nossas Universidades que se justificam em torno dos clássicos conceitos de história “Antiga” e “Medieval”. Mas e no caso irlandês, como são essas histórias contadas? Na Irlanda também há departamentos e especialistas em “História Antiga” e “História Medieval”, também há “medievalistas”. No entanto, quando os especialistas em “História Medieval” (ou seria “Antiga”?) da Irlanda falam ou escrevem sobre a Irlanda, eles corriqueiramente recorrem ao conceito supramencionado, “Early Christian Ireland”. Considerado isto, já encontramos vários problemas. O primeiro é entender como podemos estabelecer um diálogo entre este termo com os que preferimos usar no Brasil, História “Antiga” ou “Medieval”, e este é um problema comum tanto a historiadores irlandeses, brasileiros ou de qualquer outra nacionalidade e escola de pensamento. O segundo problema seria como traduzir esse conceito para a língua portuguesa? Seria uma “Irlanda Cristã Embrionária” ou “Alta Irlanda Cristã”? Haveria então uma “Late Christian Ireland”? Porque “early”? O que viria antes e depois deste período histórico recortado entre o século V e o IX e intitulado como “Early Christian Ireland”? Uma reflexão sobre a própria noção de “Idade Média” se faz necessária, antes de explorarmos melhor o conceito de “Early Christian Ireland”. O termo “Idade Média”, como é conhecido

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hoje, que pode ser encontrado em qualquer livro de História em nossas bibliotecas e livrarias, data do século XV. Esta noção começou a aparecer como “Media Tempestas” no ano de 1469, “media aetas”, que data de 1518, e “media tempora”, que aparece no ano de 1531. O termo “Medium Aevum”, que deu origem ao termo “medieval” em português, por sua vez, só pode ser localizado a partir de 16047. Antes disto, a classificação, ordenamento e sistematização conceitual do tempo era completamente outra. Os escritores dos séculos anteriores referiam-se ao período em que estavam vivendo usando outras formas. Por volta de 1330, por exemplo, o italiano Francesco Petrarca dividia as eras apenas em duas: “Antigua” e “Nova”, tendo como fator principal desta separação o Cristianismo. Tudo aquilo que ocorreu antes deste marco era considerado por ele como “Antiguidade”, e, consequentemente, o que vem depois faz parte do novo tempo, de uma História “Nova”8. Foi outro italiano, Leonardo Bruni, no ano de 1442, o responsável por introduzir uma visão tripartite do tempo, Antigo, Medieval e Novo, acrescentando assim mais um período em relação ao sistema utilizado por Petrarca. Foi este mesmo autor que introduziu o marco de 476 (quando Romulus Augustus deixa de ser Imperador romano) como o ano que encerra o período chamado de “História Antiga”9. Flavio Biondo seguiu o mesmo raciocínio de divisão do tempo em três partes, todavia, estabelecendo outro marco para o encerramento do período antigo. Para Biondo, a “História Antiga” terminava no ano de 410, quando Roma foi saqueada pelos Godos10 .

RUDOLPH, Conrad. A companion to Medieval art: Romanesque and Gothic in Northern Europe. Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2006, p. 4. 8 Theodore E. Mommsen. Petrarch's Conception of the 'Dark Ages'. Speculum, v. 17, n. 2, p. 226‒242, apr., 1942. MAZZOTTA, GIUSEPPE. The worlds of Petrarch. Durham and London: Duke University Press, 1993. 9 Leonardo Bruni, History of the Florentine people, v. 1, Books 1–4. Tradução para língua inglesa de HANKINS, James. Havard: Harvard University Press, 2001, p. xvii. 10 Ver o capítulo: Flavio Biondo and the Middle Ages In: HAY, Denis. Renaissance Essays. The Hanbledon Press, 1988, p. 35‒66.

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A partir da análise destas tentativas de categorização do tempo histórico realizadas entre 1330 e 1604 podemos perceber que uma nova forma de compreensão do tempo entrou em vigor e uma nova sistematização conceitual se fez necessária. Todavia, foi somente em 1683, quando o humanista alemão Christoph Cellarius apresentou uma divisão da história da humanidade em: “Antiga”, “Medieval” e “Período Novo”, que esta idéia de tripartição, primeiramente elaborada por Bruni, se tornou um fundamento, passando a ser a principal forma de divisão e classificação do tempo utilizada pelos historiadores11. Daniel Power nos explica que a forma como entendemos e classificamos a “Idade Média” hoje, deriva de duas vertentes, uma germânico-inglesa e outra francesa12. Segundo o autor, os historiadores alemães, geralmente seguidos pelos ingleses, tendem a estabelecer uma partição da forma “Idade Média” em três temporalidades: “Früh”, “Hoch” e “Spätmitterlater”, “Early”, “High” e “Late”, quando em língua inglesa. São os historiadores franceses e seus pares de línguas românicas que preferem uma classificação binária, dividindo o período em “Haut” e “Bas” “Moyen-Age”, ou seja, “Alta” e “Baixa” “Idade Média”, como conhecemos no Brasil13. Este esquema de subdivisões do período medieval foi popularizado no século XX pelo historiador belga Henri Pirenne e pelo holandês Johan Huizinga14. Christophori Cellarii. Historia vnivrsalis. breviter ac perspicve exposita, in antiqvam, et medii aevi ac novam divisa, cvm notis perpetvis. Editio X, ad nostra vsqve tempora continvata et svmmariis avcta. Publicado por Svmtv I.F.Bielckii, 1741, Ienae. Obra disponível em inglês sob o título: Universal History Divided into an Ancient, Medieval, and New Period. Ver também: BREISACH, Ernert. Historiography: Ancient, Medieval, and Modern. Chicago Press, 2007, p. 181. 12 POWER, Daniel. The Central Middle Ages: Europe 950‒1320. New York: Oxford University Press, 2006. (Short Oxford History of Europe), p. 4. 13 Ibid., p. 4. 11

14 SHAW, David Gary. Huizinga's Timeliness. History and Theory, v. 37, n. 2, p. 245‒258, May, 1998; PETERS, Edward; SIMONS, Walter P. The New Huizinga and the Old Middle Ages. Speculum, v. 74, n 3, p. 587‒620, jul., 1999; Febvre,

