Educação ambiental e sustentabilidade ecológica na universidade

August 11, 2017 | Autor: Shaji Thomas | Categoria: Environmental Education, Sustainable Development
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REVISTA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO

ISSN 1518-2290 Belém

v.11

n.22

p. 1-206

jan./dez.

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REVISTA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO c 2009, UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA

EXPEDIENTE EDIÇÃO: Editora UNAMA RESPONSÁVEL: João Carlos Pereira SUPERVISÃO: Helder Leite NORMALIZAÇÃO: Maria Miranda FORMATAÇÃO GRÁFICA: Elailson Santos REVISÃO DE TEXTO: Noely Mesquita IMPRESSÃO:

ENDEREÇO PARA CONTATO Universidade da Amazônia - UNAMA Centro de Ciências Humanas e Educação - CCHE Avenida Alcindo Cacela, 287 CEP: 66060-902 - Belém-Pará Fone (91) 4009-3186 e-mail: [email protected]

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Catalogação na fonte www.unama.br T829t Trilhas: Revista do Centro de Ciências Humanas e Educação - Belém: UNAMA, v. 11, n. 22, 2009. 206 p. ISSN: 1518-2290 1. UNAMA - Educação Superior. 2. Pesquisa Social. 3. UNAMA - Periódicos. CDD: 050

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ISSN: 1518-2290

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SUMÁRIO EDITORIAL .................................................................................................... ......................................... 5 A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS COMO PONTO DE PARTIDA NAS AULAS DE MATEMÁTICA ....................... 7 Pedro Franco de Sá A (SEGUNDA) AQUISIÇÃO LINGUÍSTICA NO SÉCULO XXI: UMA VISÃO SOCIOLINGUÍSTICA ..................... 25 Jorge Haber Resque ACAUÃ O LENDÁRIO AMAZÔNICO E SUAS INTERSEÇÕES COM A PSICANÁLISE ..................................... 37 Maria do Rosário de Castro Travassos, Alex Wagner Leal Magalhães e Elisabeth Samuel Levy AS TRILHAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA – UNAMA: CONSELHOS ESCOLARES .......... 47 Maria das Graças da Silva Lima e Sheila Patrícia Santos da Silva BREVES REFLEXÕES SOBRE O FUNCIONAMENTO DO SINDICATO NA SOCIEDADE BRASILEIRA ............... 65 Ariolino Neres Souza Junior CAPTURANDO E DISCIPLINANDO O CORPO INFANTIL .......................................................................... 73 Susanna Dopazo de Vasconcellos EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA NA UNIVERSIDADE ..................................... 83 Carlos Jorge Paixão e Shaji Thomas ENSINO DE BIOLOGIA E AVALIAÇÃO: ESTUDO QUANTITATIVO SOBRE AS REFERÊNCIAS DE ALUNOS E PROFESSORES DE BELÉM-PARÁ ....................................................................................... 95 Carlos Alberto Machado da Rocha, Henac Almeida da Conceição e Fabrício Lemos de Siqueira Mendes INTERTEXTUALIDADE: UMA LIGA EXTRAORDINÁRIA ........................................................................... 107 Ana Conceição Borges de Oliveira O ENSINO DE HISTÓRIA E SUA INTERFACE COM OS PROCESSOS DE LEITURA ....................................... 131 Cíntia Maria Cardoso

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ONTOLOGIA DO “SER VELHO” ........................................................................................................... 151 Denison Martins dos Santos e Jaqueline Tatiane da Silva Guimarães UM OLHAR A PARTIR DA SEMIÓTICA DE ALGIRDAS JULIEN GREIMAS SOBRE UM POEMA VISUAL DE MAX MARTINS ............................................................................................... 161 Lenilde Andrade Pinheiro ARTICULAÇÃO E DESARTICULAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO: AS IDEIAS DE DAVID HARVEY E UM DIÁLOGO POSSÍVEL COM A PSICOLOGIA DO TRABALHO .............. 175 Eliana Cavalcante Maués Santos CONFERÊNCIA GUIA DE LEITURA DAS CARTAS DO PE. ANTONIO VIEIRA (1626-1697)................................................. 185 João Adolfo Hansen

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Editorial

M

anter um periódico que tem como objetivo contribuir com a divulgação da produção acadêmico-científica de um significativo grupo de professores e estudantes que, no cotidiano de suas instituições têm a preocupação de produzir conhecimento em suas áreas de interesse é um trabalho árduo, mas altamente gratificante. É por isso que a regularidade da publicação tem que ser observada para que se possa, efetivamente, cumprir com o objetivo proposto, pois só assim poderemos realmente contribuir para a divulgação da produção de nossos pares e estudantes. Nesta perspectiva, este número interrompe, provisoriamente, a longa tradição da Revista Trilhas de publicar dois números a cada ano, sendo um por semestre. Problemas operacionais que esperamos sejam logo sanados, nos levam a partir deste número a publicar um único volume anual. Assim, este número corresponde ao ano de 2009, com um significativo atraso, mas, com certeza não menos importante e de leitura atraente. Por certo, tão logo sejam vencidas as dificuldades que têm nos impedido de cumprirmos com nossa tradição, voltaremos a publicar os dois números anuais com os quais nossos leitores têm se acostumado. Este exemplar é composto de treze artigos e um texto apresentado pelo professor João Adolfo Hansen, no XIV Fórum Paraense de Letras desta Universidade da Amazônia, realizado em setembro de 2008. O artigo A resolução de problemas como ponto de partida nas aulas de Matemática, do professor Pedro Franco de Sá, texto inicial deste número, aborda questões inerentes ao ensino e aprendizagem da Matemática como disciplina que perpassa toda a vida do estudante e apresenta sugestões e exemplos para procedimentos, usando a resolução de problemas como ponto de partida nas aulas da disciplina. Em A (segunda) aquisição linguística no século XXI: uma visão sociolinguística, Jorge Haber Resque discute como os conceitos da norma culta interferem na aquisição da segunda língua e seus efeitos sobre a produção do discurso escrito na língua de chegada. Maria do Rosário de Castro Travassos, Alex Wagner Leal Magalhães e Elizabeth Samuel Levy realizam no artigo “Acauã, o lendário amazônico e suas interseções com a Psicanálise”, um estudo da obra “Contos Amazônicos”, de Inglês de Souza, que aborda aspectos da região amazônica e suas manifestações culturais. A participação nos Conselhos Escolares de escolas públicas de Belém é o foco do artigo As trilhas de um projeto de extensão universitária – Unama: Conselhos Escolares, de Maria das Graças da Silva Lima e Sheila Patrícia Santos da Silva. Em Breves reflexões sobre o funcionamento do Sindicato na sociedade brasileira, Ariolino Neres Sousa Júnior trata do funcionamento do Sindicato, observa seu comportamento antes e depois do surgimento da CLT e reflete a unidade sindical e sua forma de atuação. Já Suzanna Dopazo de Vasconcellos, em Capturando e disciplinando o corpo infantil, busca analisar

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e entender, sob o viés dos aportes teóricos de Goffman e Foucault, como se dá a captura e disciplinarização dos corpos infantis, praticados nas escolas de hoje e de ontem. Discutindo uma temática de muita relevância não só para a Academia como para todos nós habitantes do planeta Terra, Carlos Jorge Paixão e Shaji Thomas, objetivam no artigo Educação ambiental e sustentabilidade ecológica na Universidade, explicitar aspectos relativos à educação ambiental, focando em elementos de sua trajetória histórica. Com a afirmação de que “apesar de ser um problema antigo, parece não haver ainda uma cultura geral de avaliação com o mesmo nível de desenvolvimento”, o artigo Ensino de Biologia e Avaliação: estudo quantitativo sobre as preferências de alunos e professores de Belém-Pará mostra os parâmetros eleitos como os mais importantes por educadores e educandos, como resultado de estudos realizados por Carlos Alberto Machado da Rocha, Henac Almeida da Conceição e Fabrício Lemos de Siqueira Mendes, seus autores. Ana Conceição Borges de Oliveira apresenta em seu artigo Intertextualidade: uma liga extraordinária, um estudo sobre a tessitura do texto fílmico A Liga Extraordinária, de Stephen Norrington. Ao trazer uma reflexão sobre as dificuldades que muitos alunos têm para a compreensão dos fatos e eventos históricos, Cíntia Maria Cardoso em seu artigo O ensino de História e sua interface com os processos de leitura, mostra como a Lingüística pode contribuir para a diminuição dessas dificuldades. A análise do entendimento e concepção do “ser velho”, a partir de uma perspectiva ontológica, em que as discussões teóricas e metodológicas se pautam em Karl Marx e Jean Paul Sartre, é o tema principal do artigo Ontologia do “ser velho”, de Denílson Martins dos Santos e Jacqueline Tatiane da Silva Guimarães. O artigo de Lenilde Andrade Pinheiro Um olhar a partir da semiótica de Algirdas Julien Greimas sobre um poema visual de Max Martins, aborda a trajetória do poeta paraense que se destaca por apresentar uma obra poética compromissada com a literatura brasileira de alta qualidade. E por último, mas não menos importante, Eliana Cavalcante Maués Santos, em seu artigo Articulação e desarticulação do tempo e do espaço: as ideias de David Harvey e um diálogo possível com a Psicologia do trabalho aborda as contribuições de David Harvey acerca das mudanças ocorridas na sociedade contemporânea a partir das consequências da pós-modernidade. Temos certeza de que os textos deste número irão contribuir significativamente para a aprendizagem de novos saberes, pois este é um dos objetivos da Revista TRILHAS. Esperamos que nossos leitores aprofundem os debates iniciados com os textos e possam, a partir das leituras, encontrar novos caminhos para prosseguir na busca do aprendizado cotidiano e desenvolver novos conhecimentos. Esta é a nossa expectativa! O CONSELHO EDITORIAL

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Artigo A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS COMO PONTO DE PARTIDA NAS AULAS DE MATEMÁTICA Pedro Franco de Sá*

RESUMO Este artigo tem como objetivo apresentar a resolução de problemas como ponto de partida em aulas de matemática. Inicialmente, apresenta as concepções, o objetivo, o processo e o ponto da partida da resolução de problema, bem como, as filosofias pessoais absolutista, absolutista progressiva e falibilista, da matemática e as suas correspondentes interpretações de resolução de problema e as etapas da resolução de um problema. Aborda duas propostas de explicação da produção do conhecimento matemático, uma baseada em quatro tipos de abstração empírica, uma empírica e três reflexivas; e outra baseada nas etapas de interiorização, condensação e reificação. Além disso, são apresentadas sugestões, por meio de exemplos, de como proceder numa aula de Matemática usando a resolução de problemas como ponto de partida no Ensino Fundamental e no Ensino Superior. PALAVRAS-CHAVE: Resolução de Problema. Concepções da Resolução de Problema. Resolução de Problema como Ponto de Partida.

SOLVING PROBLEM AS A STARTING POINT IN A MATHEMATICS CLASS ABSTRACT This article aims at presenting the solving problem as a starting point to the Mathematics classes. Initially, it presents the conceptions, the objective, the process and the starting point to problem solution, the personal philosophies, absolutist, progressive absolutist and falibilist, of Mathematics and their correspondent interpretations of problem solution and the stages of a problem solution. It approaches two proposals of explanation of the mathematical knowledge production, one based on four types of empirical abstraction, one empirical and three reflexives; and other based on the stages of interiorization, condensation and reification. Moreover, *Professor da UNAMA, UEPA, Mestre em Matemática, Doutor em Educação, líder dos Grupos de Pesquisa em Ensino de Matemática da UNAMA e Cognição e Educação Matemática da UEPA, docente do PPGEd-UEPA e docente da Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática. - [email protected]

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suggestions are presented, by means of examples, of how to proceed in a Mathematics class using the solving problem as a starting point both in the Elementary School and in the College. KEYWORDS: Solving Problem. Solving Problem Concepts. Solving Problem as a Starting Point. 1 INTRODUÇÃO Os estudos acerca da resolução de problemas têm oferecido inúmeras contribuições em diversas áreas de conhecimento como Psicologia, Psicopedagogia, Educação, Ciências da Computação, Engenharia de Produção e Educação Matemática, entre outras. Para a Educação Matemática os estudos sobre resolução de problemas têm permitido a compreensão de fatores importantes que contribuem para o bom desempenho docente na tarefa de desenvolver a habilidade de resolver problemas dos educandos. No ano de 1980 o National Council of Teachers of Mathematics (Conselho Nacional de Professores de Matemática/ Estados Unidos)- NCTM- lançou sua agenda recomendando que a resolução de problemas fosse a grande ênfase do ensino de Matemática. Nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) brasileiros para o ensino de Matemática encontramos a expressão resolução de problemas em diversos momentos, como por exemplo, nos objetivos da Matemática no ensino fundamental e como recurso de ensino. A posição adotada pelo NCTM acerca de importância da resolução de problemas no ensino de matemática teve uma influencia enorme sobre o ensino de matemática no resto do mundo. Segundo Pozo et al (1998) a resolução de problemas não deve ser vista como atividade específica de qualquer área do conhecimento. Entretanto, para a maioria das pessoas, a expressão resolução de problemas quase sempre está relacionada com questões de matemática. Neste artigo temos como objetivos apresentar: • resultados de estudos acerca da resolução de problemas que têm permitido um maior entendimento da relação entre as filosofias pessoais e as concepções de resolução de problemas de professores de matemática; • Reflexões teóricas acerca da produção do conhecimento matemática; • sugestões para a utilização da resolução de problemas como ponto de partida em aulas de matemática; • Exemplos de aulas de matemática usando a resolução de problemas como ponto de partida. 2 CONCEPÇÕES DE RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS Em Ernest (1992) (apud BOAVIDA,1994) é apresentada uma teoria baseada na hipótese de que “a filosofia pessoal do professor sobre a Matemática é o maior determinante do

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que o professor entende por resolução de problemas relativamente à Matemática escolar” e que segundo o referido autor encontramos geralmente três filosofias pessoais da Matemática, a saber: absolutismo, absolutismo progressista e o falibilismo. No absolutismo, a Matemática é um corpo de conhecimento objetivo, fixo, certo, neutro, isento de valores e cuja estrutura é hierárquica. No absolutismo progressista, a Matemática é constituída por conhecimento certo e objetivo, mas há conhecimento novo que está sendo criado pelo homem. Já no falibilismo, os conceitos e as proposições da Matemática, bem como a lógica em que se assentam as demonstrações, são criações humanas que permanecem constantemente abertas à revisão. Em Boavida (1994) encontramos os resultados de um estudo realizado com professores de matemática em Portugal, que analisou as concepções dos professores acerca da resolução de problemas da matemática escolar em relação às filosofias pessoais de matemática propostas por Ernest (1992). Os resultados obtidos no trabalho estão organizados no quadro abaixo: Filosofias pessoais sobre Matemática

Interpretações de Resolução de Problemas

Absolutismo

A resolução de problemas consiste na execução de tarefas não rotineiras e com resposta certa impostas pelo professor. O principal papel do professor é comunicar e transmitir conhecimentos. Os problemas são meios secundários de aplicar, reforçar e motivar a aprendizagem.

Absolutismo Progressista

Falibilismo

A resolução de problemas é um meio de desenvolver e utilizar as estratégias e os processos matemáticos bem como o meio de descobrir as verdades e estruturas da matemática. Os alunos são guiados pelo professor para resolverem os problemas contidos, implícita ou explicitamente, em ambientes cuidadosamente escolhidos; espera-se que o conhecimento surja da experiência dos alunos tendo o professor o papel de condutor e facilitador. A resolução de problemas será considerada a pedagogia a utilizar na sala de aula. Particularmente será vista como um processo socialmente mediado de formulação de problemas e construção da sua solução, processo esse requerendo discussão para negociação de sentidos, estratégias e provas.

Quadro 1: Filosofia pessoais sobre matemática e a interpretação da resolução de problemas. Fonte: Boavida (1994).

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Boavida (1994) conclui da sua pesquisa que considerar as representações dos professores sobre resolução de problemas como conseqüências lógicas e diretamente determinadas pelas suas filosofias pessoais sobre a matemática é uma simplificação muito redutora e defende que as representações dos professores sobre resolução de problemas também são influenciadas por: • Objetivos que crê serem relevantes para o ensino aprendizagem da matemática; • suas representações pessoais sobre a natureza do ensino em geral e do ensino da matemática em particular; • oportunidades e constrangimentos proporcionados pelo currículo de matemática e pelo contexto físico e social das escolas em que trabalha; • pressões sociais relacionadas com o fato da aprendizagem matemática curricular constituir um fator de seleção para inúmeras áreas profissionais socialmente valorizadas; • expectativas dos alunos e dos pais relativamente ao que deve ser o ensino da matemática. Segundo Mendonça (1999, p.16-17) há três interpretações da expressão resolução de problemas, a saber: como um objetivo, um processo e um ponto de partida. Assim descritos: • Como objetivo, a resolução de problemas significa que se ensina matemática para resolver problemas; • Como processo, a resolução de problemas significa olhar para o desempenho/ transformação dos alunos como resolvedores de problemas. Analisam-se as estratégias dos alunos; • Como ponto de partida, os problemas são usados como recurso pedagógico para iniciar o processo de construção de um dado conhecimento específico. Segundo a autora: • A maneira de pensar a resolução de problemas como objetivo, implica ser suficiente no processo de ensino da matemática, expor a teoria e em seguida propor problemas mais ou menos engenhosos. • Na concepção de processo, o desenvolvimento do ensino está centrado na proposição de estratégias de solução. • Já como ponto de partida, o desenvolvimento do ensino é iniciado pela apresentação de um problema que permitirá desencadear o processo de aprendizagem, culminando na sistematização de conhecimentos matemáticos previamente determinados pelo professor. Desse modo, um problema pode ser utilizado nos três tipos de interpretações da resolução de problemas. É importante destacar que não existe nenhum tipo de hierarquia entre essas interpretações e nem muito menos grau de importância. Quando comparamos as concepções de resolução de problemas propostas por Mendonça (1999) e os resultados de Boavida (1994), podemos relacionar as concepções de resolução de problemas com as filosofias pessoais da matemática da seguinte maneira:

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• absolutismo implica pensar a resolução de problemas como objetivo; • absolutismo progressista implica pensar a resolução de problemas como processo; • falibilismo implica pensar a resolução de problemas como ponto de partida. Em Sá (2005) encontramos recomendações acerca da resolução de problemas como objetivo e em Sá (2006) encontramos além de recomendações acerca da utilização da resolução de problemas como processo, exemplos de problemas matemáticos não-padrões e uma indicação bibliográfica da resolução de problemas como processo. 3 ETAPAS DE RESOLUÇÃO DE UM PROBLEMA De um modo geral, segundo Polya (1977), as fases a serem seguidas na resolução de um problema são: compreensão do problema, estabelecimento de um plano, execução do plano e retrospecto. Na fase da compreensão do problema, o resolvedor deve procurar entender o enunciado e as condições apresentadas no problema e, principalmente, ter clareza da qual é a pergunta a ser respondida, essa fase foi subdividida por Polya (1977) em familiarização e aperfeiçoamento da compreensão. Na fase de estabelecimento de um plano, o resolvedor deve procurar uma conexão entre os dados do problema e a pergunta que se deseja responder a fim de construir um caminho que leva a solução. Na fase da execução do plano, o resolvedor deve colocar em prática o seu plano para encontrar a solução do problema, verificando cada passo dado. Na fase do retrospecto, o resolvedor deve verificar se a solução obtida satisfaz as condições e a pergunta do problema. No quadro abaixo apresentamos algumas perguntas, recomendadas por Polya (1977), que o resolvedor deve fazer durante cada uma das fases da resolução de um problema. Fases da resolução de problema

Perguntas recomendadas

Compreensão do problema

1-Qual é a incógnita?2-Quais são os dados?3-Quais são as condições do problema?4-É possível satisfazer as condições do problema?

Estabelecimento de um plano

1-Já vi esse problema antes?2-Conheço algum problema parecido com este?3-Já utilizei todos os dados do problema?4-Já utilizei todas as condições do problema? 5-Como é possível obter outros dados úteis?6- É possível reformular o problema? continua quadro 2...

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continuação...

Execução do plano

1-Para cada passo dado é possível verificar se está correto?2-É possível demonstrar que cada passo dado está correto?

Retrospecto

1-É possível verificar o resultado?2-É possível verificar o argumento?3-É possível utilizar o resultado, ou o método, em algum outro problema?

Quadro 2: Fases da resolução de problemas x perguntas recomendadas. Fonte: Polya (1977)

4 A PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO Um dos muitos pesquisadores que fez contribuições no estudo da construção dos conceitos matemáticos foi Jean Piaget. Segundo von Glasersfeld (1995, p.177-181) a teoria de Piaget para produção do conhecimento matemático é feita por meio de quatro tipos de abstração: uma empírica e três reflexivas. A abstração empírica ocorre quando a abstração é feita a partir de material sensóriomotor. A abstração reflexiva ocorre quando a abstração é feita a partir de atividade do próprio sujeito. A abstração reflexiva foi subdividida em: projeção, refletida e pseudo-empírica. A abstração reflexiva do tipo projeção reorganiza ou projeta, noutro nível conceitual, uma coordenação ou padrão das próprias atividades ou operações do sujeito. A abstração reflexiva do tipo refletida é muito similar à projeção, na medida em que também envolve padrões de atividades ou operações; a diferença está que, na reflexão, o sujeito tem consciência do que foi abstraído. A abstração reflexiva do tipo pseudoempírica é a abstração que permite à criança representar certas coisas para elas próprias, mas sem ainda estar totalmente no nível das operações concretas, ou seja, a representação só pode ocorrer se estiver disponível material sensório motor adequado. A utilização do ábaco, material dourado ou dinheiro fictício para as primeiras operações numéricas produz abstração reflexiva do tipo pseudo-empírica, pois, apesar de o fato dos resultados serem extraídos de objetos materiais, como se fossem abstrações empíricas, as propriedades percebidas são realmente produzidas pelas atividades da criança. Assim, na teoria de Piaget, os conceitos matemáticos são construídos por meio de abstrações, num processo crescente e constante, que vão da empírica à reflexiva. Em Sfard (1991), encontramos um estudo que defende a existência de duas concepções não excludentes dos conceitos matemáticos: operacional e estrutural. A concepção operacional que se caracteriza pelo aspecto dinâmico e manipulativo do conceito.

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A concepção estrutural que se caracteriza pelo aspecto de definição do conceito como um objeto isolado do processo. A autora defende que há fortes motivos para crê que a concepção operacional precede a estrutural e apresenta o seguinte quadro comparativo entre as concepções operacional e estrutural. Concepção operacional A entidade matemática é concebida como um produto de um certo proCaracterística geral cesso ou é identificada com o próprio processo. Representação interna É baseada através da representação verbal.

Concepção estrutural A entidade matemática é concebida como uma estrutura estática, como sendo um objeto real. É baseada na imagem visual.

Lugar no desenvolvi- Desenvolve-se nos primeiros estágimento do conceito os da formação do conceito.

Evolui da concepção operacional.

Papel nos processos cognitivos

Facilita todos os processos cognitivos (aprendizagem e resolução de problemas).

É necessário, mas não é suficiente para a efetiva resolução de problemas e aprendizagem.

Quadro 3: características das concepções operacional e estrutural do conhecimento matemático Fonte: Sfard (1991) Sfard (1991) propõe os seguintes estágios no desenvolvimento de um conceito matemático: interiorização, condensação e reificação. A interiorização corresponde ao estágio em que o aprendiz ganha familiaridade com os processos que eventualmente darão origem para um conceito. A condensação corresponde ao estágio em que o aprendiz “comprime” a longa seqüência de operações em etapas mais manuseáveis. Neste estágio, a pessoa começa mais e mais a ser capaz de pensar no processo dado como um todo, sem sentir desejo de olhar para os detalhes. Este é o ponto em que um novo conceito começa a nascer. Um progresso na condensação é manifestado com o crescimento da alternação entre diferentes representações do conceito. Quando a noção começa a ser vista como um objeto isolado, dizemos que o conceito começou a ser reificado. A reificação é o estágio em que uma interiorização de conceitos de alto nível começa. É definida como uma mudança ontológica – uma repentina habilidade de ver algo familiar numa direção totalmente nova –, pois, enquanto na interiorização e condensação as mudanças quantitativas e qualitativas são graduais, na reificação instantaneamente um processo se solidifica em um objeto e numa estrutura estática, sendo várias representações semanticamente unificadas neste abstrato e puramente mental conceito. Os estágios propostos por Sfard (1991) são hierárquicos, ou seja, só poderá ocorrer a condensação após a interiorização, e a reificação após a condensação. , Belém, v. 11, n. 22, p. 7-24, jan./dez. 2009

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O diagrama abaixo esquematiza o processo de construção dos conceitos matemáticos idealizados pela autora. Conceito C

   

Objeto C Reifi cação Condensação Interiorização Conceito B

   

Objeto B



Processos sobre B

Reitificação Condensação Interiorização Conceito A

   

Objeto A



Processos sobre A

Reitificação Condensação Interiorização

OBJETOS CONCRETOS



Processos sobre objetos concretos

Diagrama 1: Processo de construção do conhecimento matemático. Fonte: Sfard (1991)

Os estudos analisados acima apontam para estágios que se coadunam com a produção do conhecimento matemático de um modo geral, principalmente os resultados de Sfard (1991), que deixam claro como o processo histórico atua na reificação dos conceitos. 5 RECOMENDAÇÕES PARA O USO DA RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS COMO PONTO DE PARTIDA Normalmente os assuntos são trabalhados na seguinte sequência: definição, exemplo, propriedades e aplicações, para muitos professores e estudantes essa sequência corresponde à sequência natural da construção do conhecimento matemático. Entretanto, a Histó-

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ria da Matemática mostra que essa sequência não é compatível com a construção natural do conhecimento matemático que quase sempre é consequência da tentativa de resolver um problema, onde normalmente são identificados invariantes que posteriormente são estudadas suas propriedades e finalmente dão origem à definição de uma operação ou estrutura matemática. Nessa informação proveniente da História da Matemática é que está embasada a concepção de resolução de problemas como ponto de partida, cujo objetivo é partindo de um problema culminar numa sistematização de conceitos e operações da matemática. Para utilizar a resolução de problemas como ponto de partida o professor deve antes de tudo acreditar que é possível, dentro de certos limites, serem resolvidos problemas sem o domínio de certas operações e conceitos matemáticos. Vejamos o seguinte problema como exemplo: Uma vendedora de bolo de macaxeira vendeu primeiro um quarto e depois mais dois quartos do bolo. Quantos quartos do bolo ela vendeu? Para muitos professores problemas como esse só podem ser apresentados e resolvidos após o estudo da adição de frações de mesmo denominador. Entretanto, nossa experiência mostra que é possível resolver o problema em questão usando somente a representação gráfica da situação dada. Se após a resolução gráfica fizermos, junto com a turma, uma representação operatória da resolução, ficará claro que durante a resolução fizemos a operação 1/ 4 + 2/4 que resultou na fração 3/4 que é solução da questão. Assim, conseguimos resolver o problema sem saber como se calcula a adição de frações de mesmo denominador. Neste momento os alunos já terão condições de resolver problemas similares sem ainda saberem como se adiciona frações de mesmo denominador, propondo outros problemas com o mesmo raciocínio e finalmente solicitando à turma que observe os registros numéricos que foram realizados em cada um dos problemas, os discentes facilmente perceberão que: • em todos os problemas sempre foram realizadas adições de frações de mesmo denominador; • em todas as adições a fração resultante tinha como numerador a soma dos numeradores e como denominador o mesmo valor que servia de denominador às frações adicionadas. Neste momento, já estão criadas todas as condições para formulação da definição de adição de frações com o mesmo denominador, que pode ser apresentada pelos alunos ou mesmo pelo professor uma vez que já foi percebida pelos alunos. Assim, o professor terá utilizado a resolução de problema como ponto de partida. Pois, praticou resolução de problemas e culminou com a sistematização da adição de frações com o mesmo denominador. Nossa experiência também permite concluir que é possível em grande parte dos assuntos trabalhados tradicionalmente na escola elementar o uso da resolução de problemas como ponto de partida.

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Com base na nossa experiência em praticar resolução de problemas como ponto de partida nos ensinos fundamental, médio e superior, propomos as seguintes recomendações para elaboração de aulas nessa perspectiva: a) Não tente fazer uma aula desse modo de maneira improvisada. Qualquer aula que não seja devidamente planejada tem muita chance de fracassar, principalmente quando a operacionalização ainda não é costumeira. b) Determine qual é o problema mais simples e interessante para turma que uma operação ou conceito matemático auxiliam a solução. Se o problema escolhido não for significativo para os alunos ou for de um enunciado muito complicado afastará a atenção dos mesmos e dificultará o processo. Vale Lembrar que o objetivo é sistematizar um assunto a partir de um problema e não testar o domínio do assunto. c) Descubra um processo de resolver o problema sem o uso da operação. Muitas vezes nós pensamos que a única maneira de resolver um problema é por meio do modo operacional, entretanto muitas vezes existem soluções manipulativas ou com o uso de outros conceitos já conhecidos. Uma boa fonte de informação sobre essas soluções é a História da Matemática. d) Proponha a situação-problema em sala e disponibilize um pouco de tempo para turma pensar numa solução. A proposição do problema deve ser realizada de maneira escrita e que todos os alunos tenham acesso simultaneamente, assim todos terão o mesmo tempo para pensar numa solução. e) Solicite que a turma apresente uma solução ao problema ou apresente a solução que você tem. Na maioria das vezes, a turma não consegue uma solução para o problema proposto e é necessário que o professor apresente a sua, isso não é um problema, o importante é que s alunos tenham tido tempo para entender o enunciado da questão e pensado em como resolvê-la. Lembre-se normalmente a saída que você conhece é bastante criativa e fruto de muito trabalho de outras pessoas em outras épocas, portanto, é normal que os alunos, muitas vezes, não consigam resolver o problema em pouco tempo. f) Faça um registro escrito e detalhado da solução para toda a turma. Neste momento quando ocorrerá a apresentação da solução do problema seja por um aluno ou pelo professor é muito importante que acha um registro escrito da mesma pois isso é que permitirá a evidencia dos invariantes que emergem do processo de resolução do problema. g) Analise com a turma os invariantes que surgiram na resolução do problema. Após a resolução do problema proposto, se já for possível, analise junto com a turma qual será o resultado que será sempre presente na resolução de um problema similar ao que acabou de ser resolvido. Se com a resolução de um problema não for possível proponha outros similares visando à percepção do invariante desejado.

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h) Solicite da turma uma conclusão operacional para resolver o problema apresentado. Quando a turma já tiver consciência da existência de um invariante no processo de resolução do problema você deve solicitar à turma que explicite um modo de resolver o problema usando os dados e evitando todo o caminho percorrido anteriormente. Nesse ponto o processo está quase completo. Uma pergunta que ajuda neste momento é a seguinte: Como resolver esse problema sem realizar todos esses cálculos ou procedimentos? i) Sistematize o conceito o conteúdo que você tinha como objetivo trabalhar. É importante lembrar que o nome da operação, estrutura ou conceito que você pretende sistematizar é quase impossível que os alunos enunciem, pois o nome padronizado sempre é fruto de um longo processo histórico. Portanto, nesse momento você deve apresentar formalmente e por escrito a definição da operação, conceito, propriedade ou estrutura matemática que você planejou trabalhar. j) Mostre como fica a solução do problema proposto com o uso do conteúdo sistematizado. Neste momento o professor deve mostrar à turma como fica a solução do problema usando o conceito que foi sistematizado para destacar a importância e as vantagens de se conhecer tal conteúdo. Se for possível é muito interessante explanar sobre o desenvolvimento histórico do assunto incluindo seus avanços e retrocessos, isso ajuda os alunos a compreenderem o processo de construção do conhecimento matemático sem ter que refazer todos os passos dados pelos estudiosos que contribuíram para formalização do conceito. k) Proponha outras questões envolvendo o assunto sistematizado. Neste momento é muito importante que para a interiorização do conteúdo trabalhado que os alunos o usem de maneira operacional na resolução de outras situações-problema que envolvam tal conteúdo em condições diferentes da questão inicial e proponha na forma de questões as propriedades mais relevantes do assunto. 6 EXEMPLOS DE AULAS COM A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS COMO PONTO DE PARTIDA • Exemplo 1: Assunto: Mínimo Múltiplo Comum Comentário O assunto mínimo múltiplo comum (mmc) normalmente é trabalhado antes das operações com frações para ser utilizado no cálculo da adição de frações com denominadores diferentes. Esse procedimento deixa a impressão que o estudo do mmc é realizado somente para auxiliar o cálculo da adição de frações com denominadores diferentes. Além disso, o ensino do mmc é feito a partir da sua definição seguido dos seus algoritmos de cálculo. Esse assunto pode ser trabalhado a partir do problema proposto a seguir.

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Problema selecionado Uma pessoa deve tomar doses de três medicamentos A, B e C distintos com as seguintes prescrições: o remédio A deve ser tomado a cada duas horas, o remédio B tomado a cada 3 horas e o remédio C a cada 4 horas. Se o paciente tomar uma dose de cada medicamento no mesmo instante depois de quanto tempo estará novamente ingerindo os três medicamentos no mesmo instante? Processo de resolução A resolução do problema acima pode acontecer de maneiras distintas. Vejamos algumas delas! Solução 1: Partindo do zero Esta solução considera que o paciente tomou os remédios à zero hora e depois acompanha os horários da cada dose até as mesmas coincidirem novamente. Assim, Remédio A: 0, 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14,16,18,20, 22, 24, ....... Remédio B: 0, 3, 6, 9, 12, 15, 18, 21, 24, ...... Remédio C: 0, 4, 8, 12, 16, 20, 24, ........ Observando os horários das doses de cada remédio podemos concluir que às 12h o paciente tomará novamente uma dose de cada medicamento simultaneamente. Portanto, o intervalo de tempo gasto para que o paciente tome as doses dos medicamentos simultaneamente será de 12h. A representação da solução é a seguinte Solução 2: Intervalos dos remédios Essa solução considera uma linha do tempo começando no instante em que os três medicamentos são ingeridos simultaneamente. Em seguida são marcado na linha os horários de cada medicamento e observado o horário que a coincidência ocorrerá novamente. A representação da solução é a seguinte: A,B, C_____A___B___A,C_____A,B_____A,C___B___A_____A,B, C 2h 3h 4h 6h 8h 9h 10h 12h. A observação dos horários permite concluir que o horário dos três medicamentos coincidirá novamente após 12h.

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Solução 3: Interseção Essa solução considera os intervalos de tempo desde a primeira dose de cada remédio como conjuntos, constrói os conjuntos, determina a interseção dos mesmos e observa o menor elemento da interseção. A representação da solução é a seguinte: Intervalos do medicamento A = { 2, 4, 6, 8, 10, 12, 14, 16, 18, 20, 22, 24,....} Intervalos do medicamento B = { 3, 6,9,12,15,18,21,24,............} Intervalos do medicamento C = { 4,8,12,16,20, 24,...........} A interseção dos intervalos dos medicamentos = { 12, 24, .....} A observação permite concluir que o horário dos medicamentos coincidirá novamente após 12h. As soluções 1 e 2 são mais comumente apresentadas pelos alunos do 6º ano!

Análise dos invariantes O momento da análise dos invariantes neste caso consiste em verificar quais são as características do número que foi obtido como resultado da questão. A análise permite concluir que o número obtido como solução é múltiplo dos números 2, 3 e 4 e que além disso é o menor de todos os múltiplos comuns de 2, 3 e 4. Essa conclusão mostra que para problemas da mesma natureza do proposto acima basta obter o número que seja o menor dos múltiplos comuns das quantidades dadas. Essa conclusão estimula a definição de mínimo múltiplo comum (mmc). Sistematização Este momento é destinado à apresentação por parte do professor da definição formal do mínimo múltiplo comum entre dois ou mais números inteiros que é invariante na resolução do problema proposto. Como esta aula está prevista para o ensino fundamental a definição de mínimo múltiplo comum que propomos é a seguinte. Definição: O mínimo múltiplo comum (mmc) entre dois números naturais é o menor número natural que é divisível simultaneamente pelos dois números. Solução do problema proposto com o uso do conteúdo sistematizado. Este momento deve ser dedicado à interpretação da questão inicial levando em consideração o conceito de mínimo múltiplo comum e destacando que com esse conceito a questão se reduz a determinação do mínimo múltiplo comum entre 2, 3 e 4.

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Outras questões envolvendo o assunto sistematizado Considerando que o conceito de mínimo múltiplo comum já estará estabelecido resta dar prosseguimento ao assunto apresentando técnicas de como determinar o mmc de dois ou mais números, propor novas situações-problema para desenvolver a habilidade de resolver problemas dessa categoria e praticar a determinação do mmc e apresentar como questões as principais propriedades do mmc. Neste momento as recomendações encontradas em Sá (2005) e Sá (2006) são válidas. • Exemplo 2: Assunto: Produto Escalar Comentário O produto escalar de vetores geométricos é normalmente estudado nas disciplinas de geometria analítica e é introduzido por meio de sua definição algébrica ou de sua definição geométrica seguida de suas propriedades e aplicações. Questão selecionada O problema que permite introduzir a operação produto escalar entre vetores geo  = ( x ,y ,z ). Determinar o métricos é o seguinte: Dados os vetores v = ( x1,y1,z1) e u 2 2 2   ângulo formado por v e u. Processo de resolução Considerando os vetores com sua origem no sistema de coordenadas temos que as   coordenadas dos seus extremos A e B coincidem com as componentes de u e v. A figura abaixo ilustra bem a ideia z  u  v

0

o y

x

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Aplicando a lei dos cossenos no triângulo ABO temos 

 2  2  |  | cos 0 |AB|2 = | u | + |v | – 2 |u v 2



2

 = x 2 + y 2 + z 2 ,  = x 2+ y 2 + z 2e |AB|2 = (x1 – x2)2 + (y1 – y2)2 + (z1 – z2)2, u v 1 1 1 2 2 2

Como



 devido |AB| = u

 . v



 |2 + | |2 – 2 |  || cos Substituindo as relações acima em |AB|2 = |u 0 obtemos u v v  | . | | cos 0 (x1 – x2)2 + (y1 – y2)2 + (z1 – z2)2 = x12 + y12 + z12 + x22 + y22 + z22 – 2|u v

que é equivalente a   | cos x12+y12+z12+x22+y22+z22–2(x1x2+y1y2+ z1z2 ) = x12 + y12 + z12 + x22 + y22 + z22 –2 |u | |v 0

Cancelando os termos simétricos e isolando cos 0 obtemos cos O = x1x2 + y1y2 + z1z2 

u



v

Logo, o ângulo procurado é o que possui cosseno dado por

u

.



v

( x x +u y.yv+ z z 1 2

1 2



1 2



(



, ou seja, 0 = arccos

.

x1x2 + y1y2 + z1z2

    podemos Como u e v dependem apenas das coordenadas dos vetores u e v   considerar que o ângulo entre os vetores u e v está determinado

Análise dos invariantes Neste momento da aula o professor deve estimular a turma a observar qual é a nova expressão que surge na resolução do problema apresentado.

(

x1x2 + y1y2 + z1z2  u

.

 v

(

Da observação da expressão de 0 = arccos

podemos concluir que a

expressão x1x2 + y1y2 + z1z2 será sempre calculada para a determinação do ângulo 0. Além disso, é possível concluir que x 1x2 + y1y2 + z1z2 é um número obtido pela soma dos   produtos das respectivas componentes dos vetores u e v do problema em questão.

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Após essas observações e conclusões é pertinente realizar a sistematização das observações por meio da apresentação da definição da operação produto escalar. Sistematização Este momento é destinado à apresentação por parte do professor da definição da operação que é invariante na resolução do problema proposto. No caso do produto escalar de dois vetores geométricos a definição que propomos é a seguinte:   Definição: Dados dois vetores u = (x,y,z) e v = (a,b,c) denominamos de produto escalar       de u por  ao numero  . dado por . u v u v v = xa + yb + zc

Solução do problema proposto com o uso do conteúdo sistematizado. Este momento deve dedicado a interpretação da questão relativa a determinação do  e  levando em consideração a definição de produto escalar e ângulo entre dois vetores u v

u.v

(u . v 



(

destacando que com esse conceito a questão se reduz a determinação de 0 = arccos

Outras questões sobre o assunto Neste momento o professor deve propor questões de aplicação envolvendo a operação produto escalar para fixar a mesma e a demonstração de suas propriedades. Neste momento as recomendações apresentadas por Sá (2005) e Sá (2006) são novamente válidas. 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS O uso da resolução de problemas como ponto de partida assim como as demais alternativas para o ensino da Matemática não é adequado para todos os conteúdos matemáticos. É muito importante notar que para o ensino de propriedades de objetos matemáticos a resolução de problemas como ponto de partida não será adequada. O ensino de conceitos e operações matemáticos por meio da resolução de problemas como ponto de partida não descarta a possibilidade do uso da resolução de problemas como processo, pois durante a fixação do conteúdo sistematizado questões do tipo não rotineiras podem e devem ser propostas aos aprendizes. Isso permitirá momento de aumento do conhecimento de estratégias de resolução de problemas que é uma excelente atividade para o de-

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senvolvimento do pensamento flexível e criativo. Neste momento as recomendações apresentadas por Sá (2006) são válidas. Além disso, todas as recomendações apresentadas em Sá (2005) devem ser observadas durante as sessões de resolução de problemas rotineiros envolvendo o assunto sistematizado a partir do problema que deu inicio ao estudo do assunto. Com o uso da resolução de problemas como ponto de partida o processo de ensinoaprendizagem reproduz, de maneira simplificada, todo o processo de criação do conhecimento matemático, que na maioria das vezes tem seus conceitos e operações oriundas da busca de solução de problemas propostos, seguida pelo estudo dos invariantes da resolução, estudo das propriedades destes invariantes e finalização com a definição de um novo objeto ou operação matemática. Este modo de proceder mostra, em escala reduzida, o modo de trabalho dos matemáticos profissionais e desmistifica a ideia de que os objetos e operações matemáticos são frutos de um ato mágico ou misterioso sem haver uma motivação para tanto. O que não nega a necessidade de um certo gosto pelo trabalho com ideias abstraídas de situações e problemas, alguns mais outros menos, oriundos de interesses do nosso dia a dia. REFERÊNCIAS BOAVIDA, Ana. Maria. Matemática e resolução de problemas: múltiplos olhares de professores. Educação Matemática, 31, p.43-48, 1994. BUTTS, Thomas. Formulando problemas adequadamente. In: KRULIK, S. e REYS, R. E. A resolução de problemas na matemática escolar. Tradução Hygino H. Domingues e Olga Corbo. São Paulo: Atual, 1997. 343p. DANTE, Luiz. Roberto. Didática da resolução de problemas de matemática. São Paulo: Ática, 1986. 176p. MENDONÇA, Maria do Carmo. Resolução de problemas pede (re)formulação. In: ABRANTES, Paulo; PONTE, João Pedro; FONSECA, Helena. e BRUNHEIRA,Lina.(Org.). Investigações matemáticas na aula e no currículo. Lisboa: APM, 1999. 226p. POLYA, George. L‘enseignement par les problèmes. L‘Enseignement Mathématique, t. XIII, fasc. 3, p.233-241, 1967. POLYA, George. A arte de resolver problemas. Rio de Janeiro: Interciência, 1977. 179p. POZO, Juan. Ignacio; ECHEVERRÍA, Maria del Puy Pérez, CASTILLO, Jesús Domínguez, CRESPO,

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Míguel Ángel Gómez, ANGÓN, Yolanda Postigo. A solução de problemas. Porto Alegre: Artmed, 1998. 177p. SÁ, Pedro Franco de. A resolução de problemas como objetivo nas aulas de matemática. In: Trilhas, v.7, n. 16, p.25-34, dez. 2005. ______. A resolução de problemas como processo nas aulas de matemática.In: Trilhas, v.8, n. 18, p.59-72, dez. 2006 SFARD, Anna. On the dual nature of mathematical conceptions: Reflections on processes and objects as different sides of the same coin. Educational Studies in Mathematic, 22, p. 1-36, 1991. GLASERSFELD, Ernest Von. Construtivismo radical: uma forma de conhecer e aprender.Tradução Fernando Oliveira. Lisboa: Instituto Piaget, 1995. 333p.

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Artigo A (SEGUNDA) AQUISIÇÃO LINGUÍSTICA NO SÉCULO XXI: UMA VISÃO SOCIOLINGUÍSTICA Jorge Haber Resque*

RESUMO Este artigo visa a discutir como os conceitos da norma culta (gramática internalizada) interferem na aquisição da segunda língua, causando efeitos sobre a produção do discurso escrito na língua de chegada, ou a segunda língua, cujos parâmetros acabam não sendo adquiridos, nem mesmo apreendidos, haja vista que os conceitos trazidos da língua mãe, neste caso o Português do Brasil, acabam produzindo manifestações linguísticas, na língua de chegada, que não podem ser consideradas corretas de acordo com a norma padrão da segunda língua, embora não tragam problemas de comunicação. PALAVRAS-CHAVE: Aquisição. Linguagem. Língua. Chegada. Discurso escrito.

THE (SECOND) LINGUISTIC ACQUISITION IN THE XXI CENTURY: A SOCIOLINGUISTIC VIEW ABSTRACT This paper aims at discussing the standard language concepts (internalized grammar) interfere on the acquisition of a second language, causing effects upon the production of written discourse, over the target language (the second language), whose principles end up by not being acquired nor learned., since those principles brought together with the mother tongue, in this case Brazilian Portuguese, lead to linguistic manifestations, on the target language, which cannot be considered correct according to standard norms of the second language although they do not bring about communication problems. KEYWORDS: Acquisition. Language. Tongue. Target. Written discourse. * Jorge Haber Resque é professor de língua inglesa dos Cursos de Graduação de Letras, Secretariado Executivo Bilingue e Relações Internacionais da Unama e do Curso Livre de Inglês do Centro Binacional de Belém (CCBEU), como segunda língua e com 30 anos de experiência no ensino de Línguas e Tradução Bilingue. É também mestrando do Programa de Pós-Graduação Strictu Senso, Mestrado em Comunicação, Linguagem e Cultura da Universidade da Amazônia – UNAMA.

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1 A LINGUAGEM COMO MANIFESTAÇÃO SOCIOCULTURAL Desde a Idade Antiga tem o homem se preocupado com as barreiras de comunicação inerentes ao aprendizado de uma Língua, em especial de uma Segunda Língua. No início isto foi motivado pelas Guerras de conquista quando o povo conquistador precisava fazer o povo conquistado entender as regras da dominação, as leis, as normas que passariam a reger a sociedade a partir daquele momento. Como não havia tempo hábil para ensinar todo o mecanismo linguístico para o povo dominado, buscava-se a criação de códigos sociolinguísticos que suplantassem o conhecimento da norma culta e fizessem a comunicação essencial acontecer. Depois, tal necessidade surgiu por causa das grandes viagens de exploração e descobertas de novas terras. Era preciso fazer com que o povo nativo das regiões recém descobertas aprendesse a comunicar-se de forma correta e plena. Então, era mais fácil criar códigos de comunicação baseados nos costumes e na cultura da sociedade já existente. Uma vez mais os elementos da Língua como agente social da comunicação se mostravam mais fortes que os ensinamentos da Língua culta, das normas gramaticais, as quais iam ficando para mais tarde, não obstante todo o esforço desenvolvido pelos religiosos e estudiosos, em especial os estudiosos de literatura. Tal fenômeno voltou a ocorrer nas duas Grandes Guerras, em especial na Segunda Guerra Mundial, pela necessidade de transmitir ordens rápidas e que não fossem entendidas pelos inimigos, mas sim unicamente pelos aliados. Era preciso então criar uma metodologia que enfatizasse os elementos da comunicação oral, sem levar em conta as regras gramaticais ou o tempo que elas levariam para serem ensinadas. Com o advento da globalização evidenciou-se uma transformação social muito mais veloz, lado a lado com a necessidade de acompanhar a integração das sociedades e das comunicações. A linguagem tornou-se, assim, um forte aliado neste mister, adaptando-se instantânea e integralmente às necessárias modificações de padrão social e lingüístico impostas pelos grupos criados pelas grandes comunidades do mundo atual, como por exemplo, as comunidades de relacionamento da web, os sites de relacionamento, cuja linguagem é nada mais nada menos que um conjunto de códigos que levam em conta a função social da Língua, trazendo uma forma de aculturação linguística, muito mais forte que qualquer norma culta considerada padrão. Todas estas transformações pelas quais passa a sociedade, em diversos momentos de sua história, também trouxeram uma discussão em torno daquilo que pode e aquilo que deve ser considerado norma culta e o que pode e deve ser considerado norma social. Esta discussão passa, assim, pelo conceito de linguagem. Do ponto de vista da gramática universal, a natureza essencial da linguagem é cognitiva. Porém, este não é o único prisma através do qual a linguagem pode ser analisada, pois apesar da mesma ser um fenômeno de construção cognitivo, deve também funcionar como um meio de comunicação e controle social. De fato, ela é internalizada na mente como um conhecimento abstrato, mas a fim de que tal internacionalização aconteça, ela também deve ser experimentada no mundo externo como comportamento atual. Portanto, outra forma de

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analisar a linguagem é em termos da função social que ela desempenha. O que é particularmente surpreendente acerca da linguagem a partir deste ponto de vista é a maneira como ela é moldada como um sistema de sinais e códigos cujo objetivo é satisfazer as necessidades comunitárias e sofisticadas das sociedades humanas. Então, por que a linguagem humana existe da forma como ela é. A resposta provavelmente está no fato de que a mesma evoluiu não com a evolução biológica das espécies, mas com a evolução sociocultural das comunidades humanas. Assim, o que importa saber e utilizar: a norma padrão ou os padrões de norma? O que importa mais na convivência e na comunicação entre os povos, a qual é uma consequência imediata das interações sociais e das trocas de informação, que é o que mantém o mundo globalizado em sintonia, e, portanto no aprendizado de uma Língua, em especial das segundas Línguas: a exatidão das normas ou a fluência da comunicação? Como afirma Labov Os procedimentos da lingüística descritiva se baseiam no entendimento de que a língua é um conjunto estruturado de normas sociais. No passado, foi útil considerar que tais normas eram invariantes e compartilhadas por todos os membros da comunidade lingüística. Todavia, as análises do contexto social em que a língua é utilizada vieram demonstrar que muitos elementos da estrutura linguística estão implicados na variação sistemática que reflete tanto a mudança no tempo quanto os processos sociais extralinguísticos (LABOV, 1968, in: MONTEIRO, 2000).

Nos últimos cinquenta anos, muitas coisas foram discutidas e aperfeiçoadas com relação ao aprendizado de uma língua estrangeira, pela evolução de quase todas as metodologias de ensino mais recentes, com suas descobertas, conclusões, mas também, e principalmente, com suas dúvidas e questionamentos. Dentre todas, aquela que mais contribuía para divergências e polêmicas era, sem dúvida, a que tratava do debate entre os conceitos de FLUÊNCIA x EXATIDÃO (fluency x accuracy), isto é, discutia-se o que deveria ter mais importância no processo de aprendizagem: a gramática e a exatidão das regras estruturais da Língua, ou os alunos deveriam também saber que muitas vezes a comunicação se dá mesmo que as normas não sejam totalmente obedecidas; que muitas vezes é possível fazer-se entender (comunicar-se) sem que se conheçam as regras estruturais a fundo; que a correção intensiva dos erros pode, inclusive, barrar o processo interativo de uma comunicação eficaz. Assim, professores e coordenadores de cursos livres e de cursos de graduação discutiam se não seria importante aceitar e permitir determinados “erros” como eventos linguísticos aceitáveis, mas explicar com clareza o que eles significavam, e suas limitações contextuais, ou seja, que tais manifestações linguísticas só poderiam ocorrer em determinadas situações bem definidas. Com a evolução dos estudos da sociolinguística e da neurolinguistica, ficou claro que é necessário discutir e ensinar aos alunos dois tipos de competência: a competência gramatical, que significava ter o conhecimento das normas gramaticais daquela língua e a competência comunicativa, que significava a capacidade de usar a língua em interações sociais, cujo contexto e a necessidade comunicativa são mais importantes que as regras.

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Para Wolfson Competência comunicativa é saber quando é apropriado iniciar uma conversação, e como, que tópicos são apropriados a determinados eventos linguísticos, que formas de tratamento devem ser usadas, para quem e em que situações, e como os atos linguísticos tais como cumprimentos, saudações, desculpas, convites e outros complementos devem ser feitos, interpretados e respondidos. (1983, p.61).

Portanto, a noção de proficiência linguística não passa apenas pelo conhecimento das regras da norma culta, mas também pelo grau de habilidade de comunicar-se em diferentes situações sociais. Como afirma Farhady A proficiência linguística é um dos conceitos mais frágeis no campo da aprendizagem. No entanto, apesar da existência de pontos de vista teóricos divergente quanto a esta definição, uma questão geral na qual muitos estudiosos parecem concordar é a de que o foco da proficiência deve estar na capacidade dos alunos em usar a língua, e não na exatidão das regras gramaticais (1982, p.44).

E, como sugere Clark: Proficiência é a habilidade dos alunos em usar a língua em situações de vida reais sem levar em conta a maneira na qual a competência foi adquirida. Assim, em se tratando de proficiência linguística, o foco de referência deve mudar da sala de aula para a situação atual na qual a linguagem está sendo usada. (1972, p.5).

E, ainda, como afirma Aléong Se a ciência linguística e as disciplinas correlatas se interessam sobretudo pela vida real da linguagem e, portanto, pelo funcionamento das normas implícitas, não se pode deixar de abordar a questão daquilo que a maioria das pessoas considera como a única norma verdadeira: a linguagem certa. O fato de existir um código lingüístico investido pela sociedade de legitimidade de única referência em matéria de uso é um fenômeno ligado a sociedades modernas e urbanizadas (In: BAGNO, 2001, p.163).

