Educação E LinguagEns

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Educação e Linguagens

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Conselho Editorial: Ana Maria Haddad Baptista (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP) Catarina Justus Fischer (Doutora em História da Ciência/PUC-SP) Marcela Millana (Doutora em Educação/Universidade de Roma III/Itália) Márcia Fusaro (Doutora em Comunicação e Semiótica/PUC-SP) Vanessa Beatriz Bortulucce (Doutora em História Social/UNICAMP) Ubiratan D’Ambrosio (Doutor em Matemática/USP)

Big Time Editora Ltda. Rua Planta da Sorte, 68 – Itaquera São Paulo – SP – CEP 08235-010 (11) 2286-0088 | 2307-3784 | (11) 97354-5870 (WhatsApp) [email protected] www.bigtimeeditora.com.br

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Organizadores

Ana Maria Haddad Baptista José Carlos Freitas Batista Ubiratan D’Ambrosio

Educação e Linguagens

São Paulo | Brasil | Janeiro 2017 1ª Edição

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BAPTISTA, Ana Maria Haddad; BATISTA, José Carlos Freitas; D’AMBROSIO, Ubiratan (Orgs.). Educação e Linguagens – 304 pp. – São Paulo: BT Acadêmica, 2017. ISBN 978-85-9485-018-8 1. Educação 2. Linguagens 3. Linguagem e literatura 4. Arte-Educação I. Título Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Educação 2. Brasil: Linguagens 3. Linguagem e literatura 4. Arte-Educação I. Título

Coordenação editorial: BT Acadêmica Diagramação: Marcello Mendonça Cavalheiro Arte da capa: Rose Marie Silva Haddad / Equilíbrio Refletido Revisão: Autores

Nota: Dado o caráter interdisciplinar da coletânea, os textos publicados respeitam as normas e técnicas bibliográficas utilizadas por cada autor.

TODOS OS DIREITOS RESERVADOS. Proibida a reprodução total ou parcial, por qualquer meio ou processo, especialmente por sistemas gráficos, microfílmicos, fotográficos, reprográficos, fonográficos, videográficos. Vedada a memorização e/ou a recuperação total ou parcial, bem como a inclusão de qualquer parte desta obra em qualquer sistema de processamento de dados. Essas proibições aplicam-se também às características gráficas da obra e à sua editoração. A violação dos direitos autorais é punível como crime (art. 184 e parágrafos do Código Penal), com pena de prisão e multa, busca e apreensão e indenizações diversas (arts. 101 a 110 da Lei 9.610, de 19.02.1998, Lei dos Direitos Autorais).

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Sumário Prefácio............................................................................................................... 7

AS VOZES DA MÍDIA E A UTOPIA POLIFÔNICA DE BAKHTIN....................9

Adriana Nadja Lélis Coutinho

CINEMA DOCUMENTÁRIO. EXPERIÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO E CONVERGÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO MIDIÁTICANO ENSINO SUPERIOR.....25

Aguinaldo Ricciotti Pettinati Filho Juan Guillermo D Droguett

A LINGUAGEM DA FILOSOFIA...............................................................................43

Ana Maria Haddad Baptista

EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO “INTERNETÊS”.............................................................................................................51

Antonio Carlos Rodrigues dos Santos

EDUCAÇÃO INTERATIVA NA LINGUAGEM DOS “NATIVOS DIGITAIS”......61

Alberto Cabral Fusaro

A LINGUAGEM DA PSICANÁLISE..........................................................................77

Heloisa Gurgel Rosenfeld

SEMÂNTICA DA MODA: CULTURAS, LINGUAGENS E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO.......................................................................................................89

Camila Maria Albuquerque Aragão Manuel Tavares

MÚSICA LINGUAGEM OU LINGUAGEM MÚSICA: POR QUE MÚSICA?.......105

Catarina Justus Fischer

LINGUAGEM E RESISTÊNCIA: LUANDINO VIEIRA E SUA NARRATIVA DOCEMENTE AMARGA............................................................................................117

Cláudia Cristina de Oliveira

LINGUAGEM CORPORAL, POSSIBILIDADE DE ENCONTRO NA SUA TOTALIDADE................................................................................................................133

Claudia Nolla José Carlos de Freitas Batista

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O MONTE CASTELO QUE HABITA A LINGUAGEM POÉTICA DE RENATO RUSSO.............................................................................................................................143

Daniela Oliveira Albertin Sandra Delmonte Gallego Honda

A LINGUAGEM DA BIBLIOTECA............................................................................161

Denizete Lima de Mesquita

LINGUAGENS EM (CON)FLUÊNCIA: LITERATURA E MÚSICA EM DIÁLOGO NA CONTEMPORANEIDADE..................................................................................175

Diana Navas Telma Ventura

CECÍLIA MEIRELES, A MAGIA POÉTICA NA EDUCAÇÃO.............................191

Francisca Eleodora Santos Severino

A LINGUAGEM DAS RUAS – MANIFESTOS URBANOS....................................201

Jefferson Serozini

IDAS E VINDAS DA REALIDADE À FICÇÃO: A PRÁTICA DO CINEMA NA SALA DE AULA.............................................................................................................221

Márcia Fusaro

PALIMPSESTOS NA TELA: A LINGUAGEM DA ADAPTAÇÃO CINEMATOGRÁFICA.................................................................................................237

Márcia M. Pereira

ENTRE ENTRETER E INSTRUIR: LINGUAGEM E LITERATURA INFANTIL................................................................................................ 255

Maurício Silva

DANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA EXPERIÊNCIA LÚDICA INTERGERACIONAL...................................................................................................267

Mônica de Ávila Todaro

POR QUE UMA MEDIDA PROVISÓRIA?!..............................................................281

Sonia Regina Albano de Lima

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Prefácio - 7

Prefácio Linguagem e pensamento. Pensamento e linguagem. Dimensões inseparáveis do ato da comunicação. A linguagem, sabe-se, é inseparável do ser. Traduz em todas as suas modalidades uma expressão e, seguramente, um ritmo. A linguagem verbal busca, quer na fala, quer na escrita, formas de exteriorização. Conceitos abstratos e tantas outras coisas. A linguagem verbal nomeia por meio da palavra. A linguagem musical busca expressões mais íntimas e sensíveis do ser. A linguagem cinematográfica é a fotografia em movimento. E como tal, busca, entre outras coisas, atingir formas de expressão que indicam uma outra maneira de se ver o mundo. Enfim, cada linguagem expressa o mundo sob uma perspectiva diferente. Os textos desta coletânea, em seu conjunto, têm como principal objetivo fundamentar diversas linguagens. Nessa medida, demonstrar as diversas perspectivas que podemos ter diante do universo que nos rodeia. Os organizadores Ana Maria Haddad Baptista José Carlos Freitas Batista Ubiratan D'Ambrosio

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AS VOZES DA MÍDIA E A UTOPIA POLIFÔNICA DE BAKHTIN Adriana Nadja Lélis Coutinho1 Vozes veladas, veludosas vozes, Volúpias dos violões, vozes veladas, Vagam nos velhos vórtices velozes Dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas. Tudo nas cordas dos violões ecoa E vibra e se contorce no ar, convulso... Tudo na noite, tudo clama e voa Sob a febril agitação de um pulso. Cruz e Sousa

1. Introdução A compreensão do mundo contemporâneo envolve, em alguma medida, o reconhecimento de que a mídia atua de forma decisiva para a cristalização no imaginário coletivo daquilo que se entende por realidade. E com o advento da internet e a ampliação exponencial das estratégias de interação mediadas por essa tecnologia, a percepção dos sentidos produzidos por essa esfera da comunicação e as estratégias de linguagem pelas quais ela produz e faz circular seus sentidos são prerrogativas indispensáveis para se pensar a educação na atualidade. Nesse sentido, considera-se que uma investigação pertinente sobre a linguagem da mídia deve envolver o reconhecimento das vozes com as quais essa instância organiza seus discursos, bem como as tensões e articulações resultantes dos diálogos que oportuniza. Para tanto, recorre-se, neste ensaio, a um conceito ainda polêmico no campo da linguagem – a Polifonia –, proposto por Bakhtin a partir da análise da produção literária de Dostoiévski. 1

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Doutora em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mestra em Ciência da Informação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), graduada em Letras pela Universidade Estadual do Piauí (UESPI) e em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Piauí (UFPI); professora titular do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Piauí (IFPI)

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Para enveredar pelo universo dialógico da teoria bakhtiniana, no entanto, é necessário, antes de tudo, assumir posição no diálogo, tomar uma palavra que responde a outras e que não somente responde, mas também interroga, e ainda ser capaz de permitir que o diálogo permaneça aberto, o que exige a consciência vigilante de que o texto é constitutivamente inacabado, e de que nada se pode ou se deve fazer para mudar tal estatuto. Se a questão se fecha, ou simula um fechamento ilusório, o discurso não é polifônico, não se inscreve, portanto, no ideal vislumbrado pelo Mestre. Este ensaio, portanto, aceita e deseja participar do diálogo como uma voz que, inspirada na voz do autor no romance de Dostoiévski, deixa que as personagens falem, e que participa do diálogo, não como espectador passivo, mas com um ativismo dialógico, que se fundamenta no respeito “à consciência viva e isônoma do outro” (BAKHTIN, 2003, p. 339). Assim como a voz do herói vislumbrada na poética de Dostoiévski, essa voz não pode gritar, não pode vencer. Por isso, o objetivo (ou a utopia) deste ensaio, mais do que simplesmente defender uma posição sobre a questão, é permitir que essa voz se exponha à voz do outro, que seja questionada, desvelada, desdobrada. Partindo-se da contribuição da teoria de Bakhtin para os estudos de linguagem, busca-se discutir possibilidades de observar os objetos da mídia à luz dos postulados desse autor, em especial o conceito de polifonia. Percebe-se, entretanto, a complexidade desse conceito, tal como o formulou esse autor, e a dificuldade em identificá-lo em textos de mídia, onde os filtros são elementos constitutivos, mesmo considerando-se as novas mídias interativas, em que a autonomia de um autor/mediador é cada vez mais relativa. Para tanto, pretende-se revisitar o conceito de polifonia, à luz da definição do próprio autor, buscando extrair dele suas características fundamentais, o que se fará no capítulo 2. Em seguida, no capítulo 3, propõe-se uma comparação com a proposta de Ducrot, autor da teoria polifônica da enunciação, de modo a identificar possibilidades de utilização desse conceito em objetos alheios ao texto literário. O capítulo 4 será destinado a uma tentativa de vislumbrar nos novos objetos da comunicação, como as mídias interativas e as redes sociais, possibilidades de realização da utopia polifônica de Bakhtin. Concluindo, serão esboçadas as considerações finais.

2. Nas sutilezas do conceito A riqueza e a variedade temática do pensamento bakhtiniano representam avanços incalculáveis e inquestionáveis para os estudos da linguagem. No entanto, o reconhecimento tardio, devido às circunstâncias políticas que marcaram a trajetória intelectual de Bakhtin, e o descompasso na recepção de sua

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obra no ocidente, provocado pela tradução e divulgação dos escritos desse autor em momentos cronologicamente diversos da ordem em que foram produzidos, ocasionaram uma série de mal-entendidos e deixaram lacunas significativas na compreensão e na divulgação de valiosos conceitos na comunidade científica brasileira, dentre os quais o de polifonia. Como grande parte dos conceitos bakhtinianos popularizados no mundo ocidental, a noção de polifonia disseminou-se na esfera acadêmica brasileira relacionada à presença de vozes diversas no interior do discurso, fossem elas explicitamente mostradas ou apenas subentendidas. Tal compreensão levou à utilização desse conceito como sinônimo de dialogismo, de intertextualidade ou de heterogeneidade discursiva, por exemplo, sem que se ressaltasse o caráter ideológico que tais vozes revelam. Como acrescenta Tezza (2006), os estudos bakhtinianos sobre a obra de Dostoiévski provocaram uma universalização do conceito de polifonia como uma espécie de “positivo literário”, identificando-o como algo essencialmente bom. Para esse autor: Aconteceu uma interessante fusão entre dois planos do conhecimento: o que era, por princípio, a definição técnica de um gênero passou discretamente a ser entendido como um valor desejável na vida: nós devemos ser polifônicos. (TEZZA, 2006; p. 237)

Para Tezza (2006), o próprio Bakhtin é também responsável por tal fusão, ou confusão, como denunciam alguns críticos. Como ele explica, em Problemas da poética de Dostoiévski, o autor faz uma exortação direta e incisiva para que se abandonem os hábitos monológicos, contrariando o tom técnico e impessoal que normalmente se impõe em sua linguagem. Tal fato, associado a sua história pessoal e ao contexto da União Soviética naquele momento, são, para Tezza (2006, p.237), “um convite irresistível a especulações”. A polifonia bakhtiniana, de fato, origina-se da presença de vozes ideológicas distintas no discurso, sem que se possa assegurar a prevalência de uma dessas vozes sobre as demais. Como explica Bezerra (2005), Bakhtin formulou uma tipologia universal do romance, fundamentada nas modalidades monofônica e polifônica. Como ele esclarece, o dialogismo e a polifonia associam-se ao caráter amplo e multifacetado do universo romanesco, à presença de grande número de personagens, à capacidade do autor para “recriar a riqueza dos seres e caracteres humanos traduzidos na multiplicidade de vozes da vida social, cultural e ideológica representada.” (p. 192) No monologismo, por outro lado, o outro aparece como mero objeto, resultado da “reificação” (coisificação) do homem, produto da sociedade de classes

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e do capitalismo. Para Bakhtin, como ilustra Bezerra (2005), o autor do monólogo assume para si o processo de criação, e não incorpora, nesse modelo, a consciência responsiva e isônoma do outro. O monólogo é visto como algo acabado, é surdo à voz do outro, ignorando sua força decisória. É por isso que, para Bakhtin, como acrescenta o autor, foi na era capitalista, e mais especificamente na Rússia, que o romance polifônico pôde realizar-se, uma vez que “a essência conflituosa da vida social em formação não cabia nos limites da consciência monológica segura e calmamente contemplativa e requeria outro método de representação.” (p. 193). Por isso, na representação literária, essa transição do monologismo para o dialogismo, cuja forma suprema é a polifonia, representa a libertação do indivíduo da consciência do autor e sua instituição como sujeito de sua própria consciência. Tal transição exige uma postura radicalmente nova do autor na concepção do personagem, restituindo ao homem reificado sua subjetividade. O conceito de polifonia, vale enfatizar, foi formulado a partir da observação do texto literário. Analisando um fenômeno peculiar na obra de Dostoiévski, especificamente relacionado à relação entre o autor e as personagens, incluída aí a constituição do herói dostoievskiano, Bakhtin utilizou uma metáfora musical para descrever um tipo de autoria que se dá pela orquestração de uma multiplicidade de vozes distintas e potencialmente equânimes. É importante compreender a metáfora proposta por Bakhtin, que escolhe precisamente o termo polifonia por designar o fenômeno musical em que várias vozes ou melodias se sobrepõem simultaneamente, em contraposição a uma unidade rítmica padrão, na qual as vozes executam o mesmo movimento melódico, unissonamente, ou então são executadas como acompanhamento a uma melodia à qual se subordinam. Em Dostoiévski, de modo semelhante ao estilo musical da época medieval, a voz do autor não se sobrepõe às vozes dos personagens que ele cria. Tampouco prevalece um ponto de vista sobre os demais. Como explica Bakhtin (2005, p. 4), comparando esse autor com Goethe em Prometeu: Dostoiévski não cria escravos mudos (como Zeus), mas pessoas livres, capazes de colocar-se lado a lado com seu criador, de discordar dele e até rebelar-se contra ele. A multiplicidade de vozes e consciências imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos seus romances; é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade. Dentro do

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plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante.

Percebe-se, claramente, na explicação do autor, a caracterização desse fenômeno a partir de uma tríade de fatores sem os quais ele não seria possível: equipolência, imiscibilidade e plenivalência. A equipolência acentua especificamente a igualdade de condições para que essas vozes se manifestem, sem que se possa vislumbrar sobrevalência ideológica da voz do autor ou do herói imperando sobre as demais. A imiscibilidade diz respeito à independência que as vozes assumem, umas em relação às outras, garantindo a autonomia de seus pontos de vista. E a plenivalência revela a garantia de que cada voz preserve seu valor pleno, que se manifeste de modo exato, absoluto, sem, contudo se concluir, fechar ou acabar. Analisando o uso do conceito de polifonia, Fiorin (2008, p.82) alerta: Observe-se que polifonia é, então, diferente de dialogismo, heteroglossia e plurivocidade. Dialogismo diz respeito ao modo de funcionamento real da linguagem, que faz um enunciado constituir-se sempre em relação a outro. Heteroglossia e plurivocidade concernem à realidade heterogênea da linguagem e às línguas sociais diversas que circulam numa dada sociedade. A polifonia refere-se à equipolência de vozes. A plurivocidade não implica a polifonia, embora a polifonia acarrete necessariamente a plurivocidade. Confundir essas duas realidades é deixar de apreender a dimensão política das vozes.

2.1. A excepcionalidade do recurso polifônico em Dostoiévski Para Bakhtin (2005), o romance polifônico é uma criação de Dostoiévski. A polifonia é, para esse crítico, a chave artística dos romances do autor. Em sua obra, como pondera o filósofo russo, a voz do herói sobre si e sobre o mundo equipara-se com a voz comum do autor e se coaduna com as vozes de outros heróis, apresentando-se de forma tão plena quanto as demais. É essa multiplicidade de consciências plenivalentes e imiscíveis e sua interação em posição correlata com a voz do autor que constitui, para ele, a ideia criativa de Dostoiévski. Com essa tese, Bakhtin (2005) põe em xeque os estudos até então formulados acerca desse autor, que, como denuncia, foram “incapazes de penetrar na arquitetônica propriamente artística” (p. 6) de suas obras, limitando-se a explorá-las em torno de uma cosmovisão monológica ético-religiosa do autor e do conteúdo de suas obras. Para Tezza (2006), os estudos de Bakhtin identificam na obra de Dostoiévski valores que são considerados por muitos críticos justamente como falhas ou defeitos.

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O que poderia parecer um “defeito formal” em Dostoiévski, o seu suposto “mal-acabamento”, era de fato a expressão de uma literatura cujo centro estava exatamente na ideia do “não acabamento” do homem, um conceito bastante produtivo na visão bakhtiniana do romance. (TEZZA, 2006; p. 236)

A ideia do não acabamento do homem, por si só, implica na destituição do autor de sua onipotência, o que, na história da literatura, até aquele momento, representa uma revolução. De fato, a originalidade de Dostoiévski para o crítico russo não está na apreciação do indivíduo a partir da cosmovisão do autor, mas justamente na reunião de individualidades imiscíveis – livres e independentes do autor –, mas integrantes de seu plano. Como explica Bakhtin (2005; p. 11): Isto, obviamente, não significa que a personagem saia do plano do autor. Não, essa independência e liberdade integram justamente o plano do autor. Esse plano como que determina de antemão a personagem para a liberdade (relativa, evidentemente) e a introduz como tal no plano rigoroso e calculado do todo. A liberdade relativa da personagem não perturba a rigorosa precisão da construção assim como a existência de grandezas irracionais ou transfinitas na composição de uma fórmula matemática não lhe perturba a rigorosa precisão.

É importante destacar que a visão polifônica em Dostoiévski não implica na dissolução da unidade do romance. Tal unidade existe e está acima do estilo e do tom pessoais do autor, não se rompe nem se mecaniza, como esclarece Bakhtin (2005). O autor compara ainda a unidade do romance em Dostoiévski à unidade do universo einsteiniano, ressaltando o relativismo e a complexidade que os aproximam: “É como se os diferentes sistemas de cálculo aqui se unificassem na complexa unidade do universo einsteiniano” (BAKHTIN, 2005; p. 15). O relativismo e a complexidade na polifonia do romance dostoievskiano não refletem passividade e impotência do autor diante das consciências que “orquestra”, como advogaram alguns críticos dessa teoria. Na realidade, como defende Bakhtin (2003), há um tipo particular de ativismo do autor no romance polifônico, de caráter dialógico. O nosso ponto de vista não afirma, em hipótese alguma, uma certa passividade do autor, que apenas monta os pontos de vista alheios, as verdades alheias, renunciando inteiramente ao seu ponto de vista, à sua verdade. A questão não está aí, de maneira nenhuma, mas na relação de reciprocidade inteiramente nova e especial entre a minha verdade e a verdade do outro. O

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autor é profundamente ativo, mas o seu ativismo tem um caráter dialógico especial. [...] Esse ativismo que interroga, provoca, responde, concorda, discorda etc., ou seja, esse ativismo dialógico não é menos ativo que o ativismo que conclui, coisifica, explica por via causal, torna inanimada e abafa a voz do outro com argumentos desprovidos de sentido. (BAKHTIN, 2003; p. 339)

A igualdade e independência das personagens e sua vocação para a liberdade são, no romance polifônico, marcas do projeto de criação literária e participam, portanto, do plano do autor. Nesse sentido, representam, mais do que uma mera concessão do autor, um projeto de coautoria, como ressalta Bakhtin (2003), defendendo que as personagens do romancista russo são espécies de coautores de suas obras. O projeto autoral de Dostoiévski, ancorado na coparticipação ativa dos personagens que caracterizam a polifonia, tal como descrito por Bakhtin, associa-se com a noção do outro defendida por este autor. Como explica Teixeira (2006), o dialogismo bakhtiniano e a psicanálise representam questionamentos radicais à unicidade do sujeito falante – segundo o qual cada enunciado possui um único autor –, uma vez que tais abordagens rejeitam a imagem do locutor como centro e fonte consciente dos sentidos, bem como da língua como instrumento de comunicação desses sentidos. Apesar desse importante ponto em comum, os autores propõem caracterizações distintas do outro. Como acrescenta Teixeira: No entanto, o outro de Bakhtin não se confunde com o Outro lacaniano, noção esta que se fundamenta na concepção de um sujeito dividido, que enuncia, sem saber o que diz, uma fala que diz muito sobre este saber. (...) Em Bakhtin, o outro tem consciência, é sempre “o outro de um outro” (interlocutor, discurso, superdestinatário) [...] O outro de Bakhtin – aquele dos outros discursos, o outro -interlocutor – pertence ao campo do discurso, do sentido construído com as palavras “carregadas” de história. O outro do inconsciente, do imprevisto do sentido, de um sentido “desconstruído” no funcionamento autônomo do significante, que abre dentro do discurso uma outra heterogeneidade – de outra natureza – além da que estrutura o discurso para Bakhtin, está ausente do horizonte deste. (TEIXEIRA, 2006, p.232.)

O outro bakhtiniano, portanto, inscreve-se no discurso dialogicamente. É no romance polifônico que a presença deste outro se faz de forma mais explícita e radical, dada a equipolência e independência que tais vozes assumem

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nessa forma de expressão. Daí a raridade da ocorrência da polifonia e a preciosidade de tal fenômeno na teoria de Bakhtin. O próprio autor manifestou, em seus últimos depoimentos, dificuldade em identificar tal equipolência em obras de outros autores do universo literário. Imaginar a polifonia bakhtiniana em textos não literários, especialmente no campo das mídias no mundo contemporâneo, soa, então, como um sonho impossível, dada a natureza centralizadora dos discursos desse campo. Ocorre que, para além dos arroubos frankfurtianos, é possível vislumbrar a manifestação de vozes dissonantes em textos midiáticos e é necessário investigar sistematicamente como tal fenômeno pode ser descrito. Daí a questão: É possível, respeitando a radicalidade do conceito bakhtiniano, identificar a polifonia nos textos midiáticos? Ou ainda: Há uma alternativa à teoria de Bakhtin para analisar a polifonia em outros objetos, para além do texto literário? O linguista francês Oswald Ducrot é um dos responsáveis pela disseminação do conceito de polifonia no mundo atual. O autor, no entanto, embora retome a teoria bakhtiniana para justificar a denominação, propõe na verdade um novo conceito, o que leva, muitas vezes, ao uso do termo polifonia associado à teoria de Bakhtin, sem que se refira, de fato, à proposta do autor russo. A compreensão da polifonia em Ducrot pode ajudar a elucidar as peculiaridades dessa noção e a problemática que a cerca.

3. A teoria polifônica de Oswald Ducrot Ao propor o esboço de uma teoria polifônica da enunciação, Ducrot retoma a metáfora bakhtiniana, mas o faz sem incorporar suas características essenciais, uma vez que, como ele mesmo argumenta, a teoria de Bakhtin “sempre foi aplicada a textos, ou seja, a sequências de enunciados, jamais a enunciados de que esses textos são constituídos” (DUCROT, 1987, p. 161). A proposta polifônica desse autor, por outro lado, consiste em demonstrar que em um enunciado isolado se pode fazer ouvir mais de uma voz. Ou seja, enquanto Bakhtin trabalha numa perspectiva do texto, com ênfase em aspectos discursivos, Ducrot propõe uma abordagem cuja perspectiva direciona-se para os enunciados, com ênfase em aspectos semânticos. Desse modo, seguindo a mesma tendência dos estudos bakhtinianos e da psicanálise, mas tendo como objetos de análise os enunciados, a perspectiva teórica desenvolvida por Ducrot tem como finalidade principal contestar o postulado da unicidade do sujeito falante, dominante nos estudos do que ele chamou de “linguística moderna”, associados ao comparativismo, ao estruturalismo e ao gerativismo.

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Situando seus estudos no interior da disciplina Pragmática Semântica ou Pragmática Linguística, Ducrot (1988) argumenta que em um mesmo enunciado se manifestam vários sujeitos com status linguísticos diferentes, relacionados a funções também diferentes, a saber: o sujeito empírico, o locutor e o enunciador. O sujeito empírico de um enunciado, como explica Ducrot (1988), é o autor efetivo, o produtor do enunciado, cuja identificação, como ele argumenta, é bastante complexa, não somente pelo fato de que aquilo que as pessoas verbalizam em seus discursos são repetições de outros discursos formulados anteriormente, mas também porque, nas conversações cotidianas, no geral não se faz mais do que repetir o que se acabou de escutar. De todo modo, para Ducrot (1988), como linguista, não é relevante identificar o sujeito empírico do enunciado. Para ele, a determinação do sujeito empírico não é um problema linguístico. Quanto ao locutor, Ducrot (1988) o define como a pessoa supostamente responsável pelo enunciado, a quem se atribui a responsabilidade da enunciação no próprio enunciado, caracterizada por determinadas marcas, como o uso da primeira pessoa. O autor chama a atenção para o fato de que o locutor pode ser completamente diferente do sujeito empírico, pois muitas vezes a pessoa que assume a responsabilidade pelo enunciado nem sempre o produziu, como é o caso de determinados objetos nos quais se escrevem frases orientando o uso, simulando a fala do próprio objeto. Há ainda, segundo ele, enunciados sem locutores, como os provérbios, cuja responsabilidade pode ser atribuída a uma sabedoria coletiva e histórica, situada além de qualquer subjetividade individual. Finalmente, Ducrot (1988) caracteriza a função do enunciador como a origem dos diferentes pontos de vista apresentados no enunciado. Nesse sentido, os enunciadores não se identificam como pessoas, mas como “‘pontos de perspectiva abstratos”’ (p. 20). Como explica o autor, o locutor pode se identificar com algum dos enunciadores apresentados, mas geralmente guarda certa distância deles. É sobre a função do enunciador que se volta a análise da teoria polifônica da enunciação de Ducrot. O humor e a negação, segundo ele, são exemplos nos quais se identifica a presença de mais de um enunciador. Como argumenta Ducrot (1988), o que caracteriza o enunciado humorístico é o fato de apresentar pelo menos um ponto de vista insustentável, absurdo, o qual nunca é atribuído ao locutor. Além disso, no enunciado humorístico não há nenhum ponto de vista oposto ao ponto de vista absurdo. Ele qualifica de irônicos os enunciados nos quais o ponto de vista absurdo é atribuído a determinado personagem a quem se quer ridicularizar. A expressão irônica “Ah, muito bonito!”, por exemplo, apresenta um enunciador que faz uma avaliação favorável da ação à qual se refere, de modo que tal avaliação pareça absurda.

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Essa avaliação, obviamente, não pode ser atribuída ao locutor, que não se identifica com o enunciador favorável à ação apreciada. Há aí, portanto, dois pontos de vista opostos, ou dois enunciadores. Quanto à negação, esse autor apresenta uma definição linguística desse conceito, inspirada em Freud: Diré que en un enunciado negativo no-P, hay por lo menos dos enunciadores: Un primer enunciador E1 que expresa el punto de vista representado por P, y un segundo enunciador E2 que presenta um rechazo de ese punto de vista. Un enunciado negativo es pues una especie de diálogo entre dos enunciadores que se oponem el uno al outro. (DUCROT, 1988; p 23)

O autor segue afirmando que a negação diferencia-se do humor porque, embora também apresente um enunciador que afirma algo inadmissível do ponto de vista do locutor, apresenta também um outro enunciador que contesta esse ponto de vista insustentável. A diferença principal é, pois, o fato de que na negação o enunciado inadmissível aos olhos do locutor é rebatido por um outro enunciador. É o que ocorre, por exemplo, com o título de um artigo jornalístico sobre a guerrilha nas Filipinas: “Niguna potencia extranjera (pienso en la URSS) sostiene a los guerrilleros” (DUCROT, 1988, p 25). Para o autor, esse enunciado apresenta dois pontos de vista: um enunciador E1 positivo, que não pode ser identificado com o locutor, o qual acredita haver uma potência estrangeira sustentando os guerrilheiros, e um enunciador E2 que o contradiz. A negação é, para ele, semelhante a uma peça de teatro, cujo enunciado, a despeito de sua aparência monológica, apresenta um diálogo cristalizado. Nesse diálogo instaurado no interior do enunciado se manifesta a polifonia. Nessa abordagem, no entanto, o conceito de polifonia restringe-se ao nível do enunciado e não implica uma análise da função do autor, como explica Ducrot (1987, p. 169): Ressaltar-se-á que não faço intervir na minha caracterização da enunciação a noção de ato – a fortiori, não introduzo, pois, a noção de um sujeito autor da fala e dos atos de fala. Não digo que a enunciação é o ato de alguém que produz um enunciado: para mim é simplesmente o fato de que o enunciado aparece, e eu não quero tomar partido, no nível destas definições preliminares, em relação ao problema do autor do enunciado. Não tenho que decidir se há um autor e qual é ele.

Percebe-se aí claramente a distância que a polifonia de Ducrot assume em relação ao conceito original, o que permite afirmar que esse autor propõe um

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outro conceito, com a finalidade de observar objetos distintos do que propôs Bakhtin. Não se identificam nessa abordagem os três fatores característicos da polifonia bakhtiniana: a equipolência, a imiscibilidade e a plenivalência, uma vez que não importa para Ducrot se há ou não igualdade de condições para que essas vozes se manifestem, se tais vozes são independentes umas das outras ou se cada voz preserva seu valor pleno. De fato, analisando-se a partir de uma ótica bakhtiniana, poder-se-ia dizer que os enunciados observados por Ducrot na negação e no humor são monológicos, uma vez que sempre apontam para a prevalência ideológica de determinado ponto de vista. O conceito proposto por Ducrot, no entanto, parece ter se popularizado como a noção de polifonia de Bakhtin, o que pode também ajudar a explicar a confusão conceitual no meio acadêmico. Mas, se a abordagem proposta por Ducrot não considera as vozes ideológicas em constante diálogo na arena discursiva, como é possível pensar na polifonia, numa perspectiva semelhante ao que propôs Bakhtin, em novos objetos, especialmente nos textos midiáticos?

4. Rumo à utopia polifônica de Bakhtin: as vozes da mídia A identificação de uma atitude verdadeiramente radical do autor, de permitir que as vozes do mundo se manifestem livremente, sem as amarras que o poder da pena impõe, sem o comando que constrói de forma constitutiva qualquer discurso, na realidade representa uma sintonia fina com a verdadeira utopia de Bakhtin, como destaca Faraco (2003). Há no pensador russo um profundo compromisso com a livre manifestação das consciências, com a liberdade e com a autonomia do sujeito, que não é único nem solitário, mas que se constrói e constrói sua história num grande e ininterrupto diálogo. Como frisa Faraco (2003, p. 72): O diálogo é aí [no Círculo de Bakhtin] mais que apenas uma grande metáfora para tratar de assuntos de uma certa semiótica social, de uma filosofia da linguagem. Bakhtin não é apenas o filósofo das relações dialógicas em sentido amplo; o diálogo é também, no seu pensamento, a metáfora daquilo que poderíamos considerar como sua grande utopia.

A utopia de um mundo polifônico, em que vozes plenivalentes e consciências imiscíveis interagem num diálogo inconcluso, associa-se, como explica Faraco (2003), com a história pessoal de Bakhtin, profundamente marcada pela censura e pelo cerceamento da liberdade, inclusive com a imposição do exílio e a negação à participação na vida acadêmica. Para Schnaiderman (2005), Bakhtin

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deixa uma importante lição “sobre a importância da multiplicidade de vozes em nosso mundo – uma lição essencialmente de afirmação democrática e antiautoritária, partida de alguém que era vítima direta da violência stalinista.” (p. 15). Está claro, vale ratificar, que o conceito de polifonia foi formulado por Bakhtin a partir da observação do texto literário, e especificamente de um autor, Dostoiévski, a quem considera o criador de um novo gênero, o romance polifônico. Como salienta Brait (2009), o conceito de polifonia não foi dado previamente, de modo que pudesse ser aplicado aos textos escolhidos. Para a autora, a obra de Dostoiévski é que levou Bakhtin à concepção do romance polifônico e sua arquitetura. Está claro também que a popularização do conceito não o reproduz em sua radicalidade, o que o torna, como denunciam vários de seus comentadores brasileiros, um conceito avulso. Deve-se argumentar, entretanto, que o horizonte último de Bakhtin é o homem que fala na cultura. Não o herói arquetípico dos poemas épicos, mas o homem que pensa e que se manifesta livremente, sem subordinar-se à imagem objetificada do herói. Na figura do herói bakhtiniano, a palavra sobre si mesmo e sobre o mundo ressoa tão plenamente como a palavra do autor, como pondera Bakhtin (2005). Pode-se afirmar, pelas próprias declarações do pensador russo, que esse autor não pôde testemunhar a realização de sua utopia além do espaço da literatura, e na obra de Dostoiévski, especificamente, como expressou em entrevista a Zbigniew Podgórzec, meio século depois de ter formulado o conceito (TEZZA, 2003). Questiona-se inclusive se tal utopia, pautada na descrição da polifonia como um “positivo literário”, não se inscreve num “dever ser”, tal como a neutralidade científica ou a imparcialidade jornalística, preceitos considerados impossíveis de se realizar plenamente, mas indispensáveis para o exercício das atividades que os propagam. Tezza, inclusive, sugere: O conceito de polifonia é uma categoria não reiterável apesar de toda a aposta de Bakhtin no que ele chama de ‘novo gênero romanesco’, ele mesmo não conseguia encontrar (isso 40 anos depois, em 1974) mais do que dois ou três exemplos de romance polifônico, citando mais obras filosóficas que literárias, Camus em particular. (TEZZA, 2003, p.231) Mesmo que se considere, como defende Tezza (2003), que o conceito bakhtiniano de polifonia seja uma categoria não reiterável, cabe questionar: se o mundo das mídias, tal como o conhecemos hoje, não existia para Bakhtin, é possível imaginá-lo como um lugar de manifestação de seu ideal polifônico? Ou ainda: se a mídia se caracteriza historicamente como um campo de disputa ideológica,

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apresentando-se como espaço de legitimação do poder hegemônico de determinados grupos sociais, como denunciam estudos das mais diversas áreas acadêmicas, como poderia oferecer espaço para a manifestação de vozes sociais tão diversas e em permanente conflito, respeitando os ideais de equipolência, plenivalência e imiscibilidade que o conceito bakhtiniano inclui constitutivamente? A primeira questão põe em evidência um aspecto bastante significativo, que é o fato de que Bakhtin tinha como objeto de observação o texto literário, cujas vozes são orquestradas por um autor, que as cria em função de seu plano. A polifonia não é apenas um efeito de sentido, mas é parte do plano do autor, como o próprio Bakhtin reconhece. Se existem vozes que se fazem ouvir em condições de igualdade, é porque assim o autor projetou, assim desejou, assim decidiu. Nesse sentido, observando o mundo das mídias, mesmo admitindo que as vozes que se podem representar numa reportagem, por exemplo, não são originadas exclusivamente do autor/jornalista, sua manifestação também depende de uma atitude do autor. Nesse caso, o autor seleciona não apenas o que deve ser colocado em pauta e quem pode falar a respeito, mas o que pode aparecer daquilo que foi verbalizado pelo entrevistado. Talvez por isso os textos jornalísticos, no geral, pareçam plurivocais, mas nunca polifônicos. Nesse sentido, pode-se associar o texto canônico de uma reportagem, por exemplo, ao romance monológico descrito por Bakhtin, em que um ponto de vista se manifesta de modo privilegiado. Mas é importante argumentar que, assim como na autoria do romance, o discurso da mídia mobiliza estratégias de delegação de falas, o que, também de modo equivalente, pode ou não implicar em efeitos polifônicos ou mesmo na verdadeira polifonia, como realizada por Dostoiévski. O que se quer defender com isso é que, se no romance dostoievskiano, Bakhtin identifica uma abdicação irrestrita à autoridade, revelada no plano do autor, também no plano do autor do texto midiático existe a possibilidade de delegação de falas no sentido mais radical do termo, entendendo-se que delegar é transmitir poderes, autoridade. Ademais, mesmo considerando, como adverte Tezza (2006), que a renúncia à autoridade pressuposta no romance polifônico implica que o centro significante da linguagem do autor seja colocado na perspectiva do outro – e é exatamente essa perspectiva que lhe interessa – isso de modo algum implica que o outro fale por si, sem a mediação do autor e sem a inscrição dessa fala no seu plano. Como pondera Tezza: essa voz alheia não lhe vem intacta, a pura voz do outro se consubstanciando na minha mão. Ela chega até mim refratada, comentada, amada ou vilipendiada pelo meu olhar e pela minha intenção – mas, por mais forte

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que seja essa intenção, por mais pressão que eu exerça sobre a voz alheia, por mais monumental que seja minha presença diante do universo do outro, essa voz, esse ponto de vista, esse olhar alheio sobre o mundo está lá, necessariamente presente, com o seu grau de autonomia. Claro, eu abdico da autoridade direta da minha palavra, mas eu prossigo vivo no texto, na sombra de cada frase e na arquitetura do texto. (TEZZA, 2006, p.245)

Considerando-se as novas mídias digitais, inclusive, percebe-se que a possibilidade de interatividade, a velocidade com que as informações são publicadas, repassadas e atualizadas, bem como a liberdade de participação colaborativa na construção do texto jornalístico, permitem imaginar uma nova constituição da autoria desses textos, ancorada em valores distintos. Por mais que mantenham um autor a quem cabe gerenciar a manifestação das vozes que se inscrevem no diálogo, os personagens não são criações desse autor, eles são também autores e, em tese, existem “de carne e osso” – mas só em tese, uma vez que muitas personalidades que se mostram nas redes sociais, nos blogs e nos sites de notícias são fakes, perfis falsos, criados com a finalidade de mascarar a identidade de seu autor. Outras características podem ser observadas em relação a tais textos. Eles, no geral, não abrem mão de determinados filtros, com os quais podem garantir certo controle sobre o que é postado, como a possibilidade de excluir participantes ou de inibir a participação de determinadas pessoas, ou ainda de selecionar previamente o que pode ser inserido. Mesmo nas redes sociais, em que se abrem debates sobre os mais diversos temas, a respeito dos quais dificilmente se pode ter algum tipo de controle, é possível a existência de filtro, comandado por algum mediador. Além do controle por parte da própria mídia, é comum a presença no debate de profissionais que se apresentam com identidades falsas, contratados para assumirem a defesa de empresas ou de grupos sociais. Nesse caso, pode-se argumentar que a equipolência poderia desaparecer, manifestando-se aí apenas efeitos de polifonia ou simulacros de polifonia. Mas se poderia argumentar que a presença da voz da empresa ou do grupo social representado por um fake é também necessária para que se garanta a equipolência. Outra questão importante é que esses novos espaços discursivos cada vez mais necessitam da polêmica para garantir visibilidade e para sustentar a audiência. Para tanto, precisam oferecer ao interlocutor certa garantia de que o espaço é democrático e de que as diversas vozes sociais podem se manifestar plenamente. Daí uma disposição maior para acolher cada vez mais as vozes dissonantes, o que não assegura, no entanto, que tais espaços tenham uma “vocação” polifônica. É possível, sim, argumentar que esses campos permitem reações ao discurso autoritário que tem caracterizado historicamente a atuação da mídia,

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funcionando inclusive como uma espécie de observatório da mídia tradicional. Como argumenta Barros: Nos discursos autoritários abafam-se as vozes, escondem-se os diálogos e o discurso se faz discurso de verdade única, absoluta e incontestável. A única forma de contestar tais discursos é recuperar externamente a polêmica escondida, os confrontos sociais, ou seja, contrapor ao discurso autoritário um outro discurso, responder a ele, com ele dialogar, polemizar. (BARROS, 2007, p.34)

Desse modo, pode-se alegar que os novos espaços discursivos instaurados com o advento da Internet possibilitam maior liberdade de participação, abrem espaço para que essa participação possa se dar de forma mais igualitária (equipolência), que as vozes aí presentes se manifestem de maneira plena (plenivalência) e que mantenham sua independência umas das outras (imiscibilidade). Donde se deduz que representam lugares potenciais para que se investigue a manifestação do fenômeno polifonia em toda a radicalidade do conceito, como formulado por Bakhtin.

5. Finalizando... Para simular um acabamento que de fato não se pode realizar, uma vez que este ensaio precisa se inscrever no diálogo e aceitar sua incompletude e sua refutabilidade, pode-se argumentar que, assim como Bakhtin não pôde testemunhar o apogeu do romance polifônico enquanto gênero, não se pode asseverar que os textos das novas mídias sejam, por sua natureza, polifônicos. No entanto, é possível afirmar que trazem, em grande medida, potencial para a polifonia. Em primeiro lugar, assim como o romance dostoievskiano, tais textos apresentam um inacabamento constitutivo, mantendo-se, na maioria dos casos, abertos para a inscrição de novos personagens/autores e para a interlocução entre eles. Esse inacabamento é condição para a manifestação da polifonia. Outra característica das novas mídias é a necessidade permanente da polêmica como forma de assegurar a atenção da audiência e de alimentar o diálogo. A necessidade de polêmica, além de permitir que as vozes em conflito se manifestem com maior liberdade, associa-se a outra característica indispensável para a sobrevivência desses gêneros: eles precisam se apresentar como espaços democráticos. Por isso, precisam pelo menos simular certa democracia. Além disso, esses espaços discursivos são autorreguláveis. Seus participantes estão envolvidos no diálogo e precisam, por isso, estar em permanente vigilância, de modo a assegurar a equipolência das vozes que se inscrevem

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em tais arenas discursivas. Bakhtin, embora tenha oposto o romance à poesia, afirmando que esta era monológica e aquele polifônico, não identificou o fenômeno da polifonia no gênero, mas na obra de um autor. Para ele, o ativismo do autor do romance polifônico consistia em permitir que as vozes se manifestassem livremente. Do mesmo modo, a chave para se investigar a presença da polifonia bakhtiniana nas novas mídias pode se vislumbrar a partir dessa nova autoria que se instaura nesses espaços. Mas isso é tema para um outro ensaio no mesmo diálogo...

Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ________. Problemas da poética de Dostoiévski. 3. Ed. Rio de janeiro: Forense, 2005. BARROS, D. P. L. de. Contribuições de Bakhtin às teorias do texto e do discurso. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de. Diálogos com Bakhtin. Curitiba: UFPR, 2007 BEZERRA, P. Polifonia. In: BRAIT, Beth (Org.) Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. ________. Dialogismo e polifonia em Esaú e Jacó. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Orgs.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. BRAIT, B. Problemas da poética de Dostoiévski e estudos da linguagem. In BRAIT, B. (Org.). Bakhtin: dialogismo e polifonia. São Paulo: Contexto, 2009. DUCROT, Oswald. O dizer e o dito. Trad. Eduardo Guimarães. Campinas, São Paulo: Pontes, 1987. ________. Polifonia y Argumentacion. Cali: Universidad Del Valle, 1988. FARACO, C. A. Linguagem e Diálogo: as ideias linguísticas do círculo de Bakhtin. Curitiba: Criar Edições, 2003. FIORIN, J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. SCHNAIDERMAN, B. Bakhtin 40 graus (Uma experiência brasileira). In: BRAIT, B. (Org.) Bakhtin: dialogismo e construção do sentido. Campinas: Editora da UNICAMP, 2005. TEIXEIRA, M. O outro no um: reflexões em torno da concepção bakhtiniana de sujeito. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Orgs.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006. TEZZA, C. Entre a prosa e a poesia: Bakhtin e o formalismo russo. Rio de Janeiro: Rocco, 2003. ________. Sobre a autoridade poética. In: FARACO, C. A.; TEZZA, C.; CASTRO, G. de (Orgs.). Vinte ensaios sobre Mikhail Bakhtin. Petrópolis, RJ: Vozes, 2006.

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CINEMA DOCUMENTÁRIO. EXPERIÊNCIA DE PARTICIPAÇÃO E CONVERGÊNCIA PARA A EDUCAÇÃO MIDIÁTICANO ENSINO SUPERIOR Aguinaldo Ricciotti Pettinati Filho1 Juan Guillermo D Droguett2

Resumo O cinema oferece múltiplas possibilidades como recurso educativo no contexto da educação formal do Ensino Superior. Ainda que a sua presença no currículo oficial e nos planos de ensino dos diferentes cursos, seja escassa e na prática se esteja incorporando, existem iniciativas e experiências que convêm destacar do gênero documentário para ir gerando uma bagagem enriquecedora de experiências que envolvem a transmissão de conhecimento, da arte e das possibilidades criativas que os alunos possam vir a realizar no campo audiovisual e da internet, nas plataformas de formação on-line. Palavras-chave: Cinema Documentário; Meios de Comunicação; Educação midiática. A presença escassa, ainda in progresso dos meios de comunicação no currículo do Ensino Superior tem sido motivo de preocupação, há algum tempo, dos profissionais e pesquisadores que entendem como fundamental a exploração desse campo do conhecimento. Em tempos de uma cultura participativa e de narração transmidiática, ambos os conceitos são usados para definir um novo modelo de «cultura de convergência», na qual se reformula a relação 1 2

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Mestre em Comunicação Social pela Universidade Municipal de São Caetano, possui graduação em Comunicação Social – Jornalismo. Advogado, atua como professor nos cursos de Jornalismo, Publicidade e Turismo da Universidade Nove de Julho. Pós Doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP e em Educação pela Universidade de Salamanca/ Espanha. Leciona nos cursos de Comunicação de Jornalismo e Publicidade e Propaganda da Universidade Nove de Julho e nos cursos de Pós-graduação do Istituto Europeu di Design – IED. Professor convidado, parecerista e consultor de revistas científicas em Universidades do Brasil e do Exterior. Escritor com várias obras publicadas em comunicação, semiótica, cinema, educação e psicanálise.

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de comunicadores, produtores e mediadores com os meios de comunicação, apontada na obra de Henry Jenkins (2009) Cultura da convergência. Os novos usuários da comunicação são cada vez mais ativos, colocando-se à frente na elaboração das suas próprias mensagens. Por esse motivo, entende-se que essa presença da educação através das mídias explorada pelas instituições do ensino superior faz mais sentido do que nunca. De qualquer forma, considerando que existe um caminho a seguir, não seria justo omitir experiências que têm assinalado a inclusão de estudos sobre os meios de comunicação nas diferentes aulas que configuram o currículo do Ensino Superior, gerando aprendizados fundamentais para seguir construindo esse tipo de conhecimento científico. Não faltam exemplos disso, professores de todas as áreas e níveis do ensino têm acreditado no «Cinema Documentário» como recurso didático e o incorporam de forma exemplar na sua tarefa de educar no modo «presencial».

Cinema e educação midiática O cinema como recurso didático, no qual alguns professores se especializam para usá-lo nas suas aulas, representa iniciativas plausíveis da incorporação das produções cinematográficas, do rádio, da televisão, dos jornais e da internet como objeto de estudo nos planos curriculares. Espera-se que com o esforço desses educadores e com a experiência adquirida, essas iniciativas se consolidem em uma aposta séria pela educação midiática nos programas oficiais do Ensino Superior. Imersos já em uma cultura midiática multiforme e ubíqua – que tende cada vez mais à participação – na qual entra em jogo a dialética da realidade e da ficção que o cinema em particular promove, os alunos podem se beneficiar desse instrumento imprescindível para sua educação. Nesse sentido, aponta-se, a seguir, alguns fundamentos para a utilização do cinema na formulação de uma educação midiática, deixando em evidência o caráter interdisciplinar da relação: cinema e educação. Aprender cinema consiste em levar às aulas o ensino da linguagem cinematográfica e audiovisual. A ideia é que os estudantes saibam reconhecer, analisar e compreender os recursos filmográficos do enquadramento, angulação, ritmo, montagem, trilha sonora, tratamento temporal, transições e tipos de narração no roteiro que lhes permita ser competentes e críticos em dois âmbitos importantes. O primeiro consiste na construção de suas próprias mensagens audiovisuais, competência fundamental no entorno midiático da chamada «cultura participativa». O segundo diz respeito à recepção crítica das mensagens que são consumidas, sejam estas informativas, ficcionais ou publicitárias. Sendo o audiovisual uma das principais manifestações artísticas do século 20 e 21, graças

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ao avanço das tecnologias que revolucionaram a comunicação na atualidade, não se pode deixar de atender à aprendizagem de suas linguagens, estruturas e funções. Portanto, o cinema merece toda atenção, tal como ocorreu no passado com outras disciplinas artísticas: pintura, arquitetura, escultura, música, poesia e o teatro. Socialmente, há tempos que se considera o cinema como a «Sétima Arte», questão que ainda não se tem refletido com a devida consistência e projeção nas faculdades. Estuda-se, por exemplo, na «História da Arte», «O Moisés» de Michelangelo, «A Noite estrelada» de Vincent van Gogh ou o «O Pensador» de Rodin, então, por que não promover o estudo de obras fundamentais do cinema como Cidadão Kane, de Orson Welles, 2001, Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick ou A Origem, de Christopher Nolan? Também se incentiva a pesquisa biográfica e a obra de Shakespeare, Rembrant, Bethoven, Brecht ou de conhecidos artistas brasileiros como Manoel de Barros, Euclides da Cunha, Oscar Neimeyer, Vinicius de Moraes, então, por que não fazer o mesmo com Fellini, Almodóvar, Tarantino e outros grandes diretores da «História do Cinema»? Aprender do cinema. O cinema é utilizado para cobrir conteúdos e temas que, sem ser motivo de avaliação, merecem especial atenção educativa como temas transversais, educação integral, tutoriais e orientação de projetos, entre outras tantas possibilidades de formação. Por seu caráter lúdico, de lazer e de entretenimento, assim como por sua clareza perante aos processos de identificação entre o espectador com a trama dos filmes, os personagens e as ações, o cinema é um instrumento idôneo e competente para ver, sentir e pensar o mundo. Perante questões essenciais como, por exemplo, se é possível alcançar a verdade? A resposta pode ser pensada a partir de Matrix e, nessa mesma linha, com que sonham os robôs? Isso pode ser revelado no emblemático filme Inteligência Artificial, de Stephen Spilberg. Os efeitos devastadores das drogas podem ser repensados a partir de Réquiem para um sonho, de Darren Aronosfsky, ou como se orientar no labirinto dos sentimentos em Razão e Sensibilidade. Todas estas são dinâmicas emocionais nas quais os alunos se envolvem com muita facilidade, o que permite aprofundar essa «experiência estética» que é antes de tudo uma experiência dos sentidos, no reconhecimento das formas expressivas, dos meandros da subjetividade na narratividade e na fluidez comunicativa da catarse, experiência de libertação e transcendência do espectador. Aprender com o cinema significa considerá-lo, na sua função documentária, como pretexto ou estímulo que desperte o interesse para determinados temas das diferentes áreas curriculares. A lista de Schindler pode ajudar a visualizar e entender o capítulo histórico do Holocausto; utopias, distopias, tem-

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pos efêmeros e outros conceitos da Filosofia podem ser trabalhados em Blade Runner, o caçador de androides, que demarca a passagem da modernidade para a pós-modernidade contemporânea, assinalando a revolução estética que trouxe a incorporação da tecnologia no cinema. Ampliar as expectativas dos alunos. De um modo geral, observa-se que os alunos consomem muitas horas de ficção perante a televisão e no cinema, muitas vezes assistido em casa, no conforto do sofá − comodismo. Só esta questão justificaria a atenção especial que se deve dar à linguagem fílmica e audiovisual nas aulas, mas a partir disto se formula um desafio «educomunicacional» para o uso didático do cinema, ampliando as expectativas fílmicas do alunado. Conscientes de que os jovens consomem um tipo de cinema caracterizado por altas doses de entretenimento e em uma sociedade na qual se associa o cinema ao ócio e ao divertimento, para os professores é uma preocupação habitual que esse tipo de cinema, de alto orçamento devido às excentricidades de diretores, realizadores e estrelas midiáticas, além dos grandes efeitos especiais, careça de um fundo propício para a reflexão social e o aprendizado dos conteúdos. Sem a intenção de criar um debate sobre a idoneidade do «cinema comercial» e o «cinema de autor», é possível admitir que ambas as tendências existam, mas não de forma tão pura como parecem. As aulas constituem um bom espaço para enfatizar que o cinema pode ser muito mais que um simples entretenimento, e que existe outro tipo de cinema, igual a outras manifestações artísticas, capaz de colocar em tela de juízo o comportamento humano, e capaz de abrir novas vias de reflexão. Educativamente falando, a filmografia mais interessante é aquela que se atreve a abordar temas complexos, delicados e socialmente considerados tabu. Sociedades, mesmo desenvolvidas, costumam fugir daquelas mensagens que questionam algum aspecto de sua forma de vida. Ver problemas no cinema é uma forma de objetivar esses defeitos e de poder solucioná-los, ao se abrir debates e embates sociais sobre eles. Por exemplo, é o que ocorre em O Grande Desafio (2007), filme baseado em fatos reais que traz assuntos como racismo, educação, política, ética e moral. Preciosa (2009), uma história de esperança, que explora a violência de gênero e Hoje quero voltar sozinho (2014), filme brasileiro, que aborda a discriminação sexual na escola. Estes exemplos corroboram a ideia de que o cinema tem nos dias de hoje uma vocação educacional no sentido de ser a primeira e última âncora da literatura em que ficção, pragmatismo e entretenimento convertem-se em uma coisa só: um correlato do espectador. Não há nada intrinsecamente perverso no cinema comercial, salvo supostas «colonizações culturais» – que não se pretende analisar neste texto e que mereceriam um capítulo a parte –, mas isto não deve ser motivo de constran-

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gimento daqueles que escolhem esse tipo de cinema. O ponto negativo é que se constitui na totalidade do cinema que se «consome». Trata-se do espetáculo previsto apenas como entretenimento, mas pobre de conteúdo aproveitável. O desafio para os professores consiste em dar a conhecer a seus alunos que ir ao cinema não precisa estar associado a uma experiência cem por cento lúdica e divertida. Às vezes, compensa assistir um cinema mais complexo, que enriquece pessoalmente. E, descobrir no meio do caminho, a multiplicidade de filmes que reúnem com perfeição os dois extremos do debate: o entretenimento e conteúdos de interesse para a aquisição de conhecimento. Resgatar o cinema dos esquecidos. O cinema social desenvolve, sobretudo, tramas protagonizadas pelas classes menos favorecidas, isto não seria possível sem a atenção de alguns diretores e realizadores comprometidos com essa causa. Os problemas sociais de injustiça, desigualdade e exclusão não costumam ser uma demanda para a Indústria Cultural de Hollywood. O cinema de entretenimento não se envolve com esses temas, e quando o faz, aplica perspectivas que convertem em espetaculares tais conflitos, colocando-os ao serviço de argumentos afetivos das figuras midiáticas que os protagonizam. Esse tipo de cinema comprometido com os mais frágeis encontrou as suas raízes no «neo realismo italiano» e no free cinema inglês. Enquanto no cinema clássico decantam-se temas românticos ou exóticos, o neo realismo surge para dirigir suas câmeras aos temas do cotidiano, e, em concreto, aos relacionados às camadas sociais mais desfavorecidas. Nessa mesma tradição de um cinema comprometido, primam conteúdos que atendem a fatores como solidariedade, imigração, justiça, liberdades públicas ou «direitos humanos». Aproveitar o potencial prático do cinema. Entre as grandes potencialidades do cinema para educar está a de servir de modelo de condutas, hábitos e comprometimentos. Para uma pessoa que se está formando acadêmica e pessoalmente, o cinema pode ser um grande filão de experiências vividas pelos «outros», mas de grande utilidade na hora de somá-las e contrastá-las com as experiências vividas em primeira pessoa. Vai se criando assim um grande repertório de «cultura exemplar», aquela que não só se nutre do vivido pessoalmente, mas das condutas levadas à frente na trama por um personagem modelo. Aproveitar o potencial emotivo do cinema. Como vem se reconhecendo desde diferentes esferas da educação, o modelo do espaço de aprendizado deve adequar-se à «sociedade da informação e da comunicação», já não tanto ao modelo de «sociedade industrial» de produção massiva de anos atrás. Nesse novo âmbito socioeducativo, as potências criativas tornam-se fundamentais, como o estímulo à geração de ideias. E o cinema pode ser, neste sentido, um grande estímulo para a criatividade à qual se ofereça um lugar e, assim às emoções dos alunos, integrando-as como parte fundamental na sua educação. Uma educa-

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ção midiática só poderá ser eficaz se advertir que as tecnologias só propiciam uma cultura participativa e, a autonomia pessoal, colocá-la ao serviço de uma gestão adequada do capital emocional do sujeito. A razão sem emoção é impotente diante da «experiência estética» proposta pelo cinema. Promover a elaboração de mensagens próprias. Esta proposta segue sendo um desafio tecnicamente complexo, pois cada vez são maiores as facilidades operativas para que os alunos possam aprender a elaborar suas próprias mensagens narrativas – câmeras digitais e de telefonia móvel, softwares de edição, entre outros dispositivos interativos. Isto é um passo importante para ampliar as possibilidades educativas do meio, passando de uma aprendizagem passiva – contemplativa do cinema –, para uma mais ativa, na qual os alunos se apliquem na elaboração das suas próprias mensagens, aplicando nelas sua criatividade, inquietações e projeções, reinventando-se. Nada melhor para serem críticos com as mensagens recebidas que aprender a elaborar esse tipo de mensagem, descobrindo na trajetória o que significa enquadrar, descartar na montagem ou como se elabora um roteiro original. Contudo, os discursos fílmicos mais comprometidos com o real se fazem possíveis no «Cinema Documentário», que indaga a realidade, formula discursos sociais, representa histórias particulares e coletivas, constituindo-se em arquivo e memória das sociedades e culturas por meio de múltiplas formas que adquire. Também chamado de gênero documentário, enfatiza-se nele o caráter informativo e didático que procura expressar a realidade de forma objetiva. Desde as origens do cinema, esse tipo de filme tem se apresentado com autoridade e eficácia. Na atualidade, o «Cinema Documentário» é bem variado, tanto no tratamento – da decupagem clássica à decupagem digital −, quanto no seu conteúdo, tratando de qualquer atividade: remota/existente; esportiva/ científica, sem deixar de incluir o «Documentário de Pesquisa Etnográfica». O «Documentário Cinematográfico» atualmente representa a melhor crítica sobre a sociedade e cultura contemporânea. Muitas dessas produções prestam especial atenção à educação e elaboram materiais para a exploração didática em sala de aula. Contudo, o reconhecimento social dessa produção vem da possibilidade de transcender o âmbito da realidade e ir aquém desta em busca de soluções para a sustentabilidade do ser humano no planeta. Por isso, examinam-se, a seguir, algumas das produções exemplares que são paradigmas do gênero.