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Após esta pequena reflexão sobre o desenvolvimento do termo “Idade Média”, e dos recortes desta, devemos ressaltar que os estudos Irlandeses enfocando o período em questão, como relacionados ao mundo de língua inglesa, seguem o modelo da divisão identificada por Power, usando o conceito de “early”. Em segundo lugar, devemos ressaltar também que a própria história Medieval da Irlanda se confunde com a história da Igreja na Irlanda e vice-versa. Isso ocorre devido ao enfoque dado à cultura escrita. Portanto, para a historiografia recente, a história da Irlanda começa com a chegada do cristianismo e com a introdução da escrita na Irlanda, antes disto esta tem sido entendida por muitos pesquisadores como uma “Pré-história”. O advento da escrita na Irlanda primeiramente ocorreu com o uso de grandes pedras, os Ogam stones, as mais antigas das quais se tem conhecimento datam do século IV e estiveram em uso na Irlanda até o VI15. No entanto, as inscrições encontradas nestas pedras nos oferecem apenas algumas marcações de fronteira e uma pequena quantidade de informações sobre indivíduos mortos, uma espécie de memorial. Charles-Edwards acredita que as inscrições em Ogam demonstram o desejo de elevar a condição da língua irlandesa, conferindo a ela o mesmo status do latim16. Todavia, não foi a língua irlandesa que se sobressaiu, pois, logo após este período, o latim foi posto em uso, assim como a técnica de escrever em velum, ou seja, em couro de animais, sendo o século VI a possível data dos mais antigos exemplos que sobreviveram na Irlanda. O uso da língua latina na Irlanda e a

Lucien. Henri Pirenne, historien européen. Revue d'histoire moderne, v. 8, n. 8, p. 268‒272, may‒jul., 1933. Para uma reflexão sobre a problemática da periodização na história da Europa e uma crítica da forma “Idade Média”, ver: HOLLISTER, Warren. The Phases of European History and the Nonexistence of the Middle Ages. Pacific Historical Review, v. 61, n. 1, p. 1‒22, feb., 1992; LE GOFF, Jacques. The Medieval Imagination. Chicago: Chicago Press, 1992, p. 1‒18. Ó CRÓINÍN, D. op. cit., 1995, p. 33‒36. CHARLES-EDWARDS, T. M. Early Christian Ireland. Cambridge: Cambridge University Press, 2000, p.176‒177.

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expansão do uso da escrita estão diretamente associados à proliferação de escolas monásticas17. Em um terceiro momento da história da escrita na Irlanda, a partir do século VII, o uso da língua vernácula escrita em alfabeto latino foi introduzido, o irlandês-antigo, que foi usado por gerações paralelamente com o latim18. Por isso, a história da Irlanda antes da chegada de missionários como Paládio e Patrício é narrada por muitos pesquisadores como uma “Pré-história” e é amplamente dependente do trabalho de arqueólogos e não de historiadores. Para compreender a forma a qual os irlandeses têm recortado e narrado essa história precisamos considerar aqui algumas obras. Encontramos as primeiras referências do uso do conceito “Early Christian Ireland” ao final do século XIX entre historiadores da arte e colecionadores de antiguidades. A irlandesa Margaret Stokes (1832‒1900) foi um dos principais expoentes desta geração, a sua obra, publicada em 1887, tentou mapear os principais objetos de arte deixados por esta “civilização” ou “sociedade” irlandesa cristã em seu “early” período, ou seja, em sua gênese19. De acordo com Margaret, a primeira tentativa de um tratamento científico arqueológico desta herança cultural foi pela primeira vez realizada por George Petrie, da Universidade Trinity College Dublin20. Margaret e seus contemporâneos estavam diferenciando e definindo as peculiaridades da arte irlandesa das outras artes. Esta não era qualquer arte, mas a arte do “early” período cristão, uma forma de arte diferente da produzida na Irlanda antes do século V, segundo Margaret, esta sim teria sido “celta”, e a posterior ao V seria “irlandesa”. No entanto, esta se diferenciaria também da arte anglo-saxã e rúnica21. Ó CRÓINÍN, D. op. cit., 1995, p. 169‒189. Ibid., p. 189‒195. 19 STOKES, Margaret. Early Christian Art in Ireland, Dublin: Committee of Council on education, 1887; STOKES, Margaret. Early Christian architecture in Ireland, London: George Bell and Sons, 1878. 20 STOKES, M. op. cit. 1887, p. viii. PETRIE, George. The ecclesiastical architecture of Ireland: an essay on the origins of round towers in Ireland. Dublin: Hodges and Smith, 1845. 21 STOKES, M. op. cit. 1887, p. vii‒viii. 17 18

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Um dos autores cujo trabalho auxilia a visualização desta problemática da periodização irlandesa que estava em formação e do conceito de “Early Christian Ireland” é Eoin MacNeill (18671945). Ele foi o primeiro professor de “Early Irish history” na University College Dublin, de 1909 até 1945, também é considerado como “the father of the modern study of early Irish medieval history”22 e um “vade mecum” para historiadores que estudam o chamado “Early Irish Period”23. Todavia, no ano de 1920, em uma importante obra24, ele se apresenta como “Professor of Ancient Irish history”. Ao ler esta obra observamos a dificuldade por parte do autor em escolher uma forma específica para classificar os séculos em questão que, no Brasil, facilmente definiríamos entre “Antigo” e/ou “Medieval”. Ao estabelecer um mapeamento detalhado das formas utilizadas por MacNeill para fazer referência ao período histórico em questão percebemos inconstância no uso dos termos que delimitam estes períodos históricos25. Verbete "MacNeill, Eoin" In: STEWART, Bruce, (Ed.). EIRDATA—Eletronic Irish Records Dataset. Endereço eletrônico: http://www.pgil-eirdata.org/, sítio acessado em 22 de março de 2011. 23 Eoin foi também um estudioso da língua gaélica e um político nacionalista. MAUME, Patrick; CHARLES-EDWARDS, Thomas. MacNeill, Eoin (John). In: MCGUIRE, J.; QUINN, J. (Ed.). Dictionary of Irish Biography: from the earliest times to the year 2002. Cambridge: Cambridge University Press, 2009. A importância e a influência de MacNeill na historiografia irlandesa foi também enfatizada em: ETCHINGHAM, Cólman. Early Medieval Irish History. In: McCONE, Kim; SIMMS, Katharine, (Ed.). Progress in Medieval Irish Studies. Maynooth: The Cardinal Press, 1996, p. 123‒153. Essa obra é uma espécie de anais do Ninth Irish Conference of Irish Medievalists no St. Patrick’s College, da National Universtiy of Ireland, Maynooth que coincindiu com o bicentenário do College em 1995. A conferência e a obra resultante dela objetivaram oferecer um balanço da historiografia medieval irlandesa, no entanto a questão dos recortes temporais não foi abordada em meio à variedade de assuntos considerados. 24 MacNEILL, Eoin. Phases of Irish history. Dublin: M. H. Gill & Son Ltd., 1920. 25 Identificamos e contabilizamos o uso dos seguintes léxicos: “Ancient history” (1 vez), “Antiquity” (16 vezes), “Ancient Ireland” (13 vezes), “Medieval” (13 vezes), “Patrick’s time” (14 vezes), “Christian times” (5 vezes), “Christian Era” (20 vezes), “Early Christian Centuries” (1 vez), “Early Christian Ireland” (2 vezes), “Ancient and Medieval Ireland” (2 vezes). 22