2 AQUISIÇÃO x APRENDIZAGEM: um processo cognitivo A aquisição de uma segunda língua não pode ser concebida sem levar em conta a interação entre linguagem e cognição, e indicar que esta interação, no momento atual, ainda não tem entendimento completo. Os processos de uma segunda língua tem paralelos com a maneira na qual algumas habilidades cognitivas complexas são descritas na teoria cognitiva. As áreas da linguística e da psicologia cognitiva contêm paradigmas distintos para descrever a aquisição de uma segunda língua. As teorias linguísticas pressupõem que uma língua é aprendida separadamente das habilidades cognitivas, operando de acordo

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com diferentes comportamentos aprendidos (SPOLSKY, 1985). Esta pressuposição é representada por algumas análises de propriedades linguísticas únicas, tais como a ordem linguística progressiva, gramática, o conhecimento das estruturas linguísticas, as influências sociais e contextuais sobre o uso da linguagem e a distinção entre aquisição e aprendizagem. Os processos de linguagem e os processos lingüísticos são observados como um fenômeno de interação com a cognição, mas, ainda mantendo uma identidade separada que justifica sua investigação independente dos processos cognitivos (WONG FILLMORE AND SWAIN, 1984). Os processos sociais variados também podem ser postos em formulações teóricas que estão relacionadas com a motivação para o aprendizado (CUMMINS, 1986; GARDNER, 1979; SCHUMANN, 1984; WONG FILLMORE AND SWAIN, 1984). Os processos cognitivos, quando sequer representados nestas teorias, são tipicamente relacionados com vários aspectos de estilo cognitivo e outras predisposições para o aprendizado (WONG FILLMORE AND SWAIN, 1984). Estes desenvolvimentos teóricos no processo de aquisição de uma segunda língua servem como ponto de referência geral, mas não são úteis para explicar o papel dos processos cognitivos na aquisição de uma segunda língua, já que são omissos ao tratar da cognição e do aprendizado no contexto de um corpo teórico e de pesquisa mais abrangente e extenso como aquele que surgiu com os estudos da psicologia cognitiva. Um dos processos cognitivos mais importantes que ainda não foi suficientemente debatido nestas teorias é o das estratégias de aprendizagem, isto é, conforme afirmam Weinstein e Mayer, 1986, p. 315, “São os comportamentos e pensamentos que um aluno emprega durante o processo de aprendizagem com o objetivo de influenciar o processo de decodificação de um aprendiz.” O desenvolvimento teórico na área da aquisição de uma segunda língua que mereceu estudos sobre os processos cognitivos ainda é restrito apesar do recente interesse na relação entre linguagem e cognição (MCLAUGHLIN et al., 1983; NAGLE e SANDERS, 1986; SPOLSKY, 1985), e mais especificamente o interesse teórico na função das estratégias de aprendizagem na aquisição da segunda língua (BIALYSTOK, 1978; BIALYSTOK e KELLERMAN,1986). O segundo paradigma na teoria da aquisição da segunda língua aparece da psicologia cognitiva e está baseado parcialmente no processamento da informação e parcialmente nos estudos e teorias que surgiram, mais ou menos nos últimos quinze anos, sobre o papel dos processo cognitivos na aprendizagem. Este papel das estratégias de aprendizagem na aquisição de informações pode ser genericamente entendido levando em conta os modelos de processamento de informações para aprendizagem. O principal objetivo destes modelos é o de explicar como a informação é armazenada na memória e mais especificamente como a nova informação é adquirida. Na sua forma mais simples, o modelo sugere que a informação é armazenada de duas maneiras distintas: na memória de curto prazo, isto é, a memória de trabalho ativa, que retém pequenas quantidades de informações somente por um curto período de tempo, ou na memória de longo prazo, o armazenamento mais permanente de informação, o qual pode ser representado como elementos isolados ou mais provavelmente

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por cadeias interconectadas (LACHMAN, LACHMAN e BUTTERFIELD, 1979; SHUELL, 1986; WEINSTEIN e MAYER, 1986). Em algumas representações, a memória de trabalho é utilizada para descrever a memória de curto prazo como uma maneira de explicar a relação do uso ativo dos procedimentos cognitivos e a informação a ser armazenada (ANDERSON, 1985). Neste paradigma da psicologia cognitiva, a nova informação é adquirida através de um processo de decodificação de quatro estágios, a saber: seleção, aquisição, construção, e integração (WEINSTEIN e MAYER 1986). Pela seleção o aprendiz foca informações específicas de interesse do meio em que a linguagem está sendo usada, e transfere esta informação para sua memória de trabalho. Na fase de aquisição, o mesmo ativamente transfere informações da memória de trabalho para sua memória de longo prazo para armazenamento. No terceiro estágio, o da construção, os aprendizes constroem conexões internas entre as ideias contidas na memória de trabalho. As informações da memória de longo prazo podem ser usadas para enriquecer o seu entendimento ou a retenção das novas ideias ao prover informações ou esquemas associados, nos quais as novas ideias possam ser organizadas. No processo final, o da integração, o aprendiz ativamente busca o conhecimento prévio da memória de longo prazo e o transfere para a memória de trabalho. A seleção e a aquisição determinam o quanto se aprende, enquanto que a construção e a integração estabelecem o que se aprende e como isto é organizado. O papel das estratégias de aprendizagem é então o de tornar claro aquilo que de outra forma ocorre sem que o aprendiz esteja consciente ou ocorre de forma ineficiente durante os primeiros estágios da aprendizagem. Os indivíduos podem aprender novas informações sem conscientemente aplicar nenhuma estratégia ou ao aplicar estratégias inapropriadas que resultam em aprendizado ineficiente ou retenção de longo prazo incompleta. As estratégias que mais ativamente atuam sobre os processos mentais deveriam ser mais eficazes no suporte ao aprendizado. Estas estratégias podem tornar-se automáticas depois de seu uso repetido ou depois que uma determinada habilidade foi completamente adquirida, muito embora os processos tidos como acontecendo de forma inconsciente não podem mais ser considerados estratégicos (RABINOWITZ e CHI, 1987). 2.1 OS EXEMPLOS Os dados foram produzidos a partir de observações feitas em contexto amplo e genérico, onde o uso da língua inglesa é presente, bem como a partir da produção do discurso escrito de alunos dos cursos regulares de inglês do Centro Cultural Brasil Estados Unidos (em todos os níveis de aprendizado) e dos Cursos de Letras, Secretariado Executivo Bilíngue e Relações Internacionais da Universidade da Amazônia – UNAMA, entre os anos de 2005 e 2009, em Belém do Pará. A primeira fase da pesquisa constou de busca e registro, através de fotografia, de exemplos de discurso escrito, onde, mesmo tendo passado por todos os níveis de aquisição e aprendizagem da língua estrangeira, neste caso o Inglês, o falante ainda assim comete desvios (‘erros’) resultantes da interferência da língua materna, desvios estes que são cometidos 30

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nos primeiros níveis de instrução, isto é, ainda na fase de aquisição da nova língua, e que permanecem mesmo depois de passado este estágio inicial. A primeira destas fotografias foi tirada em uma van de transporte turístico de passageiros na cidade de Salvador, Bahia. A análise comparativa entre as frases escritas na língua materna (L1) e seu equivalente na segunda língua (L2) mostra claramente duas variações provenientes da interferência da L1 sobre a produção da L2, como se pode observar na figura 1.

Figura 1: Aviso em uma van de Turismo da empresa Privetur, de Salvador- Bahia, com uma frase onde aparece um desvio na norma culta do Inglês pela influência do Português. Fonte: Fotografia captada em 23/04/2009, pelo autor.

O primeiro, de ordem estrutural, é o uso do artigo definido the antes de um nome próprio, o que é proibido na língua inglesa, fato que se explica pela existência do artigo definido a na oração em L1; o segundo se refere à grafia da palavra responsible, que aparece um a no lugar do i, fato também explicado pela grafia da palavra na L1. A segunda foto, abaixo, foi registrada no PROJETO TAMAR, em Salvador Bahia. Na mesma, pode-se identificar o uso do artigo definido antes do nome próprio PROJETO TAMAR. No segundo parágrafo do texto em Inglês, visualiza-se a frase seguinte: [...] The Projeto TAMAR BAHIA [...], quando o uso do artigo definido THE seria considerado uma variação da norma dita culta, do mesmo tipo observado na VAN da empresa de turismo anterior. Vale salientar que o texto dos cartazes do Projeto foram elaborados por pessoas já formadas em Inglês, isto é, falantes que há muito deixaram a fase de aquisição da língua, já tendo sedimentado seu aprendizado. , Belém, v. 11, n. 22, p. 25-35, jan./dez. 2009

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Figura 2: Poster afixado na área do Projeto TAMAR, em Salvador-Bahia, onde aparece um desvio da norma culta do Inglês por influência do Português. Fonte: Fotografia captada em 23/04/2009, pelo autor.

Estes foram retirados da produção linguística dos alunos dos cursos de Letras, Secretariado Executivo Bilíngue, e Relações Internacionais da Universidade da Amazônia – UNAMA nos níveis iniciantes, o que pressupõe quase nenhum conhecimento da Língua Inglesa, considerada aqui como segundo idioma, ou língua de chegada, ou L2. Cada exemplo evidencia uma interferência da L1, ou o Português do Brasil, na produção de estruturas linguísticas nos mais variados elementos, como grafia, colocação verbal, dentre outros. 1. Departament instead of department; E.g. What’s your departament? 2. Responsability instead of responsibility; E.g. What’s your responsability? Nota-se aqui, nos exemplos 1 e 2, o uso da letra ‘a’ onde o ‘t’ deveria ser mudo, o que nos leva a pensar na interferência do vocábulo ‘departamento’ que faz parte do corpus da língua portuguesa, bem como a substituição da letra ‘i’ pela letra ‘a’ depois do ‘s’, evidenciando também o mesmo tipo de interferência;

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3. I’m a secretary executive, instead of I’m an executive secretary. Neste caso, observa-se a colocação sintática dos elementos ‘secretary’ e ‘executive’ como se a estrutura fosse da língua portuguesa, onde se diz ‘Eu sou secretária executiva’, quando em Inglês a posição do adjetivo é anterior ao substantivo e antecedida de um determinante, neste caso o artigo indefinido ‘a’; 4. a) As the old DICTATION say... b) c)

Tell me who you walk and I will tell who you are The teacher SNAKE too many exercises.

Nestes casos nota-se o uso indiscriminado de vocábulos que tem o mesmo sentido que o autor quis dar a sua oração, porém, na língua inglesa, não são utilizados com a mesma significação. No caso a), a palavra certa seria ‘popular saying’ (dito popular), ou ainda ‘proverb’ (provérbio), pois a palavra ‘dictation’ quer dizer ditado como os que se faz na escola, e não ‘ditado popular’ para a língua inglesa. O mesmo ocorre com o vocábulo ‘walk’, tradução literal para o dito popular do português ‘dize-me com quem andas que te direi quem és’ o qual, em língua inglesa, deveria ser: ‘Tell me what company you keep and I will tell you who you are’; assim como também, a palavra ‘snake’, no exemplo c), representa o animal anfíbio ‘cobra’, e não o verbo cobrar, com sentido de exigir, que deveria, então, ser ‘demand’. Quer no sentido sintático, quer no sentido morfológico, observa-se com clareza a interferência do sistema da língua mãe (L1) na produção do discurso escrito da língua de chegada (L2), trazendo perda de sentido ou entendimento equivocado para o significado que o falante quer transmitir. 3 AS PERGUNTAS PERMANECEM Sempre que se pensa, avalia, ou debate a produção linguística, até hoje, muitas perguntas continuam sem resposta. Se pensarmos que a aquisição linguística é um fenômeno inconsciente, se considerarmos a Hipótese Natural como correta, como explicar que a interferência de uma língua sobre a outra é um fenômeno tão forte? Apesar de toda a evolução da sociolinguística, da psicolinguística, dos estudos da mente humana e do funcionamento do cérebro humano, ainda há uma série de pontos não totalmente esclarecidos. Será que a linguagem – ou as palavras de uma língua – dão forma ao pensamento? Ou será que é o pensamento que de alguma maneira faz aparecer a linguagem? Estas e outras perguntas tem fascinado os linguistas e os psicólogos por muitas décadas. Até hoje elas só foram parcialmente respondidas. Não há dúvida que as palavras dão forma a nossa vida. O mundo da comunicação é um exemplo bem claro disto, isto é, o uso da linguagem para moldar, persuadir, e dissuadir.

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O desenvolvimento conceitual inicial nas crianças não escapa da influência da linguagem. Se uma criança vê um cão e alguém diz ‘cão’, a criança repetirá cão e receberá um sorriso de satisfação. Se, ao contrário, ela vir um ‘cavalo’, ela automaticamente dirá ‘cão’, e será então corrigida, ouvindo a palavra ‘cavalo’. Aquele novo signo servirá como um estímulo para diferenciar ‘cão’ de ‘cavalo’. Logo depois, estes signos verbais servirão como um fator importante para a retenção de conceitos. Levando-se em conta que as crianças crescem intelectual e linguisticamente ao mesmo tempo, a linguagem interage com o processo cognitivo a fim de aprimorar o desenvolvimento intelectual. Isto é, de fato, uma das grandes vantagens que as crianças têm sobre os adultos. Por isso, diz-se que quanto mais cedo se começa a aprender uma língua, uma segunda língua, melhor será sua retenção. Este fato ainda não tem comprovação cientifica, embora se saiba que a interferência de um sistema sobre o outro parece ser minimizada quando o fenômeno de aquisição se dá nos dois sistemas ao mesmo tempo. Como as crianças rapidamente conseguem construir seu repertório conceitual, seu armazenamento linguístico cresce na mesma proporção. A linguagem ajuda na retenção e na expansão de conceitos. E, por sua vez, os conceitos contribuem para sedimentar os signos e a expressão linguística. Esta interação vai além da puberdade à medida que as palavras são usadas para sinalizar os pensamentos. REFERÊNCIAS BAGNO, M. Norma linguística. São Paulo: Loyola, 2001. BAKER, M. Linguística e estudos culturais: paradigmas complementares ou antagônicos nos estudos da tradução? In: MARTINS, M. A. P. (Org.). Tradução e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 1992. CHOMSKY, N. Syntactic structures. The Hague, Mouton and Company, 1957. CLARK, J. L. Curriculum renewal in school - foreign language learning. London: Oxford University Press, 1987. HATCH, E. & FAHARDY, H. Research design and statistics for applied linguistics. London: Newbury House Publishers, 1982. JACKSON, H. Key terms in lingusitics. London: Editora Continuum, 2007. JACOBSON, R. Linguística e comunicação. 8. ed. Tradução de Izidoro Blikstein e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 1975.

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LORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. 3. ed. Lisboa: Instituto Piaget, 2001. MARTELOTTA, M. E. Manual de linguística. São Paulo: Editora Contexto, 2008. MARTINS, M. A. P. (Org.). Tradução e multidisciplinaridade. Rio de Janeiro: Lucerna, 1992. MONTEIRO, J. L. Para compreender Labov. 2. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2002. SAUSSURE, F. Curso de linguística geral. 33. ed. São Paulo: Editora Cultrix, 2006. SCOVEL, T. Psycholinguistics. 3. ed. New York: Oxford University Press, 2001. SPOLSKY, B. Sociolinguistics. 4. ed. New York, Oxford University Press, 2006. TARALLO, F. A pesquisa sociolinguística. 7.ed. São Paulo: Ática, 2006. WIDDOWSON, H. G. Linguistics. 4. ed. New York: Oxford University Press, 2004. WOLFSON, N. The conversational historical present in American English Narrative. Foris Publications, Dordrecht, 1982.

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Artigo “ACAUÃ, O LENDÁRIO AMAZÔNICO E SUAS INTERSEÇÕES COM A PSICANÁLISE” Maria do Rosário de Castro Travassos* Alex Wagner Leal Magalhães** Elizabeth Samuel Levy*** RESUMO A Psicanálise surge da interlocução de três fontes: o discurso dos pacientes, a cultura e a autoanálise realizada por Freud, inaugurando o conhecimento sobre o inconsciente com suas leis próprias a comandar a vida psíquica. Portanto, todas as produções humanas estão sob o jugo do inconsciente, como a mitologia, a arte, a literatura entre outros. Realizamos um estudo da obra “Contos Amazônicos” escritos por Inglês de Souza, e sua interseção com a Psicanálise, que aborda aspectos da região amazônica e suas manifestações culturais, atravessada por mitos e lendas marcantes no processo de subjetivação dos sujeitos da região, em especial da mulher Amazônica, que no confronto entre os tabus desejo e proibição, faz emergir a histeria creditada ao canto agourento de ACAUÃ. O mito constituído socialmente se insere na fantasia dos sujeitos e sobrevive na contemporaneidade. Psicanálise e literatura usam o mito para falar da emergência da neurose desencadeada pela castração do desejo. PALAVRAS-CHAVE: Cultura. Lendário Amazônico. Processos Inconscientes. Histeria. Subjetividade.

“ACAUÃ, THE AMAZONIAN LEGENDARY AND ITS INSTERSECTIONS WITH PSYCHOANALYSIS” ABSTRACT Psychoanalysis comes from the dialogue of three sources: the patient’s verbalization, the selfanalysis realized by Freud and the culture, initiating the knowledge about the unconscious with its own laws directing the psychic life. Consequently, all human productions are under the lash

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Autora: Graduanda em Psicologia pela UNAMA e Pós-Graduanda em Teoria Psicanalítica. E-mail: [email protected] Co-Autor: Psicólogo, Mestre em Psicologia. (UFPA). *** Co-Autora: Psicóloga, Psicanalista, Mestra em Psicologia (UFPA). Professora UNAMA. E-mail [email protected]. **

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of the unconscious. We have studied the work “Contos Amazônicos” (“Amazon Tales”) written by Inglês de Souza in 1893, which talks about aspects of Amazon Region and its cultural manifestations, crossed by remarkable myths and legends in the locals subjectivity process, specially the Amazon woman represented by Aninha who, in the confront between the tabus – desire and prohibition - make emerge the excitement carried to the credit of the Acauã foreboding singing. The myth socially established is settled in the imagination of the individuals, continuing to exist nowadays. Both Ana O and Aninha’s desires are confronted by the culture, by psychoanalysis and by literature, using the myth to give voice to their “reality”, as the neuroses emerge unchained by the castration of the desire. KEYWORDS: Culture. Amazon Legendary. Unconscious Process. Excitement. Subjectivity.

1 A FORMAÇÃO CULTURAL DE FREUD E A PSICANÁLISE A formação cultural de Freud sobre arte, mitologia, antropologia, literatura, entre outros, o ajudaram a decifrar os enigmas do inconsciente. O ser humano é atravessado pela cultura e Freud se vale de conceitos que universalmente são inerentes à formação do psiquismo e encontra neles uma forma de descrevê-los através de mitos. Parte então, da universalidade dos conceitos, para a singularidade dos sujeitos. Segundo Mezan (1997), a psicanálise surge vinculada a três fontes: o discurso dos pacientes, a autoanálise realizada por Freud e a cultura. O primeiro evento cultural analisado por Freud em sua obra foi em Interpretação dos Sonhos na qual analisa Édipo Rei de Sófocles. Utiliza o mito como figura de reflexão e inspiração para a construção da teoria do funcionamento psíquico. A arte representa a vida inconsciente do criador, o recurso utilizado para simbolizar seu mundo interno, com possibilidade de obter uma satisfação substitutiva sem abrir mão de suas gratificações pulsionais. As produções artísticas expressam as fantasias dos sujeitos, razão de seus desejos, daí a importância que tem para Freud, que as utilizou como recurso para elaboração de seus conceitos. Ao criar personagens como Aninha e Vitória em sua obra literária, Inglês de Souza abre a possibilidade para se articular cultura e Psicanálise, ao expor conflitos, dores e fantasias vividos por seus atores, enredados pelo meio no qual estão inseridos, em cuja relação forjam suas subjetividades, fortemente marcadas pelo confronto entre os tabus, desejo e proibição, sugerindo o autor um desejo homossexual entre as duas irmãs, gênese dos sintomas psicopatológicos apresentados por Aninha, que por ameaçador e estranho, é creditado ao mítico canto de Acauã. Freud, na obra Totem e Tabu (1913) analisa os fenômenos que o levaram a criar hipóteses sobre o surgimento da cultura, da religião e da moralidade. Já havia entre as tribos

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primitivas, a proibição do incesto, vinculada ao desejo de cometê-lo, cuja violação dentro do mesmo clã precisava ser punida, causa de profundo sentimento de culpa ao transgressor. Freud utilizou a figura mitológica de Édipo para mostrar a importância da figura do pai (lei) na construção de processos neuróticos dos sujeitos, cuja onipresença estende-se ao desenvolvimento da sociedade. Investiga a ação dos fenômenos sociais, do surgimento das normas, das representações da figura paterna, da mulher, da sexualidade, entre outros, que vão contribuir para a formação da subjetividade através da interação do sujeito com a cultura. O século XIX foi um período marcado pelas transformações do pensamento científico e Freud atento aos movimentos sociais de sua época, elabora a teoria do inconsciente provocando uma ruptura com o saber então estabelecido. Para Foucault (2000, p.75), até o advento de uma medicina positivista, o louco era tido como um “possuído”, ignorado e preso nas significações religiosas e mágicas, emergindo a loucura como “doença”. A concepção cartesiana de sujeito e razão configurada na expressão “penso, logo existo”, determinou que alguém impossibilitado de pensar por não ter “juízo”, precisava ser afastado da sociedade. Ocorre a partilha entre razão e a desrazão e a loucura, despojada da linguagem, fica encarcerada até o momento em que Freud reabre a possibilidade de comunicação entre ambas, dando voz a subjetividade. Os modos de subjetivação da época de Freud emergiam de uma sociedade repressora que gerava o recalque e a culpa, formando neuróticos. Com tantas mudanças sociais, encontra-se a mulher, submissa, sem voz, atrelada à função secular da maternidade, o desejo está vinculado a reprodução, o que lhe causa intenso conflito por ter que confrontar a busca do prazer com as regras sociais. Ocorre a histericização do corpo da mulher e a histeria é o “grito das excluídas” da época de Freud, tomando hoje novas configurações. A Psicanálise se difunde influenciando a literatura inclusive no Brasil, como podemos constatar na obra “Contos Amazônicos” escrita por Inglês de Souza em 1893, que retrata os valores culturais de uma época, atravessada por mitos, lendas, crendices, feitiços, entre outros, introjetados pela comunidade local. Segundo a lenda, Acauã é um pássaro enorme de bico voltado para baixo, rabo e asas pretos e costas pardas, cujo canto prenuncia desgraça. A primeira vítima de seu canto foi a filha de um cacique que entrou em transe ao ouvir seu canto e com o peito arfante se pôs a gritar “ACAUÃ, ACAUÔ. A moléstia atingiu outras moças da tribo, “tomadas” pelo delírio. A mulher da Amazônia é representada por Aninha, que ao ser interditada em seu desejo, entra em crise histérica creditada ao canto agourento e misterioso de ACAUÃ. Na obra, a origem da neurose se dá pelo confronto de Aninha com a cultura, produtora do discurso sobre a sexualidade, não só na Viena de Freud, mas em qualquer lugar onde possa existir um sujeito alienado em seu desejo. A Amazônia descrita por Inglês é marcada pelo predomínio da Igreja, do branco estrangeiro sobre os nativos, e suas lendas e mitos navegam por seus rios fabulosos, incorporando-se as fantasias dos sujeitos, controlando e amedrontando seus desejos, expressos

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através de lapsos e metáforas. Em psicanálise, sua representação mais forte está vinculada à figura de um mito. Para Freud (1895), o sujeito nasce em completo desamparo e necessita do outro como garantia da sobrevivência, para que signifique, nomeie e o introduza na cultura, emergindo assim o registro da alteridade. No conto ACAUÃ, Inglês de Souza mostra imensa capacidade da compreensão do psiquismo humano, ao retratar personagens conflituosos, presos às relações primitivas, como Aninha cujo encontro com o outro é paradoxal. Órfã de mãe, seu encontro com Vitória é ao mesmo tempo ponto de fascinação e repulsa, fortemente enredada pelo laço social, marcada pelo temor da censura em relação ao seu desejo, atravessada por mitos e lendas punitivas e castradoras. Mais adiante, falaremos mais do mito ACAUÃ e suas significações. 2 MITO, ARTE E PSICANÁLISE Para Azevedo (2004), é possível reconhecer a lógica psicanalítica no discurso mítico assim como examinar as figuras míticas através da psicanálise. O mito em geral está associado a estórias fabulosas, muitas vezes absurdas, incoerentes e contraditórias, impossível de terem lugar na vida real, uma história que não se altera, independente do discurso, restringindo-se ao domínio do significado. Assim, mito por seu sentido múltiplo desde a origem “pode designar composições de vários gêneros literários (épico, lírico e dramático), relatos históricos, lendas da tradição oral bem como os tipos de relação que se estabelecem nesses relatos e o que os constituem”. (AZEVEDO, 2004, p. 11-12). Freud analisou o mito como uma linguagem em interseção entre o universal e o singular, como se estrutura, se atualiza e se repete, colocando na cena da palavra o que a Psicanálise vai explicar pela lógica do inconsciente. O mito constituído socialmente vai se inserir na fantasia dos sujeitos. Para Rivera (2005), Freud era um homem de grande erudição, mas de gosto austero, sem aproximação com a vanguarda artística e literária da época. Por volta de 1910, nasce na Suíça o movimento dadaísta em torno de Tristan Tzara e Huho Ball, de significado controvertido, que em alemão significava ingenuidade. O dadaísmo rejeita as convenções artísticas vigentes, rompendo com o domínio da racionalidade em busca do inconsciente. No início do século XX, o meio artístico dará ênfase à subjetividade, a expressões mais livres das convenções estéticas. Os surrealistas adotam a escrita automática, que consistia em escrever o que viesse a cabeça, “à maneira da associação livre”. Arte e psicanálise surgem na mesma época, sendo inequívoca a ligação entre ambas. Freud chega a estabelecer uma proximidade entre os sintomas neuróticos e as obras de arte, por ser o neurótico alguém que se rebela contra a realidade de seus desejos e se refugia na doença. O artista é um sujeito que aspira liberar-se através de sua obra, podendo expressar suas fantasias narcísicas e eróticas. 40

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Neste trabalho, procura-se pontuar a interseção da obra escrita por Inglês de Souza sobre o lendário amazônico “ACAUÔ e a Psicanálise, no que se refere a valores culturais presentes na cena regional amazônica, com suas características locais e peculiares, transmitidas de geração em geração e sua relação com os sintomas neuróticos decorrentes das fantasias de cunho sexual de seus personagens. 3 LITERATURA BRASILEIRA, MITOS E SUBJETIVIDADE Para Paixão (2004), a fase romântica da literatura brasileira prioriza a subjetividade. As produções literárias deste período estão repletas de idealizações, fantasias, características estas que fogem ao cotidiano. Os índios, por exemplo, descritos por Gonçalves Dias, eram típicos heróis europeus: altos, fortes, de traços másculos e força invencível, algo que não correspondia a realidade. A escola realista no Brasil, por influência do cientificismo do século XIX, vem quebrar essa visão utópica da humanidade, o homem passa a ser descrito tanto por suas características físicas quanto psíquicas. Machado de Assis, por exemplo, desvendou o homem louco, corrupto, ingênuo, submisso, fútil, vaidoso, velho, infeliz e por muitas vezes ironizou o sentimentalismo exacerbado de seus predecessores, tal como o fez em Memórias Póstumas de Brás Cubas com uma de suas frases consagradas: “Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis”. A subjetividade do romantismo cede lugar a objetividade do realismo, cabendo à ciência a explicação dos fenômenos naturais. Mas a escola realista do final do século XIX se transforma em naturalista, à medida que o destino de seus personagens, passam a ser governados por forças naturais contra as quais não conseguem lutar. As obras literárias desta fase têm como característica a observação fiel da realidade e das experiências vividas. Exploravam temas como a homossexualidade, incesto, o desequilíbrio que leva à loucura, criando personagens que eram dominados por seus instintos e desejos, pois viam no comportamento do ser humano traços de sua natureza animal. Inglês de Sousa, escritor paraense nascido na cidade de Óbidos em 1853, se inspira nas histórias de sua região em sua produção literária. Viveu em uma época de grandes transformações sociais no Brasil, das campanhas abolicionistas e republicanas, do abalo dos alicerces do catolicismo entre outras situações. A escola naturalista privilegia as ciências, mas Inglês de Souza privilegia as lendas e mitos nascidos na Amazônia, atento aos eventos sociais de sua época. Neste contexto, Inglês de Souza escreve a obra Contos Amazônicos, na qual enfoca o quadro social da época, à partir da observação de vários aspectos regionais, da luta do homem contra o meio selvagem, dos embates sociais e políticos e da natureza ameaçadora. Um dos marcos da região são os rios, por onde navegam os grandes mistérios de assombração, das crendices, do poder mágico do canto agourento das aves, da cobra grande que devora homens, das ameaças do feitiço. (PAIXÃO, 2004). , Belém, v. 11, n. 22, p. 37-46, jan./dez. 2009

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4 ACAUà “Acauã” é uma ave comum no município de Faro, no vale do Amazonas, cujo canto prenuncia desgraça a quem o houve, que ao “arremedar” o pássaro comprova a efetiva desgraça. O capitão Jerônimo Ferreira, viúvo e pai de Aninha realizou uma caçada em uma sexta-feira para espantar a saudade da esposa. Perde-se ao voltar para casa. Ocorre uma tempestade, ouve um clamor horrível e desmaia de medo. Ao acordar avista uma canoa no rio e no seu interior uma menina abandonada, que adotou e deu o nome de Vitória. Aninha, filha do Capitão, órfã de mãe desde recém-nascida, era uma criança robusta, mas aos quatorze anos, torna-se franzina e pálida. Aparentemente se dava bem com a Vitória, sua irmã adotiva, contudo, mesmo sendo meiga, demonstrava acanhamento, sofrimento, repulsa e um vago terror em relação à mesma. Parecia uma escrava perto da senhora. Aos quinze anos, tornara-se mais fraca e abatida, pouco falava, não sorria, aparentava um cansaço geral, sentia-se desvitalizada. Aninha aceita a dois pedidos de casamento, mas desiste de ambos aparentando agravamento de sua “desconhecida” doença, sendo obrigada pelo pai a manter o último compromisso. Vitória fora abandonada pela mãe e adotada pelo capitão. Quando adolescente se tornou uma bela jovem, forte, “com músculos de aço”, narinas dilatadas, olhos negros com um brilho estranho, apesar da beleza, “tinha alguma coisa de masculino nas feições e nos modos”. Com a proximidade do casamento de Aninha, Vitória fica extremamente agitada e com raiva. No dia do casamento de Aninha, toda a população da vila estava presente na igreja, exceto Vitória. Na hora do sim, Aninha perde a voz e começa a tremer, ao perceber a presença da irmã na porta da igreja, com a cabeleira feita de cobras, as narinas dilatadas e a pele verde negra, o olhar endemoniado e terrível, fixo nela, cuja boca entreaberta, da qual saia um fumo azulado que ia subindo até o teto da igreja. O espetáculo era inominável. Aninha grita e sofre uma forte convulsão. Encolhe os braços como fazem os pássaros, bate várias vezes “nas ilhargas”, e emite um longo grito que nada tinha de humano, um grito lúgubre, que ecoou pela igreja: “ACAUÃ!” Todos na igreja compreenderam a terrível desgraça trazida pelo pássaro. Observa-se neste relato a presença do fantástico na vida das pessoas, uma ave agourenta capaz de determinar-lhes a sorte. O capitão atribui o fato por ser uma sexta-feira, dia de “mau agouro”. A tempestade e os raios deixam o capitão confuso, “as habitações ficam sombrias”, houve um clamor horrível vindo do rio. Cai assustado e espanta uma grande ave que canta “ACAUÔ, “ACAUÔ, prenunciando desgraça. Freud, (1919, p. 238), refere-se ao fenômeno do duplo, pela convergência do desejo e da angústia, definido pelo vocábulo alemão unheimlich, que significa “desconhecido, estra-

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nho, não habitual” e que desencadeia emoções que vão do prazeroso ao desgostoso, diante de situações conhecidas e familiares, e que Freud define como “o estranho é aquela categoria do assustador que remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar”. Segundo Paz (2005), a inquietação para Freud refere-se em primeiro lugar, ao recalcado que veio à tona, em segundo lugar, pela emergência de modos arcaicos de funcionamento e crenças, como o pensamento mágico e a confusão entre o eu e o outro. Trata-se do unheimliche (FREUD, 1919), de algo que fica escondido e se mostra, ao mesmo tempo, a uma só vez estranho e familiar. O capitão ouve o “clamor horrível”, familiar e estranho ao mesmo tempo, por remetêlo a sua própria angústia, e no confronto com suas crenças, fantasia a experiência dolorosa vinculando-a ao grito de ACAUÃ. No auge de sua dor, encontra Vitória, criança rejeitada pela mãe, a quem acolhe num momento de grande conflito, o que predispõe esta relação à maldição e inquietação. Aninha, pouco verbal, apresentava sinais de adoecimento, emudecida em seus desejos a exemplo de Anna O., paciente histérica tratada por Freud em 1895. Note-se que Aninha ficara órfã ainda bebê e cresce sem o modelo feminino materno. Apresenta sentimentos ambivalentes, mesmo sentindo repulsa pela irmã adotiva, a esta se submete, deixando-se escravizar sem enfrentamento. Há uma hesitação no relacionamento entre as duas, que provoca angústia. Vitória mantinha um poder sobre Aninha, sugerindo um desejo homossexual, investindo em seu amor de forma incisiva, o que lhe causava mal-estar e estranhamento, sendo acometida de uma crise histérica no dia do casamento. O sintoma toma a forma da cultura a que pertence o sujeito, no caso de Aninha, este sinaliza o horror ante seu desejo inconsciente, condenável pelo grupo social e por ela mesma, em uma região peculiar que sujeita o homem às crendices e feitiçarias. A moça estava “enfeitiçada”. Como a relação afetiva do histérico com o outro se baseia na fantasia, Aninha se apresenta sempre infeliz e insatisfeita, evitando a qualquer custo um estado de plena satisfação, com funcionamento regredido e recalcado em sua sexualidade infantil. Há um paralelo entre a fantasia da personagem criada pelo escritor, com a fantasia vivida pelos sujeitos fora da ficção, identificados pela Psicanálise. Vitória se apresenta com a cabeleira feita de cobras, elementos fálicos, numa analogia à figura mitológica de Medusa, num deslocamento do sexo para o rosto, desvelando o que estava escondido, como analisado por Freud, encarna o horror feminino frente a sua dimensão misteriosa e pulsional. Era a eclosão do desejo “horrível”, “estranho” e aterrorizante de Aninha, inscrito em sua fantasia, o “estranho que lhe era familiar”. Como o desvelar do desejo lhe é insuportável, entra em convulsão, emite o grito de “ACAUÔ, numa clivagem do eu, para fugir ao estranhamento de si mesma. Inglês de Souza mostra seu entendimento do universo psicológico, seus atores forjam suas subjetividades a partir do enlace social, do confronto com o mítico, cujo conhecimento é

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transmitido de geração em geração, por meio de lendas, mitos e contos de fadas. Tais pensamentos mágicos sobrevivem em nossa maneira de pensar na contemporaneidade, como tratado por Freud em Totem e Tabu (1913). Segundo Ceccarelli (2007, p.181), os mitos são relatos que o homem constrói para explicar aquilo que ele “ignora”. As causas primeiras e a própria essência da realidade de uma cultura encontram aí sua explicitação. Através deles, evocam-se deuses e forças cósmicas para significar tanto o que se passou, como aquilo que acontecerá aos homens e ao resto do universo. Para que um determinado relato mítico tenha valor de verdade ou de revelação, para que seja sagrado, ele deve ser atribuído às divindades supra-humanas e eternas, as únicas detentoras de uma autoridade inquestionável. Os mitos de criação, considerados os mais sagrados, pois constituem a base sobre a qual se assentam os posteriores (HIGHWATER, 1992), trazem sempre consigo uma mensagem, explícita ou implícita, sobre a origem do homem, traça seu destino e determina suas condutas e seus deveres em estreita relação com o projeto divino. Eles testemunham a necessidade do homem de recorrer aos deuses para compreender e esclarecer tanto a sua vinda, quando o seu destino no mundo. A maneira como o homem foi criado - a partir da argila, da madeira, de algas, saído das entranhas da terra, caído do céu e outras tantas, enfim, a particularidade de sua origem, será determinante para seu futuro. O sujeito reproduz inconscientemente, crenças e valores introjetados do meio. O pensamento mítico provoca uma confusão entre o eu e o outro e a magia do lendário amazônico vem confirmar que a noção de inconsciente é incompatível com a ilusão do individual. A arte e a psicanálise estão entrelaçadas, ambas usam o mito para falar da realidade, das neuroses desencadeadas pela castração. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste trabalho procuramos analisar as interseções da Psicanálise com a literatura, no que tange às fantasias dos sujeitos. A literatura opera no campo da ficção e das figuras metafóricas despertando o interesse de Freud pela arte, relacionando-a aos significados reprimidos e inconscientes, projetados pelo criador, capaz de transformar os impulsos primitivos em formas simbólicas culturalmente aceitas. A proximidade entre os sintomas neuróticos dos sujeitos e as produções artísticas é vívida, por ser o neurótico alguém que se rebela contra a realidade de seus desejos e se refugia na doença enquanto o artista é um sujeito que aspira a autoliberação e através de sua obra, pode expressar suas fantasias narcísicas e eróticas. A histeria é a expressão dos conflitos psíquicos de natureza sexual vivido por Aninha, descritos por Inglês de Souza, fiel as cenas regionais da Amazônia, com suas características peculiares, cujas fantasias seguem alimentadas por mitos e lendas locais. Atento à cultura de sua época, Inglês descreve atores que forjam subjetividades a

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partir do enlace social, do confronto com o mítico, do mágico, do feitiço, a solidão do Capitão Jerônimo, atado a sua viuvez, se confunde com a solidão da grandiosidade amazônica, seus rios parecem perpetuar tais conhecimentos de geração em geração, como o mito do ACAUÃ, para explicar aquilo que o homem não consegue compreender, provocando pensamentos mágicos que sobrevivem na maneira de pensar e de agir ainda hoje, vinculados a sexualidade humana e suas práticas. No século XXI, as manifestações psicopatológicas da subjetividade representam o mal estar do sujeito com a cultura, desencadeando processos neuróticos, psicóticos, variados transtornos entre outras formas de manifestação, escoados através da religião como promessa de realização das fantasias de felicidade plena, ou pelas drogas, ou através do sexo, da arte, do trabalho, da busca do corpo perfeito e outras formas de sublimação. Forjam-se novos mitos sociais desencadeantes de fantasias que apontam para o mal-estar dos sujeitos na contemporaneidade. “O desejo do amor do outro e o medo de perder, acompanha o ser humano” (FREUD, 1930). Inglês de Souza analisa as manifestações psíquicas de cada personagem de sua ficção, e o faz com maestria, pois diante de sentimentos como amor, ódio, desejo, estranhamento, repulsa, medo e desamparo, nos mostra a humanidade de cada um de nós. Assim, nos deparamos com a grande questão que a Psicanálise nos aponta, e que nos constitui como sujeitos, sobre a necessidade de nos sentirmos amados, ligado ao Édipo, ao medo de perder, ligado à castração, no contexto da cultura a que pertencemos. REFERÊNCIAS AZEVEDO, A. V. Mito e psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004 CECCARELLI, P. R. Mitologia e processos identificatórios. In: Tempo Psicanalítico, Rio de Janeiro, v.39, p. 179-193, 2007. FREUD, Sigmund. Edição Standard. Rio de Janeiro: Imago, l972 ______ . O Projeto (1895) ______ . Histeria (1888) ______ . Estudos sobre a Histeria (1895) ______ . Observações adicionais sobre as neuropsicoses de defesa (1896) ______ . A etiologia da histeria (l897) ______ . Totem e Tabu (1913) ______ . O inconsciente (1915) ______ . O estranho (1919)

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______ . O mal estar na civilização (1930) FOUCALT, M. Doença mental e psicologia. Rio de Janeiro: Edições Tempo Brasileiro Ltda., 2000. FULKS, B. B. Freud & a Cultura. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. HIGHWATER, J. Mito e sexualidade. São Paulo: Saraiva, 1992. MEZAN, R. Freud, o pensador da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1997. MENDES, E. R. P. Sigmund Freud e as interseções entre psicanálise e cultura. In: Revista Reverso, Belo Horizonte,   v.28, n.53,  set. 2006. NASIO, J.D. Édipo, o complexo do qual nenhuma criança escapa. Tradução: Andre Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007. PAZ, O. O outro ou o outro. O espelho e a transferência. In: RIVERA, Tânia. Guimarães Rosa e a psicanálise: ensaios sobre imagem e escrita. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. RIVERA, T. Arte e psicanálise. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005. SOUSA, I. Contos amazônicos. Edição preparada por Sylvia Perlingeiro Paixão. São Paulo: Editora Martins fontes, 2004. p.59-71 (Texto: Acauã). .

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Artigo AS TRILHAS DE UM PROJETO DE EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA – UNAMA: CONSELHOS ESCOLARES Maria das Graças da Silva Lima* Sheila Patrícia Santos da Silva**

RESUMO Neste artigo pretende-se situar o foco nas trilhas do Projeto de Extensão Universitária da Universidade da Amazônia, Conselhos Escolares: Uma experiência de Democratização da Educação na Amazônia. Utilizou-se a pesquisa bibliográfica, buscando nos livros, nos relatórios do Projeto, desde 2001 até o momento atual, bem como nas atividades de formação todo o entendimento que o conjunto de dados indicam. Verificou-se que a gestão democrática ainda é nova e tímida na educação brasileira, especificamente nas escolas públicas de Belém que participam do Projeto, embora já se encontrem pessoas que buscam na função de Conselheiros Escolares a maior participação dos diversos segmentos da escola, visando a solidificar a gestão participativa e a qualidade da educação. Constatou-se também a dificuldade em desenvolver as ações de conselheiros, que deveriam destacar-se no dever de atuar nas ações administrativas, pedagógicas e financeiras, pois, ainda, a maior ênfase é dada ao financeiro, não só com a preocupação em melhor gerir as verbas destinadas à escola, mas com a prestação de conta devida. PALAVRAS-CHAVE: Conselhos. Gestão Democrática. Qualidade da Educação.

THE STEPS TRACES OF A UNIVERSITY EXTENSION PROJECT AT UNAMA: SCHOOL COUNCILS ABSTRACT1 This article aspires to situate the focus on traces of Universidade da Amazônia’s University Extension Project, School Councils: The experience of democratization of the Amazonia’s Edu*

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Mestre em Educação e Coordenadora do Projeto Conselhos Escolares: uma experiência de democratização da educação na Amazônia, da Universidade da Amazônia. Aluna do Curso Serviço Social e Bolsista do Projeto Conselhos Escolares Abstract: João Marcelo da Silva Barata. Docente do Aslan.

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cation. It used the bibliographic research, seeking in books, in Project’s statements, since 2001 until the present moment, as the activities of formation all the comprehension that the informations set seems to indicate. It was checked that the democratical administration is still new and timid in brazilian education specificly at public schools in Belém which participate of the Project, although there are already people who seek in the school counsellor function a lager participation in many school segments, aspiring to solidify the participative administration and the education quality. It was also verified the difficulty in developing the counsellors actions, that must show off in the duty of acting in administrative actions, pedagogical and financial, therefore, even, the larger emphasis is given to financial, not only with the preoccupation in managing better the grant destined to school, but with the appropriate account instalment. KEYWORDS: Council. Democratical Administration. Education Quality. 1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Sabe-se que historicamente o Brasil não proporciona uma educação igualitária e equalizadora. Entretanto, sabe-se, também, que devido aos atuais índices de atendimento da população na faixa etária de 7 a 14 anos, ter alcançado 97%, podemos afirmar que a democratização do acesso à escola já é uma realidade no Brasil. Contudo, o maior desafio que se apresenta aos educadores e à comunidade escolar como um todo, é o de proporcionar aos estudantes uma educação que faça valer a sua condição de sujeitos de direito. 1.1 FUNDAMENTAÇÃO LEGAL A Constituição Federal, em seu artigo 205, expressa que a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. Ainda a Constituição Federal, no artigo 206, deixa expresso que o ensino será ministrado com base em alguns princípios, entre eles a gestão democrática do ensino público, na forma da lei. Vale ressaltar que um dos objetivos e prioridades expressos no Plano Nacional de Educação (PNE), lei aprovada em janeiro de 2001, é a democratização da gestão do ensino público nos estabelecimentos oficiais, e uma de suas metas é a criação de Conselhos Escolares nas escolas de Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio. Por outro lado, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB ou LDBEN), em seu artigo 14, estabelece que os sistemas de ensino definirão as normas da gestão democrática do ensino público na Educação Básica, de acordo com as suas peculiaridades e conforme os seguintes princípios:

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1. participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; 2. participação das comunidades escolar e local em Conselhos Escolares ou equivalentes. Portanto, é evidente que a gestão democrática nas escolas públicas é uma experiência relativamente nova na prática social da educação, pois no plano formal, ela emerge com a Constituição Brasileira de 1988 e é ratificada pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1996) e pelo Plano Nacional de Educação (2001). Para a concretização do Estatuto da Gestão Democrática, estabelecido em lei, exigese, entre outras coisas, a criação de espaços propícios para que novas relações entre os diversos segmentos escolares possam acontecer. Nesse sentido, o Conselho Escolar surge como um desses espaços que, juntamente com o Conselho de Classe, o Grêmio Estudantil e a Associação de Pais e Mestres, desempenham um papel importante no exercício da prática democrática. Verifica-se, no entanto, que a implantação dos Conselhos Escolares nas redes públicas de ensino tem ocorrido a partir da necessidade de controlar as verbas recebidas pelas escolas, tanto do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) como de outras fontes. Com isso, os Conselhos Escolares, em sua maioria, têm desenvolvido uma ação meramente fiscalizadora, que pouco contribui para a melhoria da prática social da educação. O Conselho Escolar, como órgão consultivo, deliberativo e de mobilização mais importante do processo de gestão democrática, não deve configurar-se como instrumento de controle externo, e sim como um parceiro de todas as atividades que se desenvolvem no interior da escola. E, nessa linha de raciocínio, pode-se destacar que a função principal do Conselho Escolar está ligada à essência do trabalho escolar, isto é, está voltada para o desenvolvimento da prática educativa, na qual o processo ensino-aprendizagem deve ser o foco principal, sua tarefa mais importante. Com isso, a ação do Conselho Escolar torna-se políticopedagógica, pois se expressa numa ação sistemática e planejada, com o intuito de interferir sobre a realidade, transformando-a. A forma que se configura como a mais promissora para que o Conselho Escolar possa desempenhar sua função de acompanhamento do processo educativo é a de ser co-responsável pelo planejamento, implementação e avaliação do projeto político-pedagógico da escola. Isto porque o projeto político-pedagógico é o retrato da escola em movimento (GRACINDO, 2004) e reflete o esforço coletivo no sentido de estabelecer as ações pedagógicas e administrativas que servirão de “ponte” entre o existente e o desejável. Dado que a base do projeto político-pedagógico é o contexto escolar existente e seu objetivo é a melhoria da prática que se desenvolve na escola, com vistas a uma educação de qualidade, ele necessita refletir a concepção de educação que vai nortear o seu trabalho. Nesse sentido, algumas perguntas poderão auxiliar nessas reflexões: qual a escola que temos? Que escola queremos? O que é qualidade em educação?

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A fim de buscar respostas para esses questionamentos, a UNAMA, por meio da Superintendência de Extensão, a partir de uma análise de experiências de democratização na educação da rede escolar municipal de Belém, focalizando o funcionamento dos Conselhos Escolares, já desenvolve o Projeto Conselhos Escolares desde 2001, e com a continuidade deste, realiza diferentes atividades junto aos Conselhos Escolares da rede pública de ensino em Belém / PA, uma vez que busca fortalecer a participação dos diferentes segmentos da comunidade escolar, tendo em vista a ampliação e a garantia da qualidade da educação. Como instituição ensinante e aprendente, portanto produtora de conhecimento, a UNAMA vem subsidiando e potencializando a atuação dos conselhos escolares com a elaboração, publicação e distribuição gratuita de instrumental teórico-metodológico de modo que por meio da participação da vida da escola, se efetive a gestão democrática. Desde 2005, o Projeto vem comprometendo-se especialmente com este debate, reforçando a importância de participação da família, da comunidade e do desenvolvimento do protagonismo infantojuvenil. Para alcançar êxito nesta tarefa contou com a parceria do Conselho Municipal de Educação (CME/Belém), Secretaria Municipal de Educação (Semec/Belém), Secretaria Estadual de Educação (SEDUC). Em 2006 assessorou a Secretaria Municipal de Educação de Santarém(SEMEC/Santarém), na implantação de Conselhos Escolares, naquele município, por meio de: • Realização de reuniões mensais em Belém ou Santarém (subsidiada pela Prefeitura de Santarém) para discussão dos encaminhamentos e planejamento das ações dos multiplicadores. • Articulação para participação em evento promovido pela SEMED (subsidiada pela Prefeitura de Santarém). • Assessoramento a elaboração e publicação de subsídios para multiplicadores em Santarém. • Assessoramento a elaboração de projetos de captação de recursos. • Acompanhamento on-line das atividades realizadas. O Projeto atinge atualmente cerca de 83 Conselhos Escolares e já capacitou mais de 1328 conselheiros das escolas da rede estadual (24) – Programa Pro Paz Educação e municipal (59) em Belém (Icoaraci, Outeiro, Mosqueiro, Benevides, Ananindeua, Marituba e Santa Bárbara). Pretende, ainda, produzir subsídios e realizar ações de caráter formativo e com linguagem lúdica e consubstanciar a ação destes agentes por meio da elaboração de materiais e ações que versem sobre a qualidade da educação escolar. A Unama, atua a 9 (nove) anos com este Projeto e acredita-se ser o único desenvolvido por uma Universidade em Belém, no Pará e quem sabe em toda Região Amazônica, e , com a continuidade deste, pretende realizar diferentes atividades junto aos Conselhos Escolares da rede pública de ensino. Assim, todo o ano reestrutura o projeto, revê seus objetivos, visando a atender as necessidades explícitas nas reuniões de formação de conselheiros escolares.

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1.2 OBJETIVOS DO PROJETO 1.2.1 Objetivo Geral Contribuir para a ampliação da qualidade da educação nas escolas públicas municipais e estaduais da região metropolitana de Belém, a partir do exercício dos Conselhos Escolares, subsidiando e potencializando a atuação dos conselhos escolares por meio de instrumental teórico-metodológico de modo que a participação da comunidade escolar se efetive na gestão da escola. 1.2.2 Objetivos Específicos • Ampliar o processo de discussão, formação e capacitação dos conselheiros escolares das escolas municipais e estaduais da região metropolitana de Belém que participam do projeto, em parceria com os órgãos competentes. • Subsidiar a atuação dos conselheiros escolares na compreensão da qualidade da educação escolar a partir de uma visão de gestão democrática. • Assessorar conselheiros escolares nos processos de avaliação da escola e elaboração de estratégias de atuação. • Produzir e distribuir as atividades do projeto em mídia impressa ou digital. • Identificar e divulgar experiências bem sucedidas nos Conselhos Escolares. • Viabilizar a comunicação e informação interna e externa entre escolas da mesma região e com outras instituições interessadas. • Desenvolver atividades em parcerias com o Projeto Escola Rede Cidadã - Rede de Ação Interdisciplinar e Interinstitucional em Prol de Prevenção e Minimização de Violências no espaço escolar. Destaca-se que ao longo desses anos seguidos de investimento no diagnóstico e na formação dos Conselhos Escolares, propõe-se a estabelecer processos sustentáveis que visam: a) um aperfeiçoamento das redes de comunicação entre as escolas, principalmente em nível distrital; b) um monitoramento interno da gestão democrática; c) uma formação intensiva de multiplicadores (técnicos e educadores da rede pública de ensino); Paralelamente, projeta-se também as experiências para o ambiente das escolas estaduais, que não participam do projeto, materializando-as com acompanhamento e qualificação da formação de educadores na elaboração e implementação do Projeto Político-Pedagógico como instrumento precípuo de enfrentamento à evasão e a repetência escolar.

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Além de executar o Projeto, a UNAMA define a formação e capacitação de lideranças num processo democrático de gestão das políticas básicas como um dos seus principais objetivos institucionais. Conta com um quadro técnico qualificado de pesquisadores professores e estudantes bolsistas que aprofundarão os resultados dentro de uma análise num contexto mais amplo de construção de conhecimento, envolvendo alunos de graduação do Curso de Pedagogia, Serviço Social e Ciências Sociais. Na esfera governamental federal há a clara concepção de que os Conselhos Escolares são elementos essenciais na construção de um processo educacional de qualidade. A criação do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares destaca a importância da ampliação da participação da comunidade escolar e local na gestão administrativa, financeira e pedagógica da escola, especialmente na construção coletiva de um projeto educacional na esfera escolar, em consonância com o processo de democratização da sociedade, o fomento a cultura do monitoramento e a avaliação das escolas, tendo em vista a garantia da qualidade da educação. De acordo com a Portaria Ministerial nº 2.896/2004 que cria o programa, cabe aos Conselhos Escolares “reforçar o projeto político-pedagógico da escola” e considerá-lo como a “a própria expressão da organização educativa da unidade escolar”. A escola que queremos permite a aproximação com o debate que relaciona gestão democrática e qualidade da educação escolar, uma vez que a qualidade da educação é um processo de construção permanente e de responsabilidade coletiva, cujos pais, alunos e funcionários, técnicos e gestores têm sua parcela de responsabilidade e contribuição. As políticas educacionais para a Educação Básica no Brasil, nos últimos anos, são compostas por uma série de ações que pressupõem a melhoria da qualidade do ensino com a participação da comunidade. O Plano Nacional de Educação – PNE, aprovado em 2001, prevê a democratização da gestão no âmbito da escola pública, a elevação do nível de escolaridade da população, reduzindo as desigualdades sociais e regionais no que se refere ao acesso e à permanência com sucesso na educação pública e assim melhorando a qualidade do ensino em todos os níveis da Educação Básica. Em 2007, foi lançado, o Plano de Metas Compromisso Todos pela Educação, que pretende conjugar esforços da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, incluindo famílias e comunidade, em direção da melhoria da qualidade da Educação Básica, e o Plano de Desenvolvimento da Escola – PDE-Escola, cuja prioridade é obter uma Educação Básica de qualidade, a partir do diagnóstico dos problemas, estabelecimento de metas e planos de ação para as escolas das redes públicas de Educação Básica, considerando que “cada escola deverá indicar as metas a serem atingidas, quais as ações necessárias, o prazo para o cumprimento das metas e os recursos necessários”. A relação entre a participação da comunidade escolar na construção da qualidade da escola é reafirmada na posição de Schwartzman (2004) de que “ [...] não pode haver melhoria significativa no ensino em qualquer nível sem a participação ativa dos professores e dirigentes, das famílias e das comunidades locais” (p.30). O âmbito em que todos estes sujeitos

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estão representados é no conselho escolar, nesse sentido, os conselhos escolares têm um papel decisivo na avaliação, na construção e no acompanhamento da qualidade da escola. O conselho escolar é a instância máxima de gestão democrática da escola, entendido aqui como a participação da comunidade, nas decisões administrativas, financeiras e pedagógicas das escolas. Os Conselhos Escolares são considerados como: órgãos colegiados compostos por representantes das comunidades escolar e local, que têm como atribuição deliberar sobre questões político-pedagógicas, administrativas, financeiras, no âmbito da escola. Cabe aos Conselhos, também, analisar as ações a empreender e os meios a utilizar para o cumprimento das finalidades da escola. (SEB, 2007).

Em 2009, o projeto intensificou suas ações pela qualidade de educação devido à evasão de alunos e o fluxo de violência nas escolas, na qual reflete para o bom desenvolvimento da comunidade. Foram feitas formações com intuito de reafirmar parcerias com as escolas vinculadas ao projeto, para dar continuidade ao processo de formação e orientação, contando com a colaboração de professores da instituição, advogado do Tribunal de Contas do Município, técnicos da Secretaria Municipal de Educação de Belém, com objetivo de ampliar conhecimentos e analisar a situação que hoje o Conselho Escolar vivencia em sua escola. Para isso, discutiu-se as dificuldades, o tempo, as parcerias, gestão democrática, recursos financeiros da escola, qualidade de ensino, projeto político pedagógico e a Resolução Nº 036/ 2008 do Conselho Municipal de Belém – CEMEB, 03 de dezembro de 2008, que estabelece normas para a composição e eleição dos Conselhos Escolares da Rede Municipal de Educação de Belém. Estes foram alguns dos temas sugeridos pelos conselheiros e discutidos nas reuniões de formação. As formações acontecem uma vez por mês, atentando para as necessidades que são solicitadas nesses encontros de formação como: apoio de acadêmicos para a questão de leitura, escrita e cálculos matemáticos, esclarecimentos sobre prestação de conta, qualidade da educação , entre outros pontos. Com isso, obteve-se dados e organizou-se atividades complementares para saber de que forma esse conselho está atuando dentro da escola? Que qualidade de ensino essa escola está oferecendo? Quais são as expectativas? Os conselheiros estão sendo atuantes de acordo com a legislação?. A escola em si busca uma educação com qualidade e devido ao planejamento, o objetivo, as metas a serem cumpridas, além de perspectivas, são os fatores que colaboram para formação de cidadãos, que possam exercer sua cidadania com dignidade. Constata-se a diferença entre escolas pelo seu planejamento, pela sua infraestrutura, no decorrer de nossas formações, como: há escola que possui um espaço para reuniões do Conselho Escolar, ou seja, a sala do Conselho Escolar. Lamentavelmente são poucas as escolas que se preocupam em favorecer esse ambiente para reuniões do Conselho, isso também foi um ponto de discussão.