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Grandes documentários da produção cinematográfica Reconhece-se na história do cinema, desde seu início, que a produção do documentário representa uma das questões mais significativas da Sétima Arte, voltada à pesquisa e produção de conhecimento a respeito da realidade. Neste âmbito específico dos documentários, gênero cinematográfico informativo e didático, desvelam-se diversas representações da realidade, que podem ser transpostas e aplicadas na educação de modo geral, específico, e em diversas disciplinas. O ponto de partida para a análise fílmica é o documentário vencedor do Oscar dessa categoria em 2006, A Marcha dos Pinguins (2005), com direção de Luc Jacquet. A partir daí, o tema se desenvolve com os três últimos ganhadores do Oscar na categoria documentário: Amy (Original), 2016; Citizenfour, 2015; e A Um Passo do Estrelato, 2014. O diretor Luc Jaquet e sua equipe de produção da National Geografic finalizaram A Marcha dos Pinguins em 2005, após 14 meses de filmagens, e o documentário se tornou o filme mais rentável da história da França, por causa de sua excelência, enredo, imagens, composição e narrativa, todos esses tópicos sendo passíveis de análises em sala de aula. O longa-metragem mostra o perigoso caminho de mais de 70 milhas (112 km) percorrido pelas aves adultas (mais de cinco anos de idade). A trajetória começa no outono e se estende durante o frio glacial da Antártida, o local mais inóspito do planeta. Os animais, em fila, deixam o oceano em busca de um local propício para formarem uma família, conceberem uma cria e assim darem continuidade à espécie. A ideia do biólogo/diretor era criar uma mistura entre realidade e ficção para contar a história de um núcleo familiar do pinguim imperador. Para isso, Laurent Chalet e Jérôme Maison, diretores de fotografia, permaneceram durante um ano na base francesa da Antártida para capturarem as imagens dos animais. Os pinguins foram filmados na perspectiva humana e o roteiro, construído com as imagens enviadas ao diretor, a partir da vida dos animais. O documentário, que pode ser classificado na categoria natureza, apresenta filmagem no modo observativo, ou seja, não existe interferência do diretor, teoricamente. É claro que do ponto de vista subjetivo, qualquer edição de imagens para formar um todo pode conter a ideologia de quem as manipulou. Na edição das imagens em uma sequência lógica, Jaquet traz à tona a questão sociológica quando possibilita a associação do comportamento das aves com as ações dos indivíduos em busca da sobrevivência. Trata-se de um tema recorrente para educação mais fraterna e cidadã do ser em busca

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de oportunidades e melhores condições de vida em meio a diversos conflitos éticos, morais, religiosos e capitalistas, que denotam o esforço por fazer parte do Planeta de maneira sustentável. Na versão original do filme, em francês, os pinguins ganham duas vozes para mostrar os sentimentos desses animais (tristeza, apreensão, cansaço, alegria e esperança) em busca da perpetuação da família. Os supostos pensamentos das aves – antropomorfismo – são sobrepostos pelo narrador principal, que conduz as cenas do in��������������������������������������������������������� í�������������������������������������������������������� cio ao fim. Por����������������������������������������� é���������������������������������������� m, na vers������������������������������ ã����������������������������� o norte-americana existe apenas a narração em terceira pessoa off feita pelo ator Morgan Freeman. O enredo propriamente dito se desenvolve em três atos: o primeiro diz respeito à apresentação do filme e da jornada a ser travada pelo pinguim imperador; o segundo refere-se à reprodução dos pinguins, o ritual de formação dos casais, que serão monogâmicos pelo resto da vida e o enfrentamento do inverno, quando cada macho permanece protegendo o único ovo gerado por sua “companheira” (até que eles nasçam) sem se alimentarem, enquanto as fêmeas viajam em busca de comida; e, por fim, o terceiro, que mostra o nascimento dos novos pinguins, a luta pela vida, a morte por causa do frio, a fome e a luta contra os predadores até culminar com o crescimento das jovens aves, que partem sozinhas e emancipadas para uma nova jornada, independente dos pais. Trata-se da demonstração dos ciclos que todos passam em suas vidas, inclusive na educação. São dezenas de quedas e batalhas da humanidade em busca da paz que ainda se mostra utópica. A Marcha dos Pinguins em busca da vida é silenciosa e frequente durante anos, sem que as pessoas se dessem conta do esforço para a subsistência dessa espécie, o mesmo esforço que milhares de seres humanos fazem diariamente em busca de alimentação ou de um local de moradia livre dos conflitos bélicos, por exemplo. Um dos momentos exponenciais do filme se expressa quando os pinguins dão a própria vida para garantir a sobrevivência da espécie. Quando o frio atinge seu auge e as aves não têm para onde ir ou proteger-se, se unem reconhecendo a própria debilidade para fortalecer o todo e assim amontoam-se contra as rajadas de ventos congelantes com o objetivo de garantir maior sobrevida aos filhotes. O documentário apresenta exemplos de esforços descomunais retratados em viagens longas em busca de comida para salvar a cria, mesmo sabendo que tudo isso possa ser em vão. Há uma inversão de papeis em relação à sociedade dos seres humanos. Entre os pinguins é o macho que cuida do ovo, enquanto espera a fêmea viajar longas distâncias em busca do alimento. Entre as pessoas, o lado masculino ainda é considerado como o provedor de um lar, preconceito ainda subsistente mesmo quando se discutem outras composições familiares.

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Quem sabe um dos objetivos de Luc Jaquet em A Marcha dos Pinguins não foi realizar uma metáfora para convidar os seres humanos a lutar pela vida sem apenas pensar em si próprios. A Marcha dos Pinguins começa todos os dias e deve se renovar continuamente na vida dos educadores. Encontra-se, portanto, no documentário de Jaquet, um retrato humanizado dessa tribo através dos mínimos detalhes. Porém, procura também o distanciamento necessário presente nos documentários, que se propõem a tratar da natureza e das ciências em geral. Configura-se em uma obra documental que entrega um viés lírico e expressivo, misturado à função didática em uma alquimia entre a ficção e a realidade demonstrada por rituais e tradições transmitidas ao longo dos séculos, sendo um ponto de partida para uma análise comparativa com a própria humanidade. A realidade da busca pela sobrevivência e mais ainda pela aceitação de si mesma em uma sociedade cruel e exploradora é perceptível no documentário Amy, dirigido pelo britânico Asif Kapadia, mesmo diretor do filme Senna, sobre o piloto brasileiro de Fórmula 1, Ayrton Senna. O filme mostra a vida e a obra da famosa cantora e compositora inglesa Amy Winehouse. Ao contrário da Marcha dos Pinguins, em Amy, os sacrifícios da protagonista depõem contra a sua própria vida até leva-la para a morte aos 27 anos, em uma desesperadora decadência contínua, no dia 23 de julho de 2011. Com muito material inédito advindo das novas tecnologias e das próprias filmagens da protagonista, Kapadia construiu um compendio de vozes para contar uma história que ainda choca, cinco anos depois da morte da artista, devido ao excesso de drogas. Além da própria Amy, pai, amigos, namorado, músicos, empresários e produtores contam sob seu ângulo a ascensão e queda da cantora que revitalizou o soul e o jazz no mundo. O documentário apresenta o início da vida de artista de Amy e como ela iniciou sua paixão pela música. Com a desestruturação de sua família, a cantora, desde a adolescência, sofria com a bulimia, assunto polêmico e importante para os jovens estudantes. Expondo a realidade e questões sociais inerentes à protagonista, que podem ser absorvidas por outras pessoas, o documentário Amy traz uma dualidade entre o herói e vilão. Enquanto a cantora assume o papel de uma espécie de heroína, seu pai (sempre ausente) Mitch Winehouse é caracterizado como um dos responsáveis pela decadência de sua filha. Em uma cena, para exemplificar, Mitch determinou que Amy não precisaria de reabilitação (origem da música Rehab), depois ele ainda não se preocupou com a saúde de sua filha quando levou uma equipe de filmagem para realizar uma espécie de documentário, enquanto a cantora buscava tranquilidade e a fuga das drogas no Caribe.

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Outros vilões do documentário são o marido e cantor Blake Fielder-Civil, viciado, preso por suborno e uma espécie de explorador de mulheres (cafetão) e o manager Raye Cosbert, que incentivou Amy a sair por uma turnê em busca de mais dinheiro, mesmo em um momento de fragilidade. Durante o documentário, Amy aparece constantemente em praticamente todas as cenas com o uso de primeiros e primeiríssimos planos, dando a sensação que ainda continua presente. As letras de suas músicas, que ela mesma compunha com facilidade, eram um retrato artístico do momento vivido, transformando a sua dor em palavras. O drama existencial é realçado com exibições de seus shows antes e depois da fama, como o encontro com o veterano cantor de jazz Tony Bennett, ídolo da artista. O documentário Amy retrata a ascensão e queda da cantora em um destino triste e cronológico. Para tanto, o diretor explora o arquivo audiovisual pessoal da cantora, permeado pela exposição e exploração dos meios de comunicação e da opinião pública, que a cercavam continuamente depois do estrelato. Todo esse processo, que ajudou a consumir Amy é detalhado com depoimentos. Além disso, contém uma crítica ao show businnes e ao lado supérfluo do mundo dos espetáculos, que pode ser aproveitado em sala de aula. Não se trata de um retrato de um personagem famoso e nem de uma biografia clássica, mas uma imersão ao coração de uma cantora contemporânea entre seus sonhos e desejos comuns do dia a dia e a busca por um amor verdadeiro e não correspondido. Nessa busca pela realidade importada pelos documentários, o filme Citizenfour, da diretora Laura Poitras, exibe uma espécie de reportagem em modo participativo, na qual é essencial a participação do criador do documentário na filmagem do protagonista e na organização das informações. A estratégia visa dar ritmo à narrativa e possibilitar a compreensão da nova era da internet e da falta, ou luta, pelo direito à intimidade, que a sociedade fluídica enfrenta e que, guardadas as devidas proporções, tornou-se parte da decadência de Amy. Em outro sentido, Citizenfour torna-se uma produção histórica porque remonta o encontro exclusivo de Edward Snowden com os jornalistas que o auxiliaram a revelar ao mundo o maior caso de espionagem de todos os tempos. São as informações cruas que levam o espectador a perceber que a filmagem se trata de pura realidade e não de uma mera ficção. A trama real começa em janeiro de 2013, quando Laura Poitras recebe as primeiras mensagens eletrônicas de forma cifrada em nome de “Citizenfour”. As conversas são exibidas na tela, em forma de cenas. Na sequência, surge a explicação da promessa do ser misterioso, que era a de revelar provas de programas de vigilância ilegais usados pela NSA (National Security Agency), com

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a colaboração de outras agências de inteligência pelo mundo. Depois de cinco meses, com a ajuda dos jornalistas investigativos do The Guardian, Glenn Greenwald e Ewen MacAskill, o grupo segue para Hong Kong onde gravam diversos encontros com Edward Snowden, que dão origem ao filme. A construção do documentário se desenvolve diante do espectador, pois, desde o primeiro encontro, Poitras traz consigo sua câmera para registrar tudo. Snowden abandonou sua vida tranquila no Hawaii em busca de sua paz interior, a mesma que Amy tentou encontrar por intermédio das drogas e da autodestruição. Porém, havia e ainda há diversos riscos para o protagonista que precisou manter comunicações seguras e privadas através do Wikileaks, por exemplo, que o ajudou a sair de Hong Kong em segurança para o asilo político na Rússia em meio às buscas realizadas pelos Estados Unidos. Snowden se mostra sereno e convicto em sua ética, que se sobrepõe à própria segurança física. Em certo sentido, ele dispõe da segurança, assim como os Pinguins o fazem, mas para denunciar um esquema de espionagem capaz de interceptar mensagens de e-mail ou mesmo ligações telefônicas. Trata-se da exposição de alguém que ainda acredita em uma sociedade livre, colocando em jogo a própria vida contra o poderoso governo norte-americano, que mente no Congresso e usa todo seu poderio político e financeiro para intimidar as pessoas e encobrir os fatos. A crônica de Poitras mostra as primeiras revelações de Snowden, sem receio de se expor. Pelo contrário, faz questão que todos saibam sua identidade para que as revelações ganhem ainda mais peso. São informações que, segundo o protagonista, a sociedade tem o direito de saber. O documentário mostra esses momentos íntimos de tensão, tanto dos jornalistas, quanto do informante que precisa assegurar a sua liberdade e se livrar da prisão. Os relatos e provas demonstram que a lista de pessoas vigiadas pelo sistema de inteligência norte-americano é imensa, atingindo não só cidadãos dos Estados Unidos, como milhares de pessoas do mundo inteiro, inclusive políticos brasileiros. No decorrer do documentário, os jornalistas, aos poucos, vão percebendo a magnitude das informações e seis horas depois a matéria é estampada no The Guardian, causando uma repercussão mundial. Aqui se pode analisar o poder da mídia de outro viés, diferente do que o percebido em Amy, e o poder de manipulação dos órgãos governamentais. Nesse compasso, a voz narrativa serve como guia através dos relatos transcorridos nas cidades durante a primeira parte da história, passando pelas implicações e repercussões na Alemanha e nos Estados Unidos, ilustrando a opinião e análise de outros defensores da liberdade individual. Produzido por Steven Sodherberg, Citizenfour é um documentário, com o ponto de vista de Poitras, sobre a sociedade americana e as relações globais

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desse país após os atentados de 11 de setembro às Torres Gêmeas. Assim como os Pinguins Imperadores, em sua constante marcha, Snowden coloca em risco a sua vida pela garantia de um bem maior social. O bem maior no documentário A Um Passo do Estrelato, do diretor Morgan Neville, conhecido por outras produções documentais como Keith Richards: Under the Influence, Search and Destroy: Iggy & The Stooges’ Raw Power, e Johnny Cash’s America, está contido nas vozes que as pessoas ouvem como complemento de muitos sucessos musicais, sem saberem ao certo quem são ou como é feito esse trabalho. A produção resulta na junção entre arte e a força de trabalho, transformando-se na engrenagem de manutenção da vida das pessoas no mundo moderno, alternando constantemente em períodos de altos e baixos na existência das cantoras. Nesse sentido, as canções das grandes bandas populares não seriam as mesmas sem as “coristas” ou backing vocals que apoiam os músicos. A Um Passo do Estrelato narra como são as vidas e o mundo dessas cantoras coadjuvantes (em sua maioria negras), desaparecidas para a maior parte do mundo. Entre a sobrevivência e o estrelato, o filme oferece uma espécie de tributo a essas vozes possantes, reconhecendo os sacrifícios, conflitos e recompensas obtidas pelas cantoras de apoio que dão vida às vozes referidas. Darlene Love, Merry Clayton, Lisa Fisch, Lou Adler, Chris Botti, Carole Childs entre outras contam suas próprias histórias e indicam as reivindicações daquelas mulheres que ficam sempre à sombra dos cantores principais. Nesse sentido, o filme traz uma visão alternativa à história do rock, reinventando a posição dessas mulheres que possuíam além da questão vocal, o talento interpretativo, a preparação musical e a presença de palco. Mesmo com tudo isso, nunca conheceram a fama. As diversas mulheres retratadas em A Um Passo do Estrelato colocam em evidência uma série de discussões que fazem parte da educação do ser como o sexo, a raça, a tradição de cantar em grupo e a origem religiosa dos coros. Apesar de tratar do estrelato, o enredo se aproxima, assim com A Marcha dos Pinguins, das pessoas comuns, que em seus pequenos mundos fazem parte de uma engrenagem maior o que não lhes tira a importância ou a essência. O documentário também se preocupa com a questão poética, bem como Marcha dos Pinguins e Amy, ao mostrar as cantoras em busca pelo estrelato, shows, jam sessions e ao reunir astros como Sting, Mick Jagger, Bruce Springsteen, Stevie Wonder, Stephanie Stevvi Alexander e David Bowie, todos para falarem sobre a importância das coadjuvantes. Os documentários em análise podem trazer para o mundo da educação a realidade estampada em forma de arte, mesclando como em A Um Passo do Estrelato talentos que não são reconhecidos, mas importantes para a socie-

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dade. Nesse ponto, a vida dos pinguins ilustra o esforço mútuo, que rompe a barreira do individualismo total exemplificado em Amy e sua autodestruição contra as exigências modernas para dar vazão e significados às boas ações isoladas ou grupais, que devem ser prestigiadas tendo em vista as questões éticas, o processo evolutivo como um todo e não apenas apresentando como referência o resultado final. Cada ser, mesmo agindo em conjunto pelo benefício dos demais, possui um foco individual capaz de iluminar ao menos o seu entorno e é isso que prega a educação libertadora e cidadã. Entretanto, quando se fala em ações humanas em qualquer nível para uma vida melhor, não se pode deixar de lado a liberdade de expressão e manifestação, exigida por uma cidadania madura, o que fica demonstrado em Citizenfour. Todos os documentários acima citados contam com o reconhecimento da Academia de transcender a realidade para situá-los no plano de grandes obras artísticas.

Arte na representação documentária os modelos de representação do gênero documentário são o resultado de ações deliberadas por parte de diretores, produtores e realizadores nas quais intercedem importantes fatores históricos. Essa dimensão diacrônica dos filmes gravita na construção dos modelos de representação do «cinema documentário». Por um lado, investe-se da responsabilidade de interpretar o mundo fazendo confluir discursos provenientes de variadas disciplinas científicas e, por outro, o cinema documentário carece do poder de controlar plenamente a invenção de uma narrativa histórica, a diferença de alguns gêneros da ficção. A ideia de representação é central para o documentário porque este não é uma reprodução da realidade, mas a representação do mundo que se habita – o planetário. Os filmes de um modo geral se constroem e funcionam como discursos sociais, entretanto, estes documentários conservam uma «������� �������� responsabilidade residual» para descrever, analisar e interpretar fatos e situações do interesse do espectador. Deste modo, a própria noção de representação no documentário supõe uma incursão sobre o conceito do real, em detrimento da realidade entendida no seu eixo causal que até pouco tempo atrás era o principal foco do interesse deste gênero. Cabe aqui salientar a distinção entre realidade e real tão recorrente no âmbito da metafísica contemporânea, entende-se a realidade como causal e subordinada às determinantes do tempo e do espaço, já o real que evolui com o pulsar da tecnologia, interfere a favor da produção de efeitos de sentidos, gerando o paradigma da interação do tempo real e o espaço virtual.

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Essa característica definitiva da realidade distancia o cinema documentário do cinema de ficção e o aproxima do discurso científico. Isto não significa que os documentários deixem de ser cinema — obra de arte — nem que cheguem a ser discursos do real com idêntico estatuto como aquele que têm as pesquisas científicas. Portanto, o estudo do cinema documentário coloca essa tênue linha — se é que existe tal linha — entre a arte e a ciência que vale a pena discutir. Para o cinema documentário, essa fina linha não é vermelha nem azul, mas transparente, traçada no meio da noite e da névoa. Por isto, mais uma vez, o documentário não está isento da invenção. Enfatizaram-se nos itens anteriores, que o documentário cria possibilidades da existência de um registro cinematográfico capaz de alcançar a «objetividade», mas o que acontece na realidade é que, muito pelo contrário, o cinema documentário contemporâneo não propõe a exibição da realidade em estado puro. Trata-se do cinema, em princípio de uma obra de arte na qual a montagem inventa e coloca em funcionamento um sistema de intercâmbio simbólico de informação da família, da música, da liberdade de expressão, da intimidade entre tantos outros temas significativos. E essa invenção não se descola da matéria do real com a qual se trabalha; do protagonismo dos personagens, que se encarnam a si mesmos, que continuam com sua atuação quando a câmera é desligada, ainda que tenham se visto afetados nas suas ações e expressões pela representação fílmica. A realidade não se dispõe como em um set de gravações para ser posta em cena. A câmera documental é excêntrica por definição, não o eixo das ações e o cameraman já não é dono e senhor daquilo que capta. Entretanto, algo muda quando a câmera se liga e tudo acontece. Por esta razão, o cineasta que se propõe realizar um documentário sabe que não tem o controle absoluto das cenas, enfrenta o imprevisto e deve fazer uso da «montagem descontinua» – o cinema como mídia temporal está fadado ao tempo continuo; mas ele se entretém na produção de descontinuidade: entre fotogramas sucessivos na película e entre planos na montagem –, nessa improvisação não sempre se encontra aquilo que se acreditava encontrar no campo – espaço tridimensional e imaginário, percebido instantaneamente na imagem fílmica plana e fragmentada (AUMONT e MARIE, 2003, p. 42). Mas também o cineasta sabe que terá poder absoluto na mesa de montagem do material filmado, aquele que – por meio de múltiplos recursos como a voz over, intertítulos e uso de arquivos – poderá acrescentar à edição final. O pesquisador que investirá no estudo de modelos de representação nos filmes documentários também sabe que se encontrará com o tratamento da matéria do real que não é inócuo, e com essas condições de produção poderá fazer uma leitura histórica do filme. Do filme documentário desprendem-se

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certos princípios como dados e problemáticas históricas, impregnadas de um elemento comum às pesquisas científicas: a ética. Nesse sentido, os filmes documentários os dispositivos de criação transitam a fronteira da ficção, presentes nos valores que indicam interpretações políticas, sociais e culturais. Questões concretas sobre os problemas da realidade são formuladas – questões fora do cinema – muito além do recorte ou da manipulação proposta pelo realizador. A matéria da representação não está a priori na realidade, mas é construída por e para o filme, apesar dos elementos já existentes fora do mesmo. Isto formula a questão mais crucial no uso das imagens. O cinema documentário trata a realidade na sua intervenção como um agente a mais, mas nesse tratamento, para não passar do documentário à ciência ficção, deve haver certo respeito pela realidade. Não se trata dos recursos de ficção na realização de um documentário, sem cair em uma pretensão cientificista, que busca conter o tratamento do real na própria realidade. Trata-se de um realismo cinematográfico e não de um naturalismo estético. Para Bill Nichols (2005 p. 47-711) no seu estudo sobre o cinema documentário, é necessária uma axiografia – tentativa de explorar a incorporação de valores na configuração do espaço, na constituição de um olhar e na relação entre o observador e o observado – que recupere a dimensão ética do documentário. Para isso, se requer uma interpretação ética, muito mais do que uma divisão entre a forma e o conteúdo, colocando ênfase no dito exclusivamente, mas na conjunção que o produto fílmico faz pensar: um filme-modelo de representação histórica. Contudo, como o cinema documentário é um discurso do real sem deixar de ser uma obra artística, a abordagem do mesmo deve ser considerado na intercessão entre o documentário, o pesquisador, o objeto observado e o observador. O pesquisador dá certas pautas de análise nas quais propõem a essência do cinema documentário, estas estão relacionadas com o representado. O cinema documentário tem em si alguns valores que permitem falar da ética documentária, mesmo que novas modalidades documentárias se aproximem ao registro dos modelos estéticos contemporâneos, e matizem as estruturas sobre as quais se estabelecem os documentários como os filmes citados no item anterior: a caminhada dos Pinguins é cheia de edições e personifica os animais; o filme Amy não saiu a contento do pai da cantora morta que viu seu lado obscuro exposto nas cenas e nem muito menos conseguiu mostrar os momentos mais íntimos entre a artista e seu namorado, considerado como vilão; em Citizenfour há a questão da intersubjetividade e a visão investigativa dos produtores e jornalistas; e A um passo do estrelado coloca múltiplas visões sobre um tema que fragmenta a realidade trazendo-a à tona de forma residual e individualmente.

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O estilo documental – câmera excêntrica e montagem descontinua – não nega seu caráter indicial, colocando-se do lado do «mundo representado». Assim, o documentário constitui-se como um indício do mundo real. Com o devido respeito aos protagonistas diretos do filme, no registro documentado não é possível falsear os sucessos dos dados históricos, o que não quer dizer que não possam ser focados, representados de tantas formas como realizadores há no mundo. Entre a arte e a ciência, entre a criação e a exploração, entre o Cinema e o Documentário; no Cinema Documentário e na Educação Midiática, todas essas esferas de expressão não se mostram de modo isolado, mas convergem no mesmo sentido. Alguns elementos da realização remetem à criação artística, enquanto as vozes constroem uma indagação reflexiva que pode ser usada como um recurso educativo no Ensino Superior, incorporando o documentário como opção na formação do compromisso planetário da sustentabilidade, do conhecimento que se dá sobre os cruzamentos da arte e da ciência, e a criatividade que os alunos possam desenvolver a partir da produção deste gênero como modelo de levantamento, pesquisa e aprendizado.

Referências bibliográficas AUMONT, Jacques; MARIE, Michel. Dicionário teórico e crítico de cinema. Campinas/SP: Papirus, 2003. JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2009. NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus, 2005.

Filmografia 2001, uma odisseia no espaço. Direção Stanley Kubrick. Produção Stanley Kubrick. Roteiro Stanley Kubrick/Arthur C. Clarke. Distribuição United Artists, 1968. A LISTA de Schindler. Direção Steven Spielberg. Produção Steven Spielberg/Gerald R. Molen/ Branko Lustig. Roteiro Steven Zaillian. Distribuição Universal Pictures, 1994. A MARCHA dos Pinguins. Direção Luc Jacquet. Roteiro Jordan Roberts. Distribuição VideoFilmes, 2005. AMY. Direção Asif Kapadia. Distribuição Universal Music, 2015. A ORIGEM. Direção de Christopher Nolan, produção de Christopher Nolan e Emma Thomas. Distribuição Warner Bros, 2000. A UM Passo do Estrelato. Direção e roteiro Morgan Neville. Distribuição RADiUSTWC, 2013.

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BLADE Runner. Direção Ridley Scott. Produção Michael Deeley. Roteiro Hampton Fancher/David Peoples. Distribuição Warner Bros. Pictures, 1982. CIDADÃO Kane. Direção de Orson Welles, roteiro de Herman J. Mankiewicz/Orson Welles. Produtora RKO Radio Pictures Inc. e Mercury Produtions. Distribuição Warner Bros, 1941. CITIZENFOUR. Direção Laura Poitras. Produção Steven Soderbergh, Laura Poitras, Mathilde Bonnefoy e Dirk Wilutzky. Produtora/Distribuidora Praxis Films, 2014. HOJE quero voltar sozinho. Direção Daniel Ribeiro. Produção Daniel Ribeiro/ Diana Almeida. Roteiro Daniel Ribeiro. Distribuição Vitrine Filmes, 2014. INTELIGÊNCIA Artificial. Direção Steven Spielberg. Produção Steven Spielberg/ Jan Harlan/Kathleen Kennedy/Walter F. Parkes/Bonnie Curtis. Roteiro Steven Spielberg/Stanley Kubrick/Ian Watson. Distribuição Warner Bros. Pictures, 2001. MATRIX. Direção Os Irmãos Wachowski. Produção Joel Silver. Coprodução Dan Cracchiolo. Distribuição Warner Bros. Pictures, 1999. O GRANDE Desafio. Direção Denzel Washington. Roteiro Robert Eisele. Distribuição California Filmes, 2007 REQUIEM para um sonho. Direção Darren Aronofsky. Roteiro Darren Aronofsky e Hubert Selby, Jr. Distribuição Artisan Entertainment/Thousand Words, 2000. PRECIOSA. Direção: Lee Daniels. Produção Lee Daniels, Oprah Winfrey, Tom Heller e Tyler Perry. Roteiro Geoffrey S. Fletcher. Distribuição PlayArte, 2010.

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A LINGUAGEM DA FILOSOFIA Ana Maria Haddad Baptista1 Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte que o afeto a ser refreado. Ora, a audácia cega e o medo são afetos que podem ser concebidos como igualmente fortes.(...) Logo, requer-se, para refrear a audácia, uma virtude de ânimo ou uma fortaleza tão grande quanto a requerida para refrear o medo, isto é (...), o homem livre evita os perigos com a mesma virtude de ânimo com que tenta enfrentá-los. No homem livre, portanto, a firmeza em fugir a tempo é tão grande quanto a que o leva à luta; ou seja, o homem livre escolhe a fuga com a mesma firmeza ou com a mesma coragem com que escolhe o embate. Spinoza Quanto a mim, nas felizes manhãs em que sou ajudado pelos poetas, gosto de fazer a faxina de minhas palavras familiares. Administro equitativamente as alegrias dos dois gêneros. Imagino que as palavras têm pequenas felicidades quando as associamos de um gênero a outro – pequenas rivalidades também nos dias de malícia literária. Bachelard

Considerações preliminares A filosofia, na maioria das vezes, é vista como uma área do conhecimento para poucos. Para seres inclinados apenas à reflexão. Em outros momentos, a filosofia é vista como destinada à pura contemplação. E o que é pior: somente uma casta teria condições de ler filosofia. Entender filosofia. Afinal... somente seres dotados de um alto grau de cultura conseguiria entender a linguagem e os propósitos de uma área considerada erudita. E insisto: uma minoria privilegiada.

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Ana Maria Haddad Baptista é mestra e doutora em Comunicação e Semiótica PUC/SP. Pós-doutoramento em História da Ciência/PUC-SP/ Universidade de Lisboa. Atualmente trabalha como pesquisadora/professora nos Programas de Pós Graduação Stricto Sensu em Educação e no curso de Letras da Universidade Nove de Julho. Autora de diversos livros e artigos.

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A filosofia não foi feita para poucos. A filosofia, historicamente, foi um campo do saber destinada a questionar, refletir e duvidar de tudo o que aparentemente se traduz por certezas e verdades. Eis um dos principais objetivos da filosofia. Portanto, de saída, todos nós temos necessidade da filosofia para dar um sentido mínimo ao nosso existencial. No entanto, claro, devemos admitir que existem sistemas e escolas de pensamento da filosofia que requerem repertórios mais específicos para que se possa ter uma compreensão mais adensada dos propósitos dos questionamentos de certos filósofos. Como exemplo disso temos, por exemplo, a filosofia de Kant, ou seja, como ele lida com muitos e muitos conceitos, um repertório cultural e filosófico seria exigido para uma compreensão mais abrangente capaz de penetrar melhor em suas definições sobre as categorias e outros processos importantes que fundamentam a subjetividade a partir dos postulados propostos pelo autor. O que é a filosofia? Muitos e muitos filósofos foram indagados a respeito do papel da filosofia. Uma resposta possível seria a de André-Comte Sponville, ou seja, para ele a filosofia seria a tentativa de livrar o homem de tudo o que o encarcera em termos de ideias prontas, costumes, desta forma, renovação de pensamento. Um verdadeiro recomeço para a tão sonhada liberdade. A filosofia poderia libertar o homem de pensamentos estabelecidos pelos sistemas institucionais e todos aqueles que aprisionam o homem desde que o mundo é mundo. Comte-Sponville, quando perguntado a respeito do papel do filósofo, responde: É alguém que pratica a filosofia, em outras palavras, que se vale da sua razão para refletir sobre a vida, para se libertar das suas ilusões (já que a verdade é a norma) e, se puder, para ser feliz! Você vai me dizer que, nesse sentido, todo o mundo é um pouco filósofo...Por que não? Às vezes utilizo esta definição ainda mais simples: filosofar é pensar sua vida e viver seu pensamento. Ninguém nunca consegue isso totalmente (ninguém é completamente filósofo), mas ninguém também seria totalmente capaz de se dispensar de fazê-lo. No fundo, os chamados grandes filósofos não são pessoas que praticariam não sei que atividade inaudita de que os outros são incapazes; são os que fizeram melhor que os outros o que todos fizeram, e devem fazer. Se você refletir sobre o sentido da vida, sobre a felicidade, sobre a morte, sobre a morte, sobre o amor, sobre a justiça, se você se perguntar se é livre ou determinado, se existe um Deus, se podemos ter certeza do que sabemos, etc., você está fazendo filosofia, tanto quanto (o que não quer dizer tão bem quanto!) Aristóteles, Kant ou Simone Weil (2016, p.17).

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De qualquer maneira, se tomarmos a perspectiva da maioria dos filósofos, compreendemos que a filosofia não é um sistema rígido de saberes. A filosofia sempre está questionando aquilo que se coloca como verdade e, no fundo, todas as filosofias buscam a verdade, a sabedoria, melhores formas possíveis de tornar o mundo mais respirável. Menos sufocado pelas forças determinantes que a abertura histórica nos proporciona. Para Deleuze, por exemplo, a filosofia seria, primordialmente, tanto quanto as ciências e artes, uma verdadeira produtora de conceitos. Ou seja, produtora de um novo conceito de amar, de literatura, enfim, a filosofia deveria mostrar novos conceitos que revolucionassem o pensamento naquilo que ele teria de mais petrificado, asfixiante. Neste texto refletiremos, mesmo que de forma breve, a linguagem filosófica de Spinoza e Bachelard.

A linguagem e a proposta de Spinoza Baruch Spinoza (1632-1677) em sua famosa obra Ethica, entre outras coisas que poderiam ser consideradas, possui uma parte destinada ao conceitos dos afetos. A obra em questão é um dos exemplos mais contundentes de que a linguagem da filosofia pode ser acessível a todos aqueles que possuam uma escolaridade média. Tal fato já foi dezenas de vezes reforçado por Deleuze. E, naturalmente, não somente pelo filósofo francês. Deleuze declara que qualquer pessoa escolarizada pode ler Spinoza e tirar um grande proveito da leitura para vida . E sempre reitera que a filosofia deveria ser apreciada por todos. Estruturalmente a Ethica possui uma forma de organização denominada geométrica. No entanto, isso não vem ao encontro de nossos objetivos. Veremos como Spinoza define as paixões e com isso um grande exemplo da simplicidade de linguagem. Um verdadeiro convite para adentrarmos no universo da filosofia sem temores ou tremores impostos pelos olhos de quem se pretende erudito ou discriminar os saberes comuns. Nas palavras de Spinoza: 2. A alegria é a passagem do homem de uma perfeição menor para uma maior. 3. A tristeza é a passagem do homem de uma perfeição maior para uma menor. Explicação. Digo passagem porque a alegria não é a própria perfeição. Pois se o homem já nascesse com a perfeição à qual passa, ele a possuiria sem ter sido afetado de alegria, o que se percebe mais claramente no afeto da tristeza, que é o seu contrário. Com efeito, ninguém pode negar que a tristeza consiste na passagem para uma perfeição menor e

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não na perfeição menor em si, pois o homem, à medida que participa de alguma perfeição, não pode se entristecer. Tampouco podemos dizer que a tristeza consiste na privação de uma perfeição maior, pois a privação nada é. A tristeza, entretanto, é um ato que, por isso, não pode ser senão o ato de passar para uma perfeição menor, isto é, o ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída ou refreada (...) De resto, omito as definições de contentamento, excitação, melancolia e dor, porque estão mais referidas ao corpo e não passam de espécies de alegria ou de tristeza. 241

Em se tratando de linguagem...perguntamos: quem não conseguiria entender a definição de alegria se opondo à tristeza na linguagem filosófica de Spinoza? A clareza de suas posições não impede ninguém de entendê-la e, ao mesmo tempo, de abstrair, facilmente, a mensagem de Spinoza. Quanta coisa pode-se refletir a respeito da alegria e da tristeza! A primeira delas é apresentar Spinoza como que um eleito da filosofia da alegria! Ele parte do postulado de que as paixões alegres estimulam a vida. Potencializam formas de existência! Nada como as paixões alegres que potencializam o que há de melhor na humanidade. E sua colocação em relação à tristeza é muito clara, ou seja, “o ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída”, isto é, a tristeza penetra o homem deixando-o sem ação para viver. E retomamos aqui nosso ponto fulcral: será que tal linguagem filosófica não poderia ser entendida por todos? De acordo com Spinoza (2013) o estado de contentamento é uma alegria e quando se refere ao corpo acaba estimulando todas as suas partes. Nessa medida a potência de agir acaba sendo estimulada, afetada, numa verdadeira proporção de movimento e repouso. Por um outro lado, continua Spinoza, a melancolia é uma tristeza diminui nossa capacidade de ação.

Bachelard ou o filósofo da poeticidade Bachelard (1884-1962) foi um homem-plural. Filósofo, matemático, poeta e, sobretudo, um grande professor. Diga-se de passagem que era extremamente amado por seus alunos por discordar do estabelecido. Por desconfiar do que aparentemente se mostrava como verdade absoluta. A filosofia de Bachelard foge completamente à uma possível linguagem clássica estabelecida pela filosofia, como no trecho a seguir: O conceito de fronteira do conhecimento científico tem um sentido absoluto? Será possível traçar as fronteiras do pensamento científico? Estamos dentro de um domínio objetivamente fechado? Estamos sujeitos

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a uma razão imutável? É o espírito uma espécie de instrumento orgânico, invariável como a mão, limitado com a visão? É ele obrigado a uma evolução regular ligada a uma evolução orgânica? Aí estão perguntas, múltiplas e conexas, que questionam a filosofia e que conferem um interesse primordial ao estudo do progresso do pensamento científico. Se o conceito de fronteira do conhecimento científico parece claro à primeira vista, é porque ele parte de afirmações realistas elementares. Assim, para limitar o alcance das ciências naturais, serão feitas objeções com impossibilidades materiais, e até impossibilidades espaciais. Será dito ao cientista: você nunca chegará aos astros! (2008, p.29).

Depreende-se do texto em referência um questionamento acerca dos limites e fronteiras do conhecimento das ciências. Um questionamento para, de alguma maneira, estabelecer limites entre objetividade e subjetividade no processo científico. Pergunta-se, uma vez mais, será a linguagem de refutação filosófica de Bachelard tão impossível de ser entendida? Parece-nos que não. Refletir o conhecimento científico sempre é um assunto muito bem vindo. E não requer grandes repertórios para ser entendido. Naturalmente, em casos bastante específicos a linguagem mudaria. Mas ��������������������������������� a linguagem de Bachelard mostra-se muito clara como base de uma discussão a respeito das fronteiras entre objetividade e subjetividade, sobre as fronteiras do eu e daquilo que nos rodeia. Vejamos um outro fragmento de Bachelard: Acreditamos, pois, poder mostrar que as imagens cósmicas pertencem à alma, à alma solitária, à alma princípio de toda a solidão. As ideias se aprimoram e se multiplicam no comércio dos espíritos. As imagens, em seu esplendor, realizam uma comunhão muito simples das almas. Dois vocabulários deveriam ser organizados para estudar, um o saber, outro a poesia. Mas esses vocabulários não se correspondem. Seria vão constituir dicionários para traduzir de uma língua para outra. E a língua dos poetas deve ser aprendida diretamente, precisamente como a linguagem das almas. Sem dúvida, poderíamos pedir a um filósofo que estudasse essa comunhão das almas em domínios mais dramáticos, engajando valores humanos ou sobre-humanos que passam por mais importantes que os valores poéticos. (...) Assim, em nosso modesto estudo das mais simples imagens, nossa ambição filosófica é grande: provar que o devaneio nos dá o mundo de uma alma, que uma imagem poética testemunha uma alma que descobre o seu mundo, o mundo onde ela gostaria de viver, onde ela é digna de viver (1998, p. 15).

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Bachelard, diante do exposto, empreende uma discussão, muito bem vinda, a respeito da força da imagem poética. E com isso provoca uma indagação, importantíssima, sobre as palavras em seu sentido mais literal e racional, no caso, o vocabulário da própria filosofia, assim como questiona o grande valor da imagem poética. O fragmento textual de Bachelard coloca em xeque os limites e fronteiras de duas linguagens, aparentemente, distantes: a linguagem da filosofia e a linguagem da poesia. No entanto, o filósofo nos desafia para pensarmos no poder da palavra poética. Visto ser a linguagem da alma. A linguagem poética, segundo Bachelard, fala mais fundo, visto tocar ou tangenciar nossa profundidade a partir da alma. Eis um dos pontos colocados por ele. E a partir de suas colocações coloca em xeque o papel do devaneio. O que ele denomina a poética do devaneio e, consequentemente, uma possível filosofia capaz de explicar o devaneio enquanto uma verdadeira aliada do pensamento no aspecto que tangencia a sensibilidade e a percepção. Componentes indispensáveis ao pensamento profundo.

Na prática... Não queremos e nem poderíamos, de forma alguma, propor fórmulas prontas que um educador poderia usar em sala de aula. No entanto, propomos sugestões que na prática podem ser transferidas e modificadas. Fragmentos de livros filosóficos deveriam ser usados em sala de aula por educadores de qualquer disciplina. Professores de química, física, matemática, língua portuguesa, literatura e de outras. Como vimos, diante do exposto, com apenas poucos exemplos, a linguagem da filosofia não deve e não pode assustar ninguém. Existem dezenas de textos filosóficos que poderiam ser usados em sala de aula. Expusemos Spinoza porque na Ethica o filósofo trata, de perto e de longe, das paixões humanas. E tal assunto toca e seduz qualquer ser humano. Em especial da maneira como as trata Spinoza. O filósofo da alegria. Das paixões alegres. E trata com uma linguagem simples, direta e que não exige nenhum repertório teórico-crítico-filosófico para entendê-la. Nessa perspectiva, qualquer professor poderia usá-lo como estímulo para pensarmos as relações humanas, as questões que envolvem o ato solidário, as questões que envolvem servidão e, sobretudo, a liberdade. Ou seja, em que medida o ser humano é determinado? Em que medida somos indeterminados para a abertura histórica da qual não podemos escapar? Estas e outras questões que deveriam ser debatidas em sala de aula por todos os educadores. Os textos de Spinoza propõem, em todos os momentos, questionamentos a respeito da moral. A tirania de certas relações em todos os âmbitos possíveis.

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Os textos de Bachelard colocados neste texto são profundamente cheios de imagens poéticas. Um dos pontos mais relevantes que se prestam a debates, na prática, em sala de aula, seria a respeito das fronteiras entre as linguagens. Ou seja, em que medida a linguagem mais usual, objetiva e ordinária pode ser modificada? O que é a palavra poética? Quais são os limites entre a linguagem literária e a linguagem da filosofia? Bachelard parte do postulado de que a linguagem poética consegue penetrar fundo na alma porque trabalha com o sensível. E o sensível, segundo ele, atravessa as almas, portanto, consegue exprimir com mais exatidão aquilo que realmente expressa um sentimento. Portanto, busca aproximar a linguagem da filosofia com a linguagem da literatura. O interessante é que o próprio Bachelard faz isso. Sua filosofia é extremamente poética. Uma linguagem filosófica altamente poética e que nem por isso é menor. Nada disso. É uma linguagem filosófica que apenas rompe com outros padrões mais canonizados da área. A linguagem de Bachelard é um verdadeiro convite de leitura aos textos filosóficos. Existem outros filósofos que também nos propõem uma linguagem clara e plenamente compreensível em relação aos seus conceitos e postulados. Deleuze, acima de tudo, em muitas de suas obras é acessível. Deleuze, em diversos momentos declarou, que a filosofia pode e deve ser lida por filósofos e não filósofos. Ora...Deleuze enfatiza da liberdade de cada um deixar-se habitar pela linguagem da filosofia. E vai mais longe: os não filósofos sempre deixam uma perspectiva importante que contribui seriamente para com a área filosófica. Sartre que além de um grande filósofo foi, também, um escritor, possui uma linguagem completamente compreensível em muitos de seus livros. A obra de Sartre é a prova real de que as fronteiras da linguagem literária, a linguagem das ciências e a linguagem da filosofia possuem zonas de aproximação que deveriam ser mais refletidas e colocadas em prática. Para finalizarmos cabem algumas provocações: é preciso, de uma vez por todas, que os professores-educadores tenham a coragem de desafiar os cânones impostos por currículos e modelos desgastados de conteúdo. É preciso ter, apenas um pouco de coragem e muita paixão, para renovar a linguagem, as leituras e, consequentemente, pensarmos em outras verdades, em outras possibilidades e estratégias na prática da sala de aula. Nossos alunos podem muito mais do que imaginamos. No entanto, há uma estratégia que jamais falhou: o desafio. Nossos alunos estão abertos para ele. O que precisamos é de professores que estejam propondo desafios! E com isso mudar formas fossilizadas e esclerosadas de pensar!

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Bibliografia BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988. ______. O Ar e os Sonhos. Tradução de Antonio de Padua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ______. Estudos. Tradução de Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Educação, Ensino & Literatura. São Paulo: ArteLivros Editora. 2a. ed. revista e ampliada, 2012. FREIRE, Paulo. Educação como prática da liberdade. 14a. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011. GONÇALVES, José Eduardo (org.). Ofício da Palavra. Belo Horizonte: Autêntica, 2014. LUCCHESI, Marco. Saudades do Paraíso. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1997. MAFFESOLI, Michel. Saturação. Tradução de Ana Goldberger. São Paulo: Iluminuras, 2010. MÉSZÁROS, István. A Educação para além do Capital. Tradução de Isa Tavares. São Paulo: Boitempo, 2008. SARTE, Jean-Paul. O que é literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. Petrópolis (RJ): Vozes, 2015.

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EDUCAÇÃO, LINGUAGEM E AS CONDIÇÕES DE PRODUÇÃO DO “INTERNETÊS” Antonio Carlos Rodrigues dos Santos1 “Queremos pensar a linguagem ela mesma e somente desde a linguagem. A linguagem ela mesma: a linguagem e nada além dela. A linguagem ela mesma é linguagem [...].” (HEIDEGGER, 2003).

Introdução O artigo verifica as condições de produção da linguagem denominada internetês,2 que no contexto das novas tecnologias serve à comunicação em sua forma específica de abreviação. No que pese tais tecnologias, concebemos os ciberespaços dos computadores, celulares, tablets etc. Do lado conceitual da linguagem volvemos nosso olhar para o que postula Bakhtin (2011, p. 261): “Todos os diversos campos da atividade humana estão ligados ao uso da linguagem (…).” Já do lado teórico do estudo do internetês, (netspeak) recorremos à obra de David Crystal intitulada Language and internet, que num tom situacional, ressalta: “One of the most obvious – but not thereby less significant – features is the lexicon that belongs exclusively to the internet, and which is encountered when someone enters any of its situations (…)” (CRYSTAL, 2004, p. 81).

O léxico supracitado por Crystal remonta exclusividade ao contexto da internet, dada suas condições de escrita no campo das tecnologias digitais. Esse léxico se legitima enquanto linguagem que traz consequências singulares adversas à escrita do papel, o que é, justamente, a partir de uma linguagem específica que se busca o significado social das ações humanas, bem como ainda apontam suas identidades peculiares. Sabe-se que escrever na superfície bran1 2

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Antonio Carlos Rodrigues dos Santos. Aluno do Programa de Mestrado em Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de Julho (UNINOVE). Contato: ttonhocarlos@ gmail.com. Internetês. Neologismo que diz respeito à linguagem dos usuários do meio virtual. Esta linguagem se dá pela abreviação das palavras que varia entre duas a cinco letras. Na edição em inglês de David Crystal (2004), traduz-se neologismo como netspeak.

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ca do papel, destoa da escrita organizada nos meios da tecnologia digital. As habilidades cognitivas exigidas para uma e outra, em muitos pontos, divergem de modo substancial, uma vez que não se resume mais ao escritor alfabetizado, grosso modo no sentido lato da palavra, e, conhecedor de amplo repertório vocabular. Nesse sentido elucida Heidegger quando afirma não pretender assaltar a linguagem a fim de obrigá-la às representações prontas e acabadas, bem como não pretender um conceito da essência da linguagem capaz de propiciar uma concepção da linguagem a ser usada por toda parte satisfazendo todo esforço de representação. (HEIDEGGER, 2003, p. 8). As implicações do autor corroboram com nossas ambições de apreensão da linguagem por uma natureza que de respeito à alteridade dos usuários do ciberespaço.

Leitura, linguagem e princípios Compreendemos ser relevante também ressaltar acerca da leitura processada pelos usuários dos espaços virtuais, Lucia Santaella inquire: “Quais são as habilidades cognitivas envolvidas na imersão nas infovias do ciberespaço?” (SANTAELLA, 2004, p. 18). Tentamos inferir algumas respostas a partir de três tipos de navegadores expostos pela mesma autora: o internauta errante, que se caracteriza por seu instinto de adivinhação, situado na mais frágil das inferências – a abdução, no entanto, é desta que vem seu veio criativo. Em outras palavras, diz respeito àquele navegador que aprende após cometer diversos erros, justamente pela ausência de algum tipo de norte. O internauta detetive, que se caracteriza pela disciplina, tendo em vista as trilhas dos ambientes hipermidiáticos. Orientado por inferências indutivas, gradativamente transforma dificuldades em adaptação. E, o internauta previdente, (...) é aquele que, tendo já passado pelo processo de aprendizagem, adquiriu tal familiaridade com os ambientes informacionais que neles se movimenta seguindo a lógica da previsibilidade [...].” (SANTAELLA, 2007, pp. 322-323). Neste sentido, as habilidades cognitivas do leitor imersivo do ciberespaço poderão resultar da experiência acumulada em cada um desses três leitores. É natural a relação e a integração das pessoas nos afazeres entre diversos grupos sociais. E estas por sua vez tentem se adequar a determinadas identidades que marcam o grupo que as recepcionaram. Assim, na mesma medida em que a produção da linguagem delegada pela escola impõe suas regras, a escrita da linguagem digital também tem suas organizações, às quais denominaremos de princípios norteadores que identificam situações comunicativas. Consoante a esta questão não é de todo dispensável ressaltar Gnerre o seguinte amparo:

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[...] As pessoas falam para serem “ouvidas”, às vezes para serem respeitadas e também para exercer uma influência no ambiente em que realizam os atos linguísticos. O poder da palavra é o poder de mobilizar a autoridade acumulada pelo falante e concentrá-la num ato linguístico (Bourdieu, 1977). Os casos mais evidentes em relação a tal afirmação são também os mais extremos: discurso político, sermão na igreja, aula, etc. As produções linguísticas deste tipo, e também de outros tipos, adquirem valor se realizadas no contexto social e cultural apropriado. As regras que governam a produção apropriada dos atos de linguagem levam em conta as relações sociais entre o falante e o ouvinte. Todo ser humano tem que agir verbalmente de acordo com tais regras, isto é, tem que “saber”: a) quando falar e quando não pode, b) que tipo de conteúdos referenciais lhe são consentidos, c) que tipo de variedade linguística é oportuno que seja usada [...]. (GNERRE, 1991, p. 6)

Estes princípios que norteiam a produção dos ciberespaços também não se fazem menos importantes, uma vez que ocorrem no contexto social dos usuários dessas tecnologias. Com efeito, sejamos honestos. Quem nunca, que se julgue versado de habilidade escritora tentou se adequar à escrita das abreviaturas, comumente usadas entre os mais jovens? O fato é que as pessoas tentam a todo o momento se adequar a qualquer situação. Tanto para um lado como para outro, seguindo uma lógica de causa/consequência.

Conceitos de linguagem e aporte epistemológico se reservarmos à linguagem o conceito ���������������������������� único como ����������������� expressão do pensamento, tal conceituação, por sua vez, está ligada à gramática tradicional. A concepção que compreende, restritamente, a linguagem como instrumento de comunicação, liga-se a estudos recorrentes à escola estruturalista e ao transformacionalismo, que respectivamente, se sustenta sob as teorias de Ferdinand Saussure e Noam Chonsky (GERALDI. 2006, p. 41). E, por último, a linguagem como forma de interação que remete ������������������������������������� à linguística da enunciação, cuja ��� expressão maior se encontra em Bakhtin, remonta às incursões das interações nas quais os usuários das novas tecnologias esbanjam apreensões. O problema entre os conceitos supracitados surge quando elegemos um e eliminamos outro somente por defendermos caprichos que nos remete a preconceitos, teoricamente, insustentáveis. Na perspectiva da linguagem, a partir do que se escreve nos meios digitais, buscamos alguns argumentos fulcrais na teoria da semiótica. “[...] A linguagem, em todas as suas modalidades, quer a do cinema, a da música e outras, é um processo de materialidade. Em se tratando da linguagem verbal, tanto o

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som quanto a parte gráfica são processos abstratos que possuem uma consistência física [...]” (BAPTISTA & TAVARES, 2016, p. 31). A teoria semiótica é um terreno propício para nossos argumentos, visto que ajuda a provar que a escrita dos jovens à luz das novas tecnologias também é produção de linguagem. Por esse prisma, o ideal para um campo que delega a preocupação com linguagens e suas bases fundantes, será adotar a seguinte terminologia: a língua enquanto uma linguagem verbal e as outras linguagens como a do cinema, do teatro, a musical e outras como não verbais. (BAPTISTA, 2015, p. 86). Atendo-se nessa perspectiva, Baptista conceitua linguagem como qualquer sistema de signos que servem à comunicação. Nessa esteira sígnica a serviço da comunicação, legitima-se também o internetês, considerado por muitos como linguagem minoritária. Sartre (2004, p. 14), por seu veio literário, afirma que, “[...] para o poeta a linguagem ���������������������������������������������������������������� é uma estrutura do mundo exterior ������������������������������ [...].” O autor firma seu conceito quando postula que “[...] O poeta está fora da linguagem, vê as palavras do avesso, como não pertencesse à condição humana, e, ao dirigir-se aos homens, logo, encontra-se a palavra como uma barreira [...].” Ainda no que pese o trabalho do poeta acerca da linguagem, reitera o autor: “[...] a linguagem inteira é, para ele, o Espelho do mundo [...]”. Estas incursões do campo conceitual da linguagem se tornam significativas a este trabalho porque nos coloca frente a diferentes matizes e de ramos diversos, e, a partir desse clima de alteridade, legitima também nossas ambições acerca das produções defendidas no suporte das novas tecnologias.