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Desta forma, percebemos que no sistema conceitual de MacNeill há a presença da sequência “Pré-história”, “História Antiga” e “História Medieval”. Todavia, isto gerou um problema, ou seja, o que seria esta “História Antiga” irlandesa? Como circunscrevê-la? Como estudá-la? Isto acaba fazendo com que o autor recorra a estas várias formas como uma tentativa de solucionar este entrave. Apresentando-se como professor de “Ancient Irish History”, MacNeill buscou encontrar lugar para uma “História Antiga” entre a “Pré-história” e a “História Medieval” da Irlanda. Sendo assim, embora o autor admita que “o período rigorosamente histórico na Irlanda começa com São Patrício”, ele se recusou a classificar os séculos que antecederam a chegada de Patrício como “Pré-história”26. Todo o capítulo intitulado “The Five Fifths of Ireland” desta sua obra foi estruturado de forma a sustentar a tese de que apesar das cartas de Patrício serem os documentos escritos mais antigos da história da Irlanda, é válido utilizar o corpus documental produzido posteriormente para buscar a tradição oral irlandesa e suprir esta falta de textos escritos do período pré século V, desde que isso seja feito de forma crítica e elaborada27. Apesar desta tentativa de uma clara delimitação entre a “Préhistória” e a “História Medieval” a partir do uso de um aparato conceitual que faz às vezes da forma “História Antiga”, pode-se perceber em vários outros trechos da obra que o autor ainda oscila no recorte da periodização. Ou seja, podemos perceber que apesar de haver na obra de MacNeill uma relativa consciência acerca desta problemática da periodização, a questão principal de como classificar esta parte da história da Irlanda foi postergada. Enquanto MacNeill tentou delinear o que era Pré-história, História Antiga e Medieval na Irlanda, Kathleen Hughes (1926‒1977), nas décadas de 1960 e 70, historiadora inglesa, 26 27

Ibid., p. 114. Ibid., p. 98‒132.

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voltou a enfatizar o recorte “Early Christian Ireland”. Ela produziu uma série de trabalhos sobre a História da Igreja na Irlanda. Estes trabalhos são considerados clássicos hoje e a pesquisadora em questão uma autoridade no assunto28. Mesmo três décadas mais tarde, apesar de várias críticas e debates a respeito de alguns de seus argumentos e conclusões, suas obras são ainda recomendadas como ponto de partida para todo e qualquer jovem pesquisador interessado em enveredar-se pelos estudos sobre a Igreja na Irlanda ou da História da Irlanda pura e simplesmente. Para Hughes, “Early Christian Ireland” seria o período circunscrito entre os séculos V e IX, sendo o marco final desta “era” as “terríveis” (de acordo com a autora) invasões vikings29. Hughes acreditava que o período mais fecundo deste recorte foram os séculos VII, VIII e IX, quando, segundo ela, “a Irlanda era parte integral da Europa, aprendendo da herança clássica e contribuindo para a civilização dos bárbaros germânicos”30. As invasões vikings teriam colocado fim a este período. Somente no século XII, quando, segundo a autora, ocorreu “o movimento intelectual mais poderoso que a Europa experimentou desde o século IX”31, os irlandeses, ao entrarem em contato com o renascimento continental, voltariam a ter alguma participação, adotando e adaptando histórias, visões, motivos literários, etc. Todavia, para ela, “nenhum irlandês produziu qualquer obra substancial que colaborasse com este desenvolvimento, como ocorrera no século IX”32. É notória na opinião da autora uma nostalgia pelo século IX, sendo os vikings os responsáveis diretos por colocar fim a este período de “desenvolvimento” e “explendor”, marcando o “fim de uma era”. 28 HUGHES, K. The Church in Early Irish Society. London: Methuen & Co. Ltd, 1966; HUGHES, K. op. cit., 1972. 29 HUGHES, K., op. cit., 1966, p. 197‒202. 30 HUGHES, K., op. cit. 1972, p. 301. 31 Ibid., p. 279. 32 Ibid., p. 280.

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Todavia, ainda na década de 60, a influência de MacNeill ainda se fazia sentir. Em uma das obras mais conhecidas sobre história geral da Irlanda, organizada pelos historiadores irlandeses Francis Xavier Martin, primeiro professor de História Medieval da University College Dublin, e Theodore William Moody, um dos pilares da historiografia irlandesa33, uma divisão cronológica um pouco semelhante à de MacNeill foi usada para narrar estes períodos históricos. Os capítulos da primeira parte desta obra foram definidos da seguinte maneira: “A Geographer’s view of Irish History”, “Prehistoric Ireland”, “Early Irish Society: 1st‒9th Century”, “The Beginnings of Christianity: 5th and 6th Centuries”, “The Golden Age of Early Christian Ireland: 7th and 8th Centuries”, “The Age of The Viking: Wars 9th and 10th Centuries”, “Ireland in the Eleventh and Twelfth Centuries”: c.1000‒1169”, “The Normans: Arrival and Settlement: 1169‒c.1300”, “The Medieval English Colony: 13th and 14th Centuries”34. Há uma “Pré-história” e logo a seguir, uma espécie de sociedade antiga, que aparece sob a forma “early”, mas que, ao mesmo tempo, ela também já se confunde com a “História do Cristianismo”. O leitor poderá observar que o período de tempo reservado T. W. Moody foi o fundador do The Ulster Society for Irish Historical Studies, Belfast, 1936. Junto com R. D. Edwards, que no mesmo ano havia fundado o Irish Historical Society em Dublin, criaram um periódico chamado Irish Historical Studies em 1938, no qual faziam parte do corpo editorial. Esta foi uma tentativa de agregar os pesquisadores da História da Irlanda e de produzir trabalhos de melhor qualidade acadêmica. Moody foi um pesquisador de grande influência em sua geração. BRADY, Ciaran. ‘Constructive and Instrumental’: The Dilemma of Ireland’s first ‘New Historians’. In: BRADY, C. (Ed.). Interpreting Irish History: the debate on historical revisionism, 1938‒1994. Dublin: Irish Academic Press, 1994. 34 MOODY, T. W. e MARTIN, F. X. The Course of Irish History. Cork: Mercier Press, 1967. Esta obra foi o resultado de uma série de programas sobre a história da Irlanda televisionados em 1966, e teve 15 impressões apenas entre 1967 e 1980. Após isso, ganhou uma nova edição revisada e aumentada em 1984, em 1993 comemorou sua 70ª edição e, por fim, a mais recente, que foi a que consultamos, se trata de uma edição revisada datando de 2001.