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2 OS RESULTADOS Como resultados significativos, destacamos: a aplicação dos indicadores de qualidade da educação em todas as escolas públicas envolvidas no projeto, onde a maior parte pode “ver-se” com olhos críticos e pensar em estratégias de atuação para interferir no contexto apresentado; a introdução do trabalho de assessoramento e monitoramento dos conselhos escolares como política pública no município de Santarém, que atualmente é coordenado pela Secretaria Municipal de Educação local; a divulgação dos materiais produzidos; visibilidade no município, no estado e tem-se buscado a nível nacional a troca de experiências com outros conselhos; a produção de vários artigos relacionados ao tema elaborados por bolsistas e alunos dos cursos de Graduação da UNAMA que tomam como base a atuação do projeto; a elaboração de monografias que versam sobre a democratização da escola e atuação dos Conselhos Escolares. Como materiais de estudos e monitoramentos o Projeto já elaborou e distribuiu subsídios a atuação dos conselhos escolares, em diferentes formatos e linguagens como cartilhas, folderes, Kit monitoramento, Glossário, CD-ROOM, Informativo O Cuia e Gibi, além de, em 2006, orgaanizou-se a Troupe Bubuia Mambembe formada por 15 adolescentes, estudantes das escolas públicas municipais e estaduais, que fizeram apresentações teatrais em 20 escolas, e dado o sucesso do trabalho foram convidados a fazer apresentações na Estação das Docas durante todo o mês de maio de 2007, cujo objetivo maior das apresentações eram o fomento na importância da atuação dos conselhos escolares. Esses resultados vão ao encontro das propostas contidas no Plano de Desenvolvimento da Educação – PDE, a ser implantado a partir de agosto de 2007, na proposição de que o Brasil passe dos atuais 3,8 para 6,0 no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB, e que o Pará em 2021, no Ensino Fundamental, salte de 2,8 para 5,1 na 1ª fase, e de 3,1 para 5,2 na 2ª fase. Em Belém, especificamente, o objetivo é passar dos atuais 3,0 na 1ª fase e 3,1 na 2ª fase. 2.1

DIVULGAÇÃO DAS EXPERIÊNCIAS, ARTICULAÇÕES E VISIBILIDADE PÚBLICA

a) Apresentação do projeto em atividades acadêmicas como fóruns, seminários e encontros desta natureza: • Apresentação de trabalho na Semana Acadêmica, Fórum de Pedagogia e similares na UNAMA. • Apresentação em 2009, no Fórum Social Mundial. • Apresentação de trabalho na Semana Acadêmica, Fórum de Pedagogia e similares em outras IES. b) Apresentação gráfica de dados coletados em Reunião de Formação para conselheiros escolares nos dias 30 de abril e 21 de maio de 2009. Das 59 escolas municipais da região

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metropolitana de Belém, que participam das formações oferecidas pelo Projeto, 42 escolas responderam. Todos os dados foram sistematizados e apresentados aos mesmos, a fim de apresentar o perfil e atuação dos Conselhos Escolares em Belém. Passemos a apresentar alguns desses dados. Fonte: Projeto Conselhos Escolares: uma experiência de democratização da educação na Amazônia, da Superintendência de Extensão da Universidade da Amazônia - ano 2009

Figura 1

Figura 2

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Comentários: Refletindo-se as contradições no cotidiano da sociedade capitalista, percebe-se (figuras 1 e 2) que existem exemplos que inauguram um novo tempo, um novo comportamento democrático de uma vontade coletiva de transformar a escola num centro de aprendizagens fundamentais para a vida. Embora ainda, há Conselhos Escolares, em pleno desconhecimento do potencial de mudança que poderia ser desencadeado por meio dos Conselhos Escolares, instância máxima de gestão democrática.

Figura 3

Figura 4

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Comentários: Na prática das ações dos Conselheiros Escolares, observou-se (figura 3 e 4) que as relações de poder, presente em qualquer lugar e instância, é um exercício complexo. O exercício democrático de poder da comunidade escolar – participação ampla na discussão dos assuntos; controle e co-responsabilidade das ações, embora represente um grande desafio, a democracia torna-se sorte daqueles que estão numa escola que possui uma gestão participativa, embora ainda não haja uma cultura de “democracia social”, veja como exemplo, os segmentos de pais, comunidades e alunos , que são os únicos e reais beneficiários da escola, ainda há enorme dificuldade em assumir de igual para igual o seu lugar na instância do Conselho Escolar. Nesse sentido há um desafio muito grande que necessita de mudanças.

Figura 5

Figura 6 , Belém, v. 11, n. 22, p. 47-64, jan./dez. 2009

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Comentários: Observa-se que (figuras 5 e 6), o exercício de cidadania, embora acanhada, já se faz presente, e dá condições para que o ser humano, seja o sujeito de sua própria história, capaz de decidir e agir na busca das coletividade das soluções mais adequadas para a organização escolar e da própria sociedade

Figura 7

Figura 8

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Comentários: O fluxo de comunicação da atuação do Conselho Escolas tem merecido atenção nas escolas. Assim, a participação e o envolvimento da comunidade escolar se evidenciam por conta das estratégias que são empregadas como meio de informação e comunicação. Pensou-se e considerou-se importante, também relatar uma das experiências exitosas descrita a seguir, por uma conselheira. Relato: Experiência Exitosa de uma Escola que participa do Projeto ESCOLA: Escola Municipal Amância Pantoja MUNICÍPIO: Belém/ PA Caro amigos do Projeto Conselhos Escolares da Unama. Obrigada por nos proporcionarem momentos de trocas de experiências com outras instituições e de reflexão acerca de uma educação pública de qualidade e voltada para a inclusão de todos. Vou resumir um pouco da experiência da E.M. Amância Pantoja, localizada no bairro de Fátima em Belém, atende cerca de 550 alunos da Ed. Infantil, Fundamental 1ª a 4ª série e EJA. Com compromisso com uma educação democrática e cidadã, temos buscado a valorização do trabalho coletivo e parcerias, através de projetos como: “Família e Escola: uma parceria de sucesso”, proporcionando momentos de discussões com as famílias, onde elas escolhem as temáticas que julguem necessárias colocar em debate na escola, para subsidiarem na educação dos filhos, assuntos como: sexualidade, limites com amor, violência doméstica e na escola, papel de família na educação, pedofilia e outros, foram assuntos de mesa redonda, dramatização, palestras e outras em nossa escola, isso tem trazido resultados positivos para a educação da nossa comunidade. Temos, também, o resgate de alunos infrequentes, e, inclusive, estamos adquirindo reforço a esta proposta no PDE escola adquirindo 01 bicicleta para visitas em domicílios dos alunos. O Conselho Escolar tem trabalhado numa perspectiva de uma gestão coletiva e um projeto político pedagógico que responda aos anseios da comunidade que atendemos, com atividades que visem à inclusão social da educação e capaz de intervir na realidade dessa clientela. Temos vários parceiros, com os quais realizamos ações de cidadania para as famílias e comunidade do bairro. Estamos na luta, espero ter contribuído com este pequeno resumo, e nos colocamos à disposição para uma visita de vocês à escola. Feliz Natal para todos e até o próximo ano, valeu! Rozineide Brasil . Em 23 /11/2009.

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3 CONSIDERAÇÕES FINAIS O invejável índice de matrícula nas escolas, 97% de crianças e adolescentes com idade entre 7 e 14 anos, não garante infelizmente no Brasil, de que esses meninos e meninas estão aprendendo e desenvolvendo-se. A gestão da escola assume neste contexto um papel peculiar já que os fins educacionais a serem realizados relacionam-se à emancipação cultural de sujeitos históricos, para os quais a apreensão do saber se apresenta como elemento decisivo na construção de sua cidadania, de modo que tanto o conceito de qualidade da educação quanto o de democratização de sua gestão ganham novas configurações. O primeiro tem a ver com uma concepção de produto educacional que transcende a mera exposição de conteúdos de conhecimento, para erigir-se em resultado de uma prática social que atualiza cultural e historicamente o educando. O segundo, ultrapassando os limites da democracia política, articula-se com a noção de controle democrático do Estado pela população como condição necessária para a construção de uma verdadeira democracia social que, no âmbito da unidade escolar, assume a participação da população nas decisões, no duplo sentido de direito dos usuários e de necessidade da escola para o bom desempenho de suas funções (PARO, 1998, p.300). Nas atividades de monitoramento realizadas pelo Projeto vemos que o poder público municipal e estadual, nem sempre tem essa compreensão, e há momentos de retrocesso com relação a participação da comunidade e dos próprios trabalhadores/profissionais da educação sobre a gestão democrática da escola. Apesar do município de Belém ter implantado em todas as escolas municipais o Conselho Escolar, muitos se desagregaram ou estavam centrados novamente na figura do gestor. Hoje, percebe-se que há ações de técnicos da Secretaria Municipal de Educação buscando, por meio do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares, do governo federal, reverter o quadro que se apresentava. Os dados anteriormente apresentados dão sinais de que existe a necessidade de uma busca coletiva de soluções em cada instante e lugar dos espaços escolares. Em algumas escolas da rede estadual, a situação era ainda pior, pois ainda há um descrédito muito grande com relação à possibilidade de mudar a situação. A maioria das escolas não conseguia compor o Conselho Escolar. Há uma resistência muito grande entre os trabalhadores/profissionais da educação em participar de um órgão colegiado, por acreditar que historicamente é a direção da escola que decide tudo. Nas escolas em que foi alcançada a composição a atuação era ainda tímida, como se houvesse um temor sobre a compreensão de que a participação é necessária e possível. Em conversa recentemente com uma técnica da Secretaria Estadual de Educação, soube-se que atualmente todas as escolas estaduais de Belém já possuem o Conselho Escolar e que os Conselheiros tem sido capacitados para atender as necessidades do dia a dia do Conselho. Há indícios de que os Conselhos Escolares estão ativos, há um esforço conjunto da Secretaria Estadual de Educação, para que todas as escolas estaduais do Pará, tenham um Conselho Escolar atuante. Portanto o cenário nas escolas estaduais é muito mais desafiador, e o Projeto Conselhos Escolares da Unama se coloca de mãos

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dadas nessa força tarefa, que urge por consolidar uma gestão que seja realmente democrática. A exemplo podemos citar que o Projeto já esteve presente na solenidade de posse dos gestores eleitos das escolas estaduais jurisdicionadas à Unidade SEDUC na Escola - USE 03, da Secretaria de Estado de Educação. Aliado ao processo de implantação, ampliação do processo democrático na educação a partir do exercício dos Conselhos Escolares, o Projeto tem um importante papel na construção da qualidade da escola pública, especialmente por desenvolver um olhar que considera a soma de esforços para os índices que se apresentam, ao se propor trabalhar e subsidiar por meio de instrumental metodológico, reuniões de formação e qualificação aos Conselheiros Escolares. Além de que, o Projeto tem sido tema de artigos e trabalhos acadêmicos, bem como motivado alunos de graduação e Pós Graduação escreverem acerca da temática, Conselhos Escolares, como já foi dito anteriormente. Um dos problemas destacados nos momentos de reunião de formação é a participação efetiva dos conselheiros que, sem nenhum tipo de suporte e incentivo, cumprem com as suas obrigações com muita dificuldade, daí o Projeto continuar a insistir em poder identificar com mais clareza, elementos que impedem um exercício democrático nos espaços escolares. REFERÊNCIAS AZEVEDO, J.C. de. Escola cidadã: desafios, diálogos e travessias. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000. BASTOS, J. B. Gestão democrática. Rio de Janeiro: DP&A: SEPE, 2002. BOURDIEU, P . A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: F. Alves, 1992. BELÉM. Resolução nº 036 – CEMEB, 03 de dezembro de 2008. Estabelece normas para a composição dos Conselhos Escolares da Rede Municipal de Educação de Belém. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. 9394/96. BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares. NAVARRO, I. P. Conselhos escolares: democratização da escola e construção da cidadania, 2004 . p. 38-9. BRASIL. MEC. Portaria Ministerial n. 2.896/2004. Cria no âmbito da Secretaria de Educação Básica - SEB, o Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares. CADERNOS do Programa Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares. mec.gov.br CASSASSUS, J.A. A reforma educacional na América Latina no contexto da globalização. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos Chagas, n. 114, p 7-28, 2001.

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Artigo BREVES REFLEXÕES SOBRE O FUNCIONAMENTO DO SINDICATO NA SOCIEDADE BRASILEIRA Ariolino Neres Sousa Júnior*

RESUMO O presente artigo faz uma abordagem acerca do funcionamento do sindicato na sociedade brasileira. Inicialmente, fazemos menção ao estudo do contexto histórico do sindicato, observando seu comportamento antes e depois do surgimento da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT). Além disso, retratamos o estudo das centrais sindicais, da autonomia e liberdade sindical como componentes indispensáveis ao funcionamento dos sindicatos perante suas categorias profissionais. Por último, fazemos breves reflexões acerca da unidade sindical e sua atual forma de atuação e influência no ordenamento constitucional brasileiro. PALAVRAS-CHAVE: Sindicato. Centrais sindicais. Liberdade sindical. Autonomia sindical. Unicidade sindical.

BRIEF REFLECTIONS ABOUT FUNCTIONING OF UNION IN THE BRAZILIAN SOCIETY ABSTRACT This article is an approach about of functioning of union in Brazilian society. First, we mention the study of historical context of union, observing their behavior before and after the rise of Consolidated Labor Laws (CLT). In addition, portrayed the study of the central unions, autonomy and freedom union as indispensable components the functioning of unions before their professions. Finally, we make brief reflections about the uniqueness union and its current form of activity and influence in Brazilian constitutional order. KEYWORDS: Union. Central unions. Freedom union. Autonomy union. Uniqueness union.

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Advogado e Mestrando em Direito das Relações Sociais pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Email pa ra contato: neresjunior2009@hotmail .com

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1 O SINDICATO NO CONTEXTO HISTÓRICO BRASILEIRO 1.1 ANTES DA CLT No período do Brasil império (1824 a 1889), constatou-se que não havia sindicatos. Os acontecimentos do final do século XIX criaram as condições para o surgimento efetivo do sindicalismo brasileiro. Começou com a abolição da escravidão em 1888, depois com a promulgação da nossa primeira Constituição republicana, em 1891, em que garantiu o direito de associação, mesmo de forma pacífica, segundo preceituava o art. 72, §8º. No primeiro período da história da república, o Estado deixa de regular as relações de trabalho, dentro do conceito de ser o contrato o instrumento apto a regular a relação entre trabalhador e empregador. Nesse sentido, constatou-se que nesse período foram criadas algumas associações de classe, embora elas ainda não apresentassem o caráter sindical, “a exemplo da União dos Operários Estivadores (1903), a Sociedade União dos Foguistas (1903), a Associação de Resistência dos Cocheiros Carroceiros e Classes Anexas (1906) etc.” (BRITO FILHO, 2007)1. Posteriormente, surgem as primeiras leis sindicais no país, no caso do Decreto nº. 979, de 06/01/1903, que permitiu a formação de sindicatos rurais, e o Decreto nº. 1.637, de 05/01/ 1907, que facultou aos integrantes de profissões similares ou conexas, inclusive profissões liberais, organizar sindicatos para o estudo, a defesa e o desenvolvimento dos interesses gerais da produção e dos interesses profissionais de seus membros. Conforme nos explica Wilson de Souza Campos Batalha2, ambos os decretos apresentaram distinções, sendo que o primeiro tinha um cunho ideológico corporativista, haja vista que atribuía ao sindicato a função de intermediário do crédito a favor dos sócios, ao passo que o segundo regulava a criação de sindicatos tendo como base a profissão, com a presença dos critérios da similaridade e da conexidade, abrangendo, no setor urbano, empregados e empregadores, além dos trabalhadores autônomos, incluindo os profissionais liberais. Por outro lado, em 1908 se viu, pela primeira vez, o surgimento de diferentes sindicatos de diversas categorias, cujo objetivo era se unir para definir um plano de luta em conjunto. Dessa forma, surge no Rio de Janeiro a COB (Confederação Operária Brasileira), reunindo cerca de 50 associações do Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco, influenciada por ideias socialistas e anarcosindicalistas. Além disso, a história do sindicalismo sempre esteve ligada à polícia, visto que, inicialmente, o surgimento dos sindicatos no Brasil eram dirigidos pelos anarquistas. Após a influência do Partido Comunista Brasileiro (PCB) foi decisiva para proporcionar a renovação das direções ocupadas por pelegos e oficialistas. Antes da revolução de 30, os sindicatos que estavam profundamente ideologizados

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O professor nos informa que a criação dessas associações de classe surgiu durante um período relativ amente fértil para o sindicalismo brasileiro. O autor considera que no Brasil, o sindicalismo veio de cima para baixo, não representando o resultado de conquistas, mas a outorga ou doação dos poderes públicos.

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seguiam a orientação dos anarquistas ou do PCB. Segundo se constava, os anarquistas se negaram a dar caráter político aos sindicatos, já que eram contra a toda forma de organização partidária. Os comunistas, ao contrário, preconizavam não só a formação de um partido proletário, como também se direcionavam a irradiação de sua atividade política a todas as formas de ação do trabalhador. Além disso, os comunistas consideravam o sindicato como a necessidade de luta contra a exploração burguesa. Em face desses acontecimentos, a partir dos anos 30, inicia-se um novo período para o sindicalismo no Brasil, inaugurando uma fase intervencionista em que se implantou as bases de um sindicato de tipo corporativista, retirando-lhe sua autonomia. De 1930 a 1945 três diferentes regimes tiveram o mesmo líder na chefia do Estado: o governo discricionário de 1930 a 1934, a segunda república de 1934 a 1937 e o Estado Novo de 1937 a 1945. Em novembro de 1930, Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho, ao passo que em 19 de março de 1931, foi editada a primeira lei sindical (Decreto n. 19.770), regida pelos autores Evaristo de Moraes e Joaquim Pimenta, que instituiu o sindicato único e corporativo. Com a promulgação da nova Constituição de 1934, muitos de seus dispositivos permaneceram no papel e não conseguiram alterar a situação existente, a exemplo do que ocorreu com seu art. 120, que, apesar de ter reconhecido a pluralidade sindical e a autonomia, na prática, não houve a concretização nem da pluralidade nem da autonomia sindical, tendo em vista que: Dias antes da promulgação da nova Carta, o governo, que ainda detinha o poder de expedir decretos com força de lei, baixou novo regulamento de sindicalização (Decreto n. 24.664, de 12 de julho de 1934), mediante o qual manteve, em linha geral, os mesmos princípios do estatuto de 1931; o preceito da Constituição de 1934 nunca foi regulamentado. (ROMITA, 1998)

Além disso, José Carlos Arouca3 nos informa que, em junho de 1932, foi criada a Ação Integralista Brasileira, chefiada por Plínio Salgado, que deu suma importância ao movimento sindical, sendo que, para os integralistas, o sindicato deveria ser pessoa jurídica de direito público. Com a promulgação da Constituição de 1937, voltou-se, então, ao antigo modelo direcionado à unicidade sindical e todo o aparato corporativista, uma vez que estabeleceu que apenas o sindicato regularmente reconhecido pelo Estado teria direito a representação sindical. 1.2 PÓS-CLT As bases corporativistas do sindicalismo brasileiro são mantidas, mesmo após a aprovação da CLT, pelo Decreto-lei nº. 5.452/43, e mesmo com a queda do regime que originou a Constituição de 1937. Com o termino do “Estado novo”, e junto consigo a era Vargas, promul3

O autor, em seu livro “Repensando o sindicato”, faz menção a dois importantes líderes que ajudaram a fortalecer ideologicamente o movimento de 1932: Miguel Reale e Gustavo Barroso.

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gou-se a nova Constituição de 1946. Esta última foi considerada omissa, haja vista que não definiu corretamente, a exemplo do seu art. 159, se optava pela unidade ou pluralidade sindical. Dessa forma, em face dessa omissão constitucional, os governos posteriores mantiveram a mesma base de organização sindical herdada pelo Estado Novo. Na fase da era João Goulart, observou-se que nunca o movimento sindical conheceu maior expressividade e destaque. Nos anos 60, o movimento operário cresceu em organizações e reivindicações, sendo que os sindicatos assumem a defesa das reformas de base do governo João Goulart. Além disso, no regime militar se constituiu como um período de tortura ao movimento sindical, pois, ao contrário do que se pensa, o ressurgimento dos sindicatos e o enfrentamento da ditadura não nasceu na região do ABC paulista, mas foi no mês de abril de 1968, na região de Contagem (MG) e depois em Osasco (SP). Posteriormente, em maio de 1978, houve a greve dos trabalhadores da Scania (montadora de veículos) em São Bernardo do Campo, região do ABC paulista. Com a promulgação da Constituição de 1988, inaugura-se o último marco concreto do sindicalismo brasileiro. A nova carta magna tinha como propósito atender aos reclamos daqueles que buscavam menos interferência do Estado nas organizações sindicais, a fim de que conceder a estas últimas liberdade para regrar, de forma autônoma, sua vida interna, além de impedir a interferência e a intervenção estatal. Outra novidade trazida pela Constituição de 1988 foi admitir a sindicalização dos servidores públicos, ampliando os grupos que podem ter seus interesses profissionais defendidos por meio de sindicatos. Dessa forma, constatou-se a mudança no panorama do sindicalismo brasileiro, apesar de ter mudado pouco, visto que ao lado desta liberdade são mantidas as bases do sistema corporativista, no caso da unicidade sindical, a contribuição compulsória e a competência normativa da justiça do trabalho, as quais juntas “forma-se o tripé da incompetência ou tripé da farsa, por sustentarem um sindicalismo descompromissado com suas bases” (BRITO FILHO, 2007). 1.3 O SURGIMENTO DAS CENTRAIS SINDICAIS O fenômeno da criação das centrais sindicais na sociedade brasileira tem sua origem no final dos anos 70, quando já começava a perder forças o regime militar, porém, no período compreendido de 1983 a 1991, intensificou-se o crescimento dessas centrais sindicais. Nesse período histórico de retomada das aspirações democráticas, constatou-se uma busca de trabalhadores pelo fortalecimento de suas organizações de classe, mediante a organização de movimentos de contestação do sistema e defesa da participação político-partidária. Por esse motivo, surgiram diversas entidades sindicais que passaram a congregar metalúrgicos, aposentados e trabalhadores industriais que invadiram o espaço político nacional, a exemplo da CUT (Central Única dos Trabalhadores), CGT (Central Geral dos Trabalhadores) e UST (União Sindical Independente). Assim sendo, a natureza jurídica de tais entidades sindicais é a de associações civis, abrangendo diversas entidades sindicais, isto é, sindicatos, federações ou

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confederações, ou meramente profissionais, no caso das associações de categorias sem sindicatos organizados, associações profissionais não sindicais etc. Atualmente, há o reconhecimento formal das centrais sindicais através da promulgação da Lei 11.648/2008 4, sendo que antes dessa lei, as centrais sindicais não possuíam personalidade sindical, ou seja, não existiam enquanto entidades juridicamente reconhecidas. 2 AUTONOMIA E LIBERDADE SINDICAL A autonomia sindical é uma espécie da liberdade sindical, consagrada na Convenção nº. 87, art. 3º, que a conceitua como o direito de o sindicato elaborar seus estatutos e regulamentos administrativos, de eleger livremente seus representantes, de organizar sua gestão e sua atividade e de formular seu programa de ação. O conceito de autonomia sindical é o que “se constitui como uma das modalidades da liberdade sindical, indicando a possibilidade de atuação não dos indivíduos considerados singularmente, mas do grupo por eles organizado” (MAGANO, 1990). Dessa forma, percebe-se nesse comentário que a autonomia sindical não está desvinculada da liberdade sindical. Por outro lado, a autonomia “é o direito que tem o sindicato de autodeterminação, de governa-se, de aprovar seu próprio estatuto” (BARROS, 2007). Considerando o conceito retratado anteriormente, a autonomia implica também a circunstância de os sindicatos elegerem livremente seus representantes, sem se sujeitarem às condições exigidas para o exercício do direito do voto, elegibilidade e procedimentos das eleições previstas na CLT. Perante o poder estatal, podemos perceber que: A autonomia é liberdade potencializada, é poder de ser livre. Por isso mesmo, autonomia, num primeiro momento tem a ver com a liberdade frente ao Estado, não como poder concorrente e sim como direito de não se subordinar ao seu comando, ficando a salvo, pois, de qualquer ingerência em sua administração ou intervenção capaz de comprometer suas atividades [...]. (AROUCA, 1998)

Além de funcionar como uma espécie de obstáculo à atuação do poder estatal, conforme é observado pelo comentário exposto acima, a autonomia também permite traçar programa de ação, com prerrogativa de representar os interesses dos associados e membros da categoria, de celebrar convenções coletivas, manter serviços sociais e de impor contribuições sindicais. Por outro lado, José Francisco Siqueira Neto5 enfatiza que o modelo corporativista persistiu, mesmo após a promulgação da Constituição de 1988, entretanto, foram excluídas algumas restrições à autonomia sindical em respeito aos incisos I e II do art. 8º de nossa Carta Magna, 4 5

Lei publicada no D.O.U em 31 de março de 2008. Opinião destacada para produção bibliográfica do livro “Direito Sindical Brasileiro”, em Romita, sob coordenação de Ney Prado.

homenagem ao prof. Arion

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destacando o fim do controle do Estado sobre a fundação e dissolução das organizações, a administração, a ação e boa parte da organização sindical. Passando para o estudo da liberdade sindical (art. 8º, I, CF/88), ela pode ser concedida no sentido político, isto é, consiste em reconhecer ao sindicato caráter privatístico, desligado dos aspectos de entidade de direito público de que se revestiam os sindicatos nos regimes totalitários. O sindicato como entidade de direito público é segmento do Estado. Como entidade de direito privado está alheio ao controle estatal, sob todos os aspectos, seja de constituição, de organização, de elaboração de seus estatutos, da categoria que intenta representar, da indicação da base territorial, da eleição de seus órgãos diretores e controladores. Com relação ao sentido individualístico, a liberdade consiste no direito de qualquer trabalhador ou empresa participar deste ou daquele sindicato, de filiar-se ou não, a qualquer entidade sindical. O sindicato, no que tange essa liberdade, representa os interesses individuais ou coletivos, como também exerce a substituição processual no que se refere a certos interesses individuais. Além disso, a liberdade sindical é vista sob dois aspectos: o individual e o coletivo. A liberdade individual teria como titulares os trabalhadores e os empregadores e seria positiva, ou seja, correspondente ao direito de filiação e negativa, que se dividiria em passiva (não filiação) e ativa (filiação). Com relação à liberdade sindical coletiva, que possuiria como sujeito o sindicato, teria dois aspectos da autonomia sindical, que seria a parte dinâmica da liberdade sindical, isto é, a autonomia interna, de constituir-se, estruturar-se, e mesmo de dissolver-se, sem a intervenção estatal e a autonomia de ação, que agruparia as diversas hipóteses do que denomina autotutela. Além disso, há referências à liberdade coletiva positiva e negativa “que teria o sindicato de se filiar ou não a entidades de grau superior” (FRANCO FILHO, 1992). Outra classificação é apontada por Amauri Mascaro Nascimento6 que considera liberdade sindical como: liberdade de associação, liberdade de organização, liberdade de administração, liberdade de exercício das funções e liberdade de filiação e desfiliação. A liberdade de associação é apresentada em nossa Constituição, no art. 8º, inciso I, em que é permitida a livre associação, o direito de trabalhadores e empregadores de criar organizações sindicais sem a intervenção estatal, ressalvando o registro em órgão competente. A liberdade de organização diz respeito à autonomia da organização dos trabalhadores, sendo que essa organização proporciona também o debate entre unicidade e pluralidade sindical. Outros aspectos fazem parte da liberdade de organização, a exemplo do direito de filiação do sindicato a associações internacionais, o direito à livre organização interna, a aprovação dos estatutos da entidade, o critério das eleições, a criação de entidades de nível superior e o direito de reconhecimento e registro. A liberdade de administração se expressaria na forma de democracia interna e autarquia externa. Como democracia interna seria a legitimidade das atividades internas do sindicato, a exemplo da escolha dos membros da diretoria. A autarquia externa o sindicato administraria suas funções sem interferências externas. A liberdade de exercício das funções diz respeito à garantia do exercício das funções do sindicato, da maneira como o sindicato realiza sua ação, com a meta de concretizar seus objetivos. A liberdade de filiação

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e de desfiliação é considerando como uma das mais amplas dimensões da liberdade sindical. Essa liberdade de filiação está presente tanto na esfera nacional quanto internacional da lei, a exemplo do art. 2º e art. 5º, da Convenção n. 87 (OIT); art. 1º, da Convenção n. 98 (OIT); art. 23, inciso IV, da Declaração dos Direitos do Homem; art. 2º, da Convenção Internacional de São Francisco e, finalmente, em nossa Constituição/88, art. 8º, em seu inciso quinto. Outro aspecto que ressaltamos é com relação às medidas de proteção da liberdade sindical que visa a estimular aos indivíduos e às coletividades atuantes, destinadas a permitir e promover o pleno e eficaz desenvolvimento dessa atividade sindical. Nesse aspecto, estas medidas de proteção da atividade sindical, por um lado, derivam do principio da liberdade sindical, como uma consequência deste, mas, por outro lado, constituem pressupostos do exercício real e efetivo da atividade sindical, porque se tais medidas de proteção não existem ou não são eficazes, ele determina que, de fato, a atividade sindical não pode ser praticada. Assim sendo, “o bom funcionamento das medidas de proteção da atividade sindical determina a vigência efetiva da liberdade sindical” (URIARTE, 1989). É enfatizado também que a liberdade sindical é agredida pelo ato antissindical através da violação de um direito específico de um trabalhador determinado, havendo, nesses casos, um duplo bem jurídico tutelado, e um duplo sujeito passivo e duplo titular de ação de proteção, ou seja, um coletivo e outro individual. Por outro lado, mesmo com o advento da Constituição de 1988, mantiveram-se normas incompatíveis com o modelo de liberdade sindical, o que pode ser observado nos incisos II, IV e VII, do art. 8º, haja vista que ainda continua a restrição às liberdades coletivas de organização (unicidade sindical, base territorial mínima, sindicalização por categoria e sistema confederativo da organização sindical) e de exercícios de funções (representação exclusiva da categoria pelo sindicato, inclusive nas negociações coletivas e manutenção da competência normativa da justiça do trabalho), restringindo também a liberdade sindical individual. É a manutenção de parte do modelo corporativista deixado pelo Estado novo. 3 CONCLUSÃO Por fim, fazemos uma breve reflexão acerca da persistência da unidade sindical em nossa legislação brasileira, tendo em vista que essa unicidade é uma herança deixada pelo modelo corporativista adotado desde a era Vargas, surgida pela Constituição de 1937, ainda estando presente em nosso atual ordenamento constitucional pela regra do art. 8º, II. Contudo, entendo que essa unidade sindical, ora apresenta um lado negativo, porque atenta contra o próprio princípio da liberdade sindical e autonomia, mantendo os sindicatos, de uma forma e de outra, atrelados à vontade do Estado, a exemplo da política de restrição à sindicalização por categoria, ora apresenta um lado positivo, já que ela impediria o fracionamento dos sindicatos em outros grupos dissidentes, muitos dos quais com interesses opostos que viessem a desestruturar os interesses gerais daquela profissão, causando, assim, uma desordem social. Portanto, o sindicato não pode ser visto como um simples “clube recreativo”, que cada

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indivíduo se utiliza conforme sua vontade para obtenção de seu divertimento, pelo contrário, o sindicato é uma instituição que representa os interesses de várias categorias sociais de uma nação, e por esse motivo, deve ser respeitado não só pelo poder público, como também pelos demais cidadãos. REFERÊNCIAS AROUCA, José Carlos. Repensando o sindicato. São Paulo: LTr, 1998. BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: LTr, 2007. BATALHA, Wilson de Souza Campos. Sindicatos e sindicalismo . 2. ed. São Paulo: LTr, 1994. BRITO FILHO, José Cláudio Monteiro de. Direito sindical. 2. ed. São Paulo: LTr, 2007. FRANCO FILHO, Georgenor de Sousa. Liberdade sindical e direito de greve no direito comparado: lineamentos. São Paulo: LTr, 1992. MAGANO, Octávio Bueno. Manual de direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 1990. V. 3. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Teoria geral do direito do trabalho. São Paulo: LTr, 1998. ______. Direito sindical. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1991. PRADO, Ney (Coord). Direito sindical brasileiro. São Paulo: LTr, 1998. URIATE, Oscar Ernida. A proteção conta os atos anti-sindicais. Tradução Irany Ferrari. São Paulo: LTr, 1989.

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Artigo CAPTURANDO E DISCIPLINANDO O CORPO INFANTIL1 Susanna Dopazo de Vasconcellos*

RESUMO O presente texto busca analisar e entender, sob o viés dos aportes teóricos de Goffman e Foucault, como se dá a captura e discilplinarização dos corpos infantis, praticados nas escolas de hoje e de ontem. Perceberemos que tanto Comenius com seu ideal pansófico, como La Salle com sua estrutura panótica da Educação, acreditavam na escola como uma instituição onde se desenvolviam métodos que contribuiriam para a disciplina dos alunos e a melhoria do indivíduo. PALAVRAS-CHAVE: Corpos. Disciplina. Instituição total. Escola.

CAPTURING AND DISCIPLINING THE CHILD’S BODY ABSTRACT This paper seeks to analyze and understand, under the bias of the theoretical contributions of Goffman and Foucault, how is the capture and disciplining of children’s bodies, racticed in schools today and yesterday. You’ll notice that both Comenius with his ideal Pansophic, as La Salle with its structure Panoptic Education, believed in the school as an institution Here he developed methods that contribute to the discipline of students and improvement of the individual. KEYWORDS: Bodies. Discipline. Total institution. School.

* Mestre em Educação pela Universidade São Francisco/ SP. Professora da Secretaria Executiva de Educaç ão do Pará. [email protected] 1 Artigo elaborado a partir da dissertação de Mestrado: “Reflexões sobre os usos e desusos do livro didático”.

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1 INTRODUÇÃO Como funciona e se reproduz uma sociedade? Responder a tal questão é levar-nos a analisar as instituições que compõem sua estrutura e para uma primeira resposta diremos que as sociedades criam instituições e que por estas criações ela respira, se desenvolve e se perpetua. Dentro dos organismos sociais encontram-se aquelas instituições que, com características especiais, atuam contundentemente para a vigilância e o controle dos corpos, objetivando sua dependência e obediência em grau elevadíssimo: falamos das Instituições Totais. Reconhecemos nas estruturas destas instituições um modus operandi peculiar, cujo sequestro e o confinamento do corpo é questão prioritária para sua atuação. Eis a primeira característica de todas as instituições totais: o “fechamento”. Assim, os corpos “delinqüentes”, ou considerados “imperfeitos”, às vezes, à margem do campo do saber, são confinados mediante o propósito de que sejam transformados em corpos dóceis, controlados, disciplinados, perfeitos. Para garantir seu “fechamento” a instituição total utiliza de mecanismos como: a ruptura com o mundo exterior; barreiras às relações sociais; a mortificação do eu e aquilo que lhe é a característica mais visível de seu isolamento, as barreiras físicas tais como portões, grades, muros e cercas. O rigor com a vigilância é constante para que seus objetivos sejam contemplados, o que equivale dizer, para que se organize a vida dos internos, no sentido de conformálos (seus corpos), dentro dos parâmetros e valores que a constituem. Como exemplos de instituições totais, citamos: as penitenciárias, conventos, internatos, mosteiros, asilos, sanatórios, quartéis, e tantas outras que apresentem em seu aspecto central, a satisfação das três esferas da vida do indivíduo sendo realizada no mesmo local, ou seja, o labor (trabalho), a alimentação (sobrevivência) e o lazer (recreação e descanso). Eis, a segunda característica das instituições totais. No interior das instituições totais a mobilidade social é praticamente inexistente, dando-nos a ideia de que os dois grupos que a compõe são inteiramente distintos e antagônicos: os internos e os dirigentes. As barreiras prescritas entre os grupos são disposições que vão para além de simples detalhes diferenciadores. São na verdade a própria condição de sua existência enquanto instituição total. Neste sentido o antagonismo entre guarda e prisioneiro, paciente e médico, por exemplo, é a condição sine qua non da estrutura deste tipo de instituição. Dentro das instituições totais germina e se desenvolve dois mundos sociais distintos: o mundo dos que criam as regras (dirigentes) e o mundo dos que só obedecerão tais regras (internos). As regras das instituições totais são bem claras no sentido de que todos, internos e dirigentes, saibam exatamente o que devem fazer, onde devem fazer, com quem devem fazer e como devem realizar suas tarefas e atividades. O controle deve ser total assim como a vigilân-

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cia. Deste modo, em obediência as regras estabelecidas pelo grupo dirigente, os corpos dos dirigidos (presos, doente, religiosos, idosos, abandonados, soldados), serão disciplinados. Como já citado, mobilidade social é insípida nas instituições totais devido à falta ou o controle rigoroso da comunicação entre as pessoas do mesmo grupo e também do grupo antagônico. Tal controle está fundado na intenção de se restringir toda e qualquer informação que venha a se constituir um tipo de poder (quem sabe pode controlar). Informação, conhecimento, saber é poder, ainda que estes três substantivos sejam epistemologicamente distintos. Para corroborar citamos Foucault (FOUCAULT, 1989, p. 142): “Não é possível que o poder se exerça sem saber, não é possível que o saber não engendre poder”. Em seu livro, Manicômios, Prisões e Conventos, Erving Goffman salienta que as instituições totais seriam como verdadeiras estufas que funcionariam para a mudança do indivíduo. Neste sentido, é cristalino o empenho destas instituições em romper radicalmente as relações sociais tanto interna como externamente. Para tanto ela se utiliza de outra característica intrínseca a sua estrutura e que é aplicado aos seus internos: a mortificação do eu. Tal estratégia serve para livrar o indivíduo de todo e qualquer hábito que o impeça de aceitar as novas regras de vida. Tudo numa instituição total gira em torno da vigilância controladora e isto corresponde dizer que até seu sistema de castigos e privilégios é desenvolvido de maneira a disciplinar os corpos indóceis. Tal sistema é utilizado para reorganizar o esquema pessoal que foi anteriormente destruído na mortificação do eu. Salientamos, entretanto, que os privilégios, na verdade, não se configuram como privilégios de fato ou de direito, mas sim e exclusivamente, como ausência de castigo ou punições. Respeitando os limites deste artigo indicamos para maior adensamento do tema a leitura do livro Manicômios, Prisões e Conventos de Erving Goffman. 2 A ORDEM E O IDEAL PANSÓFICO EM COMENIUS Dados os esclarecimentos sobre as instituições totais podemos inferir que a escola é um de seus exemplos? Para que a resposta seja respondida, teremos que vasculhar, no passado, a sua história. A origem da Pedagogia Moderna, assim denominada por ter seu esquema educativo baseado totalmente em esquemas racionais, científicos, em oposição ao que se praticava antes deste período. A Pedagogia Moderna, assim configurada a partir do século XVII, tem em Comenius (Jan Ámos Komensky que adotou seu nome em latim João Amos Comenius, nasceu na Morávia em 1592 e morreu em Amsterdã em 1670) e La Salle, (sacerdote e educador francês do século XVII, nasceu em Reims no ano de 1651 e faleceu em Rouen, em 1719), dois de seus maiores representantes e idealizadores. Seus ideais de escola, de educação, a estrutura funcional destas instituições do saber, ainda hoje se fazem notar em nossos sistemas educacionais.

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A escola sempre teve a função primordial de conformar os corpos dos alunos. Seu poder disciplinador está subjacente as suas características estruturais e funcionais. A instituição escolar seqüestra o corpo da criança e pelo esquema estabelecido entre família e a escola, é institucionalizado o elemento principal da ação pedagógica do mestre. Na palavra de Narodowski (NARODOWSKI, 2001, p. 65), “já não é suficiente a ação do pai para educar corretamente os filhos: agora são os especialistas que, com métodos racionais, deverão atuar ordenada e eficientemente sobre a infância”. O corpo do filho não pertence mais a família, pertence ao professor e com esta transação a criança assume outra identidade: a de aluno. E tem-se sobre seu corpo o poder total para conduzi-lo na ordem, na disciplina. Para tanto, a escola assume uma configuração que seja pertinente a ordem absoluta, ao controle e a vigilância, o que significa dizer que ela vive sob o signo da ordenação e ordenar quer dizer que cada gesto, cada pensamento, seja do aluno ou do professor, deve obedecer a um plano de enquadramento. Este enquadramento pode ser bem visualizado no esquema de ordenação das salas de aula que servirá como canal para a utilização do método da transmissão simultânea. Isto quer dizer que Comenius acreditava, também, no valor da metodologia como responsável por quase todo o sucesso ou insucesso da educação dos infantes. Para tanto, deverse-ia criar condições necessárias para que o método fosse bem utilizado e surtisse os efeitos desejados. Uma das condições, além da própria qualificação do professor, era a organização da sala de aula de modo que fossem estabelecidas duas questões: primeiro, que o professor pudesse ver e ser visto por todos ao mesmo tempo e segundo, que o lugar do saber era restrito aos adultos. Demonstraremos abaixo como era organizada uma sala de aula na configuração proposta por Comenius/La Salle e em Lancaster1. MS.

MESTRE MONITOR

ALUNO

ALUNO ALUNO ALUNO

ALUNO

ALUNO ALUNO

Instrução Simultânea Método Mútuo Professor (adulto) com o monopólio do saber Conhecimento nas mãos dos não adultos (monitores) Imobilidade e Organização Missal Mobilidade e Organização Fabril 1

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Para Joseph Lancaster, a organização do Método Mútuo, diferentemente da instrução simultânea de Comenius e La Salle, assume uma conformação fabril onde um mestre ensina aos monitores (alunos mais graduados) e estes ensinariam os outros alunos. Este pastor da seita dos Quakers acreditava ter encontrado a solução para q uestões de educação de um grande número de alunos: a inequívoca combinação de método e da disciplina, pois ainda que alunos fossem investidos de função docente, a disciplina continuava rigorosa. Seu método ficou conhecido como Método Monitoral-Mútuo (verbete elaborado por Demerval Saviani) ou Método Lancasteriano de Ensino Mútuo. No Brasil Império, por decreto de D. Pedro I, tivemos escolas de primeiras letras utilizando o método mútuo.

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Foucault (FOUCAULT, 1996, p. 131) nos esclarece que o espaço da disciplina “tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir [...]. Cada indivíduo no seu lugar e cada lugar um indivíduo [...] o espaço das disciplinas é sempre, no fundo, celular.” O “quadriculamento,” era para Comenius e também para La Salle, mais que um detalhe, era a necessidade de controle e vigilância totais para que se pudesse disciplinar (educar) os alunos. Quanto mais educados (disciplinados), mais se poderia retirar deste corpo... o poder disciplinador infere na possibilidade de novos mecanismos de poder e em novas aprendizagens. O corpo disciplinado sugere economia de tempo já que se transforma num gesto eficiente, enxuto. Comenius considera que o tempo é fator que necessitava de ordenação. Nada deveria ficar ao acaso. Entendia que o sistema de ensino de um país deveria ser ordenado a tal ponto que, todas as escolas deveriam lecionar a todos os alunos, os mesmos conteúdos. Isto corresponderia dizer a universalização do ensino ao ponto de termos, por exemplo, num dia tal, todas as crianças estudando o mesmo assunto, na mesma página do livro didático e fazendo os mesmo exercícios. Aliás, vale ressaltar que os livros didáticos para Comenius é a própria institucionalização de um saber específico, de “especialistas” e para poucos. É por seu intermédio, que a cultura socialmente valorizada se reproduz e se perpetua legitimamente. O ideal pansófico de Comenius está assentado sobre a ordem/tempo, o método, o controle e a vigilância e constitui a sua própria utopia. Utopia, que, na verdade, é a de todos os educadores, apenas variando ideologicamente seus conteúdos e que consiste na transformação o homem. O homem por ser educável, pode alçar o grau de humanização. Veja esquema: h

Educação

homem da natureza

H

Ser Humano

(Esquema moderno (racional) da utopia compartilhada por Comenius, ainda em vigor. Pela educação o homem pode ser melhorado.) Somente pela educabilidade dos homens é que podemos compartilhar da utopia de Comenius. E por esta utopia foi idealizado o seu sistema pansófico, qual seja: o de ensinar tudo a todos. A síntese da pedagogia moderna, entendida por Comenius, e relatada por Narodowski (NARODOWSKI, 2001, p. 95) é aquela em que todos “devem saber tudo. Por outro lado, nada ficará exposto ao acaso, ao caos ou ao arbítrio dos leigos. Todos os caminhos serão estipulados e todos os passos calculados. O saber reina na mente. A ordem impera nos corpos.” O império da ordem produzirá, com a ajuda de uma metodologia adequada, com livros didáticos bem elaborados, homens cada vez mais próximos de Deus. Para tanto, Comenius inaugura com seu ideal pansófico, um tipo de controle muito mais ligado ao método que ao aluno,

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ainda que a ordem e a disciplina dos alunos fossem sempre buscadas. Mas para Comenius a indisciplina seria decorrente do uso inadequado do método. O controle total é sobre o método e caso aconteçam problemas de indisciplina, estes, certamente, serão decorrentes de quem ensina e nunca de quem aprende. A indisciplina para Comenius é contingencial ao péssimo uso dos métodos pelo professor. Ainda assim, acredita que os mecanismos de castigos e premiações podem e deve ser utilizados. Os castigos e prêmios devem ter um caráter público, para que as ações indisciplinadas sejam desestimuladas e as ações positivas/virtuosas sejam encorajadas. A disciplina é sempre corretiva e exemplificadora. 3 O CONTROLE PANÓTICO DA PEDAGOGIA DE J.B. LA SALLE No final do século XVII e início do XVIII, a Pedagogia Moderna seria enriquecida pelos discursos pedagógicos de João Batista de La Salle. Ele foi o responsável por um movimento que alteraria a configuração da escola idealizada por Comenius. Na verdade, La Salle veio para dar ainda mais autoridade ao professor, aumentando seu papel de vigia dos corpos infantis. Se o controle e vigilância do método era para Comenius o que levaria os alunos à disciplina, em La Salle, o controle e a vigilância recaem, assombrosamente, nos corpos dos alunos. O olhar esmiuçador do professor será a força disciplinadora dos infantes. Em La Salle, a disciplina vai muito além de simples situações conjunturais para o bom andamento das ações pedagógicas, ela é o elemento norteador de sua pedagogia. Sua estratégia se define como uma vigilância de todos os corpos, em seus por menores. A finalidade de tanto controle é a prevenção das falhas e de tão caprichosamente instituída que se desenvolve nos alunos hábitos de autovigilância. Na verdade, forma-se uma corrente de vigilância e controle de todas as ações, inclusive, dos professores. É o ideal panótico que Jeremy Bentham2 utilizou para o controle social. Esse panotismo é na obra de La Salle, a corrente na qual nenhum elo deve escapar ao olhar disciplinador do professor. Narodowski (NARODOWSKI, 2001, p.109) nos esclarece que a “vigilância tem como finalidade produzir uma série de condutas adequadas vinculadas à submissão, à autoridade dos professores.” Tudo que diz respeito ao aluno não será ocultado do olhar do mestre. O controle panótico será constante e implacável. Em caso de indisciplina, ao contrário da pedagogia comeniana, a culpa recai no aluno e não no uso inadequado do método pelo professor. E se o olhar deve capturar todas as ações dos alunos, estes devem, necessariamente, permanecer em locais estrategicamente estabelecidos pelos professores e em absoluto silêncio. O silêncio em La Salle tem valor de respeito 2

J. Bentham idealizou sua estrutura panótica como um edifício circular, contendo uma torre para vigilância e celas no seu em torno, assim a pessoa numa cela nunca saberia quando estava sendo vigiada e esta incerteza também seria um aparato a mais no método de vigiar. É, pois uma arquitetura que propicia um poder da mente sobre outras mentes e que foi utilizada não só em prisões, reformatórios, hospitais, fábricas, mas em escolas também. Tal estrutura de vigilância foi idealizada em 1787.

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ao professor, posto que só ele tem a prerrogativa de falar. Nenhum ruído deve emanar dos corpos dos alunos, nem quando em movimento e muito menos quando em inércia. Narodowski (NARODOWSKI, 2001, p. 111) assevera que o “afã de silêncio chega a tal ponto em seu rigor e exatidão que La Salle propõe o método de sinais para conseguir a absoluta falta de sons na sua aula. [...] O sinal substitui a palavra.” Sobre o silêncio dos alunos, Foucault (FOUCAULT, 1996, p.149) nos diz que: O treinamento dos escolares deve ser feito da mesma maneira; poucas palavras nenhuma explicação, no máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais [...]ou ainda por aquele pequeno aparelho de madeira que os Irmãos das Escolas Cristãs usavam [...] e devia significar em sua brevidade maquinal ao mesmo tempo a técnica do comando e a moral da obediência.

E sobre o rigor do detalhe da microfísica do poder que programou a “disciplina do minúsculo”, fonte de inesgotável vigilância dos corpos infantis, usada com esmero no discurso pedagógico de La Salle, Foucault (FOUCAULT, 1996, p.146) nos diz que são: métodos que permitem o controle minucioso das operações dos corpos, que realizam sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidadeutilidade. [...] É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado.

Esclarecemos que Irmãos das Escolas Cristãs, era uma ordem religiosa criada por La Salle. Com que objetivo deve-se submeter o corpo infantil a tamanho grau de aperfeiçoamento, como se máquina fora? E é uma máquina: de pensar, de ação. E quanto mais aperfeiçoados estes corpos, menores serão seus desvios, menos desperdício de seus atos, economia de tempo. Maior produtividade. Observação mínima, detalhada, com poder de escanear todas as atitudes, as intenções e por que não o pensamento dos alunos, propicia à pedagogia lassalista a condição ímpar de controle permanente e conformação ideal de sujeitos utilizáveis, dóceis. E segundo esta lógica, as salas de aula na França do século XVIII são identificadas pela ótica foucaultiana não apenas como máquinas de ensinar, mas seriam acima de tudo máquinas de vigiar, recompensar e hierarquizar, segundo o valor do aluno, ou sua higiene, ou ainda segundo sua posição socioeconômica. Tal organização e distribuição dos objetos e alunos na sala de aula importaria numa maior eficiência do olhar “classificador” do professor, no sentido de otimizar o tempo de aprendizagem dos conteúdos transmitidos, mas não só isso, o referido esquema também servia como ferramenta de valoração. Quem classifica atribui valor. Ver tudo e a todos, conhecer os corpos em suas menores reentrâncias e sob todos os ângulos, este é o sinal característico do discurso de La Salle e o qual marcou profundamente a pedagogia e estruturou-lhe as escolas até nossos dias.

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Encerramos este segmento com o entendimento agudo de Foucault (FOUCAULT, 1996, p.135) sobre a sala de aula: Então, a sala de aula um grande quadro único, com entradas múltiplas, sob o olhar cuidadosamente “classificador ” do professor [...]. As disciplinas, organizando as ‘celas’, marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia de tempo e de gestos.

4 CONCLUSÃO Arroladas as características das instituições totais. Feitas as demonstrações sobre a conformação da Pedagogia Moderna, construída por Comenius e La Salle, desde o século XVII. Analisando os estudos de Foucault e Goffman, sobre a rotina de instituições fechadas, onde predomine a captura dos corpos objetivando vigiá-lo para controlá-lo e então, discipliná-lo, podemos responder à questão inicial. Tecnicamente, as escolas não podem ser consideradas um exemplo de instituição total, uma vez que nelas não são desenvolvidas ou satisfeitas as três esferas da vida de um indivíduo (trabalho, sobrevivência e recreação). Porém, podemos apontar algumas das características das instituições totais que são plenamente compartilhadas pelas escolas de ontem e de hoje: • As escolas possuem “cercamento”; dispõem de mecanismos para a captura e confinamento dos corpos infantis. • O quadriculamento é um dispositivo usado em abundância pelas escolas, tanto para poder vigiar melhor, como para classificar. • Os corpos infantis sofrem vigilância constante, afim de que sejam disciplinados, pois um corpo dócil rende mais que um indócil, uma vez que seus movimentos são imprecisos e ineficientes. • Procede-se com os alunos certa ruptura com o seu meio exterior, quando os professores ignoram sua cultura própria, adquirida na relação com seu ambiente, impondo-lhes um conhecimento altamente distanciado de sua vida e, na maioria das vezes, sem apelo prático ou funcional. • Há dispositivos de mortificação do eu, quando os alunos são estigmatizados em suas falhas. Há uma supervalorização das falhas dos alunos o que leva a condená-los ao limbo do fracasso escolar. • O poder de decisão está sempre nas mãos dos que dirigem e que são os que ocupam o lugar do saber. Nas escolas este lugar é preenchido pelo professor. • Os castigos e prêmios também são dispositivos encontrados amiúde em nossas escolas. As inúmeras cópias produzidas pelos alunos, os castigos físicos e morais, as recompensas muitas vezes advindas simplesmente pela boa condição socioeconômica de seus alunos, são algumas práticas vivenciadas nas escolas.

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• Proliferação de regras que visam tão somente ao controle de grande número de indivíduos nos presídios, por exemplo, é também observado nas escolas. As regas são feitas para serem cumpridas a risca, caso contrário, sobre o desobediente cairá o castigo exemplificador. • O exercício do detalhamento, do controle minucioso, do olhar esmiuçador e disciplinador é prática constante nas escolas. São tantas as características comuns entre as instituições totais e as escolas que somente aquele possuidor de olhar crítico e perspicaz, poderá de fato enxergar a tênue linha divisória que separa uma instituição da outra e que em alguns casos, nem o olhar mais agudo conseguirá distinguir os mecanismos de uma ou outra. REFERÊNCIAS FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro. Ed. Graal. 1989. ______. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1996. GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974. NARODOWSKI, M. Infância e poder: a conformação da Pedagogia Moderna. Bragança Paulista: Editora da Universidade São Francisco, 2001.

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Artigo EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUSTENTABILIDADE ECOLÓGICA NA UNIVERSIDADE Carlos Jorge Paixão* Shaji Thomas **

RESUMO O presente artigo tem por objetivo expor e explicitar aspectos relativos a educação ambiental focando em elementos de sua trajetória histórica pelas diversas conferências internacionais e documentos legais publicados no Brasil conectando-os com a discussão e as referências publicadas sobre a universidade e a sustentabilidade ecológica. PALAVRAS-CHAVE: Educação Ambiental. Universidade. Níveis de Ensino. Sustentabilidade Ecológica

ENVIRONMENTAL EDUCATION AND ECOLOGICAL SUSTAINABILITY IN THE UNIVERSITY ABSTRAT The present article has the objective to show and explain the aspects related to an environmental education focusing the elements of its historical trajectory by different international conferences and legal documents in Brazil, connecting them with discussions and the references published on university and the ecological sustainability. KEYWORDS: Environmental Education. Levels of Teaching. University. Ecological Sustainability. 1 INTRODUÇÃO Ao longo do século XX as cidades se transformaram na expressão máxima da sociedade atual. Dados do IBGE (2000) atestam que 81% da população brasileira vivem em áreas urbanas. O desenvolvimento urbano é fundamental para dar uma vida sadia para essa população.

* Doutor em Educação (UNESP), Docente / Pesquisador da UNAMA; [email protected] ** Especialista em Psicologia de Formação (Univer. Saint Louise – Missouri / USA); mestrando do Programa de Mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente Urbano da UNAMA. [email protected]

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A noção de desenvolvimento desdobra-se, analiticamente, em desenvolvimento econômico e desenvolvimento social. A melhoria do estágio econômico de uma comunidade – crescimento econômico – requer a elevação do rendimento dos fatores de produção: recursos naturais, capital e trabalho (SANTOS, 2002). Mas o progresso social implica a satisfação de necessidades básicas, tais como nutrição, saúde, habitação, transporte e outras, como acesso universal à educação, liberdades civis e participação política. Diante de complexidade crescente dos problemas socioambientais, precisamos repensar o conceito de desenvolvimento sustentável comumente aceito. Este conceito tem sido criticado por ter se tornado excessivamente genérico e, muitas vezes, servir ideologicamente para favorecer os interesses economicistas e obscurecer as contradições na discussão dos problemas atuais. Muitos movimentos preferem substituir a expressão desenvolvimento sustentável por sustentabilidade socioambiental, que enfatiza a ideia de o desenvolvimento ser um processo em construção, que precisa necessariamente integrar dimensões ambientais e sociais. A construção de um projeto de sustentabilidade que envolve diferentes atores sociais. Neste artigo, entre outras questões, tentamos demonstrar a existência de vários desafios que devem fazer parte da agenda da produção de conhecimento na universidade, do desenvolvimento de política pública, das decisões sobre investimentos econômicos e das ações concretas pelos diversos atores no enfrentamento dos problemas socioambientais. O diálogo e a interação entre poder público, as organizações não-governamentais, cientistas e leigos são essenciais nesse processo de superação da crise ambiental. 2 DESENVOLVIMENTO E SUSTENTABILIDADE Os Princípios um e três da Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente estatuíram que os seres humanos constituíssem o centro das preocupações relacionadas com o desenvolvimento sustentável e com uma vida saudável e produtiva em harmonia com a natureza. Este direito ao desenvolvimento deve exercer-se em forma tal que responda equitativamente às necessidades de desenvolvimento e ambientais das gerações presentes e futuras (DOCUMENTO 2, 2003). Estas formulações reconhecem os direitos humanos como uma meta fundamental e a proteção ambiental como um meio essencial de alcançar uma vida digna, uma vez que a saúde e a existência humanas, protegidas juridicamente como os direitos essenciais à vida, dependem das condições ambientais. O conceito de desenvolvimento sustentado foi apresentado pelo Relatório Brundtland da seguinte maneira: [...] é o desenvolvimento que satisfaz as necessidades da geração presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazerem suas próprias necessidades, e [...] o processo de câmbio no qual a exploração dos recursos, a orientação da evolução tecnológica e a modificação das instituições estão acordes e acrescentam o potencial atual e futuro para satisfazer as necessidades e aspirações humanas (BRUNDTLAND, 1991, p. 46 e ss.).