O gênero internetês e a condição de liberdade sabemos que os gêneros do discurso recorrentes na sociedade dão-se de forma incontável. No meio específico das novas tecnologias essa contabilização faz-se muito ampla. No dizer de Bakhtin (BAKHTIN, 2011, pp. 261-262), em cada época e cada grupo social gozam de repertório e formas de discurso no aporte da comunicação sócio-ideológica. Nesse ponto, incorre-se a necessidade de abordar no evidente trabalho os gêneros do discurso, e consequentemente, seus conceitos. Nessa esteira da conceituação dos gêneros, vale ressaltar acerca do uso da língua a partir de enunciados, tanto orais como escritos, concretos e únicos, proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo, tema, ou estilo de linguagem, assim dizer, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua mas, antes, por sua construção composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo, a construção composicional – estão indissoluvelmente ligados

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no todo do enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso. A incontável diversidade de����������������������������������������� gêneros �������������������������������� e também suas construções composicionais propiciam formas e funcionamentos de linguagens em diferentes situações da comunicação humana. A produção no suporte dos meios digitais, dada às características peculiares de escrever, suas condições surtem maior grau de liberdade. Essa liberdade pode encontrar razão de ser a partir da dinamicidade ocorrida no ato da produção, o que acarreta na construção das mais diversas abreviações, que é a redução, em potencial, de grande parte do léxico da língua, hoje, denominado internetês, como já mencionamos anteriormente. Para tanto, citaremos algumas dessas abreviações: bjs por beijos, tb por tudo bem, pq por porque, abç por abraço, vc por você, kd por cadê, qnd por quando entre outros tantos. Do lado da questão estrutural, atenta Bakhtin (1979, p. 42), para a seguinte questão: [...] cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação sócio-ideológica. A cada grupo de formas pertencentes ao mesmo gênero, isto é, a cada forma de discurso social, corresponde um grupo de temas. Entre as formas de comunicação (por exemplo, relações entre colaboradores num contexto puramente técnico), a forma de enunciação (“respostas curtas” na “linguagem de negócios”) e enfim o tema, existe uma unidade orgânica que nada poderia destruir [...].

Os grupos pertencentes ao meio digital também se inserem numa temporalidade e gozam de formas de discurso que servem a uma comunidade específica. Fator de grande relevância na produção da escrita das abreviaturas na internet, dada à revolução tecnológica, no dizer de Marcuschi, apud Crystal (2008, p. 196), é que, seja a internet menos do advento da própria revolução tecnológica e, mais da revolução das maneiras sociais do interagir linguístico. David Crystal, consoante à produção do gênero netspeak (neologismo), discorre incisivamente acerca do assunto: A systematic description of the features of netspeak, as encountered in different internet situations, is a new goal of descriptive linguistic research. At present, the distinct purposes and procedures involved in e-malling, chatgroups, virtual worlds, and the web make for significant differences between them (these are reviewed in chapters 4-7) – such

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as e-mails at a web site, or web attachments to an e-mail. And there seems to be a considerable mutual influence between situacions [...]. (CRYSTAL, 2008, p. 81)

Ao ressaltar à linguística descritiva como base teórica e legitimadora de linguagem que se desprende das formas positivistas de produção, bem como, ainda remonta à liberdade criadora do escrever, encontra o autor consonância teórica, entre outras questões, em Paulo Freire que vê na liberdade do homem sua capacidade criadora. Não houvesse esta integração, que é uma nota de suas relações, e que se aperfeiçoa na medida em que a consciência se torna crítica, fosse ele apenas um ser da acomodação ou do ajustamento, e a história e a cultura, domínios exclusivamente seus, não teriam sentido. Faltar-lhes-ia a marca da liberdade. Por isso, toda vez que se suprime a liberdade, fica ele um ser meramente ajustado ou acomodado. E é por isso que, minimizado e cerceado, acomodado a ajustamentos que lhe sejam direito de discuti-los, o homem sacrifica imediatamente a sua capacidade criadora. Esparta não se compara a Atenas, e Toynbee adverte-nos da inexperiência do diálogo naquela e da disponibilidade impostos, sem o permanente da segunda à discussão e ao debate das ideias. A primeira, “fechada”. A segunda, “aberta”. A primeira, rígida. A segunda, Plástica, inclinada ao novo. (FREIRE, 1983, p. 42).

Neste âmbito em que se defende a liberdade no ato de produção, concomitantemente, estimula-se entre os jovens seus veios criativos. Alguém poderia refutar que esta liberdade produtora sirva, unicamente, à displicência no que concerne a falta de habilidade linguística. Por outro lado, à escola cabe guiar os jovens quanto à produção dos gêneros e sua contextualização, e não desconsiderar aquilo que o aluno escreve. Decerto que há um longo caminho a percorrer no que diz respeito à leitura entre os jovens que possa despertar uma consciência crítica, mas, não é cerceando suas produções, sobretudo dos meios digitais, que chegaremos a um denominador comum.

A escrita pela condição do medo ao escrevermos somos submetidos a alguma forma de avaliação. A sociedade, de modo unânime, impõe condições de escrita, ou pelo menos se espera do sujeito social certa habilidade inerente à sua hierarquia na qual se encontra inserido. Isso ocorre, comumente, sem algum tipo de verificação da representação de papeis desse sujeito. Sua posição hierárquica já responde por si só.

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Tendo em vista essa questão, demonstrar as habilidades escritoras na superfície do papel, nos leva a produzir numa condição, muitas vezes de opressão e controle. Essa opressão tem sua origem também a partir do conceito unilateral de ensino que tem prestigiado, historicamente, um único modelo de cultura como legítimo pautado sob as bases de uma sociedade grafocêntrica e elitista. Nesse prisma, ainda advoga Baptista, que as sociedades da contemporaneidade, em diversos graus, querem fazer crer que a linguagem verbal, ou seja, a língua escrita seja a forma mais importante de comunicação. No entanto, esta afirmação, está revestida de uma ideologia encarregada de relegar outras formas de linguagem, levando-as à exclusão, quando na verdade, não lhes foram dadas as devidas oportunidades na escola de aprendizagem da língua (BAPTISTA, 2015, p. 86). Vale ressaltar também neste artigo as corroborações de Michèle Petit em seu livro “os jovens e a leitura”, no capítulo intitulado “o medo do livro”. Neste aponta a autora um dos interditos entre os leitores da zona rural francesa, o poder, e, sendo neste espaço mais que nas cidades, o domínio da língua e o acesso aos textos impressos foram por muito tempo privilégio daqueles que detinham o poder, ou seja, os homens dotados de notoriedade, representantes do Estado e o clérigo. Portanto, estes sempre quiseram fiscalizar os leitores. (PETIT, 2010, pp. 106-107). Mais uma vez se tornam fulcrais as corrobora������������������������� ções��������������������� de Gnerre neste campo da escrita como imposição de poder ao apontar uma bibliografia de autores dos anos de 1960: “[...] Um ponto crucial e criticável nas posições desses e de outros autores da época foi o fato de que pensaram somente as consequências da escrita nas sociedades como totalidades e não como grupos sociais privilegiados que controlavam o poder de uso da escrita” (GNERRE, 1991, p. 72). Oriundos dessa época herdam os escritores do internetês uma metodologia cujos entraves lhes destituem correntemente do empoderamento de suas produções.

A criatividade dessa linguagem A produção suportada no ciberespaço das novas tecnologias ainda é alvo de grande crítica pelos mais conservadores, sobretudo, no campo da permutação do léxico, apresentado aqui neste trabalho como abreviaturas. No entanto, não há como negar que, antes disso, tal produção surge como veio criativo. Já nos ocorreu que esta criatividade tenha suas origens a partir da necessidade de se acomodar em um pequeno espaço grande quantidade de caracteres? E, talvez, surgira não somente do espaço físico da tela digital, mas também, do parco espaço de tempo que os usuários têm para digitar suas mensagens de texto, da

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consciência do gasto em consumo de internet e até energia? Lançamos apenas hipóteses, mas, vale uma discussão mais aprofundada. Um fator não menos relevante de discussão neste trabalho, diz respeito à falta de familiaridade com as novas tecnologias, seja por parte dos excluídos ou dos partidários da resistência. Com efeito, as condições em que estes são submetidos, que via de regra não são poucas, esbarram-se na imperícia da operacionalização das máquinas. Desta imperícia no ato de escrever à luz dessas tecnologias, podem surgir sérias consequências, tanto de ruídos na comunicação como de impossibilidades de produção de trabalhos.

O papel da escola não deve ser amistoso Ensinar os alunos a serem atores que representam papéis nos diversos meios de suas vidas, hoje, se torna umas das principais funções da escola. Nisso, faz-se compreensível a preocupação dos partidários que se posicionam contra essa forma de produção da escrita abreviada, visto que há de se considerar que há, de fato, um problema entre os alunos do saber lidar com a língua de modo geral. No entanto, o que merece total atenção nesse contexto é a ação da escola no tocante ao ensino da escrita na abordagem heterogênea de produção dos gêneros. Da mesma maneira que escrever um artigo de opinião delega cuidado com a norma culta da língua, escrever um “causo” caipira requer habilidade específica para a transcrição da fala regional. Comumente, a escola ensina, sob o acompanhamento de roteiros, a escrita de diversos gêneros. No entanto, no caso do internetês não se percebem manuais de produção desse gênero. O usuário das novas tecnologias encontra seu quinhão de prazer durante sua ocupação interativa. Diante deste, diversas atividades estão expostas, como: música, imagens, jogos, mensagens, vídeos cômicos etc. No caso dos jogos eletrônicos, nunca vimos os adolescentes conhecerem tanto sobre os deuses do Olimpo como nos dias de hoje, via o jogo God of war.3 Estes lidam com a urdidura de leituras dos hipertextos, hoje, considerados como leituras em alto grau de potencialidade. Por outro lado, não devemos poupar críticas às políticas de governo no que pese à contextualização do ensino com as novas tecnologias. Vale recorrer às postulações de Pierre Lévy: [...] Parece-nos, entretanto, que a informatização das empresas, a criação da rede telemática ou a “introdução” dos computadores nas escoas podem muito bem prestar-se a debates de orientação, dar margem a múl3

Jogo eletrônico do vídeo game play station II.

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tiplos conflitos e negociações onde técnica, política e projetos culturais misturam-se de forma inextrincável. Tomemos o caso da informática escolar na França. Durante os anos oitenta, quantias consideráveis foram gastas para equipar as escolas e formar os professores. Apesar de diversas experiências positivas sustentadas pelo entusiasmo de alguns professores, o resultado global é deveras decepcionante. Por quê? É certo que a escola é uma instituição que há cinco mil anos se baseia no falar/ditar do mestre, na escrita manuscrita do aluno e, há quatro séculos, em um uso moderado da impressão. Uma verdadeira integração da informática (como do audiovisual) supõe portanto o abandono de um hábito antropológico mais que milenar, o que não pode ser feito em alguns anos. Mas as “resistências” do social têm bons motivos. O governo, escolheu material da pior qualidade, perpetuamente defeituoso, fracamente interativo, pouco adequado aos usos pedagógicos. Quanto à formação dos professores, limitou-se aos rudimentos da programação (de um certo estilo de programação, porque existem muitos dele [...] como se fosse este o único uso possível de um computador!. (LEVY, 1993, pp.4-5)

O autor dá um exemplo específico da política de inclusão das novas tecnologias do governo francês. Do lado da política brasileira, podemos observar que esta não perpassa as descrições de metas em documentos – e, isso nos leva a perceber o tamanho e o desafio que ainda precisam ser enfrentados.

Inconclusões pode-se depreender destas reflexões, mesmo de natureza bibliográfica e sem a pretensão de fechar a pauta das discussões, que a linguagem abreviada produzida no ciberespaço, ou seja, no espaço virtual, seja esta linguagem, insistentemente, objeto de debate em favor do direito da aprendizagem. De fato, não há mais espaço para inquirições que defendem o bom trato da linguagem como se a “última flor do Lácio”4 pudesse parar no tempo relegando a todo tipo de variação. Nossos saudosismos linguísticos a Bilac poderiam muito bem dialogar com um Mário de Andrade e com um Bandeira. E por que também não com os objetos das novas incursões do mundo digital? A capacidade de interagir linguisticamente entre as pessoas, como observado no decorrer do texto, é o ponto fulcral do objeto deste artigo, visto que, mencionando as teorias líquidas de Bauman, nem tudo que tratamos como inovação pode ser considerado tão novo como se pensa. Em suma, o desmerecimento da linguagem produzida nos meios digitais nos parece ser oriundo mais de uma relação de poder, e, menos de uma 4

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Verso da poesia “Língua portuguesa” de Olavo Bilac.

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aversão a determinada inovação. E, para fazer jus às nossas incompletudes, se ocorridas as linguagens num cenário de alteridade, podem muito bem se abalizarem entre o que por ventura se considere antigo e novo.

Referências BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução: Paulo Bezerra. 6. ed. São Paulo: editora WMF Martins Fontes, 2011. BAKTIN, M. & VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1979. BAPTISTA, A. M. H; TAVARES, A. M. Linguagem: colonização, colonialidade e descolonialização. In: BAPTISTA, Ana Maria Haddad; SILVA, Maurício (Orgs.). Educação e Cultura Literária. 1. ed. São Paulo: Big Time, 2016. BAPTISTA, A. M. H. Educação, Linguagens e Semiótica: uma proposta possível. In: BIOTO-CAVALCANTI, P. A.; TEIXEIRA, R. A. (Orgs.). A Experiência do Mestrado Profissional em Gestão e Práticas Educativas: narrativas e resultados preliminares. 1. ed. São Paulo: BT acadêmica, 2015. CRYSTAL, D. Language and the Internet. Cambridge University Press, 2004. FREIRE, P. Educação como prática de liberdade. 14. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. GERALDI, J. W. (Org); ALMEDA, M. J. [et al]. O texto na sala de aula. 4. ed. São Paulo: Ática, 2006. GNERRE, M. Linguagem, escrita e poder. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1991. HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução de Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. LÉVY, P. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. Tradução de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 1.ed. 2. Reimpressão, 2002. editora 34, 1993. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. PETIT, M. Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva. Tradução de Celina Olga de Souza. São Paulo: 2. ed. Editora 34, 2010. SANTAELLA, L. Linguagens líquidas na era da mobilidade. 1.ed. 2. Reimpressão. São Paulo: Paulus, 2007. . Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. SARTRE, J. P. Que é literatura? Tradução de Carlos Felipe Moisés. 3.ed. 2. Reimpressão. São Paulo: Editora Ática, 2004.

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EDUCAÇÃO INTERATIVA NA LINGUAGEM DOS “NATIVOS DIGITAIS” Alberto Cabral Fusaro1

Nativos digitais, imigrantes digitais e a babel educacional Segundo Mark Prensky, no começo do século XXI a humanidade se divide em duas claras gerações: a dos “nativos digitais” (2010b, pp. 57-62), composta pelas pessoas que começaram sua experiência cognitiva no mundo tendo disponíveis, e como lugar comum, toda sorte de dispositivos eletrônicos conectados à rede mundial de informação, como tablets, computadores e smartphones, incorporando suas capacidades a seu modo de pensar e a sua linguagem; e a dos “imigrantes digitais”, que, a despeito de incluir até mesmo os inventores das plataformas e tecnologias de comunicação digitais, é caracterizada por se constituir de pessoas que aprenderam a usar e a conviver com tais tecnologias, adaptando-se à nova linguagem resultante. Todavia, por mais que participem das novas mídias e vivam expostas ao novo contexto comunicacional, não perdem o “sotaque” pré-digital e continuam pensando e percebendo em primeira instância um mundo não integrado, sem Internet, limitado dimensionalmente aos meios de comunicação anteriores, traduzindo posteriormente seu pensar para a realidade expandida da Internet. Ao usar os meios digitais e as novas formas de interação como meras “variações” dos meios antigos, e não como algo realmente novo e distinto, esses imigrantes digitais percebem e interagem com o novo mundo integrado de maneira limitada e ineficiente, principalmente sob o jugo do ponto de vista dos nativos digitais. Diante de tal quadro, pode-se inferir que o contexto educacional do período apresenta um desafio ímpar: o conjunto dos educadores responsáveis pela formação das primeiras gerações de nativos digitais é constituído, predominan1

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Mestrando em Tecnologias da Inteligência e Design Digital (PUC-SP), Bacharel em Filosofia (USJT); Técnico especializado (ETFSP) e atuante na área de eletrônica com ênfase em Tecnologia da Informação. Possui experiência como professor em cursos autônomos na área de Filosofia. Palestrante e pesquisador nas áreas de interfaces entre filosofia, ciência e epistemologia, investiga inteligências não orgânicas no período pós-humano e também o surgimento de um novo modelo cognitivo baseado na inclusão, filosoficamente justificada, da dimensão digital na realidade percebida.

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temente, por imigrantes digitais. Por se tratar de uma instância de mutação relevante na realidade cognitiva da humanidade, com o advento da ubiquidade informacional (SANTAELLA, 2013, pp. 16-8) e da virtualização digital da realidade, o “vale geracional” tende a ser muito mais proeminente e a gerar tensões ainda mais notáveis. Além disso, as inadequações “contornáveis” já existentes no sistema educacional que persistiram no modelo cognitivo anterior, sem a computação ubíqua, vão se tornando mais evidentes e intoleráveis, acentuando a percepção de uma necessidade de mudança. A sugestão crítica de Mark Prensky, em sua obra From Digital Natives to Digital Wisdom (2012a, pp.13-16), é a de que não se pode resolver as inadequações do sistema de ensino por meras reformas, mas por uma, também necessária, modificação daquilo que se ensina aos alunos. Segundo o autor, não bastaria proceder pela substituição de todas as partes do sistema de ensino, incluindo professores, ambientes físicos e infraestrutura, se a educação provida continuar a mesma de antes de quaisquer reformas sistêmicas. A despeito de mencionar exemplos específicos de seu país, os modelos criticados são lugar comum na educação ocidental como um todo, considerando todo o período histórico posterior à revolução industrial. Quando afirma que “os reformistas estão deixando nossas escolas no século vinte” ao criticar as escolhas dos responsáveis pelas supostas inovações no sistema de ensino, reconhecemos a adequação de tal opinião à maioria dos países ocidentais, incluindo o Brasil. Uma ótima ilustração que Prensky oferece para esse argumento é o fato de que a maioria das reformas educacionais tenha foco em aspectos disciplinares, investindo em capacitar o sistema a impor disciplina autoritariamente ao aluno, atribuindo-lhe o “dever” de “sentar direito, prestar atenção e anotar tudo”, reforçando um modelo hierárquico consolidado e culturalmente congelado, enquanto apenas uma minoria de propostas focalize no desenvolver da autodisciplina e na viabilização de uma conexão passional entre o aluno e seu assunto de estudo, mesmo que essas esparsas e raras proposições sejam as que melhor deem resultados quando aplicadas aos nativos digitais. Podemos considerar que aqueles que nasceram em um contexto permeado pelas novas tecnologias, com acesso ao meio de informação digital ubiquamente presente, por conta da computação pervasiva, percebem a realidade com uma dimensão virtual a mais, algo que os habilita a “violar” a percepção tradicional da geração anterior. Isso parece ter permitido também o surgimento de novos sistemas interativos, estabelecendo novas ligações tanto entre os indivíduos em si quanto entre os indivíduos e a própria tecnologia que cria o meio da experiência cotidiana dessa nova “tecnorrealidade”. Uma das estratégias de aprendizagem de habilidades que se reformulou naturalmente com o surgimento desse novo meio foi a ligada a toda forma de

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jogos. Cada jogo tem seu sistema de regras, seus objetivos, seu contexto e suas limitações, e quando começaram a surgir os jogos da era da comunicação digital esses parâmetros se tornaram muito mais flexíveis e, mesmo continuando a existir, passaram a constituir novas estruturas do perceber e do pensar os conceitos envolvidos em sua existência. A era dos jogos eletrônicos se tornou a era dos jogos digitais e dos videogames, que, por sua vez, foi integrada e expandida pela era da Internet, da disponibilidade ubíqua da informação e da computação pervasiva, colocando os jogadores imersos em um mundo que, embora virtual, possibilita experiências sensoriais mais realistas e convincentes do que a maioria dos meios de estímulos anteriores combinados. Sendo da natureza dos jogos prover e requerer algum nível de aprendizagem, como, por exemplo, o aprendizado de regras e de habilidades específicas, pretendemos explorar as maneiras pelas quais podemos identificar e aproveitar essa característica no processo de educação dos nativos digitais. Assim, investigando a hipótese de considerar as mídias informacionais como dimensões virtuais, especificamente na era da comunicação ubíqua, reconhecemos nas interfaces de sistemas interativos a possibilidade da identificação de dimensões informacionais e cognitivas adicionais às relações espaço-temporais do ambiente físico em que esses fenômenos de interfaceamento acontecem. Como um primeiro movimento, no sentido de entender essas interações e balizar uma proposta de mudança sistêmica no ensino, que funcione para os nativos digitais, faz-se necessário conceituar o conjunto dimensional físico mais modificado pelos adendos multidimensionais virtuais mencionados: o espaço.

Espaço Primeiramente, consideremos a síntese do problema de se conceituar o termo “espaço” segundo Santaella (2007, p.156): Desde a explosão do universo digital que trouxe consigo a emergência do ciberespaço, o conceito de espaço veio se tornando moeda cada vez mais corrente, especialmente a partir da difusão extraordinária dos equipamentos móveis – telefone celular, laptop, palmtop, PDAs (Personal Digital Assistants), conexões Wi-Fi (sem fio) –, cuja descrição de usos, dos comportamentos que acionam, dos efeitos psicossociais que provocam, vê-se acompanhar por termos como “nomadismo”, “ubiquidade”, “bordas e espaços fluidos”, “território”, “desterritorialização”, “rizoma”, “lugar”, “não lugar”, todos termos pertencentes ao campo semântico de espaço.

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Com base na pesquisa de Santaella (Ibid., pp. 155-164), assumimos que espaço seja um conceito plural e relativo a cada período histórico e a cada perspectiva de abordagem. O senso comum, acorde às definições tanto da antiguidade quanto dos dicionários atuais, assume um espaço preexistente quase materializado, ambiente talvez “poroso” de manifestação de objetos e fenômenos. Na história da matemática, só encontramos uma noção de espaço geométrico em Descartes, tendo os matemáticos antigos e medievos se eximido de atribuir-lhe existência própria. Esses mesmos antigos criaram uma pluralidade enorme de conceitos físicos e cosmológicos relativos e/ou próximos ao sentido de espaço, sendo o “makom” hebraico (que veio eventualmente representar a ideia de Deus como lugar) e o “topos” grego os mais antigos do Ocidente. Se Pitágoras associou inicialmente espaço com kenom (vazio), Parmênides negava a possibilidade do vazio, mas também negava a materialidade do espaço (se fosse material, ocuparia espaço). Para Demócrito era o “não ser”, substituto ou alternativa ao vazio, aquilo que separava os átomos: não ser estava para o ser como o vazio estava para o cheio. Lucrécio concebeu um espaço infinito, mas como um recipiente vazio. A física atual trata o vazio como espaço sem matéria nem energia. No trajeto da história vemos o espaço ser associado aos conceitos de caos (Aristóteles lendo Hesíodo), “chora” e depois “topos” no Timeu de Platão, “topos” na Física de Aristóteles (lugar: circunda o limite e faz fronteira com os corpos), aparentemente tentando definir lugar em relação ao cosmos. O “cosmos” de Homero (ordem original do universo) assume o papel de princípio universal para Heráclito, já para Leibniz, dois milênios depois, a ordem das coisas que coexistem é o espaço – não é substância, como seria para Descartes, mas relação entre substâncias. Para Kant o espaço é um a priori, uma intuição, algo imposto pelo experimentador do fenômeno, não é próprio das coisas em si mesmas. O conceito de infinito para os gregos antigos, “apeiron”, significava geração universal. Giordano Bruno, no século dezesseis, unifica espaço e infinito em seu modelo de infinitos mundos em um espaço euclidiano aberto. Cem anos depois, Espinoza partilha o sentido de infinito com extensão. O conceito de espaço foi, desde a antiguidade, associado ao conceito de tempo. Aristóteles argumentava que sem pareá-los não se obtinha o movimento, kinesis, evidência da alma no mundo. Bergson, na virada do século dezenove para o século vinte, propôs uma dissociação filosófica da obrigatoriedade da relação espaço-tempo, propondo um modelo distinto baseado em duração, elã vital e evolução criadora, mas no mesmo período o paradigma do continuum espaço-tempo estava sendo aperfeiçoado matematicamente e prevaleceu.

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O estudo do espaço cartesiano (três dimensões funcionando como base da geometria na matemática) leva ao desenvolvimento da perspectiva retilínea, identificável na representação bidimensional do espaço tridimensional em boa parte da arte renascentista. Mas é no século dezenove que surgem as geometrias não euclidianas, permitindo a operação matemática e geométrica de dimensões não retilíneas. O conceito de espaço recurvado viabilizou a elaboração de novas teorias como, por exemplo, a da relatividade de Einstein, em que o espaço se mostra curvo na proximidade de matéria. Novas geometrias, como a riemaniana e a topológica, permitiram um melhor entendimento de fenômenos da natureza que até então não permitiam a construção de modelos preditivos. Se Locke marcou o pensar do espaço na filosofia do século dezessete, foi Kant, na segunda metade do século dezoito, quem propôs um modo desafiador de pensar os conceitos de espaço e tempo, que não seriam conceituais, mas formas de percepção a priori dos seres. Contudo, esse sistema não daria conta dos modelos das novas geometrias não euclidianas que surgiriam no século seguinte. No século dezenove houve a introdução do conceito do dualismo geral entre espaço e estrutura, do qual o dualismo espaço-estrutura euclidianos é caso particular. Essa dualidade matemática implica numa intimidade entre matéria e espaço que reconhecemos na teoria da relatividade com o curvar do espaço em função da matéria e também na dualidade partícula-onda da física quântica. Contudo, o espaço flexível da física relativista, que, embora se curve, é real e precisa ser atravessado quando há movimento, não se concilia facilmente com o espaço potencial da mecânica quântica, que é virtual e repleto de zonas proibidas, nas quais nada pode existir. Foi a matemática concebida para o espaço de fases da mecânica estatística que deu conta do espaço potencial da mecânica quântica: concebida originalmente para lidar com um espaço abstrato, uma ferramenta matemática, tornou-se nas mãos dos físicos uma ferramenta de acesso a uma nova realidade. Mencionar “realidade” é algo que “nos conduz para o espaço da percepção e das experiências humanas, nas quais o conceito de espaço passa a ter um estatuto psíquico, social e histórico que apresenta uma multiplicidade transbordante de facetas” (SANTAELLA, 2007, p.164). Com o desenvolvimento, no século dezenove, das ciências que tratam do comportamento humano, a experiência sensorial do espaço passa a ser objeto de diversos estudos. Mesmo que intangível ou difuso, o espaço não pode ser separado do contexto no qual é experimentado. Em nível biológico, mais próximo da sensibilidade animal, há uma sensação de espaço mais básica (espaço primitivo), independente da (ou anterior

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à) interpretação simbólica, que estabelece parâmetros simples como o alcance da visão, movimento, audibilidade, entorno etc., e gera, por exemplo, a sensação de segurança ou insegurança que leva a identificação da necessidade de deslocamento por desconforto ou de se aconchegar e permanecer no lugar. Já a percepção em si do espaço é mais complexa, envolve mais do que apenas sensação espacial de entorno, integrando relações emocionais à experiência do espaço. É nesse “espaço perceptivo” (Ibid., p.166) que é experimentada a vida, com todos seus nuances mais irrelevantes, dando significado ao ambiente mesmo na banalidade do que há de mais corriqueiro. O ser humano vive no “espaço de existência”, que lhe aparece na “experiência concreta como membro de um grupo sociocultural, espaço ativo constantemente recriado pelas atividades humanas. Portanto, enquadram-se nessa rubrica todos os espaços definidos e construídos pela cultura” (Ibid., p.168). Interessam-nos ainda as tipificações do espaço como sendo cognitivo e, também, abstrato. Se o primeiro tipo se refere à tentativa de discutir, teorizar e refletir sobre o espaço e suas possíveis estruturações, o segundo seria a construção apenas teórica de uma dessas possibilidades, sem necessidade de correspondência experimental. Nessa tipificação seriada, vimos um movimento de entender o espaço desde como um mero gerador de estímulos e reações até a abstração de um espaço que só existe no mundo da teoria, na imaginação e/ou na lógica humana. Podemos incluir então os tipos de espaço que expandem os conceitos anteriores pela integração de meios tecnológicos que, de certa maneira, realizam espaços teóricos fora e além do confinamento da mente humana, tornando os efeitos desses espaços, até então abstratos, sensíveis no espaço de existência. Os lugares-não lugares seriam, resumidamente, caracterizados pela transitoriedade, espaços geográficos de funcionalidade dinâmica, reconhecidos por sua ocupação fluida e provisória, pela constante iminência de trocar de usuários ou de ser outra coisa em função da dinâmica plástica de sua utilização. Esses não lugares permeiam as megacidades da supermodernidade: hotéis, aeroportos, ônibus, aviões, parques, estradas, “lugares de passagens efêmeras e fugazes que caracterizam a existência em condição de mobilidade dos habitantes das grandes cidades” (Ibid., p.177).

Ciberespaço e ubiquidade O espaço que as redes fizeram nascer – espaço virtual, global, pluridimensional, sustentado e acessado pelos computadores – passou a ser chamado de “ciberespaço”, termo criado por William Gibson, na sua novela Neuromancer, em 1984. Um espaço que não apenas traz,

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a qualquer indivíduo situado em um terminal de computador, fluxos ininterruptos e potencialmente infinitos de informação, mas também lhe permite comunicar-se com qualquer outro indivíduo em qualquer outro ponto da esfera terrestre. À multivocalidade da vida urbana de que nos fala Bauman (2001, p.123), veio se entrelaçar a multidimensionalidade e multitemporalidade do ciberespaço, estas sob o signo da efemeridade, do fugaz, fugidio, aparecimento e desaparecimento – em frações de segundos de toques de dedos apressados – de imagens, sons, vídeos, textos, gráficos, tudo se misturando nas novas ordenações de hipersintaxes (SANTAELLA, 2007, pp.177-8).

Consideremos então o ciberespaço como o espaço virtual (ou informacional) resultante da troca mútua e constante de informação entre dispositivos eletrônicos de toda sorte, de megasservidores a notebooks, a smart-watches, a geladeiras inteligentes, a smartphones, a smart-TVs etc., todos e cada um com os mais diversos graus de inteligência sintética ou simulada (talvez artificial), interconectados por meio da rede global de informação. Mais e mais dispositivos dotados de acesso à Internet, capazes de algum nível de automação e/ ou de interação com o meio e com seus usuários surgem e se difundem a cada instante. A computação se torna assim pervasiva (embebida no ambiente e, em certa medida, indistinguível deste) e, a comunicação, ubíqua (móvel, onipresente, proliferada, disponível, contígua à experiência cotidiana) (SANTAELLA, 2013, pp.13-22). Esse espaço virtual digital depende de uma estrutura de rede de comunicação, mas qualquer ponto de acesso pode operar como um servidor de informação em escala global, criando uma possibilidade de paridade entre seus usuários que depende apenas da disposição individual em se tornar prolífico no uso das ferramentas e interfaces dessa rede. Ao mesmo tempo, os dispositivos inteligentes tornam a estrutura da rede cada vez mais invisível e seus efeitos mais integrados à realidade mundana, ao cotidiano, tornando reais efeitos que poderiam ser apenas descritos como fantásticos antes dessas conquistas tecnológicas. Desse modo, a multidimensionalidade oferecida pelas redes integradas ao espaço existencial vão dispensando progressivamente que se conheça o aspecto técnico e os conhecimentos teóricos do meio para que se possa imergir nele e desfrutá-lo, aproximando progressivamente o ciberespaço do “espaço de percepção” à medida que nos habituamos com a presença e os efeitos da ubiquidade e da computação pervasiva. Muitas das características relacionadas pelos estudiosos que trataram do espaço se aplicam também ao ciberespaço, desde os conceitos de caos e apeiron até os espaços cognitivos e abstratos. Sendo o ciberespaço, do ponto de vista do usuário, um complemento ao espaço, obtemos assim a multidimensionalidade

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de efeitos fantásticos já citados anteriormente, mas é da capacidade imersiva das interfaces, e de seus graus e tipos de interatividade, que essas dimensões adicionais factualmente dependem para se realizar no espaço de percepção e no espaço existencial do usuário. Com foco nesse efeito imersivo, em lugar de investigarmos apenas o efeito da ubiquidade sustentada pela computação móvel, focalizaremos esforços e exemplos no recorte da experiência do uso do console de videogame, que opera em parte como dispositivo de acesso à Internet, em parte como unidade computacional autônoma, mas utiliza em geral o ambiente de socialização dos lares (sala de estar ou sala de jogos/vídeo/home-theater) e o aparelho de televisão (dispositivo de vídeo) ali instalado, tornando-se parte da computação pervasiva desse ambiente. Cabe observar que, em muitos lares, é um computador pessoal, um módulo “smart” ligado ao, ou nativo do, televisor, um set-top-box ou outro dispositivo similar que cumpre a função do console de videogame. Isso não invalida a presente proposta, pois o efeito estudado independe da plataforma física que o proporciona. Outro componente a considerar é a tecnologia de espelhamento remoto, em que os dispositivos móveis são usados remotamente como terminais de acesso ao console de videogame e ao computador, servindo apenas como janelas de acesso ao ambiente virtual criado nessas plataformas, viabilizando que a experimentação dessa interatividade imersiva se dê em qualquer lugar, reforçando a sensação de quebra do conceito de espaço fixo possibilitada pelas tecnologias de comunicação digitais. Antes, contudo, apresentaremos brevemente os conceitos de interatividade dos quais lançaremos mão em nossa investigação. Em sua proposta de estudo sobre interação mútua e interação reativa, Primo (2000, p. 85) “aponta uma diferenciação fundamental entre o que é interativo e o que é reativo”. Um sistema interativo deveria oferecer autonomia total ao usuário, enquanto um sistema reativo teria uma gama limitada de opções disponíveis. Segundo esse preceito, uma relação reativa, caracterizada por ser determinística e limitar a liberdade de escolha, não seria interativa. Contudo, usando outra linha de pensamento, o autor encontra uma utilização sinonímia dos termos interação, relação e comunicação, inferindo um tipo limitado de interação. Com base nisso, surge a proposta de se utilizar duas categorias de interação, a mútua e a reativa, devendo ser consideradas as seguintes dimensões para se estabelecer a tipificação: sistema, processo, operação, throughput, fluxo, relação e interface. Em síntese, a interação mútua é: um sistema aberto, em que cada um afeta o todo e todos interagem, o contexto é relevante e o sistema evolui; um pro-

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cesso de negociação entre os agentes; uma operação de ações interdependentes, logo emergente; um throughput (ocorrência entre ação e reação, input e output) caracterizado pelo confronto da complexidade do interagente com a mensagem recebida, gerando uma resposta imprevisível; um fluxo não linear, dinâmico e em desenvolvimento; uma relação negociada; uma interface virtual, geradora da diferença e da repetição, do movimento da atualização (complexo problemático). A interação reativa é: um sistema fechado, com relações lineares e unilaterais, o reagente tem limites ou não consegue afetar o agente, o contexto é ignorado e o sistema não evolui; um processo de estímulo-resposta que deve ser sempre o mesmo; uma operação fechada na ação e reação; um throughput automático ou de reflexo, predeterminado pela programação; um fluxo linear, predeterminado em eventos isolados, mecânico; uma relação causal; uma interface potencial, geradora de pseudomovimento (limitado pelo possível). Quando Primo fez sua investigação, as características da rede mundial ainda limitavam sobremaneira as possibilidades de interatividade mediada, algo que foi superado pela tecnologia de telecomunicações nos anos posteriores, dando origem a novos ambientes de interação mútua, mediada por ambientes com características de interação reativa, gerando experiências híbridas para os agentes. Para dar conta dos exemplos a seguir, sugere-se uma forma de interação adicional às duas propostas pelo autor. Interação mútua mediada reativamente seria: um sistema híbrido, com um conjunto de regras fechadas, mas possibilitando a interação aberta entre agentes humanos, o contexto é considerado e pode ser alterado pelos agentes humanos, dentro das regras, o sistema evolui, mas com limitações; um processo de negociação entre os agentes humanos, mediado ou não por um processo de estímulo-resposta com os agentes simulados ou virtuais; uma operação de ações interdependentes entre agentes humanos, mediada ou não por uma operação fechada na ação e reação com os agentes e elementos simulados; um throughput caracterizado pelo confronto da complexidade do interagente com a mensagem recebida, gerando uma resposta imprevisível, mas pode ser limitada pelas regras de mediação reflexa ou automática do meio e dos agentes simulados; um fluxo híbrido, de engajamento linear, mas de desenvolvimento não linear, dada a mediação do ambiente reativo; uma relação negociada, mas com aspectos de manifestação limitados pela relação causal com os elementos de mediação (ambiente e agentes simulados); uma interface inicialmente potencial, mas de desenvolvimento virtual, capaz de gerar movimentos de atualização, a despeito de a interface inicial permanecer limitada ao pseudomovimento. É nessa interação híbrida que se baseiam muitos dos videogames bem-sucedidos que apresentam os melhores e mais eficazes modelos de aprendizagem, segundo veremos a seguir.

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Educando no ciberespaço pervasivo com videogames ubíquos O pesquisador James Paul Gee (2004, p. 57) aponta para as estatísticas e afirma que a aprendizagem se dá de maneira altamente eficaz quando as pessoas estão jogando certos videogames, mesmo os imigrantes digitais, mas aponta o efeito sinergético entre os nativos digitais e os jogos como um indicador de que tal relação deve ser estudada e aproveitada ao máximo como modelo de aprendizagem voluntária. Em sua opinião, jogos bem-sucedidos em sua popularidade são aqueles em que os processos de aprendizagem para sua utilização, como regras, contextos, habilidades necessárias etc., são os mais eficazes, incluindo o fato de serem atraentes e sedutores enquanto instruem e “treinam” o jogador. Observando os tipos de simulações mentais que os jogos digitais requerem, o autor os relaciona com os modos de pensar e de aprender das pessoas, defendendo a opinião de que devemos nos voltar a essa plataforma para muito além do interesse em edutenimento, ou entretenimento educativo, utilizando como ferramenta associada à escola, dentro e fora de seu espaço físico. Não devemos ignorar que os jogos digitais são produtos, mas precisamos nos lembrar de que os materiais didáticos como um todo também o são. Contudo, os desenvolvedores de jogos existem em um meio de competição muito mais acirrada por uma “fatia de mercado”, em que a competição tem a característica de acumular qualidades: os jogos de sucesso estabelecem uma referência para que os “competidores” da mesma “fatia de mercado” desenvolvam jogos melhores ainda. Como o processo de aprendizagem pelo qual o usuário será submetido para utilizar o jogo é parte fundamental do ganho de qualidade necessário para tal superação, há uma constante tendência de aprimoramento do modelo de aprendizagem inerente aos novos jogos criados. Levando o modelo “faça você mesmo” para o processo de ensino e aprendizagem, Kurt Squire (2011, pp. 19-26) propõe um modelo muitíssimo interessante de construção de jogos coparticipativos multijogador no qual se compele os jogadores a aprender um conjunto inicial de regras de uma estrutura de ambiente complexa e ao mesmo tempo flexível que, em seu bojo, contém as ferramentas para que os próprios participantes desenvolvam um novo “jogo dentro do jogo”, com um subconjunto de objetivos e regras, como resultado criativo da interação híbrida entre os jogadores que, em um esforço colaborativo, resolvem problemas, competem contra a máquina ou contra conquistas anteriores (autossuperação). Embora o desenvolvedor do “ambiente” seja responsável por estabelecer as regras estruturais que deverão direcionar os processo de aprendizagem e o desenvolvimento de habilidades específicas desejáveis no processo de ensino

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em exercício, os próprios estudantes sentem-se atraídos pela liberdade criativa e pelo sistema interativo de colaboração mútua, aprofundando-se e superando as metas mínimas de aprendizagem e de desenvolvimento de habilidades estabelecidas pelo educador/desenvolvedor no “jogo-ambiente”. Complementarmente, um professor/orientador que seja participante do processo pode acrescentar informações a serem desvendadas, metas específicas e outros marcos de conquista de cunho curricular que os alunos, como cocriadores e em um movimento inter-relacional, inventem novos meios de atingir e/ ou conquistar. Além de prover um sistema muito efetivo para promover aprendizagem, por ser um processo prazeroso para o aluno, a dedicação tende a ser voluntária, movida pelo incentivo das conquistas em si, da codependência entre os alunos que jogam como time ou equipe, do desejo de fazer diferença em um ambiente que se lhes apresenta como uma extensão da realidade social que faz parte de sua rede de contatos humanos e amizades. O professor deixa de ser uma autoridade e se torna um parceiro importante, uma fonte se estímulos e de indícios de soluções, alguém a ser apreciado no espírito de equipe que eclode entre os participantes do jogo. Autossuperação e espírito colaborativo são os traços mais estimulados e se tornam chaves intrínsecas a essa proposta, e estão funcionando muito bem nos projetos piloto em andamento, em diversos países. Nessa linha de trabalho, integrando a sala de aula com o uso de jogos de computador e consoles de videogame, pareados com materiais didáticos revistos em formato de jogos coparticipativos para os nativos digitais, a proposta da “sala de aula multijogador” de Lee Sheldon, conforme descrito em seu livro The Multiplayer Classroom: designing coursework as a game (2012), integra diversos dos conceitos apresentados por Prensky, Squire e Gee dentro da escola, com a presença física do professor e dos alunos no mesmo ambiente material. Incluindo na obra uma série de relatos de professores que aplicaram esse modelo com seus alunos em seus cursos, Sheldon compila dados impressionantes a respeito dos resultados reportados, como aumento geral em todas as habilidades acadêmicas, aumento da média escolar em notas e em presenças, aprimoramento no uso de linguagem e na qualidade da comunicação não apenas entre os alunos, mas também com professores e outros profissionais ligados à escola, ressaltando a inclusão social dos antes “rejeitados” pelas “tribos” e um ganho substancial nos quesitos de consciência social, espírito de equipe e trabalho colaborativo como um todo. Nas avaliações de acompanhamento psicológico, todos os alunos participantes do projeto conquistaram patamares superiores aos alunos da mesma idade nos quesitos de autodisciplina, sociabilidade e maturidade, entre outros ganhos e conquistas.

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Há diversas plataformas de desenvolvimentos de jogos e até mesmo jogos de sucesso, desenvolvidos pelas chamadas “gigantes do entretenimento” que podem servir como exemplo e base de inspiração para a criação de ambientes hibridamente interativos que promovam um processo de aprendizagem eficaz.

Exemplos de interativade híbrida e aprendizagem bem-sucedida Como exemplos desse tipo de interatividade híbrida, poderíamos descrever muitos jogos multijogador, on-line ou não, em que o ambiente virtual que é cenário do jogo foi desenvolvido de modo a permitir trânsito livre aos usuários e capacidade elevada, ou ilimitada, de modificar o ambiente, mas usarei como exemplos apenas um par de títulos, em gêneros distintos, que são reconhecidamente bem-sucedidos e impregnados por uma metodologia de aprendizagem altamente eficaz, além de oferecerem oportunidades equilibradas de experiências competitivas e colaborativas entre os jogadores. Em Minecraft, do estúdio Mojang, os jogadores modificam o ambiente constantemente quebrando e empilhando blocos virtuais, bem como se utilizam das ferramentas e recursos oferecidos pelos programadores para modificar materiais e criar ambientes mais interessantes e eficientes para cumprir o objetivo principal do jogo: preparar-se durante o ciclo do “dia virtual” para sobreviver aos perigos do período da “noite virtual”, com seus monstros e hordas invasoras. Com uma aparência simples e quase grosseira, a possibilidade de interação reativa criativa combinada à interação mútua com outros jogadores on-line (ou localmente, até mesmo dividindo a tela do dispositivo monitor em algumas plataformas) tornou esse jogo um dos jogos on-line de acesso massivo e vendas recordes em sua etapa “profissional” (Minecraft começou como um jogo independente experimental de mundo-aberto – inicialmente gratuito). Existe uma enorme quantidade de pessoas, grupos e empresas desenvolvendo módulos modificadores, conhecidos como “mods”, para o Minecraft, acrescentando e modificando suas características e reinventando completamente o jogo a cada interação. Há, inclusive, um bom número de “mods educacionais” disponíveis na Internet, alguns gratuitos, outros pagos, que têm se mostrado muito atraentes para os jogadores-aprendizes e constituem um caso exemplar de quanto é possível tornar o processo de ensino e aprendizagem uma experiência geradora de prazer e de engajamento por parte do aluno. Em termos de treinamento de pensamento estratégico, trabalho em equipe, planejamento, relações de causa e consequência e tomadas rápidas de decisão, temos um grande número de jogos de ação multijogador que poderiam servir como referência, mas elegemos Titanfall por ser um jogo popular, acessível e

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multiplataforma, além de ser um dos melhores exemplos de ambiente de interatividade híbrida no momento da elaboração da presente pesquisa. Trata-se de um jogo de tiro em primeira pessoa para ser jogado on-line em modo multijogador. Desenvolvido pela Respawn e distribuído pela Eletronic Arts, foi lançado pela Microsoft para computadores rodando Windows e para os consoles da linha Xbox, depois foi disponibilizado para os consoles Playstation da Sony. Uma característica marcante de Titanfall é que, a despeito de as missões serem predeterminadas e de os jogadores entrarem em combate como times oponentes, o que já caracterizaria uma interatividade híbrida, muitos elementos dos ambientes virtuais são livremente manipuláveis pelos jogadores, criando uma dinâmica de interação com o ambiente que torna mesmo os objetos simulados parte consequente das intenções e interações humanas. Um trajeto pode ser alterado por um membro de um time, modificando a experiência de todos demais participantes daquele ponto em diante, tornando cada jogador cúmplice do resultado e responsável por suas escolhas. Algumas habilidades específicas são limitadas a apenas alguns membros de cada time, estimulando o trabalho em equipe e o entendimento estratégico de cada uma delas. Em um ambiente “vivo”, que se modifica a cada interação, as capacidades de observar, planejar e se adaptar são pareadas à necessidade de se comunicar constantemente com o restante do time. Cabe observar que os “times” podem ser formados voluntariamente ou sorteados aleatoriamente pelo sistema, criando a possibilidade de não se formatem “grupos favoritos”, estimulando tanto o espírito colaborativo como o respeito competitivo, pois de uma rodada a outra o oponente pode se tornar aliado.

Considerações finais A multidimensionalidade da realidade percebida pela geração que está convivendo intimamente com as mídias de comunicação digitais, com a computação pervasiva e com a ubiquidade da informação, está permitindo que esses indivíduos se manifestem e interajam em ambientes virtuais que suplantam distâncias e mudam as referências clássicas de percepção de espaço e tempo. Para os mais recentes “nativos digitais” (PRENSKY, 2010a, p.64), aqueles que nasceram, foram amamentados e cresceram diante de dispositivos de computação e comunicação digital, essa multidimensionalidade é algo natural, faz parte de seu espaço de percepção, não apenas de seu espaço de experiência. Essas dimensões adicionais fazem parte da realidade cotidiana, suas consequências não são motivo de espanto nem de questionamento. Integrar-se socialmente por meio de redes sociais, jogos on-line, mensagens instantâneas ou o “app do momento” é apenas parte natural da vida.

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Quando esses nativos são os jogadores que usam o ambiente para mediar suas interações, criam a típica interação híbrida descrita acima. Pessoas se conhecem, fazem amizade, investem horas, dias e meses de seu tempo construindo ambientes virtuais que existem apenas dentro do jogo, à guisa de satisfação pessoal como participante de uma comunidade ativa e exigente. Para esses jogadores, o valor de seu investimento de tempo no espaço virtual não se distingue do valor do tempo investido em atividades no mundo material. É necessário reconhecer que o refino das comunicações tecnológicas viabilizou a criação de novos meios não apenas de trocar informação, mas de convívio social. E as diferenças entre as gerações, não apenas entre nativos e imigrantes digitais, pode se tornar um obstáculo ou uma ferramenta de aprendizagem mútua. A Internet, com suas redes sociais e jogos interativos multijogador, oferecendo diversos níveis de imersão por meio de variados tipos de realidades virtuais, desde compartilhamentos ideológico-textuais até simulacros tridimensionais envolventes, apresenta a mais recente revolução cognitiva a desafiar com pressões geracionais o grupo dos que promoveram tais inovações, postando-o diante de suas próprias crianças nascidas com tais recursos já amplamente disponíveis, construindo novas associações antes impensáveis por seus progenitores e ancestrais. Tamanhas mudanças são justificativas mais do que suficiente para que se promova uma profunda modificação não apenas da estrutura de ensino, mas também daquilo que se ensina e de como se pretende ensinar. Faz-se necessário integrar a realidade do mundo digital, dos videogames, dos dispositivos móveis, da computação pervasiva e da disponibilidade ubíqua da informação ao processo de ensino, passando dos projetos piloto à liberdade de aplicação em grande escala, à discrição dos educadores e com respeito aos contextos particulares de cada situação.

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A LINGUAGEM DA PSICANÁLISE Heloisa Gurgel Rosenfeld1 Nós humanos vivemos linguisticamente. É algo essencial a nossa humanidade. “A fala é a melhor manifestação do homem”, escreve Benjamin Lee Whorf. A psicanálise tem uma linguagem própria. A linguagem do inconsciente. A função do analista seria, portanto, decodificar ou traduzir alguma coisa já pronta, uma linguagem que emerja do inconsciente. Freud, em seu artigo de 1923 “A consciência e o que é inconsciente”, postula o que, para nós, atualmente é de senso comum: A divisão do psíquico em o que é consciente e o que é inconsciente constitui a premissa fundamental da psicanálise, e somente ela torna possível a esta compreender os processos patológicos da vida mental, que são tão comuns quanto importantes, e encontrar lugar para eles na estrutura da ciência. (P. 27-28)

Assim ele inicia a descrição de uma estrutura mental que se torna essencial para a compreensão da mente humana. A apreensão, através da observação clínica, de que existem processos mentais, tão poderosos quanto os processos conscientes, que podem produzir na vida mental os mesmos efeitos que as ideias comuns produzem. Mas essas ideias não se tornam conscientes pelo fato de que existe uma força opositora, isto é, a repressão que impede as ideias inconscientes tornarem-se conscientes. Porém, o que é percebido é que existem dois tipos de inconsciente, um que é latente, ou seja, pode se tornar consciente, e outro que é reprimido e que não consegue, por si só, tornar-se consciente. A escuta do psicanalista deve, portanto, estar preparada para o fenômeno único, que ocorre na interação das duas pessoas “paciente-analista”, durante a sessão clínica. Vale salientar que a palavra “fenômeno” vem do latim phaenomenon, significando “o que é visto, o que surge aos olhos”, e também de phainesthai no sentido de “aparecer “, relacionado com phos, “luz”. Do ponto de vista da prática analítica, a consequência dessa descoberta de Freud é que o analista se depara com infindáveis obscuridades e dificuldades. O que ele pode observar, esconde, no próprio contato, aquilo que não pode ser observável, ou seja, o que está reprimido, mas de alguma maneira se 1

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Psicóloga formada pela PUC – São Paulo. Psicanalista da Sociedade Brasileira de Psicanálise – SP. Formação no Instituto Sedes Sapientiae – SP em Psicanálise.

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mostra, como talvez um fantasma (que tem a mesma origem etimológica de “fenômeno” – fantasma do grego phantazein, “fazer aparecer”, por sua vez derivada de phaínein que significa “mostrar”. Esta palavra e seu sentido são ligados a phos, “luz”, pois a presença dela nos mostra o que há para ver). Isso é interessante para pensar. O quanto estão próximos, o que é visto e percebido com o que não pode ser visto, como se fossem partes, talvez complementares, e invertidas diante da “luz”de um todo. O que acontece na sessão de análise é o paciente comunicando algo ao analista. A linguagem é a forma básica de comunicação humana. Então é através da fala que o paciente vai transmitir essa duplicidade de seu mundo interno. Em 1900, Freud escreve Die Treumdeutung, “A interpretação dos Sonhos”. O autor demorou dois anos para escrevê-lo e foi com ele que construiu o pilar da teoria psicanalítica, passando a edificar o ponto de apoio para todo o desenvolvimento de sua obra. Nesse texto, ele descreveu minuciosamente o trabalho dos sonhos, sua importância e utilização no processo analítico. Ele também afastou essa temática das crenças religiosas e culturais, as quais vinculavam o sonho a uma experiência premonitória e superticiosa herdada da Antiguidade através do senso comum (OLIVEIRA: 2011). Na obra em questão Freud criou o termo “conteúdo manifesto” para referir-se à experiência consciente durante o sono, correspondendo ao relato ou descrição verbal do sonho, ou seja, aquilo que o sonhante diz lembrar. Já o “conteúdo latente” corresponde às ideias, sentimentos, impulsos reprimidos, pensamentos e desejos inconscientes que poderiam ameaçar a interrupção do sono se aflorassem a consciência claramente. Segundo Garcia-Roza (1991), a distorção a que é submetido o conteúdo do sonho é produto do trabalho do sonho de não deixar passar algo proibido, interditado pela censura. A censura deforma os pensamentos latentes no trabalho do sonho. Freud concebe a censura como uma função que se exerce na fronteira entre os sistemas inconsciente e pré-consciente, algo que opera na passagem de um sistema a outro mais elevado. Segundo Garcia-Roza (1991), um fragmento não é distorcido ao acaso, mas imposto por uma exigência da censura. A principal responsável pela deformação onírica, apresentando o conteúdo manifesto condensado, deslocado, simbolizado ou através da elaboração secundária. Essa compreensão do mecanismo do sonho traz, não só a possibilidade através da interpretação do sonho, de se aproximar dos desejos, ideias e conflitos inconscientes como também um modelo para o conhecimento da dinâmica de uma sessão analítica. Tudo o que o paciente comunica verbalmente, gestualmente ou fisicamente é símbólico, isto é, traz consigo a possibilidade de ser o símbolo de algo que se oculta atrás daquilo que é mostrado na sessão.