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a esta “primeira”, “primitiva”, “antiga” fase da sociedade irlandesa, ou qualquer outra palavra com a qual seja possível traduzir “early” para o português, ocupa do século I até o IX. Dentro deste recorte temporal, temos a chegada do cristianismo (séculos V e VI), a “era dourada” desta “Early Christian Ireland” (séculos VII e VIII) e seu colapso com as invasões vikings (séculos IX e X). Desta forma, encontramos mais ou menos desenhado nesta obra uma delimitação cronológica da História da Irlanda que mais se assemelha a idéia de uma “História Antiga”. Neste ínterim, entre o século I e o IX a “continuidade”, ou o fio condutor que os autores enfatizaram para justificar tal cronologia é a existência de uma “cultura celta irlandesa” que pode ser mais ou menos identificada a partir do século I e que permanece até o IX com a “interrupção” viking. Este é um recorte temporal delineado também numa história social, focada na organização da sociedade irlandesa em túathas35, a qual possuía uma cultura particular que se mesclou com a cultura e religião judaico-cristã introduzida no século V. Nesta obra, o recorte no século X é justificado através de uma mudança do centro de gravidade social e político do centro do país para a costa leste, para o mar da Irlanda, sendo este o principal efeito das incursões vikings36.

Túath, túatha, palavra irlandesa do gênero feminino. No Dictionary of the Irish Language: based mainly on Old and Middle Irish Materials – Compact Edition, publicado em Dublin em 1998, esse conceito é definido como: I- povo, tribo, nação; II- (a) país, território; II- (b – nas leis) pequeno reino, a unidade política e jurisdicional da Irlanda Antiga; III- o estado como o oposto de igreja: o corpo dos laicos; propriedade secular. Tradução livre. Havia alguns aspectos imprescindíveis para que uma unidade territorial fosse considerada uma túath: a presença/existência de um eclesiástico erudito, um líder de igreja, um poeta, e um rei. A vida da túath era centralizada ao redor de seu rei, todos os homens livres deviam lealdade direta a ele e deveriam lhe pagar impostos. KELLY, F. A Guide to Early Irish Law. 5ª ed. Dublin: Dublin Institute for Advanced Studies, 1988, p. 3‒4. 36 DE PAOR, Liam. The age of the Viking: Wars 9th and 10th centuries. In: MOODY, T. W. e MARTIN, F. X. op. cit. 1967, p. 80. 35

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Assim, os séculos paralelos ao que no continente, segundo as formas tradicionais, se considera como “Alta Idade Média” ou “Início da Idade Média”, são compreendidos como “Early Christian Ireland”, que parece ser uma “continuação”, uma “etapa” da “Early Irish Society”, só que na sua fase “cristianizada”. No quinto capítulo da obra os séculos VII e VIII representam o período de maior prosperidade desta “Early Christian Ireland”, pois foi quando houve uma considerável expansão e prosperidade dos monastérios, florescimento da arte cristã e grande produção escrita, cópias de textos bíblicos, hagiografias, penitenciais, etc., mas principalmente, quando as leis foram compiladas37. No entanto, esta obra não parece ter sido um trabalho uníssono, havendo espaço para vozes divergentes. No terceiro capítulo, F. J. Byrne38 explica que a Irlanda antes da era cristã era um país Celta e, quando o cristianismo chegou a terras irlandesas, os povos que viviam nesta parte da Europa tinham sido celticizados por completo, eles partilhavam uma cultura e uma língua em comum de matrizes célticas. A intenção do autor é mostrar que, embora a “Era heróica” tenha tido um fim, ela seria lembrada para sempre. Com isso, ele pretendia dizer que, mesmo depois do século V, houve uma permanência de valores célticos. Byrne apresenta, então, uma tentativa de reconstrução de uma sociedade irlandesa antiga, baseada nos valores tradicionais, resgatados a partir de obras como o épico Táin Bó Cuailgne, Book of Leinster e Lebor Gabála Érenn. Segundo o autor, os contos de Cú Chulainn e Conchobar Mac Nessa refletem uma situação histórica e que o estilo de vida dos

37 HUGHES, K. The Golden Age of Early Christian Ireland: 7th and 8th centuries. In: MOODY, T. W. e MARTIN, F. X., Ibid., p. 54‒66. 38 BYRNE, Francis John. Early Irish Society: 1st‒9th Century. In: MOODY, T. W. e MARTIN, F. X., Ibid., p. 25‒40. Byrne estudou Early Irish History sob os auspícios de Father John Ryan, sucessor de Eoin MacNeill. F. X. Martin e F.J. Byrne interesse em MacNeill é evidenciado na obra que eles editaram juntos: The scholar revolutionary: Eoin MacNeill, 1967‒1954, and the making of the new Ireland. New York: Barnes & Noble, 1973.

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heróis retratados nestas obras é exatamente o mesmo dos celtas da Gália, tal qual descreveu o grego Posidônio (século I, a.C.), o que também é muito semelhante à dos guerreiros da Ilíada de Homero e aos do épico da Índia antiga Mahabharata. Esta interpretação enfatiza a permanência dos valores célticos e mantém os holofortes sobre a continuidade. No capítulo subseqüente, Ó Fiaich39 apresenta uma interpretação diferente, enfatizando a chegada do cristianismo, ao invés de se concentrar nas permanências célticas. O vocabulário utilizado por ele ao longo de todo o capítulo é de origem eclesiástica. Notase uma preocupação maior com a ruptura. Talvez por isso, o autor caracterize de forma acentuada o começo da história irlandesa no século V da era cristã: “Dado que o historiador depende principalmente de documentos escritos para o seu conhecimento do passado, a história irlandesa propriamente dita deve começar com São Patrício, o autor dos documentos mais antigos escritos na Irlanda, dos quais se têm conhecimento”40. A tese principal de Ó Fiaich é que os elementos nativos e estrangeiros se fundiram em uma nova forma de sociedade totalmente singular, chamada por ele de “Christian culture”, que, após ter recebido muito da Europa continental desde a chegada de Patrício, agora estaria apta também a oferecer algo em retorno41. Esta afirmação é o fundamento sobre o qual está baseado o quinto capítulo, escrito pela já mencionada Kathleen Hughes42. Para esta escola historiográfica, o ano de 1169 também é considerado um marco importante, é ele que caracteriza o início de uma nova “era” na História da Irlanda. Com a invasão Normanda, temos uma preparação para o que então será classificado Ó FIAICH, Tomás Cardinal. The Beginnings of Christianity: 5th and 6th Centuries. In: MOODY, T. W. e MARTIN, F. X., Ibid., p. 41‒53. 40 Ibid., p. 41. 41 Ibid., p. 53. 42 HUGHES, K. The Golden Age of Early Christian Ireland: 7th and 8th centuries. In: MOODY, T. W. e MARTIN, F. X., Ibid., p. 54‒66. 39