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O desenvolvimento sustentável deve ser aquele capaz de garantir qualidade de vida a todos, reduzindo as desigualdades sociais que causam da segregação, da exclusão e das grandes desigualdades sociais, e preservando a natureza, tanto em benefício das gerações presentes, quanto às futuras, com a redução da poluição, a degradação e ao esgotamento dos recursos não renováveis. Uma pergunta perturba muitos cidadãos conscientes, autoridades preocupadas com a situação do meio ambiente e as organizações que militam na área: Como garantir a sustentabilidade1 ecológica no espaço urbano? A resposta a essa pergunta atinge um caráter de urgência quando percebemos claramente os sinais de degradação e constatamos que o planeta sente, como nunca, o impacto do peso da vida humana e das ações predatórias longamente praticadas por nós. Manter as bases da economia e o estilo de vida das populações urbanas nos níveis atuais, cujo consumismo desenfreado e o descarte de grandes quantidades de materiais tóxicos e lixo é praticamente a ordem reinante e a lógica por trás de quaisquer ações humanas. Cedo ou tarde, os impactos desse modo de vida se tornarão irreversíveis e populações inteiras sentirão a mão pesada da natureza sobre suas vidas. Vencer as resistências locais, e as políticas tradicionalmente aceitas como verdades absolutas; é a missão do novo pensamento que deve se espalhar e dominar as mentes e os corações dos “novos políticos” e do “novo cidadão”. Duas vertentes do desenvolvimento sustentável segundo Sorrentino (2005) - a primeira volta-se para proposição de soluções que se coadunem com a necessidade de preservação da biodiversidade, conservação dos recursos naturais, desenvolvimento local e diminuição das desigualdades sociais, por meio de novas tecnologias, políticas compensatórias, tratados internacionais de cooperação e de compromissos multilaterais, estímulo ao ecoturismo, certificação verde de mercados alternativos, entre outros - a segunda volta-se para finalidades semelhantes, mas por intermédio da inclusão social, da participação na tomada de decisões e da promoção de mudanças culturais nos padrões de felicidade e desenvolvimento. A primeira tenta solucionar o problema dentro da lógica do mercado, enquanto a segunda, pretende uma compreensão da totalidade das causas da não-sustentabilidade e da crise civilizatória, mas se limita à formulação de propostas regionais. Para construção de uma sociedade sustentável que beneficie a todos os habitantes da terra, precisamos superar as limitações dessas duas tendências, o que exige políticas públicas voltadas para a inclusão e a participação. É necessário um intercambio entre os atores sociais envolvidos nesse processo 1

Reconhecemos a importância dos Estudos sobre “desenvolvimento sustentável” de I. Sachs (1993), mas, para este artigo elegemos a noção de sustentabilidade, do professor holandês Peter Nijkamp (2002). Segundo ele, a sustentabilidade envolve os três aspectos: ecológico, econômico e social. O primeiro diz respeito à manutenção do ecossistema em longo prazo. O segundo, econômico, trata da obtenção de renda suficiente para o custeio da vida em sociedade. E o terceiro aborda o respeito aos valores sociais e culturais e a justiça na distribuição de custos e benefícios.

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de superação da crise. O compromisso das políticas públicas é a inclusão dos atores sociais no questionamento dos valores da sociedade de consumo, pelo estímulo do grupo e do indivíduo ao debate e à busca de respostas para a melhoria da qualidade de vida e, à felicidade material, física e espiritual. A realidade é que para garantir a sustentabilidade ambiental nas grandes cidades, devemos praticamente abandonar o modo de vida que experimentamos até hoje e criar devida consciência nas massas e na classe dirigente de que a exploração desenfreada do meio ambiente só levará a destruição do planeta. Num sistema insustentável de produção, os recursos naturais planetários seriam exauridos muito rapidamente e proporcionariam problemas gravíssimos que seriam sentidos com um impacto devastador nos grandes aglomerados urbanos. Fazer com que a aplicação de políticas garantidoras da sustentabilidade ambiental / ecológica nas cidades representa uma realidade em que se leva em consideração à capacidade de reposição que o planeta tem de seus recursos e, ao mesmo tempo, manter medidas que permitam uma maior justiça social. As mudanças que já foram sentidas devem ser estimuladas e seus reflexos plenamente positivos em uma escala pequena; devem servir de exemplo para que nações e governos menores comecem a implementá-las e a sentir seus reflexos cada vez mais intensamente. Conseguir alterar as relações de consumo e educar a população para o real significado das políticas de conservação do meio ambiente pode ser a única forma de garantir a sustentabilidade ambiental de forma efetiva e com resultados em médio e longo prazo. 3 EDUCAÇÃO AMBIENTAL NA UNIVERSIDADE: um caminho para sustentabilidade ecológica / ambiental Os conceitos de Educação Ambiental (EA) começaram aparecer a partir da segunda metade do século XX e foram consolidando cada vez mais no século XXI. Educação Ambiental é um vocábulo composto por um substantivo educação e um adjetivo ambiental. O adjetivo ambiental qualifica as práticas educativas. Para compreender o significado da educação ambiental, primeiramente, precisamos conhecer qual é o sentido de educação que estamos falando. Loureiro (2003, p.12) define “a educação sendo uma prática social cujo fim é o aprimoramento humano naquilo que pode ser apreendido e recriado a partir dos diferentes saberes existentes em uma cultura, de acordo com as necessidades e exigências de uma sociedade”. Aqui a educação atua na vida humana no seu desenvolvimento tanto tecnológica como cultural de produção. A educação não é apenas uma reprodutora de padrão social, ela também atua na atividade reflexiva que tal padrão pode trazer no seu ambiente. A educação ambiental aparece na legislação brasileira desde 1973, como atribuição da primeira Secretaria Especial do Meio Ambiente (Sema). Nos anos setenta e oitenta as medidas educativas eram voltadas para a conservação dos recursos naturais e a mudanças compor-

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tamentais individuais. Em 1984 foi criada o Programa Nacional de Educação Ambiental (Pronea). As discussões em torno de EA adquirem caráter público em meados da década de 1980, com a realização dos primeiros encontros nacionais, a atuação das organizações ambientalistas e a ampliação da produção acadêmica relacionada à chamada “questão ambiental” (LOUREIRO, 2004, p.37). Mas, a educação ambiental somente começou ganhar projeção social e formal na década de noventa, após a promulgação da vigente Constituição de 1988. No respectivo Capítulo VI, sobre meio ambiente, artigo 225, parágrafo 1º, inciso VI, lê-se a seguinte competência do Poder Público: “promover a Educação Ambiental em todos os níveis de ensino e a conscientização pública para a preservação do meio ambiente”. As conferências de Nações Unidas sobre o tema: “Meio Ambiente e Desenvolvimento” (Rio de Janeiro, 1992), “Desenvolvimento Social” (Copenhague, 1995) e “Desenvolvimento Sustentável” (Johanesburgo, 2002) foram fundamentais para discutir as questões de meio ambiente no Brasil. Um momento mais significativo para o avanço de EA no Brasil foi o evento não governamental o Fórum Global, que ocorreu paralelamente à Conferência da ONU sobre Desenvolvimento e Meio Ambiente no Rio de Janeiro. Na conferência Rio 92, o Tratado de Educação Ambiental para Sociedades Sustentáveis e Responsabilidade Global, coloca princípios e um plano de ação para educadores ambientais, estabelecendo uma relação entre as políticas públicas de educação ambiental e a sustentabilidade. Esse tratado ainda está na base da formação da Rede Brasileira de Educação Ambiental, bem como das diversas redes estaduais, que formam grande articulação de entidades não governamentais, escolas, universidades e pessoas que querem fortalecer as diferentes ações, atividades, programas e políticas em EA. Também a Conferência enfatizou os processos participativos na promoção do meio ambiente, voltados para a sua recuperação, conservação e melhoria, bem como para a melhoria da qualidade de vida (JACOBI, 2003, p.194). A Lei nº 9.795/99 (regulamentada pelo Decreto nº 4.281, de junho de 2002), dispõe sobre educação ambiental e institui a Política Nacional de Educação Ambiental (PNEA), e em seu artigo 5.º, inciso VII, reconhece como respectivo objetivo o fortalecimento da cidadania e autodeterminação dos povos. Ainda enfatiza a questão da interdisciplinaridade metodológica e epistemológica da educação ambiental como “componente essência e permanente da educação nacional, de devendo estar presente, de forma articulada em todos os níveis e modalidades do processo educativo, em caráter formal e não-formal” (art. 2º). Também o Estatuto da Cidade, que estabelece as diretrizes gerais da política urbana, nos termos do art. 2º, inc. II, da Lei n.º 10.257/2001, que determina, como diretriz geral, a gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários seguimentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Educação é um processo livre de relação entre pessoas e grupos, que busca maneiras para reproduzir ou recriar aquilo que é aceito pela sociedade, seja como trabalho ou estilo de

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vida (LOUREIRO, 2003). Mas a educação torna-se libertadora quando são aplicados os ideais democráticos e emancipatórios do pensamento crítico à educação. Essa nova visão rompe com a visão de educação tecnicista, difusora e repassadora de conhecimentos. Nesse processo de aprendizagem a pessoa consegue assumir a mediação na construção social de conhecimento implicados na vida de sujeitos. Assim, o sujeito consegue construir sua própria história. Paulo Freire (1987) foi uma das referências fundadoras desse pensamento. A educação profissionalizante, hoje tão valorizada, serve para satisfazer as necessidades do mundo capitalista, mas a opção pela educação libertadora depende da realização do ensino formativo e crítico-reflexivo. Jacobi (2003) considera educação ambiental no contexto da sustentabilidade relacionada com a equidade, justiça social e a própria ética dos seres vivos. A idéia da sustentabilidade na visão de Jacobi (2003, p.195). [...] implica a prevalência da premissa de que é preciso definir limites às possibilidades de crescimento e delinear um conjunto de iniciativas que levem em conta a existência de interlocutores e participantes sociais relevantes e ativos por meio de práticas educativas e de um processo de diálogo informado, o que reforça um sentimento de co-responsabilidade e de constituição de valores éticos.

O desafio da educação ambiental, nesse sentido, é formular a uma educação participativa que envolve dois níveis: formal e não formal. O seu enfoque deve buscar uma perspectiva holística de ação ecológica, que relacione o homem, a natureza e o universo, tendo em conta que os recursos naturais se esgotam e, que o principal responsável pela sua degradação é o próprio homem. Todo esse processo acontece em um espaço territorialmente percebido, com diferentes escalas de compreensão e intervenção, em que se operam as relações sociedade-natureza. Esse espaço é o ambiente no qual o ser humano interage com a natureza. O ambiente não é mero espaço natural independente da nossa ação social e não consiste somente no trabalho, no sentido econômico, mas sim do conjunto de atividades sociais reguladas política e juridicamente numa tradição cultural específica (LOUREIRO, 2003). A EA, baseada nas práticas sociais, fortalece o acesso à informação e a cidadania. Nesse sentido, A Educação Ambiental é uma práxis educativa e social que tem por finalidade a construção de valores, conceitos, habilidades e atitudes que possibilitem o entendimento da realidade de vida e a atuação lúcida e responsável de atores sociais individuais e coletivos no ambiente (LOUREIRO, 2005, p.69).

O problema ambiental pode ser visto como um desequilíbrio produzido pelo “estilo de vida” da sociedade moderna, que decorre do tipo de desenvolvimento econômico e do tipo de racionalidade envolvida, cartesiana, particularista. É necessário formar outro estilo de vida, outra racionalidade e outra ética de respeito às diversidades biológica e cultural. Nesse sentido, a ação educativa justifica pela necessidade de formar um novo homem, capaz de viver em harmonia com a natureza.

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A saída da crise ecológica passa por transformações sociais capazes de mudar os hábitos de consumo e desperdício da população, a tendência para a ilimitada acumulação do modo de produção capitalista e as estruturas de pensamento que suportam estes hábitos e tendências. O processo educativo na universidade pode auxiliar na formação de atores / profissionais comprometidos com a sustentabilidade socioambiental. Contudo, a escolarização acadêmica reflete os conflitos existentes no plano das relações sociais e é um ponto de convergência de problemas a serem enfrentados: desigualdade econômica, exclusão social, preconceito, discriminação, degradação e violência. A conquista destas transformações atravessa diversas instâncias. A educação para a cidadania comprometida com a qualidade do meio ambiente, deve fazer convergir as epistemologias e as práticas. Segura (2001), ao discorrer sobre participação, assente que cidadania é “envolvimento individual na esfera pública (visando) discutir seus interesses coletivamente e participar das decisões que lhe dizem respeito”. Daí a necessidade de se “formar (em) sujeitos ativos”, pois “diferente da cidadania outorgada pelo Estado, a cidadania ativa pressupõe a formação de sujeitos atuantes a partir de um aprendizado de convivência”. Há uma necessidade de rever o papel da escola como instituição cujo papel social é formar cidadãos. Mais especificamente, será necessário construir uma rede de significados sobre as ações e as relações que os educadores estabelecem no seu dia a dia quando resolvem trabalhar com a pedagogia ambiental. EA é uma práxis em formação, relacionada a várias concepções do mundo e submetida a diversas orientações metodológicas. A responsabilidade da universidade no desenvolvimento sustentável segundo relatório de UNESCO (1997, p.139): [...] na qualidade de centros autônomos de pesquisa e criação do saber as universidades podem ajudar a resolver certos problemas de desenvolvimento que se põem à sociedade. São elas que formam os dirigentes intelectuais e políticos, os futuros diretores empresariais, assim como grande parte do corpo docente. No âmbito do seu papel social, as universidades podem pôr a sua autonomia a serviço do debate das grandes questões éticas e científicas com as quais se confrontará a sociedade de amanhã e fazer a ligação com o resto do sistema educativo, oferecendo aos adultos a possibilidade de retomar os estudos e desempenhando a função de centros de estudo, enriquecimento e preservação da cultura.

Contudo, o modelo de desenvolvimento baseado apenas no crescimento econômico revelou-se profundamente desigual e os ritmos de progressos são muito diferentes segundo os países e as regiões do mundo. Calcula-se, assim, que mais de três quartos da população mundial vivem em países em desenvolvimento e se beneficiam de apenas 16% da riqueza mundial. Mais grave ainda, de acordo com estudos da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (CNUCED), o rendimento médio dos países menos avançados, que englobam ao todo 560 milhões de habitantes, está atualmente baixando. Seriam, por habitante, 300 dólares por ano, contra 906 dólares nos outros países em desenvolvimento e 21.598 dólares nos países industrializados (UNESCO, 1997).

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A educação superior é, em qualquer sociedade, um dos motores do desenvolvimento econômico e, ao mesmo tempo, um dos pólos da educação ao longo de toda a vida. É, simultaneamente, depositário e criador de conhecimentos. Por outro lado, é o instrumento principal de transmissão da experiência cultural e científica acumulada pela humanidade. Num mundo em que os recursos cognitivos, enquanto fatores de desenvolvimento, tornam-se cada vez mais importantes, em alguns casos, até mais que os recursos materiais a importância do ensino superior e das suas instituições será cada vez maior. Além disso, devido à inovação e ao progresso tecnológico, as economias exigirão cada vez mais profissionais competentes, habilitados com estudos de nível superior. São principalmente as universidades que reúnem um conjunto de funções tradicionais associadas ao progresso e a transmissão do saber: pesquisa inovação, ensino e formação, educação permanente. A estas podemos acrescentar uma outra que tem cada vez mais importância: a cooperação internacional. Todas estas funções podem contribuir para o desenvolvimento sustentável. Agora que o ensino superior é cada vez mais pressionado a preocupar-se com os aspectos sociais dá-se também cada vez mais valor a outros atributos preciosos e indispensáveis das universidades como sejam a liberdade acadêmica e a autonomia institucional. Embora não ofereçam uma garantia de excelência, tais atributos são, sem dúvida, uma condição prévia para tal. A universidade deve ocupar o centro do sistema educativo voltado à questão ambiental mesmo que, como acontece em numerosos países, existam, além dela, outros estabelecimentos de ensino superior. Cabem-lhe quatro funções essenciais: 1. Preparar para a pesquisa e para o ensino. 2. Dar formação altamente especializada e adaptada às necessidades da vida econômica e social. 3. Estar aberta a todos para responder aos múltiplos aspectos da chamada educação permanente, em sentido lato. 4. Cooperar no plano internacional. Deve, também, poder exprimir-se com toda a independência e responsabilidade acerca de problemas éticos, sociais e ambientais – como uma espécie de poder intelectual necessário para ajudar a sociedade a refletir, compreender e agir diante da crise ambiental contemporânea e da busca de soluções para uma sociedade ecologicamente sustentável. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Uma pergunta perturba muitos cidadãos conscientes, autoridades preocupadas com a situação do meio ambiente e as organizações que militam na área: Como garantir a sustentabilidade ecológica nas grandes cidades?

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A resposta a essa pergunta atinge um caráter de urgência quando percebemos claramente os sinais de degradação e constatamos que o planeta sente, como nunca, o impacto do peso da vida humana e das ações predatórias longamente praticadas por nós. Manter as bases da economia e o estilo de vida das populações urbanas nos níveis atuais; onde o consumismo desenfreado e o descarte de grandes quantidades de materiais tóxicos e lixo é praticamente a ordem reinante e a lógica por trás de quaisquer ações humanas. Cedo ou tarde, os impactos desse modo de vida se tornarão irreversíveis e populações inteiras sentirão a “mão pesada da natureza” sobre suas vidas. Vencer as resistências locais e as políticas tradicionalmente aceitas como verdades absolutas; é a missão do novo pensamento que deve se espalhar e dominar as mentes e os corações dos “novos políticos” e do “novo cidadão”. A grande realidade; é que para garantir a sustentabilidade ambiental nas grandes cidades, devemos praticamente abandonar o modo de vida que experimentamos até hoje e criar devida consciência nas massas e na classe dirigente de que a exploração desenfreada do meio ambiente só levará a destruição do planeta. Num sistema insustentável de produção, os recursos naturais planetários seriam exauridos muito rapidamente e proporcionariam problemas gravíssimos que seriam sentidos com um impacto devastador nos grandes aglomerados urbanos. Fazer com que a aplicação de políticas garantidoras da sustentabilidade ambiental nas grandes cidades, represente uma realidade em que se leva em consideração à capacidade de reposição que o planeta tem de seus recursos e, ao mesmo tempo, manter medidas que permitam uma maior justiça social. As mudanças que já foram sentidas devem ser estimuladas e seus reflexos plenamente positivos em uma escala pequena; devem servir de exemplo para que nações e governos menores comecem a implementá-las e a sentir seus reflexos cada vez mais intensamente. Conseguir alterar as relações de consumo e educar a população para o real significado das políticas de conservação do meio ambiente pode ser a única forma de garantir a sustentabilidade ambiental de forma efetiva e com resultados em médio e longo prazo. Fazer com que nossas populações questionem o seu modo de vida e fazê-las entender que se os recursos do planeta não tiverem “a oportunidade” de renovarem-se e de sustentarem-se sob a pressão de uma demanda constante de consumo exacerbado, a vida no planeta como a conhecemos acabará de forma dramática e somente através desse processo de conscientização poderemos garantir a sustentabilidade ambiental. O colapso das grandes cidades e os conflitos sociais e entre países serão inevitáveis e de proporções apocalípticas. Sendo os “vitoriosos” sobreviventes herdeiros de uma terra exaurida e devastada; incapaz de sustentar a vida e inútil para qualquer um de nós; ricos ou pobres. Um dado estatístico pode corroborar essas relações problemáticas e perigosas entre as populações urbanas e os recursos naturais. Basta saber que para sustentar apenas um quarto da população mundial que habita nos países ricos, são necessários três quartos de todos os recursos naturais do planeta. Por essa simples constatação; pode-se perceber clara-

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mente que será impossível fornecer os recursos necessários para que todos os seres humanos possam atingir um padrão de vida razoável no ritmo de consumo atual. Somente com o desenvolvimento sustentável será possível garantir a sustentabilidade ambiental e com isso podermos reverter nossa atual situação. Vamos molhar os pés, tornando nosso, de cada um, o desafio de pensar, expor e ouvir o outro sobre a questão da sustentabilidade, iluminados pela necessidade de decidirmos sobre os destinos desse navio, sem delegar a um único capitão a responsabilidade pela sobrevivência ou submissão a essa profunda crise em que nos encontramos (todos) envolvidos. O compromisso de cada um os bilhões de habitantes deste planeta é essencial e insubstituível para a implementação das mudanças radicais que o momento exige. Sustentabilidade envolve a participação de todos os seres humanos, sem exclusão. Assim, a Universidade como instituição humana que historicamente cuida da produção do conhecimento válido que deriva formalmente de fontes epistemológicas e de metodologias fidedignas tem um papel diante da questão ambiental e da sustentabilidade da vida no planeta, de no mínimo formar profissionais com base e consistência para lidar com essa velha/nova crise que nos circunda ostensivamente com fatos que já inundam as manchetes jornalísticas e que devem ser tratados sem mais retardos a luz do conhecimento científico acumulado pela humanidade por meio da educação superior. No caso da Sociedade Brasileira além dos diversos documentos que fazem parte do aspecto legal que estabelece as diretrizes e bases para a Política Ambiental de forma genérica, entre estes, a EA ganha destaque na própria constituição em artigo 225, parágrafo 1º, inciso VI, onde chama atenção para uma efetivação desta modalidade pedagógica em “todos os níveis de ensino”, o que por si só, uma vez que se trata da Carta Magna de nosso País, já deveria provocar nos planejadores, executores e avaliadores do Sistema Educacional Brasileiro, medidas na direção de implantar nos currículos de formação da Educação Superior, pelo menos, uma disciplina tratando das questões relativas ao meio ambiente, sustentabilidade ecológica e qualidade de vida. Nossa esperança é que o tópico referente à EA, que integra nossa Constituição Federal de 1988, passe a ser cumprido, atestando nossa sintonia com o tempo contemporâneo e suas complexidades. REFERÊNCIAS BRUNDTLAND, Gro Harlem. Nosso futuro comum. Rio de Janeiro: FGV, 1991. CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. Educação ambiental critica: nomes e endereçamento da educação. In. LAYRARGUES, Philippe Pomier (Org.). Identidades da educação ambiental brasileira. Brasília: MMA, 2002. p.13-24.

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Artigo ENSINO DE BIOLOGIA E AVALIAÇÃO: ESTUDO QUANTITATIVO SOBRE AS PREFERÊNCIAS DE ALUNOS E PROFESSORES DE BELÉM - PARÁ Carlos Alberto Machado da Rocha* Henac Almeida da Conceição** Fabrício Lemos de Siqueira Mendes*** RESUMO Apesar de ser um problema antigo, parece não haver ainda uma cultura geral de avaliação com o mesmo nível de desenvolvimento, em termos investigativos, de outros aspectos do ensino. Neste trabalho, nossa preocupação foi conhecer quais parâmetros: conhecimento, participação, esforço, comportamento, capacidade de relação ou crescimento do aluno, seriam eleitos como os mais importantes no processo avaliativo relacionado à Biologia, tanto pelos educandos como pelos educadores. Em acréscimo obtivemos, junto aos docentes, sugestões de práticas que possam contribuir para a redução do efeito nocivo da avaliação estritamente classificatória. PALAVRAS-CHAVE: Avaliação. Biologia. Ensino Médio.

TEACHING BIOLOGY AND ASSESSMENT: A QUANTITY STUDY ON STUDENTS AND TEACHERS PREFERENCES IN BELÉM-PARÁ ABSTRACT Although to be an old problem, it seems not to still have a general culture of evaluation with the same development level, in investigative terms, of other aspects of education. In this work, our concern was to know which parameters: knowledge, participation, effort, behavior, capacity of relation or growth of the pupil, would be elect as most important in the evaluative process related to Biology, as much for the educating as for the educators. In addition we got, next to the teachers, suggestions of practical that they can contribute for the reduction of the harmful effect of the strict classificatory evaluation. KEYWORDS: Evaluation. Biology. Average education. *

Professor de Genética e Evolução do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Pará – IF PA . ([email protected]) ** Professor de Biologia do Colégio Moderno ([email protected]) *** Professor de Educação Ambiental da Universidade da Amazônia – UNAMA ([email protected])

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1 INTRODUÇÃO Estudiosos de química e física do iluminismo, herdeiros dos filósofos que tentaram explicar os fenômenos naturais na Antiguidade, assim como os pioneiros do campo da medicina, todos contribuíram no desenvolvimento de áreas afins. Tais áreas acabaram reunidas, na escola, sob o nome de ciências, ciências físicas e biológicas, ciências da vida, ou ciências naturais (FERNANDES, 2005). Com isso surge a preocupação com a descrição dos seres vivos e dos fenômenos naturais, o qual levou o homem a diferentes concepções de vida, de mundo e de seu papel enquanto parte deste mundo. Já o homem primitivo, em sua condição de caçador e coletor, fazia observações dos diferentes tipos de comportamento dos animais e da floração das plantas. As observações foram sendo registradas nas pinturas rupestres, representando seu interesse em explorar a natureza. Em contrapartida a racionalidade ocidental do século XVII, caracterizou-se por procurar eliminar as dúvidas, a imprevisibilidade. Rosen (1994) descreve que nos séculos XVI e XVII “a ciência se caracterizava, na época, não apenas pelo uso crescente do método experimental, mas também pela disposição em tratar matematicamente os fenômenos naturais”. Desde o século XIX têm proliferado os apelos, de proveniências distintas (políticos, empregadores, cientistas, educadores etc), no sentido de uma educação científica alargada a toda a população. Segundo Reis (2007) as razões apontadas para tal alargamento têm variado de acordo com o contexto social e político da época e as percepções de cada um daqueles setores da sociedade relativamente às finalidades dessa educação. Para Krasilchik (2000) o fortalecimento dessa linha é denominado “Ciência para todos”, relaciona o ensino das Ciências à vida diária e experiência dos estudantes e implica exigências para a interação estreita com problemas éticos, religiosos, ideológicos, culturais e étnicos. Deste modo, os conhecimentos apresentados pela disciplina de Biologia no Ensino Médio não representam o resultado da apreensão contemplativa da natureza em si, mas os modelos teóricos elaborados pelo homem (paradigmas teóricos), que representam o esforço para entender, explicar, utilizar e manipular os recursos naturais. A organização do ensino de Ciências tem sofrido nos últimos anos inúmeras propostas de transformação. E, em geral, as mudanças apresentadas têm o objetivo de melhorar as condições da formação do espírito científico dos alunos em vista das circunstâncias histórico-culturais da sociedade. As alterações tentam situar a ciência e o seu ensino no tempo e no espaço, enfatizando em cada momento um aspecto considerado mais relevante na forma de o homem entender e agir cientificamente no mundo, por meio de um conhecimento que, de modo geral, está além do senso comum (SANTOS, 2007). O mesmo autor resume: Até os anos 60, por exemplo, o ensino de Ciências passou por uma longa fase em que a ciência era apresentada como neutra e o importante eram os aspectos lógicos da aprendizagem e a qualidade dos cursos era definida pela quantidade de conteúdos conceituais transmitidos. Nos anos seguintes valorizou-se a participa-

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ção do aluno no processo de aprendizagem do método científico através de atividades práticas de laboratório. Na década de 70, a crise econômica mundial e os problemas relacionados com o desenvolvimento tecnológico fizeram surgir no ensino de Ciências um movimento pedagógico que ficou conhecido como “ciência, tecnologia e sociedade” (CTS). Essa tendência no ensino é importante até os dias de hoje, pois leva em conta a estreita relação da ciência com a tecnologia e a sociedade, aspectos que não podem ser excluídos de um ensino que visa formar cidadãos. Nos anos 80 a atenção passou a ser dada ao processo de construção do conhecimento científico pelo aluno. Inúmeras pesquisas foram realizadas nesse campo e o modelo de aprendizagem por mudanças conceituais, núcleo de diferentes correntes construtivistas, é hoje bem aceito pela maioria dos pesquisadores (SANTOS, 2007, p. 1).

As modalidades didáticas usadas no ensino das disciplinas científicas dependem, fundamentalmente, da concepção de aprendizagem de Ciência adotada. No entendimento de Krasilchik (2004) a tendência de currículos tradicionalistas ou racionalistas-acadêmicos, apesar das mudanças, ainda prevalece não só no Brasil, mas também nos sistemas educacionais de países em vários níveis de desenvolvimento. Luckesi (2005) reforça que o processo de avaliação também é reflexo da concepção de aprendizagem de Ciência adotada, e opera na identificação das condições políticas e sociais do próprio projeto, o que permite dimensioná-lo de forma mais adequada. A década de 70 é um bom exemplo, cujos estudos comparativos buscaram avaliar o aproveitamento dos estudantes em vários países. Os resultados desses trabalhos tiveram ampla repercussão não só na mídia como provocaram medidas visando a mudar a situação em países e regiões que tiveram resultados considerados desfavoráveis (KRASILCHIK, 2004). No Brasil, para verificar o perfil dos alunos que saem do Ensino Médio, foi instituído o Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM. Através dele pretende-se analisar: o domínio da língua portuguesa; o domínio das áreas matemática, artística e científica; aplicação de conceitos para compreensão de fenômenos naturais, de processos histórico-geográficos; a produção tecnológica e as manifestações artísticas (MEC – Política e resultados – 1995-2002. Brasília, 2002). Porém tal exame ainda é muito questionado por alguns educadores. O debate sobre avaliação ainda é incipiente nos âmbitos dos espaços de debate e investigação. Para Harres (2003), apesar de ser um problema e um conflito antigos, parece não haver ainda uma cultura geral de avaliação com o mesmo nível de desenvolvimento, em termos investigativos, de outros aspectos do ensino. O objetivo deste trabalho é explorar o tema avaliação no processo ensino-aprendizagem, por meio das opiniões e preferências de professores do Ensino Médio, com ênfase nos professores de Biologia; técnicos do Ensino Médio, acadêmicos de Cursos de Licenciatura em Biologia; estudantes do Ensino Médio. Procura-se identificar disparidades encontradas quando se discute sobre quais parâmetros devem ser eleitos na avaliação do alunado. Em acréscimo são obtidas, junto aos docentes, sugestões de práticas visando à atenuação do efeito nocivo da avaliação classificatória.

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Na metodologia empregada, a amostra foi constituída por professores e técnicos do Ensino Médio, estudantes de graduação em Biologia e estudantes do Ensino Médio, tanto da rede pública quanto de escolas particulares. Na coleta de dados foram utilizados instrumentos sociológicos, principalmente através da técnica de entrevistas em grupos, seguidas da aplicação de pergunta de múltipla escolha aos professores, técnicos e estudantes. Após uma explanação, seis parâmetros (conhecimento, participação, esforço, comportamento, capacidade de relação e crescimento) foram apresentados a cada participante, em lista, para que fossem selecionados apenas dois. Aos professores e técnicos também foi aplicada uma pergunta aberta: o que fazer para diminuir os efeitos danosos da avaliação estritamente classificatória? 2 DESENVOLVIMENTO Conceito de avaliação Segundo o Magno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa, avaliação é um substantivo feminino que compreende efeito ou ato de avaliar; determinar o valor provável; apreciar; e estimar. Para Luckesi (1998), o termo avaliar tem sua origem no latim, da composição avalere que quer dizer “dar valor a..:”. Porém, o conceito “avaliação” é formulado a partir das determinações da conduta de “atribuir um valor ou qualidade a alguma coisa, ato ou curso de ação...”, que, por si, implica um posicionamento em relação ao objeto, ato ou curso de ação avaliado. Isto quer dizer que o ato de avaliar não se encerra na configuração do valor ou qualidade atribuídos ao objeto em questão, exigindo uma tomada de posição favorável ou não ao objeto de avaliação, com uma consequente decisão de ação. Há que se distinguir, inicialmente, “Avaliação” e “Nota”. A nota, seja em números (ex.: 0-10), conceito (ex.: A, B, C, D) ou menção (ex.: Excelente, Bom, Satisfatório, Insatisfatório), é uma exigência formal do sistema educacional. Podemos imaginar um dia em que não haja mais nota na escola – ou qualquer tipo de reprovação – mas certamente haverá necessidade de continuar existindo avaliação, para acompanhar o desenvolvimento dos educandos e ajudá-los em suas eventuais dificuldades. A Prova é apenas uma das formas de se gerar Nota, que, por sua vez, é apenas uma das formas de Avaliar (VASCONCELOS, 2006). Para Harres (2003), é difícil garantir que a informação obtida em uma prova, sobre o pensamento do estudante, corresponda realmente ao que ele pensa ou que esteja livre da influência de posturas adaptativas de sobrevivência no contexto. Geralmente a avaliação tradicional identifica a presença ou não de saberes retidos apenas para obter aprovação. Ela não favorece o desenvolvimento da consciência sobre o que se sabe e sobre o que não se sabe. Mesmo quando se pratica uma avaliação mais ampla, por exemplo, incluindo procedimentos e atitudes, o resultado final do processo educativo, muitas vezes, ainda se reflete em um número (ou conceito) que classifica, diferencia ou discrimina os estudantes. Sem mudar esse aspecto tão condicionante das atitudes dos alunos será possível um desenvolvimento amplo da autonomia? Provavelmente, será muito difícil transformar

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a educação em direção a uma perspectiva mais humanista e não autoritária sem rompermos com as práticas avaliativas que, ao final, sempre acabam “medindo” o conhecimento do outro (HARRES, 2003). Parâmetros no processo avaliativo Mediano (1998), em “O professor e o supervisor ante a avaliação da aprendizagem”, questionou a um grupo de professoras o que deveria ser avaliado. E, de forma controvertida, elas diziam: “Eu avalio a totalidade do aluno”; “avalio tudo: conhecimento, participação, esforço, comportamento, capacidade de relação”; “Eu avalio o crescimento do aluno”. Neste sentido, preocupamo-nos com a importância de se conhecer quais destes parâmetros: conhecimento, participação, esforço, comportamento, capacidade de relação ou crescimento do aluno, seriam eleitos como os mais importantes no processo avaliativo, tanto pelos educandos como pelos educadores. A construção do conhecimento é fundada sobre o uso crítico da razão, vinculada aos princípios éticos e a raízes sociais. Essa tarefa precisa ser retomada a cada momento, sem jamais ter fim, afirma Rosas (2003). É importante ainda considerar que o conhecimento se distingue da mera informação porque está associado a uma intencionalidade. O conhecimento e a informação consistem de declarações verdadeiras, mas o conhecimento pode ser considerado informação com um propósito ou uma utilidade. A participação é, segundo Sorrentino (2002), em seu real sentido, o envolvimento; o pertencimento a um grupo, projeto, empreendimento e a um espaço de construção do futuro. O conceito de participação pressupõe então o diálogo, considera-o como elemento básico para que se alcance algum grau de participação em alguma direção desejada. Demo (1999) afirma ainda que “não existe participação suficiente ou acabada”. Não existe como dádiva ou como espaço preexistente. Existe somente na medida de sua própria conquista. E prossegue: Participação é conquista para significar que é um processo, no sentido legítimo do termo: infindável, em constante vir-a-ser, sempre se fazendo conquista processual. Não existe participação suficiente, nem acabada. Participação que se imagina completa, nisto mesmo começa a regredir (DEMO, 1999, p. 18).

O processo avaliativo precisa ir além do cognitivo. O cognitivo é uma parte do processo educacional. Até o método de ensinar e avaliar está além dele pela força do manejo da classe. Além do cognitivo deve-se avaliar o que chamamos de qualidade e afetividade. Na medida em que o educando adere às propostas feitas temos, certamente, uma mudança de comportamento. Essa mudança será muito variada, dependendo evidentemente, das Inteligências múltiplas dos educandos (WERNECK, 1995). Acreditamos que, neste sentido, a percepção do comportamento do aluno adquire um papel crucial em sua avaliação continuada. O papel da escola está relacionado a fazer com que o aluno assuma um papel ativo na

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construção dos seus destinos; fazer do conhecimento uma forma de compreender melhor o mundo (usufruir a cultura e se comprometer com sua mudança, e não apenas uma forma de “conseguir nota para passar”); desenvolver uma capacidade de relação, ou seja, uma cultura de solidariedade em sala de aula junto aos colegas com dificuldade para (VASCONCELOS, 2006). Werneck (1995) complementa que o mestre também precisa se convencer de que estes valores humanos em educação são tão importantes quanto às outras parte dos programas. A avaliação é um processo abrangente da existência humana, implicando uma reflexão crítica sobre a prática, no sentido de captar seus avanços, suas resistências, suas dificuldades e possibilitar uma tomada de decisão sobre o que fazer para superar os obstáculos. Acreditamos que isto exprime bem o que definimos como crescimento do aluno, ou seja, este precisa tornar-se capaz de refletir suas dificuldades e tomar decisões que lhe levem a um avanço, enquanto sujeito participante de todo processo educacional (VASCONCELOS, 2006). O crescimento baseado em uma mudança de comportamento exige um esforço por parte do aluno e de todos os profissionais envolvidos no processo. Neste sentido, o esforço consiste em: considerar concepções espontâneas como hipóteses de trabalho e não como evidencias inquestionáveis, permitir um tratamento dos problemas aberto a novas perspectivas, e por último transformar a atividade educacional em um trabalho criativo de pesquisa e inovação (GIL-PÉREZ, 2001). Assim, esse esforço deve ser seguido pelos alunos e também se deve tornar alvo de avaliações, haja vista sua grande importância no processo dinâmico, que esperamos que seja, a educação. Funções da avaliação Mediano (1998) propõe que avaliações ocorrem para tomada de decisões. Mas que decisões são tomadas na escola após o julgamento de valor? Parece que ainda estamos muito presos à dimensão burocrática da avaliação, pois devemos realizá-la, já que a lei e o sistema exigem. Entretanto, sabemos que, no contexto do “para quê”, encontram-se as funções que a avaliação desempenha. Os autores como Luckesi (1986) e Enguita (1989), que têm analisado a avaliação dentro de uma visão criticam e afirmam que ela pode exercer duas funções: a diagnóstica e a classificatória. Vejamos como Enguita (1989, p.206) apresenta esta questão: As funções da avaliação são potencialmente duas: o diagnóstico e a classificação. Da primeira, se supõe que permita ao professor e ao aluno detectar os pontos fracos deste e extrair as consequências pertinentes sobre onde colocar posteriormente a ênfase no ensino e na aprendizagem. A segunda tem por efeito hierarquizar os alunos, estimular a competição, distribuir desigualmente as oportunidades escolares e sociais, e assim sucessivamente. A escola prega em parte a avaliação com base na primeira função, mas a emprega fundamentalmente para a segunda.

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Luckesi (1986, p.28) faz idêntica denuncia: A atual prática da avaliação escolar estipulou como função do ato de avaliar a classificação e não o diagnóstico, como deveria ser constitutivamente.Ou seja, o julgamento de valor, que teria a função de possibilitar uma nova tomada de decisão sobre o objeto avaliado, passa a ter a função estática de classificar um objeto ou um ser humano histórico num padrão definitivamente determinado. Do ponto de vista da aprendizagem escolar, poderá ser definitivamente classificado como inferior, médio ou superior.

Vale ressaltar a ideia da autora Hoffmann (1993) quando afirma que “avaliar é ampliar as oportunidades de aprendizagem mantendo-se aberto às disponibilidades reais de cada educando, que sofrerão múltiplas interpretações por parte do professor”. Com isso devemos manter em mente a reafirmação de que o compromisso do avaliador deve ser o de mobilizar o aluno a buscar sempre novos conhecimentos, perceber seus interesses e adaptar experiências educativas a eles e de provocá-lo a refletir sobres às ideias em construção. A avaliação perpassa pelo ato de planejar e de executar, por isso, contribui em todo o percurso da ação planificada. A avaliação se faz presente não só na identificação da perspectiva político-social, como também na seleção de meios alternativos e na execução de projetos, tendo em vista a sua construção. Ela é uma ferramenta que faz parte do modo de agir humano e, por isso, é necessário que seja usada da melhor forma possível (LUCKESI, 2005). A atividade de planejar, como um modo de dimensionar política, científica e tecnicamente a atividade escolar, deve ser resultado da contribuição de todos aqueles que compõem o corpo profissional da escola. É preciso que todos decidam conjuntamente o que fazer e como fazer. As atividades individuais não são inócuas, mas são insuficientes para produzir resultados significativos no coletivo (LUCKESI, 1998). Nos planejamentos curriculares, seja no curso, na unidade ou na aula, os professores devem considerar os objetivos do trabalho, o conteúdo que irão ministrar, as modalidades didáticas e os recursos de que irão se valer, assim como os processos de avaliação que irão usar. Esses elementos profundamente interligados devem formar um todo conexo que reflita, sem ambiguidade e incoerência, as intenções da escola e do professor (KRASILCHIK, 2004). Segundo a mesma autora, as provas ocupam lugar central em todo o processo escolar, servindo para classificar os alunos, decidir se vão ou não passar, informá-los sobre o que o professor realmente considera importante, informar ao professor sobre os resultados do seu trabalho, informar à escola sobre os resultados do trabalho de alunos e professores, informar aos pais sobre o conceito que a escola tem do trabalho de seus filhos, forçar os alunos a estudar. A multiplicidade de funções justifica a necessidade de cautela na escolha, construção e aplicação dos instrumentos de verificação do aprendizado e sobre a análise dos resultados. A relação do processo de ensino com o processo de aprendizagem também se destaca num trabalho de Sadler (1989). Apoiando-se na ideia de avaliação formativa, o autor acredita

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que a melhoria do desempenho dos alunos exige que eles conheçam e acompanhem seus progressos. Para Bloom et al. (1983) a avaliação formativa “... se refere à avaliação da aprendizagem de um aluno durante um curso, quando (presumivelmente) podem ser efetuadas mudanças na instrução subsequente, a partir dos resultados atuais”. Seu maior mérito “... está na ajuda que ela pode dar ao aluno em relação à aprendizagem da matéria e dos comportamentos, em cada unidade de aprendizagem”. 3 RESULTADOS E DISCUSSÃO O método de entrevistas em grupos permitiu-nos obter informações quanto às preferências dos diferentes sujeitos participantes das avaliações na disciplina Biologia. Nossa amostra foi constituída por 14 professores, 140 estudantes do Ensino Médio, 10 técnicos e 67 acadêmicos de Biologia, perfazendo um total de 231 participantes. Considerando os resultados gerais (gráfico 1), constatamos a preferência pela avaliação do conhecimento e esforço, com valores de 33,26% e 20,21%, respectivamente. Por outro lado a menor valorização foi atribuída ao comportamento, com 3,69% da preferência. Os professores das diversas disciplinas elegeram conhecimento (39,28%) como principal parâmetro a ser avaliado, seguido de participação e crescimento, empatados com 21,42%. O parâmetro esforço não recebeu nenhuma menção. Quando apenas as respostas dos professores de Biologia foram computadas (gráfico 2), repetiram-se as preferências pela avaliação do conhecimento (42,85%) e participação (21,42%), apesar de uma discreta elevação percentual do aspecto capacidade de relação que apareceu empatado com o crescimento em terceiro lugar com (14,28%). Esses

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resultados indicam a manutenção da visão tradicional da avaliação, na qual a classificação do aluno se dá a partir do processo corretivo. Ou seja, decorrente da contagem de acertos e erros em tarefas. Como comentado por Hoffmann (2003), na avaliação tradicional, atribuem-se médias finais aos alunos, classificando-os em aprovados ou reprovados em cada período letivo. Em nome da “justiça da precisão”, portanto, buscam os educadores elaborarem tarefas que evitem ao máximo possível interpretações sobre as respostas dos alunos, evitando a variabilidade de escores decorrente do caráter subjetivo que levaria o professor a cometer injustiças no momento de tomada de decisão final. Talvez isso justifique a maior disposição dos professores em avaliar o conhecimento, em detrimento de parâmetros mais subjetivos. Entre os membros do corpo técnico pedagógico os parâmetros selecionados foram participação (35%) e conhecimento (25%). Enquanto isso, os menos valorizados foram a capacidade de relação e o crescimento, ambos com 5%. Percebe-se que os dois primeiros parâmetros escolhidos foram os mesmos eleitos pelos professores: conhecimento e participação, porém com suas posições invertidas. Os estudantes do Ensino Médio (gráfico 3) preferiram avaliar conhecimento (38,35%) e esforço (20,78%). Em terceiro lugar, mas não muito distante em termos de preferência, apareceu à capacidade de relação (16,84%). Menor importância foi dada ao comportamento (4,3%). O destaque na avaliação do esforço, entre os alunos (segundo parâmetro mais votado), demonstra que estes cobram dos professores não apenas uma avaliação baseada na nota; no resultado da tarefa, como se tudo se resumisse a resultados. Observação relevante nesse sentido é feita por Hoffmann (2003) quando afirma que se o jovem for considerado como um receptor passivo dos conteúdos que o docente sistematiza, suas falhas, seus argumentos incompletos e inconsistentes não serão considerados senão como algo indesejável e um comprovante de sua reprovação. Contrariamente, se introduzirmos no Ensino Médio a problemática do erro, numa perspectiva construtivista e dialógica, então esses dados sobre o aluno transformar-se-ão em elementos fundamentais à produção de conhecimento educador/educando. A opção epistemológica está em corrigir ou debruçar-se investigativamente sobre a tarefa do aluno. Refletir em conjunto como o aluno

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sobre o objeto do conhecimento, para encaminhar-se à superação, significa desenvolver uma relação dialógica, princípio fundamental da avaliação mediadora. Também é percebida uma maior valorização do parâmetro capacidade de relação (16,84%) quando comparamos com o obtido entre os professores. Isso nos remete à proposta de Vasconcelos (2006, p. 97): Deve-se incentivar, entre os educandos, o caráter comunitário da aprendizagem: a colaboração dos colegas é fator de crescimento mútuo, de responsabilidade social e de ajuda efetiva no processo de construção do conhecimento. Nenhum companheiro deveria ser retido e para isto há necessidade de ajuda mútua durante o ano. Além disso, os alunos devem compreender que o aproveitamento de cada um depende, em alguma medida, do aproveitamento de todos. A aprendizagem escolar é uma tarefa coletiva e não uma apropriação privada de um conhecimento, simplesmente para aumentar o “preço” do indivíduo no mercado de trabalho.

Entre os acadêmicos de Biologia, os aspectos de avaliação mais valorizados foram participação (26,86%) e esforço (23,88%), este seguido de perto pelo parâmetro conhecimento (22,38%). Tal como entre os estudantes do Ensino Médio, o esforço foi relativamente bem valorizado entre os acadêmicos. Essa maior proximidade de perfil e maior distanciamento em relação aos resultados obtidos entre os professores em atividade se justificam pela participação no processo muito mais como avaliado do que como avaliadores. Quanto à questão aberta, destacaram-se as seguintes sugestões para minimizar os efeitos da avaliação classificatória: atividades de avaliação relacionando o conteúdo ao cotidiano dos alunos; completo esclarecimento dos alunos sobre os mecanismos de avaliação; realização de avaliações mais frequentes; avaliações como meio e não como fim do processo; possibilidade de reaprendizagem, agregando o conhecimento ao crescimento. Como vem sendo realizada a avaliação, podemos até vir a tomar conhecimento de que o aluno não sabe alguma coisa, mas não sabemos por que ele não sabe e nem desenvolvemos processos para que ele venha a aprender (HOFFMANN, 2005). Em agravo, apesar do reconhecimento das limitações dos atuais instrumentos de avaliação mais usados, os dados numéricos obtidos vêm sendo divulgados como resultados confiáveis, exercendo considerável influência na opinião que a sociedade tem da escola (KRASILCHIK, 2000). 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de divergirem em alguns aspectos, tanto estudantes quanto professores têm preferência pela avaliação do conhecimento. No segundo parâmetro em ordem de escolha, porém, já surgem resultados díspares entre estudantes (esforço) e professores (participação e crescimento). O ponto mais controverso refere-se ao esforço, pois embora relativamente bem valorizado pelos estudantes, não recebeu atenção por parte dos professores nessa amostragem.

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Em relação à busca por uma avaliação capaz de realizar, além da classificação, a função diagnóstica, constata-se uma imperiosa necessidade de comunicar previamente aos alunos todos os detalhes relacionados às atividades de avaliação, uma vez que sem informação não é possível promover participação, reflexão, compreensão de erros e acertos. Além disso, a avaliação em Ciências, particularmente em Biologia deve ser contínua e sistemática, tendo uma lógica de ciclo. Nesse sentido, concordamos na premência do número de atividades avaliativas, implicando em demanda de tempo, a qual geralmente não é atendida principalmente em função do atual modelo sociopolítico. REFERÊNCIAS BLOOM, B. S., HASTINGS, J. T., MADAUS, G. F. Manual de avaliação formativa e somativa do aprendizado escolar. São Paulo: Editora Pioneira, 1983. CARVALHO, A. C. M., GIL-PEREZ, D. Formação de professores de ciências: tendências e inovações. 5.ed. São Paulo: Editora Cortez, 2001. DEMO, P. Participação é conquista: noções de política social participativa. São Paulo: Editora Cortez, 1999. ENGUITA, M. F. A face oculta da escola. Educação e trabalho no capitalismo. Porto Alegre: Editora Artes Médicas, 1989. FERNANDES, J. A. B. Ensino de ciências: a biologia na disciplina de ciências. Revista da Sociedade Brasileira de Ensino de Biologia, ano 1, n. 0, 2005. HARRES, J. B. S. Desvinculação entre avaliação e atribuição de nota: análise de um caso no ensino de física para futuros professores. ENSAIO – Pesquisa em Educação em Ciências, v. 5, n. 1, mar. 2003. HOFFMANN, J. M. L. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 10. ed. Porto Alegre: Editora Mediação, 1993. ______. Avaliação: Mito & Desafio: uma perspectiva construtivista. 35. ed. Porto Alegre: Editora Mediação, 2005. KRASILCHIK, M. Reformas e Realidade: o caso do ensino das ciências. São Paulo em perspectiva, v. 14, n. 1, 2000.

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Artigo INTERTEXTUALIDADE: UMA LIGA EXTRAORDINÁRIA1 Ana Conceição Borges de Oliveira*

RESUMO Neste artigo, apresentamos um estudo sobre a tessitura do texto fílmico A Liga Extraordinária, de Stephen Norrington, baseado em conceitos de intertextualidade pela ótica da Linguística Textual. Para isso, explicitamos a concepção discursiva de Bakhtin, a partir de suas noções de dialogia e de enunciado – as teorias bakhtinianas –, a fim de comprovar o exercício da intertextualidade como o entrecruzamento de vozes, no referido filme. PALAVRAS-CHAVE: Texto fílmico. Intertextualidade. Linguística Textual.

INTERTEXT: AN EXTRAORDINARY LINK ABSTRACT In this paper we present a study about the webbing of the filmic text The Super League, by Stephen Norrington, based on the principles of inter-textuality by the view of Textual Linguistics. For that, we explaing Bakhtin’s discourse conception, from its views on dialogy and stating the bakhtinian theories, in order to prove the use of inter-textuality as the inter-crossing of voices in the mentioned film. KEYWORDS: Filmic Text. Inter-textuality. Textual Linguitics.

* Bolsista CNPq do Mestrado em Educação - Universidade do Estado do Pará – UEPA; Especialista em Estudos Linguísticos e Análise Literária pela UEPA; Graduada em Letras pela Universidade da Amazônia – UNAMA. 1 Artigo elaborado a partir de Monografia, de mesmo título, apresentada ao Curso de Especialização em Estudos Linguísticos e Análise Literária ao Centro de Ciências Sociais e Educação – CCSE, da Universidade do Estado do Pará – UEPA, para obtenção do título de Especialista, sob a orientação do Prof. Ms. Sérgio Sapucahy.

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1 PRELIMINARES “[...] mais ou menos todos os livros contêm, medida, a fusão de qualquer repetição”. (Mallarmé)

O dialogismo entre literatura e cinema mostra a integração de várias linguagens (cênica, plástica, verbal, audiovisual) e a relação heterogênica de vários discursos distintos. Por isso, um texto fílmico é o produto final de uma manifestação artística que reúne outras mídias desenvolvidas pelo homem e o cruzamento de diversas vozes que apresentam diversos discursos. Por exemplo, o filme A Liga Extraordinária, com argumentos baseados em personagens idealizados primeiramente pela arte escrita – literatura e quadrinhos –, é um modelo claro da combinação de mídias, visto que apresenta uma série de personagens clássicos da literatura de horror, ficção científica, fantasia e aventura, juntos numa mesma história desenvolvida pelo quadrinista Alan Moore, que resultou na graphic novel “A Liga dos Cavalheiros Extraordinários”, e por sua vez, com as devidas “liberdades” de adaptação, foi transformada num filme dirigido por Stephen Norrington. Assim, nesta pesquisa, realizamos uma leitura interdiscursiva do referido filme, considerando que um texto estabelece diálogo(s) com outro(s) texto(s) de diversas maneiras, como, por exemplo: o conhecimento partilhado, o conhecimento de mundo, as inferências etc., permitindo que se detectem diálogos sociais e ideológicos, ora similares ora desarmônicos entre si. Logo, esta pesquisa, além de mostrar a associação entre várias linguagens, como a da literatura e do cinema, enfatizou as novas formas de produção de textos e os diferentes meios de transmissão do mesmo tema, contribuindo, dessa forma, com os estudos sobre a Intertextualidade. Desse modo, um estudioso de língua portuguesa, de posse desses conhecimentos, pode compreender e explicar, de forma adequada, aos interlocutores, que um texto fílmico é a transposição de um sistema de signos em outro, pois não se privilegia o original em detrimento da cópia nem a superioridade da recepção da obra, frente ao modelo utilizado. Acrescentamos, também, que neste breve estudo teórico do fenômeno da intertextualidade, não tivemos a pretensão de apontar caminhos já abertos para o estabelecimento do diálogo entre textos, e sim mostrar como a partir de outras produções textuais, imagéticas e midiáticas são trabalhadas e elaboradas a narrativa discursiva num texto fílmico. Desse modo, a pesquisa foi desenvolvida sob as questões norteadoras a seguir: • é fato que tanto a obra quanto o escritor participam de um sistema coletivo de enunciação de saberes. Então, como estabelecer um diálogo entre textos sem que isso possa ser considerado plágio? • o diálogo entre textos permite a renovação dos procedimentos e temas artísticos ou preserva e mitifica os valores da tradição cultural?

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Posto isso, informamos que, com o objetivo de analisar a tessitura do texto fílmico A Liga Extraordinária, de Stephen Norrington, baseados em conceitos de intertextualidade como elemento da textualidade, pela ótica da Linguística Textual: • identificamos a referência ou a incorporação dos vários elementos discursivos que compõem o referido texto fílmico; • demonstramos como o discurso literário e o cinematográfico, ao convergirem, tornam mais abrangentes as inter-relações que se estabelecem, mediante os três níveis de leitura: sensorial, emocional e racional; e • esquematizamos uma leitura dialógica entre as narrativas ficcionais e o filme A Liga Extraordinária, cujos personagens provêm da literatura clássica (de horror, ficção científica, fantasia, aventura). Para cumprir esses objetivos, inicialmente, realizamos uma pesquisa bibliográfica, cujo objetivo foi encontrar, por meio de leituras, subsídios para a análise dos dados a serem obtidos. Assim, em busca de respostas a essa temática, contamos com o aporte teóricometodológico dos autores Kristeva (1969), Marcuschi (1983), Paulino (1995), Bakhtin (1997), Palma (2004), Brait (2005), Koch (2006), entre outros. Acrescentamos que, embora voltados para os pressupostos teóricos da Linguística Textual no que diz respeito à intertextualidade como elemento da textualidade, verificamos que não há um instrumento próprio para produção de dados neste tipo de pesquisa e, por isso, em nossa análise, recorremos às reflexões de Bakhtin sobre texto e discurso, o que nos permitiu admitir que vários discursos compõem o texto fílmico para o qual, em dado momento, voltamos nosso olhar e nossa atenção. Por essa razão, a pesquisa de campo foi realizada por meio da nossa observação e “leitura” do texto fílmico A Liga Extraordinária. O método foi o indutivo e a referida pesquisa é do tipo exploratória, sendo que os dados extraídos do filme foram analisados qualitativamente. Cabe ressaltar que a “leitura” do texto fílmico atentou para a construção de sentido, estabelecida entre o leitor/ espectador e o filme analisado, com ênfase nas particularidades da linguagem audiovisual no universo da narrativa ficcional. Também convém informar que, após a “leitura” do texto fílmico A Liga Extraordinária, selecionamos o corpus desta pesquisa que consiste de personagens que provêm da literatura clássica de horror, ficção científica, fantasia e aventura, e, a partir dessa seleção, mostramos a tradição da obra original e quais foram as novas formações imaginárias produzidas na nova história. Desse modo, para efeito de sistematização de estudos, além da seleção dos personagens literários que compõem o texto fílmico, visualizamos as alusões pertinentes às outras obras clássicas da literatura. Posteriormente, esses dados foram submetidos à análise contextual para que soubéssemos quais os sentidos produzidos por eles. Isso nos permitiu elaborar a redação final da pesquisa.