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A própria linguagem verbal, sabe-se, carrega essa duplicidade. E na psicanálise atual a questão da linguagem verbal foi ampliada. Atualmente, se aceita a tese que sustenta que as crianças chegam a compreender e falar a língua antes de serem capazes de utilizar as palavras (Isaacs, 1952). Isso indica que o aprendizado da linguagem é um processo fundamentalmente inconsciente, que não acontece entre o nível consciente e o pré-consciente como um procedimento para atrelar o pensamento à consciência, tal como achava Freud. O uso da linguagem é visto como um modo de funcionamento da identificação projetiva para comunicar estados de ânimo. O uso das palavras serviria para transmitir a informação de uma mente a outra (MELEGA, 2007). Meltzer (1984) sugere, então, uma teoria do desenvolvimento da linguagem em duas etapas. Na primeira a criança percebe ter uma capacidade instintiva para a linguagem interior e efetua a publicação interna e externa de seus estados de ânimo; a segunda consiste na adaptação da linguagem interior à descrição da realidade externa por meio da verbalização e da delineação de morfemas (conteúdos) por entre as séries de fonemas (sons). Segundo esta teoria: 1) A gramática é considerada uma função da linguagem interior e instintiva que manteria uma relação muito estreita com a linguagem da fantasia inconsciente, semelhante àquela de uma escala tonal com um instrumento musical. 2) A gramática gera a linguagem porque há um conjunto de significados básicos relativos ao tempo, ao espaço, à pessoa e às operações lógicas, que determinam a transformação da linguagem interior em fala interior, por meio da linguagem. Se a linguagem, em seu verdadeiro significado, é um processo que emerge da fantasia inconsciente, e se representações formais de diversos tipos organizam tais fantasias em formas publicáveis, como modos de comunicação de estados mentais, Meltzer sugere que se considere a vocalização como forma simbólica e a verbalização como seu sistema de notação correspondente. Conforme o autor, a fala consiste em um sistema de vocalização que constitui a forma simbólica publicável de uma corrente da fantasia inconsciente (processo onírico) e, portanto, do pensamento, e essa vocalização se presta como verbalização para a comunicação de informação acerca do mundo interno. Meltzer ainda destaca cinco fatores na formação da linguagem cuja perturbação conduz ao mutismo: 1) É necessário que o funcionamento mental seja suficientemente ordenado para que ocorra a formação de pensamentos oníricos adequados para a comunicação e não meramente a expulsão (Bion).

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4)

5)

Deve existir um aparato mental, capaz de transformar os pensamentos oníricos em linguagem, com os quais se possa aprender a gramática musical profunda, para representar estados mentais. Nos primeiros anos de vida, quando ainda é forte o impulso de laleio, a criança deve edificar um vocabulário para descrever um mundo externo, de modo a poder desenvolver a habilidade para representar essa linguagem superficial e lexicográfica sobre a linguagem musical mais profunda, e ser assim capaz de comunicar-se acerca do mundo externo. Essas transformações internas (fala interna) devem encontrar, no mundo exterior, um objeto com suficiente realidade psíquica e adequadamente diferenciado do self para que se torne necessária a vocalização desse processo interno, a fim de que tenha lugar a comunicação. O desejo de comunicação com outros seres humanos deve ser suficiente para sustentar o processo contínuo da formação dos pensamentos oníricos.

Caso clínico Para ilustrar uma dimensão da ambiguidade que a linguagem em psicanálise tem como base de compreensão, apresentarei um caso clínico de uma criança com “mutismo temporário seletivo”, interessante pelo fato de que o conflito está na “não linguagem”. Fala desses silêncios que todos levamos dentro, dos momentos que ficamos sem palavras, sem poder conectar, assim como dos prováveis vestígios do que não se conseguiu comunicar. • Mãe me procura muito aflita. • Relata que estavam viajando, alugando uma casa com amigos no Sul. Estavam em um restaurante e a filha C., com 2 anos e meio, havia feito xixi no chão do restaurante. A mãe deu uma bronca séria, a menina chorou, foram para casa, no carro ela já dormiu. Quando acordou, no dia seguinte, não falava. Se comunicava por sinais e grunhidos, tinha um riso nervoso. A mãe começou a ficar desesperada. A menina ficou assim por quase dois dias, depois, foi recuperando a fala. Iniciou com “mamãe”, “papai” e para tudo dizia “o que é isso?”. Acabaram antecipando o final das férias, voltaram para sua residência. Mãe fala que ficou uma sequela (na mãe), porque até hoje é “meia frouxa” com ela. • Dados evolutivos: Já pensavam em procurar uma ajuda psicológica a algum tempo, C. manifestava uma gagueira, leve, não cons-

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tante. Outro fator foi que haviam iniciado o desfralde há alguns meses, mas, apesar dela ter entendido, não conseguia avisar quando queria fazer xixi. • Nessa primeira entrevista onde compareceram a mãe e o pai, descrevem uma filha muito esperta mas que mostra dificuldade nesse desfraldar. Acham que o acontecimento do mutismo foi consequência da bronca que levou da mãe, mas mesmo já estando melhor da fala, a mãe queria entender o que havia acontecido. • Conversamos longamente nessa entrevista e tentamos pensar juntos em algumas hipóteses. 1 – O desfralde foi iniciado muito precocemente, C., apesar de já falar bem, não estava pronta (talvez até para um controle orgânico do esfincter). 2 – Junto ao desfralde, também começaram a tirar a chupeta, pensamos que talvez fosse um excesso de experiências independentes para ela. 3 – A mãe acha que a filha não quer decepcioná-la. Relata um episódio na casa de parentes quando ela pede para uma tia trocá-la. Diz que a mãe fica triste quando tem que trocá-la. Percebendo assim o quanto essa dificuldade de controle de esfincter desagrada a mãe. 4 – A mãe diz que se percebe como muito ansiosa. A família se preocupou quando ela engravidou, como seria? Será que viveria a gravidez como uma doença? Convido-os a entrar. A mãe aceita, entra na sala e se senta em uma cadeira. C. aceita meu convite de sentarmos no chão e lhe mostro uma caixa com bonecos e móveis da casinha. Ela é muito curiosa, vai mexendo em tudo e organizando uma casa. Arruma toda a casinha, é muito cuidadosa, faz questão de cobrir cada pessoa. C. interage bem comigo, está à vontade. O que de imediato percebo é sua necessidade de saber o nome de cada coisa que não conhece. Cria um bom contato, e para tudo, que não sabe, me pergunta “o que é isso?”. O seu vocabulário também é muito rico. A comunicação verbal é realmente intensa e poderia dizer, de forma comparativa, precoce. Continuamos conversando e em algum momento C. (que até então continuava brincando tranquila enquanto conversávamos) vai em direção a mãe e fala alguma coisa. Não escutei o que era, mas a mãe quase que ao mesmo tempo de falar comigo, responde o que ela havia perguntado.

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C. é mandona, as coisas devem que ser do seu jeito, mas acaba, por necessidade, aceitando minha ajuda (para p. ex. trocar a roupa da bonequinha). Achei interessante que ela coloca o pai na caminha, depois coloca a criança junto. A mãe coloca em outra cama, meio afastada. Como estamos brincando juntas, lhe pergunto algo sobre isso e ela diz que é assim mesmo, a mãe fica na outra cama. Cobre todos. Continuamos interagindo, ela quase que senta no meu colo quando pergunta sobre algo – “o que é isso? “, parece que gosta de ver meus lábios se mexendo. Mostro o quanto as duas tinham um canal de comunicação muito intenso (usando esta situação onde a mãe a escuta apesar de também estar me escutando e lhe responde quase ao mesmo tempo de falar comigo). Ela diz que com certeza, porque ela fica com a filha quase que o dia inteiro, de manhã, quando estão em casa só as duas, depois a leva para a creche que é dentro de seu local de trabalho e elas voltam juntas para casa. Encerramos essa entrevista incial e marcamos uma próxima, que seria uma observação lúdica de C. Os pais concordaram, sendo que percebi que o pai achava importante que a mãe fosse junto nessa consulta da filha. No dia dessa sessão vieram a mãe e C. Chamo C. que está animada, vem entrando sozinha comigo, mas ao final chama a mãe para entrar junto. Começamos a brincar. Só depois de um tempo, quando está muito envolvida ali comigo é que parece se lembrar da mãe. Ela então a olha e pega algo na mão e vai para a mãe e lhe pergunta “o que é isso?”. A mãe lhe responde e começamos a conversar um pouco, eu e a mãe. Vamos concluindo juntas que provavelmente essa questão do mutismo temporário foi um ataque (já que a marca da comunicação de C. era a verbal). Pois, ela deve ter ficado ao mesmo tempo, magoada, envergonhada e com raiva da mãe por ela ter gritado com ela no restaurante e triste por não estar conseguindo ser como a mãe e mesmo como ela mesma gostaria de ser (uma menina grande). Falei que entendi que C. mostrava ter uma compreensão de tudo muito grande (pela sua facilidade de comunicacação verbal) e que isso dava uma falsa ideia, talvez até para ela mesma, que ela já fosse grande e conseguisse tudo. O desfraldar foi precoce e como ela também não quis voltar para atrás, ficou na dinâmica da família e projetado o conflito de querer ser grande, mas, ao mesmo tempo, não dar conta dessa independência. Fomos pensando em algumas maneiras de tentar fazer com que ela ficasse mais à vontade com esses aspectos infantis dela, ela precisava aceitar que não precisava ser grande. Falo que percebi o quanto a fala para ela, a compreensão através do significado das palavras era importante. A mãe disse ter percebido que ela quase

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não havia gaguejado enquanto estava comigo. Digo que talvez por estarmos tranquilas e ela perceber toda a minha disposição só para ela. Falo também de minha observação do grau de organização que ela colocava nos brinquedos (quase um traço compulsivo, apesar de não ter usado esse termo com a mãe). Nesse tempo final da sessão, percebo que a mãe foi ficando mais tranquila e ela então começa a me contar que ela, nos dias do mutismo, ficou desesperada. Já havia lido tudo sobre o assunto, apesar do esforço de parecer tranquila para a filha, internamente estava revivendo pavores terríveis. Pensou em coisas horríveis (como talvez o fato de que os amigos que estavam com eles pudessem ter feito alguma maldade com ela). Fico assustada com as fantasias que ela me conta e pergunto se é sempre assim. Ela então me conta dela. Desde que C. nasceu toda a preocupação que tinha com ela mesma, foi deslocada para a filha, também com essa característica de exagero (quase um pensamento delirante). Já passaram pela sua cabeça algumas idéias de patologias muito sérias envolvendo a filha: 1. Logo que ela nasceu, a enfermeira veio falar que o pezinho estava um pouco torto porque havia ficado de mau jeito na barriga, mas que logo voltaria ao normal. Para ela foi o início de várias fantasias onde a filha teria o pé torto para o resto da vida, com uma marca. 2. Já pensou que ela seria daltônica, porque reparou que ela não discriminava bem as cores (lembrando que ela ainda tem 2 anos e meio!). 3. Já pensou que ela poderia ter problemas auditivos, quase uma surdez, desencadeado por um sintoma de otite. 4. Quando estava com um mês, teve refluxo grave, ficou muito assustada. Tinha que ir ver se a filha estava bem o tempo todo. Depois percebeu que o leite estava sem proteína, mudaram o leite e ficou tudo bem. Em todos esses episódios, ela não só fica muito desesperada, como também é invadida por fantasias catrastóficas, como aquelas que tinha em relação a si mesma. Ela me conta algumas, mas parece não gostar de contar, quase que tem medo do risco delas invadirem novamente sua mente.

Aspectos teóricos O mutismo na criança deve ser compreendido unicamente como o mutismo que foi adquirido depois que a criança já havia desenvolvido a fala. Os casos de surdo-mudez, ou uma “mudez-primária” envolvem distúrbios orgâ-

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nicos prováveis, ou mesmo uma precária falta de investimento da função da linguagem. São descritos dois tipos de mutismo: MUTISMO TOTAL ADQUIRIDO, que engloba: • mutismo histérico, que vem acompanhado de outros sintomas histéricos da personalidade; • o “mutismo timogênico “, que se instala após um forte choque afetivo; • o mutismo ideogênico, no qual o aparelho fonador não é utilizado pelo receio de que esteja enfermo, baseado as vezes em uma afecção verdadeira mas benigna deste aparelho; • o mutismo reacional benigno – que pode aparecer em crianças portadoras de retardo da linguagem. MUTISMO ELETIVO – Só ocorre na presença de certas pessoas ou em uma situação determinada. Esse mutismo pode se ampliar a um mutismo total, em sua evolução. Segundo S. Lebovici (1963), o mutismo é apenas um sintoma sempre associado a outros sintomas, dos quais os mais frequentes são: a inibição motora, a oposição, a enurese e a anorexia. Alguns autores dedicaram-se a escrever as características emocionais da criança com mutismo: criança sensível, tímida, susceptível as zombarias e à ironia e carente de segurança. Já o mutismo eletivo ligado ao ambiente não pode ser compreendido fora do seu contexto, eles são produzidos dentro de um quadro familiar particular. Interessante a análise de P. Aimard (1972), que tenta explicar os distúrbios desta relação da criança com os seus e procura compreender que aspectos da linguagem se tornou magicamente envenenado. Com efeito, o mutismo da criança se dirige a qualquer um; dirige-se até mesmo àqueles que lhe deram razões para aparecer e seu significado se inscreve sempre na história da família perturbada. Em certos casos, como indica esse autor, a mãe pode manter com a criança laços demasiado tensos que a sufocam, o que, em uma situação extrema, representa um investimento negativo da linguagem, que não somente não é utilizado positivamente na relação mãe-filho, mas que assume uma significação mágica temível: sua aquisição colocaria em perigo os laços da dupla mãe-filho. A ação da linguagem é repelida com angústia, já que significaria afastamento, perda da mãe e, para a mãe, perda do filho ou do valor simbólico com o qual ela o reveste. Ele ainda fala que a criança utiliza a linguagem como uma arma, utiliza a fala ou o silêncio segundo queira gratificar ou punir. A conduta silenciosa da criança serve como arma agressiva e a fuga no silêncio aparece como expressão de uma hostilidade pela retirada da situação.

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Tal como a criança no período pré-verbal utiliza os esfíncteres ou o sistema oroalimentar na afirmação de si mesma, igualmente o mutismo se apresenta como uma forma mais elaborada dos mecanismos de passividade ou de revolta. Durante sua evolução a criança pode perder a apetência da linguagem, encontrando em seu silêncio os recursos íntimos para suas satisfações. O ódio substitui o amor desejado e, não encontrando compromisso entre os seus problemas intrapsíquicos – que ela não quer ou não consegue abordar – e seus pais – em relação aos quais reage de maneira bastante primitiva, o mutismo torna-se para a criança uma arma que lhe dá uma impressão de onipotência. Pelas reações que provoca no meio familiar, a angústia e as relações tensas que cria, o silêncio se torna uma hipercomunicação cheia de sentido, de agressão e de masoquismo. Uma cena na qual a criança é ator e espectador do sofrimento de seus pais, dos quais ela não quer se separar porque, na sua ausência, sua família não poderia “ouvir” seu silêncio.

Análise do caso de c. O significado da fala ou sua ausência são expressões dos afetos internamente vividos. O interesse em pensar sobre esse atendimento veio através de uma pergunta que a mãe me fez e se fez que foi “mas uma criança tão pequena como ela já faz uma birra desse jeito?”. Também fiquei pensando nisso, na intensidade do sintoma e também como esse momento ficaria registrado em sua mente, sabendo que talvez, por não ser representável como uma memória, fique inacessível a linguagem, mas mantenha uma marca no corpo. Segundo D. Anzie (1974), todo traumatismo, ocorrido antes da constituição de um envelope psíquico, inscreve-se no corpo e não no psiquismo. As angústias ligadas ao medo da morte, a fragilidade do corpo, que foram transferidas e projetadas maciçamente na filha e em seu corpo impediram um olhar tranquilo e claro, da mãe para a criança. A angústia está, então, colocada na criança (como se ela carregasse algo que não sabe o que é) e ela também não compreende o porquê. Sua necessidade de compreensão, de nomear, talvez venha dessa angústia do “sem nome “, “sem significado”, que ela se defronta internamente e que ela busca através do constante perguntar “o que é isso? “, um significado. Quando a mãe de C. engravida, todo seu conflito psíquico, que estava estabelecido na relação com o seu corpo “doente”, fica projetado na filha. Joyce McDougall (1991), fala do significado de “um corpo para dois”: quando um adulto representa inconscientemente seus limites corporais como estando mal definidos ou não separados dos outros, as experiên-

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cias afetivas com um outro que tem importância para ele (ou às vezes com quem quer que venha a mobilizar por acaso a memoria corporal de um antigo trauma psíquico), a consequência pode ser uma explosão psicossomática, como se, em tais circunstâncias, não existesse senão um corpo para dois. (n.p.)

C. ainda é pequena e tem pouca distinção entre si mesma e a mãe, achei interessante, durante a observação lúdica que C. separa a mãe, a coloca para dormir em uma cama separada, penso que seja, talvez, um pedido interno de separação desse corpo materno. A interdição do pai. A presença de um outro que ajude a fazer esse corte na relação. C. já estava com dificuldade no controle dos esfincteres, provavelmente, era muito cedo. Abraham (1927) defende que a imposição de um hábito de forma muito prematura, persistente e sistemática – antes que a criança esteja psiquicamente preparada para adquiri-lo – resulta em ofensas precoces ao narcisimo infantil. O hábito seria adquirido pelo temor, persistindo uma resistência interna que manteria sua libido numa obstinida fixação narcisista. C. já demonstra o conflito entre o satisfazer a si mesma e satisfazer ao desejo da mãe (quando a mãe relata que ela pede para a tia trocá-la, porque sabe que a mãe fica triste ou instisfeita). O conflito se torna insuportável no momento que a mãe a repreende no restaurante. Talvez pela vergonha, a voz alta, a exposição. Ela reaje com o choro e o sono. O choro como alívio imediato da angústia. O sono como uma fuga a um refúgio. Não foi suficiente, ela não se organizou no dormir. Quando acorda não tem mais palavras. Para Mac Dougall (1991): As palavras são os diques mais eficazes para conter a energia vinculada às pulsões e aos fantasmas aos quais estas deram origem. Quando as palavras deixam de preencher essa função, o psiquismo vê-se obrigado a emitir sinais de sofrimento de tipo pré-simbólico, contornando por aí mesmo, as ligações limitadoras da linguagem. Há então um considerável risco de suscitar respostas somáticas e não psíquicas diante de uma angústia indizível. (n.p.)

Concluindo, o sintoma do mutismo temporário de C. foi, não só um ataque à mãe, mas também um ataque ao vínculo. Entendi ainda que a possibilidade da mãe de estabelecer o contato comigo e relatar o seu sofrimento, que daria um significado ao sintoma da filha, só se deu quando fui “nomeando” para ela o que havia acontecido com a filha. O dar nome e significado a tranquilizou, impedindo que a angústia se transformasse novamente em “fantasias catrastóficas” em relação ao corpo da filha.

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Bibliografia ABRAHAM, K. Selected Papers of Psychoanalysis. Londres, 1927. AIMARD, P. (1972). LÉnfant et son langage. Villeurbanne: Simep-Editions. AISENSTEIN, M; Fine A; PRAGIER, G. (Org). Hipocondria. São Paulo: Editora Escuta. AJURIAGUERRA, J. (1983). Manual de Psiquiatria Infantil. São Paulo: Editora Masson. ANZIE, D. (1974). Le moi-peau. Nouvelle Revue de Psychanalyse, n.9. ECO, U. (1974). A estrutura ausente: introdução à pesquisa semiológica. São Paulo: Perspectiva. FERREIRA, M. P. (2004). Transtornos da Excreção. São Paulo: Casa Do Psicólogo. FONTES, I. (2002). Memória corporal e transferência. São Paulo: Via Lettera Editora e Livraria. FREUD, S. (1996). A consciência e o que é inconsciente. In: Edição Standard Brasileira da Obras Completas de Sigmund Freud. Vol XII. Rio de Janeiro: Imago. GARCIA-ROZA, L. A. (1991). Introdução à metapsicologia freudiana: a interpretação do sonho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ISAACS, S. (1952). A Natureza e a função da fantasia. In: RIVIERE, J. (org). Os Progressos da Psicanálise. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. LEBOVICI, S; DIATKINE, R; KLEIN, F. (1963). Le mutisme et les silences de lénfant. Psychiat: Enfant. MC DOUGALL, J. (1991). Teatros do Corpo. São Paulo: Martins Fontes. MELTZER, D. (1984). The interaction of visual and verbal language in dreams. In: MELTZER, D. Dream Life. Oxford: Roland Press. OLIVEIRA, I. R. (2011). O Simbolismo nos Sonhos. Disponível em: . Acesso em 13 de fevereiro de 2012. SAUSSURE, F de. (s/d). Curso de Linguistica Geral. São Paulo: Ed Curtis.

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SEMÂNTICA DA MODA: CULTURAS, LINGUAGENS E PRODUÇÃO DO CONHECIMENTO Camila Maria Albuquerque Aragão1 Manuel Tavares2

Introdução O texto que se apresenta tem por finalidade discutir a moda como uma forma de expressão cultural e como uma dimensão estética da linguagem, bem como um campo de produção de conhecimento. As diversas formas de expressão simbólica da realidade e da cultura incluem a moda, pela sua dimensão histórica, contextual e global. A moda pode ser perspectivada como uma forma elitista, hegemônica, de representar o mundo e a sociedade mas pode também ser uma forma de resistência a uma cultura dominante. É, por isso, uma dimensão cultural que expressa sentidos múltiplos. Enquanto uma das dimensões da cultura, por ser produzida a partir de contextos locais, históricos, sociais, culturais e até populares, é, incontornavelmente, um campo potenciador de estudos interdisciplinares. Define-se o conceito de cultura a partir de Freire, Stuart Hall e Denis Cuche para o entender na sua dimensão crítica e transformadora do real e como expressão da criatividade e da ação humanas. O mundo da cultura, na visão freiriana, permite que o ser humano ultrapasse a sua dimensão biológica e seja capaz de ler o mundo de uma forma crítica. Por sua vez, Cuche apresenta-nos a cultura na sua dimensão estratégica para pensar a humanidade na sua diversidade. Stuart Hall, o representante mais emblemático dos Cultural Studies, define-a como forma de vida e prática social dando atenção prioritária às culturas periféricas e marginalizadas historicamente. A luta pelo poder invade o domínio da cultura, quer seja dominante quer resistente e insurgente. Como linguagem, a moda apresenta-se como um complexo sistema simbólico de comunicação e expressão de sentidos. Podemos, assim, referir a existência de uma semântica da moda que, para além do seu sentido 1 2

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Mestranda em Educação na Universidade Nove de Julho (UNINOVE), no programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE). Professora do Instituto Federal do Piauí. Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGE), da Universidade Nove de Julho (UNINOVE).

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literal e estético, manifesta um conjunto de representações sobre o mundo, a vida, a sociedade, o ser humano e as suas relações interpessoais. Moda é criação, recriação, sistema simbólico, expressão e transgressão de sentidos. A história da moda revela também a sua relação indissociável com o tempo, o global e o local e a afirmação da mulher numa sociedade ainda patriarcal e machista. No texto que se apresenta, não nos interessa a moda como um campo elitista, alienante e superficial, mas como um campo de criação de um espaço de produção cultural e epistemológico e como uma força geradora de emancipação e de mudanças.

Linguagem e cultura Como seres culturais que somos, seres no mundo e com o mundo, como afirmava Paulo Freire (2001), somos capazes de atribuir sentido e valor à realidade que nos envolve e na qual estamos imersos, mas não há como pensar na existência deste ser cultural sem pensar no “instrumento” por meio do qual esta consciência se expressa, é repassada e registrada entre nós: a linguagem. Para Heidegger (2003), a linguagem permite uma ampliação da consciência, não apenas como um “meio de o organismo se manifestar”, se expressar, mas como a “morada do ser” e como meio de promoção da relação do ser com a substância humana. A linguagem é, neste sentido, o instrumento privilegiado de revelação do ser mas, por vezes, também de ocultação. O filósofo busca na linguagem o sentido do ser; ao tentarmos compreender o mundo, decodificá-lo, transformar o que vemos e sentimos em palavras, percorremos um longo caminho em nós mesmos e, para ele, a linguagem é a base para a produção da cultura. Laraia (2001) considera que a comunicação é um processo cultural, a linguagem e a língua como sua dimensão social são produtos de uma interação dialética entre a dimensão biológica e a dimensão cultural; todavia, não existiria língua, fala e cultura se não houvesse linguagem, pois a cultura precisa de um sistema de comunicação para ser transmitida. Por sua vez, a linguagem ocupa um lugar central na sociedade para a compreensão da cultura e das suas múltiplas dimensões. Para a reflexão que propomos neste capítulo, sobre a moda como uma forma de linguagem, pretendemos compreender, em primeiro lugar, a noção de cultura. Assim como a linguagem, podemos compreender a moda, enquanto uma das dimensões da cultura, pois é produzida a partir de contextos locais, históricos, sociais, culturais e até populares. Para Paulo Freire, cultura é tudo o que resulta de uma ação do homem sobre o natural. A cultura permite que o ser humano supere uma visão ingênua da realidade e a compreenda de um modo crítico. O mundo da cultura, como mundo simbólico, representa um enorme desafio para o ser humano – porque é o mun-

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do da criação, da comunicação, da linguagem, dos símbolos, de criação de imaginários, de poesia. Freire (2001) aponta o sujeito que “existe” – diferentemente dos animais, que simplesmente estão no mundo, adaptam-se, exercem suas funções predeterminadas pela natureza, como o caso das abelhas que são “especializadas” em produzir mel, mas não têm a opção de escolher outra especialidade ou transformar sua realidade – homens e mulheres que existem, por sua vez, são capazes de refletir sobre a sua relação com o mundo, transcender os limites impostos pela natureza, transformar o mundo e superar a sua mera condição de existência biológica: [...] acrescentam à vida que têm a existência que criam. Existir é, assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de transformar, de produzir, de decidir, de criar, de recriar, de comunicar-se. Enquanto o ser que simplesmente vive não é capaz de refletir sobre si mesmo e saber-se vivendo no mundo, o sujeito existente reflete sobre sua vida, no domínio mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com o mundo. O domínio da existência é o domínio do trabalho, da cultura, da história, dos valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialética entre determinação e liberdade. Se não tivessem sido capazes de romper com a aderência ao mundo, emergindo dele, como consciência que se constituiu na “ad-miração” do mundo como seu objeto, seriam seres meramente determinados e não seria possível então pensar em termos de sua libertação. (FREIRE, 2001, p. 53)

É pela cultura que o ser humano se constitui como pessoa, como um ser histórico de relações múltiplas; Freire fala da importância da assunção da identidade cultural na formação do sujeito, “uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se” (FREIRE, 1997, p. 11). No seu uso mais comum, a noção de cultura está associada a um saber institucionalizado no Ocidente, a um repositório axiológico, estético e cognitivo que foi produzido pela humanidade e que se autodefine como universal. Esta visão hegemônica, que impera na Educação formal e informal, ilude as diferenças culturais e as suas especificidades. A noção de cultura apresenta-se como um conceito estratégico para pensar a humanidade na sua diversidade (CUCHE, 1996). Embora todas as culturas sejam permeáveis a influências que as tornam híbridas, há traços culturais imunes e resistentes a qualquer influência externa que constituem a identidade de um povo, sobretudo as suas manifestações simbólicas, nelas incluída a língua como núcleo central de qualquer cultura. Neste sentido, a cultura tornou-se um conceito estratégico para a

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definição de identidades e alteridades no mundo contemporâneo, um recurso para a afirmação da diferença e da exigência do seu reconhecimento (SANTOS, 2004), mas também um campo de lutas e contradições. No entanto, a cultura não pode ser perspectivada às margens do processo histórico e dos contextos locais, cenários privilegiados das práticas culturais. A cultura hegemônica de caráter eurocêntrico afirmou-se, historicamente, como dominante impondo os seus códigos e os seus padrões a outras culturas, silenciando e oprimindo as representações dos povos, decorrentes de um imaginário coletivo. É no âmbito de grande conflitualidade que emergem outras culturas, as dominadas, mas, simultaneamente, resistentes e insurgentes. As relações culturais são, por isso, relações de poder: o poder da cultura dominante que se impõe às culturas dominadas e a luta das culturas resistentes e marginalizadas que lutam, legitimamente, pelo poder cultural. A cultura tornou-se, portanto, uma arma estratégica de luta pelo poder nas sociedades contemporâneas dominadas por uma cultura avassaladoramente global. Se considerarmos que a cultura, como defende Stuart Hall (2010), é uma forma de vida, deparamo-nos com o conflito incontornável entre diversas formas de vida que são, afinal, as diversas expressões e práticas culturais dos povos e nações. Nenhuma delas esgota a totalidade do real. Pelo contrário, os diversos imaginários, narrativas e práticas culturais representam a realidade de modo diferente, exprimem as constelações de ideias partilhadas pelos diversos povos, os valores e o universo de sentido que moldam os seus comportamentos, as suas relações interpessoais, a relação com a natureza, o tipo de economia, de organização política e social. Deste ponto de vista, a cultura surge como atividade humana, como prática social e não como passividade consumista de narrativas, representações, modos de ser e existir impostos por uma ordem global. Na tradição dos Estudos Culturais que surgem em meados do século XX, no Reino Unido (Universidade de Birmingham, década de 60), surge o conceito de cultura com algumas rupturas em relação ao tradicional conceito hegemônico. Dois temas são adicionados: Primeiro: a cultura não é uma entidade monolítica ou homogênea, mas, ao contrário, manifesta-se de maneira diferenciada em qualquer formação social ou época histórica. Segundo: a cultura não significa simplesmente sabedoria recebida ou experiência passiva, mas um grande número de intervenções ativas — expressas mais notavelmente através do discurso e da representação — que podem tanto mudar a história quanto transmitir o passado. Por acentuar a natureza diferenciada da cultura, a perspectiva dos estudos culturais britânicos pode relacionar a produção, distribuição e recepção culturais a práticas econômicas que

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estão, por sua vez, intimamente relacionadas à constituição do sentido cultural. (AGGER, 1992, p. 89).

Na perspectiva da citação anterior, as práticas culturais emergem como formas materiais e simbólicas; “a criação cultural situa-se no espaço social e econômico, dentro do qual a atividade criativa é condicionada” (ESCOSTEGUY, 1998, p. 92). A operacionalização de um conceito ampliado de cultura, ou seja, que inclui as formas em que os rituais da vida cotidiana, as instituições, as diversas formas de expressão artística, a pluralidade de práticas são constitutivas das formações culturais, rompeu com um passado que identificava a cultura apenas com as tradições e costumes de um povo ou grupo social. É neste domínio que a cultura popular e todas as suas formas de expressão e práticas adquire legitimidade como atividade crítica e como intervenção insurgente e de resistência ao domínio da cultura hegemônica. Os princípios que sustentam o projeto dos Estudos Culturais são, de acordo com Schwarz (1994, p. 380), os seguintes: [...] a identificação explícita das culturas vividas como um projeto distinto de estudo, o reconhecimento da autonomia e complexidade das formas simbólicas em si mesmas; a crença de que as classes populares possuíam suas próprias formas culturais, dignas de nome, recusando todas as denúncias, por parte da chamada alta cultura, do barbarismo das camadas sociais mais baixas; e a insistência em que o estudo da cultura não poderia ser confinado a uma disciplina única, mas era necessariamente inter, ou mesmo anti, disciplinar.

De salientar, ainda, que os objetos de estudo dos Cultural Studies se vão ampliando para outras temáticas relacionadas com as culturas marginalizadas e subalternizadas. Em meados da década de 70, os trabalhos e pesquisas sobre as diferenças de gênero ganham alguma relevância no âmbito das culturas de resistência. As questões de gênero e da sexualidade contribuem para o aprofundamento e alargamento da categoria de poder e para as reflexões sobre o sujeito e o subjetivo como categorias incontornáveis numa análise mais rigorosa das práticas sociais. Contribuem, ainda, para dar visibilidade a outro universo de sentido – o feminino. Torna-se impossível pensar, analisar e interpretar as sociedades contemporâneas sem ter em consideração as contribuições da mulher, o modo como exprime, socialmente, a sua subjetividade, as suas produções e expressões artísticas. As palavras de Stuart Hall (2010, p. 269) expressam, de um modo bem significativo, as “perturbações” provocadas pela irrupção das questões femininas num mundo essencialmente masculino,

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patriarcal e machista: “Não se sabe, de uma maneira geral, onde e como o feminismo arrombou a casa. [...] Como um ladrão no meio da noite, ele entrou, perturbou, fez um ruído inconveniente, tomou a vez.” Considerando que a moda se apresenta na sociedade como uma importante dimensão da cultura, ela não é, apenas, uma mercadoria para consumo, mas uma expressão simbólica das múltiplas subjetividades sociais. É neste sentido que ela se impõe na sua dimensão epistemológica ao representar simbólica e materialmente a cultura de um povo, de um grupo e o modo como se relacionam com o mundo, com os outros e com a existência. Mas também, por outro lado, ao promover, antecipadamente, outros paradigmas resgatando, em muitos casos, aspectos de culturas marginalizadas, resgata saberes periféricos que adquirem centralidade.

A moda como linguagem e como expressão cultural A moda “desempenha um papel da maior importância na construção social da identidade. A escolha do vestuário propicia um excelente campo para estudar como as pessoas interpretam determinada forma de cultura para seu próprio uso” (CRANE, 2006, p. 22); refletindo sobre o pensamento de Crane, podemos analisar a moda como uma comunicação simbólica da cultura e das subjetividades que se materializam como uma forma de intervenção no mundo, de expressão individual e coletiva. Todos nós temos uma ideia superficial do que vem a ser moda, mas afinal, o que ela é, de fato? A moda é um fenômeno que pode ser compreendido como um sistema complexo de criação e recriação, impulsionado por fatores culturais, sociais, políticos e econômicos. A moda, em seu âmbito coletivo, desvela e revela um conjunto de conhecimentos, visões do mundo e da vida, ou seja, a cultura na qual está inserido o sujeito que a usa. Em seu âmbito individual, pode revelar desejos, anseios, ego, estado de espírito e perspectivas do ser humano. O fenômeno moda surge no final da Idade Média, por volta do século XIV, no momento em que o homem, afastando-se do ideal teocentrista e do culto à perpetuação das tradições, começa a se reconhecer na sua individualidade e, impulsionado pelo desejo do novo, passa a buscar diferenciar-se dos demais, de acordo com Lipovetsky (2009). Anterior a este momento, se fala em indumentária, não em moda, pois o fenômeno moda inaugura uma fase de constantes transformações e ruptura com as tradições das vestimentas que, muitas vezes, duravam séculos. O mimetismo da moda, em que os sujeitos se identificam com determinados estilos e repetem o uso, o que leva a uma espécie de padronização atra-

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vés da massificação, é resultado de um processo cultural; pode-se considerar que a roupa, neste caso, é um meio de comunicação do sujeito que desvela seu anseio de pertencimento a um grupo social ou a um determinado padrão em voga. Por muitas vezes a moda foi julgada como um fenômeno que se resumia à imitação do padrão proposto pelas classes sociais mais altas. Simmel (2008), em sua tentativa de delinear a moda, a propunha como um processo de imitação das elites pelas classes sociais mais baixas. Porém, no contexto do século XIX, quando o sociólogo refletiu sobre o papel da moda analisando a sociedade desse período – em que tecidos e roupas eram bastante caros, considerados patrimônio, muitas vezes penhorados juntamente com joias em bancos e a maioria dos cidadãos de classes sociais mais baixas possuíam apenas um conjunto de roupas – “parece improvável que membros da classe operária pudessem copiar os amplos guarda-roupas da classe média em alguma medida além da superficial” (CRANE, 2006, p. 32). Crane refuta a ideia de Simmel, fazendo uma reflexão a partir de Bourdieu sobre as estruturas sociais e suas relações com a cultura: Bourdieu descreve as estruturas sociais como sistemas complexos de culturas de classes constituídos de conjuntos de gostos culturais e estilos de vida que a eles se associam. Dentro das classes sociais, os indivíduos competem por distinção social e capital cultural com base em sua capacidade de julgar a adequação de produtos culturais segundo padrões de gosto e maneiras alicerçados na ideia de classe. [...] Em sociedades de classes, a cultura dominante e mais prestigiosa é aquela da classe alta. As elites possuem ‘o poder de estabelecer os termos através dos quais se conferem valor moral, social aos gostos. [...] De acordo com a teoria de Bourdieu, os gostos dos homens da classe operária seriam baseados numa ‘cultura da necessidade’, característica de sua classe. Em outras palavras, um vestuário prático, funcional e durável, em vez de esteticamente agradável e elegante. (CRANE, 2006, p. 32-33)

Cabe refletir que, se a moda pode ser o reflexo de um poder simbólico e de uma ideologia dominantes – e, em muitos casos, é isto que acontece – ela poderá ser também um símbolo de resistência a essa ideologia, como uma linguagem que exprime uma cultura dominada e silenciada. A moda, nas sociedades atuais, com a oferta de tecidos, roupas e acessórios cada vez mais acessível e diversificada, distanciou-se do caráter de distinção social através das vestimentas, fortemente presente no século XIX, e aproximou-se mais e mais do caráter identitário, simbólico, de comunicação e expressão pessoal. A partir de meados do século XX, a roupa se torna, também, um veículo propagador de ideias, de expressões sociais e ruptura com padrões hegemôni-

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cos. Reflitamos sobre o momento em que a calça comprida passou a fazer parte do guarda-roupa e cotidiano feminino. O simples uso de uma peça de roupa trazia à tona e comunicava uma mudança de paradigmas na nova mulher que surgia juntamente com esta peça de roupa, desencadeou polêmicas em relação ao seu comportamento, interpretada por muitos como uma ruptura com as tradições, uma transgressão de valores. A calça comprida entrou na vida das mulheres através desta nova dinâmica das cidades europeias no início do século XX, no contexto de guerra, que exigia das mulheres uma roupa prática para andar de bicicleta e se movimentar nos afazeres dos postos de trabalho na cidade, tendo em vista que os homens estavam nos campos de batalha. Nesse momento, o uso da calça comprida era, para além de uma necessidade, um zeitgeist, era sobretudo uma linguagem que expressava a busca pela emancipação feminina, assim como o episódio da queima dos sutiãs de 1968; e apesar de todas as resistências, a peça bifurcada incorporou-se às saias e aos vestidos, revolucionando o vestuário feminino e a vida de algumas mulheres que resolveram aderir à tendência. Essa peça veio se consolidando ao longo do século XX como uma peça unissex, incorporando a ela um caráter binário e não dicotômico de antes, onde calça era “coisa de homem” e não “coisa de mulher”. O uso da calça comprida pelas mulheres representava expressar-se como livre e moderna, neste caso, resguardaremos as devidas proporções do termo moderno, tendo em vista que a sociedade era bastante conservadora. Dentro da sociedade conservadora na qual viviam, a roupa feminina trazia a representação do capital simbólico da família, não podendo, portanto, comprometer os signos relacionados à tradição e ao poder do nome da família que se construíam, também, por intermédio da roupa com a qual as mulheres se apresentavam para a sociedade. Também neste momento, começam a aparecer as tribos urbanas: grupos sociais que adotam um código visual como uma linguagem, como forma de expressão. Podemos considerar como uma das primeiras tribos urbanas, as “Melindrosas”, nos anos de 1920. Com o fim da guerra, inicia-se uma fase de recuperação e prosperidade na economia mundial, os meios de comunicação e transportes passam a fazer parte do cotidiano, acelerando o ritmo do dia a dia e a vida das pessoas. Todo este contexto torna possível os chamados “Anos Loucos”, como a década de 1920 ficou conhecida, quando a vida noturna passou a ter destaque com night-clubs, teatros, cinemas e salões de jogos; surgem novas bebidas (cocktail), novas músicas, como o jazz, e novas danças, como o charleston. As mulheres modernas da época passam a fumar em público, dirigir automóveis e cortam o cabelo curtinho, a la garçonne, as melindrosas eram as que frequentavam os salões de dança, se soltavam ao som do Charleston e

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muito apreciavam o espírito livre desta nova fase da vida das mulheres. Como toda tribo urbana, tinham um código visual, que lhes conferia a expressão de suas subjetividades e a identidade do grupo, que começava a desenhar a sua forma de relação com o mundo, trazendo sua contribuição, renovando significados e valores para a vida feminina, por intermédio, também, de suas roupas. O vestido preto com franjas, a boca cor de carmim em formato de coração e os olhos bem contornados em preto compõem o próprio estereótipo da melindrosa, muitas usavam vestidos ligeiramente acima dos joelhos, o que representava uma grande ousadia para a época. Estas novas expressões contra-hegemônicas, no âmbito social, cultural e da moda, que se davam no contexto europeu, eram também percebidas no contexto local. No estado do Piauí, podemos citar Genu Moraes3, uma mulher ousada e vanguardista que viveu em Teresina, de espírito jovem, livre e uma vida social ativa, foi a primeira mulher a tirar habilitação para dirigir automóvel e a usar calças compridas nesse estado. Genu, além de não se intimidar com os comentários alheios, sempre recebeu o apoio de seu pai em todas as suas práticas consideradas ousadas pela sociedade, tais como: dirigir automóvel e ter amigos homens, relata-nos como foi a experiência de ser a primeira mulher a usar calças compridas no Piauí: ela conta que apreciava andar a cavalo pela cidade e, em uma viagem ao Rio de Janeiro, comprou algumas calças compridas. Ao retornar a Teresina, vestiu a novidade e foi para um passeio a cavalo na principal avenida da cidade, a Av. Frei Serafim, segundo sua entrevista, o uso da peça provocou desconforto a muitos piauienses, “foi um falatório danado, as pessoas diziam que era uma ousadia muito grande, que eu estava desrespeitando os bons costumes, mas eu não me importava com o que falavam”, relatou Genu.

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Relatos concedidos em entrevista, realizada em 25 de Fevereiro de 2013, por Camila Maria Albuquerque Aragão.

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Figura 1 – Genu Moraes vestindo calças compridas na década de 1940 em Teresina.

Fonte: Acervo pessoal de Maria Genoveva de Aguiar Morais Correia

Genu contou um fato em especial de quando começou a usar calças compridas: ao passar pela Avenida Frei Serafim, em frente ao Colégio das Irmãs – colégio tradicional católico só para moças, dirigido e cuidado por freiras – as alunas ao a avistarem, correram para as várias janelas que tomam a frente da fachada, ficando a observar a sua passagem, a cavalo, usando calças; tão logo as freiras repreenderam as alunas para retornarem aos seus lugares e não fazerem plateia para a ‘ousadia de Genu’; em seguida, fecharam as janelas da escola. De acordo com Bourdieu (2012, p.117) as mulheres “trazem uma contribuição decisiva à produção e à reprodução do capital simbólico da família [...] expressando o capital simbólico do grupo doméstico que concorre para sua aparência”. O autor ilustra o exposto acima quando ressalta a importância do traje e da aparência feminina para a família dentro da sociedade, contendo signos e significados que se relacionam, diretamente, com as influências sociais. Porém, ao mesmo tempo em que os trajes são fatores de propagação das influências sociais, são também colaboradores para uma progressiva ruptura

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de padrões, para a renovação dos estilos, para uma emancipação e expressão individual no vestir-se, que é própria da modernidade. Em um movimento também contra a moda hegemônica, já em meados do século XX, na década de 50, a cultura jovem que emana nesse período reivindica a sua própria moda. Contra os saltos finos, as jovens começam a usar sapatilhas com meias, contra os coques elaborados, o simples rabo de cavalo. Para os rapazes, a calça jeans, a t-shirt branca e a jaqueta de couro rompem com a tradição da calça social com vinco bem marcado, camisa de botão e terno. Esse novo estilo proposto pela juventude da época põe fim à moda única e inaugura a moda jovem. O que pode ser considerado mais contra-hegemônico do que a moda unissex que surge na década de 1960? A roupa que carregava a distinção social, de gênero e de classe como um fardo, começa a ganhar o caráter de liberdade. Podemos perceber nisto, a moda em sua dimensão epistemológica, capaz de produzir conhecimento, a roupa como um instrumento de reflexão-ação-reflexão, a partir do qual os sujeitos – individualmente – e os mais variados grupos sociais, tribos urbanas ou subculturas – coletivamente – manifestam suas crenças, valores, sua relação com o mundo e com a realidade em que estão inseridos. Sobre isto, podemos refletir a partir do pensamento de Freire ao tratar da subjetividade humana, quando afirma que não é suficiente ao homem ter o sentimento de pertencimento a um grupo, mas constituir-se como sujeito no mundo: um dos temas mais exaustivamente tratado por Paulo Freire em seus livros, e que aparece como um dos princípios fundantes de toda a sua obra, é a questão da subjetividade do homem e a percepção dessa subjetividade, pelo próprio homem, na construção da história e da cultura. Para Paulo Freire, não basta ao homem reconhecer-se enquanto indivíduo pertencente a um determinado grupo social e, assim, ser um mero “herdeiro” das condições em que se encontra no mundo, sejam elas boas ou ruins. Para ele, o fundamental é que esse indivíduo se reconheça e se constitua como sujeito no mundo, corresponsável, portanto, pela construção das condições do mundo em que vive, e não um objeto, à mercê de situações que, sendo dadas ou herdadas, não podem ser modificadas. (LEIRO, 2005, p.8)4

O fenômeno moda, na contemporaneidade, se movimenta de formas diversas, tanto do “topo” – elite, digital influencers, grandes estilistas, indústrias 4

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Disponível em: http://www.mackenzie.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/ Cadernos/Volume_5/linguagem_cultura_e_identidade.pdf . Acesso em 23 de julho de 2016.

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– para as camadas sociais mais baixas, alcançando a massificação no final do processo com cópias baratas de versões de luxo; quanto se movimenta da “base” – da rua, grupos sociais, tribos urbanas, etc. – para o “topo”, segundo Treptow (2013). Neste último movimento, a ideia que surge na base é adotada e apresentada em versões de luxo pelo topo. A título de exemplo, entre a infinidade de tendências que surgiram da base, a subcultura punk, que surgiu como forma de manifestação na década de setenta, onde os jovens desconstruíram suas roupas, rasgaram, aplicaram peças de metais, espetaram e pintaram os cabelos, criaram um código visual para se comunicar; o topo absorveu a ideia da rua e estilistas de renome utilizam até os dias de hoje referências do estilo punk em suas coleções. A moda é um instrumento de expressão, capaz de dar voz aos sujeitos dominados através da criação, da imagem, do simbólico. A moda como uma linguagem transformadora, contra a cultura do silêncio, [...] o que às vezes não sabem, na cultura do silêncio, em que se tornaram ambíguos e duais, é que sua ação transformadora, como tal, os caracteriza como seres criadores e recriadores. Submetidos aos mitos da cultura dominante, entre eles o de sua ‘natural inferioridade’, não percebem, quase sempre, a significação real de sua ação transformadora sobre o mundo. Dificultados em reconhecer a razão de ser dos fatos que os envolvem, é natural que muitos, entre eles, não estabeleçam a relação entre não ‘ter voz’, não ‘dizer a palavra’, e o sistema de exploração em que vivem. (FREIRE, 2001, p.59-60)

Há, com certeza, uma moda contra-hegemônica que continua a ser criação e recriação, que desvela aspectos ocultos e ou silenciados da realidade, da história, da existência. Observa-se, portanto, que as roupas muito nos contam sobre cada período histórico, são capazes de traduzir o contexto cultural, econômico e os anseios de uma sociedade em um determinado momento, “as mudanças da moda dependem da cultura e dos ideais de uma época. Sob a rígida organização das sociedades, fluem anseios psíquicos subterrâneos de que a moda pressente a direção”. (SOUZA, 1987, p.25). Neste sentido, a moda assume uma incontornável dimensão cultural e assume-se como uma formação simbólica e material de produção de conhecimento.

Considerações finais Paulo Freire considera que a cultura se distancia da natureza: é uma espécie de segunda natureza, um segundo mundo. O mundo da cultura é criação

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e recriação e a moda é uma de suas dimensões. É fato que no passado, a roupa foi contributiva ao sistema opressor, devido à escassez de recursos e tecnologias, a matéria prima para confecção de roupas era cara e inacessível à maior parte da população, mas, a partir de meados do século XX, quando a oferta de tecidos e roupas se expande e os custos se tornam acessíveis, significa que as classes sociais com recursos financeiros limitados se tornam também sujeitos do fenômeno moda, capazes de optar, criar, atribuir valor e expressar suas identidades, crenças, cultura, sua percepção de mundo através do que vestem. Se para Heidegger, a linguagem é a morada do ser e, observemos que os sujeitos transportam-se para dentro de si, decodificam o mundo através das suas experiências e crenças, expressando-as nos seus trajes, porque não afirmar a moda como uma expressão do ser, uma linguagem? A indústria da moda padroniza modelos de beleza e estéticos, vende-os como valores dominantes. Mas a moda não se resume às indústrias, o sistema da moda, que é, sobretudo, um fenômeno social, cultural e político, tem se tornado ao longo de sua trajetória um instrumento de prática libertadora. As expressões contra a cultura dominante encontram um terreno fértil na moda, pois esta se consolidou como uma linguagem de comunicação simbólica que, a partir da consciência de homens e mulheres sobre si, podem estar com o mundo, capazes de transformar realidades, Seres históricos, inseridos no tempo e não imersos nele, os seres humanos se movem no mundo, capazes de optar, de decidir, de valorar. Têm o sentido do projeto, em contraste com os outros animais, mesmo quando estes vão mais além de uma rotina puramente instintiva. Daí que a ação humana, ingênua ou crítica, envolva finalidades, sem o que não seria práxis, ainda que fosse orientação no mundo. E não sendo práxis seria ação que ignoraria seu próprio processo e seus objetivos. A relação entre a consciência do projeto proposto e o processo no qual se busca sua concretização é a base da ação planificada dos seres humanos, que implica em métodos, objetivos e opções de valor. (FREIRE, 2001, p.35)

Todo e qualquer indivíduo se expressa a partir de um código visual, mesmo que inconscientemente, a escolha do vestuário não é aleatória, pois ela revela a relação do sujeito com o mundo. Moda é um tema amplo, multifacetado e interdisciplinar, impossível de ser estudado isoladamente, por ser indissociável de outras áreas do conhecimento, como a história, a sociologia, a antropologia e a psicologia, pois a forma como interagimos com a nossa imagem, incluindo a vestimenta, expressa voluntária ou involuntariamente a nossa forma de ver o mundo – e também o mundo e a cultura aos quais pertencemos. A roupa, desde a pré-história, possui

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o caráter de adorno, ela carrega mensagens de quem a veste, é capaz de transformar as marcas individuais que o corpo humano nu traz. Roupa e moda são símbolos que expressam sentidos múltiplos relacionados com fenômenos da corporeidade, mas também da espiritualidade; revelam estados de espírito, sentimentos e emoções. Pela roupa que cada um/a veste pode-se entender a personalidade de quem a usa. Neste sentido, a moda é uma forma bem objetiva de expressão de múltiplos elementos subjetivos, uma forma de linguagem e de comunicação. A moda é expressão de sentidos múltiplos, pode ser uma forma de interpretação, compreensão e explicação das realidades sociais e culturais, é intuição e percepção de algo ou alguém, exprime subjetividades, dimensões conscientes e inconscientes e revela o pulsar de uma cultura. A moda é uma linguagem com solo fértil e criativo. Do outro lado da aparência, a moda tem seu lado intangível e complexo.

Referências AGGER, Ben. Cultural Studies as Critical Theory. London/Washington DC: The Falmer Press, 1992. BOURDIEU, Pierre. A Dominação Masculina. Trad. Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012, 160p. Nação Masculina. CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas / Diana Crane; tradução Cristina Coimbra. – São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. CUCHE, Denys. A noção de Cultura nas Ciências Sociais. São Paulo: EDUSC, 1999. ESCOSTEGUY, Ana Carolina. Uma Introdução aos Estudos Culturais. Revista FAMECOS, Mídia, Cultura e Tecnologia, Vol. 5, nº 9. Rio Grande do Sul: Pontifícia Universidade Católica do RGS, 1998. FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à Prática Educativa. São Paulo: Edições Paz e Terra, 1997. FREIRE, Paulo. Ação cultural para a liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001. HALL, Stuart. Sin Garantías. Trayectorias y Problemáticas en Estudios Culturales. Quito: Instituto de Estudios Sociales y Culturales, Pensar. Universidad Javeriana y Universidad Andina Simón Bolívar, 2010. HEIDEGGER, M. A caminho da linguagem. Tradução de Marcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista, SP: Editora Universitária São Francisco, 2003. 229 p. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico – 14 Ed – Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. LEIRO, Eliana M. Virgili Filgueira. Linguagem, cultura e identidade: uma leitura intertextual de Paulo Freire e Mikhail Bakhtin. [2005]. Disponível em: http://www. mackenzie.br/fileadmin/Pos_Graduacao/Doutorado/Letras/Cadernos/Volume_5/ linguagem_cultura_e_identidade.pdf . Acesso em 23 de julho de 2016.

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LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e o seu destino nas sociedades modernas / Gilles Lipovetsky; tradução Maria Lúcia Machada. – São Paulo: Companhia das Letras, 2009. SANTOS, Boaventura de Sousa. A Gramática do Tempo. Porto: Edições Afrontamento, 2004. SCHWARZ, Bill. Where is cultural studies? Cultural Studies, 8 (3), 1994, p. 377-393. SIMMEL, Georg. Filosofia da Moda e outros escritos. Lisboa: Texto e Grafia, 2008. SOUZA, Gilda de Melo e. O espírito das Roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987. TREPTOW, Doris. Inventando Moda: planejamento de coleção / Doris Treptow. –5. Ed. – São Paulo: Edição da Autora, 2013. P. 21.

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MÚSICA LINGUAGEM OU LINGUAGEM MÚSICA: POR QUE MÚSICA? Catarina Justus Fischer1

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Catarina Justus Fischer é Pós-Doutorada em Educação pela Universidade Nove de Julho (PPGE), Doutora em História da Ciência pela PUC/SP, Mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Bacharel em Canto Erudito pela Faculdade de Música Santa Marcelina. Pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Nove de Julho (PPGE-UNINOVE). Retirado de uma postagem das redes sociais: , [s.d.], sem autoria.

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106 - Música linguagem ou linguagem música: por que música?