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como “Medieval”. Está claro que, mais do que uma História dividida por períodos cronológicos, de acordo com a formatação tradicional recortada entre “Pré-História”, “Antiga”, “Medieval”, “Moderna” e “Contemporânea”, a História da Irlanda é uma História temática, ela é baseada em diversos temas que se mesclam uns com os outros, às vezes formando complexos emaranhados, de difícil entendimento ao pesquisador não familiarizado com a problemática. Muitos autores preferem não delimitar suas obras sob a forma “Idade Média”, mas como “Irlanda antes dos vikings”43, “Irlanda antes dos normandos”44, etc. Dáibhi Ó Cróinín, atualmente um dos mais renomados historiadores irlandeses, professor da National University of Ireland, Galway, e membro da Royal Irish Academy, tem publicado recentemente importantes obras gerais sobre a história Medieval Irlandesa. Em uma de suas publicações, ele intitulou o primeiro capítulo como “The beginnings of Irish history” (o começo da história irlandesa), cuja temática é exatamente a introdução do cristianismo na Irlanda45. O mesmo historiador foi editor do primeiro volume de uma coleção intitulada “A New History of Ireland”46 (Uma nova História da Irlanda), contando com a colaboração de vários autores das mais diferentes nacionalidades e áreas de estudo. Neste volume, eles abordaram o que foi intitulado como “Prehistoric and Early Ireland” (Irlanda Pré-histórica e Antiga), retratando um período

43 MacNIOCAILL, Gearóid. Ireland before the Vikings. Dublin and London: Gill & MacMillan Ldt., 1972. (The Gill History of Ireland, v. 1). 44 Ó CORRÁIN, Donncha. Ireland before the Normans. Dublin: Gill & MacMillan Ldt., 1972. (The Gill History of Ireland, v. 2). 45 Ó CRÓINÍN, D. op. cit., 1995, p. 14‒41. 46 Ó CRÓINÍN, D. (ed.) A New History of Ireland: prehistoric and early Christian Ireland. Oxford: Oxford University Press, 2005, (A New History of Ireland, v.1) Esta coleção foi organizada sob os cuidados da Royal Irish Academy, uma publicação de caráter enciclopédico distribuída em nove volumes, com uma média de 1200 páginas cada um. Cabe ressaltar, que o primeiro volume desta coleção, editado por Ó Cróinín foi o último a ser publicado, apesar de se o primeiro na sequência cronológica.

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que vai de 7000 antes de Cristo até 1169, data da invasão AngloNormanda na Irlanda. Nesta obra, o fator primordial para o estabelecimento desta periodização foi o aparecimento da escrita no século V, ou seja, temos aqui mais um exemplo de trabalho que classifica o período cristão da Irlanda como o período histórico, divergindo das tentativas de MacNeill e se assemelhando mais a Stokes, Hughes e Ó Fiaich. Desta maneira, segundo os padrões classificatórios estabelecidos nesta obra, a História da Irlanda está claramente dividida em “antes” e “depois” de Patrício, sendo este considerado o introdutor, ou pelo menos um dos responsáveis, da escrita na Ilha47. Já o segundo volume desta coleção tem como título “A New history of Ireland: Medieval Ireland 1169‒1534” (Uma Nova História da Irlanda: A Irlanda Medieval 1169‒1534)48, ou seja, de acordo com os princípios adotados nesta obra, teríamos uma “temporalidade continental” e uma “temporalidade irlandesa”. A primeira vai ao encontro das classificações que comumente utilizamos no Brasil para pensar a história da Europa, que entende que do século V ao XV temos o período chamado de “Medieval”. A segunda entende que a “Idade Média” da Irlanda só começa no ano 1169, assim, antes deste período, o que temos é uma “Early Ireland”, com o desenvolvimento do cristianismo e da escrita. Assim como acontece na obra de Moody e Martin, a invasão normanda no século XII é de fundamental importância para o sistema de periodização desenvolvido por Ó Cróinín. A partir

Nas próprias palavras de Thomas Charles-Edwards, que escreveu a introdução deste primeiro volume: “Este (volume) é dividido em duas partes, distintas desde o começo da Idade Média como pré e pós Patrick. Fazer esta divisão não é focar na figura do apostólo dos irlandeses, assim propagada desde o século VII, como o principal missionário da ilha; o ponto é simplesmente que com Patrício, nós começamos a ter textos escritos na Irlanda”. Tradução livre. CHARLES-EDWARDS, T. ‘Introduction’, In: Ó CRÓINÍN, D. op. cit., 2005, p. lvii. 48 COSGROVE, Arts (ed.) A New history of Ireland: Medieval Ireland 1169‒1534, Oxford : Clarendon, 1987. 47