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2 LITERATURA E CINEMA: diálogo e/ ou recriação? “Todo discurso é incompleto, não tem início absoluto e nem ponto final definitivo”. (Orlandi) 2.1 O CINEMA E A LITERATURA Com o desenvolvimento da teoria do cinema2 e a análise de textos fílmicos, na segunda metade do séc. XX, a partir da década de 60, ocorre uma aproximação entre o cinema e a literatura, visto que, muitas das estruturas narrativas funcionam de maneira idêntica nos dois sistemas semióticos em questão: o cinematográfico e o literário. (STAM, 2003). A teoria sobre o cinema, independentemente do ponto de vista adotados, confirma a possibilidade de aproximação entre o texto narrativo fílmico e o narrativo literário, em virtude da utilização idêntica que ambos fazem da veiculação de uma história mediante um discurso peculiar a cada texto. Discurso este manipulado por uma entidade narradora que combina personagens, que protagonizam ações, situados num determinado espaço e num dado momento na linha do tempo diegético3. Entretanto, vale ressaltar que, neste trabalho, não discutimos toda a história do cinema narrativo, apenas a narração presente no texto fílmico A Liga Extraordinária, visto que, ele apresenta uma relação intertextual com textos de valor reconhecido e sancionado pelo cânone literário.  Além de características textuais semelhantes, é perceptível  que,  há muito  tempo, o cinema e a literatura ensaiam relações de deslumbre mútuo, pois, frequentemente, o cinema se constrói sobre a literatura, adaptando vários gêneros literários, provindos, sobretudo, das formas naturais da literatura narrativa e dramática. Para mostrarmos a ascendência da literatura em relação ao cinema, e a título ilustrativo, apresentamos, nesse momento, a teoria limite destas relações: a que defende a existência de uma essência do cinema, de um pré-cinema, de um cinema avant la lettre, incrustado em determinados textos literários narrativos, anteriores à forma de expressão cinematográfica, e que teriam como especificidade o fato dos escritores esquematizarem o relato em função da incidência do olhar do narrador e da cena a narrar. Para os defensores desta teoria, 2

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O filósofo americano do cinema Noël Carroll divide a teoria do cinema em dois momentos: a teoria clássica e a teoria moderna. Chama clássica a toda a teoria sobre o cinema, escrita no período anterior às teorias estruturalista, semiótica, pós-estruturalista, marxista e lacaniana. Carroll considera que a divisão entre as teorias clássica e moderna é atravessada por um erro filosófico comum a ambas: o essencialismo; e ainda que tanto os teóricos clássicos quanto os modernos possuem um sistema oculto que talha as suas teorias de modo a que se adaptem ao tipo de filmes que preferem. (JARVIE, 1996, p. 9). Utilizaremos estes pontos em comum entre as teorias clássica e moderna como autorização para generalizar sobre ambas em conjunto. Termo de origem grega, divulgado pelos estruturalistas franceses para designar o conjunto de ações que formam uma história narrada segundo certos princípios cronológicos. (CEIA, 2007).

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a essência do modo narrativo cinematográfico existiria, potencialmente em determinados textos narrativos literários. Assim, a descoberta do cinema – na década de 90 do séc. XIX – permitiu concretizar o modo narrativo que enfatiza a visualização perceptiva da imagem de uma cena. Contudo, é provável que, por sua vez, o texto narrativo literário tenha se deixado “contaminar” por técnicas narrativas próprias do cinema. Isso pode ser relacionado, por um lado, com o impacto visual de determinadas imagens e o seu poder sugestivo; e por outro lado, com a facilidade comunicativa do cinema. Além dessas influências/ preferências/ “contaminações” mais ou menos indiretas, surgem, ocasionalmente, intromissões explícitas do cinematográfico na literatura ou viceversa, embora isso não ocorra na mesma proporção, visto que, há diferenças essenciais entre os dois meios: [...] Enquanto um romancista tem à sua disposição a linguagem verbal, com toda a sua riqueza metafórica e figurativa, um cineasta lida com pelo menos cinco materiais de expressão diferentes: imagens visuais, a linguagem verbal oral (diálogo, narração e letras de música), sons não verbais (ruídos e efeitos sonoros) música e a própria língua escrita (crédito, títulos e outras escritas). [...] Se o cinema tem dificuldade em fazer determinadas coisas que a literatura faz, a literatura também não consegue fazer o que um filme faz. (JOHNSON, 2003, p. 42).

Acrescentamos também que é necessário pensar na situação gerada pela cooperação entre o escritor e o roteirista na criação do texto fílmico, uma vez que a qualidade do texto literário “parece”, desse modo, inspirar e condicionar a qualidade estética do filme. Um texto fílmico para ser produzido, na maioria dos casos, tem como base um argumento escrito original ou, frequentemente, adaptado de um texto literário que contém as linhas gerais da história e os diálogos, cujo produto final é resultado de vários ajustes – em função da sua capacidade estética e do seu orçamento, tais como: a escolha e as opções feitas para a adaptação da obra; a montagem; o elenco de atores; a seleção da equipa técnica auxiliar etc. É possível que, ao estabelecermos um paralelo entre as instâncias do literário e do cinematográfico (realizador – contexto – texto/ filme – espectador), isso possa resultar numa análise que considere as duas vertentes do fílmico (o texto e o filme) e equacione as possibilidades de funcionamento de todas estas instâncias, visto que, nos estudos do texto literário, é habitual à análise ter em conta uma, ou várias, das instâncias ou dimensões da literatura, a saber: • o autor (como ser social, como doador do texto, como produtor do texto, como produtor de outros textos que formam as suas obras); • o contexto (o papel do contexto na produção do texto: adesão do texto a/ ou rejeição de um período literário, um movimento, uma forma natural da literatura ou um gênero); • o texto (temática, modos de articulação entre a temática e o discurso que a veicula, relações do texto com os outros textos que constituem o corpo da cultura);

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• o leitor (formas de equacionamento desta instância pelo próprio texto, papel do leitor na busca ou na produção do sentido, homogeneidade ou variabilidade sincrônica e diacrônica da recepção de um dado texto). Ressaltamos que esses pressupostos subsidiam, especificamente, a metodologia utilizada em análises fílmicas, na área da Literatura Comparada. Entretanto, nesta pesquisa, nos baseamos em conceitos de intertextualidade pela ótica da Linguística Textual. Para isso, explicitamos a concepção discursiva de Bakhtin, a partir de suas noções de dialogia e de enunciado – as teorias bakhtinianas –, a fim de comprovar o exercício da intertextualidade como o entrecruzamento de vozes, no referido filme. Desse modo, nos tópicos a seguir, apresentamos outros elementos que fundamentaram esta pesquisa. 2.2 A LINGUÍSTICA TEXTUAL A Linguística Textual tem como princípio basilar a concepção de que o texto é lugar de interação de sujeitos sociais e que nele se constituem e são constituídos dialogicamente, afirmam Koch e Elias (2006). Assim, ao discutirem as principais teorias da Linguística Textual, as autoras afirmam que as concepções de sujeito, língua e texto são as bases das diferentes formas de se conceber a leitura. Então, a partir do momento que percebemos o dialogismo presente na língua e compreendemos os sujeitos como construtores sociais que mutuamente se constroem e são construídos mediante o texto, entendemos a leitura como atividade interativa de construção de sentidos. Entretanto, para isso, é necessário ressaltar o papel do leitor enquanto construtor do sentido do texto, que, no processo de leitura, precisa selecionar estratégias, tais como: a seleção, a antecipação, a inferência4 etc.; além de ativar seu conhecimento de mundo5, na construção de uma das leituras possíveis, visto que um mesmo texto admite uma pluralidade de leituras e sentidos. Desse modo, a leitura exige do leitor a mobilização de estratégias de ordem linguística e de ordem cognitivo-discursivas, além do conhecimento linguístico compartilhado6 pelos interlocutores. 4

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O interlocutor, na recepção de um texto, busca compreendê-lo e interpretá-lo. Para isso, recorre a uma operação inferencial que lhe permita estabelecer a relação de sentido não explícita entre dois elementos (sej am frases ou textos), sendo auxiliado nessa operação por seu próprio conhecimento de mundo. . Conhecimento adquirido à medida que se vive travando contato com o mundo circundante e experimentand o uma série de fatos. Todos esses saberes são armazenados na memória sob forma de blocos, os chamados modelos cognitivos. . Cada indivíduo armazena os conhecimentos na memória a partir de suas experiências pessoais. É preciso, no entanto, que produtor e receptor de um texto possuam, ao menos, uma boa parcela de conhecimentos comuns. .

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A ativação dessas estratégias implica a mobilização de três dos seguintes conhecimentos: o linguístico7, o enciclopédico8 e o interacional 9. Isso permitirá ao leitor interagir com textos de gêneros variados de acordo com o contexto e seus objetivos de leitura. Sabemos que a concepção de contexto é um dos pontos centrais da linguística textual. Inicialmente, as pesquisas sobre o texto consideravam o contexto apenas como o entorno verbal do texto, o co-texto. Entretanto, a partir da Teoria dos Atos de Fala10 e da Teoria da Atividade Verbal11, o contexto sociocognitivo torna-se necessário para o estabelecimento da interlocução entre duas ou mais pessoas. Logo, o contexto englobará não só o co-texto, como também a situação de interação imediata, a situação mediata e o contexto cognitivo dos interlocutores. Isso implica afirmar é que uma mesma expressão linguística pode ter seu significado alterado em função dos fatores contextuais, isto é, ao se falar de discurso, devemos considerar os fatores externos à língua para se entender o que é dito. Assim, a partir do conjunto de conhecimento constitutivo do contexto, destacamos a intertextualidade, nosso objeto de estudo nesta pesquisa. A intertextualidade é elemento constituinte e constitutivo do processo de leitura e escrita e se refere às diversas maneiras pelas quais a produção/recepção de um texto depende do conhecimento de outros textos por parte dos interlocutores. (KOCH; ELIAS, 2006, p. 130).

Logo, é o conhecimento intertextual que permite ao leitor entender como um texto se relaciona com outros textos, numa relação que pode ser explícita ou implícita, tanto no que se refere à sua forma quanto ao seu conteúdo. A partir da noção de gênero desenvolvida por Bakhtin, as referidas autoras mostram como o processo de construção de sentidos que ocorre no ato de leitura é direcionado pelo gênero do texto que está sendo lido. Na medida em que são expostos a um número infindável de gêneros textuais, os indivíduos desenvolvem uma competência metagenérica que lhes possibilita interagir de forma adequada com os mais diversos textos que circulam nas diferentes esferas das práticas sociais, visto que, a partir da identificação do gênero, o leitor saberá o que buscar no texto lido. Dessa forma, a competência metagenérica orienta a nossa compreensão sobre os gêneros textuais materializados nos diferentes suportes de texto. 7

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Corresponde ao conhecimento do léxico e da gramática, responsável pela escolha dos termos e a organi zação do material linguístico na superfície textual, inclusive dos elementos coesivos. . Compreende as informações armazenadas na memória de cada indivíduo. . Relaciona-se com a dimensão interpessoal da linguagem, ou seja, com a realização de certas ações por meio da linguagem. . Surgiu no interior da Filosofia da Linguagem, no início dos anos sessenta, tendo sido, posteriormente apropriada pela Pragmática. Filósofos da Escola Analítica de Oxford, tendo como pioneiro o inglês John Langshaw Austin (1911-1960), seguido por John Searle e outros, entendiam a linguagem como uma forma de ação (“todo dizer é um fazer”). Passaram, então, a refletir sobre os diversos tipos de ações humanas que se realizam por meio da linguagem: os “atos de fala”, (em inglês, Speech acts).. A Teoria da Atividade Verbal, desenvolvida na antiga URSS, estabelece como princípio que a linguagem é uma atividade social realizada com vistas à realização de determinados fins. .

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Assim, na “leitura” texto fílmico, essa competência deve ser ampla, visto que, os textos adaptados para veículos audiovisuais transformam a relação autor/ obra em uma “cadeia quase infinita de referências a outros textos”, afirma Guimarães (2003b, p. 91). Por isso, nesta pesquisa, adotamos a concepção interacional (dialógica) da língua – os sujeitos são vistos como atores/ construtores sociais –, na qual o texto é considerado o próprio lugar da interação e os interlocutores, como sujeitos ativos que – dialogicamente – nele se constroem e são construídos. Desse modo, a compreensão de um texto não é uma simples decodificação de mensagens, visto que o sentido de um texto é construído na interação texto-sujeitos e não há algo que preexista a essa interação. Por exemplo, podemos afirmar que para o leitor/ espectador “captar” o dialogismo intertextual presente no filme A Liga Extraordinária, é preciso que ele ative um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e a sua reconstrução no interior do texto fílmico em análise. Caso contrário, o leitor/ espectador apenas terá contato com imagens, trilha sonora, encenações da palavra escrita etc, sem conseguir detectar a interação entre a literatura e o cinema. 2.2.1 A Intertextualidade Intertextualidade ou dialogismo é uma referência ou uma incorporação de um elemento discursivo a outro, podendo-se reconhecê-lo quando um autor constrói a sua obra com referências a textos, imagens ou a sons de outras obras e autores e até por si mesmo, como uma forma de reverência, de complemento e de elaboração do nexo e sentido deste texto/ imagem. (FIORIN, 1999, p. 35).

A Linguística Textual aponta como um dos fatores de textualidade12 a referência – explícita ou implícita – a outros textos, num sentido bem amplo (verbais: orais, escritos; audiovisuais: artes plásticas, cinema, música etc.). Esse “diálogo” é nomeado de intertextualidade. Desse modo, o autor de um texto ao citar outros textos, conscientemente, intenta fazer o destinatário perceber as conexões semânticas do texto por ele produzido com outro(s) texto(s) anteriormente produzido(s). É perceptível que a intertextualidade está ligada ao “conhecimento de mundo” que deve ser compartilhado, isto é, comum ao produtor e ao receptor de textos. Por isso, a intertextualidade pressupõe um universo cultural muito amplo e complexo, pois implica a identificação e o reconhecimento de remissões a obras, a textos ou trechos conhecidos, além de exigir do interlocutor a capacidade de interpretar a função daquela citação ou da alusão em questão. Há vários tipos de referência, tais como: os provérbios; os ditos populares; os trechos de obras que ao serem citados – literalmente ou modificados – são reconhecidos pelos 12

O conceito de textualidade, desde os primeiros momentos da Linguística Textual (LT), tem sido entendido como o conjunto de características que fazem com que um texto seja um texto, e não apenas uma sequência de frases. (VAL, 1999).

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interlocutores em geral; os personagens de outras obras, utilizados em uma nova história, como no caso do texto fílmico analisado nesta pesquisa etc. Contudo, por vezes, algumas citações (literais ou construídas) são compartilhadas somente por um pequeno número de pessoas. Por exemplo: em obras literárias – prosa ou poesia –, as referências remetem a uma forma e/ ou a um conteúdo bastante específico, percebido apenas por um leitor/ interlocutor muito bem informado e/ ou altamente letrado. Por isso, algumas pessoas podem, em algum momento, considerar o texto fílmico A Liga Extraordinária, um filme comum, idêntico a todos que pertencem à categoria “aventuras”. Koch (1997) informa que as formas de relacionamento entre textos são bastante variadas: intertextualidade em sentido amplo e em sentido restrito. Aquele é a condição de existência do próprio discurso; este é interpretado como sendo a relação de um texto com outros textos previamente existentes, isto é, efetivamente produzidos. Cabe informar que, a intertextualidade no sentido restrito13 é classificada como: de conteúdo x de forma; explícita x implícita; das semelhanças x das diferenças; e como um intertexto14 alheio, próprio ou atribuído a enunciador genérico. O conceito de Koch (1997) sobre a intertextualidade nos leva a refletir a respeito da individualidade e da coletividade em termos de criação, pois acreditamos que, a compreensão de textos (considerados aqui da forma mais abrangente) depende da nossa experiência de vida, das nossas leituras etc, visto que, determinadas obras só se revelam mediante o conhecimento de outras. Assim, considerando um dos pressupostos 15 desta pesquisa, acreditamos que, a intertextualidade é uma das estratégias utilizadas para a construção de um texto, visto que ressalta a importância do conhecimento de mundo e de como esse fator interfere no nível de compreensão dos textos, permite a renovação dos procedimentos e temas artísticos, preservando os valores da tradição cultural. 13

De conteúdo x de forma/ conteúdo: quando os mesmos textos circulam por diferentes veículos, ocorre a intertextualidade de conteúdo: os mesmos assuntos abordados por diferentes jornais (ou mídias) em datas iguais; os mesmos termos ou conceitos (comuns a uma dada área) empregados em diferentes publicações. Ocorre a intertextualidade de forma/ conteúdo, por exemplo, quando a mesma linguagem (estilo, registro ou variedade) é usada com fins específicos (imitação, paródia...). Explícita x implícita: a intertextualidade explícita ocorre quando há citação da fonte do intertexto (por exemplo, em discursos relatados, citações, referências); já a implícita não alude à fonte nenhuma, deixando a cargo do leitor recuperála na memória para construir o sentido do texto (por exemplo, alusões, paródias, ironias). Das semelhanças x das diferenças: quando o texto incorpora o intertexto para seguir-lhe a orientação argumentativa ou para tomá-lo como sua base argumentativa, ocorre a intertextualidade das semelhanças; já se o texto ridiculariza o intertexto, coloca-o em questão (no mínimo) ou mostra as improcedências dele, ocorre à intertextua lidade das diferenças (por exemplo, as estratégias argumentativas de concessão ou de concordância parcial e, também aqui, paródias, ironias). Com intertexto alheio, com intertexto próprio ou com intertexto atribuído a um enunciador genérico: o intertexto alheio ocorre quando há a intertextualidade propriamente dita; o intertexto próprio ocorre quando um autor retoma um texto dele mesmo (também chamada intratextualidade ou autotextualidade); e, por fi m, o intertexto atribuíd o a um enunciador genérico ocorre quando o intertexto é tido como pertencente a um enunciador indeterminado, isto é, quando essa proposição faz parte do repertório de uma comunidade (por exemplo, provérbios e ditos populares). (KOCH, 1997, p. 62-64). 14 Conjunto dos fragmentos citados num determinado corpus. (MAINGUENEAU, 1998, p. 83). 15 Vide: Preliminares.

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2.3 BAKHTIN Bakhtin, no início do século XX, denominou de Dialogismo o estudo e o reconhecimento do intercâmbio existente entre autores e obras. Essa ideia central, também reconhecida por outros termos, como intertextualidade, inicialmente, foi um foco de estudo no campo da literatura – mediante as citações textuais – como sendo a inclusão de um texto a outro, para efeitos de reprodução ou transformação. Entretanto, podemos empregar o termo as outras produções textuais, imagéticas e midiáticas que trabalhem e elaborem a narrativa discursiva com este artifício, por exemplo: os textos fílmicos, o teatro etc. A relação dos diálogos é estabelecida por um cruzamento de vozes e/ ou discursos diversificados, afirma Bakhtin (1997); e embora esta tese tenha sido fundamentada por intermédio da literatura, é perceptível que o dialogismo harmoniza o encontro entre os meios de comunicação e os discursos enunciativos distintos. Esse encontro mostra que o termo dialogismo pode ser denominado de polifonia – outro termo para designar um significado similar – caracterizado como um diálogo em que muitas vozes adquirem visibilidade no dialogismo. A polifonia é entendida como uma conversa entre diversas vozes, que constituem, mostram e interagem em um diálogo intertextual. Por isso, um discurso, qualquer que seja nunca é isolado, nunca é verbalizado por uma única voz, é discursado por muitas vozes geradoras de textos, discursos que interagem no tempo e no espaço. Um discurso se utiliza de outro ou de múltiplos discursos para aludir novas orientações e/ ou novos sentidos a uma obra. Isso ocorre sem alterar as significações, as orientações e a forma do que já está estabelecido, o novo discurso apenas (re) trabalha a ideia mostrada. Logo, um único discurso apresenta várias orientações de interpretações, vozes distintas, possibilitando uma pluralidade textual ou discursiva de vozes diferenciadas. É visível que os discursos modernos e pós-modernos são polifônicos, visto que se relacionam com o presente e o passado; são compostos de elementos recorrentes de outros discursos, que não perdem a sua singularidade e, desse modo, asseguram o seu caráter intertextual para alcançar os seus objetivos16. Isso nos permite considerar, de acordo com Paulino (1995), que um filme é um texto pluricodificado, visto que utiliza vários códigos, não só o verbal. Ele é múltiplo, diversificado e difunde diferentes linguagens. Logo, é perceptível que, a intervenção simultânea de outras linguagens interfere nas construções da significação de um novo texto.

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Nesta pesquisa, consideramos a intertextualidade e a polifonia uma sinonímia, visto que, nestes estudos, as fronteiras, segundo Rossato e Méa (2004), caso existam, não são bem delimitadas e muito tênues, mesmo quando Koch (1983) diz que a intertextualidade é uma das manifestações mais importantes da polifonia.

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2.3.1 Gêneros do discurso A utilização da língua efetua-se em forma de enunciados [...] cada esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gêneros do discurso. (BAKHTIN, 2003, p. 279).

A concepção de Bakhtin sobre os gêneros do discurso condiz e se adapta às obras atuais, mesmo que, ele não tenha direcionado as suas análises ao audiovisual contemporâneo, ficando restrito, ao exame dos fenômenos linguísticos e literários em suas formas impressas ou orais. Para Bakhtin (2003), os gêneros textuais são tipos relativamente estáveis de enunciados que orientam o uso da linguagem num determinado meio, revelando as tendências expressivas mais estáveis e mais organizadas, acumuladas ao longo de várias gerações de enunciadores. Entretanto, isso não significa afirmar que o gênero é conservador, visto que ele faz parte da dinâmica de uma cultura; e, por isso, as tendências manifestadas num gênero não se conservam ad infinitum e estão continuamente em transformação, embora, nesse mesmo instante, busquem garantir certa estabilização. O cinema apresenta um conjunto bastante amplo de eventos audiovisuais, constituindo o que os semioticistas chamam de um enunciado – apresentado aos leitores/ espectadores numa variabilidade praticamente infinita. A rigor, podemos dizer que cada enunciado concreto é singular, visto que se apresenta de forma única; entretanto foi produzido dentro de certa esfera de intencionalidades, para focalizar alguns acontecimentos; atingir certo público etc. Dessa maneira, o enunciado ilustra ou espelha uma determinada possibilidade de utilização dos recursos audiovisuais; e isso se expressa nos conteúdos verbais, figurativos, narrativos e temáticos. Além disso, existem esferas de intenção quase que definidas, no interior das quais os enunciados podem ser codificados e decodificados por uma comunidade de produtores e espectadores até certo ponto definida. Assim, ao considerarmos Bakhtin, acreditamos que essas esferas de acontecimentos podem ser chamadas de gêneros. A riqueza e a diversidade dos gêneros discursivos são ilimitadas, porque as possibilidades de atividade humana são também inesgotáveis e porque cada esfera de atividade contém um repertório inteiro de gêneros discursivos que se diferenciam e se ampliam na mesma proporção que cada esfera particular se desenvolve e se torna cada vez mais complexa. (BAKHTIN, 2003, p. 262).

Vale ressaltar que o termo gênero normalmente é associado aos estudos literários, daí a tendência, nos estudos linguísticos, para o uso da expressão tipos de texto, considerada mais neutra.

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2.4 O ATO DE CONTAR Se narrar é contar algo, é preciso levar em consideração que o homem sempre contou histórias. Narrar é uma atividade atávica17, pois todo homem é um guardador de histórias, um criador de narrativas, afirma Forster (1974). Quem nunca ouviu falar em Sherazade que se livrou da morte porque sabia contar histórias? E do Decameron, de Boccaccio: dez viajantes, fugindo da ‘praga’ em Florença, isolados num castelo, contam 10 histórias em 10 dias, esperando que a ‘peste’ passasse e pudessem voltar para seu país? E quanto às histórias, fixas em nossa memória, que nos obrigam a recontá-las? Nesse recontar, geralmente alteramos os relatos – talvez para impressionar o nosso ouvinte! Mas quando isso acontece, não estamos apenas repetindo e sim recriando uma nova história. Até o século XVI – antes da invenção da imprensa – as histórias eram contadas em voz alta por um narrador a um grupo de pessoas. Isso permitia uma interação direta entre o narrador e seus ouvintes; além de garantir uma futura reprodução da história narrada. Atualmente, o ato de contar coexiste com a escrita e os meios técnicos de comunicação eletrônica, permitindo a sobrevivência das histórias. Assim, mesmo com a mudança dos meios, o ato de contar continua vivo. Entretanto, construir um texto narrativo escrito não é apenas relatar um acontecimento ou, em outras palavras, não é apenas encarar fatos, produzindo uma história. Quando se solicita uma narrativa, em um contexto de vestibular, por exemplo, é preciso que, no texto solicitado, apareçam de forma articulada os elementos constitutivos dessa tipologia textual. Desse modo, toda narrativa pressupõe os seguintes elementos: narrador, personagem, enredo, espaço e tempo. O narrador: toda história precisa ser contada por “alguém”; este que conta a história em um texto narrativo é chamado de narrador. É por meio dele que conhecemos o enredo, as características das personagens, a descrição dos cenários etc. As personagens representam pessoas; suas caracterizações são mais complexas, pois, além dos aspectos físicos, é preciso levar em conta os aspectos psicológicos de tipos humanos. O espaço em uma narrativa deve ter uma função determinada no texto. Ou seja, ele não é apenas um palco onde as ações se desenrolam; deve integrar-se aos demais elementos da narrativa. Por exemplo, ao sustentar a presença de personagens, ao motivar ações específicas, ao fornecer indícios (pistas) sobre determinados acontecimentos etc. O tempo representa o transcurso de existência, de ações possíveis, visto que ações e existências “consomem” tempo, na vida real. Portanto, isso também ocorre no espaço ficcional. 17

Termo originário da genética (e em desuso nessa ciência) que traduzia o ressurgimento numa determinada geração de certos sintomas ou caracteres tidos por extintos. Aplica-se na linguagem corrente para designar semelhanças físicas ou psicológicas com parentes mais antigos e não com os mais recentes. Esta circunstância tem sido la rgamente explorada em todas as literaturas, desde a tragédia grega até ao romance de tese. (CEIA, 2007).

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O enredo é a própria história; ele é resultado da atuação das personagens em determinados cenários, durante certos períodos de tempo, tudo isso contado, para o leitor, por um narrador. Posto isso, vale informar que o ofício da narrativa ocorre independentemente do meio material em que está sendo veiculada, tais como: a comunicação oral, o texto escrito, o filme, os quadrinhos etc. 2.4.1 A Narrativa audiovisual A fusão de linguagens artísticas foi pensada e experimentada no cinema desde suas origens. Desde Georges Méliès18, com suas trucagens e efeitos especiais, empregando fusão de imagens, exposição múltipla de negativos, maquetes e truques ópticos, passando pelos filmes de Peter Greenway19, com a sobreposição de camadas na imagem (de textos escritos, sobretudo), até o filme digital de hoje. A exemplo da estética experimental no cinema, as tentativas de fusão de literatura, dança, música são notórias. O teatro, atualmente, anuncia uma linguagem ousada de imagens, se utiliza de marcações e limites característicos do aparato teatral. É perceptível que as artes se “misturam” sem se “confundirem”. Por isso, uma obra literária adaptada para o cinema não pode ser mais considerada como texto literário propriamente, trata-se agora de um texto visual, trabalhado para outra linguagem com características diferentes, agora a cinematográfica. A linguagem cinematográfica é a mais recente entre os meios artísticos de expressão. O cinema, que tem como princípio básico a imagem em movimento, distingue-se da fotografia e da pintura, suas co-irmãs. O que aparenta o cinema com as outras artes é a sua capacidade de dialogar com as diferentes linguagens. E, na história, vamos encontrar diversas propostas estéticas no cinema conforme ideias de montagem e roteirização empregadas. Cada proposta estética interage variadamente na criação das obras fílmicas, conforme o modo como os elementos básicos da linguagem são trabalhados. Podemos, por exemplo, contar visualmente uma mesma história de diversos modos, a partir de como o diretor faz a decupagem20 das sequências do roteiro, como conceberá a fotografia (angulação, movimento e filtros da câmera), tal como um escritor ao decidir se escreve em primeira ou terceira pessoa. No tópico (2.1), já discutimos a diferença entre a literatura e a linguagem cinematográfica. 18

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Cineasta francês (8/12/1861-21/1/1938). Um dos principais responsáveis pelo desenvol vimento da indús tria cinematográfica, o primeiro a filmar com figurinos, cenários e maquiagem. . Cineasta inglês. Entusiasta no que se refere às possibilidades que a era digital pode apresentar à arte cinematográfica. Sua reivindicação mais insistente é a de que as novas tecnologias viriam finalmente libertar o cinema do fantasma da narratividade, a partir de recursos como a multiplicidade de telas. . Planificação do filme definida pelo diretor, incluindo todas as cenas, posições de câmara, lentes a serem usadas, movimentação de atores, diálogos e duração de cada cena. .

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Por exemplo, quando os personagens que compõem o texto fílmico A Liga Extraordinária saem do universo literário e são transportados para o universo cinematográfico, transformações ocorrem, visto que nos textos escritos, os personagens estão na mente do leitor como imagens literárias. Portanto, devemos julgar cada linguagem por si mesma. O livro pelo seu “valor” literário e o filme pela sua consistência estético-cinematográfica. 3 DO TEXTO AO FILME: possíveis aproximações “[...] todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”. (Kristeva) 3.1 A LIGA EXTRAORDINÁRIA A história é ambientada na Europa de 1899, onde a Rainha Vitória, da Inglaterra, por intermédio de um misterioso cavalheiro identificado apenas como “M”, solicita a ajuda do famoso aventureiro imperialista Allan Quatermain – que vive na África, numa das várias colônias britânicas – para recrutar um grupo especial de pessoas com características e poderes extraordinários, e juntos, numa “liga” enfrentarem a ameaça terrorista de um vilão louco auto denominado de “Fantasma”. Ele tem sido o responsável por causar uma série de incidentes internacionais e criar uma perturbadora instabilidade da paz entre as principais nações da Europa, incitando uma guerra mundial que resultaria na macabra oportunidade de conquistar o mundo, pelo fato de ele ser o possuidor do mais moderno arsenal bélico existente. Esse plano maquiavélico do “Fantasma” incluía a destruição da cidade italiana de Veneza, no momento da realização de uma conferência internacional dos países europeus que avaliam a turbulência política do velho continente. Para evitar o desastre e uma guerra iminente, Quatermain e a “liga extraordinária”, auxiliados pelo Capitão Nemo, dono do futurista submarino “Nautilus”, entram em ação e partem para um confronto direto com o vilão na tentativa heroica de impedir a destruição de Veneza. Após isso, os heróis descobrem a existência de uma poderosa fortaleza onde o “Fantasma” estava construindo poderosas armas de guerra e realizando experiências científicas para a criação de seres com os mesmos poderes extraordinários de alguns dos membros da “liga”. A “liga” é liderada pelo caçador Allan Quatermain, personagem criado pelo escritor Henry Rider Haggard, em As Minas do Rei Salomão.

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Completa a diferenciada equipe: • a bela Wilhelmina Murray, noiva de Jonathan Harker, transformada 21 em vampiro pelo Conde Drácula no livro homônimo de Bram Stoker; • o lendário Capitão Nemo, um brilhante cientista criador do submarino “Nautilus” no livro 20.000 Léguas Submarinas, de Jules Verne; • o psicótico médico Dr. Henry Jekyll e sua outra personalidade maléfica Mr. Edward Hyde, personagens da obra O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson; • o cientista transparente Rodney Skinner, nome alterado por problemas de direitos autorais, substituindo o original da literatura Dr. Hawley Griffin, da obra O Homem Invisível, de H. G. Wells; • o amaldiçoado imortal Dorian Gray, personagem criado por Oscar Wilde em O Retrato de Dorian Gray; • e finalmente pelo (agora) agente do Serviço Secreto americano Tom Sawyer, criado ao lado de Huckleberry Finn pelo escritor Mark Twain, popular autor de literatura infanto-juvenil. Já o cavalheiro identificado como “M” – o intermediário da rainha – é um personagem da obra O Problema Final, de Arthur Conan Doyle. 3.2 OUTROS RESULTADOS O texto fílmico A Liga Extraordinária se constrói mediante o diálogo estabelecido entre várias obras ficcionais, tais como: As Minas do Rei Salomão, de Henry Rider Haggard; Drácula: o vampiro da noite, de Bram Stoker; 20.000 Léguas Submarinas, de Jules Verne; entre outras, sendo dirigido por Stephen Norrington. Consideramos que esse dialogismo nos permite afirmar que, os elementos narrativos e temáticos, encontrados no texto fílmico em análise, se inscrevem dentro de uma visão épica da existência, visto que, na formação da “Liga” temos a presença de vários heróis que atuam como libertadores, impulsionando o percurso de purificação e redenção da humanidade. Entretanto, ao identificarmos as obras matriciais a partir dos personagens que compõem a nova história, podemos afirmar que eles são pseudo-novos heróis 22, visto que, na verdade, são modelos consagrados da literatura clássica. Esse conhecimento permite ao leitor/ espectador refletir sobre as relações que se estabelecem entre os personagens. Isso se considerarmos que os intertextos presentes no filme fazem parte da memória coletiva (social) desses interlocutores. (KOCH, 1983).

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No livro, o processo de transformação em vampiro de Wilhelmina Murray é interrompido, devido a morte de Drácula. Conceito elaborado por Palma (2004, p. 57).

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Acreditamos, porém, que a relação estabelecida entre A Liga Extraordinária e os outros textos que o circundam é bastante clara. Por exemplo: •



• • • •

o caçador Allan Quatermain – personagem criado pelo escritor Henry Rider Haggard em As Minas do Rei Salomão –, líder da liga dos cavalheiros extraordinários, é um precursor do arqueólogo “Indiana Jones”, de Steven Spielberg; Allan Quatermain recruta um grupo especial de pessoas com características e poderes extraordinários, para juntos, numa “liga” (similar aos X-Men dos quadrinhos e cinema), enfrentarem a ameaça terrorista de um vilão louco; “M” é uma alusão ao personagem de mesmo nome da série de aventuras de James Bond, escritas por Ian Fleming; o Fantasma (“M”) utiliza uma máscara para esconder uma falsa deformação, esta que é real, no personagem de mesmo codinome em O Fantasma da Ópera, de Gaston Leroux; a revista que aparece na mesa de Allan Quatermain é The Strand, onde Arthur Conan Doyle publicou as primeiras histórias de Sherlock Holmes; no momento que a Liga está em Paris seus integrantes passam por um muro onde está um pôster, anunciando a proximidade do Carnaval. Nesse pôster são visíveis dois nomes, Dr. Alan Moore e Dr. Terry O’Neill, ambos são os criadores da graphic novel em que A Liga Extraordinária foi baseado.

Cabe ressaltar que, na “leitura” do filme, consideramos que o leitor/ espectador conheça o trajeto dos personagens, reconhecendo a nova atuação de cada um, ao longo da história, visto que alguns deles tiveram suas personalidades alteradas significativamente. Por exemplo: •





“Homem Invisível”, que na verdade é conhecido como “um cientista louco”, perturbado e completamente desorientado por sua condição de invisibilidade decorrente de uma experiência científica, sendo que essa característica desapareceu no filme; o aristocrático Dorian Gray foi “amaldiçoado” pela imortalidade. Seu comportamento suspeito e destino trágico durante o filme, acreditamos que foi uma decisão “equivocada” do roteirista; outro personagem que ficou diferente de sua concepção original é o médico Dr. Jekyll – base para a produção de uma infinidade de filmes – não tinha controle sobre sua dupla personalidade, sendo uma vítima impotente do monstruoso Mr. Hyde. No filme em análise, a transformação é controlada e só ocorre após a ingestão de um soro “maldito”.

Ao longo da “leitura”, é perceptível que a linguagem audiovisual exige do seu criador um exercício articulado entre as linguagens, considerando a complexidade de signos e códigos compartilhados nessa narrativa fílmica.

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Isso se harmoniza com Eco (2003), quando afirma que: [...] a escolha de um código para transmitir uma mensagem que deve dar informações, torna este processo mais fácil, visto que as “combinações são regidas por um sistema de possibilidades prefixadas.” (ECO, 2003, p. 15, grifo nosso).

A partir disso, podemos avaliar também a escolha do título do filme. Sabemos que o título, no texto escrito, deve corresponder ao seu conteúdo. E no texto fílmico23? No caso, em análise, constatamos que se manteve essa premissa, visto que os personagens apresentam peculiaridades que os diferenciam de outros seres humanos. Já informamos que esta análise se fundamenta na premissa de que um texto permite várias interpretações. Além disso, definimos texto como: “[...] toda unidade de produção de linguagem situada, “acabada” e auto-suficiente do ponto de vista da ação ou da comunicação.” (BRONCKART, 1999, p. 12, grifo nosso). Tal compreensão evidencia a necessidade de trabalhar, em sala de aula, com vários tipos de textos, usados em diferentes situações e com objetivos diversos. Isso permite, ao professor, investigar a experiência do aluno enquanto leitor de palavras e de mundo, uma vez que acreditamos que o processo ensino/ aprendizagem de Língua Portuguesa deve se basear em propostas interativas a fim de promover o desenvolvimento do indivíduo numa dimensão integral. Logo, nessa perspectiva, o trabalho do professor deve, entre outros, desenvolver no aluno a capacidade de identificar um intertexto, porque, isso permitirá ao discente, o desenvolvimento da capacidade de transmitir ideias, informações, opiniões etc., em toda e qualquer situação comunicativa. 4 ALGUMAS CONSIDERAÇÕES “As Artes não não se repelem”. (Palma)

Neste trabalho, analisamos a tessitura do texto fílmico A Liga Extraordinária, de Stephen Norrington, baseados em conceitos de intertextualidade como elemento da textualidade, pela ótica da Linguística Textual, com o propósito de identificar a referência ou a incorporação dos vários elementos discursivos que compõem o referido texto fílmico; demonstrar como o discurso literário e o cinematográfico, ao convergirem, tornam mais abrangentes as inter-relações que se estabelecem, mediante os três níveis de leitura: sensorial, emocional e racional; e esquematizar uma leitura dialógica entre as narrativas ficcionais e o filme A Liga Extraordinária, cujos personagens provêm da literatura clássica (de horror, ficção científica, fantasia, aventura).

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Consideramos o fator tradução.

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Isso, além de mostrar a associação entre várias linguagens, como a da literatura e do cinema, enfatizou as novas formas de produção de textos e os diferentes meios de transmissão do mesmo tema, contribuindo, dessa forma, com os estudos sobre a Intertextualidade. Logo, um estudioso de língua portuguesa, de posse desses conhecimentos, pode compreender e explicar, de forma adequada, aos interlocutores, que um texto fílmico é a transposição de um sistema de signos em outro, onde não se privilegia o original em detrimento da cópia nem a superioridade da recepção da obra, frente ao modelo utilizado. Assim, a pesquisa foi desenvolvida sob as questões norteadoras a seguir: • é fato que tanto a obra quanto o escritor participam de um sistema coletivo de enunciação de saberes. Então, como estabelecer um diálogo entre textos sem que isso possa ser considerado plágio? • o diálogo entre textos permite a renovação dos procedimentos e temas artísticos ou preserva e mitifica os valores da tradição cultural? Para responder estes questionamentos, explicitamos a concepção discursiva de Bakhtin, a partir de suas noções de dialogia e de enunciado – as teorias bakhtinianas –, a fim de comprovar o exercício da intertextualidade como o entrecruzamento de vozes, no referido filme. Robert Stam (1992) informa que Kristeva concebeu o termo intertextualidade com base no dialogismo de Bakhtin, na medida em que é permitido observarmos em qualquer texto ou discurso artístico um diálogo com outros textos e também com o público que o prestigia. Um diálogo não ocorre somente em um discurso fechado, mas também com outros discursos e seus receptores, como uma relação intertextual entre um discurso, outros discursos anteriores e com os espectadores que, porventura, já tenham uma prévia noção de como se realiza uma relação citacional, sendo então determinado um diálogo de gêneros ou de vozes. Convém situar que, em primeiro lugar, a intertextualidade foi um foco de estudo no campo da literatura – mediante as citações textuais – como sendo a inclusão de um texto a outro, para efeitos de reprodução ou transformação. Entretanto, podemos também empregar o termo para as outras produções textuais, imagéticas e midiáticas que trabalhem e elaborem sua narrativa discursiva com esse artifício. Desse modo, a intertextualidade pode também ser compreendida como uma série de relações de vozes que se intercalam e se orientam por desempenhos anteriores de um único autor e/ ou autores diferenciados, originando um diálogo no campo da própria língua, da literatura, dos gêneros narrativos, dos estilos e até mesmo em culturas diversas. Isso porque o conceito de dialogismo vai além da literatura e da história de suas fontes, trabalha e existe dentro de uma produção cultural, literária, pictórica, musical, cinematográfica e define o que se entende por uma relação polifônica, onde vozes sub-existem, como uma relação intertextual que se estende por vários meios e períodos.

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Logo, os discursos modernos e pós-modernos tendem a ser polifônicos ao se relacionarem com o presente e o passado, concebendo-se como uma montagem que é alcançada por meio da fusão de elementos oferecidos por outros discursos distintos, sem, contudo, perder a singularidade de cada um, afirmando assim, o seu caráter intertextual para atingir seus objetivos. Após essas considerações, no que concerne especificamente à questão do plágio, evidenciamos que, atualmente, o volume de textos que fazem parte de nossas vidas é cada vez mais abundante. Isso nos permite criar repertórios, enciclopédias de referências, que podem ser utilizadas como ferramentas de expressão da subjetividade, construindo um novo sentido as mais variadas ações. Então, só existe plágio se houver uma cópia ipsis liter em atividades de transcrição, de qualquer tipo de linguagem. No que diz respeito ao diálogo entre textos, no filme em análise, acreditamos que há uma renovação dos procedimentos e temas artísticos, visto que, o cinema, de maneira geral e como um veículo de massa, trabalha constantemente com a intertextualidade, com o seu conceito multidimensional e interdisciplinar ao dialogar com filmes anteriores, gêneros, sons e imagens, conforme Stam (1992). Nesse momento, cabe ressaltar que todas essas noções nos serviram como chavemestra para abrir algumas relações intertextuais existentes na Liga. Muitas outras poderiam ter sido construídas, mas o recorte é inevitável tanto na análise intertextual quanto na reflexão acadêmica como um todo. Acrescentamos também que muito poderia ainda ser analisado em relação à nossa proposta de “leitura” do filme A Liga Extraordinária. Mas, deixamos isso como sugestão e estímulo às novas pesquisas acerca das possibilidades combinatórias de signos e códigos na construção de sentidos das narrativas visuais. Essas possibilidades exigem um leitor/ espectador consciente de que, afinal, estamos diante de códigos peculiares que demandam leituras igualmente peculiares. REFERÊNCIAS A LIGA Extraordinária. Direção: Stephen Norrington. Produção: Trevor Albert e Don Murphy. Intérpretes: Sean Connery; Naseeruddin Shah; Peta Wilson; Stuart Townsende e outros. Roteiro: James Robinson. Música: Trevor Jones. Los Angeles: 20th Century Fox, c2003. 1 DVD (110 min), widescreen, color. Produzido por 20th Century Fox Vídeo Home. Baseado em graphic novel de Alan Moore e Terry O’Neill. AGUIAR, Vera Teixeira de. O verbal e o não verbal. São Paulo: UNESP, 2004. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 8. ed. São Paulo: Hucitec, 1997. ______. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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Artigo O ENSINO DE HISTÓRIA E SUA INTERFACE COM OS PROCESSOS DE LEITURA Cíntia Maria Cardoso*

RESUMO Este artigo apresenta uma reflexão sobre as dificuldades que muitos alunos apresentam na compreensão dos fatos e eventos históricos e como a linguística pode contribuir para uma prática de ensino da História que desenvolva a autonomia, a cidadania e a formação crítica, conforme preconizam os Parâmetros Curriculares Nacionais. Enfoca o domínio semântico e linguístico e os gêneros textuais utilizados pelos autores dos livros didáticos para construir e expor o conhecimento de História. O objetivo é refletir sobre as diferentes construções textuais nesses escritos, levando em conta que a compreensão da natureza de um texto e a forma como foi elaborado contribuem para a leitura e a construção de significados. O estudo revela que os autores de livros didáticos destinados a alunos do ensino médio utilizam um grande número de recursos linguísticos explícitos e implícitos por todo o texto para explicar os fatos e eventos históricos. Nesse contexto, professores e alunos precisam discutir como a linguagem e os múltiplos meios de recursos linguísticos são usados na construção dos livros didáticos para melhor entendimento e compreensão do conhecimento histórico. PALAVRAS-CHAVE: Leitura. Compreensão. História. Textos didáticos de história. Conhecimento histórico.

THE TEACHING OF HISTORY AND ITS INTERFACE WITH THE PROCESS OF READING ABSTRACT This article presents a reflection on the difficulties that many students present in the understanding of the historical facts and events and how the linguistic can contribute to for a practice of teaching of the History in order to develops the autonomy, citizenship and a critical opinion, as it is recommended by the National Curriculum Parameters. Focus the semantic domain and the *

Mestre em Linguística Aplicada e professora de Comunicação e Metodologia da Universidade Federal Rural da Amazônia (UFRA). [email protected].

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linguistic and text types used by the authors of textbooks to build and display a knowledge of history. The objective is to reflect about the different constructions text these writings considering that the comprehension of the text’s nature and the form how was elaborated contribute for the reading and the construction of meanings. The study reveals that the authors of textbooks for high school students use a large number of language resources explicit and implicit throughout the text to explain the facts and historical events. In this context, teachers and students need to discuss about how the language and the multiples forms of linguistic resources are used in the construction of textbooks for a better understanding and comprehension of the historical knowledge. KEYWORDS: Reading. Understanding. History. Text books of history. Historical knowledge. 1 INTRODUÇÃO Segundo os Parâmetros Curriculares Nacionais (doravante PCN), o currículo escolar é um instrumento da cidadania democrática que deve contemplar conteúdos e estratégias de aprendizagem que habilitem o aluno à realização de atividades que envolvam a vida em sociedade, a atividade produtiva e a experiência subjetiva, com o objetivo de integrá-lo no universo das relações políticas, do trabalho e da simbolização subjetiva (BRASIL, 1999). Nessa perspectiva, definiram-se como diretrizes gerais e orientadoras da proposta curricular quatro premissas apontadas pela UNESCO como eixos estruturais da educação na sociedade contemporânea: • Aprender a conhecer: educação geral e ampla com possibilidades de aprofundamento em determinada área de conhecimento, pois o aumento dos saberes permite compreender o mundo, favorece o desenvolvimento da curiosidade intelectual, estimula o senso crítico e permite compreender o real, mediante a aquisição da autonomia na capacidade de discernir. • Aprender a fazer: desenvolvimento de habilidades e estímulo para o surgimento de novas capacidades, privilegiando a aplicação da teoria na prática com o intuito de enriquecer a vivência da ciência na tecnologia e destas no social. • Aprender a viver: aprendizagem da convivência, desenvolvendo o conhecimento do outro e a percepção das interdependências, para a realização de projetos comuns ou a solução de conflitos. • Aprender a ser: preparação do aluno para a formulação de pensamentos autônomos e críticos com juízos de valor, e o exercício da liberdade de pensamento, discernimento, sentimento e imaginação. A partir desses princípios gerais, o currículo escolar deve articular-se a outros eixos básicos, que orientam a seleção de conteúdos significativos, tendo em vista as competências e habilidades que se pretende desenvolver no Ensino Médio.

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Para isso, os PCN foram organizados em três grandes áreas – Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias e Ciências Humanas e suas Tecnologias – cada uma reunindo diferentes disciplinas, que compartilham objetos de estudo para facilitar a comunicação e criar condições para a prática escolar interdisciplinar. A estruturação por área do conhecimento possibilita uma educação de base científica e tecnológica, associada aos aspectos socioculturais, conciliando, assim, humanismo e tecnologia, como preconizam os PCN: O desenvolvimento pessoal permeia a concepção dos componentes científicos, tecnológicos, socioculturais e de linguagens. O conceito de ciências está presente nos demais componentes, bem como a concepção de que a produção do conhecimento é situada sócio, cultural, econômica e politicamente, num espaço e num tempo. Cabe aqui reconhecer a historicidade do processo de produção do conhecimento. Enfim, preconiza-se que a concepção curricular seja transdisciplinar e matricial, de forma que as marcas das linguagens, das ciências, das tecnologias e, ainda, dos conhecimentos históricos, sociológicos e filosóficos, como conhecimento que permitem uma leitura crítica do mundo, estejam presentes em todos os momentos da prática escolar (BRASIL, 1999, p. 32).

Nesse sentido, a formação do aluno deve estar voltada para a aquisição de conhecimentos básicos, a preparação científica e a capacidade de utilizar as diferentes tecnologias, ou seja, o ensino médio deve desenvolver “capacidades de pesquisar, buscar informações, analisá-las e selecioná-las; a capacidade de aprender, criar, formular, ao invés do simples exercício de memorização” (BRASIL, 1999, p. 15-16). A perspectiva é de uma aprendizagem geral, permanente e continuada, centrada na construção da cidadania, na formação ética e no desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico (BRASIL, 1999). A organização curricular por áreas pretende superar o tratamento compartimentalizado atribuído ao conhecimento escolar e propõe um enfoque interdisciplinar e contextualizado dos conhecimentos. Com relação à interdisciplinaridade, o objetivo não é criar novas disciplinas, mas utilizar os conhecimentos de disciplinas existentes para compreender o mundo em seus diferentes aspectos e pontos de vista: A integração dos diferentes conhecimentos pode criar as condições necessárias para uma aprendizagem motivadora, na medida em que ofereça maior liberdade aos professores e alunos para a seleção de conteúdos mais diretamente relacionados aos assuntos ou problemas que dizem respeito à vida da comunidade (BRASIL, 1999, p. 36).

Ao partir de uma perspectiva interdisciplinar e contextualizada, os PCN propõem uma aprendizagem significativa, que permita ao aluno identificar as questões propostas e com elas se identificar, visando a desenvolver competências e habilidades para compreender e intervir em sua realidade de forma autônoma e desalienante.

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O trabalho interdisciplinar envolve o estabelecimento de metas comuns a cada uma das disciplinas de todas as áreas com o intuito de desenvolver competências e habilidades nos alunos e também nos professores. Porém, ao mesmo tempo, é preciso reconhecer o caráter disciplinar do conhecimento e organizar o aprendizado, pois, cada disciplina possui suas especificidades e precisa desenvolver competências gerais (BRASIL, 2002a, 2002b). 2 OS PCN E O ENSINO DE HISTÓRIA A disciplina História, foco de nosso trabalho, encontra-se na área das Ciências Humanas e suas Tecnologias, área que engloba também a Filosofia, a Sociologia, a Geografia, a Antropologia, a Psicologia, o Direito, entre outras. Essa área tem por objetivo interpretar o conhecimento das Ciências Humanas e desenvolver consciências críticas e criativas, capazes de elaborar respostas adequadas a problemas atuais e a situações novas:

A aprendizagem nesta área deve desenvolver competências e habilidades para que o aluno entenda a sociedade em que vive como uma construção humana, que se reconstrói constantemente ao longo de gerações, num processo contínuo e dotado de historicidade; para que compreenda o espaço ocupado pelo homem, enquanto espaço construído e consumido; para que compreenda os processos de sociabilidade humana em âmbito coletivo, definindo espaços públicos e refletindo-se no âmbito da constituição das individualidades [...] (BRASIL, 1999, p. 34).

Nessa área, os saberes destacados são as competências relacionadas à apropriação dos conhecimentos dessas ciências com suas particularidades metodológicas, nas quais o exercício da interdisciplinaridade é indispensável. A área de Ciências Humanas e suas Tecnologias objetiva constituir no aluno competências que permitam a ele compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais da identidade pessoal e social; compreender a importância da ação humana para as transformações sociais; compreender o desenvolvimento da sociedade na dimensão temporal, espacial, político-social, cultural, econômica e humana; compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos sociais; traduzir os conhecimentos históricos, sociais, econômicos e culturais em questionamentos e problematizações, que possam auxiliá-lo na resolução de problemas do tempo presente; entender o impacto das tecnologias nos processos de produção e desenvolvimento do conhecimento e da vida social; entender a importância das tecnologias para a sociedade contemporânea e aplicá-las nos diversos contextos sociais em que se fizer necessário (BRASIL, 1999). Observa-se que muitas são as competências a serem desenvolvidas e o ensino de História busca superar a passividade dos alunos diante da realidade social e do próprio conhecimento, objetivando desenvolver, além das competências mais gerais, as específicas do

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conhecimento histórico. Para isso, é necessário o desenvolvimento de competências e habilidades que permitam a compreensão da lógica dessa realidade e da construção do conhecimento. E o papel do professor é selecionar e priorizar as competências mais adequadas a esse desenvolvimento, não se esquecendo de considerar os contextos da escola e dos alunos (BRASIL, 2002b, 2006b). Ao mesmo tempo, é imprescindível destacar que o desenvolvimento das competências, citadas pelos PCN, não elimina os conteúdos. Elas apenas norteiam o trabalho de escolha dos conteúdos a serem ministrados pelo professor, que precisa compreender que o importante na educação básica não é a quantidade de informações, e sim a aptidão do aluno para lidar com elas, por meio da apropriação, comunicação, produção e/ou reconstrução em novas situações (BRASIL, 1999). Os PCN mencionam também “a importância do desenvolvimento de competências ligadas à leitura, análise, contextualização e interpretação das diversas fontes e testemunhos das épocas passadas – e também do presente” (BRASIL, 1999, p. 301). Orienta ainda a levar em consideração os agentes sociais, os fatores explícitos e implícitos e as diferentes linguagens e suportes utilizados na produção desses testemunhos. Essas atividades possibilitam inúmeras relações interdisciplinares, articulando os conhecimentos de História com os de Língua Portuguesa, Literatura, Música, Artes etc., e o exercício de aspectos relacionados à cidadania e ao desenvolvimento de competências cognitivas, sócio-afetivas e psicomotoras: Na perspectiva da educação geral e básica, enquanto etapa final da formação de cidadãos críticos e conscientes, preparados para a vida adulta e a inserção autônoma na sociedade, importa reconhecer o papel das competências de leitura e interpretação de textos como uma instrumentalização dos indivíduos, capacitando-os à compreensão do universo caótico de informações e deformações que se processam no cotidiano. Os alunos devem aprender, conforme nos lembra Pierre Vilar, a ler as entrelinhas. E esta é a principal contribuição da História no nível médio (BRASIL, 1999, p. 301, grifo nosso).

Ler é uma atividade fundamental a ser desenvolvida pela escola para a formação dos alunos. É pela leitura que as pessoas compreendem o mundo em que vivem e tomam atitudes para interagirem com competência na sociedade. O trabalho com leitura tem por finalidade a formação de leitores competentes e, consequentemente, a formação de escritores, pois a possibilidade de produzir textos eficazes origina-se na prática da leitura, matéria-prima para o desenvolvimento da escrita (KLEIMAN, 1995). Entretanto, sabe-se que algumas pessoas têm dificuldades para fazer uma leitura fluente, além de apresentarem dificuldades específicas com relação ao entendimento do conteúdo da leitura. Segundo Fulgêncio e Liberato (2000), isso pode ser ocasionado pela carência de conhecimento prévio dos alunos: não apenas do conhecimento de mundo, mas do próprio conhecimento sobre como ler, pois o ato de ler necessita de estratégias eficientes de compreensão, específicas do texto escrito, que devem ser gradativa-

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mente trabalhadas para que o aluno adquira a habilidade de leitura, aproveitando o conhecimento prévio que já possui. Nessa perspectiva, ler requer experiência de leitura, ou seja, a formação de bons leitores consiste em muita leitura (KLEIMAN, 1989). Como o conhecimento histórico também se constrói por meio de textos (verbais e não verbais), o aluno precisa adquirir bastante experiência com a leitura para um melhor desempenho cognitivo e compreensão dos processos e das relações estabelecidas entre os grupos humanos em diferentes tempos e espaços. Muitas versões e diferentes interpretações para os mesmos acontecimentos são apresentadas pelos autores de textos didáticos de História, por isso é importante ler de forma atenta e crítica, comparando textos, refletindo sobre como os acontecimentos são apresentados, discutindo e questionando-os para que o aluno não pense que os conhecimentos históricos existem de forma acabada e assim são transmitidos. É imprescindível, além da leitura, o desenvolvimento da habilidade cognitiva histórica para aprimorar a percepção das diversas interpretações do passado histórico: O grande desafio que se apresenta neste novo milênio é adequar nosso olhar às exigências do mundo real sem sermos sugados pela onda neoliberal que parece estar empolgando corações e mentes. É preciso, nesse momento, mostrar que é possível desenvolver uma prática de ensino de História adequada aos novos tempos (e alunos): rica de conteúdo, socialmente responsável e sem ingenuidade ou nostalgia (PINSKY; PINSKY, 2005, p. 19).