Parte i – teorias... Neste arrazoado procuro abordar a música entrelaçando-a à linguagem, e mediante este exercício verificar a nossa evolução mental como espécie, apontando quais os pontos interessantes e em comum entre ambas, e buscando descobrir se é possível a linguagem estar atrelada à música, fazendo uma análise no que há de fato de útil para a utilização da música como uma ferramenta para o aprendizado, e não apenas utilizada nas aulas de música em sua forma lúdica, pois, como musicista e pesquisadora que sou, questiono sempre os diversos aspectos que circundam todo o conhecimento e, mais especificamente, o tema música. Atualmente, a comparação da música com a linguagem está sendo muito discutida, tanto por musicólogos, linguistas, neurocientistas e afins, como por filósofos, músicos e educadores. As influências da música sobre a atividade mental têm despertado o interesse dos mais diversos campos do conhecimento. Foi somente há dez anos que pesquisadores (re)começaram a questionar, devido a descobertas aleatórias, o modo como o cérebro processa as várias questões que são pertinentes à linguagem e à música. Qual a razão que leva estes pesquisadores a novamente perscrutarem com tanto afinco o tema? Qual o fascínio que a música exerce sobre nós, seres humanos, que faz com que vez por outra voltemos a questionar a música como sendo algo a mais, além de ser o entretenimento, como normalmente se supõe que seja? Na realidade, graças aos modernos exames de imagens do cérebro, da ressonância magnética e da tomografia, por exemplo, novas descobertas vêm sendo realizadas nos estudos sobre a plasticidade cerebral, e cada vez mais constata-se a modificação que a música produz nas ondas, nas sinapses (contatos entre um e outro neurônio dentro do cérebro) e na configuração cerebral. Música, como sabemos, é, antes de qualquer coisa, som. Muito antes de a notação musical ser criada, o som organizado com a intenção de ser ouvido já existia. Podemos até nos arriscar e afirmar que, desde o início dos tempos, muito antes da linguagem ser codificada como um meio de comunicação, o som emitido pelos seres vivos já existia como uma forma de expressão. A linguagem também, assim como a música, é antes de qualquer coisa, som. Muito antes de o alfabeto ser criado, o som organizado por meio das palavras já era emitido como um meio para os seres humanos se expressarem. A forma como nos expressamos pode diferir de cultura para cultura e de espécie para espécie. Na Amazônia, atualmente, vive uma tribo indígena chamada Piraha, e esta tribo não possui os mesmos conceitos de linguagem que nós. Para eles, o conceito numérico inexiste e eles não têm palavras para poder nomear as co-

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res ou para definir os sentimentos; entretanto, possuem música e uma linguagem própria para se comunicarem entre si. (PATEL, 2008). Quando um cachorro uiva, sabemos se está em sofrimento ou, quando late, sabemos distinguir se o latido é uma manifestação de felicidade ou se é um latido ameaçador. Se eles possuem alguns conceitos definidos, nós ainda não sabemos ao certo, mas sabemos que há uma linguagem própria entre eles e que a música existe entre as espécies. Mas o que é música, afinal, como definição? Conceituando genericamente a música, podemos dizer que ela é Mousikê, que em grego refere-se à “arte das musas”. Música é a arte3 de organizar uma combinação coerente de sons e silêncios. De fato, a música é constituída de melodia, ritmo e harmonia, de maneira organizada. Ela é uma linguagem universal, pois podemos apreciar e nos comunicar com diversas culturas diferentes através da música. Ela é um som que engloba quatro parâmetros fundamentais: a altura, a duração, a intensidade e o timbre. E é constituída de melodia, harmonia e ritmo. A organização da música depende desses aspectos: a melodia (o conjunto de sons que soam de forma sucessiva e que são percebidos com uma identidade e sentido próprio), a harmonia (que regula a concordância dos sons e cuja unidade básica é o acorde) e o ritmo (que é a repetição dos sons e silêncios).4 E quanto à linguagem, qual é a sua definição? Também, como um conceito genérico, podemos definir a linguagem como sendo a capacidade de se comunicar conceitos. É o uso de qualquer meio sistemático de comunicar ideias ou sentimentos através de signos convencionais, sonoros, gráficos, gestuais etc. Podemos destacar três dimensões dentro da linguagem: a forma (que compreende a fonologia, morfologia e a sintaxe), o conteúdo (a semântica) e o uso (a pragmática). Antes de desenvolver as suas capacidades, os seres humanos utilizavam-se de uma pré-linguagem, ou pró-linguagem, isto é, um sistema rudimentar que implica capacidades neurofisiológicas e psicológicas, como a percepção, a motricidade, a imitação e a memória.5 Nota-se que tanto o conceito de música quanto o de linguagem referem-se a uma capacidade dos seres vivos de organização dos sons de uma maneira sistemática. Ora, se os seres vivos sistematizam os sons para se comunicar, logo, qualquer som sistematizado vem a ser uma forma de comunicação. Não há dúvidas quanto a nós, seres humanos, sermos da espécie que utiliza a lín3

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Definições e conceitos sobre o que é arte não fazem parte do escopo deste texto. Para algum esclarecimento sobre o assunto relacionado: GARDNER, Howard. Art, Mind and Brain: a cognitive approach to creativity. New York: Basic Books, 1982 e FISCHER, Catarina Justus. Arte (Música) e Educação: o diálogo necessário. [S.l.: s.n.], 2016. No prelo. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016. Disponível em: . Acesso em: 14 maio 2016.

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108 - Música linguagem ou linguagem música: por que música?

gua para articular e se comunicar, pois nos voltamos para a linguagem sempre que queremos expressar aquilo que pensamos ou sentimos. Seguindo por este caminho, ao contrário da afirmação do etnomusicólogo Bruno Nettl (1983, p. 24, apud FISCHER, 2014, p. 67-68), que afirma que a música é “[...] um som humano que se comunica fora do âmbito da linguagem”6, a música e a linguagem apresentam diversas semelhanças e compartilham de diversas propriedades análogas (MAGNE; SCHÖN; BESSON, 2006; PATEL, 2008), tais como: a) ambas se baseiam nos sentidos da audição e necessitam da percepção individual para a produção do som; b) ambas necessitam da memória para armazenar as figuras que representam (palavras, acordes etc.); c) ambas se utilizam da habilidade em combinar essas figuras através de um sistema composto de regras ou estruturas previamente estabelecidas. Tanto uma quanto a outra possibilitam diversos sistemas combinatórios; d) ambas se desenvolvem através de um longo processo de aprendizado (REBUSCHAT et al., 2012, p. 137-138, apud FISCHER, 2014, p. 66). E as semelhanças entre ambas não param apenas por aí, existem outras, mais óbvias e conhecidas, mas não menos importantes, tais como: a) as duas são consideradas universais e pertencentes a todas as comunidades humanas; b) ambas são aprendidas pelas crianças em tenra idade sem grandes esforços (REBUSCHAT et al., 2012, p. 137-138, apud FISCHER, 2014, p. 66); c) ambas podem ser consideradas manipulativas assim como têm a possibilidade de formular fraseados expressivos e ser moduladas de acordo com os sentimentos, e também de dar ênfase às emoções que se queira transmitir (MITHEN, 2011, p. 14-23). De acordo com Sacks (2008, p. 215), a linguagem não é apenas uma sucessão de palavras organizadas em uma ordem apropriada. A linguagem possui inflexões, entonações, tempo, ritmo e uma melodia. E ambas, a linguagem 6

O contexto em que foi escrita esta afirmativa de Nettl não é o mesmo contexto do que foi apresentado acima, pois ele, em sua afirmação, refere-se à diferença dos significados da palavra música como definição nas culturas diversas, tais como a dos índios americanos Blackfoot, para os quais a palavra música engloba a dança como uma definição da própria palavra. Entretanto a inclui acima para dispersar dúvidas que possam suscitar futuramente.

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e a música, dependem dos mecanismos fonatórios e articulatórios para existirem. E ambas dependem também dos mecanismos do cérebro, dedicado à análise da complexa e segmentada mudança dos fluxos sonoros. Entretanto, ainda segundo Sacks, existem diferenças fundamentais entre a linguagem e a música (apesar de normalmente coincidirem em muito) na representação da canção e da fala, na mente humana. Já para o compositor Hans-Joaquim Köellreutter (1915-2005), proeminente educador musical, a música é linguagem, pois utiliza-se de um sistema de signos que transmite informações e mensagens (BALLONE, 2010). Entretanto ninguém, em sã consciência, pode afirmar que escutar uma valsa de Strauss seja uma mesma experiência auditiva que a de escutar o discurso de um político. Isso se deve ao fato de que, quando atingimos um determinado nível de maturidade, nosso conhecimento distingue perfeitamente os domínios que cada uma destas escutas pertence. Mas, pela perspectiva de uma escuta sem experiência ou conhecimento anterior, tal como a de uma criança de poucos meses de vida, acredita-se que esses dois domínios não apresentam tanta diferença um do outro. Como se sabe, os bebês, mesmo quando ainda não conseguem falar, já entendem os rudimentos da sua língua materna. Quando escutam a voz materna ou qualquer outra voz conhecida, reagem positivamente. Se estão chorando por qualquer razão, param de chorar quando escutam aquela voz conhecida. Da mesma maneira esses bebês, apesar de não conseguirem reproduzir a música que escutam, reagem às melodias que já conhecem demonstrando satisfação e contentamento (MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 289). Segundo Patel (2008), a linguagem aprendida durante a primeira infância é aprendida implicitamente com o ritmo da língua materna e de maneira instintiva. E Patel indica que, da mesma maneira, uma composição apresenta em seu ritmo, implicitamente e como uma característica própria, a origem nativa de seu compositor. Diversas análises foram realizadas com pequenos grupos de compositores e suas composições de teor nacionalista, nos quais os colaboradores (ouvintes) conseguiram distinguir a origem pátria desses grupos de compositores, apenas escutando suas obras orquestrais, sem nenhum conhecimento prévio destas obras ou de seus compositores, detectados apenas pelo ritmo escutado (PATEL; DANIELE, 2003 apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 296). Patel et al. (1998 apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 297-298) demonstraram que, quando as crianças da mais tenra idade estão expostas a palavras e sentenças difíceis e por elas desconhecidas, quando as mesmas são examinadas e medidas por um eletroencefalograma, apresentam a mesma resposta eletroencefálica da que corresponde a quando essas crianças são expostas a eventos musicais inesperados.

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Não se pode afirmar com absoluta certeza ainda (faltam estudos) que a linguagem e a música tenham se desenvolvido a partir de uma mesma raiz ancestral, mas sabe-se atualmente que ferimentos causados ao lobo temporal esquerdo resultam em diversos danos na fala, e que a amusia – uma deficiência patológica de produzir, reproduzir ou perceber sons musicais – está relacionada com os danos no lobo temporal direito do cérebro, e não do lado esquerdo (PERETZ; COLTHEART, 2003). Com isso percebe-se claramente que a amusia e a afasia – distúrbio da linguagem que afeta a capacidade da pessoa se comunicar – se dão em lados opostos do cérebro. Entretanto é importante ressaltar que atualmente acredita-se que a música, quando estudada e executada por músicos, permeia ambos os lados do cérebro, pois até o presente momento o que se sabe é que anatomicamente não foi encontrado um centro neurológico específico para a música, assim como existe para a linguagem, sendo que a função musical parece estar presente difusamente nas diversas áreas do cérebro (BALLONE, 2010). Segundo o neurologista Mauro Muskat (2015, p. 6), do Departamento de Psicobiologia da Universidade de São Paulo (Unifesp) e também graduado em regência e composição musical, a música “[...] ativa amplas regiões cerebrais, áreas complementares – e algumas até comuns – às áreas relacionadas com a linguagem (fala, leitura e escrita)”. Apesar de haver ainda muito pouco estudo com bebês e crianças pequenas, ao que parece, esta diferenciação neles não foi detectada até o momento. Isso, calcula-se, deve-se à plasticidade do cérebro em desenvolvimento dos bebês, que demonstra uma grande capacidade em se reorganizar nos eventos dos traumas cerebrais. Enfim, Peretz e Coltheart (2003) sugerem que pode haver a possibilidade de que, quando há uma lesão no cérebro, que se detecta tanto na fala quanto na produção da música, o paciente deve estar afetado não por causa da localização do trauma e, sim, por ter perdido a capacidade de compreender e/ou produzir todo o seu conhecimento, adquirido durante a maturidade. Concluindo, o que defende Peretz é que, enquanto ainda não se têm o domínio da língua ou da música, ambas são processadas da mesma maneira pelo cérebro infantil, não distinguindo os lados do lobo temporal. Peretz acredita que pensar na linguagem e na música como possuidoras de uma origem comum poderá ajudar a entender melhor a cada uma como pertencentes a domínios individuais. (apud MCMULLEN; SAFFRAN, 2004, p. 304-306). O musicólogo Steven Brown (2000, p. 271-300 apud FISCHER, 2014, p. 70) afirma que, em um determinado período do passado da evolução dos seres humanos, a linguagem e a música se separaram, dividindo-se em dois sistemas independentes um do outro, cada um adquirindo propriedades adicionais e únicas.

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Desta forma, pode-se pensar que da mesma maneira que a linguagem possui fronteiras geográficas, sociais e de estilos, a música também as tem. Ambas podem ser agrupadas, padronizadas e seu desenvolvimento pode ser traçado e demonstrado, mesmo pertencentes a domínios diferentes. Entretanto é nas distinções entre a música e a linguagem que detecta-se quais são as características em que uma diverge da outra. Segundo Mithen (2011, p. 11-14 apud FISCHER, 2014, p. 68), a linguagem tem como vantagem sobre a música o aspecto de ser um sistema de comunicação contendo um léxico (coleção de palavras com significados convencionados) e uma gramática (conjunto de regras para se combinar as palavras formando a expressão). Mithen afirma ainda que, enquanto a linguagem falada transmite informações, por ser formada por símbolos que dão sua significância através das regras gramaticais, a música, com suas frases musicais, gestos e movimentos corporais, é holística, e a sua significância deriva de um todo, de uma só entidade. E, ainda, segundo Mithen (2011, p. 14 apud FISCHER, 2014, p. 69), uma grande distinção entre a música e a linguagem é que enquanto se escuta uma língua estrangeira sendo falada, se não a dominamos, poderemos apenas deduzir o que está sendo enunciado pelas expressões faciais do articulador, assim como que tentar sentir se o que está sendo dito é alegre, triste, bravo ou condescendente. Já o que ocorre com a música, é muito diferente, pois a mesma música que emocionava as pessoas no século XVIII pode emocionar os ouvintes também no século XXI. E da mesma maneira que uma música composta por um compositor alemão – digamos, Mozart ou Bach (mesmo que não falemos alemão) – pode mexer com os nossos sentimentos e com a nossa mente, assim também as músicas dos Beatles (mesmo que não falemos inglês) podem até hoje nos fazer cantarolar. Neste aspecto, a música é de fato anacrônica, e a linguagem com certeza não é, pois a música não apresenta contornos nem limites de época, mesmo sendo possuidora de estilos típicos a cada período. Os estilos musicais do passado vão se adicionando aos estilos do presente e podem ser tanto executados quanto admirados no futuro também, com as mesmas regras de sua composição original. Já a língua, que está sempre em desenvolvimento, soaria muito estranha se hoje fosse por alguém falada como se falava no século XV. Teríamos muita dificuldade em compreender o real significado das palavras enunciadas, assim como para entender as expressões de época. Neste aspecto, pode-se afirmar que a música e a linguagem não são similares em sua forma de comunicação. A música transcende o tempo, e a linguagem se desenvolve e modifica-se com o tempo. O musicólogo Ian Cross (2012) afirma que a música é compreendida, tanto pelo seu sentido geral como restrito, pela dinâmica dos processos históricos

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ou culturais. Será em vão procurar entender a música, em qualquer área do conhecimento, que não seja através da sua história ou de sua cultura. E menciona também que a música é uma ideia de sintaxe pura, expressa como som, e não se trata apenas de ser o “[...] som organizado com ritmo e melodia” (FISCHER, 2016, p. 10, no prelo). O que se percebe é que os estudos estão se encaminhando para demonstrar que a música pode ser sim uma linguagem, ou melhor, uma outra forma de linguagem, e que quando não se tem o domínio da linguagem para a comunicação e para a expressão de sentimentos, ao que parece, a música consegue de alguma maneira completar essa lacuna. Em Musicophillia, Oliver Sacks (2008, p. 343-348) expõe suas experiências pessoais com pacientes com demência e Mal de Alzheimer. Diversos cuidadores reportaram para Sacks que seus pacientes, diagnosticados com demência, Parkinsons ou Mal de Alzheimer, reagem positivamente quando escutam música. E muitos desses cuidadores reportam que se comunicam de fato com o paciente através da música, e não através da linguagem, coisa que não acontece, dependendo dos danos, em outras circunstâncias. Interessante o que diz Sacks (2008, p. 346) sobre a percepção da música e como ela interfere nas emoções dos indivíduos: A percepção da música e as emoções podem mexer e não somente depender da memória, e a música nem precisa ser familiar para exercer o seu poder em despertar emoções. Eu vi inúmeros pacientes com demência profunda chorarem copiosamente ou ficarem arrepiados enquanto escutavam músicas jamais ouvidas anteriormente. E eu acredito que eles podem sentir e alcançar as mesmas emoções que qualquer pessoa possa sentir, e que a demência, pelo menos nesta hora não é um impedimento para as suas mais profundas emoções se manifestarem. Quando vemos este tipo de reação nos pacientes, sabemos que existe ainda um ser para se resgatar, mesmo se for através da música e somente da música que se possa efetuar este resgate.7

Parte II – estudo de caso... Margarida hoje é uma senhora idosa de 94 anos de idade. Atualmente ela está confinada entre uma cama e uma poltrona, pois há 12 anos desistiu de caminhar. Não que ela tenha algum problema degenerativo nas pernas, mas porque isso está ocorrendo em seu cérebro. Sua mente, a cada dia, vai se deteriorando mais e mais. Ela foi diagnosticada como tendo uma forma de de7

Tradução livre da autora para o português.

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mência, que pode ser até uma forma benigna do Mal de Alzheimer, se é que existe isso. Segundo o que a Mayo Clinic Staff (2016) diz, [...] a demência não é uma doença. A demência rastreia um grupo de sintomas que afetam a memória, o raciocínio e as habilidades sociais de uma maneira tão grave que esta interfere com o funcionamento das habilidades do dia a dia. As causas da demência envolvem a perda das células nervosas dentro de diversas áreas do cérebro. A demência afeta as pessoas de maneiras diferentes, dependendo da parte em que o cérebro é afetado. Diagnosticar e determinar qual tipo de demência está atingindo o paciente é um desafio, pois para poder ser detectado são necessários que pelo menos duas áreas principais das funções mentais estejam debilitadas a ponto de interferir no dia a dia do paciente. Algumas funções mentais que podem ser prejudicadas são: a memória, a linguagem, a habilidade em focar e prestar atenção, a habilidade de raciocinar e a de resolver problemas assim como a percepção visual. 8

Não faz parte deste texto detalhar o que é a demência ou o Mal de Alzheimer como patologias e seus sintomas, mas apenas a título de uma melhor compreensão, sobre o que se passa com a mente da Margarida, é que foram descritos acima, resumidamente, alguns dos sintomas da demência. Mas, voltando ao que é pertinente... Margarida é a minha sogra. Ela veio morar comigo há oito anos. Ela morava em seu apartamento e era muito mal cuidada pela sua cuidadora. Margarida enviuvou há dezoito anos e desde então ficou morando sozinha com a sua empregada/cuidadora. No começo, Margarida se tratava sozinha, ligando sempre para o seu médico9 que a visitava em sua residência, e tomando os remédios que o mesmo lhe receitava. Mas, com o passar dos anos quem começava a ministrar os medicamentos a ela era a cuidadora, por ordem do médico e da própria Margarida. Como eu não morava com elas, não sei determinar o que causou a deterioração da mente da minha sogra. Mas chegou uma época em que, não sei como, ela conseguia tomar os remédios de tarja preta sem a prescrição do médico dela. Inclusive um dia meu marido teve que ligar para a farmácia ameaçando de prisão o farmacêutico que lhe enviava os remédios sem a devida receita médica. Sei dizer que, depois de alguns anos, ela parou completamente de andar, não comia mais direito sozinha, engasgava o tempo todo e, por isso, vez por outra, era internada no hospital, muitas vezes dando en8 9

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Tradução livre da autora para o português. O médico de D. Margarida é o Dr. Edilio Mattei Jr., que a vem acompanhando nos últimos dezoito anos.

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trada no Centro de Terapia Intensiva com diagnósticos de sobrevida nada favoráveis a ela. Começou a desenvolver diversas pneumonias devido ao fato de não conseguir engolir direito e por aspirar invariavelmente a comida para os pulmões. E, junto com tudo isso, Margarida começou a ter alucinações e diversas formas diferentes de confusões mentais, além de desenvolver mudanças drásticas em sua personalidade. Ela, que era uma pessoa gentil, e que sempre tentava agradar a todos, gradualmente foi se tornando muito violenta e agressiva. Acredito eu que este quadro tenha se agravado pelos medicamentos errados e abusivos que tomava (entre eles, doses exageradas de Bromazepan10 e Midazolam,11 nome genérico dos medicamentos). Quando aconteceu a sua última internação na UTI, ela foi desenganada pelo seu médico, e na ocasião prometi a mim mesma que, caso ela se salvasse, a levaria para morar comigo. Ela se salvou. E foi o que aconteceu. Veio morar comigo. A primeira providência que tomei foi a de controlar todos os medicamentos receitados para ela rigorosamente. Realmente, para espanto de seu médico e do meu marido, parou de alucinar e começou a recuperar a memória e um pouco do domínio sobre sua habilidade de raciocínio e deglutição. Acho importante salientar que nunca mais (nestes últimos oito anos) ela precisou ir para o hospital para ser internada por problemas de saúde. O que é pertinente neste relato é que no último ano, muito lentamente, dia a dia, a cada dia, mais e mais, sua memória está se esvaindo, assim como a sua capacidade de articular mais de duas palavras, ou de manter o seu raciocínio funcionando por mais de três segundos. Explico, hoje em dia ela me olha, começa uma palavra (engrolada, difícil de entender) e não consegue nem adicionar a segunda palavra para poder começar a interagir e a falar comigo. A cada dia se torna mais e mais cansativo e difícil, um grande esforço para ela pensar e falar. Quando falo com ela, parece que se cansa muito em ter que responder à uma simples pergunta: “Tudo bem, D. Margarida?”. Ela me olha confusa e apenas balbucia uma palavra, às vezes, um sim, para em seguida fechar os olhos e ficar alheia a tudo e todos ao seu redor. E é nesse momento que, vez por outra, olho para ela e digo: “D. Margarida, a senhora se lembra do ‘Meu limão, meu limoeiro’?”. Ela me olha como se eu fosse maluca (e a cuidadora também), mas, sem me importar, eu começo a cantar: “Meu limão, meu limoeiro”. E, sem titubear, sem engrolar e sem balbuciar, sem desafinar, com a voz que lhe pertencia outrora, junto comigo ela 10 11

Bromazepam – Ansiolítico da classe dos benzodiazepínicos (faixa preta). Atualmente esta medicação tem prescrição restrita devido ao fato de afetar a memória, causar dependência e levar a depressão. Também pode desenvolver tolerância no uso sistemático. Midazolam – Agente benzodiazepínico de curta ação para indução do sono e como uma pré-medicação para a indução de anestesia.

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canta a música inteira, sorrindo e lembrando de todas as palavras e às vezes completando, por mim, palavras da música que eu finjo ter esquecido. E isso acontece invariavelmente algumas vezes por semana, assim como estou relatando, atualmente. A cada dia que passa ela está mais fraquinha, mais alienada, mais confusa, chamando a sua mãe, o seu pai, esquecendo-se de quem somos, meu marido e eu, mas a cada vez que entro em seu quarto e começo a cantar, tanto faz a música, geralmente músicas infantis, como Se esta rua fosse minha, O cravo brigou com a rosa, A canoa virou, e músicas mais complexas como Tristeza (de Heitor dos Prazeres), e Deixa isso Pra Lá (de Alberto Paz e Edson Menezes), A Felicidade (de Vinicius de Moraes) e muitas outras, ela se empertiga toda, seus olhos se acendem e brilham, e ela canta junto, com voz plena, articulando todas as palavras intactas, sem desafinar e sem titubear no decorrer da música toda! Esta habilidade intacta em sua mente não é um desafio apenas para mim, mas o é também sem dúvida para toda a classe dos neurocientistas que estudam o tema. Minha sogra se comunica comigo através das músicas e sua memória, ao cantar as letras das músicas, está preservada. Somente através das canções que cantamos juntas é que estamos interagindo uma com a outra e eu sinto que ela está feliz, pois sorri enquanto canta. A verdade nua e crua é a seguinte: a mente pode estar danificada de uma maneira irreversível, mas, mesmo assim, a música continua intacta dentro de seu cérebro tão gasto, doente e terminal, trazendo de volta as emoções e as memórias que outrora foram sentidas e vividas. Esta minha experiência pessoal, que aqui compartilhei neste texto, tenho certeza, não é única e nem rara. Existem diversos estudos de casos com pessoas que perderam suas memórias devido a acidentes nos quais parte de seu cérebro é ceifado, ou mutilado, e que, quando confrontadas musicalmente, de alguma forma conseguem lembrar, interagir e voltar a ser, mesmo que por pouco tempo, aquele ser que um dia já tenha sido. Como podemos perceber, ainda estamos engatinhando nos estudos e nas pesquisas sobre a linguagem da música. Mas a cada dia mais me convenço (pelas evidências que coleto aqui e ali) de que a música pode ser considerada como uma língua exótica e que deve ser aprendida por todos para o bem de nossa evolução como seres humanos.

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LINGUAGEM E RESISTÊNCIA: LUANDINO VIEIRA E SUA NARRATIVA DOCEMENTE AMARGA Cláudia Cristina de Oliveira1 Em tempos sombrios, a literatura se insurge como lenitivo às agruras vividas por mulheres e homens, crianças e velhos. A ficção escapa às fronteiras da própria criação para conceder um lugar de segurança, ainda que o assunto tratado seja a insegurança da vida real. Assim, escritores e escritoras, em todos os tempos, vêm repetindo a fórmula do ficcional para suportar o real. E mais que suportá-la, para resistir a ela. As literaturas africanas de expressão portuguesa têm dado exemplos diversos da resistência ao mundo criado pelo homem em concorrência com as imaginações férteis e a labuta da pena que remete escritores e leitores a outros planos de existência. O que se pretende nesse ensaio é uma breve incursão literária que propicie a reflexão do quão importante a literatura é, sobretudo, no seio de sociedades e projetos políticos cindidos por quaisquer motivos. Por questões meramente espaciais, faz-se necessário um recorte analítico, assim, nos debruçamos sobre a obra A Cidade e a Infância, de Luandino Vieira para representação da linguagem como produto estético, mas, sobretudo, de resistência. Sabe-se que Luandino Vieira foi preso em 1961, assim que as lutas pela independência de Angola se avultaram e se tornaram perigosamente reais para os projetos de Portugal, o colonizador. José Luandino Vieira foi preso logo no início das lutas pela independência, primeiro ainda em 59 e, depois, em 1961, tendo sido acusado, de acordo com o artigo 141º, nº1, do Código Penal de 1961, de ser um elemento perigoso para a segurança externa e “intentar, por meio violento ou fraudulento, separar a Mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro todo ou parte do território português.” A condenação foi de 14 anos de prisão, sendo de 1961 a 1964 cumprida a pena em várias cadeias na cidade de Luanda. Em 1964, foi enviado para o Campo de Trabalho de Chão Bom, Tarrafal, Cabo Verde, onde permaneceu até 1972, sendo

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Mestre em Educação com o tema “Entre Direitos e Deveres: Um estudo sobre as literaturas africanas e afro-brasileiras nos cursos de Letras para o atendimento à lei 10.639/2003” (Uninove, 2016). Bacharel em Letras e História. Professora na Ed. Básica e formação de leitores. Contato: [email protected].

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posteriormente transferido para Lisboa, em regime de residência fixa, até 1974. (RIBEIRO, VECCHI apud VIEIRA, 2015a, pp. 16-17).

O “meio fraudulento” de que dispunha o escritor era a sua literatura, hoje considerada imatura, seminal por parte da crítica, mas preocupante para o establishment imperialista português. Percebe-se que aquilo que se considera um produto cultural e estético é, para o sistema político, um verdadeiro perigo, uma vez que a atuação política do jovem escritor era vigiada e preocupava as autoridades colonizadoras. A exemplo disso, a apreensão do projeto nº 1 do Caderno Nzamba, Luanda: ABC, em 1957, de A Cidade e a Infância, “já na tipografia, ter sido apreendido pela PSP (Polícia de Segurança Pública) e pela Administração do Concelho de Luanda”, conforme a cronologia da obra Papéis da Prisão (SILVA, p. 1015, 2015), demonstra atitude arbitrária, autoritária e cerceadora, que seria a primeira de outras vividas por Luandino. As “estórias”, como grafa o autor, de A Cidade e a Infância foram gestadas para duas obras diferentes, com organizações próprias: a primeira seria constituída dos contos escritos entre 1954 e maio de 1956, no total onze (“Vidas”, “Sábado de Tarde”, “Encontro de acaso”, “O despertar”, “A fronteira de asfalto”, “Algemas de papel”, “O nascer do Sol”, “ A menina tola”, “A morte do negro”, “A cidade e a infância” e “Um buraco no campim”), e seria chamada A Cidade e a Infância; a segunda, Vadiagem, seria dividida em três partes: musseques (com as estórias “Marcelina”, “Bebiana” e “Rebeca”), ABC (“Joãozinho”, “Faustino”, “Quinzinho”) e Três estórias simples (“Desertor”, “Companheiros”, “Primeira canção no mar”). (SILVA apud VIEIRA, 2015a, pp. 1018-1019). No entanto, os projetos seminais idealizados por Luandino Vieira, ainda um jovem que voltava do serviço militar obrigatório, não se concretizaram. Ao contrário: sua atuação política o marcava como inimigo do Império, de modo que o autor não veria sua obra publicada em Luanda. A urgência da publicação, em 1960, pela C.E.I. – Casa dos Estudantes do Império, em Lisboa – o número 2 da Colecção Autores Ultramarinos – coincide com idas e vindas da prisão, como organiza Mónica V. Silva: 1935-1951: infância e juventude; 1952-1959: início da ação política pela cultura; 1959-1961: primeira prisão – Casa de Reclusão Militar de Luanda; 19611964: segunda prisão – Aljube e prisões de Luanda: Pavilhão Prisional da PIDE, Cadeia do Comando da PSP e Cadeia Comarcã (também chamada Cadeia Civil ou Cadeia Central de Luanda);

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1964-1972: segunda prisão – Campo de Trabalho de Chão Bom, Tarrafal, Cabo Verde; 1972-1975: segunda prisão – liberdade condicional com regime de residência fixa em Lisboa – até a Independência de Angola. (SILVA apud VIEIRA, 2015, p. 1011)

A cronologia de Luandino Vieira em Papéis da Prisão (2015) deixa claro que a história de resistência2 do escritor esteve diretamente ligada ao seu fazer literário, de modo que a atuação política não anulou a escrita, mas a intensificou ainda mais. A Cidade e a Infância, publicada pela C.E.I., em 1960, cujo prefácio foi assinado por Fernando Costa Andrade3, teve então a organização que era possível para aquele momento e não a planejada pelo autor, mas que, distante no tempo, conta uma história atrelada à História angolana e das literaturas de expressão portuguesa. São seus contos – ou estórias: “Encontro de acaso”, “O despertar”, “O nascer do sol”, “A fronteira de asfalto”, “A cidade e a infância”, “Bebiana”, “Marcelina”, “Faustino”, “Quinzinho” e “Companheiros”. Joelma Gomes de Andrade analisa a coletânea de contos de Luandino a partir de seu título, afirmando que “A Cidade e a Infância, seu título, já sugere as relações (conflitantes) entre as personagens principais dos contos e o universo, que metamorfoseado pelo asfalto do “progresso”, implica em novas formas de estar no mundo e seus reflexos na vida das personagens.” (ANDRADE, 2014, p. 20).

Porém, mais que sugestão do título, Manuel Ferreira, no prefácio à 2ª edição, de 1977, destaca que o produto final, resultado das perseguições e da urgência de publicar para não cair de novo nas mãos da polícia colonial e, por isso, não ser novamente destruído, é composto por duas obras distintas e distantes; como visto, A Cidade e a Infância não concebia o livro Vadiagem. Com a destruição da obra de 1957, ainda na gráfica, destruía-se o que ainda havia de

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A palavra “resistência”, nesse sentido, extrapola a significação criticada por aqueles que se debruçam sobre as literaturas de expressão portuguesa, pois o autor precisou “resistir” ao sistema político e às penas a ele impingidas, tornando a literatura uma forma até de suportar o tempo em que esteve na prisão. Poeta angolano e militante pela libertação de seu país. Entre outras, autor das importantes obras Literatura Angolana – opiniões (Edições 70, 1980) e Falo de Amor por Amar (União dos Escritores Angolanos, 1985).

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português em José Graça4, que assinava o livro, para nascer o Luandino Vieira5, fruto da vivência em Luanda, dos conhecimentos dos musseques, das experiências vividas, o que “transmite já a ideia de que o Autor atribuía real e significativa importância a uma “infância” inserida numa certa “cidade”. (FERREIRA apud VEIRA, 2007, p. 118), pois o livro constituído por dez contos tem uma divisão muito clara e nada aleatória: quatro estórias que recuperam memórias de infância e juventude (“Encontro de Acaso”, “O despertar”, “O nascer do sol”, “A fronteira de Asfalto”; o conto homônimo – “A cidade e a infância” – exatamente no meio do livro, como um divisor de águas; quatro histórias que tratam de dramas individuais, mas que poderiam ser a história de qualquer angolano submetido aos sistemas de desigualdades coloniais (“Bebiana”, “Marcelina”, “Faustino”, “Quinzinho”); uma história final ou o produto final daquele mundo colonial – “Companheiros” – que, de moderno, só tinha o nome do colonizador, e a herança final aos colonizados: a marginalização, a “função”, o se “virar” angolano. A vadiagem é o resultado daquilo que a cidade acabou por transformar a infância de cada um daqueles personagens. Segundo o pensamento de Benjamim Abdala Jr, a maturidade linguística do autor, ensaiada em A cidade e a infância, só se consolidaria na obra Luuanda, pois “ao circular entre os dois espaços, a linguagem literária do escritor vai ganhando consistência artística, entre os repertórios das literaturas em língua portuguesa e os da oralidade, dos contadores tradicionais de “estórias” de seu país.” (ABDALA, 2007). A maturidade do estilo de Luandino Vieira é conquistada sob a marca do conflito no jovem José da Graça e suas memórias, pungentes no resistente Luandino. Dessa forma, mais que maturidade linguística, analisar-se-á a ingenuidade linguística a serviço do genuíno em Luandino Vieira, um autor que, ao reunir os contos de A cidade e a Infância, tinha pouco mais de 20 anos, mas a dura experiência da vida no mundo colonial, sob a escolha de não ser o colonizador, mas de se alinhar ao oprimido.

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José Vieira Mateus da Graça nasceu em Lagoa do Furadouro, perto de Vila Nova de Ourém, Portugal, em 04 de maio de 1935. Com sua família, foi para Angola com três anos, lá vivendo infância, juventude e mocidade e, assim, tornando-se cidadão de Luanda, quer pela atuação política, quer pela adoção do país de seu coração. Hoje com 81 anos, permanece atuante na literatura e organização de sua obra, contribuindo ativamente para compreensão dos anos de libertação de Angola. Sua última publicação foi a organização Papéis da Prisão (Caminho, 2015), compilação dos 17 cadernos de apontamentos que fez no período do cárcere. Luandino Vieira é o nome artístico e literário de José Graça, adotado nas publicações escritas para os jornais Àscascas, A Voz da Quinta e O Gaiato. O pseudônimo foi oficializado pelo autor em 1976. (SILVA apud VIEIRA, 2015a, pp. 1013).

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Sob a força da língua colonial Ao tratar da escrita de Walter Benjamim e Franz Kafka, Hannah Arendt pondera o problema que se impunha sobre a língua em que escrever quando se é parte de um sistema de opressão. A partir das palavras do próprio Kafka, Arendt afirma que a impossibilidade de escrever em alemão” — Kafka considerava seu uso da língua alemã como a “usurpação aberta ou oculta, ou possivelmente automartirizadora de uma propriedade alheia, que não foi adquirida, mas sim roubada, agarrada (relativamente) rápido e que continua a ser posse de outrem, mesmo que não se consiga indicar um único erro linguístico” (ARENDT, 2008, pp. 199, 200)

O impasse que se impõe ao escritor sob a égide colonial em relação à língua é semelhante à questão judaica que aponta Arendt a partir de Kafka: em que língua escrever? A nacional? A oficial? A local? Em A cidade e a infância, a língua portuguesa está a serviço da linguagem oral e despreocupada dos musseques, popular e cotidiana. Luandino, em sua obra posterior – Luuanda – justifica o uso da língua portuguesa que Zito e os demais narradores de A Cidade e a Infância dispõem ao longo das narrativas: Quando resolvi fazer o Luuanda, a primeira versão... é pena não ter, não sei onde é que isso foi... escrevi primeiro “Vavó Xixi”. A primeira versão não estava escrita como hoje a conhecemos, os diálogos sim, estão naquela linguagem com o português popular do musseque. Foi por discussões políticas com Jacinto que cheguei a essa decisão. Sei que em determinada altura pensei: “a nossa independência política tem uma base cultural porque nós temos uma diferença cultural que justifica uma independência política porque se argumentava muito que era a língua de Eça que usávamos”. Então eu discuti-a com o Jacinto e o Jacinto não aceitava. E foi assim que eu peguei na “Vavó Xixi” reformulei, li e escrevi. Depois foi “O Ladrão e o Papagaio” e aí pensei: “É possível”. Foi quando depois o Eugénio Ferreira me levou um livro chamado Sagarana. Li e pensei: “Estou mais que justificado. Se eu souber, posso tentar criar uma linguagem literária que seja homóloga da linguagem popular». Como eu sabia quimbundo percebia mais ou menos... e através do quimbundo fui percebendo como certas coisas dariam resultado e outras não dariam. (VIEIRA, 2015, pp. 1052-1053).

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Ainda que, por ocasião da publicação de A Cidade e a Infância, o jovem Luandino não soubesse com tanta precisão a razão do uso do português do musseque, essa linguagem se apresenta como forma de dar vivacidade às situações que são rememoradas. Segundo Costa Andrade afirma no prefácio à primeira edição, as palavras de Luandino Vieira “são quentes” porque “são horas que viveste, palavras que vêm do mais profundo de ti sem que as tenha ditado o sonho. Oferece-nos o testemunho de uma época não muito distante no tempo, mas grandemente afastada na sucessão das imagens da nossa cidade.” (VIEIRA, 2007, p. 134), compreendendo-se que é a memória que se torna premente na expressão linguística, problema com maior urgência para o autor que o questionamento da língua em si.

Vozes da memória A dedicatória de A Cidade e a Infância tem duas direções: Luanda é personificada pelo autor (Para ti / Luanda) e aqueles com quem Luandino Vieira, então José da Graça, ou mais carinhosamente, o Zito que participará ou narrará várias das estórias (para vocês /Companheiros de infância). Seria apenas uma dedicatória, se já nas primeiras narrativas, o autor não nos remetesse para um tempo distante. – Olá, pá, não pagas nada?! Um encontro de acaso. Um encontro Cruel que me lembrou a meninice descuidada. Ele, eu e os outros. A Grande Floresta e o Clube Kinaxixi refúgio dos bandidos. Os sardões e os pássaros. As fugas da escola. (VIEIRA, 2007, p. 11).

Tal como em uma lembrança distante que vai se formando na mente, o narrador usa períodos simples para iniciar “Um encontro de acaso”. Narrativa em finis res, o narrador não nomeado encontra o chefe do bando dos Bandidos do Kinaxixi. Sempre fui amigo dele. Desde pequeno que era o chefe do bando. As pernas tortas, as feições duras, impusera-se pela força. Da sua pontaria da fisga nasceu o respeito como chefe. Nós gostávamos dele porque tinha imaginação. Inventava as aventuras na água suja que acumulava na floresta. (ibid., p. 11)

Das lembranças da infância, surge a contraposição com o progresso, porque a floresta é substituída por tratores, estradas, trabalho que endurece o ho-

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mem. É na descrição das dores do crescer que Luandino se utiliza de imagens tão caras à imaginação infantil. Tractores6 invejosos a soldo de bando de inimigos desconhecidos invadiram-nos a floresta e derrubaram as árvores. Fugiram os sardões e as pica-flores. As celestes e os plim-plaus. Planos maquiavélicos de engenheiros bem pagos libertaram as chuvas. E nunca mais houve ataques ao Kinaxixi. Fomos crescendo. A vida separou-nos. Cada um com a sua cela nesta imensa prisão. (ibid., p. 12)

O recurso da personificação, da metonímia e da metáfora contribui para construir a espacialidade memorialística do narrador. Ao recriar os espaços da infância que seriam destruídos pelos tratores, justifica-se também a mudança imagética do novo espaço que surge, pois, de imediato, a cidade toma o lugar da infância, prendendo-os na vida adulta, no mundo do trabalho. As imagens de Luandino, que conduzem o leitor por momentos de ludicidade, é interrompida por descrição objetiva. Surge marcando a ruptura da infância, iniciada e findada com a mesma metáfora: A vida fez dele um farrapo. As companhias que a vida lhe trouxe modificaram-no. O seu espírito de aventura compatibilizou-se com a rufiagem. E quando o via nas ruas, ao sol, as pernas cada vez mais arqueadas, a voz rouca, a pronúncia do negro, dirigindo os pretos na colocação de tubos para a conduta da água, ficava a olhar para ele. Já não me conhecia. Era-lhe estranho. E eu quase chorava ao ver ali o meu chefe da Grande Floresta, que não me cumprimentava, farrapo de vida. (ibid., p. 12-13)

A alternância entre a memória e a realidade marca a linguagem dos contos; o lugar da infância é preservado na memória, expresso por flashbacks, enquanto a cidade ergue-se dura, simbolizada em tudo quanto esteja a marca colonial, empreendendo lições amargas. É o que nos conta o narrador onisciente de “O Despertar”. A estória que se inicia com a descrição de um dia comum, como todos os dias: sol, confusão no bairro, negras trabalhando, vozes, apito do comboio pássaros, cheiro de peixe: uma profusão sinestésica que simboli6

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Respeitou-se a grafia, acentuação e pontuação apresentadas na obra.

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za a vida. Esse crescente de imagens é interrompido pela lembrança do personagem não nomeado: Ontem o nascer do dia fora também lindo. E anteontem também. Mas não notara. Só hoje. E hoje porquê? Talvez a liberdade. A solidão. O prazer de se encontrar só de poder contar só com ele. De começar aquele jogo emocionantes da luta do Homem com a Vida. Até ali não vivera. (ibid., p. 20)

Contrariando o senso comum, é a ausência de liberdade – a prisão – que faz com que o narrador compreenda o que é a Vida, levando-o a concluir que até ser liberto não havia vivido. Essa “Vida”, assim universalizada, aparece em outros momentos do conto, ora para tratar das prostitutas, ora para tratar dos homens que com elas se relacionavam, ora para apontar as lições dadas, ou seja, é a Vida que ensina aos homens, as lições tortuosas do viver, levando-o a concluir que “toda a lição da Vida fora bem estudada. Agora sairia de sorriso nos lábios com o sol a brincar nos seus cabelos e procuraria emprego. Um emprego manual. Seguiria com a Vida. Devia vivê-la.” (ibid., p. 24). Nota-se que Luandino exige de seu leitor o domínio de recursos linguísticos imagéticos sofisticados para compreensão de sua prosa poética, como se poder perceber em um exemplo extremo de beleza e leveza para tratar de sexualidade masculina, experimentado em “O nascer do sol”. Nessa narrativa, o menino Zito e seus companheiros descobrem as primeiras modificações de seus corpos e de seus desejos. Para marcar a passagem do tempo, Luandino usa a imagem de pássaros, capim, recreio, futebol, jogos infantis; meias limpas, no início da manhã, contrapostas a meias sujas, no fim da tarde. O ponto em que o crescimento dos meninos é denunciado é marcado pela chegada da menina da bicicleta e sua saia vermelha. Foi nesse tempo que chegou a menina da bicicleta. Trouxe atrás de si o alvoroço para os garotos. Na saia vermelha e na bicicleta. Nos olhos negros. E todos os dias, quando o Sol se escondia por detrás da torre do Liceu e pintava o céu de laranja-claro, ela saía a passear. Direita no selim, os cabelos negros ao vento. (ibid., p. 31).

Para os personagens, a consciência de si e de seus desejos se dão a partir do outro. Na imagem da menina e de sua bicicleta, há o “atrás”, aquilo que ainda não se domina, não se conhece, mas que se desvenda conforme o Sol se esconde. No entanto, se a menina da bicicleta sugere, o estágio seguinte é o das sensações e descobertas propriamente ditas. É somente com a chegada de uma

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família numerosa e sua filha mais velha “– dezoito anos de olhos azuis prenhes de amor” (p. 33), que Zito, agora com penugem no rosto, já não sujando mais as meias no futebol, descobre-se. Traquinices de juventude, põe-se a olhar a vizinha a tomar banho e descobre o que é a mulher e o que ela pode causar: “Mas agora ali havia a água em luz sobre um corpo moreno. Fechou os olhos e o suor caiu da testa em pingos grossos sobre o barrote. Abriu-os novamente e fitou-a maravilhado. A vida luminosa à flor da pela bronzeada.” (ibid., p. 34). O leitor é tomado por um tema proibido e tratado no senso comum, no mais das vezes, de forma pejorativa. Mas Luandino compara a descoberta da sexualidade ao Sol, o mesmo que tantas vezes nasceu ao longo da narrativa para mostrar que todos crescemos. Os assuntos vão ficando sérios. Os problemas também. “A fronteira de asfalto”, numa alusão metafórica, mas direta ao fim da leitura, apresenta o embate entre Marina – a menina branca, que mora no bairro economicamente favorecido – e Ricardo – o filho da lavadeira, que trabalhava para mãe de Nina, e que morava no musseque, termo que designa as moradias populares em Angola. O espaço é apresentado como um conto de fadas: um caminho arborizado, com flores violeta caindo das árvores e formando um tapete para os jovens amigos enamorados. Logo, no entanto, a violência da segregação racial se apresenta no diálogo entre os dois personagens, que Luandino explora trazendo velocidade e tensão narrativa, alimentada pelo mal estar entre os personagens e os sentimentos nutridos pelos jovens, que podem ser depreendidos pelo leitor. Os problemas vão se apresentando ao longo da narração: ambos cresceram; não é mais conveniente que uma moça da família, moradora da cidade de asfalto – e branca! – seja vista com um negro. A contraposição dos mundos não deixa dúvidas da cisão: o quarto dela é rosa, com desenhos do Walt Disney; a casa é protegida pela força policial, é iluminada, tem árvores e flores; Ricardo dividido o quarto com quatro irmãos; a casa dele é de pau a pique, as ruas não são asfaltadas, e há uma mulemba – árvore angolana de grande porte. Nessa narrativa de fim trágico, Luandino Vieira apresenta o problema racial vivido em Angola que, embora não tenha tido um processo explícito de segregação racial como o apartheid sul africano, apresenta em suas relações sociais exemplos contundentes de discriminação. A narrativa que dá título ao livro – “A cidade e a infância”, a vida nos musseques, antes e depois da “urbanização”, que é descrita como a transformação das casas de pau a pique em casas de alvenaria, se ergue com toda força, apresentando a miséria, pobreza, desigualdade e violência, além da convivência de uma camada heterogênea de negros, mulatos e brancos miseráveis dividindo o

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mesmo espaço. Sua estrutura assemelha-se a uma novela, apresentando muitos personagens, muitos acontecimentos concomitantes, sem cronologia definida, apenas divididos em números (de 1 a 5), frutos das memórias do pai de Zizica, o menino que está prestes a morrer. A linguagem de “A cidade e a infância” reproduz o comportamento popular dos musseques: O irmão estava em cima do telhado comendo bagas de mulemba [...] a Talamanca, aquela mulata maluca que fazia brincadeiras da miudagem com pedradas e asneiras, quando eles saíam à frente puxando pelas saias e gritando Talamanca talamancaééééééééééeé E às vezes passava também aquele negro velhinho, o Velho Congo. E os pequenos negros, mulatos e brancos, calções rotos e sujos corriam-no à pedrada, e depois fugiam para casa gritando Velo congo uáricoooooongooo (id., p.48)

O autor, nessas passagens, também dispensa o uso da pontuação que introduziriam os diálogos, dando a sensação de falatório simultâneo a confundir o leitor. Nesse sentido, a linguagem popular dá vida ao lugar, os espaços não estão mais em primeiro plano como nas narrativas anteriores, mas as pessoas. A iminência da morte de Zizica, apelido onomatopaico de um menino muito levado, parte da vida do musseque, evidencia as lembranças. Percebe-se nessa narrativa a semelhança com a obra Nós, os do Makuluso, escrita no campo de concentração do Tarrafal (Cabo Verde), e publicada em 1967, demonstrando a força e a influência que a vida dos musseques tem na obra de Luandino Vieira. Essa transição do geral para a particularização das vidas pode ser percebida nas narrativas subsequentes de A Cidade e a Infância, cujos protagonistas são exemplos de personagens-tipo: “Bebiana”, “Marcelina”, “Faustino” e “Quinzinho”. Em “Bebiana”, a jovem que dá nome ao conto é uma moça mulata, filha de Don’Ana, que deseja casar suas filhas antes de morrer. A velha mãe, cuja vida misteriosa desperta o interesse do narrador-personagem não nomeado, dá bailes aos sábados, cônscia de que os brancos gostam de suas filhas por serem mulatas e que, por isso, serão desrespeitadas. Nas palavras da mulher, “o menino é branco, gosta de minhas filhas porque são mulatas. Eu sei... mulato é mulato. A gente pode desrespeitar mesmo.” (ibid., p. 62). Na expressão “mulato é mulato” está pressuposto o entendimento da cisão de um mundo que não mantém segregação explícita, mas que determina lugares e papéis sociais

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de acordo com a cor da pele e a origem de suas pessoas. Don’Ana vai além em sua sabedoria das necessidades do lugar em que vive e aos quais estão submetidas suas filhas que – ...estudaram até poder. Agora trabalha, têm seu emprego e eu quero que elas casem antes de eu morrer também. Com brancos. Elas têm educação, são bonitas. Precisam adiantar vida. Eu gosto de falar mesmo naquilo que eu penso. Precisam adiantar vida. Um branco ganha mais que um mulato ou negro. Os filhos dele já são cabritos. Cabrito é mesmo branco... agora vai e pede a Bebiana para casar contigo. Vai fazer a vontade da velha Don’Ana que te gosta como filho. (ibid., p. 64).

Luandino nos mostra que o embranquecimento, tal como no Brasil, também foi uma “estratégia” ou desejo, implantado pela estrutura do pensamento colonial, almejado como forma de ascensão e respeito social. Tal fato se repete no conto “Marcelina”, jovem moradora de um musseque, filha de um branco, prostituída, mãe de uma menina concebida também com um homem branco. O mote racial é desencadeador das aflições do narrador-personagem. É o narrador-personagem que descreve o modo de diversão nos musseques: trabalhar a semana toda, gastar a paga no sábado e no domingo, dançar com moças que se vendem, beber na taberna, gastar o dinheiro ganhado com suor nas lojas dos brancos com vinho e cigarros, alimentando o ciclo de exploração, “gastando-se numa vida sem perspectivas, sem janelas abertas. Mas era o único divertimento acessível. Era a única maneira de se desforrarem de uma semana inteira de humilhações.”. (ibid., p. 73). Marcelina pega o narrador pela mão. Insinua o corpo bonito. Oferecese à dança, mas, ao ser perguntada sobre a miúda loira, a criança dormindo numa cama, no mesmo quarto em que aquelas mulheres vendiam seus corpos, endurece o olhar, o sorriso, o corpo. A presença de uma filha é denúncia de uma vida que já não é mais de desfrute, mas determinada pela necessidade. O branco, segundo ela, aparecia de vez em quando, pedira-a em casamento, mas a moça não sabia se queria se casar com ele. Diante do quadro determinista – uma vida de trabalho incessante, de humilhações por ser colonizado e o estigma da cor – o narrador-personagem compreende que somente um casamento, com um homem branco, pode tirar Marcelina do ciclo de miséria. Assim, Luandino tece juízo sobre as relações coloniais dos idos de 1950: o casamento inter-racial poderia safar a mulata da condição determinada pela colonização, concedendo-lhe à aura respeitabilidade; no entanto, não impede que a raiva sobre a consciência dessa condição

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tome lugar nos corações de homens que compreendem os lugares determinados pela hierarquia imposta pelo colonizador. A raiva fica evidente no conto “Faustino”, porteiro subserviente, comparado ao cachorro Bóbi, maltratado por crianças que aprendem a maltratar com suas mães. O esforçado porteiro estudava quando podia; gostava de flores, regando-as com cuidado; flertava com Maria, uma operária na fábrica de tabaco, que também gostava de flores; fumava os cigarros que ela trazia; curvava as costas para as senhoras do prédio e se irritava com as humilhações do encarregado. – Que chatice! Já te disse mais de uma vez que o teu trabalho não é estragar as flores. Estás aqui para as regares e não para lhes tocares. As flores são para as senhoras do prédio. Qualquer dia vais para a rua. Pretos há muitos para este emprego. Ora esta, a mexer nas flores! Isso não é para as tuas mãos. Anda lá, anda lá depressa a regar o jardim que ainda tens de lavar as escadas. Faustino não sorriu. Não gostava que o encarregado dissesse aquilo. Flores são flores, não são de uns nem de outros. São de todos. Nascem da terra se os brancos plantam ou se os pretos plantam. E não nascem mais bonitas por serem plantadas por brancos. (ibid., p. 82)

Percebe-se que o trato poético de Luandino à palavra, por mais que amenize os fatos narrados, não poupa o leitor de vivenciar as humilhações sofridas, que são crescentes até culminar no desemprego, pois da ameaça o encarregado passa à ação: da perseguição a Faustino ao assédio a Maria; do desprezo de Maria, punido com desemprego, ao sumiço do sorriso de Faustino, que já não tinha nem Maria, nem dignidade. Daí ao desemprego de Faustino, porque se cansara das humilhações de crianças, mulheres e encarregado. Que fazer do seu gosto por flores? De seu apreço por Maria? De sua mania de estudar? No silêncio de Luandino, a resposta dos vencidos. A resposta pode ser percebida nos dois últimos contos da coletânea. Em “Quinzinho”, a linguagem é um lamento, choro pelo amigo poeta de projetos de máquinas, tragado por uma delas. A história do operário que não pudera estudar para se tornar um projetista, mas que ainda assim desenhava máquinas perfeitas, é uma tragédia do mundo do trabalho – uma prosa poética marxista de Luandino que mostra, no mundo da exploração do trabalho operário, as muitas vidas que são trocadas pela continuidade do trabalho, de fábricas que não podem parar, independente de quem morra por ela. Assim como em “A Fronteira de Asfalto”, o desfecho de “Quinzinho” leva o leitor à incredulidade crua, mas poética, inevitável que é ler até o fim, já sabendo a tragédia que se anuncia.

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Mas agora, Quinzinho, estás morto. Tiveste uma morte terrível. Os braços sensuais da máquina hipnotizaram-te, quiseste ver mais perto como é que ela vivia, como fazia respirar as outras máquinas, como fazia transpirar os homens escravizados por ela. Ea a correia apanhou-te. O braço longo e castanho do polvo apanhou-te. E a cabeça abriu-se com um som oco de encontro ao volante do motor. Tu eras fraco, não pesavas quase nada. A máquina fez de ti um brinquedo. (ibid., p. 90)

Em “Companheiros”, a vida da criminalidade, a rua que ensina o se virar, um diálogo muito conhecido nosso pelos vadios já narrados em Jorge Amado pode ser revisitado. O mundo colonial, o mundo marginal é dos marginais. Não apenas daqueles que estão à margem, mas daqueles que, por estarem à margem, decidem dela se projetar. A homenagem final de Luandino se faz presente para encerrar a apresentação de quadros linguísticos que são suas narrativas. São quatro os companheiros: Negro João, o mulato Armindo, Calumango e Nova Lisboa – ou Luanda. O narrador canta a cidade e o não lugar. O mundo colonial, desterrando angolanos, também criou uma nova forma de não estar, de não ser, com o não morar. Os vadios não têm um posto subalterno na companhia de águas, não tem um subemprego qualquer, não tem. Não são. A rua é sua casa e Luanda sua companheira. Nova Lisboa, companheira. Alegre e triste. Aberta de noite ao luar, ao sol do dia. Percorrendo-a com os pés descalços sobre o asfalto, sobre a areia, por entre os eucaliptos à noitinha lá pros lados do São João. Corriam os dias. Nova Lisboa amante abraçando-os, esmagando-os e repelindo-os. Possuída de manhã à noite e sempre jovem. (ibid. p. 93)

A linguagem que falta, a leitura inexistente, o domínio inexato da língua para contar as diferentes coisas do mundo são expressões da lacuna daquilo que mulato Armindo quer ser e ensinar, porém não consegue, porque pensar consegue muito, mas dizer, contar, palestrar não é assim tão simples. São essas lacunas angustiantes que Luandino apresenta ao leitor. O produto do mundo colonial e daquilo que ele rapta vai além das humilhações, pois privar o ser da leitura, da alfabetização é meio caminho para seu extermínio. A resistência que não é possível pela ausência da linguagem se traduz em violência, arruaça e roubo. A força da lei, a polícia que protege o mundo colonial do seu produto mais rico, mas mais repudiado – o negro – faz-se presente para restabelecer a lei e a ordem. Não é a cidade que expulsa Armindo mulato; é a

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lei e a ordem que separa os amantes – a cidade e o malandro sabido que gostaria de saber “palavras que faziam de todos os portos do mundo, portos de todo o mundo” (idem, p. 98).