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desta data temos uma “Idade Média”. Parece que tudo aquilo que antecede este fenômeno, em um recuo que vai até o aparecimento da escrita (ou pelo menos dos primeiros textos), com o cristianismo, no século V, é classificado como “Early”. No entanto, a fase entre os séculos V (século da introdução do cristianismo e da escrita) e o século IX (da chegada dos vikings) é outro “early” período, o “early Christian Ireland”. Compreender desta maneira a história irlandesa, pensá-la em seu contexto insular, mas, levando em consideração também, simultaneamente, um contexto europeu continental, significa trabalhar com duas concepções temporais distintas ao mesmo tempo e tentar condensar duas formas e classificações históricas em uma só narrativa. Entretanto, isto nos impõe uma nova questão: se a história da Irlanda antes da chegada da religião cristã é uma “Pré-história”, como o período após o cristianismo pode ser uma “Idade Média”? “Média” por quê? Se esta não é uma “Idade” que está no meio de outras “Idades”. Seria esta uma “Idade Média” apenas por analogia com a história dos países europeus vizinhos que estavam vivendo a “Idade Média”? Ou seria legítimo falar em uma “Idade Média” irlandesa somente após a chegada dos Normandos? Então, o período da história irlandesa compreendido entre os séculos V e IX (invasões vikings) ou XII (invasão normanda) é “História Antiga”? Caso a resposta a esta última questão seja positiva, o problema agora é outro. Considera-se que o “mundo antigo” ruiu com a “queda” do Império Romano do Ocidente no século V, mas, com relação à “Antiguidade” Irlandesa, no mesmo V ela está apenas começando? Um dos aspectos distintivos da Irlanda já ressaltados neste trabalho é que, se comparada aos países europeus vizinhos, ela nunca fez parte da geopolítica romana. Aplicar-se-ia para este caso, então, o conceito de “Antiguidade Tardia”? De acordo com Edward James, que é um medievalista inglês especialista em história da Inglaterra e da Gália e atual chefe do departamento de História da University College Dublin, o concei-

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to de “Antiguidade Tardia” não é valido, ou facilmente aplicável à sua região geográfica objeto de pesquisa, Gália e Inglaterra49. Mas, sobre a aplicabilidade desse conceito à Irlanda ele nada comenta. Também não conseguimos identificar nenhum trabalho que tenha analisado a aplicabilidade do conceito de “Antiguidade Antiga” para o caso irlandês, pois provavelmente não é de fato o mais recomendável para o caso50. O que podemos perceber é que Ó Cróinín e os demais autores da coleção estão considerando o seguinte recorte: “Pré-História”, “Early Ireland” (do século V ao ano 1169) e Irlanda Medieval (após 1169). Para os irlandeses, ou pesquisadores da história da Irlanda, essas questões não parecem ser um grande problema, debates desta natureza não parecem ser muito freqüentes e as publicações no assunto não são tão abundantes quanto, por exemplo, as que concernem ao conceito de “Antiguidade Tardia”. Quando da escrita deste trabalho, encontramos poucos autores que apresentaram uma reflexão explícita a este respeito, de tal forma que um dos maiores entraves a esta tentativa de sistematização do conceito foi a falta de material de apoio e de uma bibliografia especializada. Para os irlandeses, esse período cronológico ser “Early Christian Ireland” e o pesquisador deste período histórico um “medievalista”, mesmo sem uma “História Antiga” propriamente dita, não apresenta contradição ou complexidade entre essas afirmativas. Outra referência bibliográfica indicada nos cursos de graduação em Universidades Irlandesas é a obra de Michael Richter.

JAMES, E. op. cit., p. 20‒30. No entanto, como temos enfatizado, quando a história irlandesa é analisada em comparação à história continental, encontramos autores recorrendo à esses conceitos. Em RICHTER, M. Ireland and her neighbours in the seventh century. Dublin: Four Courts Press, 1999, o autor afirma que a literatura Hiberno-latina e a sociedade que a produziu são o mais importante link entre a Antiguidade Tardia e a Idade Média, p.15. 49 50

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Nela, o autor recorta a História Medieval irlandesa da seguinte maneira: I‒ Early Ireland, período anterior ao ano 500 d.C., que talvez possa ser compreendido por nós como uma “Antiguidade”; II– Primeira parte da Idade Média, entre 500 e 1100 d.C., período histórico que abrange em sua obra basicamente a história da Igreja na Irlanda e se encerra com o fim da “era” viking; III‒ Segunda parte da Idade Média, entre 1100 e 1500, etapa da história Irlandesa que para o autor se iniciaria com a fase da dominação estrangeira na Irlanda51. Este trabalho evidencia, portanto, uma tentativa de narrar a história da Irlanda de acordo com os recortes cronológicos clássicos, “Pré-história”, “Antiguidade”, alta e baixa “Idade Média. Devido a esses desafios, historiadores ao longo das décadas têm buscado novos conceitos, novos recortes temporais, como “Antiguidade Tardia” e “Early Christian Ireland”, que apesar de serem categorias úteis de pensamento, continuam a serem barreiras cronológicas artificiais. Por isso, é comum ver o estudioso da história da Irlanda oscilar entre o uso destes conceitos. Em uma mesma obra escrita ou apresentação oral, ora menciona-se “Early Christian Ireland” ou “Early Medieval Ireland”, quando mencionando aspectos da história irlandesa, e ora menciona-se “Antiguidade”, “Antiguidade Tardia”, ou “Idade Média” quando se fala sobre o continente. A explicação para isso parece-nos evidente. Apesar das especificidades da história Irlandesa, essa história guarda similitudes com a história de regiões vizinhas no mesmo período histórico. Em outras palavras, parece que os pesquisadores se detêm ao raciocínio de que durante o “Early Christian Ireland” a Irlanda era também “Medieval” porque o continente “Europeu” era “Me-

51 RICHTER, Michael. Medieval Ireland: the enduring tradition. Dublin : Gill & Macmillan, 1988.( New history of Ireland , v. 1) Esta obra foi originalmente publicada em alemão: RICHTER, Michael. Ireland im Mittelalter: kultur und Geschichte. Stuttgart, Berlin, Kln, Mainz: Kohlhammer, 1983.