Em decorrência da natureza abstrata das operações cognitivas do pensamento histórico, é necessário que o aluno compreenda os conteúdos históricos em suas vivências sociais, e isso requer a apropriação de vários conceitos históricos, construídos por meio de experiências compartilhadas com diferentes grupos sociais. Essas experiências sociais, associadas aos conteúdos históricos apresentados pelo professor por meio de analogias e análises de diferentes fontes e discursos históricos, podem permitir aos alunos a construção, a apropriação e o uso dos conceitos para indagar e questionar as fontes, os discursos e os conhecimentos históricos produzidos nos livros didáticos, argumentando e contra-argumentando, atividades inerentes ao uso da língua, segundo um modo específico de entender a argumentatividade. Marcuschi (2006) diz que o discurso (oral ou escrito) não é um ato isolado e solitário, mas está relacionado ao uso coletivo da língua e que todas as manifestações verbais ocorrem como textos em ações sociais e históricas. E essas ações contribuem para a formação argumentativa1 do usuário da língua, que necessita cotidianamente da argumentação em várias situações de comunicação. Segundo Koch (1992; 1993), argumentar é um ato linguístico e está presente em todo uso da linguagem humana, que é fundamentalmente argumentativa; e por isso, não existem textos neutros, imparciais ou objetivos, já que a subjetividade é intrínseca ao discurso, o que nos permite a percepção da argumentatividade. A autora afirma também que os discursos 1

Argumentatividade é aqui entendida como a capacidade de sustentar ou justificar afirmações e pontos de vista (VIGNER, 1997).

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(científico, didático etc.) funcionam como uma máscara, uma representação para ocultar seu real objetivo, que é tentar guiar, persuadir e convencer o leitor a aceitar determinadas conclusões e também influenciar em seus comportamentos e reações. Por isso, é interessante orientar os alunos com relação aos procedimentos linguísticos utilizados no discurso, a fim de que eles possam apreendê-los não somente para sustentar uma afirmação ou justificar o seu ponto de vista, mas acima de tudo para que consigam perceber as inúmeras construções argumentativas no discurso para enfrentar de forma consciente e ativa sua realidade social (VIGNER, 1997). Achugar e Schleppegrell (2005) afirmam que a argumentação é muito explorada nos textos didáticos de História e que inúmeros recursos linguísticos são utilizados na construção da argumentação, especialmente da causalidade. Portanto, compreender os significados e reconhecer a contribuição dos recursos argumentativos na elaboração do discurso pode melhorar o entendimento do conhecimento histórico dos estudantes e exercitar seu conhecimento autônomo e crítico, além de fazê-los perceberem-se como sujeitos responsáveis pela construção da História, ou seja, compreenderem que fazem parte de uma organização social e que são participantes do processo do fazer e do construir História (SCHMIDT, 2006). O ensino de História visa a estimular o aluno a questionar as linguagens e os discursos, para isso, é de suma relevância a leitura, que servirá de apoio para o desenvolvimento da argumentação. 3 O TEXTO DIDÁTICO DE HISTÓRIA Antes, uma decisão teórica. Nesta pesquisa, categorizamos o livro didático de História, uma das manifestações do discurso didático2, como um macrogênero textual. Como entender tal categorização? Primeiramente, entendemos por gênero o que se adota tradicionalmente na Gramática Sistêmico-Funcional. Para isso, invocamos Coffin (2004, p. 268-269), que afirma ser o gênero o modo como os textos estão estruturados para cumprir seus objetivos, como contar uma história (gênero narrativo), dar instruções (gênero procedural), explicar eventos passados (gênero expositivo) etc. Portanto, diferentes gêneros têm diferentes “começos”, “meios” e “fins” e esses estágios podem ser identificados com base nas mudanças lexicais e padrões gramaticais que se correlacionam com diferentes funções.

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Assumimos juntamente com Marcuschi (2005) que falar em discurso didático (assim como em discurso jur ídico, científico, religioso etc.) é falar em domínio discursivo, definido como uma esfera ou instância de produção discursiva ou de atividade humana. Segundo o autor, esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos. O discurso didático, por exemplo, não abrange um gênero particular, mas dá origem a vários gêneros.

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Ao analisar, dessa perspectiva, um folheto de museu publicado pelo Museo de Civilización Canadiense sobre a produção de cobertores por uma tribo indígena, Eggins e Martin (2003) identificaram a presença dos gêneros informativo e explicativo (diferenciados pela finalidade, respectivamente, informar o que as coisas são e explicar como e por que as coisas ocorrem). Por apresentar mais de um gênero, os autores classificam o folheto como um “macrogênero”, ou seja, um texto formado por gêneros diferentes. Adotando a perspectiva desses autores, então, entendemos o texto didático de História como um macrogênero, que se apóia em diferentes gêneros de textos (documentos oficiais, cartas, ilustrações, mapas etc) e que, dependendo de sua organização e complexidade, pode oferecer alguma dificuldade de leitura a pessoas que desconhecem alguns gêneros textuais. Com efeito, constatamos nos textos didáticos analisados a presença de textos verbais (predominantes) e não verbais (fotos e mapas - cf. anexos 1 e 2). Entre os textos verbais, encontramos gêneros explicativos, gêneros argumentativos (com a inserção de outros autores - cf. a citação de Thomas Hobbes no anexo 3) e gêneros de registro (narrativa pessoal - cf. anexo 4). Além do aspecto textual, observamos também que, o texto didático é portador de um importante veículo de valores ideológicos e culturais; e diversos estudos já discutiram a forma como esse material didático generaliza temas (como família, crenças, etnia etc.) e apresenta estereótipos e valores de grupos dominantes, que só reforçam a ideologia burguesa (BITTENCOURT, 2004b; 2006; CITELLI, 1995; MIRANDA; LUCA, 2004). Segundo Citelli (1995, p. 53), são “textos de ‘forja’, de artesanato da alma, de inculcação dos modelos que as classes dominantes determinam como padrão de conduta”. Tais observações têm gerado muitas discussões e estudos no sentido de conceituar e caracterizar o texto didático de história, uma vez que esse instrumento pedagógico e cultural se faz presente no espaço da sala de aula em diferentes atividades. Desde o século XIX, professores e alunos têm utilizado o livro didático como principal ferramenta de trabalho, constituindo-se, assim, num mediador entre os programas curriculares oficiais propostos pelo governo e o conhecimento escolar ensinado pelo professor (BITTENCOURT, 2004b; 2006). Por ser estruturado com textos em uma linguagem hibrida (verbal e não verbal), ele auxilia no exercício da leitura em todos os níveis escolares, contribuindo na ampliação de informações e do conhecimento científico. Contudo, por motivos econômicos e ideológicos, é limitado e muitas vezes padronizado; apresenta uma linguagem acessível às diferentes faixas etárias, o que conduz a simplificação da formação intelectual e autônoma dos alunos. Com isso, seu papel é servir de instrumento reprodutor de ideologias e do conhecimento oficial que o Estado impõe através das instituições que o representam (BITTENCOURT, 2004b; 2006; CITELLI, 1995). Porém, não podemos esquecer que, mesmo sendo caracterizado por apresentar textos impositivos que veiculam ideologias e ser fonte de lucro para o mercado editorial, o livro didático pode se transformar em uma ferramenta de trabalho eficaz, que favoreça a autonomia do ensino. Para isso, é fundamental a atuação e a intervenção do professor, pois, na

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maioria das vezes, cabe a este a seleção dos livros e, em sala de aula, seu trabalho como mediador, suas considerações decorrentes da leitura dos textos didáticos e sua metodologia muito contribuem para uma visão e análise mais crítica do conteúdo presente nesse material. No que diz respeito à linguagem, há uma grande lacuna nos estudos sobre o texto didático; entretanto, hoje, alguns pesquisadores já vêm demonstrando interesse por essa área e incluindo em suas pesquisas investigações que buscam analisar aspectos textuais, discursivos e linguísticos do livro didático. Martins (2006), por exemplo, investiga a dimensão comunicativa e constitutiva da linguagem, pois considera a linguagem não somente “um conjunto de recursos simbólicos de expressão e comunicação”, mas uma “instância constitutiva de identidades, de relações entre sujeitos, e de relações entre sujeitos, instituições e conhecimento”. Escrever um livro didático é um dos grandes desafios para os editores, pois o “discurso” nele presente é sempre complexo, uma vez que é produzido para todas as classes sociais, ou seja, um público bastante diferenciado e heterogêneo (BITTENCOURT, 2004b). Dependendo das informações extratextuais, oriundas do conhecimento prévio do leitor e da maturidade do sujeito como leitor, do grau de complexidade do texto, decorrente de fatores linguísticos, do estilo pessoal de leitura, proveniente de comportamentos e preferências distintas a cada indivíduo e do gênero textual, a utilização desse instrumento pedagógico pode ocasionar práticas de leitura e interpretação bastante diferentes (FULGÊNCIO; LIBERATO, 2000; KATO, 2001). Como toda forma de conhecimento se constrói pela relação da leitura de mundo3 com a leitura particular do sujeito, a História, como forma de conhecimento, também se processa pela apropriação do saber por meio da leitura de diferentes gêneros textuais e discursivos. Nessa perspectiva, as relações entre signos semióticos e práticas sociais são imprescindíveis para a compreensão da linguagem especifica de cada ciência e deveriam constituir-se em objetos de investigação para uma melhor compreensão dos textos e dos usos sociais da linguagem verbal (oral e escrita), pois o sentido não se constrói na palavra, mas nas interações discursivas entre indivíduos; logo, “entender o texto didático implica compreendê-lo como produto de atividade social” e não apenas como suporte de conteúdos (MARTINS, 2006, 122-3). O campo de estudos da História é muito vasto e uma orientação pedagógica calcada num ensino significativo e produtivo pode fornecer habilidades e competências necessárias à inserção plena do aluno no mundo em que vive e estimulá-lo a estabelecer conexões com diferentes contextos, que possam contribuir para a formação da consciência e maturação de cidadãos críticos e atuantes. Nesse sentido, o compromisso maior deve ser o de elevar o nível de interesse social e cultural e o nível de conhecimento formal e histórico do aluno. A leitura é um importante caminho na construção dessa realidade. Estudar História é relacionar o passado com o presente. Escrever História é descrever o passado, reconstruindo e organizando os fatos para que no presente possamos interpretar e explicar o que aconteceu. O historiador é o responsável pela reconstrução e descrição das 3

Cf. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler. 45. ed. São Paulo: Cortez, 2003.

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ações humanas ao longo do tempo para nos fazer entender a História como um processo histórico, que relaciona o indivíduo com a natureza e os indivíduos entre si. Em geral, na vida escolar, os alunos têm acesso a esses acontecimentos históricos por meio de livros didáticos, produzidos por autores que, em princípio, seguem os programas oficiais propostos pela política educacional (BITTENCOURT, 2004b). O livro didático é uma das ferramentas que auxilia o trabalho do professor e tem o papel de difundir o conhecimento (SCHLEPPEGRELL; ACHUGAR; OTEÍZA, 2004). A escola, sendo um espaço da prática social e do acesso ao conhecimento, utiliza-se desta ferramenta, que reflete em seus conteúdos, a concepção de mundo de seus organizadores (autores, editoras, instituições...) e veiculam ideias, valores e padrões culturais que podem não satisfazer as reais perspectivas e necessidades dos alunos, pois expressam aspectos político-ideológicos e de dominação entre grupos e classes sociais. Apesar disso, essa ferramenta não pode ser menosprezada, pois professores e alunos podem utilizá-la para transformar esse veículo ideológico em instrumento de intervenção e trabalho eficiente, adequando os conteúdos às reais necessidades do aluno e contribuindo para uma formação mais crítica e autônoma através de diferentes leituras, que levem à conscientização histórica. A consciência histórica não é algo que os homens podem ter ou não - ela é algo universalmente humano, dada necessariamente junto com a intencionalidade da vida prática dos homens. A consciência histórica enraíza-se, pois, na historicidade intrínseca à própria vida humana prática. Essa historicidade consiste no fato de que os homens, no diálogo com a natureza, com os demais homens e consigo mesmos, acerca do que sejam eles próprios e seu mundo (sic), têm metas que vão além do que é o caso (RÜSEN, 2001, p. 78 apud CERRI, 2001, p. 100).

Segundo Miranda e Luca (2004) e Bloch (2001), o livro didático de História representa um suporte com valores culturais e ideológicos variados, que transmite às gerações um conhecimento abundante e diversificado, constituído por unidades próprias e coerentes com início, meio e fim, mas que são envolvidos por uma gama de saberes de referências, autores e editoras, que acabam causando certa ambiguidade por conta do uso de expressões e conceitos abordados pelos autores com duplo sentido. É o caso, por exemplo, dos textos didáticos de História, que apresentam o aspecto da causalidade numa perspectiva lógica e natural, em algumas situações de forma tão complexa que inviabiliza a compreensão do aluno no ato da leitura (ACHUGAR; SCHLEPPEGRELL, 2005). Esse problema pode ser decorrente da falta de conhecimento e domínio dos gêneros textuais presentes na sociedade e que não ocorrem de forma estanque, descontextualizada. Brasil (2006b, p. 91) diz que a cognição histórica é composta de conceitos, e um conjunto deles foi selecionado para fazer parte da proposição do presente documento de referência nacional para o ensino da História no ensino médio. No entanto, há de se reconhecer que a

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construção e o domínio desses conceitos, assim como o entendimento do seu valor para a compreensão e a interpretação históricas, não é fácil para a maioria dos jovens que frequentam o ensino médio no nosso país. Os conceitos históricos, mais do que sintetizam idéias e raciocínios, representam para a História uma expectativa, um norte analítico; além disso, possuem sua história, ou seja, guardam as marcas do momento histórico em que se desenvolvem e se consolidam.

Nesse contexto, o livro didático de História deve oferecer instrumentos e estratégias de leitura que despertem o interesse do aluno e o motivem a conhecer o mundo em que vive. Para isso, entendemos que o estudo de História poderia se tornar mais significativo se percorresse a linha da interpretação, e não apenas a leitura de fatos históricos. A análise interpretativa facilitaria a interação com os mais diversos conteúdos. Esses aspectos têm despertado o interesse de muitos pesquisadores, que buscam analisar o livro didático sob várias perspectivas (discursiva, funcional, histórica, ideológica, valorativa, iconográfica...) com destaque para seus aspectos educacionais e seu papel na sociedade contemporânea (BITTENCOURT, 2004a; ZAMBONI, 1998). Por exemplo, na França, encontramos estudos que se ocupam com as ilustrações em livros didáticos de Historia como forma de demonstrar a importância desse tipo de texto para recuperar a memória histórica e enfatizar aspectos ideológicos nas ilustrações (BITTENCOURT, 2006). Nos Estados Unidos, os estudos de Coffin (2000; 2004) discutem a tendência de historiadores em favorecer a utilização de estruturas impessoais e abstratas para explanar fatos históricos e a dificuldade que muitos estudantes de História têm para desenvolver a argumentação e o pensar crítico. Segundo a autora, a análise linguística funcionalmente orientada possibilita ao aluno maiores condições de ler, interpretar e construir diferentes discursos argumentativos. Também nos Estados Unidos, Achugar e Schleppegrell (2005) analisam a utilização da linguagem para construir a argumentação causal em livros didáticos de História focando, particularmente, na interação dos aspectos léxico-gramaticais e discurso-semântico. O trabalho das pesquisadoras sugere que professores e estudantes necessitam conhecer melhor os diferentes recursos linguísticos que constroem a causalidade para uma melhor compreensão do conhecimento em História. No Brasil, no que diz respeito à área do conhecimento histórico, encontramos muitas pesquisas preocupadas em analisar segmentos sociais específicos como índios, negros, judeus... Com relação aos textos ilustrados, não encontramos nenhuma pesquisa sendo desenvolvida e com relação aos textos escritos existem trabalhos que discutem a postura ideológica dos livros didáticos e a importância de se compreender os múltiplos enunciados (BITTENCOURT, 2006; TERRA, 2006). Nesse cenário, considerando que o trabalho historiográfico é limitado e seletivo. Limitado porque a pesquisa, por mais ampla que seja, não alcançará todo o universo de estudo e seletivo porque cada historiador escolhe, seleciona e delimita o foco para o qual direciona

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seu olhar, o livro didático manifesta as intenções, escolhas, pontos de vista e ênfase sobre determinadas questões apresentadas pelos historiadores. Ele é também [...] um depositário dos conteúdos escolares, suporte básico e sistematizador privilegiado dos conteúdos elencados pelas propostas curriculares; é por seu intermédio que são passados os conhecimentos e técnicas considerados fundamentais de uma sociedade em determinada época. O livro didático realiza uma transposição do saber científico para o saber escolar no processo de explicitação curricular. Nesse processo, ele cria padrões lingüísticos e formas de comunicação especificas ao elaborar textos com vocabulário próprio, ordenando capítulos e conceitos, selecionando ilustrações, fazendo resumos etc. (BITTENCOURT, 2006, p. 72).

Por isso, é importante refletir e discutir sobre os diferentes usos da linguagem em textos didáticos de História, especificamente, a multiplicidade de encadeamentos linguísticos, utilizados na construção do conhecimento histórico (SCHMIDT, 2006) e como um mesmo fato é apresentado pelos historiadores sob perspectivas e interpretações diferentes, dependendo de suas escolhas linguísticas, filtros culturais, lembranças e esquecimentos. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo demonstra a importância de se proporcionar ao aluno um amplo repertório linguístico e discursivo, uma vez que os níveis de leitura variam de acordo com sua experiência leitora; e mostra que a leitura é um processo associativo que relaciona o que se está lendo com o que ele já leu. Dessa forma, os professores precisam compreender o desafio que é para o aluno desvendar os significados históricos e o aluno precisa apreender os padrões de linguagem que são utilizados pela escrita histórica. Sem ferramentas para reconhecer os recursos linguísticos, o professor pode encontrar problemas para fazer o aluno compreender a linguagem e o conhecimento históricos. Quando os padrões que constroem diferentes maneiras de construir significado são re-organizados, o aluno pode perceber que é capaz de compreender e os professores podem ampliar essa capacidade, desenvolvendo neles uma forma mais efetiva para construir o discurso histórico. Isso é importante para que os professores sejam conscientes dos padrões de linguagem que são construídos através de diferentes tipos de textos. Aos professores falta frequentemente um conhecimento profundo sobre exigências linguísticas e discursivas. Frequentemente, os professores de História recomendam leituras argumentativas para ajudar os alunos a desenvolverem a opinião crítica, o julgamento e a interpretação, mas para que o leitor exponha sua opinião crítica, necessita de recursos linguísticos que permitam a ele explanar os eventos históricos. Nesse caso, proporcionar leituras com diferentes recursos argumentativos pode ser importante para que o leitor perceba a complexidade da linguagem no gênero textual livro didático de História. Só então, ele pode discutir, efetivamente, sua própria interpretação (SCHLEPPEGRELL, 2005).

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O estudo também fornece informação para que os professores de História observem a linguagem típica dos textos por eles utilizados, pois a identificação desses recursos da linguagem pode ajudar os estudantes a ampliarem seu repertório linguístico com leituras mais complexas. Enquanto isso, os professores precisam de apoio para entender as características dos diferentes tipos de textos e como eles podem ser interpretados pelos alunos. Por isso, pesquisas, como esta, podem estar mostrando caminhos para o desenvolvimento de leitores mais proficientes no uso da linguagem, que possam desenvolver a capacidade de compreender, analisar, refletir, interpretar, criticar e produzir textos, ou seja, que saibam utilizar a língua como instrumento de interação social e reconheçam as diferentes relações discursivas estabelecidas no texto e os diversos graus de complexidade das marcas linguísticas da argumentação. REFERÊNCIAS ACHUGAR, Mariana; SCHLEPPEGRELL. Mary J. Beyond connectors: the construction of cause in history textbooks. Linguistics and Education. United States. Elsevier, n. 16, 2005, p. 298-318. BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In: BITTENCOURT, Circe (Org.). O saber histórico na sala de aula. 11. ed. São Paulo: Contexto, 2006. p. 69-90. _____. Em foco: História, produção e memória do livro didático. Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, p. 471 – 473, set./dez. 2004a. _____. Autores e editores de compêndios e livros de leitura (1810-1910). Revista Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n. 3, p. 475-491, 2004b. BLOCH, Marc Leopold Benjamin. Apologia da história, ou, o ofício de historiador. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: MEC/SEMT, 1999. _____. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCN + ensino médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Linguagens, Códigos e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002a. _____. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. PCN + ensino médio: orientações educacionais complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais. Ciências Humanas e suas tecnologias. Brasília: MEC/SEMTEC, 2002b.

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Artigo ONTOLOGIA DO “SER VELHO” Denison Martins dos Santos* Jacqueline Tatiane da Silva Guimarães**

RESUMO Neste artigo temos como objetivo central desenvolver uma análise do entendimento e concepção do “ser velho” a partir de uma perspectiva ontológica, em que as discussões teóricas e metodológicas se pautam em Karl Marx e Jean Paul Sartre, realizando-se também um debate histórico sobre a importância dos velhos na antiga sociedade ocidental, e para a sociedade contemporânea, revelando traços da atual ótica de produtividade, associada aos ideais estéticos mercadológicos que estigmatizam o ser, retirando as dimensões que o fazem um homem genérico/ontológico, e assim subtraindo a sua totalidade. Este esforço teórico se aloca na possibilidade de construção concreta e subjetiva do sujeito velho inserido na sociedade atual, em que verificamos que a ideia de produtividade que marcou o desenvolvimento da sociedade capitalista, havendo a desvalorização dos indivíduos que não se enquadram na perspectiva de trabalho ativo, excluindo-os e desvalorizando-os, na qual os idosos assumem o caráter de seres sociais “não aptos” para o trabalho, e consequentemente para a vida social. PALAVRAS-CHAVE: Ontologia. Ser. Velhice

ONTOLOGY OF “BEING OLD” ABSTRACT In this article we attempt to develop a central analysis and understanding of the concept of “being old” from an ontological perspective, in which the theoretical and methodological discussions are governed by Karl Marx and Jean Paul Sartre, performing also a historical debate on the importance of children in the former Western society, and to contemporary society, revealing

*

**

Bacharel em Serviço Social - Universidade da Amazônia – UNAMA; discente do curso de Mestrado em Serviço Social da Universidade Federal do Pará; contato: [email protected]. Bacharel em Serviço Social e discente do curso de Mestrado em Serviço Social da Universidade Federal do Pará; contato: [email protected].

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traces of the current perspective of productivity, associated with the aesthetic ideals that stigmatize the merchandising be taking the dimensions that make a generic man / ontological, and so subtracting its entirety. This theoretical effort is allocated in the possibility of building material and subjective subject inserted in the old society, where we see that the idea of productivity that marked the development of capitalist society, with the devaluation of individuals who fall outside the perspective of active working excluding them and devaluing them, in which older people assume the character of social beings “unfit” for work, and therefore social life. KEYWORDS: Ontology. To be. Old age. 1 INTRODUÇÃO É comum na atualidade o debate sobre a velhice sob diversos aspectos e formas, no entanto, estabelecer uma ordem histórica e cronológica sobre a variação que o termo velhice e o ser que é velho, assumem dentro dos diversos contextos históricos conjunturais é tarefa árdua e instigante pela aproximação com estes sujeitos que se encontram em grande evidencia atualmente. Segundo dados do IBGE, em 2003, as pessoas com 60 anos ou mais correspondiam a 16 milhões, o que seria 9,3% da população brasileira. Sendo que a estimativa para o ano de 2025 mostra que a população idosa será de 15% da população, ou seja, de 30 milhões de cidadãos brasileiros idosos. No Brasil este aumento se dará em um período de 20 anos (SILVA, 2007). Fato este que nos aponta a necessidade de trazermos para o campo do debate a reflexão sobre a velhice e o ser velho. Para poder administrar medidas que possam ser tomadas e executadas em respeito a esta demanda que vem se acentuando nas ultimas décadas a ONU adotou a idade de 60 anos para se categorizar a pessoa na qualidade de velho, ou Terceira Idade (FRAIMAN, 1995). Essa caracterização demonstra um fator de grande relevância para as agências institucionais mundiais e governos: nossa sociedade está ficando cada vez mais velha. Nota-se claramente que o avanço de uma “sociedade de velhos” requer necessariamente um conhecimento amplo sobre esse processo, traçando esquemas precisos sobre o desenvolvimento da velhice a partir de uma lógica teórico-cientifica em que a velhice seja cronologicamente identificada dentro do avanço histórico dos tempos e espaços. Nessa perspectiva a ideia de traçar proposições teóricas e práticas convergentes a partir de uma delimitação ontológica da velhice e de seus desdobramentos na realidade contemporânea, se mostra de grande relevância para um maior conhecimento e projeção futura – coerente e não prepotente do ponto de vista do cientificismo comum – do processo natural de envelhecimento do ser humano e das adversidades e conquistas que a condição de “ser velho” vivencia cotidianamente nas diversas sociedades, e por fim percebendo esta condição no modo de produção vigente, que é calcado em um modelo de produtividade.

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2 BREVES CONSIDERAÇÕES SOBRE A ONTOLOGIA A ontologia em sua estrutura científica formal estabelece três momentos constitutivos definidores dos parâmetros de análise teórico-científica que contribuem para uma delimitação do objeto no horizonte que se pretende analisá-lo, nos permitindo uma maior aproximação com o que Blanc (1998), compreende como a ideia de que “o ser é a categoria das categorias, ou, mais, profundamente, o ato inicial de que tudo participa”. O debate acerca da ontologia requer aportes necessários em categorias teóricas e filosóficas que possam dar sustentabilidade às proposições defendidas sobre a origem do ser e seus desdobramentos dentro de determinada realidade e/ou fenômeno histórico e conjuntural. Esta incursão estabelece um nexo causal com a poética do ser, entendida como a constituição do plano ontológico em seu inicio, ou uma forma de pensar o ser dentro da indicação de suas possibilidades dizíveis, e determinadas por formas de manifestação dos modos ideais e reais no qual o ser torna-se realidade. Nessa perspectiva faremos um sucinto e objetivo contraponto entre as análises de dois grandes teóricos: Karl Marx e Jean Paul Sartre. Estes realizaram grandes trabalhos no qual o enfoque ontológico assumiu considerável importância no plano da categorização e classificação prática da realidade do ser. A teoria social fundamenta-se na ontologia, porém Marx ao realizar afirmações ontológicas, não procura determinar o lugar destes no problema do pensamento, em que o seu ponto de partida é a filosofia hegeliana, apesar de rejeitar posteriormente o logicismo abstrato de Hegel e o antropologismo empirista de Feuerbach. Portanto, suas proposições vão além da mera classificação idealista. 1

[...] pela primeira vez na historia da filosofia, as categorias econômicas aparecem como categorias da produção e da reprodução da vida humana, tornando assim possível uma descrição ontológica do ser social sobre bases materialistas. Mas o fato de que a economia seja o centro da ontologia marxiana não significa, absolutamente, que sua imagem do mundo seja fundada sobre o “economicismo” (LUKÁCS, 1979, p.15).

O esforço de Marx em pensar a ontologia do ser social indubitavelmente transcorre da tentativa de fazer uma análise do modo de produção vigente não somente dentro de uma perspectiva atrelada ao movimento econômico de seu tempo, mas ultrapassando essa lógica simplista e balizada somente na percepção do trabalho ligado a produção e/ou lucro. Suas formulações buscam a percepção da produção e reprodução da vida humana, não desprendida do trabalho humano enquanto realização do ser social. Portanto, Marx se deterá em sua análise ontológica do ser social nas problematizações acerca de categorias que são formas de ser e determinações da existência. E suas formu1

Esses momentos são definidos da seguinte forma: a pergunta pelo ser; o sentido do ser; e a determinação do ser. Nossa perspectiva de analise terá aporte na segunda forma, como meio de sustentação de nossas idéias posteriores sobre o “ser velho”.

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lações se fundem na construção e reconstrução da realidade social a partir de seus diversos determinantes, não deixando de lado os importantes sujeitos sociais que a compõem. No caso de Sartre suas ponderações se enquadram na perspectiva da liberdade do ser, trabalhada pelo autor em seu livro o Ser e o nada, no horizonte de sua construção teórica sobre os indivíduos através da reconstrução teórica e filosófica da liberdade do ser mediante a sociedade. Para tanto, em meio a este processo Sartre desenvolve a relação eu-outro, onde o eu possui, em sua consciência, valores, desejos, objetivos de vida e ideais em relação ao outro. Por sua vez, o outro também alimenta em sua consciência valores, desejos e objetivos em relação ao eu. Neste contexto de convivência e conflitos, frequentemente os desejos e objetivos do eu não estão alinhados com os desejos e objetivos do outro, o que implica em determinadas relações de conflito entre os indivíduos. Vale ressaltar que nesta proposição a problemática envolvendo os velhos, assume um caráter de grande conflito, tendo em vista que é comum que ocorram divergências quanto aos valores, desejos e objetivos do eu velho nos diversos modelos de sociedades. Daí a grande importância das considerações de Sartre no sentido de compor uma representação desta relação, pois embora os conflitos façam parte da historia dos indivíduos e da própria sociedade como um todo, no caso dos velhos, ocorreram significativas modificações no trato a estes seres e sua liberdade. Ontologicamente a questão da liberdade coloca-se dentro das analises de Sartre como uma relação recíproca de discordância e conflitos, tendo em vista que, os valores, desejos e objetivos são discordantes em sua essência quando pensados a partir das relações entre os seres, o que reforça a ideia de negação existente sobre a figura do ser velho na contemporaneidade. As discussões teóricas e metodológicas oferecidas por Marx e Sartre nos oferecem bases para uma reflexão acerca da ontologia, nos permitindo perceber a partir de suas idéias as dimensões históricas, subjetivas e da compreensão social deste “ser velho” na sociedade contemporânea fundamentada na lógica produtivista e/ou econômica que imprime ao homem uma dimensão utilitarista. 3 A VELHICE NA CONTEMPORANEIDADE Retrato Eu não tinha este rosto de hoje, / assim calmo, assim triste, assim magro, / nem estes olhos tão vazios, / nem o lábio amargo. / Eu não tinha estas mãos sem força, / tão paradas e frias e mortas; / eu não tinha este coração / que nem se mostra. / Eu não dei por esta mudança, / tão simples, tão certa, tão fácil: /- Em que espelho ficou perdida /a minha face? (Cecília Meirelles, 2001; grifo nosso).

Percebendo as múltiplas dimensões enquanto ser humano que possui desejos, projetos, metas e a busca de sua essência/subjetiva através das suas realizações existenciais. Verificamos um apelo eminente da sociedade contemporânea em estigmatizar o velho a

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partir de um caráter de utilidade, fim e/ou estagnação vital, que desemboca na pessimista e equivocada idéia de parada psicológica, sentimental, física, profissional e subjetiva. A gerontologia atual realizou uma importante classificação sobre as três diferentes idades que podem ser vividas por cada pessoa ao mesmo tempo, são elas: idade cronológica – que diz respeito ao número de anos vividos; idade biológica – refere-se à condição e ao estado do corpo; e por fim a idade psicológica – trata-se da idade que a pessoa sente que tem e demonstra na maneira de agir. Por ser envolvida por tais impressões, a velhice e o processo de envelhecimento passam a ser negados e estigmatizados pela sociedade e pelo próprio ser envelhecido, que percebe este momento como a fase de doença, de inutilidade, e inclusive, de morte. A velhice como mais uma fase da vida, que, no entanto, necessita de cuidados específicos, nesta sociedade nos é apresentada como algo que deve ser “enfrentado” e não vivenciado como as outras fases da vida. Ao estar imersa em tais concepções, o ser que é velho passa a ser castrado em suas dimensões humanas, pois ao mesmo tempo em que é percebido como individuo inútil e doente, este também é compreendido como “objeto de cuidado”, e assim acabam tendo a sua liberdade enquanto ser, cerceada. A pergunta pelo ser limita-se a pôr em destaque esse modo de ser fundamental do homem e a submetê-lo a uma tomada de consciência reflexiva e conceptual de si mesmo. A pergunta pelo ser deve, então, ser interpretada como pergunta acerca da essência da compreensão do ser em geral, ou ainda, como pergunta acerca do sentido do ser (BLANC, 1998, p. 16).

Sartre (apud CAMON, 1993) ao apresentar a tese da liberdade como valor absoluto e supra-histórico argumenta que o homem por necessidade ontológica é livre, no entanto, reconhece que a essência de tal liberdade se faz dentro de uma determinação históricometafísica e neste caso, deve ser levado em consideração seus desejos pessoais internos e externos de modo a não prejudicar a liberdade do outro. Neste caso é importante aceitar a velhice como um processo natural e não um caminho derradeiro, pois, também, a importância de se autoaceitar requer um entendimento amplo sobre sua real significância dentro de determinada sociedade a partir de sua própria experiência e da sua relação com o outro, mesmo com todas as adversidades externas que são impostas pelas visões de mundo que nos são socialmente aplicadas. Nas sociedades pré-industriais, os idosos chegaram a ocupar papeis importantes. Detentores do poder econômico usufruíram de um considerado respeito que lhes garantiu posições de conselheiros do grupo familiar, guardiões dos valores morais, juízes e muitas outras funções socialmente reconhecidas (FRAIMAN, 1995, p. 11).

Ao contrário da sociedade grega espartana velhos com mais de 60 anos possuíam as mais altas honrarias da sociedade – eram chamados de cidadãos notáveis – na sociedade , Belém, v. 11, n. 22, p. 151-160, jan./dez. 2009

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contemporânea há uma forte tendência para a exclusão e discriminação desse grupo, partindo-se do referencial de utilitarismo e instrumentalidade dos seres sociais modernos. Se no passado, o status e o prestigio dos idosos era elevado, nos últimos anos à medida que este processo de urbanização e industrialização se amplia, também aumenta a discriminação dirigida às pessoas idosas, subestimando-se a sabedoria e o conhecimento acumulado no decorrer de suas vidas (VERAS, 1999, p. 37).

Nota-se que a modificação das estruturas sociais e formas de pensamento inevitavelmente viabilizaram maneiras de agir diversificadas quanto ao enfrentamento das questões relevantes aos velhos e sua reprodução social, o que implica atualmente um processo de desvalorização intensa destes indivíduos. Fraiman (1995) ao nos apresentar “um esboço da amarga condição do idoso” nos aponta quatro perspectivas: econômica, social, familiar e perspectiva de saúde. Na primeira perspectiva a autora nos diz que estamos diante um colapso, haja vista que a população ativa base da contribuição da política social - vem diminuindo, quadro que se refletirá individualmente no acirramento da competitividade do mercado de trabalho, impossibilitando a estabilidade do padrão de vida. Dado o fato de que a estrutura social vigente orbita em torno da população jovem e do seu modo de viver, o envelhecimento conduzirá as pessoas a uma situação de degradação indesejada e aversiva, consequentemente na perspectiva social os velhos serão coagidos ao isolamento. A perspectiva familiar diante de uma estrutura econômico-social, que nos exige a constituição familiar nuclear em tempos que três ou mais gerações convivem em uma mesma residência acaba sendo marcada por exacerbados conflitos geracional. Fraiman2 ao tratar da perspectiva de saúde é categórica ao nos dizer que diante dos aumentos de hospitalizações e de consulta aos médicos dos velhos em relação aos jovens tornam a velhice cada vez mais doentia diante da inexistência de condições econômicas, de seguridade ou assistenciais. Uma velhice encarada sobre a perspectiva saudável e proveitosa é mediada por uma vida de convivência harmoniosa que valorize as proposições naturais de cada etapa da vida, potencializando a vida plena e de grande contemplação e ação nos diversos sentidos. O envelhecer não é somente um ‘momento’ na vida de um individuo, mas um ‘processo’ extremamente complexo e pouco conhecido, com implicações tanto para quem o vivencia como para a sociedade que o suporta ou assiste a ele (FRAIMAN, 1995).

Nesta perspectiva observa-se o processo tratado pela autora e que na análise da tabela a baixo, mostra nitidamente o avanço da população idosa no mundo, denotando explicitamente as razões para uma maior analise sobre essa população.

2

Idem.

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Fonte: Terceira Idade - Dados Estatísticos sobre os Idosos3 Neste final de século, assistimos no Brasil a um verdadeiro boom da velhice. A faixa etária de 60 anos ou mais é a que mais cresce em termos proporcionais. Segundo as projeções estatísticas da Organização Mundial da Saúde - OMS, entre 1950 e 2025, a população de velhos no país crescerá 16 vezes contra 5 vezes da população total, o que nos colocará em termos absolutos com a sexta população de pessoas velhas do mundo, isto é, com mais de 32 milhões de pessoas com 60 anos ou mais. Este crescimento populacional é o mais acelerado no mundo e só comparável ao do México e Nigéria. Segundo dados do IBGE (2002) crescimento da população de velhos, em números absolutos e relativos, é um fenômeno mundial e está ocorrendo a um nível sem precedentes. Em 1950, eram cerca de 204 milhões de velhos no mundo e, já em 1998, quase cinco décadas depois, este contingente alcançava 579 milhões de pessoas, um crescimento de quase 8 milhões de pessoas idosas por ano. As projeções indicam que, em 2050, a população de velhos será de 1.900 milhões de pessoas, montante equivalente à população infantil de 0 a 14 anos de idade. Uma das explicações para esse fenômeno é o aumento, verificado desde 1950, de 19 anos na esperança de vida ao nascer em todo o mundo.

3

Disponível em: http://www.saudeemmovimento.com.br/conteudos/conteudo_exibe1.asp?cod_noticia=91 ; Acesso em: 22 jan. 2010.

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Os números mostram que, atualmente, uma em cada dez pessoas tem 60 anos de idade ou mais e, para 2050, estima-se que a relação será de uma para cinco em todo o mundo, e de uma para três nos países desenvolvidos. Demonstrando claramente o aumento populacional que ocorrerá no avanço da velhice nas décadas posteriores. É certo que a velhice ainda é vista levando-se em consideração à fragilidade existente, o declínio das funções do organismo, as rugas aparentes, as dificuldades de locomoção e o “empecilho” que ela representa na vida de outros familiares. No entanto, é de suma importância que seja levado em consideração a normalidade existente na situação do “ser velho”, não apenas do ponto de vis ta das experiências, como também da própria situação de existência e possibilidades. No caso do velho, as perdas físicas e afetivas são sofridas com maior intensidade e numa frequência maior do que em qualquer outra idade. A angústia, o medo do novo, o desejo de manter a situação antiga, já conhecida, o estigma da morte iminente e outros mitos povoam a mente do velho e o conduzem a um estado de maior insegurança. A negação é um dos resultados desse confronto, tanto quanto a entrega total e depressiva, que restringe ainda mais o seu horizonte de vida. Contribui para isso a falta de dimensão poética e espiritual da vida (FRAIMAN, 1995, p. 27).

Nesse aspecto a clara percepção sobre a ontologia da velhice se faz necessário a partir do aporte da dimensão analítica materialista e existencial desse ser, não negando, portanto, sua importância social, assim como individual para o desenvolvimento da sociedade. O que necessariamente implica argúcia dos determinantes concretos e subjetivos para o alcance da realidade dos velhos ao longo de sua vivência na sociedade. Bohrer (2007, p. 29) ao discorrer sobre a resistência natural que predomina em relação à velhice diz o seguinte: “Não aceitar a velhice é o mesmo que não aceitar a morte. Mesmo sabendo que todos morreremos. Existe uma resistência natural quanto a este momento.” Essa resistência é reflexo de um longo processo de fragilização da velhice enquanto etapa elementar da vida e do intenso processo histórico de “desqualificação existencial” da velhice como realidade pessoal, pelos grupos de grande influência na sociedade. Em um país como o Brasil o processo de envelhecimento não difere dos países no qual esta realidade tem sido cada vez mais notável, e consequentemente vem ocorrendo diversas modificações quanto à percepção destes pela sociedade (poder publico, intelectuais, instituições etc.), no entanto, tais modificações são relativamente mínimas quando percebidas a partir de uma ideia de totalidade. Frequentemente há uma tentativa de estereotipar a pessoa idosa no que diz respeito ao constante apelo da sociedade em transformar o velho em um individuo autoavesso e potencialmente incapaz, trazendo-lhe diversos prejuízos a sua subjetividade. Ocorre que o processo de subjetividade atinge todos os aspectos da vida do indivíduo e o acompanham em todas as suas experiências, e, por isso, na velhice o sujeito se depara

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frequentemente com tristezas e perdas, como a morte do cônjuge, de familiares, amigos etc., mudanças no status e prestígio profissional e declínios das habilidades físicas e da saúde, contribuem para aumentar as dificuldades afetivas dos velhos. A perda de status dos idosos está diretamente relacionada com o desenvolvimento e a característica de priorizar a produção como o grande, senão o maior, valor humano. É a mística de que valemos mais pelo que produzimos do que pelo que efetivamente somos (FRAIMAN, 1995, p. 11). A partir da ideia de produtividade que marcou o desenvolvimento da sociedade capitalista, ocorre uma grande desvalorização dos indivíduos que não se enquadram na perspectiva de trabalho ativo, obrigando, de certo modo, a exclusão e desvalorização de grande parte da sociedade, na qual os idosos assumem o caráter de seres sociais “não aptos” para o trabalho – capital variável.

Essa configuração de valorização/desvalorização dos indivíduos revela uma característica importante do modelo de sociedade vigente, que em suas diversas nuances demonstra uma clara tendência para a desigualdade e desrespeito aos sujeitos que não se encaixam ao seu perfil produtivo. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS A constante desvalorização do idoso decorre da condição utilitarista na qual se enquadra o ser humano atualmente, dada a repentina condição de maior ênfase aos valores condizentes com os bens materiais que o indivíduo possui, quando não, ao saber e poder referentes à sua pessoa, e, portanto, este quadro caracteriza-se pela necessária revisão de conceitos e valores da sociedade atual. Vemos com frequência a degradação moral e social existente sobre a figura do “ser velho”, e este quadro é cada vez mais acentuado pela insistência na preservação da apologia à estética corporal moderna, que subjuga os indivíduos que estão “fora dos padrões” não os aceitando socialmente, pois nesta perspectiva o fato de envelhecer é diretamente ligado a incapacidade laborativa do sujeito diante da frenética ideia de produção e lucro. As transformações estruturais demonstram as diversas modificações existentes desde os tempos mais remotos da história das sociedades, e se antes os velhos representavam um modelo de sabedoria devido sua experiência e acúmulo de conhecimento, atualmente a figura do velho é encarada como incapaz e limitada, impedindo, assim, as inúmeras formas de atenuação de sua individualidade e contribuição para a sociedade. Tratar a velhice sob um olhar ontológico significa a valorização de uma individualidade potencialmente ilimitada em seus diversos aspectos: sabedoria, vitalidade, saúde, experiência de vida, e outros. De forma a acentuar a jovialidade natural existente em cada ser, mesmo aqueles acometidos pelas marcas dos anos, pois como dizia o grande filosofo Epicuro: “... ninguém é demasiadamente jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde de espírito”.

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Vale ressaltar que não apresentamos uma perspectiva de valorização ou desvalorização do velho ou do novo, mas sim de pensar a importância de cada idade, etapa e fase da vida humana, trabalhando enquanto objeto central de nossa análise o “ser velho” enquanto sujeito de vivência e construção social eminentemente significante. REFERÊNCIAS BLANC, Mafalda de Faria. Estudos sobre o ser. Av. Berna Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998. BOHRER, Edi Mail. Velhice. Disponível em: www.webartigos.com/articles/1187/1/Velhice/ pagina1.html; Acesso em:: 22 jan. 2010. DEECKEN, Alfons. Saber envelhecer. 2. Ed – Petrópolis: Editora Vozes, 1973. FRAIMAN, Ana Perwin. Coisas da idade. São Paulo: Editora Gente, 1995. FREDERICO, Celso. O jovem Marx (1843-1844: as origens da ontologia do ser social). São Paulo: Cortez, 1995. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: http://www.ibge.gov.br/home/ presidencia/noticias/25072002pidoso.shtm; Acesso em: 22 jan. 2010 LUKÁCS, Gyorgy. Ontologia do ser social: os princípios ontológicos fundamentais de Marx. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1959. SARTRE, Jean-Paul. O ser e o nada. Petrópolis: Vozes, 1997. Saúde na Velhice. Disponível em: www.unati.uerj.br/tse/scielo; Acesso em: 22 jan. 2010. Terceira Idade - Dados Estatísticos sobre os Idosos. Disponível em: http:// www.saudeemmovimento.com.br/conteudos/conteudo_exibe1.asp?cod_noticia=91; Acesso: 22 jan.2010

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Artigo UM OLHAR A PARTIR DA SEMIÓTICA DE ALGIRDAS JULIEN GREIMAS SOBRE UM POEMA VISUAL DE MAX MARTINS Lenilde Andrade Pinheiro*

RESUMO Este artigo aborda a trajetória de Max Martins, poeta paraense que se destaca por apresentar uma obra poética compromissada com a literatura brasileira de alta qualidade. Seu primeiro livro - O Estranho- foi publicado artesanalmente por ele mesmo em 1952. Desde então sua obra tem apresentado um trabalho estético com características ligadas diversas épocas e movimentos de nossa história literária, a saber: Romantismo, Simbolismo, Modernismo, Concretismo, Existecialismo etc. Bem como, poesias mistas de imagens, símbolos e escrita. Uma autêntica correspondência entre as linguagens. Também não se pode deixar de lado a presença do orinetalismo (zenbudista) em todas as suas obras. A partir dos fundamentos da teoria semiótica estruturada por Algirdas Julien Greimas, apresento uma leitura possível para o poema Copulêtera, publicado em 1983 no livro “Caminhos de Marahu”, de Max Martins. PALAVRAS-CHAVE: Max Martins. Poesia. Semiótica. Algirdas Julien Greimas.

A LOOK BASED ON THE ALGIRDAS JULIEN GREIMAS SEMIOTICS OVER A VISUAL POEM BY MAX MARTINS ABSTRACT This paper deals with the life of Max Martins, a local poet which is praised for presenting a poetic work committed to the top Brazilian Literature. His first book - O Estranho - was published manually by himself in 1952. Since then his work has shown an aesthetic art with features connected to different times and movements of our literary history, such as: Romantism, Simbolism, Modernism, Concretism, Existentialism, and so on. Also, mixed poetry of images, symbols, and writings. An authenric correspondence among languages. We cannot leave out the

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Graduada em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará (UFPA), E specialista em Estudos Culturais da Amazônia pela mesma instituição e mestranda em Comunicação, Linguagem e Cultura pela Universidade da Amazônia (UNAMA). Email: [email protected]

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presence of some remarkable orientation-like acts (zenbudhism) in all his works, too. Based on the Semiotics Theory Principles, by Algirdas Julien Greimas, I present a possible reading for the poem Copulêtera, published in 1983 at the book “Caminhos de Marahu”, by Max Martins. KEYWORDS: Max Martins. Poetry. Semiotics. Algirdas Julien Greimas. 1 UMA INTRODUÇÃO 1.1 POESIA X POEMA Alheias e nossas as palavras voam [...] Acima de nós, Em redor de nós As palavras voam A às vezes pousam. (Cecília Meireles)

O conceito de poesia, como se sabe, leva a divergências. É clara a diferença conceitual existente entre o sentimento poético e o poema, construção realizada pelo poeta. A fim de elucidar melhor esse assunto, veremos primeiramente o que é poesia e em seguida, o conceito de poema. A poesia é situada por Pedro Lyra, autor de “Conceito de poesia” (1992, p.6-7), entre dois grandes grupos conceituais: Ora como uma pura e complexa substância imaterial, anterior ao poeta e independente do poema e da linguagem, e que apenas se concretiza em palavras como conteúdo do poema mediante a atividade humana; ora como a condição dessa indefinida e absorvente atividade humana, o estado em que o indivíduo se coloca na tentativa de captação, apreensão e resgate dessa substância no espaço abstrato das palavras.

Certamente, acreditamos que qualquer outra definição para poesia derivará de um desses dois grupos, pois não há como querer fugir da imaterialidade da palavra. Se quisermos saber quem ela é, precisamos senti-la. O poema, desse modo, é a materialização da poesia. São os sinais em forma de verso ou não, que ela venha apresentar; de maneira que o poeta busca exprimir sua carga emotiva organizando os signos, a partir de recursos estilísticos para que a poesia seja comunicada através do poema produzido. Mas onde se encontraria a poesia antes de ser captada pelo poeta? Para Massaud Moisés (1993), em “A criação literária: Poesia”, a poesia originariamente está no mundo e pode ser encontrada em certas situações ou seres; não em qualquer ser ou

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situação, somente naqueles que comunicam. O poeta seria aquele que em atitude de resposta, reformularia o que sentiu na forma de linguagem. Ele seria, então, um dos lugares onde a poesia poderia estar. Um outro lugar em que poderíamos encontrar a poesia seria o poema, na medida em que este corresponde a sua concretização. Moisés (Ibid, p. 90) assevera ainda que a poesia passa pelo poeta no momento da criação, mas não permanece nem nele nem no poema. Pois o escritor, apesar de privilegiado por possuir o talento da criação e aguçada sensibilidade, só conseguiria senti-la novamente enquanto leitor. Para o teórico, o poema, a priori, não traria em seu íntimo a poesia, sim, cumpriria o papel de desencandeá-la no espírito do leitor. Assim, a poesia passa para o poema, na medida em que este funciona como reservatório de signos que conduzem à poesia ou preservam-na de esvaziar-se. Deixou de existir no íntimo do poeta, mas não existe no poema: a função deste é assinalá-la e desencandeá-la no espírito do leitor. Neste agora, existe ou reexiste a poesia, enriquecido de sugestões do poema, emanadas da fixação daquilo que ao próprio poeta criador do poema era absolutamente insuspeitado.

Portanto, é possível perceber que Moisés (1993, p.90-91) aponta um quarto lugar para a poesia estar: o leitor. E a partir dessa asserção, ele afirma que o leitor, de algum modo, poderia ser considerado também um poeta. Veja o porquê: não mais volta a sentir o que motivou o empenho verbal, a não ser como leitor, Se o leitor permitir, por um momento raciocinar por absurdo, diríamos que nós, leitores, é que somos, afinal de contas, poetas; os poetas é que não. A poesia está em nós, não no poeta, nem no poema. Este apenas constitui uma série de sinais que induzem à poesia, ou a desencadeiam-na. O poeta sente a poesia e num ato contínuo a plasma no poema, e encarando o poema como obra estranha, e nesse caso se incluirá entre nós. E quando o poeta desaparece, com ele se esvai, duma vez para sempre, o impulso criador do poema. Por outro lado, a poesia do poema surge-nos por intermédio da leitura, o que equivale a dizer que construímos, cada qual a seu modo e quantas vezes quiser, a poesia que o poema detona. Significa que a poesia está em nós em não no poema, o que nos torna poetas, embora não criadores do poema.

Em suas conjecturas a respeito da recepção do poema, Moisés pensa o papel dos leitores de forma, no mínimo, intrigante. Ao entender o leitor como aquele que compreende a poesia vivenciando-a num momento singular e íntimo, mostra-o como organizador de todos os sentimentos proporcionados por ela, o que o tornaria também arquiteto do poema.

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1.2 POÉTICA E ALTERIDADE A irrupção do “outro” é a irrupção do Mal. (Victor Bravo)

Cada palavra poética constitui um objeto Inesperado, Uma caixa de pandora, de onde escapa m todas as virtualidades da linguagem. (Roland Barthes)

Discutir o poético já foi trabalho de inúmeros teóricos, haja vista que a linguagem poética apresenta-se diferente da linguagem cotidiana, a chamada linguagem comunicacional, podendo constituir-se um “desvio” da norma linguística vigente no código. No livro “Teoria do texto: poligômenos e teoria do texto” (1995, p.11 - 12). Salvatore D’Onofrio afirma: Em poesia, a um referente podem corresponder dois ou mais significados cujos sentidos variam em função do cabedal cultural e da situação afetiva do leitor. [...] A linguagem literária acentua o próprio signo linguístico, estando orientada para a mensagem como tal e não apenas para seu significado. Sua função, mais do que referencial, é essencialmente expressiva, pois confere um novo sentido às palavras.

Desse “desvio”, nasce a linguagem literária, que continua tendo como significante o sistema linguístico cotidiano, no entanto suas formas e combinações são completamente inovadoras e se forjam a partir de organizações de patamares de sentido na língua. Na linguagem comunicacional, as palavras não são pensadas por seus falantes, que as utilizam na maior parte do tempo em seu sentido monovalente, o que proporciona o esquecimento de sua função como criadora de novas realidades: “A força da repetição aniquila o significado original da palavra, que perde seu poder de criatividade.” (Ibid., p. 15). Quando recebemos a língua, ele está em determinado estágio de desenvolvimento marcado pelos falares dessa época. As palavras possuem significados correntes entre os falantes. O poeta escolhe as palavras pelo seu significado, ou seja, pelos significados não determinados que a palavra pode apresentar. Para Pound, no “ABC da literatura” (2006, p.40), o significado surge com raízes e depende de três situações: como e quando a palavra é usada, e quando ela tenha sido utilizada de forma brilhante ou memorável. É válido lembrar aqui o que Mikail Bakhtin afirma em “Estética da criação verbal”: “A criação do poeta não se situa no mundo da língua, o poeta apenas serve-se da língua.” (1997, p. 206).