Portos de todo o mundo Atualmente, a coletânea “A cidade e a infância”, editada e distribuída desde 2007 no Brasil, é indicada para o público infanto-juvenil. A mesma obra apreendida no prelo, confiscada, destruída tem seu nome relacionado nas listas de livros paradidáticos como um livro de linguagem simples, ótimo exemplar para que as crianças aprendam sobre África, sobretudo para atender a demanda da lei nº 10.639/2003. Não pela sua suposta simplicidade, uma vez que a leitura deixa muito claro que um olhar atento mostra que é a forma sincera e singela que produz a sensação de simplicidade para aquilo que, em outras formas de análise, poderia ser indescritível. A experiência mostra que, realmente, as crianças e pré-adolescentes são sensíveis a tais narrativas, perguntando, perplexos e repetidamente, a causa de tantas diferenças e injustiças. Possivelmente, perguntas semelhantes àquelas que José da Graça fez quando viu seus livros apreendidos, seus sonhos perseguidos e sua liberdade cerceada. Talvez também por esses motivos desconhecidos do grande público leitor, Luandino Vieira soe tão verdadeiro em sua doce linguagem poética, mas dolorida. Mais que citações de teóricos sobre o assunto, essas reflexões serão encerradas com as palavras de uma jovem leitora de 13 anos: E mesmo que fosse muito difícil encontrar um branco que não tivesse preconceito naquela época o Luandino conseguiu trazer isso para nós. E o jeito que o Luandino conseguiu descrever a pureza a inocência de uma criança é tocante, nós realmente conseguimos nos colocar no lugar dos personagens do livro em muitas situações. E sem dúvidas nós aprendemos a respeitar todas as diferenças! (Leitora 1, 13 anos, 8º ano).

É possível que a jovem, com o avançar do tempo, esqueça os nomes dos personagens, os enredos. Oxalá ela – e todos aqueles que se debruçam sobre essa obra, cuja classificação está correta, uma vez que somos todos ignorantes para compreender as diferenças quando o assunto é a colonialidade e racismo, daí a necessidade dessas lições – jamais se esqueça do verbo tocante das palavras dos portos de todo o mundo.

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Referências ABDALA JR, Benjamim. “Obra de Luandino Vieira traz contrastes da Angola colonial”. In: Folha de S. Paulo, Caderno Ilustrada, 22 de dez. 2007. Disponível em http:// www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq2212200716.htm. Acessado em 13/07/2016. ANDRADE, Joelma Gomes de. O lugar de Luandino Vieira na tradição do conto angolano. (tese de doutorado). Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. Disponível em: http://repositorio.ufpe.br/bitstream/handle/123456789/13287/ TESE% 20Joelma%20Gomes%20de%20Andrade.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acessado em 13/07/2016. ARENDT, Hannah. “Walter Benjamim: 1892-1940”. In: Homens em tempos sombrios. São Paulo: Cia. das Letras, 2008, pp. 165-222. LUCAS, Isabel. “José Luandino Vieira: “Isto não é um livro. São 12 anos de vida”.In: Publico, 28 de nov. 2015. https://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/jose-luandino-vieira-isto-nao-e-um-livro-sao-12-anos-de-vida-1715501. Acessado em 28/07/2017. VIEIRA, Luandino. A Cidade e a Infância. São Paulo: Cia. das Letras, 2007. ______. Papéis da Prisão. Lisboa: Editorial Caminho, 2015a. ______. Luuanda. Lisboa: Edições 70/Editorial Caminho, 2015b.

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LINGUAGEM CORPORAL, POSSIBILIDADE DE ENCONTRO NA SUA TOTALIDADE Claudia Nolla1 José Carlos de Freitas Batista2 Sei pouco de mim mesmo; muito menos ainda sei dos outros. Sei, no entanto, que sou corpo. Seio da minha materialidade. Constato que nada realizo sem me mover. Percebo que nenhum conhecimento está ao meu alcance se não for sentido. Reconheço afinal, que para viver, tenho que ser corpo, pelo menos aqui neste planeta em que vivemos [...]. (Freire, 1995, p. 38).

Antes mesmo do homem se comunicar por meio da palavra, ele já o fazia por meio de gestos, já se comunicava por meio de suas manifestações corporais. Registros mostram que o homem paleolítico, para sobreviver aos ataques de seus predadores, imitava-os com movimentos corporais que se assemelhavam aos animais para poder se aproximar e caçar sua presa. Estudos apontam que figuras encontradas em cavernas e grutas, que datam de até 1000 anos registram ancestrais de dançarinos. Dentre as muitas manifestações corporais, a dança era a principal, pois dançava-se para celebrar a caça, festejar, se comunicar com os espíritos. Eram danças rituais típicas daquele povo, ritos de mortes, casamentos, nascimentos. Podemos concordar com esta afirmação nas palavras de Daólio (1995): No corpo estão inscritas todas as regras, todas as normas e todos os valores de uma sociedade específica, por ser ele o meio de contato primário do indivíduo com o ambiente que o cerca. Mesmo antes de a criança andar ou falar, ela já traz no corpo alguns comportamentos sociais, como

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Mestranda do Programa de Gestão e Práticas Educacionais da Universidade Nove de Julho (UNINOVE/PROGEPE), especialista em Educação Física Escolar pela Faculdade de Educação Física de Santo André (FEFISA) e graduada em Educação Física pela Faculdade de Educação Física de Santo André (FEFISA) . Diretor do departamento de Educação da Universidade Nove de Julho (UNINOVE), doutor em Educação Física pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), mestre em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) e especialista em desenvolvimento e motricidade humana pela Universidade Estadual Paulista (UNESP).

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sorrir para determinadas brincadeiras, a forma de dormir, a necessidade de um certo tempo de sono, a postura no colo. (Daólio 1995, p. 39)

A linguagem corporal nasce, ao mesmo tempo em que nasce o ser. Não há vida sem um corpo, o corpo é matéria, palpável e expressiva em todas as suas possibilidades. O que queremos dizer é que todos os acontecimentos importantes da sociedade são celebrados por meio de intensa participação corporal, ou seja, ”ao se pensar o corpo, pode-se incorrer no erro de encará-lo como puramente biológico, um patrimônio universal sobre o qual a cultura escreveria histórias diferentes. Afinal, homens de nacionalidades diferentes apresentam semelhanças físicas. Entretanto, para além das semelhanças ou diferenças físicas, existe um conjunto de significados que cada sociedade escreve nos corpos de seus membros ao longo do tempo, significados estes que definem o que é corpo de maneiras variadas”. (Daólio 1995, pág.37-38). O mesmo autor ainda diz que, ”Tornar-se humano é tornar-se individual, individualidade esta que se concretiza no e por meio do corpo” (pág.36), Para Rodrigues (1986), “[...] o mais natural, o mais concreto, o primeiro e o mais normal patrimônio que o homem possui” (p.47). Sócrates, um dos grandes filósofos gregos, por meio de Platão em Leis VII, considerou a linguagem do corpo, como e por exemplo a dança, uma atividade completa para a formação do cidadão. Os homens gregos não separavam corpo de espírito, e acreditavam que o conhecimento e a sabedoria se davam por meio do seu equilíbrio. Tavares (2003), faz importantes considerações, relevantes para nossa pesquisa, sobre corpo e afirma: O corpo existe como uma entidade física; O corpo está sempre presente; O corpo delimita um espaço e um tempo (de forma que todo estímulo é único na experiência do corpo); O corpo é uma totalidade; Nascemos com um corpo e desenvolvemos nossa identidade corporal; A perspectiva psicossocial do corpo é profunda e concreta. As identificações vão muito além do plano de ideias, mas abarca o plano de apropriação do corpo do outro (inclusive na questão do gênero; É corporalmente que vivenciamos nossos impulsos e fantasias; a percepção do corpo e do mundo se modifica de acordo com os relacionamentos recíprocos entre o corpo e o mundo; Nosso corpo é um objeto todo especial para nós mesmos. Ele está sempre mudando, está sempre presente. É o ponto de partida para o desenvolvimento da identidade da pessoa e constitui o suporte do senso da subjetividade do homem. (p.35-36).

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Se trouxermos esse corpo para o contexto atual, podemos observar um corpo preso, estático e doente, na maioria das vezes por falta de movimento, algo inato ao ser humano. A criança presa a uma carteira em sua sala de aula, está fadada ao desinteresse e ao estresse, não conseguindo estabelecer uma relação entre o mundo que a cerca e o aprendizado. Como citado por João Batista Freire, em seu livro, Educação de Corpo Inteiro: Entre os sinais gráficos de uma língua escrita e o mundo concreto, existe um mediador, às vezes esquecido, que é a ação corporal. Uma criança bloqueada no seu espaço de ação, graças, muitas vezes, à ansiedade de pais e professores por alfabetizá-la, acaba aprendendo a escrita e a leitura que lhe impõem, mas com sérias dificuldades em estabelecer, entre essa aprendizagem e o mundo, um elo de ligação. (p. 20):

Talvez por isso tantos bloqueios corporais sejam criados, ou como, Reich (1998) chamaria de um corpo encouraçado: “[...] é a consequência do medo de punição, a custa da energia do ide e contém as proibições e normas dos pais e professores [...]. Se, por um lado, esse encouraçamento tem pelo menos um sucesso temporário ao evitar estímulos pulsionais internos, por outro, constitui forte bloqueio não só contra estímulos externos, mas também contra influencias educacionais posteriores”. (Reich 1998, p.153;154) As vivências corporais têm o sentido de existência, de ser vida, de experiência de vida, de envolver o ser humano nas relações com sua cultura, seu ambiente e seu cotidiano. É a participação que só tem sentido se vivido pela própria pessoa. É vivência espontânea e de interação com um mundo de diversidade e pluralidade. Significa a ação de vivenciar o próprio corpo no sentido de usufruir de suas possibilidades e identificar suas dificuldades. Significa conhecer e desenvolver habilidades e capacidades motoras além do desenvolvimento dos aspectos sócio-afetivos e cognitivos. Como posso dizer que não gosto de algo se nunca provei, experimentei. Assim é com o nosso corpo, é preciso vivenciá-lo, experimentá-lo, deixá-lo fluir. A vida é uma viagem sem volta e não há outra possibilidade que não se adaptar ao mundo. O corpo é o meio que nos conduz por essa viagem, é por meio dele que vivenciamos as várias possibilidades de sensações e percepções. Um corpo que se percebe na sua totalidade está mais preparado para aprender novas habilidades e ampliar seus conhecimentos. A linguagem corporal não é apenas a linguagem do e com o corpo, vai além, é o corpo na sua totalidade, na sua integralidade. Até o momento do surgimento da linguagem todos os esquemas motores são desenvolvidos, esses esquemas se estruturam precocemente porque envolvem funções biológi-

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cas, menos complexas do que as utilizadas no desenvolvimento da linguagem e do pensamento. As condutas motoras são o único recurso que a criança possui para se adaptar ao mundo, e às suas transformações. A inteligência, ao contrário do que se pensa, não é um fator apenas racional, antes de surgirem as representações mentais, a inteligência corporal já se manifesta em um nível elevado, que se manterá mesmo após a estruturação do pensamento. Ao se apropriar da linguagem oral, as ações motoras são substituídas. Por meio da fala, a pessoa deixa de realizar ações físicas, que passam a ser simbolizadas por palavras. Para se alcançar um nível cada vez mais elevado de pensamento, e até de atos motores, a linguagem é fundamental. Não podendo usar a fala, o recurso usado para agir e se comunicar com o mundo passa a ser as sensações, as experimentações e as ações corporais. Se observarmos, ao pensar demais, o indivíduo se cansa não só teoricamente, mas corporalmente. O que fazemos com o corpo e com a mente são coisas semelhantes, afinal, pensar também seria uma atividade corporal. Encontramos em Freire (2003) uma afirmação a respeito da importância dessas vivências ou movimento humano: A motricidade é a forma de realização da vida humana. Uma vez que somos seres vivos locomotores, sem dúvida alguma estamos fortemente presos à ação dinâmica, às possibilidades de expressão corporal. Se por meio do corpo marcamos nossa presença no mundo, pela motricidade nos realizamos como seres vivos. Após bilhões de anos de evolução, adaptamo-nos ao mundo como corpos que se movem, dentre outras, para se reproduzir, se abrigar e se alimentar. A imobilidade corporal degrada nossas condições naturais, portanto mover-se é fator de saúde (p. 149)

O que nos diferencia dos outros animais, é a capacidade de dar sentido e significado ao movimento, e consequentemente ao pensamento, visto que já falado anteriormente, somos uma unidade: corpo-mente-espírito. Nas palavras de Daólio (1986): Fica evidente, portanto, que o conjunto de posturas e movimentos corporais representa valores e princípios culturais. Consequentemente, atuar no corpo implica atuar sobre a sociedade na qual esse corpo está inserido. Todas as práticas institucionais que envolvem o corpo humano – e a Educação Física faz parte delas –, sejam elas educativas, recreativas,

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reabilitadoras ou expressivas, devem ser pensadas nesse contexto, a fim de que não se conceba sua realização de forma reducionista, mas se considere o homem como sujeito da vida social. (p..42)

As diferenças culturais expressas por meio do corpo, ficam evidentes ao observarmos as manifestações culturais de diferentes povos. Ao assistirmos a um jogo de futebol ou um festival de danças típicas, percebemos claramente a sua origem, seus costumes e crenças, pois está marcado nas expressões corporais, toda a riqueza daquela sociedade. Quando uma geração passa à outra geração a ciência de seus gestos e de seus atos manuais, há tanta autoridade e tradição social quanto quando a transmissão se faz pela linguagem. (Mauss 1979, p. 199) É interessante perceber que o estudo do corpo e de suas ações, nos trazem o movimento humano como expressão simbólica que é passada de geração para geração por meio dos símbolos. A linguagem verbal e escrita, são apenas algumas dentre as várias tradições transmitidas ao longo da história. A tradição oral, muitas vezes é mais conhecida e valorizada, porém, igualmente como toda linguagem corporal pode ser transmitida pelo recurso da palavra, toda palavra pode ser descrita por meio de ações corporais. Quem transmite um conhecimento por meio do movimento, acredita e pratica aquele gesto, e quem recebe aquela transmissão aceita, aprende e passa a imitar. Todas essas expressões corporais e culturais possuem estilos diferentes, de acordo com a origem de onde vem, e são igualmente importantes. Reforçamos esse pensamento na fala de Daólio (1986): [...] não existe corpo melhor ou pior; existem corpos que se expressam diferentemente, de acordo com a história de cada povo em cada região, de acordo com a utilização que cada povo foi fazendo dos seus corpos ao longo da história. (p.45)

Cada corpo expressa a história acumulada de uma sociedade que nela nele marca seus valores, suas leis, suas crenças e seus sentimentos, que estão na base da vida social. (Gonçalves, 1994, p.13-14). Por isso o profissional que tem familiaridade com as próprias sensações, conhecendo o significado delas, tende a ser mais flexível em suas relações e reconhece com mais facilidade o espaço do outro. (Tavares, 2003 p. 121) Podemos dizer que esta flexibilização permite a participação do ser humano, na possibilidade de experimentação ou vivências corporais, a fim de facilitar sua comunicação com o seu corpo na possibilidade de encontro do outro e com o mundo, ou seja, seu conhecimento e sua transformação no aprender fazendo.

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Tavares (2003, p.35) considera que “o corpo é definido segundo os diferentes modos de abordagem. O corpo a que estamos nos referindo muitas vezes não é o mesmo corpo entendido pelo outro”. Assim por meio do corpo conhecemos o mundo e interagimos como ele, aprendemos e modificamos. O corpo vivenciado será um instrumento grato e maleável, a serviço do “eu” e do “outro” no mundo onde o movimento humano está sucessivamente presente. Corpo se constrói, com e a partir da existência de outros, no contato interativo do indivíduo com os grupos sociais dos quais faz parte. Na composição deste enredo, os grupos humanos são produtores de cultura, mediados por uma de suas manifestações representativas, a linguagem – não só como a conhecemos, a escrita ou falada, mas também a corporal. O corpo de cada indivíduo de um grupo cultural revela, assim, não somente sua singularidade pessoal, mas também tudo aquilo que caracteriza esse grupo como uma unidade. Nessa experiência, sentir, pensar e agir não coexistem de forma dissociada, mas se fundem, sendo possível compreendê-los separadamente apenas em um nível puramente conceitual. (Gonçalves,1994,p.73). Assim, da mesma forma que os professores orientam as ações motoras de seus alunos, estes devem dar significado as suas próprias vivências corporais e que estas tenham significado. Uma educação partindo do movimento corporal, só tem sentido com o desenvolvimento do ser humano na sua totalidade, e esta possui inúmeras possibilidades de promover experiências corporais para esse fim, pois sua realização só se dá com a intensa participação do corpo, existindo todo um conjunto de funções corporais que a tornam possível. Gonçalves (1994) nos diz que: A experiência corporal e do movimento inclui percepção, anterior a qualquer formação de conceitos, das possibilidades e dos limites do corpo físico – ‘conhecimento’ esse fundado em experiências anteriores e nas características da situação presente – e ao mesmo tempo, a percepção do mundo circundante, em sua relação com ele. A experiência corporal está no cerne da transformação do ‘próprio corpo’ no decorrer de nossa vida e na realização de cada movimento. Toda transformação traz em si uma modificação na forma de perceber a si próprio e aos objetos. Por isso o profissional que tem familiaridade com as próprias sensações, conhecendo o significado delas, tende a ser mais flexível em suas relações e reconhece com mais facilidade o espaço do outro (p.146)

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Então não custa nada experimentar, vivenciar, sem medo de errar. Sabemos que o “não” já existe e ouvimos essa palavra desde que somos apresentados ao mundo, então porque não arriscamos um “sim”. Sim, eu me movimento, eu existo e sei que sou importante. Porém em nossa vida como professores, nossos corpos são dilacerados, incompreendidos e na maioria das vezes deixam-nos incapacitados. Nesta visão Vianna & Castilho (2002), em referência ao nosso corpo, afirmam que queremos estar em casa, e para estar em casa, com nosso corpo, é preciso que ele seja um lugar gostoso de se morar, limpo, confortável, arejado e bem espaçoso. A rotina de um dia a dia em que se trabalha demais e se diverte de menos contribui para nos afastar de nosso próprio corpo, para empobrecê-lo e reduzi-lo a limites. (p.19). Ainda sobre os mesmos autores: Este corpo que você possui desde que nasceu nem sempre foi assim, do jeito que é hoje. Além de ter obviamente crescido, se desenvolvido e até envelhecido, ele também é resultado do uso que você faz dele. Se cuidar com carinho, com atenção, e principalmente estiver atento para os signos que ele emite, você terá provavelmente como resultado um corpo mais harmonioso, tanto nas formas e nas proporções, quanto na eficácia com que ele responde a você (p.18).

O que buscamos a todo instante é um bem-estar geral e uma alta qualidade de vida, isso se dá no momento em que nos descobrimos como seres inteiros (corpo-mente-espírito), e trabalhamos a favor desse bem maior que é a nossa vida, saudável, feliz, completa. O “corpo próprio” transforma-se no decorrer de nossa vida, por meio de nossas experiências. A partir do “corpo próprio” e do contato com o mundo em uma determinada situação, estruturamos e reestruturamos nossa percepção e nossa interpretação do mundo e agimos neste mundo ao mesmo tempo que transformamos a nós próprios. Enfatizamos assim a necessidade de uma prática corporal efetiva de todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem, professores e alunos e a importância da linguagem corporal com a possibilidade de encontro com o nosso corpo e com o do outro, corpos que não podem ser pensados ou analisados independentemente no sentir, no pensar, no agir e que vive socialmente. Podemos dizer também que o conhecimento corporal não tem chegado aos professores e aos alunos de forma concreta. Para que se viabilize uma formação mais significativa, mais construtiva, se faz necessário compreender o

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sujeito como ser em constante construção/transformação; torna-se assim urgente as reflexões sobre seu corpo, nos aspectos filosóficos, socioculturais, fisiológicos e afetivos, para que desta forma possam assumir uma nova postura frente a sua prática profissional em sintonia com o “eu” e o “outro” . Isto permite a construção e reconstrução de um conhecimento antes ignorado. Assim, apresentamos a seguir algumas sugestões, e não imposições, receitas ou um único caminho, de atividades com o objetivo de “despertar” uma ação-reflexão sobre o corpo e contribuir para uma ampliação da visão sobre ele na perspectiva de uma maior percepção de si e do outro.

Sugestão 1 Descobrindo o corpo

Ao sinal do professor movimentar livremente o corpo ou partes dele, com ou sem deslocamento. • vivência: cabeça, pés, mãos,braços, antebraços, pernas, coxas, quadril, tronco. • variação: velocidade lenta, moderada e acelerada (com ou sem utilização de música)

Sugestão 2 Espelho

Ao sinal do professor os alunos deverão formar duplas, frente a frente, um fará o movimento e o outro irá imitar, ao sinal os papéis serão invertidos, a um novo sinal as duplas serão trocadas. E assim sucessivamente.

Sugestão 3 Fantoche

Os alunos formarão duplas, um será o fantoche e o outro fará movimentos, com um cordão imaginário, mudando a posição do corpo do colega, criando assim várias formas corporais. Em seguida, trocar de papéis e posteriormente de duplas.

Sugestão 4 De olhos fechados

Os alunos devem se deitar e fechar os olhos, ao comando do professor fazer as movimentações solicitadas (mover partes do corpo, encolher, alongar, virar, etc.) procurando perceber suas possibilidades.

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Sugestão 5 Confiança

Os alunos devem estar em duplas, um deles estará vendado, e o outro será o condutor. Com as mãos sobrepostas, o condutor irá realizar movimentações e deslocamentos com o colega vendado, o condutor não deverá falar. Podemos dizer por fim, ou melhor, na certeza de sempre um novo começo, que, transformar a prática pedagógica em uma atividade consciente na compreensão do corpo que atua com outros corpos, é possível. Assim, a peça fundamental em todo processo chama-se “ser humano”, e acreditamos que é possível encurtar o caminho do escrito, do falado e do feito, do previsto e do real.

Referências DAÓLIO, J. Da cultura do corpo. Campinas, São Paulo: Papirus,1995. FREIRE, J. B. Antes de falar de educação motora. In: DE MARCO, A. Pensando a educação motora. São Paulo: Papirus,1995. FREIRE, J. B. Educação de corpo inteiro. São Paulo: Scipione,1997. FREIRE, J..B. Educação como prática corporal. São Paulo: Scipione, 2003. GONÇALVES, M.A.S. Sentir, pensar, agir. Campinas, SP: Papirus,1994. MAUSSS, M. “Marcel Mauss: antropologia” (coletânea organizada por Roberto Cardoso de Oliveira). São Paulo, Ática,1979. REICH, W. Análise do caráter. São Paulo: Martin Fontes,1998. RODRIGUES, J. C. Tabu do corpo. 4ª edição, Rio de Janeiro, Dois Pontos,1986. SOARES, C.L. Imagens da educação no corpo: estudo a partir da ginástica francesa no séc. XIX. Campinas: Autores associados, 1998. TAVARES, M.C.G.F. Imagem Corporal. Barueri, São Paulo: Manole,2003. VIANNA, A, CASTILHO. Percebendo o corpo. In: GARCIA, R .L. O corpo que fala dentro e fora da escola. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

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O MONTE CASTELO QUE HABITA A LINGUAGEM POÉTICA DE RENATO RUSSO Daniela Oliveira Albertin1 Sandra Delmonte Gallego Honda2

Ainda que eu falasse a língua dos homens... A linguagem poética é uma forma de expressão artística sem vínculo direto com a objetividade ou com a realidade. Ela recorre, muitas vezes, ao próprio olhar particularizado sobre o mundo de quem a escreve. Uma vez pronunciada, a palavra volta-se não apenas para o seu enunciador, mas também ecoa sobre àqueles que a compartilham. Por isso, quando o poeta emana seus sentimentos mais profundos, como a saudade, o amor, a ira, a rebeldia, entre outros, a palavra torna-se o testemunho de uma realidade, subjetiva ou não. Nem sempre as ideias postas sobre o papel definem a condição de crença ou de existência do poeta, mas, fatalmente, elas sempre são o depoimento de sua verdade ao “olhar para as coisas do mundo”. Talvez por isso Fernando Pessoa dissesse que “o poeta é um bom fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”.3 Em um estado de profunda “embriaguez lírica”, o poeta assume, frente à linguagem que adota, um estilo próprio e figurativamente marcado por conotações que, muitas vezes, transcendem um entendimento objetivo. É preciso, então, buscar o estado em que se encontra o eu-poético para decifrar as possíveis interpretações de um poema, já que sua intenção é transmitir ao leitor esse “estado de espírito”, modificando, muitas vezes, a forma comum de empregar as palavras, de acordo com o que deseja transmitir. Os poetas, por vezes, rotulados de visionários e sensíveis, têm suas criações consideradas devaneios, inconclusas e que pairam sobre o estado da lou1 2 3

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Pós-Graduada em Língua Portuguesa e Literaturas pela Universidade de Campinas e Doutora em Educação pela Universidade Nove de Julho. E-mail: danielaoalbertin@gmail. com.br Pós-Graduada em Literatura e Estudos Linguísticos e Mestre em Educação pela Universidade Nove de Julho. E-mail: [email protected] “Autopsicografia” in Fernando Pessoa – Obra Poética”, Cia. José Aguilar Editora – Rio de Janeiro, 1972, pág. 164.

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cura. Assim, o poeta encontra caminhos para ironizar algumas estruturas já definidas por ele. Por vezes, essas subversões fazem parte apenas do imaginário do poeta, um ser tão sensível a ponto de tornar-se verdadeiro frente às ideias que mergulha, em um oceano profundo e sem fim. Por si só, o poema representa um estado de alma. Usa-se cotidianamente a nomenclatura poeta, mas, normalmente, a referência aplica-se a toda pessoa que tem uma habilidade ou dom natural para escrever bem. Atualmente, pode-se dizer que a preocupação quanto aos detalhes técnicos para construir um poema estão menos exigentes e mais flexíveis, dada a própria mobilidade dos gêneros à disposição na sociedade. A grande maioria do público apreciador das “artes escritas” prefere observar a alma traduzida no papel, transcrita com toda sua verdade e profundidade. Neste sentido, Renato Russo consegue transformar todo o seu sentimento em palavras e versos com floreiros de um poema que “sangra” os olhos do leitor, que, ao apreciar e interpretar todo esse universo particularizado, também pode transportar-se para ele. É o que Octávio Paz (1982) denomina de “estado poético”, pois, segundo ele: “O poema é uma possibilidade aberta a todos os homens, qualquer que seja seu temperamento, seu ânimo ou sua disposição. No entanto, o poema não é senão isto: possibilidade, algo que só se anima ao contacto de um leitor ou de um ouvinte (PAZ, 1982, p.30).

A arte resgata e transforma o status quo a que se reporta, fruto de uma história socialmente construída e individualmente sentida. Para Benjamin (1994, p. 115) o estado da arte revela a condição da própria experiência humana, seja ela culturalmente “rica” ou “pobre”: “qual o valor de todo o nosso patrimônio cultural, se a experiência não mais o vincula a nós?”. Com isso, a experiência particular vincula-se ao universo da experiência coletiva, em uma simbiose poeta-leitor. O autor pode criar, descrever coisas belas, ser considerado um poeta, mas só terá êxito se o leitor reviver o poema em essência, atingindo assim seu “estado poético”, de lirismo, imagens, tons, gostos e cores: “Um poema é criação, poesia que se ergue. Só no poema a poesia se recolhe e se revela plenamente” (PAZ, 1982, p. 17). A partir do entendimento amplo da linguagem como forma de expressão e de “lugar de encontro entre a poesia e o homem” (Paz, 1982, p. 17), este trabalho buscou interpretar a música Monte Castelo, do cantor e compositor Renato Russo, procurando explicar o espaço discursivo da canção enquanto gênero lírico e o conceito de intertextualidade presente na canção, à luz das teorias

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da análise do discurso. Especialmente em Monte Castelo, a lírica e a intertextualidade poética são marcas registradas do compositor, que, ao deixar traços significativos em uma legião de fãs entre as décadas de 1980 e 1990, também despertou sentidos para além do seu tempo. Para tanto, este trabalho foi estruturado, primeiramente, situando o leitor para um breve conceito de linguagem poética, gêneros do discurso e intertextualidade para que assim, facilite a interpretação feita na canção Monte Castelo, interpretação essa que, embora tenha sido produzida a quatro mãos, exibe traços de subjetividade das autoras e, portanto, os comentários aqui contidos serão mediantes as interpretações, pois não há “comentário sem interpretação e não há interpretação sem comentário” (CANDIDO, 1996, p.16). Feito isso, faremos um breve relato da vida de Renato Russo, não em um sentido biográfico, mas como um panorama para que possamos, com satisfação, colocar o leitor em contato com aquele que, podemos chamar de: criador do Monte Castelo.

E falasse a língua dos anjos... O legado de Renato Russo é bastante amplo: além de músico de renome nacional, também foi considerado um grande poeta de seu tempo. Não cabe, neste trabalho, questionar acepções sobre a palavra “poeta”, mas entendê-la a partir de uma significação ampla: poeta como aquele que “toca” os sentimentos humanos através de sua arte, oral ou escrita. Embora nunca tivesse se considerado um poeta, mas letrista, Renato Russo tinha em suas músicas a forma exata de expurgar seus sentimentos mais íntimos. Era de sua natureza relatar seus amores (e desamores) em suas letras e, neste sentido, Renato se entregava às canções com o mais puro lirismo. Influenciado por autores como William Shakespeare, Fernando Pessoa e Luís de Camões, ele deixou marcas em uma juventude ávida por novidades. A lírica e a intertextualidade poética são marcas registradas do compositor. Com expressões em tom de rebeldia e, ao mesmo tempo, lirismo, sensibilidade e melancolia, sua legião de fãs, desde a década de 1980 até os dias atuais, cresceu ao som de suas músicas, que despertaram sentidos para além do seu tempo. Em seus versos, Renato usava como referências as situações mais corriqueiras, estruturando suas estrofes em forma de poema. Sempre buscava uma citação ou reflexão que se encaixasse ao cotidiano. Isso não funcionava como uma espécie de autoajuda, mas sim a expressão da subjetividade de sua criação, talvez a “catarse” que uma canção-poema atinge, quando dirigida a outrem. Para o fã que se reporta ao seu artista preferido, é sempre uma alegria muito grande relembrar suas memórias. Não obstante, para além de um olhar

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apaixonado, este trabalho, por vezes, apresentará características de quem, também, faz parte dessa legião ideologicamente marcada e que, de certo modo, sente que há tempos o encanto está ausente e há ferrugem no sorriso. Talvez, fruto esse de uma consciência coletiva de que o que foi vivido em épocas passadas servia, por vezes, como “acalanto” de um tempo remoto, onde o jovem podia, de fato, identificar-se com uma canção que o representasse em melodia, som e ideologia.

Sem amor eu nada seria... A definição de gêneros do discurso é um tema recorrente nas áreas das ciências humanas. Muitos autores, de variadas formas, buscam apropriar-se da forma mais adequada para classificação de gênero enquanto prática social presente e importante na sociedade. A vasta bibliografia disponível para consulta sobre o tema deve-se, principalmente, aos estudos de Mikail Bakthin sobre os gêneros discursivos, para quem eles representam “tipos relativamente estáveis de enunciados, caracterizados pelo conteúdo temático, estilo e construção composicional dos quais se utilizam” (Bakthin, 1997, p. 80). Segundo Albertin e Baptista (2016, p. 91), os gêneros são práticas “marcadas por aspectos sociais, históricos e temporais, refletindo determinadas finalidades e condições específicas de cada instituição à medida que vão se tornando mais usuais ou complexas”. Assim, os gêneros se concretizam em graus que variam entre a estabilidade e a instabilidade, como reflexo do estilo de quem os manipula. Contraditoriamente, os gêneros são os mesmos e são outros: a igualdade se efetiva na repetição e retomada de estruturas anteriores, ou vozes polifônicas, e, ao mesmo tempo, são outros porquês, em sua retomada, são sempre diferentes em cada estilo que acompanham. Sabe-se que todo discurso se constrói em função de outros discursos, delineando-se em um tempo e espaços que dependem de certas condições para sua produção e reprodução. A partir dos estudos de Bakthin (2016), os gêneros do discurso concretizam-se como práticas sócio-comunicativas historicamente construídas, influenciadas por fenômenos sociais de todas as ordens e dependentes das situações comunicativas com as quais se vinculam. Neste campo de embates e discussões, a canção se insere como mais um gênero discursivo à disposição na sociedade. Por meio dela é possível perceber as ideias de seu enunciador. Do ponto de vista discursivo, a música é um gênero híbrido, porque comporta uma parte melódica (oral) e discursiva (letra). Para Albertin e Baptista (2016, p. 94), “as canções são percepções humanas que acalentam os corações, despertam emoções, sentimentos e, por meio do texto, revelam crenças, ideologias, costumes e hábitos de vida”. A música,

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portanto, é um gênero que se efetiva como uma parte importante para a compreensão das concepções individuais do eu-lírico que o representa, pois está carregado de sentidos e significados que só podem ser entendidos dentro de seu universo discursivo.

É um não querer mais que bem querer... A intertextualidade não é um fenômeno novo, contudo, requer um olhar cuidadoso em sua abordagem. Estruturalmente, “inter” é um sufixo originado da língua latina e que faz referência à noção de “relação”. A palavra “textual” remete-se ao nível discursivo de um texto. Assim, a intertextualidade é o diálogo que se estabelece entre um texto e outro, implícita ou explicitamente, realizada através de marcas discursivas como paródias, paráfrases, etc. Essas referências são marcadas por textos-base ou textos-fonte, usadas pelo autor para escrever seu texto. Esses “textos-fonte” são fundamentais para o entendimento de uma marca intertextual, pois são eles quem fornecem as “pistas linguísticas” para a identificação do texto. Em maior ou menor grau, todo texto é um intertexto de outros discursos, e isso ocorre em virtude de relações dialógicas firmadas entre os usuários da língua. Assim, a intertextualidade ganha como “marca” direta a referência que estabelece com outro texto, tornando essa característica sua principal fonte de identificação.

É solitário andar por entre a gente... Renato Manfredini Junior, inspirado no matemático Bertrand Russel (1872-1970), no filósofo Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e no pintor francês Henri Rousseau (1844-1910), criou seu próprio nome artístico: Renato Russo. Para Dapieve (2000, p. 25) esse codinome “seria mais que um sobrenome artístico. Se aproximaria de um personagem, de um heterônimo”. Nascido no Rio de Janeiro aos 27 de março de 1960, ele foi um cantor e compositor muito conhecido no cenário do rock brasileiro. Vocalista e fundador da banda Legião Urbana, antes de ingressar na carreira musical era um jovem estudante como outro qualquer. Filho de um economista, Renato Manfredini, e de uma professora de inglês, Maria do Carmo Manfredini, até os seis anos de idade viveu no Rio de Janeiro, mais precisamente na Ilha do Governador. Foi lá que Renato teve sua grande influência musical, por intermédio do pai, que escutava seus LPs antes de ir para o trabalho. Nesse contexto, a música já nascia para o menino Renato como grande fonte inspiradora: com o auxílio de sua mãe ao violão e os gostos musicais da irmã, Carmem Tereza, ele escutava

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clássicos que iam de Elvis Presley a Paul Anka. Tudo isso antes mesmo de sua alfabetização (DAPIEVE, 2000, p. 16). Em 1967 o pai de Renato precisou sair do país para fazer um curso, fato esse que fez com que sua família fixasse residência por dois anos em Nova York. Nesse período, quando ainda estava sendo alfabetizado, Renato foi introduzido à língua e cultura norte-americana. Isso contribuiu para que, ainda criança, ele tivesse contato com autores renomados, como William Shakespeare (Dapieve, 2000, p. 18). Em 1969, retornando ao Brasil, a família de Renato volta a morar no Rio de Janeiro. Em 1973, com os filhos já adolescentes, os pais de Renato Russo decidem morar em Brasília. O ano de 1975 foi bastante conturbado para o jovem Renato, pois ele atravessaria uma fase difícil: foi diagnosticado portador de epifisiólise, uma doença de caráter virótico. Foi operado, sofreu erros médicos, sofreu de dores lancinantes, foi reoperado, ficou um ano e meio sem poder se locomover, entre cama, cadeira de rodas e muletas. Durante esse período, Renato fica ainda mais introspectivo que antes, mas que, de certo modo, teria realizado o sonho de todo adolescente: ser diferente. (DAPIEVE, 2000, p. 25). Durante o tratamento dedicou-se à audição de músicas, iniciando também nessa época sua extensa coleção de discos. Já recuperado, Renato ingressa na faculdade de jornalismo pelo Centro de Ensino Universitário de Brasília, após não ter passado no vestibular da Universidade de Brasília. The Beatles seriam os responsáveis indiretos pela descoberta de suas predileções musicais e sexuais. Aos 18 anos, Renato decidiu contar para sua mãe que era homossexual. Em “Meninos e Meninas”, canção lançada no CD As quatro estações, em 1989, Renato deixou explícito também para o público que gostava de “meninos e meninas” (EMI, 1989, faixa 09). Mesmo com sua homossexualidade assumida, Renato teve um filho, Giuliano Manfredini. Renato enfatizava que “parte do seu trabalho era visando o futuro do filho e para que ele soubesse que ele tentara ser um grande homem, independente da sua orientação sexual.” (BERMAN, 1996, p. 187) Entre os anos de 1978 e 1981, Renato foi professor de inglês. Era bastante procurado pelos alunos, pois usava recursos diferenciados em suas aulas, como músicas. Após um atrito com a direção da escola onde trabalhava, ele foi demitido e arrumou outras colocações profissionais: trabalhou como repórter e apresentador de programa de rádio. Porém, o jovem sonhador queria mais. Entre várias tentativas para lançar-se como músico, finalmente ingressou no meio artístico com o grupo musical chamado Aborto Elétrico. Após desentendimentos entre os integrantes, a banda se desfez e Renato ficou por um período como O Trovador Solitário, cantando e tocando um violão de 12 cordas.

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Renato não desistia de ter sua banda de rock, o que aliás era comum no cenário brasiliense entre adolescentes daquela época. Assim, formou a banda com outros integrantes até compor, mais tarde, parceria definitiva com Marcelo Bonfá na bateria e, posteriormente, com Dado Villa-Lobos na guitarra e Renato Rocha nos baixos, formando a banda Legião Urbana em 1984 e lançando em 1985 o primeiro disco com o nome homônimo. A partir daí, foram lançados, consecutivamente, os dois discos seguintes: “Dois” (1986) e “Que país é esse?” (1987) ambos com características político-sociais que retratava o cenário político brasileiro com canções escritas ainda antes da formação da Legião Urbana, como por exemplo “Faroeste Caboclo”, composta por Renato Russo em 1979, quando ainda era O Trovador Solitário, e que só seria incluída no terceiro álbum por questões de censura e que a conselho do próprio letrista descrevia no disco “ouça no volume máximo”, atitude que não poderia ser tomada em tempos de ditadura. Faroeste Caboclo, aliás, seria um roteiro de um filme idealizado por Renato “contando a saga de João de Santo Cristo, misto de traficante e santo, a própria personificação do Brasil.” (DAPIEVE, 2000, p. 22). Três anos seguidos de trabalhos incansáveis e relutantes frente ao cenário político, houve então um hiato para o lançamento do quarto disco, As quatro estações, em 1989 que, segundo o próprio Renato Russo:

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As Quatro Estações tem essa coisa de primavera, mesmo, dos ciclos, da perda da inocência, quando atinge um certo estágio em que perdeu alguma coisa e, ou vai para o lado deles ou retrabalha e reconquista isso. [...] mas seria basicamente isso: primavera, verão, chega o outono e caem todas as folhas. E no inverno fica a árvore toda daquele jeito. É como se a gente estivesse chegando no inverno. Mas aí vindo da primavera de novo. Quer dizer, você pode escolher, ter uma nova primavera. (MAIA, 1996, p.132)

É neste álbum onde a canção Monte Castelo aparece e, ineditamente, marca um “recomeço”, segundo o próprio cantor. Contrariando a expectativa do público, já acostumado com um Renato mais provocador, surge, então, um disco com quimera de poemas, cartas aos filhos, revelação de homossexualidade. Isso mostrou o outro lado do artista e a veia poética de Renato Russo, que não se limitava apenas à composição de letras marcantes, mas também a revelação de seu estilo eclético, o que vai ao encontro do que quando Paz nos diz que “um poeta não pode adotar somente um estilo, uma maneira, até porque, para ele, um poeta não tem estilo, nesse caso ele deixa de ser um poeta para ser um construtor de artefatos” (1982, P. 20). Assim, Renato pôde expor suas várias facetas musicais: protestante, crítico de seu tempo, poeta. Nas palavras de Dapieve (2000) ele era meticuloso e, certamente, já teria traçado um projeto para si mesmo, pois, quando perguntado se não pensava em escrever, já que era considerado um poeta muito forte, Renato Russo respondeu: Claro, quando eu tiver uns 40, com certeza. Eu sou muito ambicioso. Imagine se eu vou começar a escrever agora. Por enquanto um pequeno texto que as pessoas todas cantem. Ora bolas, nós estamos numa sociedade que tem 60% de analfabetos. Eu prefiro falar numa linguagem simples, mas dizendo coisas que realmente me são caras, preciosas tipo: “Disseste que se tua voz tivesse força igual à imensa dor que sentes, teu grito acordaria não só a tua casa, mas a vizinhança inteira”. Isso poderia ter sido escrito há dois mil anos, como poderia ter sido escrito agora. [...] a gente pegou um dos sonetos de Camões e musicou. Aquele soneto mais famoso, o soneto 11, que é: “O amor é um fogo que arde sem se ver, é ferida que dói e não se sente”. Se alguém procurar Camões por causa dessa música, eu já fiz o meu trabalho” (FINATTI e MENDES, 1996, p. 74).

Essa intertextualidade tão sagazmente feita na composição de Renato Russo em Monte Castelo corrobora com o sentido de linguagem transferida de forma peculiar ao leitor que, segundo ele, faz com as fontes de pesquisa possam ser buscadas como meio de inclusão literária. É a própria poesia musicalizada ou música poetizada. Isso mostra a preocupação de Renato Russo com

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as audições de seu público e suas possíveis interpretações. Para Honda (2016, p.24) isso equivale a um “ato de liberdade em que a ação de escrever transmite uma realidade que não existiria sem seu criador, entretanto ao leitor cabe a liberdade do imaginário na interpretação.” Já em 1990, o ritmo frenético de vida de Renato foi diminuindo consideravelmente. Após constatar que era soropositivo, fato que ele omitiu do grande público até o fim. Seus últimos álbuns de trabalho: “V” (1991), “O descobrimento do Brasil” (1993) e, somente após três anos o álbum “A tempestade ou o Livro dos dias” (1996), este último em uma fase perceptível de extrema melancolia e reclusão, própria dos poetas solitários. Nesse trajeto, Renato lançou, ainda, alguns trabalhos solos, como “The Stonewall Celebration Concert” (1994) e “Equilíbrio Distante” (1995). Em 1997 foi lançado o último álbum da banda, postumamente, intitulado “Uma outra estação”. Tudo o que Renato viveu (e sofreu) se encerrou em uma sexta-feira à véspera de um feriado nacional. Seria como uma sexta-feira na expectativa de um final de semana para uma pausa e poder, então, tomar fôlego para a semana que se aproximava. E foi nessa pausa que Renato Russo decidiu parar de lutar contra aquilo que, para ele, era como se ele “engolisse um cachorro, e esse cachorro o comia por dentro” e, assim, encerrava-se ali a vida do menino que, à sua maneira, era feliz e “aproveitava os dias de chuva” porque eram esses os dias que o inspiravam.(DAPIEVE, 2000, p.17) Em 11 de outubro de 1996, precisamente à 1h15m, Renato Russo falece por complicações decorrentes da Aids. Com ele foram embora vários sonhos, entre eles o sonho de um dia ser escritor, mas talvez tivesse ficado o que, modestamente, ele negava, o de ser poeta, uma vez que seu legado ficou, a sua voz não se calou e ecoa até hoje até entre aqueles que o conheceram após sua morte. E foi com esse ar de “muito obrigado” que Renato partiu. E essa febre que não passa4 E meu sorriso sem graça Não me dê atenção Mas obrigado Por pensar em mim...

Suas cinzas foram lançadas ao jardim do Sítio Burle Marx conforme era seu desejo: um lugar cheio de cultura, natureza e poeticidade. Em 22 de outubro do mesmo ano, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá, integrantes da banda, anunciaram o fim das atividades do grupo. 4

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(A VIA LÁCTEA, Renato Russo, Marcelo Bonfá e Dado Villa-Lobos, A tempestade ou O livro dos dias, EMI, 1996).

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É um não contentar-se de contente... A canção Monte Castelo foi lançada no quarto álbum da banda, intitulado “As Quatro Estações” (1989). Foi escrita no encarte do álbum em forma de estrofes e versos. A seguir, apresentamos a letra da música na forma original, tal como foi escrita na cópia do manuscrito, feito por Renato Russo em sua composição original e a cópia rascunhada antes de ser finalizada. Ainda que eu falasse a língua dos homens E falasse a língua dos anjos Sem amor eu nada seria É só o amor, É só o amor Que conhece o que é verdade. O amor é bom, não quer o mal. Não sente inveja ou se envaidece. O amor é o fogo que arde sem se ver. É ferida que dói e não se sente. É um contentamento descontente. É dor que desatina sem doer. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria. É um não querer mais que bem querer. É solitário andar por entre a gente. É um não contentar-se de contente. É cuidar que se ganha em se perder. É um estar-se preso por vontade. É servir a quem vence, o vencedor; É um ter com quem nos mata a lealdade. Tão contrário a si é o mesmo amor. Estou acordado e todos dormem Todos dormem, todos dormem. Agora vejo em parte. Mas então veremos face a face. É só o amor, é só o amor. Que conhece o que é verdade. Ainda que eu falasse a língua dos homens. E falasse a língua dos anjos, Sem amor eu nada seria. (MONTE CASTELO – RENATO RUSSO – EMI MUSIC BRASIL – ANO 1989)

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Figura 2 – Foto gentilmente cedida por Rogério Santos, Presidente do Fã-Clube “Legião Urbana Infinito”

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Figura 3 – Foto gentilmente cedida por Rogério Santos, Presidente do Fã-Clube “Legião Urbana Infinito”

É cuidar que se ganha em se perder... A análise dos dados partirá do título da canção, lugar esse que, inicialmente, indica o que a música deseja transmitir. Muitas vezes o título não é tão óbvio e isso se dá propositalmente, o que seria totalmente cabível em se tratando de Renato Russo, um compositor que rompeu com padronizações e tinha satisfação de despertar em seu público sentidos diversos em suas composições. Neste sentido, Monte Castelo é provocativa: trata-se de uma “conquista”, ou seja, a tomada em plena Segunda Guerra Mundial, onde os chamados praci-

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nhas brasileiros morreram em combate no solo italiano, segundo a FEB – Força Expedicionária Brasileira. Pois, se Monte Castelo faz remissão à guerra, qual a relação que se pode estabelecer entre a canção que fala de amor e a guerra? Em “As Quatro Estações”, Renato Russo revelou-se mais sereno, entregue ao próprio público mais lírico e poético. O que pode parecer contraditório, para o poeta subversivo é um protesto à guerra: “vamos falar do amor, porque não existe guerra santa”. Essa não foi a primeira vez que Renato Russo criticou o sentido da guerra e todos os seus desdobramentos. No primeiro disco da banda a música “Soldados” explicitava o descontentamento à obrigatoriedade ao alistamento do jovem brasileiro, razão pela qual os versos “a gente não queria lutar... Quem vai saber o que você sentiu? Quem vai saber o que você pensou? Somos soldados pedindo esmola”5 eram impetuosos e questionadores. Outro exemplo é a música “A Canção do Senhor da Guerra”, onde Renato dizia: “Existe alguém esperando por você que vai comprar a sua juventude e convencê-lo a vencer... Existe alguém que está contando com você pra lutar em seu lugar, já que nessa guerra não é ele quem vai morrer”.6 Assim, Monte Castelo vem ao encontro do que Renato Russo almejou quando ainda estava trabalhando na produção deste álbum, ou seja, a preocupação de que o povo brasileiro já havia passado por muitas “guerras”, dadas as difíceis condições político-sociais do Brasil. Se a pior fase já havia passado, o momento seria oportuno para falar de “coisas diferentes” pensou: “o que existe de bom para falar? e perguntado: o amor? ele respondeu: É, mas não exatamente o amor específico, mas um dos seus sentidos. (FENATTI e MENDES, 1996, p.77) O amor construído, frente à guerra, perpassaria por Monte Castelo como uma espécie de refúgio diante da “dor e do sofrimento”. Ao esbarrar no amor como um sentimento maior e mais profundo, a letra apresenta uma intertextualidade tanto com o poema de Camões (Soneto 11), como também com a Primeira Carta aos Coríntios, possibilitando uma nova perspectiva para a linguagem poética. Tanto em um como em outro texto, o amor é colocado em seu grau mais representativo. Com Renato Russo, o amor ganhou um novo significado, criado por ele. Eis que na Carta aos Coríntios, 13:1, o amor configura-se da seguinte maneira: Ainda que eu falasse línguas, as dos homens e dos anjos, se eu não tivesse o amor, seria como sino ruidoso ou como címbalo estridente. Já em Camões:

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(SOLDADOS, Renato Russo e Marcelo Bonfá, disco 1, EMI, 1985). (A CANÇÃO DO SENHOR DA GUERRA, Renato Russo, Música para acampamento, EMI, 1992).

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Mas como pode causar seu favor nos corações humanos amizade, se tão contrário a si é o mesmo amor? Na visão bíblica, o amor vence a tudo, porque tudo desculpa, pode e crê, já que é um sentimento transcendente e eterno diante do tempo e do espaço. É o próprio amor do Criador perante a Criatura. Na visão de Camões, o conceito de amor é tratado ambiguamente, porque esbarra suas acepções entre o mundo sensível e inteligível, carnal e espiritual, finito e infinito, Deus e o mundo. Em uma época marcada pela concepção clássica, onde o amor era visto como uma espécie de cegueira, doença da razão ou enfermidade da alma, suas consequências poderiam ser devastadoras para os homens. É como se o poeta quisesse definir o que não se define, colocando contrastes para caracterizar o mistério divino, recorrendo, inclusive, às passagens bíblicas. Figurativamente, é possível observar que tanto na passagem bíblica, quanto na poesia camoniana e nos versos de Monte Castelo, o amor é entendido como um sentimento supremo, maior em sua essência, forte em sua raiz. Os versos de Camões, transcritos quase que completamente na letra de Renato, serviram para ele como uma espécie de “refúgio ao amor” em seu grau mais elevado, do “monte” ao “castelo”, da “guerra” à “transcendência”. Ao mesmo tempo, o eu-lírico da canção descreve o amor como um sentimento abstrato, recheado por antíteses, que só podem ser entendidas no próprio “sentimento de amar”. Influenciado pela Carta aos Coríntios, Renato Russo escreveu: Estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem. Agora vejo em partes, mas então veremos face a face. Conhecedor do amor, o eu-lírico revela que os outros desconhecem o significado mais amplo do amor, porém, um dia, todos saberão que é só o amor que conhece o que é verdade. Seja pela poesia ou pela visão bíblica, é justamente esse amor universal e essencial aos homens, avesso às guerras, complexo em si mesmo, que acreditamos ser a principal mensagem de Monte Castelo. Bem definidamente, o eu-lírico não relata o amor comum, mas o sentimento superior, porque: É só o amor que conhece o que é verdade, um estado de alma profundo que conhece o que é verdade, ou, ainda, não sente inveja ou se envaidece. Ao mesmo tempo, ele é uma dualidade, porque tão contrário a si é o mesmo amor. A natureza paradoxal do amor, reiterada no texto da música por meio de antíteses, corresponde à própria contradição da vida, dos homens que fazem guerra, esperando o amor, ou, ainda, do amor que nasce mesmo diante das guerras. Por si só, portanto, o amor responde à sua própria condição de existência, ou seja, ainda que eu falasse a língua dos homens e dos anjos, sem amor eu nada seria. Ainda que a razão pudesse explicar o amor, paradoxalmente, ele é profícuo e essencial para todos nós. Está aí a arte do poeta, de cruzar essas

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informações com outros textos e tornar leve o jogo de palavras e ideias para explicar uma verdade pronunciada como contraditória.

Estou acordado e todos dormem... Nas considerações finais, primeiramente, é importante recuperar que a intertextualidade criada por Renato Russo se materializou por meio de nuances implícitas e explícitas, características essas importantes que justificam sua criação poética. Nessa perspectiva, Monte Castelo possui um status poético elevado, porque, explicitamente, realizou vários diálogos intertextuais: com o texto bíblico em O amor é um dom supremo, escrito pelo apóstolo Paulo à Igreja de Coríntios; com o soneto camoniano O amor é um fogo que arde sem se ver; e com o próprio contexto-histórico em que se insere seu título, visto que retoma a batalha de Monte Castelo, na Itália, onde, mesmo perdida, a guerra deixou marcas importantes. Implicitamente, o álbum As Quatro Estações, de cunho lírico, segundo o próprio Renato, em consonância com o título da música, Monte Castelo, também pode ser entendido como uma crítica indireta à obrigatoriedade de alistamento militar: independentemente de suas vontades, os jovens brasileiros, quando alcançam a maioridade, devem se alistar no serviço militar, a fim de que possam estar à disposição do exército para um possível embate. Neste caso, o amor venceria a guerra? Paralelamente, Renato Russo também colocou em trechos de Monte Castelo suas próprias palavras, retomando o conflito da guerra. Provavelmente, em reminiscência tanto àqueles que morreram no combate quanto os seus sobreviventes. Há também a presença de uma outra característica no texto: a intencionalidade. O compositor conseguiu realizar o diálogo entre o texto e o soneto, o amor e a guerra, falando não apenas do amor figurativamente, mas, sobretudo, da real intenção de amar: a materialidade do amor nas ações do homem. Apesar de a canção ressaltar a existência do amor como fonte verdadeira para a essência humana, o eu-lírico reconheceu sua própria natureza, conflituosa e contraditória. A sensibilidade com que Renato Russo lidava com os fatos mais corriqueiros era sua forma de “fazer perguntas”, e não “oferecer respostas”, às quais, talvez, nem ele próprio tivesse. Sendo assim, houve a preocupação do artista em realizar um trabalho onde as pessoas pudessem observar algumas de suas nuances poéticas, mas, sobretudo, a qualidade dessas ligações entre o texto e o contexto. Assim, Monte Castelo buscou construir uma ligação não apenas na intertextualidade produzida, mas também na intencionalidade realizada.

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Finalmente, este trabalho foi estruturado a partir de um entendimento de linguagem poética a quem denominamos de “poeta de seu tempo”: Renato Russo. Certamente, há traços de subjetividade que norteiam essa interpretação. Não é tão simples a subversão de um gênero, ou a criação de um jogo de intertextualidade entre os diferentes discursos sociais. Contudo, perpassando seu próprio tempo, Monte Castelo, em seu grau mais poético, resgatou o amor em sua forma mais sublime, seja do mundo objetivo das ideias ou do universo figurado da subjetividade.

Fontes de pesquisa ALBERTIN, Daniela Oliveira; BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Educação: uma proposta possível para o ensino de português. In: BAPTISTA, Ana Maria Haddad; SILVA, Maurício. Educação e Cultura Literária. São Paulo: BT Acadêmica, 2016. ASSAD, Simone. Renato Russo de A a Z: as ideias do líder da Legião Urbana. Campo Grande: Editora Letra Livre, 2000. BAKTHIN, Mikail. Estética da Criação Verbal. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BAPTISTA, Ana Maria Haddad. Educação, ensino & literatura: propostas para reflexão. 2ª Edição. São Paulo: Arte-Livros Editora, 2012. BENJAMIM, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. BERMAN, Deborah. Renato Russo assume total. Manchete, 16 de Julho de 1994. In: Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Editora Letra Livre, 1996. p. 187 BÍBLIA SAGRADA, Edição Pastoral, São Paulo: Editora Paulus, 1990. CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações FFLCH/USP, 1996. DAPIEVE, Arthur. Renato Russo: o trovador solitário. Rio de Janeiro: RelumeDumurá: Prefeitura, 2000. FINATTI, Humberto; MENDES, Mário. O Som e a Fúria. Isto é Senhor, 01 de Novembro de 1989. In: Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Editora Letra Livre, 1996. P.74 HONDA, Sandra Delmonte Gallego. Aluno, um leitor em potencial. Dissertação de mestrado. Universidade Nove de Julho, São Paulo, 2016. MAIA, Sônia. Do Aborto Elétrico ao Globo de Ouro Parte III. Revista Bizz, Junho de 1989. In: Conversações com Renato Russo. Campo Grande: Editora Letra Livre, 1996. P. 132 PAZ, Octávio. O arco e a lira. Tradução de Olga Savary. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

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REVISTA BIZZ. Os novos rumos de Renato Russo. Ano II, Nº3, Edição 116. São Paulo: Editora Azul, 1996. p. 34 a 43. REVISTA MANCHETE. Mãe, eu não sou daqui. Nº 2.324. Rio de Janeiro: Editora Bloch, 1996. p. 12 a 21. REVISTA VEJA. Morre um Rebelde. Edição 1.466, ANO 29, Nº 42. São Paulo: Editora Abril, 1996. p. 108 a 113 VILLA-LOBOS, Dado. Dado Villa-Lobos: Memórias de um Legionário. Rio de Janeiro: Mauad, 2015.