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dieval”. Semelhantemente aos reinos cristãos da Europa, a Igreja cristã expandia-se na Irlanda, o latim era usado para a escrita eclesiástica, os líderes religiosos dessas variadas regiões comunicavam-se, quer seja pela visita física ou pelo envio de cartas, os concílios continentais circulavam na Irlanda e os penitenciais Irlandeses no Continente, etc52. Devido a esses pontos de contato com a “cultura” européia continental da época, a história da Irlanda entre os séculos V e XV tem sido considerada “Medieval”. Porém, afirmar que “meio” é esse e se houve na Irlanda uma “Antiguidade” é um problema difícil de resolver. Portanto, como temos observado paralelamente ao recorte “Early Christian Ireland” há o recorte “Early Irish Society”, “Early Ireland”, e “Early Medieval Ireland”, este último, para alguns pesquisadores, estaria circunscrito entre os anos 400 e 120053. Diferentes autores oscilam entre estas três opções. Mas, o que então diferenciaria estas fases? Por que os irlandeses tiveram um “early” período dentro de outro “early” período? De acordo com Moody, Martin et. al., o “Early Christian Ireland” seria a segunda etapa dentro de “Early Irish Society”54 e não a primeira dentro Ó CRÓINÍN, D. Op. cit., 1995, p. 213‒214, e Ó CRÓINÍN, D., Op. cit., 2005, 371‒404. Nestas obras o autor analisa a literatura Hiberno-latina e as conexões entre esta a produção escrita da Espanha Visigótica. Sobre o intercâmbio de material escrito entre a Irlanda e o continente ver também os seguintes trabalhos: HUGHES, K. “Synodus II S. Patricii”. In: O' MEARA, J. J.; NAUMANN, B. (Ed.). Latin Script and Letters A.D. 400-900: Festschrift presented to Ludwig Bieler on the occasion of his 70th birthday. Leiden: E.J. Brill, 1976. p. 141-147. CHARLESEDWARDS, T. M. “The Penitential of Columbanus”. In: LAPIDGE, M. (ed.). Columbanus: studies on the Latin writings. Woodbridge: Boydell Press, 1997. p. 217‒239. (Studies in Celtic history). WALSH, M. Some remarks on Cummian's Paschal Letter and the Commentary on Mark ascribed to Cummian In: NÍ CHATHÁIN, P.; RICHTER, M. (ed.). Ireland and Christendom: the bible and the missions. Stuttgart: Klett-Cotta, 1987. p. 216‒229. Sobre o ideal de peregrinatio que guiou os irlandeses ao exílio voluntário fora da Irlanda e os puseram em contato com a cultura cristã insular e continental ver também RICHTER, M. Op. cit., 1999, 53 Ó CRÓINÍN, D. Op. cit., 1995. 54 MOODY, T. W. e MARTIN, F. X. Op. cit., 1967. 52

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de “Early Medieval Ireland” como para Ó Cróinin55. Quais perspectivas historiografias acarretaram nestas diferenças nos recortes cronológicos? Será que alguns inserem “Early Christian Ireland” dentro de “Early Irish Society” porque na visão destes estudiosos o cristianismo pouco permeou e influenciou a sociedade “antiga” irlandesa, havendo, portanto mais “sobrevivências” e “continuidades” do que rupturas? Seguiu então o segundo grupo de pesquisadores o raciocínio contrário? Teriam eles avaliado que o processo de cristianização que a sociedade irlandesa sofreu a diferenciara consideravelmente de seu passado pagão e heróico e, portanto, foi este fase para eles como o começo de uma nova história, o do “Early Medieval Ireland”? Essas podem ser talvez hipóteses possíveis. De fato, a própria historiografia recente já identificou dois grupos e duas leituras bastante distintas entre os estudos sobre a História da Irlanda, os “nativistas” e os “revisionistas”. Para os nativistas, a literatura medieval irlandesa foi o resultado da coleta de dados da tradição oral “nativa” ou “secular”, ou seja, pré-cristã, e estava fundamentada na herança indo-européia irlandesa. Para esta vertente, o cristianismo foi, portanto, relativamente sem importância para os compiladores das leis irlandesas nos séculos VII e VIII e para os autores das sagas irlandesas. Os dois principais representantes deste grupo são: James Carney, Rudolf Thurneysen. Esta tendência historiográfica foi predominante principalmente entre as décadas de 1950 e 7056. Na oposição desta visão, na década de 1970, formou-se um grupo de especialistas que ficaram conhecidos como os revisionistas. Para este grupo, a classe erudita eclesiástica inspirada pelo modelo velho testamentário e pelos escritos da patrística transformou a sociedade irlandesa. Os principais expoentes desta ten-

Ó CRÓINÍN, D. Op. cit., 1995. Ó CRÓINÍN, D., Op. cit., 2005. McCONE, Kim. Pagan Past and Christian Present in Early Irish Literature. Maynooth: An Sagart, 1990, p. ix. 55 56

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dência são: Kim McCone e Donnachadh Ó Corráin. O principal foco de publicação de tal ideologia é a revista Peritia — Journal of the Medieval Academy of Ireland, editada por Ó Corráin e Ó Cróinín, o que justifica o recorte deste último enfatizando o começo da história irlandesa no século V57. Desde então, pesquisadores tendem a ver a existência de um diálogo e uma integração maior entre o cristianismo e o passado pré-cristão, tanto sob os aspectos religiosos quantos aos culturais, sociais, econômicos e políticos58 . Outro questionamento dos revisionistas tem sido o impacto causado pelas invasões vikings, para eles exagerado por Hughes e outros59. A datação elaborada por ela, no entanto, tem sido mantida por outros autores em publicações mais recentes, como, por exemplo, Thomas Charles-Edwards, professor da Universidade de Oxford. Em sua obra Early Christian Ireland, o autor nos oferece uma narrativa da história do povo irlandês, tanto dos que habitaram a Irlanda quanto dos irlandeses que viveram no continente Europeu, como Columbanus por exemplo. A proposta apresentada por ele é introduzida como sendo uma “história da Irlanda entre o séculos IV e o IX, do começo do período histórico até os vikings”60. Recorte idêntico ao de Hughes. Apesar da inevitável ênfase na Igreja na Irlanda, o autor igualmente enfatizou a estrutura social e política da Irlanda, baseada nas túatha. Ele traçou de forma bastante minuciosa a história de alguns destes povos, devido à sua importância na escrita da história do período, como, sobretudo, a ascensão dos Uí Néill como principal

Para informações sobre a revista: http://www.ucc.ie/peritia/, site acessado em 20 de março de 2011. 58 McCONE, op. cit., p. ix, 256‒257. JASKI, B. Early Medieval Irish Kingship and the Old Testament. Early Medieval Europe, v. 7, p. 329‒344, 1998. JOHNSTON, Elva. The ‘pagan’ and ‘Christian’ identities od the Irish female saint. In: ATHERTON, Mark (Ed,). Celts and Christians: New approaches to the religious traditions of Britain and Ireland. Cardiff: University of Wales Press, 2002. 59 Ó CORRÁIN, D. op. cit., 1972, p. 82‒89. 60 CHARLES-EDWARDS, T. M. Op.Cit.,2000, p. I. 57