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O poeta “serve-se” da língua enquanto código linguístico de domínio de todos, contudo sua criação não provém dela. A força do seu discurso – discurso literário – funda-se num estatuto “xamânico”, que excede o mundo comum. Dominique Maingueneau em “Discurso literário” (2006, p. 60) afirma que o discurso literário é um discurso constituinte, que se propõe como discurso de Origem, na medida em que se valida a partir de uma cena de enunciação que autoriza a si mesma pertencendo, assim, a uma categoria discursiva propriamente dita. Ela diz: “Os discursos constituintes são discursos que conferem sentido aos atos da coletividade, sendo em verdade os garantes de múltiplos gêneros do discurso.” (Ibid., p.61). O discurso literário, utilizado pelos poetas, enquanto discurso que se autoautoriza legitima-se ao refletir sobre seu próprio funcionamento e sua constituição. Ele dialoga com outros discursos, mas se apresenta acima desses por negar essa interação ou por pretender submeter a seus princípios os demais discursos. Essas são algumas das características que o tornam um discurso constituinte. 1.3 CONTEMPORANEIDADE E HIBRIDISMO NA POESIA DE MAX MARTINS A obra poética de Max Martins tem enorme importância para a literatura brasileira, na medida em que todo fazer poético posterior a sua obra deve ter o compromisso com uma literatura de alta qualidade. A obra literária de Max Martins hoje constituída é fruto de uma longa trajetória percorrida desde a publicação do primeiro livro “O Estranho” (1952), publicado artesanalmente por ele mesmo, até “Colmando a Lacuna” (2001). A obra maxiana nasceu em um momento histórico pouco propício às letras em nossa região, por motivo do grande isolamento em relação, principalmente ao centro-sul, eixo político-econômico do país. Benedito Nunes em entrevista dada ao jornal “O Liberal”, publicada em seu site oficial em 2 de fevereiro de 2005, cuja referência consta ao término de nosso trabalho, declarou que naquele período, a implantação de um suplemento literário no jornal “Folha do Norte”, dirigido por Haroldo Maranhão, trouxe a oportunidade de publicação para poetas amazônicos e, também, para escritores nacionais e estrangeiros. Outro fato marcante naquele período que, a meu ver, veio a interferir na formação de nosso poeta, foi a visita do poeta americano Robin Stock a Belém. Stock trouxe em sua bagagem obras originais da literatura universal, que aqui foram recebidas e lidas no original, e também obras vertidas para o português pelo norte-americano. É necessário enfatizar a influência exercida por Mário Faustino, poeta, jornalista e crítico literário que trouxe as notícias da poesia concretista até Max Martins, o que intensificou uma das marcas fundamentais de sua poesia: a visualidade. A obra de Max Martins é uma síntese de diversas épocas e movimentos de nossa história literária. Nela encontramos muitas tendências, ligadas à modernidade literária, a saber: Ro-

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mantismo, Simbolismo, Modernismo, Concretismo, Existencialismo etc. Bem como, poesias mistas de imagens, símbolos e escrita, o que caracteriza o hibridismo estético de seu trabalho artístico com as linguagens em todo corpus de seu trabalho poético. Também não se pode deixar de lado, a presença do orientalismo zenbudista, o qual se manifesta como linha de travessia que costura toda a obra do poeta. 1.4 CONTEXTO DA CHEGADA DA CONTEMPORANEIDADE À POESIA UNIVERSAL O século XX trouxe consigo uma crise na poética universal, o que se denominou a “crise do verso”, causadora da desintegração da sintaxe. As obras inovadoras de Guillaume Apollinaire e Stephane Mallermé são bons exemplos das transformações ocorridas na literatura em meados do século XIX na Europa. Caracterizadas por apresentarem em seus conteúdos o diálogo entre diversas linguagens, também uma nova elaboração dos significantes. Essa inquietação inovadora se estabeleceu no Brasil a partir do Modernismo no início do século XX, período das vanguardas caracterizado pelo rompimento com a velha ordem e surgimento de manifestações artísticas consideradas genuinamente brasileiras. Naquele contexto, nasce o hibridismo estético de Max Martins, que começou a publicar em 1952 sob fortes influências das gerações modernistas, principalmente da geração de 1945 e sob influência das grandes mudanças na poesia universal. Por isso, esta obra representa muito do que foi essa travessia entre o moderno e contemporâneo, visto que o poeta teve seu último livro publicado no ano de 2001. 2 METODOLOGIA ESCOLHIDA A Semiótica de Algirdas Julien Greimas, conhecida como a Teoria da Significação, teve sua inauguração com a publicação de seu livro “Semântica Estrutural” e tem suas raízes na teoria da linguagem de Ferdinand Saussure. Trata-se de uma metodologia descritiva que manifesta sua operatoriedade oferecendo meios para a leitura, interpretação, exploração e desconstrução do sentido. A análise semiótica do corpus, portanto, propõe a descrição e a explicação dos mecanismos e regras que engendram o texto em análise na busca pela significação. São estabelecidas, em seus diversos níveis, as relações entre as partes, em um modelo semiótico que dá conta de um percurso gerativo que simula a produção do significado em patamares, num processo de descrição que vai do simples ao complexo. A análise semiótica greimasiana se organiza em um modelo de produção do significado que se inscreve em um Percurso Gerativo de Sentido (PGS) com projeto diferente dos modelos gerativistas. As estruturas textuais, por eles altamente consideradas, para Greimas, são aquelas consideradas no instante em que são deitadas no papel, estando, porém, fora do PGS. São espacial e temporalmente lineares. Fundamentada na teoria da significação, a teo-

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ria semiótica visando a explicar todas as semióticas e a construir modelos capazes de gerar discursos, não frases. A partir das definições de Plano de Conteúdo e Plano de Expressão de Louis Hjelmslev, Greimas aporta os domínios de sua semiótica no campo do Plano de Conteúdo, em que as descrições são realizadas a partir do modelo do já acima citado, Percurso Gerativo de Sentido. Para a Semiótica, “o sentido é definido como uma rede de relações, o que quer dizer que os elementos do conteúdo só adquirem sentido por meio das relações estabelecidas entre eles” (PIETROFORTE, 2007, p. 13). No nível fundamental, busca-se uma rede de relação básica, partindo de uma oposição semântica mínima responsável pela orientação de seu sentido mais geral e abstrato, formalizada através do modelo do quadrado semiótico. Exemplificados em nossa análise mais adiante. Essa dimensão é considerada inteligível e o ser se relaciona com ela sensivelmente atribuindo, assim, qualidades positivas a um dos termos da categoria semântica e negativas ao outro. Por isso os termos da categoria são de orientação sensível. A essa sensibilização positiva chamamos Euforia; à sensibilização negativa, Disforia. No nível Narrativo é onde ocorrem as transformações. A formalização dessas transformações é que chamamos de nível narrativo do PGS. Nesse nível, verificam-se as mudanças de estado, o sujeito da narrativa assume seu posto e como consequência, localizamos o objeto figurativizado em determinada ação realizada pelo sujeito. Anunciam-se, então, dois tipos de enunciados elementares na narrativa: os enunciados de estado (que podem se apresentar como de conjunção ou de disjunção) e os enunciados de fazer (referem-se às ações que trazem transformações nos enunciados de estado). A sequência de tipos de enunciado é que define um programa narrativo. As narrativas complexas trazem no mínimo um programa de base e outros subordinados a ele, chamados programas de uso. O primeiro é definido pela semiótica de performance. A articulação entre competência e performance define o percurso narrativo de ação. Ressalta-se que há mais dois percursos narrativos, o de manipulação e o de sanção. Antonio Pietroforte diz que os níveis Fundamental e Narrativo “definem a semionarrativa da geração do sentido.” (Ibid., p.19). A concretização dessa instância geral e abstrata se dará no último nível, o nível discursivo. No nível discursivo, procura-se a enunciação, da feita que esta é a instância para a instauração do discurso. Para isso, é necessário definirmos o enunciador e o enunciatário, visto que sua relação produz a enunciação. Esta, por sua vez, coloca em discurso as categorias de pessoa, tempo e espaço. Essas categorias se manifestam de forma particular em cada enunciação e suas colocações em discurso são chamadas de debreagem, presente em discursos do tipo subjetivo. Já os discursos enuncivos do tipo objetivo definem sistemas diferentes, podendo ser essas diferenças neutralizadas. Essas neutralizações são chamadas embreagem. As debreagens e embreagens são mecanismos sintáticos estratégicos utilizados para manipular e convencer nas argumentações. As categorias de pessoa, de tempo e de espaço podem ser temáticas ou figurativas. , Belém, v. 11, n. 22, p. 151-160, jan./dez. 2009

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O PGS constitui o Plano de Conteúdo do texto, mas todo conteúdo é veiculado por um Plano de Expressão, e apesar de o Plano de Expressão não ter sido objeto de estudos num primeiro momento, com o desenvolvimento das pesquisas nessa teoria, ele passa a ser tomado para estudos na teoria dos sistemas semi-simbólicos, ocorrendo quando uma categoria de significante passa a fazer sentido ao se relacionar com uma categoria do significado. Partindo do pressuposto que a metodologia elaborada por Greimas volta-se para os componentes de todos os tipos de textos (imagens, textos em geral e sua significação), busco demonstrar nesse trabalho que uma análise textual baseada na teoria semiótica greimasiana, definida como uma teoria relacional, expõe os recursos que o produtor do texto utilizou e o resultado a que chegou, revelando as intersecções apreendidas e articuladas nos diferentes níveis, na produção do sentido. 2.1 TEXTO E CONTEXTO Conceitos muito importantes e muito usados pelos estudos semióticos greimasianos. Texto é “Considerado enunciado, texto opõe-se a discurso, conforme a substância de expressão – gráfica ou fônica – utilizada para a manifestação do processo linguístico.” (GREIMAS & COURTÉS, 2008, p. 502). “Tessitura”, “Um todo de sentido” que surge a partir das relações ou da rede de relações estabelecidas entre seus componentes. O texto só existe ligado a um contexto: “Chama-se contexto o conjunto do texto que precede e/ou acompanha a unidade sintagmática considerada e do qual depende a significação.” (Ibid., p. 97). Nessa mesma linha, Diana Barros assevera que o contexto deve ser entendido e examinado “como uma organização de textos que dialogam com o texto em questão. Assim concebido, o contexto não se confunde com o ‘mundo das coisas’, mas se explica como um texto maior, no interior de que cada texto se integra e cobra sentido.” (2002, p.82). Logo, o contexto depende das relações intertextuais do texto em exame e a enunciação assume o papel de instância mediadora entre o discurso e o contexto sócio-histórico. 3 VERBO CARNALIZADO: EROS E A PALAVRA DISSEMINADORA O texto é um objeto fetiche e esse fetiche me deseja. (Roland Barthes) A Poética equivalerá a uma arte erótica que veicula, sob o tropismo fálico do corpo feminino, o labor reflexivo do poeta com a matéria das palavras. (Benedito Nunes)

A partir do entendimento do conceito de “Contexto” para a semiótica greimasiana (exposto no item anterior), que leva em consideração o conjunto de relações construídas antes do texto que o tornam possível, é uma de nossas prioridades contextualizar a obra de Max Martins, mas agora, a partir desse conceito.

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Essa obra poética tem atraído minha atenção e minha dedicação desde a graduação na década de 90. Ela apresenta em seu interior muitos temas universais. Esses motivos poéticos não serão todos aqui contemplados por serem numerosos. Selecionamos, por hora, o amor, grande tema centralizador da obra desse poeta, que se anuncia em 1960, com a publicação de seu segundo livro “Anti-Retrato”, nele a equivalência da Arte erótica e a Poética aparece na construção das metáforas do corpo feminino como mediadoras do trabalho artístico com as palavras. No prefácio do livro “Poemas Reunidos: 1952 - 2001”, Benedito Nunes, afirma: “... é só com o pleno advento da carnalidade em poemas como ‘Copacabana’[...], ‘Tema A’ [...] ou ‘Variação do tema A’ [...], que as imagens da natureza alcançam porte cósmico.” (2000, p.27) A carnalidade do mundo, a sexualização da natureza, o signo como um corpo capaz de sentir e transportar o prazer ao leitor aparecem como marcas fundamentais dessa obra, que culmina com o livro “Para ter onde ir” (1990). O poema Copacabana é uma boa amostra das características fundamentais dessa poesia tão atraente: “Preamar de coxas/ sugestão de pêlos/ úmidos/ no verde-mar-azul/ Os sexos/ derramam-se na areia/ (conchas)/ furam as ondas/ (seios)/ baixam palpitam/ As coxas abertas/ frescas/ Dentro o mar lhes canta/ planta/ a branca espuma do amor/ e esfria.” (1960, p.20). O texto literário, ao deflagrar sentidos outros através da intensificação dos significantes, abre as fendas, os cortes por onde o leitor navegará no prazer dos significados descobertos. Nesse instante único, ele atravessará por uma experiência singular, que apenas o texto literário, enquanto lugar de confluência de diversas linguagens, de efusão de sentidos novos, poderá lhe proporcionar. Pela fenda entreaberta pelas linguagens, o poeta, artista da palavra, entrega suas mensagens, ao passo que labora as significâncias, ambivalências das palavras. Para Roland Barthes: “A significância é o próprio sentido, na medida em que este é produzido sensualmente.” (2004, p.24) 4 UM OLHAR A PARTIR DA SEMIÓTICA DE ALGIDAR GREIMAS SOBRE UM POEMA VISUAL A metodologia greimasiana torna-se eficaz na apreensão e produção de enunciados, partindo de níveis de estruturação de sentido, num percurso que organizado em patamares, denomina-se Percurso Gerativo da Significação ou PGS. Encarado por Greimas como uma construção ideal, compreende estruturas discursivas e sêmio-narrativas (superficial e profunda). Essas estruturas surgem totalmente aglutinadas em nossa compreensão, misturadas, até o momento em que empreendemos a análise do que extraímos daquilo que foi enunciado, em vias da desconstrução ou da reconstrução do sentido.

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Vamos o poema:

(Caminhos de Marahu, 1983) No Nível das Estruturas Fundamentais, identificamos a oposição semântica mínima básica (ou oposições) a partir da (s) qual (quais) se constrói o sentido no texto. Bom lembrar que para Greimas, todo texto pressupõe uma elaboração de significado, ou seja, o significado perseguido é articulado, é produto organizado pela análise, na medida em que toda obra possui uma intencionalidade, que só poderá ser desvelada no nível discursivo, quando se chega à enunciação que está camuflada por trás do emaranhado de discursos apresentados no texto. No poema man & woman, de Max Martins, a oposição semântica mínima é: Masculinidade vs. Feminilidade 4.1 QRADRADO SEMIÓTICO Os termos opostos de uma categoria semântica mantém entre si uma relação de contrariedade, sendo contrários os termos que estão em relação de pressuposição recíproca, no caso, o termo /masculinidade/ pressupõe o termo /feminilidade/. Ao aplicarmos uma operação de negação a cada uma das categorias contrárias, teremos dois contraditórios: /não-masculinidade/ sendo o contraditório de /masculinidade/ e /não-feminilidade/ sendo o contraditório de / feminilidade/. Os termos contraditórios implicam por sua vez o termo contrário daquele a que

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é contraditório. Desse modo, /não-masculinidade/ é contrário à /feminilidade/ e /não-masculinidade/ é contrário a /masculinidade/. Os dois termos contraditórios são contrários entre si e para fazer a diferença entre eles e os termos contrários, José Luis Fiorin denomina-os de termos “subcontrários”. (2004, p. 19) 4.2 A SUPERFÍCIE LINGUÍSTICA DO TEXTO São ambos os traços da oposição situados no domínio da /sexualidade/ e manifestam-se de várias maneiras no texto: desde o título do poema, propositalmente escrito em inglês “man & woman”, cuja palavra “woman” (mulher, em inglês) contém em seu interior a palavra “man” (homem, em inglês), remetendo o leitor, enunciatário do texto, ao próprio ato da cópula. As categorias fundamentais são determinadas como Eufóricas (de conteúdo positivo), ou Disfóricas (de conteúdo negativo). O texto em exame traz ambos os traços com conteúdo Eufórico, ou seja, positivo. Sobre Euforia e Disforia, Fiorin diz: “Euforia e Disforia não são valores determinados pelo sistema axiológico do leitor, mas estão inscritos no texto”. (Ibid., p.20) O Neologismo “Copulêtera”, abaixo do eixo principal do texto, também traz em si esse jogo entre o feminino e masculino, da feita que nos remete, a priori, ao ato da cópula sugerida de forma bastante visível nas letras que formam a imagem disposta no eixo central do olhar. 4.3 A SUPERFÍCIE PLÁSTICA DO TEXTO As marcas linguísticas grafadas pelas aparentes letras M e W (letras iniciais das palavras man e woman, respectivamente, que dão nome ao poema), que se entrecruzam formando uma estrutura plástica (uma imagem), transcendendo, desse modo, a linguagem verbal, também reiteram o tema da oposição semântica mínima trazendo com isso uma isotopia e adentrando o campo do semi-simbolismo, já que o Plano de Expressão, nesse ponto do texto, relaciona-se com o Plano de Conteúdo. As isotopias são encontradas nos textos, na medida em que são identificadas as diversas linguagens artísticas que ali estão em confluência. No geral, essas diversas linguagens reiteram o sentido, agindo no contato entre os planos de Expressão e de Conteúdo do texto. As palavras Masculino e Feminino se referem ao plano biológico (expressão da sexualidade), mas não se limitam a ele, podendo se referir a dois aspectos complementares ou perfeitamente unificados do ser, do homem, de Deus. (CHEVALIER & CHEEBRANT, 1997, p. 598-599) Na dimensão eidética, é possível perceber que a imagem formada pelas letras pode ser separada formando, assim, duas figuras geométricas diferentes: no centro da imagem, como uma fenda, vemos um losango (figuras 1 e 2 , no item 6 em “Anexos”) e em suas laterais esquerda e direita, vemos dois triângulos.

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O losango é um símbolo feminino de sentido erótico. Ele representaria a vulva. Também é notório que seu interior pode conter dois triângulos do tipo isósceles adjacentes na base (figuras 3 e 4, no item 6 em “Anexos”). Para Chevalier e Cheerbrant, “o losango significaria os contatos entre o céu e a terra, entre o mundo superior e o mundo inferior, às vezes também a união dos dois sexos.” (1997, p. 558). Os triângulos isósceles que formam o interior do losango podem simbolizar o fogo e este sempre aparece associado ao sexo masculino, reiterando a escolha da letra M, da palavra man (que aparece no título do poema), bem como os significantes masculino e macho em nossa língua. A disposição dos triângulos nos reporta à dimensão topológica das letras que formam a imagem central do poema. Nesse plano, podemos visualizar um triângulo voltado para cima e o outro para baixo, como vimos na última figura mostrada. O primeiro simbolizaria o fogo, o sexo masculino; segundo o com a ponta para baixo, a água e o sexo feminino. (Ibid., p. 903-905). Os triângulos que podem ser vistos nas laterais esquerda e direita do losango são equiláteros (figuras 5 e 6, no item 6 em “Anexos”) e podem simbolizar outro elemento: a terra, que por sua receptividade reporta ao sexo feminino. As palavras que formam o título do poema (man & woman) estão em simetria perfeita com as que formam o “subtítulo” (Copulêtera), ambas não ultrapassam o tamanho da imagem central do poema.. No que diz respeito à dimensão cromática, percebemos que as cores foram escolhidos criteriosamente, pois qualquer outra cor que o poeta viesse utilizar para a elaboração deste poema, perderia o semi-simbolismo do preto no branco que o poema traz. Vemos o poema em preto sobre um fundo branco, cores que se complementam. Uma é o contrário da outra, como os sexos opostos e expostos no texto do poema. Partindo do pressuposto de que em semiótica nada é o que parece ser, a letra M que em conjunto com a suposta letra “W” forma a imagem central do texto, pode estar exibindo sua sombra, se olhada de outra perspectiva, assim estando duplicada: MM, que remete às iniciais do nome do próprio poeta (Max Martins), enunciador do texto, garantindo num trabalho artístico como este, que traz em si as marcas do tema centralizador (o amor) de sua poética, sua marca autoral. 5 REPENSANDO A POESIA VISUAL DE MAX MARTINS PARTIR DA TEORIA GREIMASIANA: CONSIDERAÇÕES FINAIS A teoria semiótica de Greimas nos oferece um novo olhar sobre os textos que se apresentam para nós todos os dias. Possibilitando-nos ver a vida de forma geral com um olhar mais educado e atento à construção de outros sentidos. O Percurso Gerativo de Sentido de um texto literário contemporâneo, que se mostra um misto de imagens, símbolos e escritura, é um exercício no mínimo instigante e desafiador, tornado possível a partir da utilização dos conceitos trabalhados pela semiótica e levando em

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consideração o contexto do texto selecionado. É um trabalho prazeroso e transformador de apuração de nossa percepção, muitas vezes desatenta. O poema aqui analisado traz em seu discurso uma enunciação sugerida através do Plano de expressão do texto. Max Martins labora os significantes imprimindo sua marca em cada componente ali estrategicamente posicionado e entrega sua mensagem cheia de significados e valores. O erotismo e a sexualização atingem nesse texto os patamares lingüísticos e plásticos, infiltrando-se nas linguagens criteriosamente selecionadas onde nada é desproposital, como observado. O trabalho desse poeta é um trabalho duro com a (s) linguagem (ens) e pautado no amor como força motriz geradora dos signos que constituem seus poemas, em que Eros e poiesis mostram-se ligados intrinsecamente um ao outro em grande parte dos textos que formam o corpus dessa poesia. A análise, ora apresentada, pode apresentar desvios e até falhas, mas representa uma tentativa de aproximação com a teoria semiótica greimasiana, com que tenho me identificado ao realizar novas descobertas na área da linguagem. Área a qual pertenço e onde tenho dedicado minha atenção e meu tempo. 6 ANEXOS

Figura 1: (Losango destacado no poema em vermelho)

Figura 3

Figura 2: (Para melhor visualização)

Figura 4

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Figura 5: (Triângulos destacados no poema em vermelho) Figura 6: (Para melhor visualização) REFERÊNCIAS ASAS DA PALAVRA. Belém: Unama, 2000. Semestral. ISSN 1415-7950. BAKHITIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1997 BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. São Paulo: Ática, 2002. BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. 4.ed. São Paulo: Perspectiva, 2004. CHEVALIER, Jean & CHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos. Rio de Janeiro: José Olímpio, 1996. D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria de texto: poligômenos e teoria da narrativa. São Paulo: Ática, 1995 FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 12. ed. São Paulo: Contexto, 2004. (Repensando a Língua Portuguesa). GREIMAS, A. J. & COURTÉS, j. Dicionário de semiótica. São Paulo: Contexto, 2008. LYRA, Pedro. Conceito de poesia. São Paulo: Ática, 1992. MAINGUENEAU, Dominique. Discurso literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006. MARTINS, Max. Anti-Retrato. Belém: Gráfica Falângola editora, 1960. ________. Caminho de Marahu. Belém: Edições Grápho/Grafisa, 1983. ________. Poemas reunidos: 1952-2001. Belém: EDUFPA, 2001. MOISÉS, Massaud. A criação literária: Poesia. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. NUNES, B. Benedictus. O Liberal.  Belém, 2 fev. 2005. Disponível em: www.portaldaamazonia/ desenvolvimento/benedictus/libi.htm. Acesso em: 5. fev. 2005. PIETROFORTE, Antonio Vicente. Semiótica visual: os percursos do olhar. São Paulo: Contexto, 2007.  POUND, Ezra. ABC da literatura: 1885-1972. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. São Paulo: Cultrix, 2006. TRILHAS. Belém: Unama, v.10, n.21, 2008. Semestral. ISSN 1518-2290.

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Artigo ARTICULAÇÃO E DESARTICULAÇÃO DO TEMPO E DO ESPAÇO: AS IDEIAS DE DAVID HARVEY E UM DIÁLOGO POSSÍVEL COM A PSICOLOGIA DO TRABALHO Eliana Cavalcante Maués Santos* RESUMO Neste artigo pretende-se abordar as contribuições do geógrafo David Harvey, acerca das mudanças ocorridas na sociedade contemporânea a partir das consequências da pós-modernidade. O autor discute temas como cultura, cinema e arquitetura para traçar um paralelo das mudanças culturais atreladas ao sistema político-econômico de um novo momento do capitalismo. A análise proposta tem como objetivo refletir sobre o trabalho na contemporaneidade por meio de um breve diálogo entre autores da Psicologia do Trabalho como W. Codo e C. Dejours e das questões levantadas por Harvey sobre os novos modos de acumulação de capital, a acumulação flexível, por meio das conexões do tempo e espaço. Nesse sentido, as novas práticas culturais são o reflexo de um momento próprio do capital que surgiu a partir da década de 70, e que se intensificou com o surgimento de novas tecnologias. Estabelece-se então, a prática da descartabilidade das coisas e o exagero no consumo e na manipulação de imagens, dessa forma se construiu um novo sistema de símbolos, de fragmentação da sociedade e de coisificação do homem. PALAVRAS-CHAVE: Trabalho. Tempo e Espaço. Acumulação Flexível . Psicologia do Trabalho.

ARTICULATION AND DISARTICULATION OF TIME AND SPACE: THE IDEAS OF DAVID HARVEY AND A POSSIBLE DIALOGUE WITH THE ORGANIZATIONAL PSYCHOLOGY ABSTRACT This article seeks to address the contribution of the geographer David Harvey, about the changes in contemporary society from the consequences of post-modernity. The author discusses topics such as culture, film and architecture to draw a parallel of cultural changes linked with the politi* Mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia - PPGP/IFCH/UFPA, da linha de pesquisa: Prevenç ão e Tratamento Psicológico. Professora da Escola Superior da Amazônia/ESAMAZ. E-mail: [email protected]

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cal-economic system of a new era of capitalism. The presented analysis want to reflect about the work in the contemporary performing a short dialogue between authors of organizational psychology such as W. Codo and C. Dejours and also the issues raised by Harvey on new modes of capital accumulation - the flexible accumulation through the connections of time and space. On that ground, new cultural practices are a reflection of own capital moment’s that came from the 70’s, which intensified with the emergence of new technologies. It is then the practice of disposability and exaggeration in consume and manipulation of images, so it built a new stage of symbols system, society fragmentation and the concept of a man such as object. KEYWORDS: Job. Time and Space. Flexible Accumulation. Organizational Psychology.

1 INTRODUÇÃO Qual a natureza do Pós-modernismo para David Harvey? Esta é a principal questão elaborada ao se manter um primeiro contato com os escritos inquietantes deste geógrafo inglês, com formação marxista. As contribuições de seus trabalhos sobre as origens da mudança cultural, que advém da pós-modernidade e a articulação com o tempo e espaço, é o objetivo deste breve estudo e serve de contribuição para os avanços acadêmicos relativos a este tema. Para autores como F. Jameson (2007) e D. Harvey (1999; 2005) a pós-modernidade pode ser considerada na medida em que existem mudanças ocorridas como em nenhum outro momento na história da humanidade. Entretanto, ambos os autores não acreditam em ruptura, algo que se encerra e que recomeçaria em uma nova era, um marco de rompimento como se passou da Idade Média para a Idade Moderna, por exemplo. A ruptura da modernidade para a pós-modernidade é uma etapa do mesmo processo, a pós-modernidade torna-se uma nova dimensão do capitalismo. A investigação central de Harvey está focalizada nos aspectos políticos e econômicos de um novo momento da sociedade. Sua perspectiva parte de uma mudança crucial desde o ano de 1972, particularmente a crise do petróleo e a mudança do papel do Estado, em que o Neoliberalismo surge com o objetivo de realinhar o papel do Estado. Tais mudanças decorrem da emergência das novas maneiras de experiência do tempo e espaço, da articulação e desarticulação desses dois modos de experiência do sistema social. Para Harvey (1999), existe uma relação natural entre pós-modernidade, capitalismo flexível e as novas experiências do tempo e espaço. Em outros períodos da história humana o tempo/espaço era definido pelas relações dos sujeitos em dimensões de espaço conhecidos e pequenos nessa perspectiva. O mundo era pequeno sob o aspecto do conhecimento do homem a respeito de seus limites. A partir de um novo momento, como é o caso das grandes descobertas marítimas, em que países como Espanha e Portugal mudaram a maneira de dimensionar o tempo-espaço, o mundo conhecido ampliava seus limites e se estabelece uma nova articulação da díade tempo-espaço. 176

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A trajetória das mudanças na díade e a adaptação do homem geraram as transformações vividas até os dias atuais. Como o homem percebe o tempo espaço e se relaciona com eles? A discussão parte dos fundamentos políticos e econômicos que surgiram da experiência de tempo-espaço. D. Harvey, em sintonia com Jameson (2007), amplia a discussão sobre a fragmentação, em que o homem tenta adaptar-se a esse novo momento de fragmentação do tempo e espaço. As mudanças são imensas na forma de produção e nos relacionamentos interpessoais. O espaço é fragmentado em muitos outros espaços; na fabricação de automóveis, por exemplo, em que os espaços são divididos em produções de peças diferenciadas para que haja rapidez no tempo de montagem dos veículos e na possibilidade de contratação de “mão de obra barata” em países periféricos. A dimensão da vida do homem na modernidade tomou outra direção e está em grande parte, na possibilidade de conseguir fazer muitas atividades em curtos períodos de tempo, em espaços menores e em situações de ausência física, em contatos humanos virtuais (inclusive os afetivos). Nesta perspectiva, faz-se uma análise das mudanças de ordem econômica e política que tiveram repercussão, como era de se esperar, na esfera social e individual. É nesse ponto das consequências da pós-modernidade para as relações de trabalho e o impacto na vida do trabalhador que se propõe refletir sobre as contribuições dos conceitos da articulação tempo-espaço e acumulação flexível de D. Harvey, para uma breve inserção na Psicologia do Trabalho. Os aspectos abordados são relacionados ao impacto da pós-modernidade na vida do indivíduo e da importância da categoria trabalho1 na formação de sua personalidade. Estabelece-se ainda a polêmica discussão no âmbito da psicologia sobre o sofrimento psíquico relacionado ao trabalho e às defesas contra o sofrimento. 2 A ACUMULAÇÃO FLEXÍVEL E AS ARTICULAÇÕES E DESARTICULAÇÕES DO TEMPO E ESPAÇO D. Harvey (1999) utiliza o conceito de acumulação flexível para identificar um momento histórico – Jameson (2007) chamou de capitalismo tardio - que é instituído por um rompimento com a rigidez do processo de produção fordista, pois se baseia em processos de trabalho flexíveis e igual flexibilidade no padrão de consumo. Com os recentes modos de produção surgem novas formas de comercialização dos produtos e novos mercados,assim como, inovadoras formas de investimento e uso da moeda.

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Refere-se neste artigo ao construto/categoria trabalho na concepção de Marx (apud CODO, 2006), compreendida antes de tudo, como um ato que se passa entre o homem e a natureza, agindo e interferindo nos modos de ação do homem. Então, o Trabalho é uma relação de dupla transformação entre o homem e a natureza, geradora de significado [...] (CODO, 2006.p.80, grifo do autor).

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As mudanças organizacionais, decorrentes da acumulação flexível, geraram diversas modificações nas relações de trabalho e na perspectiva do trabalho para o indivíduo na contemporaneidade. As posições de trabalho são traduzidas em capacitação e exigências de adequações que levam a mudanças nos estilos e modos de vida das populações. Para Harvey (1999), o conceito de “compressão do tempo-espaço” designa os processos que alteraram a forma de observar e representar o mundo, que modificaram “qualidades objetivas do espaço e do tempo”. Desta forma, existe uma “aceleração do ritmo de vida”, relacionadas ao capitalismo e às possibilidades de deslocamentos de espaço com mais rapidez, de forma que “o mundo parece encolher sobre nós”. Esclarece ainda que: [...] À medida que o espaço parece encolher numa “aldeia global” de telecomunicações e numa “espaçonave terra” de interdependências ecológicas e econômicas, e que os horizontes temporais se reduzem a um ponto em que só existe o presente (o mundo do esquizofrênico), temos de aprender a lidar com um avassalador sentido de compressão dos nossos mundos espacial e temporal. [...] A experiência da compressão do tempo-espaço é um desafio, um estímulo, uma tensão e, às vezes, uma profunda perturbação capaz de provocar, uma diversidade de reações sociais, culturais e políticas (HARVEY, 1999, p.219).

A articulação do tempo espaço abordada por Harvey, mostra claramente a mudança da visão do mundo como sistema de produção e que suas proporcionalidades geraram um novo momento histórico. Para os trabalhadores, tais mudanças geraram situações de subcontratações, consequentemente menos tempo para o lazer e mais tempo ao trabalho e à qualificação deste; considerando-se que as habilidades exigidas para um modo de produção não são as mesmas exigidas por outros. Neste aspecto, criam-se novos investimentos, inclusive do próprio trabalhador em adequar-se a esse novo mercado de trabalho. Em razão disso, amplia-se o mercado e é produzido um novo custo, que é o de pagar pela própria qualificação, tão necessária ao atendimento das demandas, que superam todas as possíveis exigências anteriormente vividas por este trabalhador. A velocidade maior das produções de bens e a rapidez do fluxo para o consumo são características da aceleração do tempo de giro do capital e da produção que envolve modificações na troca e no consumo. Segundo Harvey (1999), os cartões de crédito (dinheiro de plástico) e os bancos eletrônicos foram algumas inovações que aumentaram a rapidez do fluxo do dinheiro. O autor chama atenção para duas tendências no desenvolvimento da “arena do consumo”: a mobilização do mercado de massa, promovendo a aceleração do consumo em grande escala, não somente de bens duráveis, mas em estilos de vida e em setores de entretenimento. A outra tendência diz respeito à passagem do consumo de bens para o consumo de serviços, não apenas serviços comerciais ou de saúde, mas de diversão e eventos. O autor se refere ainda ao “tempo de vida” de alguns serviços que são rápidos e bem menores do que o de um automóvel ou de uma geladeira. Desta forma, como há limites para o consumo de bens 178

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físicos, não é de se surpreender que os capitalistas se voltem para o fornecimento de serviços efêmeros em termos de consumo (HARVEY, 1999). 3 TEMPO E ESPAÇO COMO FONTES DE PODER SOCIAL. UM BREVE DIÁLOGO COM A PSICOLOGIA A partir da leitura dos capítulos “Tempo e espaço como fontes de poder social” e “A compressão do tempo-espaço e a condição pós-moderna”, da obra de Harvey intitulada A condição pós-moderna, obteve-se uma interessante perspectiva na análise proposta para um breve diálogo entre dois importantes autores da Psicologia do Trabalho; com ênfase na discussão tempo-espaço na relação de produção do homem em seu ambiente de trabalho e as consequências para sua saúde mental. Na obra do psicólogo e pesquisador brasileiro W. Codo, por exemplo – que não por coincidência no presente artigo aparece considerando sua formação marxista – observa-se uma preocupação de toda uma vida dedicada aos estudos sobre sofrimento no trabalho e as relações de trabalho na contemporaneidade. Ao mesmo tempo tem-se que considerar os escritos do psiquiatra e psicanalista C. Dejours, que realiza pesquisas há mais de trinta anos sobre a organização do trabalho, organização prescrita e organização real e seus impactos na saúde do trabalhador. Assim posto, torna-se importante um exercício desse encontro entre a teoria de Harvey e os autores citados. Os impactos gerados na pós-modernidade no campo da Psicologia podem ser facilmente identificados na obra de Harvey, nota-se que um dos aspectos levantados no título A compressão do tempo-espaço e a condição pós-moderna trata da análise sobre autores como Tofler (1970, apud HARVEY, 1999, p.258-259.) sobre “a sociedade do descarte”, em que significa não apenas jogar fora bens produzidos (roupas e embalagens que se tornaram descartáveis), mas também “significa ser capaz de atirar fora valores, estilos de vida, relacionamentos estáveis, apego as coisas [...] “ e suas implicações de mudanças na psicologia humana. Da mesma forma em Simmel (1903, apud HARVEY, 1999, p.258-259), na obra Metrópole e a vida mental, trata acerca das respostas psicológicas relacionadas às mudanças ocorridas na sociedade e na perspectiva do “bombardeio de estímulos” que “gera problemas de sobrecarga sensorial”. Nessa análise, o sujeito é duplamente violado em sua tarefa laboral em adaptar-se às exigências práticas da tarefa e adaptar-se às exigências cognitivas e psicológicas que são bombardeadas cotidianamente. No indivíduo, é manifestado comportamentos de indiferença e distanciamentos. A atitude blasée (HARVEY, 1999; SIMMEL, 1903) é extremamente emblemática na pósmodernidade, em que se cultivariam contatos superficiais e a frieza das relações afetivas. A questão da organização do trabalho, discutida por Harvey, tem sua base no conceito de tempo de giro de capital, que é o “tempo de produção, associado com o tempo de circulação de troca”. Assim, “[...] quanto mais rápida a recuperação do capital posto em circulação, tanto maior o lucro obtido. As definições de “organização espacial eficiente” são formas fundamentais que servem à medida à busca do lucro (HARVEY, 1999, p.209)”.

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Ao tratar das divergências das escalas de trabalho entre empregados e empregadores, Harvey aponta para uma disputa, que na maioria dos casos, não é solucionada e traz tensão e conflitos permanentes nas relações de trabalho. Por isso, “os confrontos diretos em torno da aceleração e da intensificação, dos intervalos e escalas, são muitas vezes destrutivos demais para serem iniciados com facilidade. Em outro ponto, ele comenta: [...] “A maioria das escalas de trabalho tem uma organização extremamente rígida, e a intensidade e velocidade de produção têm sido organizadas, em larga medida, de maneira a favorecer antes o capital do que o trabalho”. Na perspectiva da psicologia do trabalho, a questão central se pauta na construção da identidade pelo e no trabalho, dificultada pelas divergências que a organização do trabalho impõe – o que inclui escalas, controle de ponto, conflitos de pares e chefes etc. – e que pode gerar sofrimento psíquico. Ao tratar da identidade, Codo (2006) refere-se à possibilidade de reconhecimento de si mesmo, ao modo como alguém torna-se parecido consigo mesmo. Segundo o autor, “O trabalho tem estatuto de categoria ontológica para explicação de identidade, de personalidade e, portanto, de sofrimento psíquico. O fato de o trabalho determinar o sofrimento psíquico é corolário do fato de que determina a identidade” (ibid , p.71). Neste sentido, o trabalho também é portador de uma lógica estruturante da vida psíquica. As atividades do trabalho são portadoras de um modo próprio de ser e de se comportar socialmente. Ao vincular trabalho e sofrimento, C. Dejours aborda a categoria organização do trabalho como causa direta de sofrimento mental. Para o autor, pesquisador de vários segmentos profissionais existe um confronto a partir da organização do trabalho, a vontade e o desejo dos trabalhadores, de um lado, e o comando do patrão, concretizado pelas condições de trabalho – higiene, segurança, ambiente biológico e físico etc. – (DEJOURS, 1992). O sofrimento é invisível e na maioria dos indivíduos – o que dependerá do tempo de inserção deste trabalhador ao evento gerador de sofrimento – é bem controlado pelas estratégias defensivas2, para impedir que se transforme em patologia. Para Dejours, Abdouchelli e Jayet (1994, p.125-126), a organização do trabalho pode ser entendida: [...] por um lado, [como] a divisão do trabalho: divisão de tarefas entre os operadores, repartição, cadência e as várias maneiras pelas quais o indivíduo é adaptado ao trabalho; horários, regras de comportamento e vestuário, etc. enfim, o modo operatório prescrito; e por outro lado a divisão a divisão de homens: repartição das responsabilidades, hierarquia, comando, controle etc.

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As estratégias defensivas são os mecanismos individuais utilizados contra a organização do trabalho. São as formas encontradas pelo trabalhador que pode esconder ou protelar algum sintoma para não fugir à ideologia da vergonha em estar doente.

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Dessas condições, são criadas as representações coletivas citadas por Dejours, quais sejam de contentamento, de vergonha da doença e de tratamento desigual para os que ficam doentes. As condições de trabalho atingem principalmente o corpo, a organização do trabalho, por sua vez, atua no modo psíquico. D. Harvey (1999), ao tratar das interferências na experiência do tempo e espaço nas práticas sociais e relações de poder na pós-modernidade, descreve problemas em categorias profissionais particulares como telefonistas, motoristas e controladores de vôo. Como diz Harvey: Os telefonistas da AT&T assinam um contrato segundo o qual devem atender um telefonema a cada 28 segundos, os motoristas de caminhão se impõem extremos de resistência e quase morrem tomando pílulas para permanecer acordados, os controladores de vôo passam por extremos de tensão, os operários da linha de produção usam drogas e álcool, e isso faz parte de um ritmo diário de trabalho fixado para obter lucros, e não pela elaboração de escalas de trabalho humanas. (HARVEY, 1999, p.211).

A imposição da aceleração das tarefas em determinadas profissões (e porque não falar na maioria delas) na contemporaneidade, traz prejuízos para o trabalhador que não tem nenhuma garantia de recuperar sua saúde, mesmo após licenças médicas; pois ainda no seu retorno ao trabalho, será alvo de discriminação tanto pelos colegas quanto pela instituição. Poder-se-ia citar inúmeras outras categorias, inclusive a dos professores que sofrem com as mudanças da compressão tempo-espaço e as relações de poder instituídas em todos os níveis profissionais – temática identificada nos recentes estudos de W. Codo no Brasil, acerca da Síndrome de Burnout2. A possibilidade da existência de um processo que represente insatisfação no indivíduo e que isso possa gerar sofrimento psíquico com todas as consequências relativas a este, é alguma “coisa” que o coletivo prefere não tratar. É o que C. Dejours (1992) denomina de “custo humano de insatisfação”. Segundo Harvey (1999), podem-se verificar aspectos semelhantes relacionados à experiência do espaço com o incentivo à criação do mercado mundial e a redução de barreiras espaciais, e para a “aniquilação do espaço através do tempo”, tendo como objetivo a racionalização a organização espacial de produções eficientes. Assim, as exigências para a organização do trabalho no aspecto espacial também se configura extremamente danoso para os 3

Burnout seria a expressão em inglês que se refere a alguma coisa que deixou de funcionar por falta de energia. A Síndrome de Burnout fora caracterizada pela extrema condição de stress sem que o organismo manifestasse defesas suficientemente compatíveis. Corresponde a um elevado esgotamento físico e psíquico em categorias profissionais, o que conduziria a uma frieza e indiferença generalizada. Os recentes estudos (CODO, 2006) relataram que os casos de afastamento do trabalho relacionado à síndrome aumentaram nos últimos dez anos no Brasil. Os principais sintomas vão desde manifestações emocionais até manifestações corporais/psicossomática, o que incluiriam: despersonaliz ação, esgotamento emocional, irritabilidade, probabilidade de condutas aditivas e evitativas, inquietude, desmotivação para o trabalho, cansaço e mal estar geral.

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trabalhadores que são levados a adaptações de horários para que não haja barreiras de tempo e espaço ao consumo. A partir de então, tal consumo, em níveis nunca antes vistos, pode ser feito por meio de redes de circulação em lugares distantes geograficamente, mas muito próximos em termos de tecnologia. 4 UMA FINALIZAÇÃO PROVISÓRIA... Não se propôs neste artigo responder a qualquer problema de imediato ou estabelecer finalizações para as questões tão importantes e de amplitude universais abordadas, mas desenvolver uma análise prévia para uma discussão mais ampla das articulações da teoria de D. Harvey e as questões pesquisadas pela Psicologia do Trabalho: as exigências do capital e suas influências na saúde mental no trabalho, que é uma das questões que estão na ordem do dia para a Psicologia Social e do Trabalho; em uma época cheia de conturbações e marcada por fenômenos da pós-modernidade, como a globalização e o avanço tecnológico que impactam fortemente na esfera do trabalho, ocasionando novas pressões em diversos contextos onde encontramos grupos de trabalho. Uma simples crítica aos modelos estabelecidos de conduta dos capitalistas pelos autores mencionados, por si só também não seria objetivo deste estudo, entretanto, não se pode negar a possibilidade de discutir as responsabilidades acerca da atual estrutura das relações de trabalho instituídas por países ricos (ditos desenvolvidos) e pelos seus copiadores (em desenvolvimento) na “onda capitalista”, das sentenças impostas há milhões de trabalhadores a partir da organização de trabalho. Em mais esta etapa do capitalismo a acumulação flexível toma novos contornos, se reorganiza e reformula suas bases para encontrar uma nova forma de emancipação do capital e da exploração em grande escala da força de trabalho e do trabalhador, que nunca conseguiu e talvez nunca consiga suplantar a força de tamanho sistema. Nesse sentido, é interessante finalizar esta análise com a certeza de que as obras de autores como D. Harvey, W. Codo e C. Dejours são instrumentos de conscientização e incentivo para discussões na academia e fora dela, principalmente em lugares em que exista a possibilidade de participação dos trabalhadores em busca de seus direitos, o que inclui sua saúde mental. REFERÊNCIAS CODO, W. Paranoia através do trabalho. In: CODO, W. (Org.). O trabalho enlouquece? Petrópolis: Vozes, 2004. ______. Por uma psicologia do trabalho: ensaios recolhidos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

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Conferência GUIA DE LEITURA DAS CARTAS DO PE. ANTÔNIO VIEIRA (1626-1697)1 João Adolfo Hansen*

É cousa tão natural o responder, que até os penhascos duros respondem, e para as vozes têm ecos. Pelo contrário, é tão grande violência não responder, que aos que nasceram mudos fez a natureza também surdos, porque se ouvissem, e não pudessem responder, rebentariam de dor. (Vieira, Circular à nobreza de Portugal, 31/7/1694)

Para ler as cartas que Antônio Vieira (1608-1697) escreveu e ditou em vários lugares da América Portuguesa e da Europa entre 1626 e 16972, é útil saber que não são “literatura”, pois não têm autonomia estética; nem “manifestação literária”, porque não pressupõem nem anunciam romanticamente nenhuma futura formação da literatura nacional. A teologiapolítica do seu tempo é outra, assim como outra é a sua teleologia. Não podem ser lidas como veículos neutros de reprodução ou reflexo de conteúdos positivos pretotalizados da realidade suposta do século XVII. E não são informais, pois têm realidade de prática simbólica cuja forma é condicionada, material e institucionalmente, pelas funções que desempenham. Dirigindo-se a destinatários particulares e institucionais, Vieira as escreve aplicando preceitos retóricos com que põe em cena a doutrina contra-reformista do poder da Igreja e a regra da Companhia de Jesus, para reforçar a unidade do “corpo místico” da sua Ordem e do pacto de sujeição do Império português. Deliberativas, judiciais e epidíticas, suas cartas tratam do presente das matérias do Império: a guerra contra os Estados Gerais holandeses, a conspiração contra Espanha, os capitais judaicos, a Inquisição, a liberdade de índios, a escravidão de negros, a corrupção dos grandes, a crise do açúcar, a seca, a fome, o cometa, a doença e a profecia etc. A interpretação do que diz nas cartas sempre pressupõe a teologia da política católica anti-maquiavélica, anti-luterana, anti-calvinista e anti-anglicana, reproduzindo ortodoxamente a doutrina dos tratados De legibus (1612) e Defensio fidei (1613), do jesuíta Francisco Suárez, e Della ragion di Stato (1588), do também jesuíta Giovanni Botero. * 1 2

Professor titular da USP, atua na área de Estudo Comparados de Literatura de Língua Portuguesa. Conferência apresentada no XIV Fórum de Letras da Unama, em setembro de 2008. A edição mais completa das cartas de Vieira é a de João Lúcio d’Azevedo, com 710 cartas de gêneros diversos. C. D’Azevedo, João Lúcio. Coordenação e anotação. Cartas do padre António Vieira. Coimbra, Imprensa da Universidade, 1925-1928, 3 t. (I,1925;II,1926;III,1928).

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Escritas nos dois gêneros, familiaris e negotialis, especificados na ars dictaminis, a arte de escrever cartas, figuram as pessoas do remetente e dos destinatários imitando a fala, os caracteres e os afetos de “pessoas naturais”. A carta familiar trata de matérias particulares, geralmente assuntos do próprio interesse do remetente e do destinatário. É, como diz Demétrio de Falero, a metade de um diálogo em que se representa a voz do remetente para o interlocutor ausente, respondendo a uma necessidade ou interesse momentâneos ou complementando uma instrução qualquer sobre um ponto determinado. Substituindo uma visita pessoal, a carta substitui a comunicação oral pela escrita em estilo simples e breve, pois o destinatário não está presente para expor dúvidas quanto ao que é dito. Ela é sermo, como na definição de Cícero, “fala”; ou colloquium, como diz Erasmo, “colóquio”, sobre assuntos discutidos entre amigos ausentes. O gênero negocial é usado para tratar de matérias de interesse institucional e coletivo, admitindo e mesmo exigindo a erudição, a dissertação, a polêmica e os estilos ornados. Seu destinatário não é “pessoa particular”, mas “pessoa não-familiar”. Como a epístola, a carta negocial pode e deve mesmo ser extensa, citando autoridades que autorizam o remetente a compor e comunicar discursos doutrinários e políticos de maneira considerada verdadeira e verossímil3. Para persuadir o destinatário da verdade da mensagem que comunica, em ambos os gêneros o remetente faz referências à circunstância em que escreve e ao procedimento técnico que aplica - “imitação da fala própria de pessoa natural”- que, no caso, especifica seu tipo de padre jesuíta autor de correspondência. Ao fazê-lo, obedece a preceitos da Companhia de Jesus. Em 1542, numa carta escrita de Roma para o Pe. Fabro, que se achava na Alemanha, o Pe. Inácio de Loyola determinou que os padres das diversas missões mundiais da Companhia deveriam escrever uma “carta principal”, que pudesse ser mostrada para todos. Devia ter ordem coerente, não tratar de coisas impertinentes e servir para a edificação de seus leitores, visando o serviço de Deus e do próximo. Para tanto, devia ser escrita e reescrita, corrigida e recorrigida; seu autor devia fazer de conta que todos iam lê-la4. A determinação de reescritura e correção evidencia o rigoroso controle exercido sobre as matérias e os estilos; neste sentido, também a plena consciência do efeito persuasivo que a carta produz no ânimo do destinatário. Como sempre é trabalhoso escrever uma carta principal, Loyola chama a atenção para o fato de a escrita permanecer como testemunho e não ser tão fácil de emendar como a fala. Admite que a carta principal tenha anexos, nos quais é possível escrever concer-

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Evidentemente, a correspondência escrita como carta familiar pode ser apropriada e divulgada como c arta negocial. Em 1659, quando estava em Camutá, na Amazônia, Vieira escreveu uma carta particular para o jesuíta André Fernandes, depois Bispo do Japão, em que expõe sua interpretação profética das trovas de Gonçalo Anes Bandarra, um sapateiro português do século XVI, para demonstrar que o rei D. João IV, morto em 1656, ressuscitaria. Enviada como carta particular ao jesuíta, deveria ser entregue à rainha viúva, D. Luísa de Gusmão, para consolá-la. A Inquisição portuguesa interceptou o manuscrito e leu-o como carta negocial, pública e doutrinária, acusando Vieira de heterodoxia. A Igreja Católica proíbe a aplicação do método patrístico-escolástico de interpretação alegórica ou figural a textos nãocanônicos e foi fácil para os inquisidores constituir sua culpa. Cf. PÉCORA, Alcir. Máquina de Gêneros. São Paulo: EDUSP, 2000. p. 14

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tado ou sem concerto, conforme a “abundância do coração” do remetente. Ele mesmo, informou ao Pe. Fabro, tinha acabado de enviar 250 cartas para vários lugares do mundo. Em março de 1555, em uma carta para o Pe. Roberto Claysson, Loyola censura-lhe severamente o estilo, afirmando que deixa de ser conveniente por ser muito ornado. No caso, distingue o estilo da eloqüência profana do estilo próprio dos religiosos. Como os adornos de uma matrona que “respira gravidade e modéstia”, o estilo dos soldados de Cristo deve ter uma “facúndia grave e madura”, jamais “exuberante e juvenil”. Se o estilo for abundante ou copioso, a abundância deve ser de idéias ou coisas da invenção, não das palavras ou ornatos da elocução5. Assim, Loyola prescreve um decoro que retoma a definição da carta familiar como sermo ou “fala simples” feita por Cícero e pelos autores medievais da ars dictaminis. A carta deve ter uma simplicidade aparentemente casual: suas partes devem ter disposição ordenada, gramaticalmente correta, ajustando a gravidade própria da enunciação da persona de um padre jesuíta à simplicidade das palavras como aval verossímil da verdade do que comunica. O estilo deve aproximar-se o mais possível da sublimitas in humilitate, o “sublime no humilde”, definido por Bernardo de Claraval como testemunho da participação divina nas coisas humildes do mundo. Ao mesmo tempo, como a carta enviada pressupõe a correção da carta principal que torna a matéria tratada edificante, constitui um destinatário sinônimo do éthos ou caráter do remetente como o vir bonus peritus dicendi, o homem perito em falar, referido por Quintiliano. O remetente é um tipo discreto, moralmente qualificado para falar, demonstrando autoridade para dirigir-se ao destinatário e dar sentido edificante aos temas de que trata. Assim, as cartas aplicam um decorum específico da imitação do oral. Estabelecendo a qualidade das matérias e recortando-as em temas particulares, especificam descritivamente os atributos sensíveis dos seres e eventos como motivos tratados sem ornatos, também produzindo, com sua figuração pouco ornada, um análogo sensível do éthos ou caráter aplicado ao estilo para figurar a humildade do padre remetente. A mesma falta de ornatos e a disposição de temas variados interpretam as ações segundo uma jurisprudência de bons usos regulada pela ética escolástica como discurso “simples” adequado à verdade. Neste sentido, o remetente especifica o estado judicial dos temas, relacionando a narração deles com a doutrina ético-jurídica de certo/errado fundamentada teologicamente nos dogmas católicos reformados. Com isso, especifica também a eqüidade verossímil do “eu” da enunciação que, ao evitar a elocução ornada, prefere o sentido próprio do estilo sem ornamentos para construir a fala grave que se faz apta para mover e persuadir evangelicamente o destinatário quanto à verdade e à validade universais do sublime de sua Causa Eficiente e Final, Deus. A escrita é, por isso, a circums-

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Idem, ibidem.

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criptio6 de que fala Santo Tomás de Aquino: um esboço ou resultado exterior sensível das operações do juízo do éthos ou caráter do remetente que, sendo caráter prudente, é eticamente regulado como proporção retórica “simples”. Como conseqüência, o decoro que ordena a carta também é interpretado como conveniência moral e ética. Pela proporção do duplo padrão de humildade e sublime na adequação da escrita aos temas, evidencia-se para o destinatário que o decoro do estilo corresponde à eqüidade da prudência do caráter de uma enunciação autorizada. A enunciação produz a circumscriptio simples e prudente, enfim, como figuração analogamente proporcional do sublime da Verdade metafísica que aconselha e fundamenta seu éthos. É discurso que se sabe fundado de direito na Verdade do seu fundamento. Logo, seus enunciados são, simultaneamente, figuração de temas e prefiguração de eventos, dando-se a ler profeticamente: por exemplo, a catequese de índios realiza, no tempo do rei português e nas formas, sacramentos, ministérios e ritos da Igreja visível na instituição do padroado, a Vontade de Deus já revelada nos livros bíblicos. Imaginando-se dois eixos da referência do discurso da carta - um horizontal, outro vertical - no primeiro deles o remetente refere seres e eventos empíricos, interpretandolhes a multiplicidade e a diferença por meio da unidade da significação divina que figura no segundo para dotá-los do sentido transcendente do qual eles são figuras providencialmente orientadas. Como imitação da fala de um tipo religioso, o éthos de prudência é permanente; por vezes, imita afetos incidentais e momentâneos7 para produzir e figurar paixões provisórias que agitam o remetente, como desânimo, cansaço, doença, ironia, tristeza, indignação, espanto etc. Construindo tecnicamente os efeitos de simplicidade afetiva, a carta busca certa elegância sem ostentação adequada à gravidade do caráter do remetente. Assim, os traços biográficos que constituem a primeira pessoa do remetente e o individualizam como “Vieira” devem ser entendidos como partes do todo social objetivo ou representações de posições institucionais estilizadas discursivamente pelo autor para compor o caráter prudente do “eu” da enunciação. As posições definem o remetente Vieira como um tipo objetivamente incluído em práticas contemporâneas nas quais recebe classificações positivas e negativas segundo a contrariedade dos interesses envolvidos : “jesuíta”, “superior da missão do Maranhão”, “pregador da Capela Real”, “secretário”, “confessor de reis”, “valido do rei D. João IV”, “diplomata”, “orador”, “monstro do engenho”, “príncipe dos pregadores”, “profeta”, “homem de muita lábia”, “herege”, “amigo de judeus”, “Judas do Brasil” etc. Em todos os casos, como o

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SANTO TOMÁS. Ética, 1.7. Como uma espécie de esboço exterior do bonum finale hominis, quod est felicitas, a circumscriptio de Sto. Tomás é, conforme a interpretação de Wesley Trimpi, “notification of a thing by means of characteristics it shares with other things rather than by means of its own special attributes.For this reason, one speaks ‘figuratively’ first, that is secundum quandam similitudinarium et extrinsecam quodammodo descriptionem, and then fills in later what fuit prius figuraliter determinatum”. Cf. TRIMPI, Wesley- “The Quality of Fiction: The Rhetorical Transmission of Literary Theory” in Traditio. Studies in Ancient and Medieval History, Thought and Religion. New York, Fordham University Press, 1974, v. XXX, p.35. Deste modo, a figuração em estilo humilde postula a necessidade da sua exegese pelo destinatário que, na aparência disparatada da multiplicidade de seres descritos e eventos narrados, deve encontrar o fundamento divino da prudência do éthos humilde que os escreve. O nome do procedimento é patopéia.