Digitais LEGIÃO URBANA. Legião Urbana. Abril Coleções. São Paulo: Abril, 2011. LEGIÃO URBANA. As Quatro Estações. Abril Coleções. São Paulo: Abril. 2011. LEGIÃO URBANA. Música para Acampamentos – 1. Abril Coleções. São Paulo: Abril. 2011. LEGIÃO URBANA. A tempestade ou O livro dos dias. Abril Coleções. São Paulo: Abril. 2011.

Eletrônicas Museu Histórico do Exército e forte de Copacabana. Disponível em: http://www. fortedecopacabana.com/tomada-de-monte-castelo.html Consulta realizada em 07/08/2016. Site Oficial de Renato Russo. Disponível em: www.renatorusso.com.br Consulta realizada em 05/08/2016.

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A LINGUAGEM DA BIBLIOTECA Denizete Lima de Mesquita1

1. Considerações iniciais A linguagem da e na biblioteca é constituída pela linguagem verbal e não verbal, uma vez que há no ambiente destas, pessoas e objetos que possuem inúmeras representações de linguagens, de acordo com situações e momentos determinados, possibilitando, assim, a transmissão de mensagens aos usuários e colaboradores da biblioteca. Os sistemas de classificação, catalogação, indexação, organização e demais atividades/rotinas técnicas realizadas com e nos itens informacionais disponíveis no acervo, podem ser considerados como uma linguagem sistematicamente organizada, uma vez que há nestes processos, símbolos, números e palavras que expressam um sentido ou uma mensagem, onde os usuários e profissionais que atuam na biblioteca conseguem compreender. A compreensão do termo biblioteca está diretamente ligado ao termo cultura, em sua acepção tradicional. Sendo assim, a biblioteca representa um espaço de seleção, guarda, tratamento e disseminação da produção intelectual de uma sociedade que pretende, desta forma, repassar seus conhecimentos para outras gerações e/ou sociedades. O entendimento de cultura aqui explicitado, baseia-se no conceito de Ribeiro (1970), onde o termo a cultura é definida como: […] herança social de uma comunidade humana, representada pelo acervo coparticipado de modos padronizados de adaptação à natureza para o provimento da subsistência, e normas e instituições reguladoras das relações sociais e de corpos de saber, de valores e de crenças com que seus membros explicam sua experiência, exprimem sua criatividade artística e a motivam para a ação. Assim concebida, a cultura é uma ordem particular de fenômenos que tem de característico sua natureza de réplica conceitual da realidade, transmissível simbolicamente de geração

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Mestranda em Educação. Especialista em Estado, Movimentos Sociais e Cultura. É Bacharel em Biblioteconomia. Desenvolve pesquisas nas áreas de Educação, Ciência da Informação e Biblioteconomia, com ênfase em bibliotecas públicas e escolares, assim como leitura e formação de leitores

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a geração, na forma de uma tradição que provê modos de existência, formas de organização e meios de expressão a uma comunidade.

Ainda segundo a concepção do autor, as culturas são classificadas de acordo com sistemas que representam a essência de cada conteúdo, a saber: sistemas adaptativos, associativos e ideológicos. Os itens que formam o acervo das bibliotecas guardam em sua essência informações que retratam tudo aquilo que pertence ao sistema ideológico, uma vez que este sistema é formado pelo corpo de saberes, crenças, valores, ideias e sentimentos, fruto das experiências adquiridas do esforço humano no desenvolvimento tecnológico e social. Nesse sentido, constituem os conteúdos básicos do sistema ideológico e do acervo das bibliotecas a linguagem, o saber, a mitologia, as religiões, as artes e os corpos de valores éticos e sociais que permeiam a sociedade. Ao longo da história da humanidade, as bibliotecas passaram por inúmeras transformações, sempre buscando acompanhar a evolução da sociedade a qual pertence. Nesse sentido, os itens informacionais que compõem o acervo e os trabalhadores desse espaço, possuem características específicas que representam mensagens acerca da biblioteca. Levando-se em consideração as peculiaridades de cada biblioteca, estas possuem denominações específicas, a saber: biblioteca pública, particular, escolar, universitária, especializada, especial, dentre outras denominações. Assim, cada uma destas bibliotecas buscam atender a um determinado público de acordo com sua finalidade. Teorizar acerca da linguagem das bibliotecas requer uma compreensão mínima acerca do que representa o termo em destaque. Deste modo, compreende-se como um sistema que permite ao homem expressar suas ideias, pensamentos e sentimentos por meio da utilização da escrita, da fala, da imagem, de símbolos e signos que possuem significados e que passam uma mensagem.

2. Biblioteca: espaço de lingagens verbal e não verbal As primeiras bibliotecas da história surgiram na Antiguidade e eram denominadas bibliotecas minerais, pois estas eram formadas por placas de argila, em seguida vieram as bibliotecas vegetais que utilizavam o papiro (suporte confeccionado com plantas oriundas da margem do rio Nilo) como suporte para escrita e posteriormente as bibliotecas animais que utilizavam o pergaminho (pele de carneiros e ovelhas) com suporte para a escrita. De acordo com Martins (2002) as primeiras bibliotecas da história possuíam a finalidade de guarda e registro das informações, não possuindo, portan-

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to o caráter público e acessível das bibliotecas que conhecemos atualmente. A própria arquitetura dos prédios tinha como finalidade inibir o acesso ao acervo e a saída do mesmo do recinto das bibliotecas. Tais informações acerca das bibliotecas desse período, representam o entendimento que os grupos sociais tinha acerca do conhecimento que era produzido nessa época, para eles, quanto maior o acervo que determinada pessoa possuía sob sua custódia, maior seria o seu poder. Motivo pelo qual houve inúmeros fatos que relatam invasão e destruição de diversas bibliotecas como, por exemplo, a biblioteca de Alexandria, que sofreu incêndio provocado a mando de Júlio César, que era inimigo de Pompeu. É possível, a partir de tais fatos, dizer que a biblioteca no período da Antiguidade representava poder àqueles que possuíam sob sua custódia um espaço que guardava inúmeros itens informacionais, independente do suporte ou conteúdo que formavam o acervo. No que concerne a organização das obras, estas eram acondicionadas em armários com divisórias que permitiam que ficassem dispostas lado a lado e com etiquetas e símbolos de identificação para facilitar a localização quando necessário. Diante do exposto, percebe-se que desde o período da Antiguidade as bibliotecas já possuíam elementos da linguagem verbal (escrita) e não verbal. Com o passar dos anos e evolução da humanidade, outros suportes de registro da informação foram criados, possibilitando assim, a uma maior quantidade de pessoas o acesso aos itens informacionais, no entanto, ainda muito restrito a uma parcela elitizada da sociedade. O surgimento e propagação da imprensa possibilitou a expansão do acesso aos itens informacionais como jornais e livros. Mesmo assim, havia uma restrição quanto aos itens que poderiam ser de livre circulação, pois, antes de serem divulgados passavam por um processo de análise de conteúdo por parte do governo e da igreja que muitas vezes censuravam a obra. A análise da presença de tipologias de linguagens, no espaço das bibliotecas, seja na Antiguidade ou em tempos modernos, é bastante pertinente, especialmente no tocante às formas específicas de transmissão de mensagens contidas no acervo para os colaboradores da biblioteca e usuários, seja dos colaboradores para os usuários ou usuários para colaboradores, da organização e disposição dos mobiliários e equipamentos, do layout do espaço físico, dos murais, etiquetas, sinalizações, entre outras. Todos estes itens citados transmitem uma mensagem que é interpretada de acordo com o público alvo e a concepção e conhecimento que estes têm acerca do termo biblioteca. Para Silva e Araújo (2014) as bibliotecas são classificadas segundo determinados critérios, a saber: de acordo com a finalidade (nacionais, pública,

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universitária, especializada, escolar, infantil e especial), segundo a natureza da coleção (gerais e especializadas), segundo o nível de coleção (eruditas e populares), segundo a modalidade de consulta (na sede, circulantes, ambulantes e sem paredes), segundo a clientela (idade, profissão ou atividade e condição), segundo a entidade mantenedora (pública e privada), de acordo com o nível de organização (centralizadas e descentralizadas). Tais especificações fazem-se relevantes para que possamos entender a relação da biblioteca com a linguagem, e, por conseguinte, as mensagens que cada um dos inúmeros tipos de bibliotecas passam para seus usuários. A possibilidade de estabelecer um elo entre biblioteca e cultura, como forma de manifestação de ideias, pensamentos e conhecimento de uma sociedade a partir do espaço físico, dos itens do acervo, das pessoas que trabalham e utilizam os produtos e serviços disponíveis na biblioteca, são formas claras de linguagens que expressão através da escrita, da oralidade, de imagens, símbolos e signos mensagens específicas para uma determinada pessoa, grupo ou classe.

2.1 A linguagem do e no espaço físico das bibliotecas No período antigo as bibliotecas (Nivive, Pergamo, gregas, romanas, Alexandria) passavam a imagem de poder e mistério, uma vez que pouquíssimos tinham uma biblioteca e os que possuíam restringiam o acesso a determinadas pessoas, de acordo com os interesses de seus detentores. Segundo Martins (2002), a biblioteca de Pérgamo, por exemplo, reunia um grande grupo de eruditos e literatos que realizavam estudos nas áreas de linguística e literatura com o intuito de competir com a Biblioteca de Alexandria no que tange a importância da produção cultural e intelectual da época. De acordo com Battles (2003) o acervo das primeiras bibliotecas romanas era proveniente de saques de guerra. Tempos depois, alguns romanos cultos tinham seus acervos particulares formados por cópias de livros realizadas de maneira ortodoxa por escribas ou escravos cultos oriundos da Grécia. Assim, é possível compreender que as primeiras bibliotecas eram consideradas locais de uso restrito e de alto valor intelectual para quem as possuía, tendo em vista que muitas foram saqueadas e até destruídas. A concepção acerca das bibliotecas começou a ter uma nova dimensão, em Roma, com o projeto de Júlio Cesar que previa a construção de uma biblioteca de caráter público. Mesmo com sua morte, deram continuidade ao projeto e em 39 a. C. construíram a primeira biblioteca pública romana. (MARTINS, 2002). Segundo Battles (2003) a biblioteca pública Romana era constituída de dois salões de leitura, um com livros em latim e outro com livros em grego. Além dos livros que compunham o acervo, os espaços eram decorados com obras de poetas e oradores latinos e gregos respectivamente.

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Outra biblioteca que teve uma importantíssima influência para a humanidade foi a biblioteca de Alexandria que reuniu o maior acervo sobre ciência e cultura da Antiguidade. De acordo com Mey (2004) a construção da biblioteca de Alexandria pode ser atribuída à insistência de Demétrio de Falera, (talentoso filósofo) que convenceu Ptolomeu a tornar Alexandria uma rival cultural de Atenas. Assim, começou a ser formado o maior acervo de obras da Antiguidade, obras estas que foram adquiridas por meio de compras, mas também por confisco das obras encontradas em navios e outros lugares. A mudança na concepção acerca da finalidade e importância das bibliotecas possibilitou um novo capítulo na história das bibliotecas, que consequentemente acompanhou a evolução da sociedade que anseia cada vez mais pela produção, disseminação e acesso à informação. Durante muitos anos a mensagem que era repassada acerca do ambiente das bibliotecas era de um lugar mórbido, empoeirado, com cheiro de mofo e, por vezes, de acesso proibido para a maioria das pessoas. Assim, as novas bibliotecas passaram a adaptar-se com critérios estabelecidos por especialistas e estudiosos da área que perceberam a necessidade de mudança quanto ao espaço físico, os itens informacionais e equipamentos disponíveis na biblioteca, visando assim, a realização de um bom atendimento aos usuários, de acordo com a classificação e/ou categorização das bibliotecas. A explanação acerca das tipologias e características das bibliotecas abaixo explicitadas, são baseadas em Silva e Antunes (2014). A Biblioteca Nacional, por exemplo, é responsável pela preservação da memória nacional, onde são depositados pelo menos um exemplar de todas as obras bibliográficas e documentais produzidas pela nação brasileira. Está localizada na cidade do Rio de Janeiro em um grandioso prédio. As bibliotecas públicas objetivavam atender as necessidades de consulta, estudo, pesquisa e lazer de uma comunidade, independente das peculiaridades pertinentes a cada cidadão que a compõe. De acordo com a entidade mantenedora, as bibliotecas públicas podem ser municipais, estaduais ou federais. Já as bibliotecas das universidades possuem como público alvo os discentes e servidores da instituição, que pretendem realizar estudos, consultas e pesquisas, de acordo com os cursos e áreas de conhecimento ofertadas na instituição. Dependendo da organização da coleção, as bibliotecas universitárias ainda podem ser subdivididas em centralizadas e descentralizadas (o acervo é organizado em um único espaço na instituição; o acervo é dividido em setores diferentes de acordo com as áreas do conhecimento, respectivamente). Quando a biblioteca é planejada visando atender a um público especializado em determinado campo do saber, denomina-se biblioteca especializada, e esta pode estar subordinada a uma empresa, entidade científica, de pesquisa, indústria, etc.

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As bibliotecas escolares objetivam fornecer material informacional complementar às atividades dos alunos e servidores/funcionários da escola (pesquisa, leitura, estudo e lazer, recreação). Em alguns casos, a biblioteca da escola também atende à comunidade externa que reside no entorno da mesma. O público infantil também possui uma biblioteca com acervo e ambiente direcionado ao atendimento de suas necessidades de aprendizagem e recreação. Para tanto o ambiente físico e as obras que compõem o acervo requer um planejamento e seleção específicos de acordo com a idade das crianças que irão usufruir desse ambiente. Figura 01 – Biblioteca infantil: decoração

Fonte: ARQHYS, 2016. Figura 02 – Biblioteca infantil: acervo

Fonte: Sorocaba, 2016.

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Já o público com necessidades especiais também pode contar com uma biblioteca especial, planejada, visando atender as suas necessidades específicas, de acordo com a deficiência, a biblioteca poderá ter seu acervo formado por obras em braile, impressão com letra aumentada, recurso sonoro, audiovisual. Verifica-se, portanto, que ao adentrar a uma determinada biblioteca percebe-se que esta possui elementos específicos que as caracterizam e diferenciam umas das outras sem que ao menos seja necessário identificar graficamente em algum lugar qual é a tipologia daquela biblioteca. A linguagem informal presente em cada detalhe de uma biblioteca passa uma mensagem para o público acerca da sua finalidade e o público alvo. As bibliotecas voltadas para o público adulto diferem-se totalmente das que possuem o público infantil como seu usuário principal. Enquanto as bibliotecas voltadas para os adultos são pintadas com cores neutras e sóbrias, as bibliotecas infantis possuem cores e desenhos que chamam a atenção das crianças. Outras diferenças estão no modelo e tamanho dos mobiliários, no layout da biblioteca, do material que são confeccionadas as obras, nos sistemas de identificação, na linguagem oral, verbal, gestual que é direcionada às crianças. Nas bibliotecas universitárias, especializadas, públicas é comum encontrar cabines para estudo individual bem como salas para estudo em grupo. Essa diferença do ambiente passa uma mensagem de concentração, silêncio, aprendizagem individual ou coletiva dependendo da situação, além é claro da exigência de silêncio no ambiente para que outras pessoas possam usufruir do espaço e consigam realizar suas atividades de pesquisa e estudo na biblioteca. Figura 03 -Biblioteca Universitária da UFPI: cabine para estudo

Fonte: UFPI, 2016.

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Figura 04 – Biblioteca Universitária UFPI – acervo

Fonte: UFPI, 2016. A partir da análise das imagens acima, é possível compreender que são bibliotecas destinadas a públicos diferenciados, sem necessariamente fazer uso da leitura da descrição utilizada para identificar as tipologias de biblioteca. Desta forma, pode-se dizer que o tipo de mobiliário, acervo, organização do espaço físico são formas de linguagens que caracterizam, descrevem e comunicam ao público informações relevantes acerca do espaço da biblioteca.

A linguagem do e nos itens do acervo Desde os primeiros suportes utilizados para o registro da escrita (blocos de argila, pergaminho, papiro) até os dias mais recentes (papel, suportes eletrônicos), inúmeras mudanças ocorrem em relação ao registro, guarda, organização, recuperação e disseminação da informação. As obras que formavam os acervos das primeiras bibliotecas eram frágeis e de difícil manuseio, pois eram grandes blocos de argila (acondicionadas em caixotes uma ao lado da outra para que assim fosse possível identificar a sequência do texto registrado) que necessitava do auxílio de mais de uma pessoa para poder manuseá-los. “As placas componentes de uma mesma obra eram reunidas num único bloco, no qual se punha um rótulo identificador do conteúdo. Havia também catálogo registrando os títulos das obras e o número de placas que cada uma era composta”. (BATLES, 2003, p.31). Já o papiro e o pergaminho tiveram uma pequena evolução em relação aos blocos de argila, no que concerne ao espaço para sua guarda e acondicionamento, bem como em relação à forma de acessá-los. De acordo com Battles (2003) o papiro apesar de ser abundante e de fácil manuseio era frágil e de di-

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fícil preservação em virtude de sua matéria prima ser proveniente de caule de planta, que desgastava facilmente com o tempo e com a utilização, pois estes ficavam sobrepostos uns sobre os outros e quando da necessidade de uso de uma determinada obra era necessário remexer nas demais, dificultando assim uma organização mais elaborada. As etiquetas de identificação dos rolos de papiro eram presas aos umbilici (haste utilizada para enrolar as folhas do papiro) e continham os nomes dos autores e o título da obra, facilitando assim sua localização e identificação, evitando, portanto, o desenrolar de todo o material. Inicialmente os pergaminhos em cortados em folhas retangulares as quais eram sobrepostas umas sobre as outras e unidas pelas extremidades para posteriormente serem enroladas, no entanto, perceberam que havia outra maneira de guardar as folhas. Passaram então a dobrá-las algumas vezes, recortando suas bordas, ficando assim em formato parecido com os livros impressos que conhecemos. Ambos os formatos eram guardados com etiquetas presas às suas extremidades para facilitar a identificação da obra e do conteúdo nela inscrito. Segundo Fischer (2006) a invenção da imprensa por Gutenberg associada à criação do papel na China, possibilitou o aumento da produção de obras dos mais variados conteúdos e consequentemente o acesso a uma maior parcela da sociedade, não apenas a um grupo elitizado. A propagação das obras impressas a custos mais acessíveis fez com que várias pessoas pudessem formar seu próprio acervo particular, além do aumento na quantidade de bibliotecas públicas e de número de títulos e exemplares nos acervos. É importante salientar que a qualidade das obras vendidas a preços mais acessíveis para o público em geral, era infinitamente inferior a qualidade das obras que compunham os acervos de famílias tradicionais, dos mosteiros e igrejas que possuíam alto poder aquisitivo para custear tais obras. Diante do exposto, é possível estabelecer uma relação entre a qualidade das obras produzidas para as elites e as destinadas ao público em geral. Esta distinção pode ser percebida também na atualidade quando das inúmeras edições e reedições de títulos que utilizam papéis e tintas de qualidades diferenciadas para atender ao público de poderes aquisitivos diferentes. As primeiras bibliotecas possuíam em seu acervo obras com encadernações luxuosas e papel de alta qualidade, porém, com o passar dos anos e o aumento significativo da quantidade de usuários manuseando (provocando grande desgaste) tais obras, bem como a necessidade de aquisição de mais exemplares do mesmo título, verificou-se que havia o desgaste, e os custos para recuperação e/ou reposição de um novo exemplar tornava-se financeiramente inviável. Como medida para solucionar esta nova demanda, as editoras passaram a editar livros com preços mais acessíveis.

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A linguagem do e nos sistemas de classificação, catalogação e indexação O aumento da quantidade de obras no acervo passou a exigir dos profissionais responsáveis pela seleção, aquisição, organização, localização e disseminação das informações a adoção de medidas para facilitar as atividades cotidianas na biblioteca. Para tal, foram aprimorados e criados sistemas e códigos padronizados que propiciam aos bibliotecários e demais colaboradores da biblioteca realizar suas atividades profissionais de forma mais precisa, visando oferecer aos usuários um atendimento de qualidade. De acordo com Silva e Araújo (2014) para a execução das rotinas da biblioteca aplicam-se as técnicas biblioteconômicas (catalogação, classificação, indexação, confecção e atualização de catálogos, preparação dos itens para empréstimo) no tratamento dos itens do acervo, possibilitando assim uma posterior recuperação das informações. As técnicas biblioteconômicas utilizadas no tratamento do acervo são carregadas de linguagens que possuem significados específicos previamente determinados e podem ser reconhecidas internacionalmente, independente do idioma que esteja a obra. Dentre esses processos, pode-se destacar: a catalogação, que consiste em processo técnico para registro de itens no acervo permitindo a posterior recuperação das informações, dentre os códigos mais utilizados tem-se o Código de Catalogação Anglo Americano – AACR2 e o Formato MARC; a classificação que objetiva organizar os documentos na biblioteca de acordo com a área do conhecimento/assunto que cada obra pertence reunindo-os no mesmo espaço de acordo com o grau de semelhança ou diferença. Os principais sistemas de classificação documentária são a Classificação Decimal de Dewey – CDD e a Classificação Decimal Universal – CDU (ambas dividem o conhecimento humano em 10 classes, as quais são subdivididas em subclasses de acordo com as especializações e especificações de cada área do saber). No tocante as classificações documentárias é pertinente salientar que estas utilizam-se de linguagem formal (números, símbolos, letras) para a organização das obras no acervo e que a interpretação da classificação adotada pode ser compreendida de forma sistemática e universal, podendo um usuário ou funcionário da biblioteca localizar e devolver o exemplar para o local exato de onde foi retirado mesmo havendo inúmeros outros exemplares idênticos do mesmo título. As diferenças entre as classificações está no fato de que CDDU além de utilizar o sistema numérico, possui uma tabela auxiliar formada por sinais (+ / : = “...” A/Z -02 dentre outros) que possuem uma definição pré-estabelecida do

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seu significado, permitindo assim a construção de números compostos ou sínteses, de acordo com o assunto tratado na obra. A CDD por sua vez é formada pelas principais e tabelas auxiliares, porém todas com representações numéricas. Para elaboração do trabalho de classificação, o profissional bibliotecário deve recorrer a outros instrumentos que são auxiliares à tarefa de classificação como, por exemplo, as listas de cabeçalhos de assuntos, listas de descritores, de autoridades, tabela de cutter e outros mais. Todos os elementos utilizados no processo de classificação visam identificar (através de uma etiqueta) o item para que este seja inserido no acervo de acordo com a área do conhecimento ao qual pertence. Além dos sistemas tradicionais, é comum em bibliotecas escolares e infantis a utilização de outros elementos para organização do acervo como, por exemplo, a afixação de etiquetas coloridas na lombada dos livros.

3. Profissionais bibliotecários: estereotipia Etimologicamente a palavra bibliotecário vem do latim bibliothecarius que diz respeito à pessoa que exerce atividades profissionais em biblioteca. (FONSECA, 2007). Esse termo foi utilizado por anos de forma indistinta para se referir aos que atuavam em bibliotecas, porém com o surgimento dos cursos de Biblioteconomia, o termo Bibliotecário passou a designar os profissionais com formação específica na área de Biblioteconomia, porém até hoje é comum encontrar pessoas com as mais variadas formações ou até mesmo sem uma formação específica atuando em bibliotecas, especialmente as públicas e escolares, que consideram-se bibliotecários. Ortega y Gasset em sua obra a Missão do bibliotecário, diz que a missão profissional do bibliotecário é dividida em três momentos da história (renascimento, século XIX e contemporaneidade), de acordo com a importância que era dada aos livros e consequentemente à biblioteca . No decorrer do Renascimento a missão do bibliotecário era procurar livros para formar os acervos das bibliotecas, uma vez que as obras eram difíceis de serem produzidas; no século XIX a quantidade de livros existente já era significativa, portanto a missão do bibliotecário passa ser a de buscar usuários/leitores para a biblioteca e incentivar a prática da leitura; já na contemporaneidade a existência de uma gama inimaginável de produção bibliográfica, cabe ao bibliotecário saber filtrar as informações que sejam relevantes de acordo com a tipologia de biblioteca que ele trabalha e com a clientela de usuários que ele atende. Atualmente, os bibliotecários utilizam-se de recursos computacionais eletrônicos para execução de muitas das atividades técnicas da rotina de trabalho,

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pois caso contrário, não conseguirão atender a demanda de atividades e atribuições que lhes são inerentes. A origem desse fenômeno vem do período das primeiras bibliotecas, onde os detentores dos acervos convidavam intelectuais da época para exercer o cargo de bibliotecário, com as atribuições de organizar as obras no acervo de acordo com os autores, bem como em algumas bibliotecas também lhes era atribuída a função de buscar novos leitores e incentivá-los a ter bom gosto em relação à escolha das obras. Com o passar dos anos, houve um aumento significativo no número de bibliotecas e uma consequente desvalorização em relação a importância do profissional que estaria a frente dos serviços e produtos da biblioteca. Assim, qualquer pessoa com a menor formação possível passou a assumir o papel de bibliotecário, pois as instituições mantenedoras das bibliotecas – principalmente as públicas e escolares – não estavam preocupadas em possibilitar aos seus usuários a prestação de um servido de qualidade. O sistema educacional é um dos grandes responsáveis pela criação do estereótipo negativo acerca da imagem dos profissionais bibliotecários, assim como a representação destes profissionais através das artes cinematográficas e literárias que os caracterizam quase sempre com uma figura feminina, de uma senhora de meia idade, com óculos na ponta do nariz que não permite barulho no ambiente da biblioteca e quase sempre é uma pessoa mal humorada. Figura 05 – Estereótipo da imagem do(a) profissional bibliotecário (a)

Fonte: BARROS, 2016

A representação da imagem do profissional bibliotecário, como na figura acima, é uma forma de expressão de tipos de linguagens verbal, não verbal e corporal, pois a interpretação da imagem é feita levando em consideração objetos, gestos, tom de voz, expressões corporais, vestimentas, postura e uso

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de acessórios. Destaca-se que nos últimos anos houve uma mudança, ainda que pequena, na representação da imagem do profissional bibliotecário, pois o cargo passou a ser ocupado por pessoas com formação em biblioteconomia e, por conseguinte, com uma compreensão acerca do seu papel como agente de transformação cultural, social e intelectual no ambiente das bibliotecas.

Considerações finais Compreender a relação linguagem e biblioteca é algo que requer inicialmente um entendimento acerca do significado de linguagem para posteriormente analisar a sua aplicação no espaço das bibliotecas, pois assim será possível estabelecer conexões que levam a perceber que o espaço físico, os itens que formam o acervo, os equipamentos e mobiliários da biblioteca, bem como os funcionários possuem mensagens que são interpretadas e compreendidas pelos usuários de acordo com seu nível de conhecimento intelectual, cultural e social. Desmistificar o ambiente da biblioteca e dos profissionais bibliotecários torna-se cada vez mais necessário, pois, ao longo dos anos criou-se uma imagem negativa acerca da biblioteca. Esta imagem deve-se ao fato de que durante muito tempo houve a prática, principalmente nas escolas, de mandar os alunos de castigo para as bibliotecas, além disso, os funcionários que exerciam a função na biblioteca não possuíam a formação adequada na área de Biblioteconomia, seja em nível médio, técnico ou superior, agravando ainda mais essa interpretação errônea. Cabe, portanto, aos novos profissionais, que atuam em biblioteca, possibilitar aos usuários o acesso aos produtos e serviços disponíveis, pois é inconcebível ainda haver bibliotecas como sinônimos de depósitos de itens informacionais que os usuários não podem usufruir. Uma nova concepção de biblioteca viva (espaço de difusão intelectual e cultural) deve estar cada vez mais presente no cotidiano das bibliotecas, especialmente nas públicas e escolares, pois a mudança de interpretação dos usuários passará pela mudança nas instalações físicas, acesso, disseminação da informação serviços prestados aos usuários.

Referências BARATIN, Marc; JACOB, Christian. O poder das bibliotecas: a memória dos livros no Ocidente. Rio de Janeiro: Ed. da UFRJ, 2000. BATTLES, Mathew. A conturbada história das bibliotecas. São Paulo: Planeta, 2003. FERREIRA, Armindo Ribeiro. Biblioteca no ambiente escolar: comunicação, dinâmicas, organização e estratégias de atendimento. São Paulo: Saraiva, 2015.

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FISCHER, Stiven Roger. História da leitura. São Paulo: Editora Unesp, 2006. FONSECA, Edson Nery da. Introdução à biblioteconomia. 2. ed. Brasília: Brinquet Lemos, 2007. GOMES, Sônia de Conti. Bibliotecas e sociedade na primeira república. São Paulo: Pioneira, 1993. LUCAS, Clarinda Rodrigues. Leitura e interpretação em biblioteconomia. Campinas, SP: Editora Unicamp, 2000. MARTINS, Wilson. A palavra escrita: história do livro, da imprensa e da biblioteca. 3. ed. São Paulo: Ática, 2001 RIBEIRO, Darcy. Teoria do Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. SILVA, Divina Aparecida da; ARAÚJO, Iza Antunes. Auxiliar de biblioteca: técnicas e práticas para formação profissional. 7. Ed. Brasília: Thesaurus, 2014. BARROS, Moreno. Estereótipo dos Bibliotecários. Disponível em: < http://pt.slideshare. net/moreno/esteretipo-dos-bibliotecrios-438586>. Acesso em: 27 jul. 2016.

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LINGUAGENS EM (CON)FLUÊNCIA: LITERATURA E MÚSICA EM DIÁLOGO NA CONTEMPORANEIDADE Diana Navas1 Telma Ventura2

Composição musical e texto literário: um diálogo interartes Desde a Antiguidade, as aproximações entre as Artes tem atraído o interesse e sido o foco de inúmeros pesquisadores, a ponto de Horácio iniciar a sua obra Ars Poetica com a ideia de que Ut pictura poesis (a poesia deve ser como um quadro); e Plutarco, citando Simônides de Ceos, delinear as relações entre a Literatura e a Pintura, afirmando que a pintura é poesia muda e a poesia, pintura falante. Destarte, os aspectos analíticos relacionados à comparação entre as Artes, sejam de ordem estrutural ou conteudística, foram considerados desde o início da trajetória dos estudos estéticos, e o continuam sendo, tendo em vista que o presente estudo objetiva delinear os modos e meios pelos quais a literatura – mais especificamente, o romance português contemporâneo – compartilha com a música estruturas composicionais análogas, bem como, em ambas sendo expressões primordiais do Homem, constituem manifestações artísticas equivalentes em termos de uma estética universal. Em outras palavras, almeja-se explicitar como procedimentos interartísticos, pertinentes tanto ao campo 1

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Diana Navas, pós-doutora pela Universidade de Aveiro e doutora em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, atua como professora no Programa de Estudos PósGraduados da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Suas pesquisas concentram-se nas tendências da literatura portuguesa contemporânea, mais especificamente, nos romance de António Lobo Antunes . Dentre suas produções, destacam-se: Narcisismo Discursivo e Metaficção – Lobo Antunes e a revolução do romance (2009) e Figurações da Escrita (2013). [email protected] Telma Ventura, graduada em Psicologia pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista em Literatura pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, e mestranda em Literatura e Crítica Literária por essa mesma Universidade, pesquisa as Literaturas Portuguesa e Brasileira Contemporâneas, com ênfase nos seguintes temas: Erotismo; Prosa Poética; (Neo)Barroco; Diálogo Interartes; Semiótica; Literatura Fantástica; Psicanálise. [email protected]

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da Literatura quanto da Música, evidenciam-se em produções literárias contemporâneas, apontando para a confluência de linguagens. A articulação entre ambas as concepções artísticas, invariavelmente, ocorre por meio de uma exploração voltada à construção linguística, assim como da análise formal da obra, a qual deriva, por sua vez, do fazer artístico proporcionado pela elaboração dessa linguagem. Não sendo instâncias separadas e incomunicáveis, literatura e música podem constituir uma unidade de sentido, visto que a música habita a linguagem e estabelece com ela uma relação, não apenas associada à sonoridade musical da palavra, mas também em relação à estrutura que tanto a música quanto o texto literário possuem – os elementos os quais organizam a estrutura da composição musical, que sistematizam as escolhas e relações sonoras e também moldam a discursividade da musicalidade, construindo o Sistema conhecido por música, igualmente estabelecem a estrutura da narração literária, tanto no que se refere à Prosa quanto à Poesia. Termos como acorde, vozes e harmonia tendem a ser semelhantemente utilizados em análises musicais e literárias, da mesma maneira que tema, variação e cadência, citando apenas alguns exemplos. Entretanto, o estudo desse diálogo apenas foi possível, a partir do século XX, por meio do desenvolvimento da área da Literatura Comparada, a qual abdicou do comparatismo que remetia aos binômios fonte vs influência, autores vs sistemas, e passou a incorporar um diálogo mais amplo e abrangente, decorrente da necessidade de melhor fundamentar-se o estudo literário. Além dessa, outra demanda acarretou a inclusão da análise das diferenças culturais na crítica literária – qual seja, a preponderância, cada vez mais presente no mundo contemporâneo, da imagem sobre o indivíduo. Assim, a comparatividade da Literatura com outras – e diversas – manifestações culturais, com outros sistemas semióticos, tem se mostrado uma constante, além de propiciado uma renovação no campo das Artes, como pode ser vislumbrado levando-se em consideração, entre outras, as pesquisas de Solange de Oliveira. Professora colaboradora emérita da UFMG, em sua obra Literatura e Música: Modulações pós-coloniais, busca demonstrar a importância de, na contemporaneidade, os pesquisadores e críticos das artes compreenderem com maior propriedade a partir de onde, em nome de quê e de quem se fala, em relação às correspondências e diálogos entre as Artes, a fim de obter-se uma contribuição mais rica e abrangente, por meio de uma rede de sentidos. Nas análises delineadas nesse seu livro, Solange de Oliveira pontua a importância das metáforas e analogias musicais presentes em diferentes textos literários, as quais se organizam a fim de operar como um fator interpretativo, enquanto análise de conteúdo.

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Em Visiting, conto ambientado em Trinidad, Caribe, e escrito por Roger McTair, o calipso, gênero musical característico da cultura caribenha, apresenta-se entremeado ao texto: No conto de McTair, a violação neocolonizadora coincide com a violência contra o gênero musical: a letra do calipso, tradicional veículo de protesto anticolonial, é atribuída a uma voz nativa que celebra a sua própria degradação. É a partir de dados culturais, relativos à função original do calipso, tão diversa da que lhe atribui o texto, que este pode ser lido. (OLIVEIRA, 2002, p.172)

Em Reflexos do Baile, romance de Antonio Callado, cuja personagem principal é um português que vive seus dias durante a ditadura militar no Brasil, o choro evidencia-se como metáfora fundamental da narrativa, pois que se apresenta como uma alegoria da reação à dependência colonial: Por meio do choro, a ex-colônia inverte simbolicamente o roteiro de Cabral, invade a antiga metrópole, conquista Portugal, vingando-se da passada dependência; sobretudo, demonstra o papel de reação contra a colonização cultural frequentemente assumida pelas criações transculturais. Da mesma forma, simbolizando a rebelião contra o regime militar, a metáfora musical de Reflexos do Baile anuncia também o repúdio aos vínculos neocoloniais que, aceitos pela ditadura brasileira, substituíram a ultrapassada dominação portuguesa. (OLIVEIRA, 2002, p.185-186)

Por sua vez, no poema Lundu do Escritor Difícil, de Mário de Andrade, a poesia articula-se com a dança, delineando, principalmente, o hibridismo da brasilidade e a influência da cultura africana na formação do povo brasileiro: No poema, a voz poética identifica-se com esse elemento que passa a indicar, metonimicamente, as várias etnias que contribuíram para a construção da cultura nacional, sobretudo em suas manifestações populares. [...]. A alusão musical potencializa os vários constituintes textuais, indispensáveis à leitura, exemplificando ainda uma vez a importância da imagem musical para os estudos literários. (OLIVEIRA, 2002, p.153)

Por meio desse recorte dos escritos de Solange de Oliveira pode-se observar os procedimentos críticos que propiciam o diálogo interartes entre o texto literário e referências musicais, a fim de enriquecer a leitura estética. Contudo, tais

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exemplos da comparatividade literário-musical demonstram, prioritariamente, as aproximações conteudísticas de ambas as artes, sem se atentar para a influência que a estrutura musical pode exercer sobre a construção do texto literário. Tal contribuição teórica de Solange de Oliveira, denominada por ela mesma de melopoética cultural, refere-se a “uma abordagem músico-literária que enfatiza as implicações culturais de referências musicais” (OLIVEIRA, 2002, p.149). Por sua vez, Silviano Santiago, em um ensaio intitulado A estrutura musical no romance: o caso Érico Veríssimo (2002), delineia uma análise melopoética valendo-se dos estudos de diversas formas musicais (tema e variações, sonata, fuga) e de elementos composicionais (contraponto, harmonia, polifonia), pontuando medidas por meio das quais as formas literárias influenciam a composição musical e vice-versa, considerando as específicas organizações internas da literatura e da música, a fim de observar lógicas discursivas análogas. Percorrendo a exploração melopoética, Silviano Santiago pontua princípios de composição musical que estruturam a narrativa em obras de autores da Literatura Universal – Mário de Andrade (Macunaíma), Aldous Huxley (Contraponto), André Gide (Os moedeiros falsos), e o próprio Érico Veríssimo (Caminhos cruzados e Clarissa). O ensaísta demonstra a tentativa, nesses textos literários, da construção de vozes dissonantes e heterogêneas (os diferentes acordes das vozes narrativas, produzindo a polifonia na estrutura romanesca), bem como da articulação de elementos aparentemente incompatíveis: Érico e Mário são muito diferentes no que tange à concepção mimética que têm da obra de arte, trabalhando como trabalham com matéria-prima distinta. No entanto, Amaro, personagem [de Clarissa], e Mário, o autor, se encontram no desejo de buscar uma forma que possa harmonizar e dar sentido ao heteróclito, e é uma forma musical, a rapsódia, que vai dar conta do “compósito” (o termo é de Flaubert), sem que cada elemento perca a condição essencial de alteridade. A composição musical entra no universo romanesco dos dois brasileiros assim como um elemento catalisador precipita a combinação de elementos heterogêneos numa experiência química. Não é outra a razão pela qual Mário de Andrade dá como subtítulo para Macunaíma – uma “rapsódia”. (SANTIAGO, 2002, p.175)

Todos os autores analisados por Silviano Santiago no ensaio supracitado construíram suas narrativas a partir de um determinado constructo textual, no intuito de lidar com a harmonização da narrativa em seus diferentes elementos; entretanto, de qualquer forma, todos utilizaram-se de fundamentos discursivos relacionados à música, os quais, em última instância, relacionam-se à plasticidade do fazer artístico.

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Na contemporaneidade, tendo em vista a globalização e a universalização do conhecimento, assomados ao livre acesso à internet e às redes sociais, as fronteiras geográficas, políticas e sociais expandiram-se, chegando a diluir-se; consequentemente, as margens linguísticas, culturais e inclusive de gêneros literários tornaram-se cada vez mais tênues. Em consonância à diluição das fronteiras, diversos estudos, sob diferentes paradigmas, tem possibilitado o vislumbre de um crescente hibridismo do fazer artístico, possibilitando a convergência entre as diferentes linguagens artísticas. Na área híbrida da Literatura e da Música, Mariana Andrade (2009) analisa a incidência de procedimentos literários formais, os quais dialogam com as estruturas e métodos próprios da linguagem musical barroca, na obra O Manual dos Inquisidores, de António Lobo Antunes. No estilo narrativo antuniano, a estrutura linguística planejada, que tende a sobrepor os discursos das personagens, tecendo uma trama polifônica, aproxima-se analogamente do jogo instrumental realizado pelos músicos em uma sinfonia barroca. Recorrendo-se a Gilles Deleuze que, em sua obra A dobra: Leibniz e o barroco, traça um paralelo entre música e literatura no período barroco, pode-se observar O Manual dos Inquisidores pela noção de dobra, uma técnica discursiva composta em espiral: Não se trata de contentar-se com correspondências binárias entre o texto e a música [...]. Como dobrar o texto para que ele seja envolvido pela música? Esse problema da expressão não é fundamental somente para a ópera. Os barrocos talvez sejam os primeiros a propor uma resposta sistemática: são os acordes que determinam os estados afetivos conformes ao texto e que dão às vozes as inflexões melódicas necessárias. [...] O texto dobra-se segundo os acordes, e é a harmonia que o envolve. (DELEUZE, 2005, p. 226)

Acordes, vozes e harmonia – recursos rítmicos e melódicos musicais os quais, por meio de idas e vindas, em uma escrita rítmica, aproximam a composição de Lobo Antunes das sonatas barrocas. Em face à composição de uma verdadeira partitura, O Manual dos Inquisidores demarca, ao longo de sua estrutura, instantes de floreio, de improvisação ou de inserção de ornamentos, a fim de obter-se o máximo de sonoridade da palavra literária. Destarte, de acordo Mariana Andrade, a tessitura da recorrência, do floreio e da repetição, características do estilo barroco, assinala a musicalidade da narrativa de Lobo Antunes, assim como “a organização geométrica do texto, a repetição de palavras e frases e o diálogo contrapontístico entre os relatos das diferentes personagens como uma releitura da tradição musical barroca” (ANDRADE, 2009, p.124-125).

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Da mesma forma, as elipses textuais, recurso textual que rompe com a linearidade narrativa, pois que se utiliza do descentramento e a dissonância estruturais, o qual, entretanto, não chega a tornar incompreensível o texto ao leitor, pode ser observado pela estruturação do romance nos relatos dos protagonistas e nos comentários (ou respostas) endereçadas a eles, demonstrando a natureza contrapontística da narrativa. Utilizando-se do contraponto, Lobo Antunes, de acordo com Mariana Andrade (2009), insere tons diferentes, bem como estabelece vozes distintas que se articulam harmonicamente no tecido textual, o que pode ser igualmente encontrado na trama musical, pois a polifonia caracteriza-se como um recurso estruturador tanto da literatura quanto da música. Organizando, destarte, as narrações sobrepostas (os diferentes enredos de cada uma das personagens) ��������������������������������������� à uma base mel������������������������� odico-literária relativamente simples (a ditadura militar e a Revolução dos Cravos), a composição de O Manual dos Inquisidores se desenvolve em volutas harmônicas, as quais sustentam a polifonia textual progressiva, estruturando o (aparente) caos narrativo. Repetições melódicas, efeitos de ritmo, volutas narrativas, espirais linguísticas e ornamentos – elementos musico-literários que compõem o processo de construção textual de António Lobo Antunes, não apenas em O Manual dos Inquisidores, mas em outras de suas produções literárias, da qual vale destacar o romance-poema Não entres tão depressa nessa noite escura.

Não entres tão depressa nessa noite escura: composições de um Lobo António Lobo Antunes (1942 –) é um dos mais significativos nomes da literatura contemporânea portuguesa. Sua ampla produção, composta, até o momento, por vinte e seis romances e cinco livros de crônicas, é marcada por um intenso e cuidadoso trabalho com e na linguagem, na qual se evidencia uma resistência ao programático, ao tradicional, e a consequente pluralização de formas e atitudes estéticas, valendo-se de recursos e processos distintos que escapam à unidade de um modelo pela via da multiplicação, da heterogeneidade. Dentre os traços de sua produção romanesca, destaca-se a confluência de diferentes formas discursivas e linguagens, sugerida, muitas vezes, desde os títulos de suas obras. É o caso de Auto dos Danados, em que assistimos a uma convocação da componente dramática e judicial; de Tratado das Paixões da Alma, em que nos deparamos com uma forma discursiva, “o tratado”, aliada a uma frase de Descartes; ou de O Manual dos Inquisidores, título no qual constatamos uma designação paródico-nostálgica, em que o modo de inquirição determina a composição de um “manual”.

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Fado Alexandrino e A morte de Carlos Gardel, por seu turno, propõem uma aproximação com a música, aproximação essa que, implicitamente, também se evidencia em Não entres tão depressa nessa noite escura, romance que apresenta como subtítulo “poema” e que se constitui em uma apropriação de um verso de Dylan Thomas (“Do not go gently into that good night”). A influência da música em sua escrita ficcional é confessada em entrevistas e também em suas crônicas, da qual é exemplo “De Deus como apreciador de jazz”, cujo excerto apresentamos: Cresci com um enorme retrato de Charlie Parker no quarto. Julgo que para um miúdo que resumia toda a sua ambição em tornar-se escritor Charlie Parker era de facto a companhia ideal. Esse pobre, sublime, miserável, genial drogado que passou a vida a matar-se e morreu de juventude como outros de velhice continua a encarnar para mim aquela frase da Arte Poética de Horácio que resume o que deve ser qualquer livro ou pintura ou sinfonia ou o que seja: uma bela desordem precedida do furor poético

diz ele é o fundamento da ode. Sempre que me falam de palavras e influências rio-me um pouco por dentro: quem ajudou de facto a amadurecer o meu trabalho foram os músicos. A minha estrada de Damasco ocorreu há cerca de dez anos, diante de um aparelho de televisão onde um ornitólogo inglês explicava o canto dos pássaros. Tornava-o não sei quantas vezes mais lento, decompunha-o e provava, comparando com as obras de Haendel e Mozart, a sua estrutura sinfónica. No fim do programa eu tinha compreendido o que devia fazer: utilizar as personagens como os diversos instrumentos de uma orquestra e transformar o romance numa partitura. Beethoven, Brahms e Mahler serviram-me de modelo para A Ordem Natural das Coisas, A Morte de Carlos Gardel e o Manual dos Inquisidores, até me achar capaz de compor por conta própria juntando o que aprendi com os saxofonistas de jazz, principalmente Charlie Parker, Lester Young e Ben Webster, o Ben Webster da fase final, de Atmosfera para Amantes e ladrões, onde se entende mais sobre metáforas directas e retenção de informação do que em qualquer breviário de técnica literária. Lester Young, esse, ensinou-me a frasear. (ANTUNES, 2011, p.49)

As reflexões do autor, aliadas a alguns traços gerais de Não entres tão depressa nessa noite escura, tais como a polifonia, o trabalho tipográfico, o cuidado intenso com a forma, além do emprego de processos típicos da música,

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como tema, variação e contraponto, permitem-nos propor uma leitura da obra que a aproxima de uma partitura e evidencia a escrita musical da narrativa. Esse romance, publicado em 2000, constitui-se por 35 capítulos, organizados em sete sequências ordenadas conforme os dias da criação do mundo, sendo cada uma delas introduzidas pela citação de um trecho do Gênesis, em que, de forma semelhante a temas musicais, figuram sensíveis motivos como a luz, o céu e o mar, a noite, a feminilidade, a fecundação, indiciando veios temáticos e discursivos que se expandem no romance a partir das citações bíblicas. O enredo é aparentemente simples, mas, justamente por seu viés essencialmente psicológico e digressivo, revela-se de difícil síntese. Maria Clara, uma jovem de 18 anos, pensa e escreve a sua vida em um diário a partir da morte do pai. Nele, a jovem se ocupa da doença e desaparecimento do progenitor, refletindo acerca dos segredos da família que investiga em documentos e objetos encontrados no sótão da casa. O desvelar desses segredos (ou das conjecturas que Maria Clara sobre eles constrói), permite-nos conhecer sua irmã Ana Maria, a mãe Amélia e a avó Margarida, além da criada Adelaide; o registro diarístico prossegue até dez anos depois, quando, já casada e com um filho, Maria Clara permanece escrevendo. Se a princípio temos a impressão de acompanhar Maria Clara em sua investigação sobre a própria família, e com ela compartilharmos das decepções em razão das descobertas feitas e das sombrias experiências de sua adolescência, vamos constatar, ao longo da leitura e, ainda, de forma bastante velada, que o romance centra-se no problema da imaginação e da ficção. (Des)vendando segredos, a protagonista vai apresentando facetas errôneas dos fatos, que se tomam por verdades, de forma que o edifício de saber assim construído ora progride, ora rui parcialmente. Nele, a ficção contamina-se de uma declarada invenção, com a qual, de fato, se consubstancia e, por meio dela, a narradora constrói personagens que depois confessa serem falsas, substitui lugares, duplica e multiplica figuras, criando um jogo de falácias e vertigens, que dão conta de sua perspectiva visionária e ilusória, que é no fundo solitária e insatisfeita. Marcada por traços metaficcionais e, portanto, focalizando e questionando o próprio ato do fazer literário, a obra sugere-nos, como poderemos observar, também a aproximação com a linguagem da música, (re)velando a sua construção uma proximidade com a de uma partitura musical. A aproximação interartes faz-se presente, inicialmente, no plano temático, sendo recorrente na obra as referências às lições de piano, à música espanhola, à corda desafinada, ao murmúrio das corolas, dentre outros sons. É interessante observar que tanto os sons sugeridos quanto o ambiente em que eles se efetivam não são marcados pela harmonia, apontando, ao contrário,

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para uma certa dissonância, aspecto este que será reforçado quando considerarmos o plano estrutural da obra. o meu cesto de tricot, as agulhas, uma camisola encetada, um segundo a estudar o piano, a atrever-se a uma nota, a assustar-se com o ruído e aquela baba dos cachorros, aquele relento de mato, o presidente Krüger a arrepiar-se na moldura dado que a corda do piano há anos desafinada visto que meu marido não se rala com a música num ganido sem fim, não me sentar com eles, não lhes fazer companhia [...] (ANTUNES, 2000, p.235) (grifos nossos) Às vezes, quando éramos pequenas, a minha mãe colocava um disco de música espanhola na aparelhagem, aumentava o som e castanholas, pandeiretas, guitarras, uma voz que se queixava em gritos de cão de quinta ondulando num outeiro, uma silhueta esgalgada numa crista, uma oliveira sozinha, ruínas onde pedintes cozinhavam sopa em latas velhas de tinta, a minha mãe ao lado do meu pai enquanto o lamento erguia o rosto cego para nós – Não queres dançar Ana Maria? (ANTUNES, 2000, p.317) (grifos nossos)

A presença da música, obviamente, não se esgota no plano temático. Podemos constatar, no que denominaremos aqui de plano microestrutural, a recorrência ao ritmo, às repetições, às suspensões, ao silêncio, dentre outros procedimentos comuns à linguagem musical, levantamento esse baseado no significativo estudo desenvolvido por Catarina Vaz Warrot. Como é sabido, o ritmo é um elemento essencial para a música; da mesma forma o é na escrita romanesca de Lobo Antunes. Considerando o estrato sonoro, verifica-se no romance imagens acústicas como assonânica, aliteração, repetição, imagens essas que contribuem com o aspecto rítmico do romance. [...] uma nuvem, duas nuvens e a seguir às nuvens um motor de camioneta na sebe que se aproximava devagarinho, estacou, vibrou um momento e em lugar de calar-se continuou a vibrar à medida que as magnólias desciam uma a uma no poço e eu sentada ao rebordo a olhá-las, toda a tarde sentada no rebordo a olhá-las filhinha disse filhinha disse fillhinha, reparaste disse filhinha a sorrir para ti (ANTUNES, 2000, p. 548)

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É�������������������������������������������������������������������� , entretanto, o emprego diferenciado da pontuação que confere à narrativa uma organização rítmica e também visual. Nos romances mais recentes do autor, e aqui se inclui Não entres tão depressa nessa noite escura, os parágrafos são paratáticos, a intercalação de vozes é frequente, garantindo à narração um ritmo rápido: como se alguém no seu juízo perfeito acreditasse nisso a empurrar na neve que não era neve mas defeito do filme um carrinho de bebé cheio de ciscos de carvão para um portal desfeito, o homem a oferecer qualquer coisa um órfão? um bácoro? que lhe entregaram para que o mostrasse na atitude que deve ter custado uma hora de trabalho ao repórter – Assim não conseguimos nada meu amigo faça de conta que sofre (ANTUNES, 2000, p.280)

Como pode ser observado, a pontuação não é empregada a partir do uso tradicional dos sinais, mas tendo em consideração a enunciação, isto é, o texto acaba por ser pontuado mais pelo jogos de vozes do que pelos sinais tipográficos. Assim, segundo Warrot (2013), são as distintas vozes, seja por sua presença, ausência ou modulação, as responsáveis por uma pontuação e um ritmo que se aproxima da organização dos instrumentos musicais em uma partitura. Vale observar, entretanto, que nem sempre a translineação, como poderíamos pensar, aponta para uma mudança de voz no texto, o que, sem dúvida, complexifica ainda mais a compreensão do texto por parte do leitor. É Warrot quem nos alerta que o trabalho com o significante, considerado como uma matéria a ser manuseada e decomposta, é outro aspecto a ser considerado na aproximação entre música e literatura. Se na música o compositor tem acesso a variados procedimentos para trabalhar a duração dos sons ou para introduzir silêncios ou pausas, na escrita romanesca de Lobo Antunes, isso é conseguido por meio de um intenso e cuidadoso trabalho com a forma. Evidencia-se, no romance, uma preocupação com a mancha tipográfica, cedendo, a escrita redonda, espaço também para a escrita em itálico e parentética, o que promove uma chamada de atenção do leitor para a materialidade do texto.