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agente de poder político. Em sua conclusão, Charles-Edwards relativizou o impacto das invasões vikings, afirmando que o seu real efeito é difícil de medir. Todavia, ele acredita que o século IX foi um período de mudanças, e este fornece um apropriado encerramento do “Early Christian Ireland” e que o tema central desta história é a criação e o desenvolvimento dentro da Irlanda de uma vigorosa variedade local de Cristandades latinas61. Richard Sharpe foi um dos poucos historiadores que encontramos até o presente momento criticando os recortes radicais da história irlandesa. Em um artigo sobre a função pastoral da Igreja na Irlanda62, ele comenta o fato de que a problemática das cronologias da História da Irlanda tem sido negligenciada pela historiografia. Ele ressalta que como por muito tempo se pensou sobre a igreja irlandesa como sendo simplesmente “monástica” até o século XII, os avanços nos estudos sobre o serviço pastoral da Igreja irlandesa foram assim inviabilizados. Segundo ele, o século XII tem funcionado como uma barreira na história da Igreja na perspectiva de historiadores e arqueólogos, portanto, os especialistas se dividiram entre os que estudam a Igreja antes ou depois do XII. Sharpe critica a visão de que o século XII representou um completo novo começo na história da Igreja irlandesa, com uma organização completamente diferente, inviabilizando qualquer estudo que pensasse uma continuidade e que acessasse fontes produzidas no pós XII para compreender a igreja irlandesa no pré XII63. De acordo com Sharpe, esta visão de que a igreja da Irlanda era marcada por uma antítese era predominante desde a década de Ibid. p. 598‒599. SHARPE, Richard. “Churches and communities in early medieval Ireland: towards a pastoral model”. In: BLAIR, J. e SHARPE, R. (ed.) Pastoral care before the parish. Leicester, London and New York: Leicester University Press, 1992, p. 81‒109. Richard Sharpe é professor da Faculdade de História da University of Oxford associado ao centro de estudos sobre a Antiguidade Tardia e a Idade Média, sendo as suas principais áreas de interesse Inglaterra, Irlanda, Escócia e Gales. 63 Ibid., p. 86. 61 62

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1840. Para os que assim pensavam a Igreja estabelecida por Patrício no século V era episcopal e depois, entre os séculos V e VII, esta rede episcopal se transformou rapidamente em federações monásticas, permanecendo assim até o século XII. Em um terceiro momento, após o XII, a Igreja tornou-se episcopal novamente, quando os reformadores reinventaram as dioceses64. Todavia, Sharpe, Cólman Etchingham e outros têm debatido esta interpretação veementemente65. Podemos por ora responder a todos esses questionamentos aqui levantados simplesmente afirmando que pouco se tem discutido a cronologia que se consolidou da história dessa ilha entre os séculos XIX e o XX, quer seja por pesquisadores irlandeses ou por pesquisadores que estudam a Irlanda. No entanto, parece ser entre os arqueólogos que estas questões cronológicas têm causado maior inquietação. Quando observando arqueologicamente a Irlanda, parece que tais recortes e rupturas na história da Irlanda parecem não sustentar-se. Um jovem pesquisador irlandês, Russell Ó Ríagáin, em sua dissertação de mestrado sobre a arqueologia do colonialismo na Irlanda medieval, elaborou questionamentos que parecem bastante frutíferos neste sentido66. Segundo ele, a historiografia irlandesa é tanto nacionalista como pós-colonial, sendo estes problemas dos recortes cronológicos da história da Irlanda fruto de leituras nacionalistas67. Russell acusa a historiografia irlandesa de

Ibid., p. 98‒99. Para maiores detalhes sobre as discussões sobre o modelo interpretativo da Igreja denominado “monástico” e criticado por Sharpe ver: HUGHES, K. Op. Cit.,1966; HUGHES, K. Op. Cit.,1972. Hughes foi a principal historiadora na elaboração desta interpretação, ao ponto de que às vezes este modelo é denominado “huguesiano”. Para acompanhar as críticas as principais obras são: SHARPE, R. ‘Some problems concerning the organization of the church in early medieval Ireland’ Peritia vol.3, 1984, p. 230‒270; e ETCHINGHAM, C. Church Organization in Ireland A.D. 650 to 1000. 2nd. ed. Maynooth: Laigin Publications, 2002. 66 Ó RÍAGÁIN, Russell. The archaeology of Colonialism in Medieval Ireland: shifting patterns of Domination and Acculturation. Dissertação de Mestrado defendida na University of Cambridge, 2010. 67 Ibid., p. 14. 64 65

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se negar a estudar o período de ocupação estrangeira da Irlanda adequadamente por ser uma história que “não os pertence”, que não os interessa, desta forma, olhando somente para o passado pré-invasões68. A principal crítica de Russell, embasada teoricamente nas reflexões elaboradas por Norbert Elias, à historiografia anglo-irlandesa é que os historiadores estão sempre procurando por “começos” e “marcos zero” na História69. No entanto, apesar das críticas de Russell serem pertinentes, ele recorre como solução a este problema ao conceito de “longa duração”70. Embora este conceito faça bastante sentido dentro do estudo que Russell elaborou, devemos ressaltar que trata-se de um trabalho vinculado a um departamento de arqueologia, e, talvez por isso, o autor não leve em consideração as diversas críticas feitas pela historiografia mais recente ao termo em questão. Pensando sobre as questões apresentadas por Russel, e voltando também às criticas feitas por Richard Sharpe, podemos perceber que a história da Irlanda tem sido marcada ou por leituras que vêem rupturas drásticas em certos momentos desta história, causando a sua fragmentação, ou por outras que exaltam ou difamam certas partes deste passado. Quer seja pelo nacionalismo irlandês ou a crítica a este tipo de posicionamento quer seja pela exaltação da religiosidade cristã, a história irlandesa tem sido pintada tendenciosamente. Apenas agora, em princípios do século XXI, essas interpretações ficam menos nubladas aos olhos dos pesquisadores. Autores estes que, de igual modo, não estão livres de se asujeitarem às influências dos olhares e leituras propagadas

Ibid., p. 15‒16. Ibid., p. 11. 70 Ibid., p. 12. 68 69

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em seu próprio tempo. Possivelmente, novos problemas serão colocados em pauta e, futuramente, estes trabalhos também precisarão de uma revisão, pois este é o movimento constante das pesquisas históricas. Não é possível fazer referência alguma ao passado sem o uso de “formas” que sejam capazes de sistematizar fenômenos temporais específicos. Devido à ausência de termos mais apropriados, os conceitos e recortes temporais aqui analisados, apesar de problemáticos, ainda se fazem necessários. No entanto, parece-nos que dada à especificidade das conjunturas irlandesas, o uso do termo “Early Christian Ireland” para os períodos compreendidos entre os séculos V e IX é mais adequado do que a denominação “Alta Idade Média” irlandesa visto que, devido à dificuldade de definir o que é “Antiguidade” na Irlanda, o termo “medievo” para o caso irlandês é no mínimo complexo.

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