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decoro das cartas se relaciona com as posições institucionais dramatizadas na relação de remetente e destinatário, Vieira compõe a pessoa do “eu” emissor com traços biográficos estilizados pela aplicação do éthos constantemente prudente e grave, que figura como posição hierárquica discreta e racional, avalista e conselheira das restantes posições hierárquicas do Império. O remetente é, por isso, sempre discreto, totalmente autorizado a falar sobre as matérias tratadas na carta porque vê as coisas do ponto de vista da morte, proposta nas artes de morrer de seu tempo como o ponto fixo de avaliação da vida que ensina a morrer bem ou “viver com privilégios de morto”, como Vieira diz em carta para Duarte Ribeiro de Macedo. “Viver com privilégios de morto” significa julgar todas as ocasiões pela perspectiva da prudência que, com o pensamento da morte, torna presentes os fins últimos do homem como desengano da vanitas no grande teatro que é o mundo. As cartas representam as matérias para o destinatário aplicando-lhes lugares-comuns deliberativos, judiciais e epidíticos extraídos de elencos de opiniões julgadas verdadeiras nas várias atividades discursivas e não-discursivas contemporâneas. A representação dos lugares na carta imprime-lhes a deformação do uso particular que evidencia os processos retóricos e doutrinários do juízo do remetente. Vieira escreve pressupondo dois limites estilísticos considerados defeitos em seu tempo: a clareza total da exposição, definida como árida, pedestre ou vulgar, e a total obscuridade, entendida como afetada, incongruente, também vulgar. Obviamente, Vieira não é cartesiano e os conceitos que formula nas cartas não correspondem à expressão de ideias claras e distintas de sua consciência, mas à dramatização de várias espécies de ideias ou “fantasmas” retoricamente aplicados segundo as adequações socialmente partilhadas de clarezas e de hermetismos específicos dos gêneros discursivos das cartas. Nelas, há clarezas e obscuridades diferenciais, no plural, não uma só clareza ou uma só obscuridade univocamente definidas como expressão de uma consciência. Sempre se deve lembrar que o remetente compõe a escrita retoricamente, não expressivamente: não escreve expressando conceitos, mas com conceitos expressos. Por outras palavras, a carta não é expressão psicológica de conceitos, mas aplicação de conceitos mediada pela técnica retórica partilhada pelo remetente e pelo destinatário como regra simbólica do todo social objetivo. Assim, o remetente compõe o destinatário como avaliador da significação das matérias narradas e dos preceitos técnicos aplicados à narração das mesmas, evidenciando no estilo da carta a auctoritas da técnica. Com isso, sempre evidencia a sistematicidade da prescrição retórica. Nela, o “bem escrito” tem definição por assim dizer ablativa ou negativa, como na definição horaciana do “bem feito” poético: é “bem escrita” a carta da qual nada pode ser retirado e à qual nada pode ser acrescentado. Logo, quando constitui o destinatário, o remetente o modela como um intelecto ajuizado e conhecedor do artifício retórico que aplica, evidenciando que o ponto de vista pessoal encenado na enunciação não é uma categoria psicológica, mesmo quando se trata de carta familiar, mas a perspectiva de um estilo objetivamente partilhado como instrumento de representação de tipos compostos por caracteres éticos e retóricos. O caráter constante do remetente é indicativo do modo como seu tipo se posiciona socialmente na

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hierarquia8. Logo, seu ponto de vista sobre as matérias não é autônomo, mas o de uma liberdade de aplicação de preceitos técnicos e doutrinários situada num intervalo enunciativo delimitado pela inépcia, de um lado, e pela licença poética, de outro. Os modos da sua representação estão imediatamente relacionados com os meios da sua avaliação correntes no campo semântico geral de sua sociedade. Sendo uma variante da memória social dos usos autorizados dos estilos, o estilo particular de Vieira inclui-se na partilha coletiva de tipos e topoi de uma tipologia humana que é topologia hierárquica e política. O estilo evidencia o que se pode chamar de “retórica do comportamento” generalizada na sociedade portuguesa do século XVII como pragmática ordenadora de corpos, afetos, hábitos e eleições. Como outros discursos de seu tempo, evidencia a codificação que teatraliza o corpo político do Estado como unidade da subordinação de identidades, diferenças e oposições hierárquicas adequadas à grande variedade das situações e comportamentos. A representação prescrita é “teatral”, propondo, para cada ocasião, caracteres, ações e aparências adequados à hierarquia como representações verossímeis que devem ser representadas. Sua fundamentação é a da jurisprudência escolástica de jesuítas que, no final do século XVI e durante todo o século XVII, doutrinam e afirmam, contra Maquiavel, Erasmo, Lutero, Calvino e Melanchton, que a monarquia é um “corpo místico” de ordens subordinadas naturalmente à cabeça real no pactum subjectionis, segundo a doutrina suareziana do pacto pelo qual a comunidade se aliena do poder na persona mystica ou imortal do monarca. Nas cartas, as formas dos decoros são fundamentais, pois classificam, separam e ordenam doutrinariamente os indivíduos e as ordens sociais desse corpo. Distinguindo, o decoro é discreto, como decorosa e discreta deve ser a representação que o produz no estilo. Signo evidenciador do engenho e do juízo, o estilo associa-se imediatamente à prudência, virtude intelectual básica para o controle dos apetites individuais e a concórdia ou a paz do todo subordinado do Império. Considerando-se a destinação familiar e negocial das cartas de Vieira, é possível distribuí-las por três conjuntos: 1 Cartas para a Companhia de Jesus Nelas, o remetente Antônio Vieira, definido como o tipo social de jesuíta da Província do Brasil e da Província do Maranhão e Grão-Pará, escreve cartas familiares e negociais na Europa (entre 1642 e 1650; entre 1662 e 1680); na Bahia (em 1626; entre 1681 e 1697) e em São Luís, Belém, Camutá e outros sítios amazônicos (entre 1651 e 1661), para destinatários jesuítas, como superiores da Província do Brasil, da Província Portuguesa e da sede romana da Companhia de Jesus. Neste grupo, encontram-se cartas dirigidas ao Geral, a Provinciais e a padres da Companhia de Jesus. Quando as escreve, Vieira obedece a preceitos retóricos e disciplinares 8

A autoridade da preceptiva é total: “Assim o tinha eu imaginado com algum receyo, por ser pensamento sem Author; quando venturosamente o fui achar em Santo Agostinho no livro 2 de Trinitate, onde excita,& resolve a questão pelo mesmo fundamento” (Sermão de Santo Antônio, 1656).

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fixados no século XVI pelos padres Inácio de Loyola e Juan de Polanco para a escrita de correspondência. Escreve uma “carta principal”, informando sobre o estado de coisas da missão jesuítica e reiterando os vínculos internos de solidariedade que o unem a seus irmãos em Cristo no “corpo místico” da Companhia. Deixa para “anexos” outras informações menos publicáveis. Familiares ou negociais na origem, depois de censuradas elas se integram na circulação mundial das comunicações do “corpo místico” da Ordem como exemplum, exemplo, da espiritualidade da devotio moderna anti-maquiavélica, anti-luterana e anti-calvinista que repete, nas variadas circunstâncias da ação da Companhia, o dogma da luz natural da Graça inata, a afirmação da infalibilidade do papa como vicarius Christi, a subordinação do remetente ao rei como membro do padroado português, a doutrina suareziana do pacto de sujeição e virtudes definidas catolicamente, prudência, obediência, humildade, amor ao próximo, caridade e dissimulação honesta. 2 Cartas para a sociedade colonial Nelas, o remetente Antônio Vieira, definido como o tipo social de jesuíta da Província do Brasil e da Província do Maranhão e Grão-Pará, escreve cartas familiares para particulares e cartas negociais para homens de instituições da sociedade colonial, em vários momentos entre 1626 e 1697, principalmente nos anos 1651-1661, quando Vieira está no Maranhão e Grão-Pará, e 1681-1697, quando está na Bahia. Neste grupo, encontram-se, por exemplo, as cartas negociais dirigidas ao procurador do Brasil, tratando da questão indígena; à Câmara do Pará9; e a carta familiar ao chefe índio Guaquaíba. Nelas, Vieira expõe a posição jesuítica quanto às práticas de captura de índios por bandeirantes paulistas; quanto à escravização e exploração de indígenas aldeados por coloniais escravistasdo Maranhão; quanto à escravização de “índios de corda”, cativos à espera do sacrifício e do moquém; quanto à manipulação das leis portuguesas que regulam o direito da “guerra justa” contra índios etc. O remetente expõe sua versão doutrinária sobre os temas, recorrendo às autoridades canônicas da Igreja como aval da autoridade de seus juízos sobre as ações de governadores e outros funcionários da administração portuguesa; de sacerdotes de outras ordens religiosas, como os carmelitas e os mercedários do Maranhão, e de outros homens da sociedade colonial. Defendendo a posição da Companhia de Jesus, as cartas tratam das questões judicialmente, tentando persuadir o destinatário da justeza e justiça das razões do remetente sobre culpas e erros passados de pessoas inimigas de seu projeto. Em

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Vieira escreve a carta como Superior das Missões, respondendo a uma representação dos vereadores de Belém que alegam a miséria da população e pedem que autorize uma entrada no sertão para resgatar “índios de corda”. A carta é inicialmente judicial, pois Vieira julga o pedido, examinando causas da miséria alegada e motivações dos indivíduos, com franqueza e ironia: “...as necessidades que Vossas Mercês representam não são gerais em todos”. A partir da metade da carta, pondera deliberativamente, dizendo concordar com as entradas que resgatam “índios de corda”. Sua razão, no entanto, é outra : declara que “os missionários não nos metemos na repartição dos escravos nem nos preços deles”, mas admite que os escravos dos índios “se podem trazer para o grêmio da Igreja e o serviço da república”.

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geral, o remetente propõe deliberativamente, com argumentos éticos fundamentados pela metafísica cristã, que o destinatário mude de posição quanto à escravização de índios, afirmando que Deus confiou a Portugal a missão de integrá-los ao grêmio da Cristandade. 3 Cartas para a Corte portuguesa. Nelas, o remetente Antônio Vieira, definido como o tipo social de jesuíta da Província do Brasil e da Província do Maranhão e Grão- Pará, escreve cartas familiares e negociais para destinatários da Corte portuguesa em Lisboa e outros lugares da Europa, como Paris, Haia e Londres, em vários momentos, principalmente entre 1642-1697. Neste grupo, acham-se as cartas encaminhadas ao rei D. João IV, ao rei D.Afonso VI, ao rei D. Pedro II, à rainha D. Luisa de Gusmão, ao príncipe D. Teodósio e outros membros da casa real portuguesa, como a rainha D. Catarina de Inglaterra e a rainha Maria Sofia de Neuburg, segunda mulher de D. Pedro II, além de fidalgos e diplomatas portugueses, como o Marquês de Niza, o Duque de Cadaval, Francisco de Sousa Coutinho, embaixador nos Estados Gerais holandeses, e Duarte Ribeiro de Macedo, amigo de Vieira. No caso, o remetente reitera sua posição de jesuíta discreto, caracterizado pela prudência e agudeza empenhadas na manutenção do “bem comum” do Império. Escreve, no caso, como típico secretário de Príncipe renascentista, representando com o conceito engenhoso os afetos discretos de sua posição subordinada no pacto de sujeição. A elegância do estilo associa-se à distinção do remetente como diplomata enviado à França e aos Estados Gerais holandeses e também a seu poder como valido de reis e rainhas, como D. João IV e D. Luísa de Gusmão, e privado de grandes do reino, como o Marquês de Niza, o Duque de Cadaval, o Marquês de Gouvêa e outros. *** Toda a correspondência de Vieira pode ser analisada por meio da fórmula da proposição “Alguém diz algo sobre alguma coisa para alguém”. Na fórmula, a expressão “alguém diz para alguém” corresponde ao contrato enunciativo do discurso. Nele, a pessoa do remetente, “eu”, estabelece contato escrito com a pessoa do destinatário, “tu”, por meio de procedimentos técnicos, retóricos, e princípios doutrinários, teológico-políticos, com que seleciona, compõe e interpreta as matérias. A pessoa textual do “eu” do remetente, Antônio Vieira, é o ponto de convergência de princípios e preceitos doutrinários da Coroa e da Companhia de Jesus. Eles constituem sua representação como tipo de uma ordem religiosa do padroado português, dotando-o de um caráter ou éthos constante, prudente e agudo, discreto. Sua posição social de discreto é constituída e confirmada pelos signos ostensivos da sua submissão política e simbólica à Igreja e ao rei, que autorizam a legalidade e legitimidade da carta que escreve em prol do “bem comum” do Império. Todas as cartas pressupõem a representação. A representação é uma categoria histórica substancialista ou a forma cultural escolástica posta como mediação das práticas discursivas e

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não-discursivas da “política católica” do seu tempo. Categoria tabular ou folheada, condensa princípios, articulações e referências de sistemas simbólicos anteriores e contemporâneos. Como mediação dos discursos, faz com que as cartas reproduzam princípios teológico-políticos fundamentados na metafísica escolástica que definem as posições sociais de indivíduos e estamentos “aunados”, como Vieira gosta de dizer, ou unificados como “corpo místico” subordinado ao rei no pacto de sujeição. Assim, pela representação, o remetente compõe retoricamente as posições sociais de indivíduos de seu tempo como uma tipologia; teológico-politicamente, hierarquiza as posições como representação em uma topologia. A invenção retórica do tipo demonstra a propriedade teológico-política do topos. Assim, pela representação, o remetente, o destinatário e as matérias da carta são definidos como representação de tipos, ações e eventos subordinados ao “bem comum” do Império. Sendo caracterizado nessa tipologia pelas virtudes letradas do padre e, muitas vezes, pelas virtudes galantes e heróicas do cortesão10, o “eu” discreto do remetente distingue-se de outros “eus” contemporâneos pelo engenho e pelo juízo. O engenho, definido no século XVII como a capacidade intelectual da invenção retórico-poética, caracteriza-o como tipo perspicaz, que penetra nas matérias e distingue suas propriedades, fazendo definições precisas de seus temas por meio das 10 categorias aristotélicas, e versátil, que lhes dá elocução ou forma discursiva conveniente. Quanto ao juízo, caracteriza-o como tipo capaz de fazer avaliações ético-políticas da ocasião da escrita e das matérias tratadas. Assim, as três faculdades que constituem a sua pessoa - vontade, memória, inteligência- são orientadas escolasticamente como recta ratio agibilium11, reta razão das coisas do agir, a prudência. Na composição do seu caráter prudente, evidencia-se o conceito ciceroniano de virtus exposto em De Officiis, traduzido no século XV pelo Infante D. Pedro, Duque de Coimbra: o remetente tem a excelência humana obtida por meio de retórica, história e filosofia antigas. Comunica as coisas da carta para o destinatário com a recta ratio factibilium, reta razão das coisas do fazer, a perícia técnica do domínio da linguagem. Assim, a situação e a posição sociais do seu tipo padre jesuíta prudente e engenhoso - são formalizadas como representação de um lugar institucional cujo agir e fazer por meio da representação põem em cena os princípios éticos, jurídicos, retóricos e teológico-políticos da monarquia portuguesa e da Companhia de Jesus que o autorizam como tipo. Simultaneamente, os mesmos princípios dramatizam a posição de sua representação particular na hierarquia, evidenciando seus limites prefixados pela representação dos seus privilégios, que exerce como tipo autorizado a tratar dos assuntos do Império. Todas as cartas são produzidas com conceitos fornecidos ao engenho e juízo do remetente pela sua memória dos usos socialmente autorizados dos signos. Sua memória tem fundamento metafísico: sendo um tipo escolástico, sempre pressupõe que o atributo do Ser divino se aplica às coisas da natureza e aos eventos da história, tornando-os convenientes e semelhan10 1

Nos Estados Gerais holandeses, Vieira tira a roupeta de jesuíta e veste-se à moda cortesã, com grã escarlata e espadim. Cf. Tomás de Aquino. Summa theologica, Ia IIae, q. 57.

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tes, e, simultaneamente, diversos e diferentes. Todos são convenientes ou semelhantes pela sua ordenação em relação ao Um ou Máximo, como Vieira repete com Santo Tomás de Aquino, pois todos são seres criados pela mesma Causa como seus efeitos. Logo, todos são análogos da sua Causa e, em cada um deles, como análogo, a Unidade divina é posta como definição hierarquizadora de todos os outros. Assim, todas as palavras que figuram os conceitos dos seres se correspondem pela semelhança que os liga como conceitos de seres criados pela mesma Coisa, podendo valer umas pelas outras como signos reflexos Dela. E, como todos os seres e todas as palavras são apenas semelhantes, obviamente todos são não-idênticos, o que permite as formas de dicção engenhosamente aguda que produzem relações inesperadas, aparentemente incongruentes, entre coisas e conceitos distanciados. As palavras e as coisas têm interpretação teológica: Vieira aplica-lhes teologemas do Velho e do Novo Testamento, que definem seus conceitos como manifestação da luz da Graça. Assim, na leitura da carta, o meio material da linguagem é composto e percebido como evidentia ou dramatização vívida da Presença divina. A representação satura as formas da sua elocução não como “barroco”, conceito estético neokantiano inexistente em seu tempo, mas como acúmulo de referências que exemplificam para o destinatário a presença amorosa da Luz divina na multiplicidade das coisas e conceitos aproximados nas formas. A escrita é intervenção política: como padre que trabalha para os interesses da Coroa portuguesa, compõe as formas da carta encenando as posições subordinadas do remetente, das matérias e do destinatário. Assim, para ler as cartas historicamente, é preciso lê-las sabendo que a forma do “eu” do remetente, do destinatário textual e das matérias representadas é sempre mediada por categorias escolásticas que constituem a representação: identidade do conceito indeterminado de Deus, definido como Causa Primeira da natureza e da história; analogia de atribuição e de proporção dos seres criados e Deus; semelhança entre os seres enquanto seres criados; juízo que define e diferencia os predicados dos seres. Mediada por tais categorias, a enunciação do remetente não é psicologicamente expressiva, como foi dito, mas retoricamente aplicada como invenção de um caráter. Como gênero do discurso próprio da pessoalidade, em oposição à história, gênero impessoal, a carta sempre tem índices da pessoa “Antônio Vieira”, mas não é, como foi dito, expressão psicológica informal. As cartas não expressam, mas aplicam as paixões, que no século XVII sempre têm forma retórica quando representadas. Ainda que o “eu” do remetente apresente características biográficas e comunique afetos intensos, o “eu” é ficção retórica de uma “pessoa natural” que especifica o discurso como sermocinatio12. Sua enunciação refere, com a prudência do decoro do seu tipo, também a gravidade das tarefas executadas com a obediência, a paciência e a perseverança próprias de um homem de Deus; simultaneamente, inscreve as tarefas na Palavra essencial de que recebem participativamente a legitimação.

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Cf. QUINT. 9,2,29- “fictiones personarum”; ISIDORO DE SEVILHA.2,14,1-2 “ ethopoeiam vero illam vocamus, in qua hominis personam fingimus pro exprimendis affectibus aetatis, studii, fortunae, laetitiae, sexus, maeroris, audaciae...”.

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Quando escreve a carta, Vieira aplica a memória da educação recebida no seminário da Companhia de Jesus. O programa de ensino da Companhia, sistematizado no Ratio studiorum de 1599, prescreve a educação homogênea dos padres por meio do estudo das autoridades canônicas da Igreja e das autoridades lógicas, dialéticas, gramaticais, poéticas, retóricas, históricas e prudenciais antigas, principalmente as latinas. As disciplinas do Ratio studiorum desenvolvem a memória, a vontade e a inteligência do religioso, tornando-o capacitado para desempenhar os interesses da Companhia de Jesus, da Igreja e da Coroa nas coisas do grande teatro do mundo. Para Vieira, é impensável a possibilidade de escrever cartas autonomizadas da sua educação escolástica e da disciplina da sua Ordem, que impõem e delimitam o “dever ser” de sua ação nos negócios temporais. O remetente das cartas é um tipo social previsto e determinado pelas Constituições e Regras da Companhia de Jesus: realiza publicamente o vínculo de obediência à sua Ordem13, aplicando os mesmos padrões retórico-doutrinários aprendidos por todos os outros jesuítas contemporâneos que também fizeram o seminário, Teologia e os votos. Assim, é autor, como tipo social que emula na escrita os saberes de uma educação comum regrada como imitação de autoridades14. Seu tempo não conhece a divisão do trabalho intelectual e o trabalho intelectual da divisão iluministas e pós-iluministas. Como tipo especificado pelo caráter e decoro prudentes de padre jesuíta subordinado a uma ordem religiosa subordinada a Roma e à Coroa, tem a posse das cartas que escreve, como autoridade do perfeito desempenho de seus gêneros, mas não a propriedade privada delas, que correm publicadas em cópias manuscritas ou em letra impressa. Atribuídas à sua auctoritas, não têm originalidade, no sentido romântico da mercadoria que concorre com outras originalidades no mercado de bens culturais. O remetente transforma as matérias com preceitos objetivos que não são de sua propriedade particular, mas propriedade comunitária da Companhia de Jesus e do “bem comum” do todo objetivo do corpo místico do Império: as autoridades da oratória, como Cícero, Crisóstomo, Paravicino; as da epistolografia, como Cícero, Sêneca, Demétrio de Falero, Hugues de SaintVictor, o Anônimo de Bolonha, Erasmo, Vives, Fabri, Justo Lípsio; as da poesia, como Virgílio, Ovídio, Camões; as da história, como Tito Lívio, Suetônio, Tácito etc. Suas cartas não têm

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14

Cf. Loyola, Santo Inácio de. Constituições da Companhia de Jesus. Trad. e notas de Joaquim Mendes Abranches, S.J. Lisboa, Província Portuguesa da Companhia de Jesus, 1975. Veja-se, por exemplo, [77]: “ Se as pregações e ministérios se exerceram noutras partes distantes do lugar e da casa, deverá trazer um atestado dos sítios onde tiver passado um tempo notável, ou das autoridades públicas( tendo grande conta de todos os Ordinários), que dê plena garantia de que semeou a palavra divina e cumpriu o ofício de Confessor com sã doutrina, bom exemplo de vida, e sem ofensa de ninguém”; [109]: “ Para exercer o ofício de semeador e ministro da palavra divina e se dedicar à ajuda espiritual do próximo, convém ter suficiente cópia de conhecimentos intelectuais” (p. 63); [ 111]: “Para maior humildade e perfeição dos homens de letras, Coadjutores espirituais e Escolásticos, se houver dúvidas sobre a suficiente aptidão de algum dos candidatos à Companhia para nela ser Professo, Coadjutor espiritual ou Escolástico, deverá ter-se em conta que é muito melhor e mais perfeito para ele deixar-se julgar e governar por ela. Esta saberá, tão bem como ele, o que se requer para viver nela; e o súbdito mostrará maior humildade e perfeição, e dará provas de maior amor e confiança naqueles que o devem governar”(p.64). Cf. [404],[405], que prescrevem como formar excelentes pregadores. Cf. [814]: “Assim, devem-se cultivar cuidadosamente os meios humanos ou os adquiridos com o próprio esforço, especialmente uma doutrina fundada e sólida, e a maneira de a apresentar ao povo em sermões e lições sacras, e de tratar e conversar com as pessoas”. Idem, ibidem.

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autonomia estética, porque não autonomizam o discurso do conceito de história próprio da política católica portuguesa. Elas se incluem na concepção metafísica que define o tempo histórico como um ente criado e orientado providencialmente pela participação da luz da Graça. Assim, sua escrita é totalmente alheia ao conceito iluminista de história. Como se sabe, desde a segunda metade do século XVIII, a história foi definida como processo apenas humano, próprio da res publica democrática, que transforma o tempo como contínuo de superações progressistas, cumulativas ou dialéticas, rumo à realização final da Razão num futuro utópico. Vieira obviamente não pode concebê-la desse modo. Assim, também o modo como escreve história nas cartas não é o da disciplina iluminista que reconstrói documentalmente a ruína do passado, narrando-a para o presente como experiência daquilo que não mais se repete nem pode repetir-se. Não ser um iluminista não significa que seu conceito de tempo histórico seja mítico, cíclico ou panteísta. Muito menos que, sendo conceito formulado religiosamente, postule que o mundo histórico é ilusão ou aparência. Suas cartas postulam que a Eternidade é a Causa Primeira de todos os tempos que houve, há e haverá. Como tempos criados, todos eles participam da absoluta realidade do conceito indeterminado de Deus, enquanto avançam para a consecução final da Vontade divina que já veio uma vez para os homens com Cristo. Assim, quando se lêem suas cartas, é útil lembrar mais duas coisas: a primeira é que interpretam os acontecimentos do Império Português propondo que todos os tempos históricos são reais e têm historicidade própria. Por exemplo, os tempos dos quatro impérios anteriores ao português - o assírio, o persa, o grego e o romano - são diferentes uns dos outros porque são espécies criadas e próprias de tempo; são diferentes, obviamente só semelhantes, mas não são espécies idênticas do Tempo. A segunda coisa: nenhuma das épocas históricas do passado se repete no presente. A única Coisa que se repete absolutamente idêntica a Si mesma em todas as épocas da história humana é a Identidade de Deus, como Causa Primeira que as orienta providencialmente como sua Causa Final, fazendo-as todas análogas de Si e semelhantes umas às outras como seres criados. Todos os tempos históricos são efeitos da Causa e signos da Coisa que é Deus. Como tipo ou sombra das coisas futuras, umbra futurarum, todos os tempos históricos prefiguram o Eterno e em todos eles a Eternidade participa como Luz e Protótipo. Mas nenhum deles já realizou o Reino de Cristo. Atual na eternidade de Deus ou na Identidade do conceito de Deus, essa realização permanece um futuro contingente ou potencial para os homens, que até agora apenas a repartiram de modo incompleto. Com toda a certeza, afirma Vieira, Cristo já veio uma vez e a Providência continua a revelar em vários sinais, naturais e históricos, a eficácia da Nova Aliança para todos os homens, acenando-lhes misteriosamente com o futuro do Segundo Advento. Nas cartas, esse providencialismo é politicamente empenhado nas questões particulares do Império. Nelas, o remetente Vieira sempre afirma o que o orador Vieira diz nos sermões: a vontade de todos os indivíduos, ordens e estamentos do Império Português, como reto desejo do Bem, e a liberdade de todos, como servidão voluntária no pacto de sujeição, devem ser orientadas profeticamente

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no tempo histórico do Império por um rei Bragança, pois vai realizar o Reino de Deus na forma anunciada do V Império. No “Sermão dos Bons Anos”, pregado em 1º de janeiro de 1642 na Capela Real de Lisboa, quando comenta o versículo do Pai Nosso, adveniat Regnum tuum, venha a nós o Teu Reino, Vieira profetiza que o rei vivo e presente, D. João IV, dá continuidade ao rei morto e ausente, D. Sebastião, cumprindo a promessa feita por Deus a D. Afonso Henriques na batalha de Ourique. No momento, diz, já veio o Reino que Portugal já foi, mas ainda está por vir o Reino que Portugal há-de ser, o Quinto Império15. Contra Maquiavel e Lutero, suas cartas afirmam que os homens contam com a Graça inata, cuja atualidade de luz natural é conselho do Bem aceso em suas mentes. Logo, o ato da escrita da carta não se dissocia da metafísica escolástica que motiva substancialmente o intelecto do remetente como porta-voz da palavra de Deus que ilumina e aconselha seu testemunho imediatamente empenhado nos assuntos temporais do Império. Em todas as cartas, para informar o destinatário adequadamente, o remetente subordina os enunciados à função retórica da utilidade, recorrendo a lugares-comuns específicos do gênero adotado. Em geral, para obter a utilidade nas cartas familiares, aplica o estilo simples, desataviado e breve; e o medíocre, claro e didático, nas negociais. No século XVII, a clareza elocutiva deles é prescrita como apta para compor a posição do destinatário e a perspectiva com que avalia e entende as matérias narradas. Para tanto, o remetente sempre pressupõe três tipos de destinatários: inferior, igual e superior. Na saudação deles, no início das cartas, evidencia-se a aplicação dos preceitos do decoro das artes dictaminis: dirigida a superior, a carta não pode ser jocosa; a igual, não pode ser descortês; a inferior, não deve ser orgulhosa. Quando o destinatário é de posição superior à do remetente, caso do rei, rainhas, príncipes, aristocratas portugueses, governadores, bispos, arcebispos e superiores da Companhia de Jesus, as cartas subordinam o tratamento das matérias à afirmação reiterada da irrestrita subordinação do remetente ao “bem comum” do Império, à razão de Estado, à etiqueta cortesã e ao “corpo místico” da Companhia de Jesus. Quando escreve para destinatários institucionalmente inferiores, caso do chefe índio Guaquaíba ou Lopo de Sousa, o remetente o faz com índices paternais de benevolência e afabilidade16. Quando o destinatário é igual, como outro padre da Companhia de Jesus ou o amigo Duarte Ribeiro de Macedo, as cartas o compõem como sinônimo do “eu” do remetente; no caso dos padres jesuítas, é “irmão em Cristo” que, obedecendo às normas disciplinares da Companhia, reconhece a doutrina teológico-política aplicada como interpretação das matérias e os procedimentos retóricos que as representam e comunicam. Na circularidade de código estabelecida entre a enunciação e a recepção, o destinatário é, assim como o remetente, um tipo prudente, honesto e grave, capacitado a traduzir as novidades e dar-lhes sentido por meio dos critérios técnicos e doutrinários comunicados no estilo. A recepção é autoral ou prescritiva, normati15 16

VIEIRA, Pe. Antônio. Sermão dos Bons Anos. In: Sermões, ed. cit., v. I, p. 315-342. A carta para o índio Guaquaíba é familiar; nela, Vieira reitera sua amizade com o principal tupi, pergunta-lhe sobre seu estado de saúde e propõe-se a ajudá-lo no que desejar.

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va: a leitura da carta refaz os procedimentos técnicos aplicados à escrita, avaliando sua adequação. Com a exceção da carta escrita para o chefe índio Guaquaíba, destinatário inferior, Vieira sempre aplica os outros dois decoros quando se dirige a destinatários iguais e superiores. Graves, nenhuma de suas cartas tem jocosidades inoportunas, pois dirigem-se a superiores da Companhia, como o Geral Muzzio Vitteleschi e o Geral João Oliva; aos reis D. João IV, D. Afonso VI e D. Pedro II; às rainhas D.Luísa de Gusmão, D. Catarina de Inglaterra e D. Maria Sofia de Neuburg; ao príncipe D. Teodósio; a grandes do Reino, o Marquês de Niza, o Duque de Cadaval, o Conde de Castelo Melhor etc. E a iguais, como amigos seculares e Irmãos da Companhia, tratados discretamente, sempre com extrema cortesia. Nos três casos, o remetente e o destinatário são representados como membros subordinados do “corpo místico” do Império português. A forma aplicada para compor o caráter de suas pessoas discursivas pressupõe e afirma a sua inclusão subordinada na totalidade do corpo político do Império como “corpo místico” de vontades subordinadas ao rei no pacto de sujeição. Excetuando o rei, que é legibus solutus, livre das leis coercitivas do Império - mas não de suas leis morais, pois é rei católico -, o remetente inclui-se a si mesmo e a seus destinatários nessa totalidade como tipos subordinados. Reconhecendo sua posição subordinada, afirma mantê-la em nome do “bem comum”. Assim, a representação reproduz aquilo que cada um deles já é, como membro subordinado do “corpo místico”, prescrevendo simultaneamente que devem permanecer sendo o que já são17. Na relação discursiva estabelecida entre remetente e destinatário, figura-se a esfera pública do Império como totalidade místico-jurídica de indivíduos, estamentos e ordens sociais hierarquicamente subordinados ao rei. Na fórmula “Alguém diz algo sobre alguma coisa para alguém”, “dizer algo sobre alguma coisa” corresponde, basicamente, a atribuir significação e sentido a um tema recortado de um referencial discursivo determinado. Lingüisticamente, a fórmula implica três operações: a seleção, a nomeação e a classificação de referências; a significação recortada de um campo semântico específico para defini-las; o sentido dado às referências e à significação segundo uma posição interpretativa particular. Retoricamente, a fórmula indica os tópicos ou lugarescomuns dos gêneros da inventio ou invenção do discurso; da dispositio ou disposição de suas partes seguindo preceitos da ars dictaminis; e da elocutio ou sua elocução com palavras de sentido próprio e figurado. Dizendo de outro modo: a fórmula indica a seleção, feita pelo remetente, de res ou tópicas indefinidas da inventio do gênero familiar ou negocial. A “questão indefinida” é o argumento genérico ou lugar-comum que o remetente aplica para classificar e ordenar a matéria da carta, particularizando-o semanticamente com “questões definidas”, que extrai dos discursos das instituições e eventos de seu tempo, dispondo-os em enunciados de sentido próprio e figurado. Nas cartas, é possível indicar os seguintes estratos:

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Cf. Merlin, Hélène. Public et Littérature en France au XVIIe Siècle. Paris, Les Belles Lettres, 1994, pág. 30.

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1o. Os lugares-comuns de gênero deliberativo, judicial e demonstrativo de cartas familiares e negociais, aplicados como “questões indefinidas” ou argumentos gerais para classificar e ordenar as matérias relativas à ação do Império português no Brasil, no Maranhão e Grão-Pará, na Ásia, na África e na Europa. 2º. Os temas selecionados dos discursos contemporâneos e aplicados como “questões definidas” que preenchem semanticamente as “questões indefinidas” no ato em que o remetente escreve as cartas: guerra contra os holandeses no Nordeste do Brasil; escravidão de africanos; defesa do monopólio jesuítico da administração das aldeias indígenas do Maranhão e Grão-Pará; negociações diplomáticas com a França e os Estados Gerais holandeses; negócios das companhias de comércio das Índias Ocidentais e Orientais; conspiração contra a Espanha; conflitos com colonos escravistas; capitais judaicos e negociações com judeus e cristãos-novos; oposição ao Santo Ofício da Inquisição; celebração dos reis Bragança como escolhidos de Deus; interpretação profética das trovas do Bandarra; profecia do Quinto Império; notícias sobre a publicação dos sermões; polêmicas com jesuítas favoráveis à escravização de índios por bandeirantes paulistas etc. o 3 . Os estilos – simples, médio, humilde, engenhoso etc. – aplicados como adequação da escrita ao gênero da carta, das palavras aos lugares-comuns e às questões definidas, às circunstâncias, às pessoas e às posições sociais do remetente e destinatário. 4o. A interpretação ou o sentido que o remetente propõe para os enunciados. Nas cartas, é corrente a definição ciceroniana da história como magistra vitae, mestra da vida; e, fundamentalmente, o profetismo, efetuado por técnicas retóricas que interpretam teologicamente, recorrendo a autoridades canônicas da Igreja, a história humana como allegoria in factis, alegoria factual patrística e escolástica, com que o remetente estabelece concordância analógica entre eventos ou homens do Velho e do Novo Testamento e homens e eventos do Império Português, propondo-a como figura da Vontade da Providência divina. Obedecendo às prescrições da Companhia de Jesus, Vieira escreve as cartas imitando modelos de gramática e retórica do Ratio studiorum18. Como Nóbrega, Anchieta, Luís da Grã, Cardim, aplica preceitos da ars dictaminis , que definem as partes e os estilos da carta: salutatio (saudação), exordium (captatio benevolentiae) (exórdio, captação de benevolência), narratio (argumentatio) (narração, argumentação), conclusio (conclusão), petitio (petição), subscriptio (assinatura). Ao fazê-lo, evidencia a emulação de preceitos das litterae, de Cícero, Sêneca e Plínio; do tratado de Demétrio de Falero sobre a correspondência; das artes dictaminis antigas, como as de Hugues de Saint Victor e do Anônimo de Bolonha. E, principalmente, dos modelos de correspondência sistematizados por autores dos séculos XVI e XVII - Erasmo de Roterdã, 18

O Ratio studiorum determina que, nas aulas ínfimas e médias de gramática (latim), os alunos devem conhecer as cartas familiares de Cícero, principalmente as de Ad familiares Cf. Ratio studiorum 108: “ O tema para a composição, geralmente em forma de carta, será ditado palavra por palavra em língua vulgar e deve referir-se às regras de sintaxe”.

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Torquato Tasso, Juan Luis Vives, Pierre Fabri, Justo Lípsio, Emanuele Tesauro etc. Antes de tudo, subordina a escrita às diretivas para a redação de correspondência estabelecidas em 1547 pelo Pe. Polanco, secretário de Inácio de Loyola, e às determinações sobre cartas especificadas nas Constituições da Companhia de Jesus, publicadas por Loyola em 1556. Como gênero dialógico, as cartas começam com a salutatio, uma saudação breve. Hierarquicamente decorosa, a saudação é adequada à pessoa do destinatário. É o caso da expressão “Pax Christi”, na Ânua de 1626, dirigida ao Geral da Companhia de Jesus, Pe. Muzzio Vitelleschi, e repetida nas demais cartas para jesuítas. Desde a primeira linha, a escrita firma o contrato enunciativo como diálogo inscrito na sacralidade (no caso da “Ânua”, o noviço Antônio Vieira inscreve o ato da escrita na Presença divina, compondo-o catolicamente como ocasião de iluminação pela Graça, que participa nele e no destinatário como sindérese, que os aconselha contra a heresia dos holandeses invasores da Bahia. Mais tarde, depois de fazer os votos, manterá a fórmula nas cartas para religiosos da Companhia) No caso, como diz Boureau, a forma da carta reproduz a originalidade essencial do Cristianismo, confirmando que a Encarnação fez Deus vir ao mundo entre homens comuns e que, depois da narrativa do que aconteceu uma vez, o Evangelho, eles dispõem de meios simples para transmitir a boa nova por palavras e ações, como apóstolos ou “enviados”19 . Os decoros hierárquicos são aplicados nas formas de tratamento legíveis já na saudação. Uma ordenação filipina de 1597 reservou o tratamento Senhor Dom aos postos mais elevados da burocracia estatal e do clero: arcebispos, bispos, duques e seus filhos, marqueses e condes, o Prior do Crato, vice-reis e governadores, o regedor da justiça da Casa da Suplicação, o governador da Relação do Porto, os vedores da Fazenda, os presidentes do Desembargo do Paço e Mesa de Consciência. Também especificou os usos de tu e vós, de Vossa Mercê, Vossa Excelência, Vossa Reverendíssima, Senhor, Senhora etc. Vieira aplica as formas de tratamento segundo essas praxes: Vossa Mercê para fidalgos; Exmo. Senhor para duques e marqueses, como o Duque de Cadaval, o Marquês de Gouveia, o Marquês de Niza; Senhor, para o rei, Senhora, para a rainha, e S.M. (Sua Majestade) e V.A. (Vossa Alteza) para príncipes, princesas, reis e rainhas; V. Reverendíssima para Provinciais etc. Aplicação técnica, o decoro decorre da adequação semântica dos enunciados ao gênero e às matérias da carta; simultaneamente, da adequação pragmática da enunciação à pessoa do remetente e à do destinatário, o que Vieira opera como várias adequações ou conveniências das coisas da invenção ao gênero da carta e das palavras da elocução às coisas da invenção, produzindo a verossimilhança. Logo, o modo como o remetente saúda o destinatário na abertura da carta e o modo como se despede dele no final evidenciam o decoro próprio da sua posição. No século XVII, manter o decoro é virtude essencialmente política, pois reafirma a naturalidade da hierarquia. A instituição retórica determina que, nas cartas dirigidas a um amigo, as agudezas nos lugares-comuns de afeto devem ser evitadas, porque a brincadeira 19

BOUREAU, Alain. “La norme epistolaire, une invention médievale” In: BOUREAU, Alain; CHARTIER, Roger, DAUPHIN,Cécile; HEBRARD, Jean et al. La Correspondance (Sous la direction de Roger Chartier). Paris: Fayard, 1991. p.130-131.

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não só torna o remetente ridículo e indecoroso, mas também impede a comoção do destinatário, prejudicando o efeito de simplicidade elegante pretendido pela arte. Vieira é sempre grave com amigos graves. É prescrição de Quintiliano: tudo o que se acrescenta à simples linguagem dos afetos destrói a sua força20. Assim como na definição horaciana da virtude estilística, fugere vitium, fugir do vício, o decoro é um diferencial negativo: a simplicidade casual do estilo da carta a Guaquaíba não pode ser o estilo das cartas para D. Afonso VI, nem o das cartas endereçadas aos “irmãos em Cristo”. A aplicação do decoro pressupõe o conhecimento sistêmico das adequações do estilo aos diversos níveis hierárquicos de conveniência discursiva e extra-discursiva. Assim, as cartas aplicam várias prescrições técnicas do decoro. A primeira delas é, evidentemente, a de evitar a perda do decoro. Quando se dirige ao destinatário, o remetente sempre lembra Quintiliano: quis et in qua causa et apud quem et in quem et quid dicat ou quem e sobre o quê e em quem e contra quem e o quê diga21. A enunciação do remetente imita a fala de um padre jesuíta, por isso aplica-lhe os caracteres de um tipo grave, ponderado e prudente, usando de agudezas jocosas somente na conversação da carta familiar, quando responde a um igual. Quando a carta é breve, usa de agudezas proporcionadas ao tema porque, se não houver agudeza, parecerá ter sido escrita só para dizer as coisas (res) da invenção. Por exemplo, em uma carta de 23/6/ de1683, afirma com um trocadilho que as frotas que levam o açúcar da Bahia para Lisboa vão mais carregadas de “queixas” que de “caixas”. E, numa carta para o Marquês de Niza: “V. Exa. perdoe o riscado, porque nos dizem que com as tropas da campanha há perigo nas postas, e quis antes riscar que arriscar”22. Mas evita a agudeza de palavras na carta negocial de tema sério, como as de gênero deliberativo e judicial em que propõe para o destinatário, geralmente pessoa de condição superior, a decisão sobre assuntos proféticos e políticos relativos ao futuro do Império ou ao julgamento de ações e de homens que as executaram. A prescrição determina a agudeza jocosa em cartas tratando de assuntos amenos ou ligeiros que, por isso, incluem-se no gênero demonstrativo ou sofístico, composto para a ostentação (ad ostentationem compositum), pois visa o prazer dos destinatários (solam petit audientium voluptatem)23. Mas Vieira a evita no gênero doutrinário puro ou didático. É o caso das exposições dissertativas ou doutrinárias da sua correspondência negocial, como na carta de 1659 para o Pe. André Fernandes. No caso, o remetente sustenta a persona grave de um teólogo que, mestre versado em hermenêutica bíblica, recita as autoridades patrísticas e escolásticas, além da traditio reconfirmada no Concílio de Trento, quando estabelece as concordâncias analógicas da alegoria factual entre os textos dos Testamentos e dos doutores da Igreja, os sacramentos da Igreja e as trovas do sapateiro Bandarra. Deve, por isso, manter-se alheio a brincadeiras. Se Plutarco escrevesse a vida de Alexandre com agudezas jocosas, dizem os retores antigos conhecidos de Vieira, o argumento heróico seria ridículo. Em todos 20 21 22 23

Cf. Quintiliano. De inst. orat., XI, I, 52. Quintiliano , De inst. orat., VI, 3. Vieira refere-se às 22 linhas riscadas na carta de 15/6/1648 para o Marquês de Niza. Quintiliano De inst. orat., VIII, 3, 11.

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os casos, o uso diferencial dos decoros evita justamente ferir o decoro para não prejudicar o provável, ou seja, a verossimilhança. Um exórdio segue a saudação. Nele, quase sempre se faz referência ao ato de escrever a carta, fazendo-se também pequenas considerações, prescrições e resumos. Por exemplo: “Exmo. Sr.- A duas de V.Exa. devo resposta, mas acho-me ainda com tão pouco cabedal de saúde, que não sei se poderei responder a ambas: as sangrias foram só quatro, mas a fraqueza é de muitas mais”23; “Senhor.- Meu Príncipe e meu senhor da minha alma.- Pelos avisos que vão a S.M. entenderá V.A. com que coração escrevo esta, e muito mais com que raiva e com que impaciência, vendo-me preso e atado para em tal ocasião ir-me deitar aos pés de V.A., e achar-me a seu lado em todo o perigo.”24; “Pax Christi. Padre e senhor meu.-Exceta a carta a S.A., esta é a única que escrevo a Portugal, e é razão eu o faça assim, porque a singularidade desta lembrança mostre que não desdiz do afeto que sempre conheci dever a V. Revma., e eu me não descuidarei de lho rogar assim, pedindo a V.Revma. me não falte com a mesma lembrança em suas orações e sacrifícios, de que agora tenho mais necessidade”25 No exórdio, é corrente o lugar-comum da captatio benevolentiae breve, que consiste de pequenas referências aos pecados, fraqueza, doença, incompetência e inabilidade do “eu” do remetente, inventado com o éthos de modéstia afetada que o faz menor que as forças exigidas pelas tarefas evangélicas e políticas e que, assim, também se heroiciza no ato pela sua persistência na imitação de Cristo e pela sua reiteração dos laços de submissão, segundo um típico topos da sublimitas in humilitate. O “eu” do remetente declara-se por meio do lugar-comum “o menor dos servos de Deus” ou de palavras de ordem da Companhia de Jesus, às quais afirma obedecer totalmente. Pela obediência total, demonstra sua subordinação perfeita como soldado de Cristo, segundo os dois lemas correntes na Ordem : Perinde ac cadáver (Até à morte) e Na Companhia só se podem desejar duas coisas, a cozinha ou a China. O modelo do padre jesuíta é, nada mais, nada menos, Cristo; com ele, imita-se o éthos do ardor de uma fé que se deseja imbatível, à medida mesma que o “eu” se figura como fraco, incompetente, inábil ou pecador. O conceito de pecado é, aliás, o limite a partir do qual se determina o sentido da ação. O pecado é causa sempre denegada; mas, pressuposta porque denegada, permite que o remetente postule com firmeza que a natureza humana é perfectível porque é mortal. É da contínua referência ao pecado que extrai a força que o move: seu discurso é encenado como luta perene do auto-controle das paixões direcionadas para obter os fins últimos da “razão de Estado” do Império. Assim, todos os afetos do remetente são empenhados de modo útil, enquanto ele sofre e faz o destinatário sofrer a catarse propiciada pela narração de seus empenhos físicos e morais.

23 24 25

Carta de 3/8/1648 ao Marquês de Niza. Carta de 23/5/1650 ao Príncipe D. Teodósio. Carta de 25/12/16522 ao Pe. André Fernandes, SJ.

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As cartas são modeladas, por isso, como pragmática em que se aplicam os lugares comuns de captatio benevolentiae nos quais o remetente se constitui a si mesmo como prudência, humildade e gravidade. Por vezes, quando o destinatário é um superior da Companhia, como o Pe. Muzzio Vitelleschi; um fidalgo, como o Marquês de Niza, ou pessoas da casa real portuguesa, como D. João IV e o príncipe D. Teodósio, o lugar de exórdio estende-se num ato de contrição em que, alegando sua insuficiência, o remetente formaliza o discurso no sermo humilis, propondo que em todas as ocasiões da vida sua obediência foi, é e será irrestrita. Como diz na carta de 27/1/1648 ao Marquês de Niza: [...] não me permitiu o meu zelo, nem a confiança que V. Exa. faz de mim, deixar de escrever estas mal entendidas razões, assim como me vieram à pena, se bem não tenho aqui outro cuidado. V.Exa., quando as ler, me perdoará a prolixidade, que o ânimo bem sabe V. Exa. que é de obedecer e servir a V.Exa., e desejar as maiores conveniências do serviço de S.M.

A carta compõe, simultaneamente, a expectativa plausível do destinatário acerca do que é dito e a antecipação do remetente, que lhe fornece código e orientação como uma verossimilhança artificial que atende à expectativa. Vieira sempre demonstra a idéia ciceroniana do De oratore: a tarefa básica do discurso é demonstrar a qualidade da matéria tratada. O que faz de um ponto de vista que, sendo especificamente retórico, nunca se dissocia do pensamento prudencial característico da ética escolástica que orienta sua prática. No caso das cartas, o “eu” da enunciação vê as ações que narra de uma perspectiva sempre prudentemente empenhada, favorável ou desfavorável às causas que são debatidas. Por exemplo, a “esperança” do sucesso das negociações com a França e a Holanda, mesmo nos momentos de grande desânimo; ou a “antipatia” pelos colonos do Maranhão, censurados como imorais e pecaminosos. No artifício da falta de ordem e de ornatos, a escrita é modelada como adequação do estilo à figuração de uma fala como imago ou “pintura” apta a mover o destinatário em relação à causa defendida ou atacada. Para tanto, é escrita como imitação verossímil de uma presença humilde agindo prudentemente orientada pela gravidade do que expõe. Observa-se assim, nas cartas para outros jesuítas, a reiteração de que a Companhia é um único “corpo místico” unificado na vontade de integração de seus membros, aristotelicamente todos amigos uns dos outros porque, pelo controle das paixões, abrem mão de toda veleidade pessoal e atingem o auto-domínio, a concórdia e a paz necessárias para o perfeito funcionamento da Ordem. Às vezes, a carta também é escrita reciclando-se, na sua entrega, o costume antigo da comunicação oral do seu conteúdo, fazendo-se o portador lê-la ou complementá-la com informações, como um “núncio”. Nas instruções recebidas pelo Marquês de Niza, quando Vieira vai à França pela primeira vez, o próprio Vieira é uma “carta viva” enviada pelo rei D. João IV. A narratio, ou narração, apresenta várias matérias justapostas, como o decoro do gênero determina. Cada uma delas costuma ter unidade de estilo, de significação e de sentido, o que permite que sejam isoladas e retomadas em cartas posteriores. Desta maneira, pode-se tam-

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bém traçar o desenvolvimento temporal de questões particulares segundo o eixo cronológico da datação dos papéis: por exemplo, as viagens de Vieira, as negociações diplomáticas com a França e os Estados Gerais holandeses, as decepções e doenças, as informações sobre conflitos com coloniais escravistas, as referências aos capitais judaicos, à crise da lavoura açucareira do Nordeste etc. A justaposição, na mesma carta, de vários incisos coordenados e sintaticamente completos produz a variedade das matérias tratadas. A variedade é unificada pela interpretação, aqui proposta genericamente como “política católica”: toda variação de assuntos e temas é feita como analogia e semelhança de um mesmo princípio espiritual que a lineariza em outro nível superior de sentido. Nele, opera a aequitas ou a equidade da prudência do remetente, como doutrina do direito e do dever, que a carta evidencia na prudência decorosa do éthos da enunciação. Assim, o remetente também se faz “núncio” do fundamento sagrado por meio de duas ações discursivas correspondentes, descrição e narração. Na variedade dos assuntos, predominam em Vieira os temas negotiales. Por outras palavras, suas cartas também são epístolas, gênero tratando de matéria argumentativa séria. É o caso de suas muitas cartas para Provinciais da Companhia de Jesus, da carta de 1659 para o Bispo do Japão, da Carta Apologética para o Pe. Iquazafigo e, ainda, de cartas para o rei D. João IV, em que propõe medidas a serem adotadas na missão do Maranhão e Grão- Pará. Na epístola, a brevidade, virtude da carta familiar, é substituída pela grande extensão e variação dos assuntos determinadas materialmente pela necessidade de se aproveitarem todas as ocasiões para fornecimento de informações abundantes. Sendo às vezes trocada com longos intervalos, a correspondênia depende de improváveis chegadas e partidas de navios, além de estar exposta a diversos perigos. Deste modo, a falta de unidade temática da variação dos assuntos tratados é justificada em outro nível de aptidão, que evidencia a adaptação dos procedimentos retóricos às circunstâncias materiais da redação e remessa da carta. Da mesma maneira, a grande clareza do estilo aplicado em cada parte isolada do escrito constrói o pressuposto, na dispersão analítica dos enunciados, de que a ausência do remetente na recepção não pode permitir dúvidas no destinatário. A clareza é, por isso, modo de prever, produzir e suplementar a ausência, entendendo-se o seu decoro como urbanidade, cortesia e caridade do destinador atento à conformação do destinatário. Fazendo-se uma descrição genérica da narração na correspondência de Vieira, podese dizer que apresenta dois grandes tipos de enunciados, descritivo-narrativos e prescritivos.Os enunciados descritivo-narrativos figuram os temas, compondo cenas, quadros, ações, seqüências, eventos e retratos justapostos e encadeados segundo a linearidade de “começomeio-fim”. Evidentemente, quando a carta faz referência a um assunto já tratado em carta anterior, a narratio pode começar em medias res ou, ainda, ser iniciada por um pequeno resumo que recorda as principais circunstâncias da ação já narrada ou da situação anterior em que foi escrita. Na narração, prescrições do gênero das crônicas e cronicões, que montam o discurso como somatória de enunciados justapostos e coordenados, evidenciam o perfeito domínio da técnica adequada para construir a memória dos eventos interpretando-a analogi-

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camente, segundo a racionalidade escolástica. Por ter a similitude como fundamento, o enunciado permite que se projete em cada elemento novo, justaposto ou coordenado, a unidade comum da Significação transcendente, como luz difusa da Graça que se espelha e refrata neles, enquanto os absorve em sua Providência.Além de descrições, a carta faz narrações aplicando uma memória de casos, caracteres e tipos exemplares do costume (consuetudo) de autoridades em que já foram usados na constituição de ações imitadas e particularizadas semanticamente pelo referencial ou discursos dos assuntos contemporâneos.Domina, no caso, o conceito ciceroniano da história como magistra vitae. O conceito prevê a imitação de modelos de bom desempenho ético da ação, interpretando-se tipologicamente, como alegoria factual, a diferença temporal do presente. Como se dá nos autos de Anchieta, em que Lourenço ou Sebastião, mártires cristãos, alegorizam os jesuítas, enquanto franceses calvinistas que invadem a Guanabara são prefigurados por Décio ou Valeriano, imperadores pagãos que supliciaram os Santos cuja fábula se extrai da Legenda Aurea, de Varagine27, a carta de Vieira costuma apresentar diversos eixos narrativos, que figuram temporalidades específicas de vários eventos simultâneos do século XVII. Escrita como um arquivo deles, a carta os unifica por meio do ponto de vista institucional do projeto da Companhia de Jesus, fundamentado tipologicamente pela analogia escolástica como realização histórica do projeto divino para o tempo. Evidentemente, tanto a descrição quanto a narração não são técnicas neutras, pois são perspectivadas, pressupondo a mediação já referida das categorias teológico-políticas do remetente. A segunda classe de enunciados é a dos enunciados prescritivos. Eles fornecem ao destinatário a orientação pragmático-semântica sobre o modo como deve agir, incorporando o que é dito, ou entender o que é comunicado. Geralmente, a enunciação das cartas quase não os discute, evidenciando que remetente e destinatário consideram a prescrição óbvia, natural ou universal. Como ponto de vista particular do remetente, os critérios de avaliação metaforizam discursos de um lugar institucional, “Companhia de Jesus”, em que se articulam os paradigmas teológico-políticos, éticos e jurídicos interpretativos dos enunciados tidos como análogos da sua Causa Primeira. A verdade do dogma católico, a crença na justiça de evangelizar os índios, o silêncio sobre a escravidão negra, a justiça da luta portuguesa contra a Espanha e os Estados Gerais holandeses etc. aparecem contrapostos à heresia calvinista ou às práticas bárbaras de índios como evidência indiscutível de que o remetente e o destinatário participam de uma razão universal, lógica, justa e caritativa. A lei natural da Graça inata é um dos principais critérios aplicados à interpretação dos temas da correspondência, como uma teologia cujas formas reveladas se expressam nas leis positivas, justas e imperativas do Império. A forma positiva ou institucional justa das leis é, segundo o remetente, a das leis portuguesas fundadas no Direito Canônico fixado em bases escolásticas e aplicado pelos funcionários reais e pelo padroado. A questão da lei natural é 27

Cf., por exemplo, ANCHIETA, José de. Auto de São Lourenço. In: ANCHIETA, P. Joseph de S.J. Teatro de Anchieta.

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nuclear na correspondência de Vieira. Ela lhe permite determinar não só o que é legal, mas principalmente o que é legítimo nos assuntos de que trata, em termos ético-políticos fundamentados na teologia católica da lei eterna. Desta maneira, a aequitas ou eqüidade éticoretórica da constituição do caráter prudente da enunciação é política, observando-se que a unidade do sentido teológico geral da ação é distribuída nos enunciados em feixes de codificações institucionais que a atualizam. Com a aplicação do procedimento, a enunciação também especifica o estado deliberativo dos temas, discutidos em termos de previsão da ação futura. Aqui, como qualidade moral projetada participativamente nos atos enunciativos e nos enunciados da carta, o éthos do remetente desenha-se na escrita como um análogo do universal do sublime da Fé já prefigurado nos casos retóricos que, ao serem repetidos, tornam não só legal, mas principalmente legítima, a decisão a ser tomada 28. Na carta, tal universalidade é empenhada nas aplicações práticas, específicas da devotio moderna jesuítica: proposta como exemplaridade católica das boas obras, deve difundir-se urbi et orbe, como propaganda do sublime da Fé & da força do Império figurados em seu éthos. Como diz Vieira, em 1655: “Os de lá com mais passos, os de cá com mais paço”. Assim, tratando de questões do Estado do Brasil e do Maranhão e Grão- Pará, como a escravidão indígena e a falta de moeda circulante, ou questões da política européia, como a guerra com a Espanha, a aliança com a França e a ação do Santo Ofício da Inquisição, as cartas se posicionam nos grandes debates teológico-políticos que, no século XVII, constituem os Estados modernos e a doutrina católica da monarquia portuguesa em choque direto e indireto com Roma e outras potências.

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“Universal”, neste passo, como na Poética: a espécie de coisa que um tipo determinado de um gênero determinado deve dizer ou fazer segundo a probabilidade e a necessidade.

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