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– Não me ameacem. o meu pai desinteressou-se finalmente das ameixas e das uvas – Não te entendo Clarinha dois eus, um magro e um obeso (ANTUNES, 2000, p.410) (grifos do autor) eu para o meu marido não é nada dorme, ocupa o meu lugar de maneira e não sentires a minha falta e dorme, a mão do meu pai que desiste da minha (como vês não é nada) a compor o lençol como se o lençol fosse eu e não sou (ANTUNES, 2000, p. 451-452)

Observa-se, ainda, um trabalho tipográfico ao nível da palavra, que se apresenta mutilada, estilhaçada, submetida a um processo de decomposição: – Tome tento senhora a afastar o chofer em gestozinhos nervosos, vontade de me rir ou de bat coitada (ANTUNES, 2000, p.166) (grifo nosso)

Essa espécie de “concretude” assumida pela palavra, encarada como elemento que pode ser manipulado, (des)organizado, assim como ocorre com as notas musicais, enfatiza-se a partir do jogo que se estabelece na inversão das letras que compõem alguns vocábulos: Miguel em todos os livros da escola, maiúsculas, minúsculas, a direito, ao contrário Leugim eu Airam Aralc nós dois Leugim Airam Aralc (ANTUNES, 2000, p.488)

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A palavra, considerada em sua materialidade, é decomposta em sílabas, em sons, em notas. A simultaneidade de sons, possível na música, é o alvo que se almeja alcançar na escrita literária; o autor tenta inscrever a simultaneidade a partir do corte de palavras, da divisão silábica, do prolongamento de sons, assim como o faz um músico ao escrever sua partitura. Conforme assegura Warrot, o autor transforma o texto, atribuindo-lhe características próximas da escrita musical. É preciso olhar para ele, ouvi-lo, interpretá-lo, fazer escolhas... o significante pode desdobrar-se em notas que irão por sua vez misturar-se e combinar-se entre elas. (2013, p.156)

As pausas sugeridas pelos espaços em branco – presentes não apenas na página em consequência das frases paratáticas que, semelhante a versos, interrompem-se no meio da página – mas também no interior da frase, são dignos de observação. “Em música, as pausas, a duração dos sons são representados graficamente. Em literatura, este tipo de trabalho pode surgir através do espaço branco no interior da frase, como uma espécie de silêncio musical” (WARROT, 2013, p.153). De forma semelhante ao símbolo das pausas nas partituras, as lacunas apontam para o����������������������������������������������������������������� não dito�������������������������������������������������������� , para o silêncio, e convidam o leitor a ler este romance/partitura e a participar de sua composição. a Maria Clara é o

da casa. (ANTUNES, 2000, p.37)

à entrada da garagem, à entrada da sala com uma chave de fendas e no cabo da chave de fendas um coágulo de óleo e não era óleo era a fluidez do, aquele vermelho escuro e contudo nós não sentindo, não vendo [...] (ANTUNES, 2000, p.271)

Ainda de forma semelhante ao que ocorre nas composições musicais, evidencia-se na escrita de Não entres tão depressa nessa noite escura a repetição. Algumas frases, em virtude da frequência com que estão presentes no texto, tornam-se verdadeiros refrões ou estribilhos, dispersos ao longo dos capítulos: (quantas vezes, à noite, me acontece escutar alguém que se aproxima e se afasta nos goivos e não me atrevo a chegar à janela por receio dos

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mortos, sempre que uma pessoa se finava cobriam o espelhos para que a má sorte não pudesse encontrar-nos) (ANTUNES, 2000, p.131)

A construção de uma imagística incapaz de ser reduzida a significados unívocos e precisos, e que nos causa a sensação de estranhamento em virtude do emprego de metáforas e comparações inusitadas, é outro ponto de aproximação da escrita de Lobo Antunes com a linguagem musical: não tenho certeza se somos nós que crescemos ou o mundo que encolhe, tudo deixa de nos servir e não apenas a roupa mas os sentimentos, as casas, o médico connosco até à porta do hospital onde os ciganos da ambulância e da maca choravam a cantar (ANTUNES, 2000, p.50)

Ultrapassando o nível microestrutural, o diálogo com a linguagem musical, na narrativa antuniana, parece promover uma reformulação do discurso como um todo. ��������������������������������������������������������������� É o que se evidencia com a recorrência à ���������������������� polifonia, termo proveniente da terminologia musical e que é incorporado nos estudos linguísticos e literários a partir dos estudos de Bakhtin. Em música, harmonia é a combinação de sons ouvidos simultaneamente, ocasionando a formação de acordes, enquanto a polifonia é a superposição não de sons tomados isoladamente, mas de melodias distintas e independentes. Considerando a linearidade a que está submetida a linguagem literária e que nela as palavras e frases não se fundem como os sons musicais, a polifonia parece complexa de nela ser atingida de forma semelhante àquela que se evidencia na música. Lobo Antunes, neste e em outros romances, entretanto, constrói vários tipos de enunciação a que correspondem formas gráficas, por vezes, distintas. Há, conforme Warrot (2013), a existência de níveis discursivos diferenciados: um narrador predominante; precisões dadas ao que é contado no nível anterior; frases em discurso direto; e frases entre parênteses, os quais podem ser lidos de maneira separada ou em alternância. Ainda de acordo com a mesma autora, à semelhança do que ocorre na escrita musical de uma sinfonia ou de uma composição polifônica, o leitor, tal como o músico/intérprete, precisa conseguir ler, por um lado, cada voz em separado, mas deve, ao mesmo tempo, conseguir lê-las/ouvi-las juntas (em simultâneo, em se tratando da música). Trata-se, portanto, de uma outra forma de ler em que “o leitor torna-se no maestro que lendo cada voz/ instrumento em separado consegue apreender a unidade que existe na fragmentação e na heterogeneidade e aceder a um sentido formado pela multiplicidade de sentidos” (WARROT, 2013, p.147). Observa-se, assim, na escrita de Lobo Antunes a presença de uma estrutura planejada sobre a qual os discursos das personagens se sobrepõem, tecendo

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uma trama polifônica, que, por analogia, aproxima-se do jogo entre instrumentos, com diferentes vozes que apresentam versões distintas a respeito do mesmo fato, propiciando uma visão caleidoscópica. Alia-se a essa diversidade de vozes, a frequente repetição de palavras e frases, muitas vezes presente não só em trechos concentrados, mas ao longo de capítulos inteiros, o que se assemelha à noção de repetição melódica. Essa repetição pode, ainda, ser aproximada do que denominamos de tema na teoria musical. De acordo com Oliveira (2002), tema é a ideia musical que serve de ponto de partida para uma composição, enquanto a variação consiste na reiteração do tema, com alguma alteração, de qualquer natureza, incluindo ritmo, tonalidade, acompanhamento, orquestração, etc. Assim, no romance de Lobo Antunes, são várias as frases e imagens que surgem como motivos, como temas da narrativa e que se espraiam ao longo do romance. Tais frases são continuamente retomadas, seja por distintas vozes ou ainda pela voz de uma mesma personagem, sugerindo, no entanto, uma distinta interpretação a cada retomada. Hoje estava capaz de me ir embora: pegar nas chaves do carro sem motivo nenhum (as chaves estão sempre no prato da entrada) Descer as escadas (não descer pelo elevador, descer as escadas) (ANTUNES, 2000, p.549) Hoje estava capaz de me ir embora: as paredes da casa me apertam, tudo me parece tão pequeno, tão inútil, tão estranho. (ANTUNES, 2000, p.550) Hoje estava capaz de me ir embora. Metia todo o dinheiro da gaveta no bolso, deixava aqui a mala, os documentos, os sinais de quem sou. (ANTUNES, 2000, p.550)

O contraponto, concebido na teoria musical como duas ou mais linhas melódicas que soam simultaneamente, também é transposto para o romance antuniano. Por meio da (con)fusão do tempo passado e presente, o autor confere a seu romance uma textura contrapontística, à medida que possibilita uma fusão de pontos de vista da protagonista criança/jovem e adulta, promovendo efeitos de intensa simultaneidade e de intensa emoção, como é próprio da arte musical. cuidei ver o chofer a segui-la, parado na garagem onde lavava o carro, cuidei ver a Adelaide no alpendre. – Menina

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mas podiam ser os freixos ou a tarde nos canteiros quando as corolas murmuram, podia ser eu era de facto eu (ANTUNES, 2000, P.245) As árvores do parque serenaram por fim. Ligo a televisão. Não entendo o que se passa no ecrã mas continuo a ver. Uma menina sorri-me do aparelho. Infelizmente o sorriso dura pouco tempo. Se calhar nem sequer um sorriso. Se calhar sou apenas eu que necessito de um sorriso. Há momentos na vida em que necessitamos tanto de um sorriso. À falta de melhor toco-me com o dedo no vidro. (ANTUNES, 2000, p.551)

Pode-se constatar, assim, na leitura de Não entres tão depressa nessa noite escura, graças a uma estreita ligação entre o tecido sonoro, textual e visual, uma prosódia que encontramos também na leitura de composições musicais. Válido se faz observar, no entanto, que a estética de Lobo Antunes é marcada pela ruptura, de modo que a aproximação de seu romance à música não se faz claramente em relação à música clássica tradicional. Conforme assegura Seixo, na obra em estudo, é preciso considerar as “vozes discordantes”, e a presença de uma “espécie de desacerto instrumental”, “de escalas, ou, registos de expressão convocados”, ou mesmo de “distonia”, levando-nos a compreender que o que faz Lobo Antunes é provavelmente “uma nova forma de escrever romances similar à da ruptura com o universo tonal, em música, praticada pela Escola de Viena” (2012, p.419). Uma ruptura gerada pela musicalização da ficção.

Referências ANDRADE, Mariana Neto Silva. Da musicalidade em O manual dos inquisidores. ABRIL – Revista do Núcleo de Estudos de Literatura Portuguesa e Africana da Universidade Federal Fluminense. Vol. 2, n° 3, Novembro de 2009. ANTUNES, António Lobo. Não entres tão depressa nessa noite escura. Lisboa: D. Quixote, 2000. ______. As coisas da vida: 60 crônicas. Rio de Janeiro: Objetiva, 2011. ______. O manual dos inquisidores. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. BARBEITAS, Flávio. A música habita a linguagem: Teoria da música e noção de musicalidade na poesia. Tese de Doutorado em Estudos Literários – Literatura Comparada. Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG, Faculdade de Letras. Belo Horizonte, 2007. BORNHEIM, Gerd. Metafísica e Finitude. São Paulo: Perspectiva, 2001. (Debates, 280). BRANCO, João de Freitas. Música e Literatura. In: Colóquio / Letras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 42: 21-35, 1978. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. São Paulo: Papirus, 2005.

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Dicionário Grove de música: Edição concisa. Editado por Stanley Sadie. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1994. OLIVEIRA, Solange R. Literatura e música. São Paulo: Perspectiva, 2002. SANT’ANNA, Affonso Romano de. Barroco: do quadrado à elipse. Rio de Janeiro, Rocco, 2000. SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra: ensaios. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. SEIXO, Maria Alzira. Os romances de Lobo Antunes. Lisboa: D. Quixote, 2002. WARROT, Catarina Vaz. Chaves de escrita e chaves de leitura nos romances de António Lobo Antunes. Lisboa: Texto, 2013.

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CECÍLIA MEIRELES, A MAGIA POÉTICA NA EDUCAÇÃO Francisca Eleodora Santos Severino1

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Descendente de imigrantes portugueses, nasceu na cidade do Rio de Janeiro no dia 07 de novembro de 1901, Cecília Benevides de Carvalho Meireles, singular poetisa representante da intelectualidade brasileira do século XX. Marcou presença desde muito cedo e aos 18 anos publicou Espectros (1919), seu primeiro romance merecedor de elogios e destaque da crítica literária da época. Quando nasceu, seu pai, Carlos Alberto de Carvalho Meireles, já havia falecido. Segundo seu biógrafo Miguel Sanches Neto (2001), circunstância caracterizadora de uma estética de ascese marcada pelo sentimento de orfandade. Três meses antes de nascer, a morte ronda sua vida pois morre seu irmão Carlos. Sua mãe havia perdido outros filhos: Vitor e Carmem. A mãe Matilde 1

Docente do Programa de Mestrado em Educação, Gestão e Práticas Educacionais – PROGEPE – da Universidade Nove de Julho – Uninove – São Paulo. [email protected]

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Gravura disponível em imagens https://www.google.com.br/search?q=cecilia+meireles+principa is+obras&sa=X&espv=2&biw=1536&bih=752&tbm=isch&tbo=u&source=univ&ved=0ahUKEwi_6 YfM_dbPAhVBgpAKHYSsBTQQ7AkITQ&dpr=1.25#imgrc=4-hki_7D-5mDOM%3A. Acesso em 11 de outubro de 2016.

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Benevides morre e desde os 3 anos, Cecília viveu sob os cuidados da avó materna, Jacinta Benevides, e a babá, Pedrina, que lhe conta histórias para dormir. Figuras femininas que marcaram indelevelmente seu trabalho como poetisa, jornalista e educadora. Segundo ela mesma, a infância solitária lhe trouxe dois pontos muito positivos: a solidão e o silêncio. Através de suas experiências de vida procurou questionar e compreender o mundo em que vivia assinalando seus escritos com profundas indagações, desencantos e tristezas, enchendo de lirismo sua poesia. Todavia os temas e motivos que ela desenvolve vem desde muitos anos atrás, alguns deles desde sua infância marcada pela perda dos pais e mais tarde intensificada pela morte do marido, companheiro solidário e presente em todas as horas e com quem compartilhava momentos de grande criatividade, por ser ele também um grande artista, reconhecido e premiado internacionalmente. Pai de suas três filhas, Maria Elvira, Maria Mathilde e Maria Fernanda, Fernando Correia Dias teve inquestionável influência na formação cultural, literária e plástica de Cecília Meireles. Ele fizera no Brasil importante nome como artista gráfico, caricaturista, pintor, ceramista, decorador e escultor, enfim, um grande renovador das artes gráficas. Como afirma Alexandre C. Teixeira (2015, p.3), na apresentação que faz da coletânea de crônicas intitulada por Cecília de Diário de Bordo, “foi por intermédio de Fernando que a poeta foi apresentada e incorporou-se às rodas literárias e artísticas da década de 1920 – época em que se conheceram, se encantaram e se casaram”. Como tema, paisagem e símbolo, o mar se instalará em sua poesia. Dele, em seu Diário de Bordo (1939), procurou captar as constantes mudanças de cor e movimento ao contemplar as nuvens do céu, a força e a direção dos ventos. Em prosa, ela registra o casamento do céu com o oceano, poeticamente observado na viagem que, em companhia do marido, fizera a Portugal a convite do governo desse país para ali fazer conferências. Partindo do Rio de Janeiro com destino a Lisboa, ela imprimiu em 22 Crônicas muitas e variadas imagens do oceano. As 22 crônicas foram enviadas por Cecília diariamente ao suplemento literário A Nação com o registro de suas impressões de viagem do Rio de Janeiro a Lisboa. Todas as crônicas foram ilustradas por seu marido Fernando Correia Dias. Escrito simultaneamente ao Diário de Bordo, o livro Viagem (1939) é dedicado aos portugueses e nele ela registra em poemas sua estada em Portugal. Registra também a mágoa da viuvez ocorrida alguns meses após sua volta ao Brasil. De fato, essa perda jamais será superada, embora ela tenha se casado novamente anos depois com o professor e engenheiro agrônomo Heitor Vinícius da Silveira Grilo. Também no poema Pastora das nuvens, ela consagra sua autodefinição expressando a provisoriedade da existência e sua compreensão de precariedade, incompletude e finitude da vida. Na mesma obra ela escreve o poema Retrato no qual imprime imagem que faz de si:

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Eu não tinha este rosto de hoje, Assim calmo, assim, triste, assim magro Nem estes olhos tão vazios Nem lábio amargo Eu não tinha estas mãos sem força, Tão paradas e frias e mortas, Eu não tinha este coração que nem se mostra. Eu não dei por esta mudança, Tão simples, tão certa, tão fácil: Em que espelho ficou perdida a minha face? Espectros (1919), Baladas para El-Rey (1925), Romanceiro da Inconfidência (1953), Romance de Santa Cecília (1957), entre muitas outras, são obras surgidas da sensibilidade de Cecília Meireles e podem fazer uma caracterização lapidar dessa autora que apresentamos nesta coletânea. Cecília Meireles transitou ao longo de sua vida por sendas conceituais que poderíamos qualificar de programáticas dada a coerência e ao mesmo tempo pelo caráter evolutivo de algumas linhas de pensamento onipresentes em sua vasta obra representada por poemas, contos, ensaios conferências, artigos em periódicos, que escreveu como jornalista, assim como numerosas entrevistas que concedeu durante sua vida. Além da carreira literária, Cecília atuou como professora desempenhando papel relevante para o campo da Educação. De sua preocupação com a infância e qualidade da educação, resultaram obras menos conhecidas, mas igualmente importantes, tais como Criança meu amor (1924), A festa das Letras, em coautoria com Josué de Castro (1937), Rute e Alberto resolveram ser turistas (1939), Rui – pequena história de uma grande vida (1939), Problemas da literatura infantil (1951), Giroflê, Giroflá (1956), tais obras ilustram seu apaixonado envolvimento com a infância e a questão educacional. Escreveu ainda Crônicas de educação, reunidas em cinco volumes lançados pela editora Nova Fronteira, em 2001, para comemorar o centenário de seu nascimento. Na escola Municipal Estácio de Sá Cecília cursou o Primário, hoje ensino Fundamental, concluído em 1910, recebendo das mãos do Inspetor da escola, ninguém menos do que Olavo Bilac, uma medalha de ouro pelo excelente desempenho. Nesta época interessou-se pela música estudando violão e violino, mas acabou se dedicando à literatura. Concluiu o magistério em 1917 na escola Normal do Distrito federal, Rio de Janeiro, sendo escolhida oradora da turma. Por consenso fora escolhida por seus méritos e dotes raros. O exercício do Magistério revela um lado menos conhecido da poetisa, porém deixa marcas profundas expondo questões que povoam os dilemas de

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uma sala de aula. Anatomia, cátedras, ginástica, quadro negro, globo, lições de Anatomia são temas que logo se transformam títulos de crônicas que apenas em 1974 serão compiladas por Darcy Damasceno em Obras completas. Como afirma Mignot (2001), a educação comparece como tema e como metáfora em seu livro o Estudante Empírico escrito entre 1959/1964.

Militando em prol de uma nova sensibilidade à infância Em 1918, Cecília inicia sua carreira acadêmica sendo nomeada como professora adjunta do curso primário na Escola Pública Deodoro, do Rio de Janeiro. Em várias instituições de ensino deixa marcas de sua passagem: Jardim de Infância Campos Salles, Escola Medeiros e Albuquerque e Escola Bahia, exercendo nesta o cargo de diretora, onde se aposentou em 1951. Em 1920, o então Diretor Geral de Instrução Pública do Rio de Janeiro, Anísio Teixeira, nomeia Cecília Meireles para compor a equipe que irá formar a turma de desenho da Escola Normal do Distrito Federal. O convite parte de Fernando Nereo de Sampaio, responsável pela Cátedra de Desenho da referida Escola e fazia parte da equipe da Diretoria de Instrução Pública. Em 1924, ela publica o livro infantil Criança meu amor, que é adotado pela Diretoria Geral de Instrução Pública e aprovado também pelo Conselhos Superiores de Ensino do Estado de Minas Gerais e de Pernambuco. Criança meu amor foi escrito em prosa, abordava os temas do dia a dia, tarefas e sentimentos, brincadeiras e animais de estimação. O livro destinava-se ao ensino primário revelando a grande preocupação de sua autora com a escassez de livros didáticos; todavia, um pouco mais tarde, o livro Criança meu amor entrou para o rol de livros paradidáticos. Para o ensino primário, ela escreve crônicas em prosa poética, destacando realidades infantis tais como as registradas em O Humor, A Fantasia, O bom Conselho. Muitos de seus trabalhos trazem ilustrações de seu marido Fernando Correia Dias. Nesses escritos é possível capturar uma poetisa engajada, diferente daquela que, em Viagem, falava de sombras, ondas, morte, céu e mar. Em 1930, passa a se preparar para um concurso para preencher o cargo de Professor Catedrático promovido pela Escola Normal do Distrito Federal, na gestão de Fernando de Azevedo. Na primeira etapa do concurso, ela defende a escola ‘moderna’ com a tese O Espírito Vitorioso. Nessa tese, ela destaca os princípios de liberdade e inteligência, de estímulo ao método de observação e de experimentação. Dos oito candidatos concorrentes restam dois, Cecília e Clóvis Rego Monteiro. Na segunda fase, Cecilia obtém notas altas mas perde o concurso. “ O resultado foi por ela interpretado como uma ingerência das

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forças católicas na Educação pública” (Mignot, 2011, p. 62). Cecília publica, então, uma carta protesto e nela questiona a constituição da banca, a disparidade das notas atribuídas e critérios adotados na avaliação da prova. Dirigiu sua maior crítica aos sinais de outra natureza tais como critérios políticos com motivação religiosa. Embora de formação católica, ela se declara favorável ao ensino laico e em inúmeras publicações mostra toda sua combatividade a favor dessa convicção. Foi também professora do ensino superior quando lecionou Literatura Luso-Brasileira, na Faculdade de Letras da Universidade do Distrito Federal. Foi também convidada para lecionar na Universidade do Texas, onde ficou responsável pela cadeira de Literatura e Cultura Brasileira. Preocupada com os rumos da educação nacional, ela combatia os interesses dos grupos políticos que desvirtuavam as reais necessidades educacionais. Defendia o nome de Fernando de Azevedo como o mais preparado para levar adiante o projeto de educação necessário ao país, em textos cujos títulos já denotavam essa escolha: A aposta, Variações em torno de uma Aposta, A minha aposta, Sustentando a aposta. Segundo Mignot (2011 p. 64), ela “igualmente discordou da posição da Associação Brasileira de Educação que apoiava a continuidade de Belisário Penna à frente do Ministério, quando ele interinamente ocupava o cargo”. Cecília polemizava, aplaudia, denunciava e expunha os embates dos educadores de sua geração, empenhados na busca de uma nova sensibilidade à infância. Partindo do dia a dia escolar, ela visava a promoção de uma reforma da mentalidade no trato com as crianças lançando mão da contribuição de artistas, escritores, músicos e outros educadores que como ela almejavam um mundo com mais liberdade, fosse no universo adulto ou infantil. Colocava à disposição do projeto educacional seu projeto jornalístico, possibilitando maior intervenção no campo cultural. Acreditando que a criança deixava de ser vista como um adulto em miniatura, como defendia o intelectual francês, Edouard Claparède, cuja chegada no Brasil em 1930, ela festeja. Em artigo intitulado Visita de um pedagogo notável, ela ressalta a importância da obra desse autor na qual se concentrava, segundo ela, uma expressão personalíssima da psicologia aplicada ao conhecimento da criança. Partindo da obra de Claparède, ela ressalta a necessidade de uma confraternização ideológica para tornar o mundo melhor mediante ao respeito elevado e consciente à criança. Sua vasta obra muito contribuiu para a definição dos rumos da vida social e cultural do país e em particular para a educação brasileira, participando intensamente dos debates que deram origem ao Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova (1932), na companhia de Anísio Teixeira, Lourenço Filho, Sampaio Doria e Mario de Andrade. Como eles, ela também interferiu na po-

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lítica cultural do país; conferiu visibilidade à questão educacional, destacou seus principais problemas, difundiu uma nova maneira de pensar e indicou caminhos como jornalista. Ela reafirma constantemente em artigos de jornais sua posição a favor da escola pública, laica e gratuita; tal militância torna-a credenciada para compor, em 1932, o grupo dos 25 intelectuais que assinaram o referido documento redigido por Fernando de Azevedo e assinado por Anísio Teixeira, Artur Ramos, Lourenço Filho, Sampaio Dória, entre outros intelectuais igualmente importantes. Esse documento representou um marco da renovação educacional no país e Cecília como uma das signatárias emprestou a ele seu prestígio, apontando a educação como um dos caminhos para a modernização nacional. A combatividade de Cecília, manifesta em prosa e verso, juntamente com outros intelectuais do calibre de Mario de Andrade, provocou uma ruptura afastando educadores católicos da Associação Brasileira de Educação. Na contraposição, eles fundaram a Associação de Educadores Católicos. O Manifesto dirigido ao povo e ao Governo pretendia instaurar no país um novo projeto educacional e com isso ir além com um novo plano de governo. Segundo Carvalho (1998), o documento foi duramente criticado por ser uma ‘pedagogia comunista’, análise com a qual concorda Mignot (2011) Durante o Estado Novo, esta pecha perseguiu vários intelectuais de sua geração com os quais compartilhava a causa educacional, [...] a atingiu gerando seu afastamento da direção da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco – um centro de cultura destinado às crianças inaugurado em 1934, quando Anísio Teixeira respondia pela Diretoria de Instrução Pública do Distrito Federal.

Na militância para promover uma reforma de mentalidades no trato com crianças, ela não modificou seu ponto de vista com o passar dos anos e continuou defendendo a laicidade e universalidade da escola pública, motivo pelo qual não passou incólume à reação das forças conservadoras que detinham a hegemonia política naquele período. Em meio as divergências que se aprofundaram desde então, ela subscreveu em 1959 O Manifesto dos Educadores Democrátas em Defesa do Ensino Público – Mais uma vez Convocados – Manifesto ao Povo e ao Governo, lançado por ocasião da tramitação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no qual mais de cem intelectuais defendem o ensino público como dever do Estado, em contraposição às forças conservadoras que invocavam a liberdade de ensino. (Mignot, 2011, p. 64).

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Dirigindo A Página da Educação em periódico ela produziu fatos novos implementando um projeto jornalístico que ultrapassou fronteiras e mobilizou os educadores de sua geração. Cecília fez inúmeras conferências em Universidades de Portugal, México, Índia; na Universidade de Nova Délhi foi condecorada com o título de Doutora Honoris Causa. Deixou sua marca de educadora em crônicas publicadas particularmente no Diário de Notícias. Foi editora da Página de Educação e nos seus comentários diários ela afina a linguagem a favor da causa da educação contribuindo para a mobilização de muitos intelectuais. Recebeu muitas homenagens em Portugal e o nome de Cecília Meireles foi dado a uma escola na Freguesia de Fajã de Cima, Conselho de Punta Delgada, nos Açores, terra de sua avó. Recebeu o título de Sócia Honorária do Real Gabinete Português de Literatura, Sócia Honorária do Instituto Vasco da Gama, em Goa, e Oficial da Ordem do Mérito no Chile. Recebeu o Prêmio Machado de Assis e após sua morte teve sua efígie em cédula de cem cruzados novos, lançada pelo Banco Central do Rio de Janeiro, em 1989. Em uma de suas crônicas para o suplemento literário do Diário de Notícias escreveu E o navio vai andando quase parado, como se fechasse os olhos e se deixasse conduzir, escutando, sem crer, todo aquele murmúrio-navegador que não se ilude com sereias, mas em todo caso, não desgosta de ouvir sua voz......

Considerações finais Esta breve apresentação não faz justiça aos muitos temas que Cecília Meireles desenvolveu desde a infância, juventude como estudante normalista e pouco depois como professora. Suas múltiplas facetas fazem dela um ser sensível e original, marcada por profunda sensação de deslocamento e orfandade, impregnada na melodia de sua prosa poética. Cecília se debruça sobre sua infância e escreve Olhinhos de gato. É facilmente visível quando a vida pessoal de Cecília se insere na obra literária recheada de tragicidade, constantemente retratada em seus poemas de amor perpassados pelo efêmero, pela morte, pelo eterno e pela solidão. De fato, fluem de seus escritos grande musicalidade perceptível em seus sonetos, embora ela use de técnicas literárias tradicionais para compor seus versos. Olhinhos de gato inicialmente foi publicado em Portugal, na revista Ocidente, em forma de crônicas entre os anos de 1938/1940, posteriormente foi publicado no Brasil. A obra de natureza autobiográfica é escrita sob o impacto do suicídio de seu marido Fernando Correia Dias, reconhecido e laureado artista português, radicado no Brasil. Essa obra inicial-

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mente dedicada ao público infantojuvenil revela um exercício de introspecção expondo uma escrita dolorosamente adulta. Impotente frente à depressão que levara prematuramente seu marido, a morte se faz presente em refrão repetido da primeira à última página, como registrado pela historiadora Margarida de Souza Neves (2001). Episódios narrativos rimados marcam seu romance medieval, de tradição ibérica, Romanceiro da Inconfidência (1953), um dos mais longos e belos poemas da língua portuguesa. A partir de lendas e tradições mineiras, ela narra a fatalidade que se abateu sobre os conjurados poetas e seus familiares; fatos históricos que marcaram a época dourada de Minas Gerais. Em 1930, num jogo hábil e inovador, ela emprega sons e musicalidade ao escrever Viagem, trabalho pelo qual recebe o prêmio da Academia Brasileira de Letras, que o considera a primeira obra em versos modernos. Viagem é uma obra intimista em que saudade e sofrimento fluem combinando solidão e a consciência do vazio do existir, leve e delicada combinação de sonho e melancolia, que registra sua grande capacidade lírica, como se vê no seguinte fragmento literário retirado de uma crônica do Diário de Bordo na sua despedida quando partia para Portugal: Começa o navio a afastar-se. Daqui a pouco tudo isto desaparecerá. Não se verão mais os guindastes nem as edificações do porto; as pessoas irão ficando cada vez menores, até serem apenas um ponto de cor. Se Nobrega da cunha chegasse um pouquinho mais tarde, já não o veríamos. Outros terão chegado e terão estado na multidão confundidos com ela. Dizendo-nos adeus inutilmente, sem serem vistos. Por isso, quando agitamos esse lenço até não vermos nada mais, não nos despedimos apenas daqueles que estiveram conosco, dando-nos essa emoção humana tão profunda e tão bela – e tão igual à morte – que é a separação visual daqueles que estimamos – deste lenço batido pelo vento da proa saem também palavras, que não são ouvidas, para os que não vimos no cais: para os poetas que ficaram dormindo àquela hora, para os amigos que ficaram trabalhando; até para os mortos cujos olhos vigilantes talvez estejam dentro da terra cobiçando este dom errante das embarcações.

Toda sua obra tematiza a fugacidade da vida numa mistura de intuição feminina e elementos sensoriais que auxiliam na transfiguração da realidade, de fato, uma permanente viagem. Além de poetisa, Cecília exerceu muitas outras atividades, ela foi jornalista, ilustradora, tradutora e professora deixando sua marca político-discursiva em todas elas. Seu rastro mais forte foi mesmo aquele impregnado nos escritos sobre educação, porém ela resistia a pertenci-

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mentos a escolas literárias ou a alguma tradição escolar. Em Mignot (2011, p. 61) lemos um depoimento de Cecília: “Não me preocupavam as escolas literárias senão de um ponto de vista histórico, não sei se me faço entender. Acho que todos aprendem com todos. Mas eu não gostaria de fazer discípulos, de ser chefe... não creio tanto em mim”

Desenho de Fernando Correia Dias ilustra a crônica que registra sua chegada a Lisboa.3

Referências Bibliográficas CARVALHO, Marta Chagas de. Molde nacional e forma física: higiene moral e trabalho no projeto da Associação Brasileira de Educação. (1924/1931), Bragança Paulista, Edusf, 1998. DAMASCENO, Darcy. Introdução Geral, in: Meireles Cecília, Obra Poética. Rio de Janeiro, Jose Aguilar,1958. MEIRELES, Cecília. A visita de um pedagogo notável. Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 05/09/1930. ______. Por que a escola deve ser leiga? Diário de Notícias. Rio de Janeiro, 4/03/1932, ______. Diário de Bordo, São Paulo: Global, 2015. MIGNOT, A C. V. Educadores Brasileiros: Ideias e ações que marcaram a educação nacional, uma edição especial da Revista Educação. 2011. 3

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Gravura disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Cec%C3%ADlia_Meireles#Obras. Acesso em 11 de outubro de 2016.

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NEVES, M. S.; LOBO,Y.L.; MIGNOT, A.C.V. (Orgs.) Cecília Meireles: a poética da educação. Rio de Janeiro, ed. PUC/Rio/ Loyola, 2001 PIMENTA, Jussara, S. Fora do outono as aspirações amadurecem: Cecília Meireles e a criação da biblioteca infantil do pavilhão Mourisco. Dissertação de mestrado, PUC/Rio de Janeiro/ Dep. De Educação.2001. ______. As duas margens do Atlântico: um projeto de integração entre dois povos na viagem de Cecília Meireles a Portugal (1934).). Rio de Janeiro: UERJ, 2008. (Tese de doutorado). SANCHES NETO, Miguel. Cecília Meireles e o tempo inteiriço. In:(org) SECCHIN, A.C. Cecília Meireles, Poesia Completa. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2001.v.1 TEIXEIRA, A.C. Introdução. In: MEIRELES, Cecília. Diário de Bordo, São Paulo: Global, 2015.

Sites consultados http://www.nilc.icmc.usp.br/nilc/literatura/cec.liameireles.htm (acesso em 13/10/2016) https://www.google.com.br/search?q=cecilia+meireles+principais+obras&sa=X&espv= 2&biw=1536&bih=752&tbm=isch&tbo=u&source=univ&ved=0ahUKEwi_6YfM_ dbPAhVBgpAKHYSsBTQQ7AkITQ&dpr=1.25#imgrc=4-hki_7D-5mDOM%3A . (acesso em 11/10/2016)

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A LINGUAGEM DAS RUAS – MANIFESTOS URBANOS Jefferson Serozini1 Só alusivamente a linguagem pode ser usada para tudo o que está fora do mundo dos sentidos, mas nunca comparativamente, nem mesmo de forma aproximada, uma vez que ela só trata, correspondendo ao mundo sensorial, da propriedade e de suas relações (KAFKA, 2011, p.198).

1. Introdução A linguagem é sempre tida, estritamente, como a palavra decodificada de forma escrita ou falada. No entanto, pode haver também diálogos entre objetos, lugares, paisagens, símbolos ou mesmo entre o comportamento de indivíduos, representando muito mais do que os códigos padronizados de uma língua. As ruas dialogam com a sociedade, com a realidade de seus habitantes, com a cultura das grandes ou pequenas cidades – dos bairros centrais, até os locais mais periféricos2 – e, por que não dizer, com o comportamento, as expectativas e ansiedades de seus transeuntes, os ditos “passantes momentâneos”? Há nelas����������������������������������������������������������������������� uma série de mensagens explícitas ou mesmo implícitas, ocultas, subjetivas, disponíveis aos olhos de quem esteja disposto a conversar com a metrópole. Informações que nos conectam de todos os lados, gerando essa grande teia que constrói a socialização humana. Os códigos visuais e os códigos verbais vão além de um determinado idioma, podendo ser traduzidos de diferentes formas, sobre diferentes aspectos e olhares, cada qual com seus sentidos e proposições. A linguagem das ruas transpassa o limite dos acordos alfabéticos, ortográficos e gramaticais preestabelecidos. As ruas respiram, se agitam, se modificam, se permitem ser questionadas e atualizadas constantemente, permanecem em movimento mesmo quan1

Aluno do Programa de Mestrado Profissional em Gestão e Práticas Educacionais (PROGEPE) da Universidade Nove de Julho, professor de Sociologia da rede pública do estado de São Paulo e Bacharel em Comunicação Social – Relações Públicas pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas). 2 �������������������������������������������������������������������������������������� O conceito de “periferia” aqui exposto refere-se especificamente ao espaço geográfico. Portanto, bairros periféricos são os bairros distantes da região central das grandes cidades.

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do se tornam despercebidas ou são abandonadas pelo convívio humano. Por vezes, elas podem passar muito mais informações que uma dissertação de duzentas páginas, escrita com todo cuidado e requinte. Emaranhados de folhas, repletas de códigos linguísticos, nem sempre serão superiores ou equivalentes aos olhos de quem observa seus movimentos, de quem convive com o cenário social e a arquitetura intersticial3 da anatomia urbana. Há muito, as ruas estabeleceram sua forma de se comunicar e é preciso saber traduzir essas informações, aprender a ler, a ver e a ouvir o que as elas têm a dizer.

2. A linguagem e os labirintos da comunicação A necessidade da criação de padrões de comunicação e transmissão de informações e conhecimentos – gerada pelo processo de socialização – resultou no surgimento da linguagem como um meio que permite ao ser humano expressar suas intenções e interagir tanto com seus semelhantes, quanto com o local e o contexto aos quais está inserido. Bakhtin (2014, p.36) define a palavra como um “fenômeno ideológico por excelência”, sendo “o modo mais puro e sensível de relação social”. Além disso, o autor acredita que “originalmente, a palavra deve ter nascido e se desenvolvido no curso do processo de socialização dos indivíduos, para ser, em seguida, integrada ao organismo individual e tornar-se fala interior” (BAKHTIN, 2014, p.65). A palavra em si, nada mais é que do uma representação de expressões do pensamento que tentam se aproximar o máximo possível daquilo que se deseja compartilhar. A relação entre o pensamento e a palavra é um processo vivo; o pensamento nasce através das palavras. Uma palavra desprovida de pensamento é uma coisa morta, e um pensamento não expresso por palavras permanece uma sombra. A relação entre eles não é, no entanto, algo já formado e constante; surge ao longo do desenvolvimento e também se modifica (VIGOTSKI, 2008, p.189-190)

Como diriam os pré-socráticos: “tudo é linguagem”, ainda mais numa época voltada para o sentido e a significação de todas as coisas e fatos que nos rodeiam. Os sinais linguísticos só adquirem sua significação com base no produto das ideias, na estrutura do pensamento humano. Como diria Saes

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Interstício: fenda, espaço, intervalo. Na anatomia humana o termo é aplicado para expressar o espaço que separa dois órgãos.

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[...] entender a palavra implica conceber, pela ideia que lhe foi associada, o que ela significa: entendo a palavra “árvore” pela ideia que tenho de árvore. As palavras significam coisas por meio das ideias. [...] Sob essa ótica, se não existissem pensamentos a serem expressos, não seria necessária a linguagem. Por outro lado, sem a linguagem, seria impossível exteriorizar os pensamentos. (SAES, 2013, p.34)

Além disso, há também uma série de representações que não estão interligadas a objetos físicos e/ou materiais. Nesse grupo encontramos palavras que representam o impalpável, como é o caso dos sentimentos, das sensações, que são incorporados por um compilado de reações que tornam possível sua compreensão. Ao exemplo citado por Bauman, Os medos nos estimulam a assumir uma ação defensiva. Quando isso ocorre, a ação defensiva confere proximidade e tangibilidade ao medo. São nossas respostas que reclassificam as premonições sombrias como realidade diária, dando corpo à palavra. (BAUMAN, 2007, p.15)

Bakhtin (2014, p.67) já dizia que “a palavra revela-se, no momento de sua expressão, como produto da interação viva das forças sociais”, ou seja, as ideologias por trás das palavras são traduzidas e interpretadas por uma construção social estabelecida em forma de regras convencionais que resultam na dialética. A língua existe não por si mesma, mas somente em conjunção com a estrutura individual de uma enunciação concreta. É apenas através da enunciação que a língua toma contato com a comunicação, imbui-se do seu poder vital e torna-se uma realidade. As condições da comunicação verbal, suas formas e seus métodos de diferenciação são determinados pelas condições sociais e econômicas da época (BAKHTIN, 2014, p.160)

Bakhtin acredita na possibilidade de verbalização dos pensamentos, das experiências interiores, mas não em sua totalidade. Ainda que os signos sejam padronizados, os sinais sejam convencionados ou os idiomas sejam construídos com bases estruturais semelhantes, haverá sempre algo que poderá não ser traduzido ou representado em sua totalidade ou alcançando sua completude. A exemplo disso, temos o clássico uso da palavra “saudade”, presente na língua portuguesa e ausente em tantas outras por não se encontrar expressão equivalente para a tradução, sendo a representação desse sentimento substituída por outros conceitos e expressões. Na antiguidade, Platão já abordava as

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questões que envolviam a essência dos significados. Em suas palavras, o filósofo destaca que As coisas não são semelhantes ao mesmo tempo para todos; também não são relativas para cada pessoa em particular o tempo todo. Portanto as coisas são em si de essência permanente e não estão em relação conosco, pois existem por si mesmas de acordo com a sua essência natural. (PLATÃO, 2011, p181).

Tais colocações reforçam a ideia da palavra como representação simbólica de diferentes convívios e experiências vividas que resultam da interação e convenção social. Ainda sob a ótica da filosofia, Saes descreve a visão aristotélica sobre a significação das coisas ao apontar que Segundo Aristóteles, é impossível que um mesmo atributo ao mesmo tempo pertença e não pertença à mesma coisa sob o mesmo aspecto, do mesmo modo que é impossível acreditar que uma mesma coisa possa, ao mesmo tempo, ser e não ser. [...] Só podemos pensar o ser se não violarmos o princípio da não contradição, pois ele é a condição fundamental do ser e da linguagem que diz ser. (SAES, 2013, p.23)

Para evitar as contradições é que se estabelecem algumas regras dentro da linguagem, ainda que isso não elimine a possibilidade das contradições por completo – em se tratando de um discurso mal elaborado –, mas facilite o caminho para uma homogeneidade das interpretações. No campo da psicologia, Vigotski (2008) retrata as questões do pensamento dirigido como algo social, de forma que, “à medida que se desenvolve, vai sendo cada vez mais influenciado pelas leis da experiência e da lógica propriamente dita”4. Isso se deve aos processos de socialização e formalização da comunicação social. Por conseguinte, Humboldt, nas palavras de Faraco (2002, p.111) afirma que a língua é “um processo, uma atividade (energia) e não um produto (ergon)”, sendo assim, não é algo que representa apenas o que vem depois do pensamento, mas sim, uma unidade conjunta ao mesmo, o quê o torna possível. Preliminarmente, portanto, separando os fenômenos ideológicos da consciência individual nós os ligamos às condições e às formas de comunicação social. A existência do signo nada mais é do que a materialização 4

Vigotski, 2008, p.14

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dessa comunicação. É nisso que consiste a natureza de todos os signos ideológicos. [...] Esse tipo de comunicação é extraordinariamente rica e importante. Por um lado, ela está diretamente vinculada aos processos de produção e, por outro lado, diz respeito às esferas das diversas ideologias especializadas e formalizadas (BAKHTIN, 2014, p.36-37)

O desenvolvimento da fala e do intelecto, segundo a psicologia, não resulta de uma sequência de meros estágios em continuação um do outro, eles caminham por linhas diferentes. O educador brasileiro Paulo Freire (2015) também fazia alusão à presença consciente do ser humano no mundo, destacando-o não como um ser determinado, que não dispõe da possibilidade de mudanças, mas sim como um ser condicionado pelo meio, que se encontra em constante movimento e não pode fugir à sua responsabilidade de interagir e evoluir com tudo aquilo que lhe é socializável. A lógica da língua não é absolutamente a da repetição de formas identificadas a uma norma, mas sim uma renovação constante, a individualização das formas em enunciações estilisticamente únicas e não reiteráveis. A realidade da língua constitui também sua evolução5 (BAKHTIN, 2014, p.84)

Antigamente, segundo Fischer (2015, p.35), a experiência da linguagem era vista sob a mesma ótica do conhecimento da natureza. Sendo as palavras uma tradução do que era perceptível ao olhar humano, “a linguagem era vista (em geral) como uma assimilação imposta às coisas”. Ainda sob o cerne da psicologia humana, destacamos a visão de Vigotski ao concluir que A natureza do próprio desenvolvimento se transforma6, do biológico para o sócio-histórico. O pensamento verbal não é uma forma de comportamento natural e inata, mas é determinado por um processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais do pensamento e fala. [...] O problema do pensamento e da linguagem estende-se, portanto, para além dos limites da ciência natural e torna-se o problema central da psicologia humana histórica, isto é, da psicologia social. (VIGOTSKI, 2008, p.63)

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Grafia utilizada no texto original. Grafia utilizada no texto original.

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É nesse contexto que se estabelece a comunicação social. Nas palavras de Agostinho (2002, p.86), “[...] são os sinais convencionais de que todos os seres vivos mutuamente se trocam para manifestar – na medida do possível – os movimentos de sua alma”. Agostinho entende por alma, não só a condição de espírito, mas também o espectro interno que representa os pensamentos e as sensações, ou seja, a real necessidade de dar significado ao que se sente e ao que se pensa, de forma que se possa compartilhar com o mundo exterior as mais variadas indagações, personificando e identificando os desejos humanos por meio se signos e/ou sinais. Ainda nas palavras do autor, Sinal é aquilo que, para além da impressão que produz nos sentidos, faz vir algo diferente de si ao pensamento. [...] Entre os sinais, alguns são naturais; outros, convencionais. Naturais são aqueles que, sem envolver vontade nem nenhum desejo de significar, dão a conhecer algo diferente deles mesmos, como é o caso da fumaça, que significa o fogo (AGOSTINHO, 2002, p.86)

A função da comunicação – no entorno das expressões de linguagem e do pensamento – é integrar os seres e o meio, não apenas adaptá-los. Como diria ���������������������������������������������������������������������� Cortella (2015a, p.21) “não somos um animal de adaptação, mas de integração. Quando alguém se adapta a uma situação é por ela absorvido. Quando alguém se integra, passa a fazer parte”. A capacidade de integração, movimentação e evolução com o meio, faz com que as coisas, as pessoas, os lugares e claro, a própria linguagem, estejam sempre em constante evolução, uma mutação informativa dos moldes de comunicação, dignos da pluralidade humana, como retrata Couto: O que advogo é um homem plural, munido de um idioma plural. Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo. De um lado um idioma que nos crie raiz e lugar. Do outro, um idioma que nos faça ser asa e viagem. Ao lado de uma língua que nos faça ser humanidade, deve existir uma outra que nos eleve à condição de divindade. (COUTO, 2011, p.24)

Nas palavras de Lauriti, Este homem plural [...], só se torna possível na esfera do inter-humano, isto é, no tempo-espaço do encontro dialógico. O discurso materializado pela palavra vai muito além da subjetividade de um logos enunciador,

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porque em razão de seu vínculo concreto com a práxis torna-se palavra-mundo e tem o poder de recriá-lo para transformá-lo. (LAURITI, 2016, p.157)

Freire (2015) já nos falava sobre a curiosidade humana que é construída e reconstruída ao longo da história da sociedade por meio de representações da experiência de vida de um indivíduo. A essa manifestação se deve o surgimento de práticas educacionais que têm como propósito desenvolver a criticidade e estimular a manutenção constante de uma curiosidade insaciável e indócil pelo saber. Isso faz do homem um ser comunicável e, dentro do seu emaranhado comunicacional, ele encontra novas formas de interação com os seres que convive e com os espaços que habita. Não se faz comunicação sem integração, sem socializar o que se sabe, portanto, comunicar ou se expressar, como preferir, não pode e não será visto como um ato singular, mas uma parceria (do homem plural). Como diria Freire (2015, p.38) “não há por isso mesmo pensar sem entendimento, e o entendimento, do ponto de vista do pensar certo, não é transferido, mas coparticipado”.

3. O diálogo oculto dos cenários urbanos A linguagem pode ser encontrada em múltiplos formatos, nas mais variadas representações que permitem ao ser social compartilhar informações, coletar dados, relatar experiências, compreender referências históricas, tudo isso por meio da mera observação dos espaços, suas características e suas identidades. Nas palavras de Saes (2013, p.9), “não somente falas, escritas e gestos; nem somente teorias, teoremas, códigos e todas as espécies de sinais, mas também os objetos, indicam, comunicam, representam, simbolizam, expressam, significam algo para nós”. Como já se sabe, a linguagem é um dos resultados da interação social e esta se d������������������������������������������������������������������� á������������������������������������������������������������������ por meio do homem real, representado pelo ser socializado que estabelece contato e convívio com outros seres e com o meio (contexto) ao qual está inserido. Por isso mesmo Jean Jacques Rousseau (1995, p.309) afirma que “é preciso estudar a sociedade pelos homens, e os homens pela sociedade; quem quiser tratar separadamente a política e a moral nada entenderá de nenhuma delas”. O renomado autor faz referência ao comportamento social e à composição e estrutura de uma sociedade, considerando-se não apenas as pessoas, mas o ambiente e as formas de integração com o meio. Na obra “Emílio ou da educação” o pensador nos fala de um protagonista (homônimo ao título) que “não é um selvagem a ser relegado aos desertos, é um selvagem feito para morar nas cidades. É preciso que saiba encontrar nelas o necessário, tirar partido

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dos habitantes e viver, senão como eles, pelo menos com eles” (1995, p.265). Sendo assim, fica clara a necessidade de se aprimorar o olhar social para a observação dos espaços urbanos e suas sutis integrações com os seres. Nas palavras de Streck, Rousseau destaca a leitura de pessoas como bom ponto de partida para o estudo da história, porque é ali que melhor se revela o coração humano. O estudo meramente especulativo e o estudo utilitarista partilham o mesmo pecado: não ajudam a compreender e viver o presente real. (STRECK, 2008, p. 43)

Observar o comportamento das pessoas, seus posicionamentos, suas atitudes é algo primordial para compreender o presente atual. O que hoje somos é reflexo de um espaço-tempo vivenciado por antepassados, e todo esse conjunto de informações que se herdam é o que permitirá estabelecer uma projeção de futuro. Assim como defende Wittgestein (1968) é preciso compreender as relações entre a linguagem e o mundo. As cidades contemporâneas são, por esse motivo, os estágios ou campos de batalha em que os poderes globais e os significados e identidades teimosamente locais se encontram, se chocam, lutam e buscam um acordo satisfatório, ou apenas tolerável – um modo de convivência que, se espera, seja uma paz duradoura, mas que a regra mostra ser apenas um armistício; breves intervalos para consertar defesas rompidas e redistribuir unidades de combate. É esse confronto, e não qualquer fator isolado, que põe em movimento e orienta a dinâmica da cidade “líquido-moderna”. (BAUMAN, 2007, p. 87)

Os espaços urbanos contam mais histórias do que se pode imaginar. Ruas cheias, vielas escuras, casas abandonadas, escadarias coloridas, prédios pichados, grafites nos muros, trânsito parado, tudo isso é capaz de representar o clima de um determinado local, indicar se há um espaço de tranquilidade e lazer, ou mesmo se há certa tensão e preocupação no ar. Além disso, as obras arquitetônicas, especificamente, também reúnem uma série de informações que podem ser traduzidas para caracterizar a identidade econômica e cultural de determinada região. Muitos lugares apresentam mais ou menos a mesma estrutura e, por vezes, são realmente construídos com base em projetos similares. Todavia, ainda que os espaços sejam tão semelhantes, há em cada um deles um diálogo e um código visual singular que representam suas particularidades.

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Com efeito, é só no etéreo mundo da teoria que se pode traçar com facilidade a linha divisória entre o espaço abstrato, “alres em nenhures”, dos operadores globais e o espaço-ao-alcance concreto e tangível, eminentemente “aqui e agora”, dos “habitantes locais”. As realidades da vida urbana certamente destroem essas divisões nítidas. Traçar fronteiras no espaço vivido é uma questão de disputa contínua [...]. Todos os traçados dessa linha são provisórios e temporários, sob ameaça de serem refeitos ou anulados, e por isso fornecem um escoadouro natural para o amplo espectro das ansiedades (BAUMAN, 2007, p. 85).

O diálogo sociocultural é o que caracteriza a identidade de determinado lugar e essa expressão da linguagem urbana é encontrada em cada metro de rua pelo qual se possa transitar. Espaços públicos como ruas, parques e avenidas, promovem e permitem uma integração do cidadão com o cenário que o rodeia. Claro que a rotina maçante acaba neutralizando o olhar mais apurado diante das sutis informações presentes em cada canto frequentado pelos seus habitantes. Entretanto, uma simples viagem, uma quebra de hábitos, permite o desenvolvimento de um olhar mais criterioso e crítico sobre todas as informa����������������������������������������������������������������� ções expostas���������������������������������������������������� entre os fragmentos da cidade. Mesmo dentro do cronograma mais repetitivo e da rotina mais cansativa é possível encontrar novas informações, novas linguagens e novas formas de comunicação com o meio. Como salienta Cortella, O hábito pode funcionar de um lado como algo que nos dá alguma perícia, alguma habilidade por conta da prática, mas também pode nos imobilizar. E hábitos são difíceis mesmo de largar. [...] Hábitos são formas fundas de ancorar. (CORTELLA, 2015b, p. 105)

Todo mundo�������������������������������������������������������� têm um conhecimento prévio para descrever�������������� de formas variadas – e com base em diversos fatores – o local onde reside, o trajeto diário para o trabalho, as áreas mais bacanas e as mais perigosas da sua cidade, ou mesmo os locais que frequenta ou gostaria de frequentar e as razões que os motivam. Todavia, nem todas as informações lhe são dadas por meio de textos escritos em placas, tampouco em meros discursos narrativos. Muito do que se sabe sobre a vida de um cidadão é baseado na sua experiência de integração com a sociedade, mas também com os espaços que frequenta no seu dia a dia.

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Todos os formatos e modelos de socialização auxiliam na tradução e composição da identidade humana. Escrever é traduzir. E sempre o será. Mesmo quando estivermos a utilizar a nossa própria língua. Transportamos o que vemos e o que sentimos (supondo que ver e sentir, como em geral os entendemos, sejam algo mais do que palavras com que nos vem sendo relativamente possível expressar o visto e o sentido). (SARAMAGO, 1999, p.320)

Sartre também faz alguns apontamentos que nos ajudam a compreender melhor a função dessa tradução das expressões em palavras. De acordo com o filósofo, a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele. E uma vez engajado no universo da linguagem, não pode nunca mais fingir que não sabe falar: quem entra no universo dos significados, não consegue mais sair; (...) calar-se não é ficar mudo, é recusar-se a falar – logo, ainda é falar. (SARTRE, 2004, p.21 e 22).

O mobiliário urbano encontrado em uma simples caminhada pelas ruas da cidade revela contextos sociais que se tornam quase invisíveis. Os bancos dos parques e praças, por exemplo. Alguns são feitos com as tradicionais “tiras de madeira” para indagar uma proximidade com paisagens do passado; outros, feitos com materiais recicláveis, já nos levam à reflexão sobre os cuidados que se deve ter em relação à preservação do meio ambiente. Já os modelos mais sofisticados, com design elaborado, reforçam uma necessidade de expor o poder de refinamento e modernização do ambiente, um espaço antenado, quase futurístico; e, por fim, os bancos de concreto, comuns em regiões abertas e não vigiadas, construídos para resistirem ao desgaste do tempo, ao vandalismo, ou mesmo para servir como local de descanso para os desabrigados. Tudo isso diz muito sobre em qual região da cidade se está e quem é o público-alvo que ali frequenta, em sua maioria. Ainda dentro do cenário urbano, encontramos em alguns lugares viadutos que são preenchidos com paralelepípedos de concreto posicionados para impedir que a população de rua se “hospede” e faça daquele espaço sua moradia. Parece banal, mas essa simples informação traduz a forma como a cidade lida com seus problemas sociais, a relação dos governos e instituições políticas com a população menos favorecida.

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É difícil (e no limite degradante) preocupar-se com ameaças que não se pode nomear e muito menos enfrentar. As fontes da insegurança estão ocultas e não aparecem nos mapas, de modo que não podemos situá-las com precisão. Mas as ameaças, essas substâncias estranhas que botamos na boca, ou os estranhos que passam, sem ser convidados, pelas ruas conhecidas por onde andamos, são bem visíveis. Estão todos, por assim dizer, ao nosso alcance, e assim podemos pensar que podemos afastá-los ou “desintoxicar-nos” (BAUMAN, 2003, p.130)

Em algumas cidades do continente europeu, o medo da violência e do terrorismo se tornou tão grande que alterou a dinâmica da paisagem urbana de algumas capitais, transformando os espaços públicos em um imenso “Big Brother7” onde todos são constantemente vigiados por câmeras de segurança espalhadas em postes e balaústres que não mais dialogam com o cenário estético, até então planejado por uma arquitetura harmoniosa. Além do que, a simples presença de tantos artefatos de vigilância pode repassar uma (falsa) sensação de segurança (pelo alto teor de vigilância), e também instigar o medo (locais identificados como alvos de violência). De qualquer forma, um simples objeto a mais ou a menos basta para uma alteração do espaço e do comportamento daqueles que o frequentam. No Brasil – assim como em outros países também, é claro –, é muito comum que cidades turísticas modifiquem o mobiliário urbano para reforçar a divulgação das características daquela região, reforçando a manutenção de suas identidades culturais. Na cidade de Blumenau, localizada no estado de Santa Catarina, por exemplo, a maioria dos prédios mantém uma fachada de arquitetura que lembra antigos chalés encontrados na Alemanha, tudo para reforçar a forte presença de imigrantes alemães que ajudaram a construir a cidade. Além disso, há telefones públicos em forma de chapéu alemão, comuns na região central (e turística) da cidade. Outro endereço que promove seus atributos culturais através do mobiliário urbano é a cidade de Itu, no interior do estado de São Paulo. Conhecida como a “cidade dos exageros”, onde tudo é maior do que em outros lugares, é comum encontrar pelos espaços públicos e privados da cidade uma série de objetos em tamanhos muito acima do que seria normal, adequado, com o intuito de chamar a atenção e despertar o interesse dos turistas que estão de passagem pela cidade. Ali há também um modelo de “orelhão” – telefone público – representado por uma cabine em forma de orelha gigante, assim como, o mesmo telefone urbano, numa dimensão dez vezes maior, como mero item de decoração em uma praça.

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Famoso reality show (programa de realidade) conhecido por vigiar pessoas 24h por dia.

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Não só os objetos decorativos, inseridos com o propósito de atrair a atenção dos turistas, podem se tornar símbolos de famosos lugares. Esse é o caso, por exemplo, da pavimentação das calçadas de Copacabana, no Rio de Janeiro. As curvas em preto e branco impressas nas calçadas da orla servem como ícone que representa a identidade das praias cariocas. O mesmo aconteceu durante alguns anos na cidade de São Paulo8, onde as calçadas haviam sido pavimentadas também em preto e branco, com desenhos geográficos que faziam alusão ao mapa do estado de São Paulo. Ferry, ao fazer uma análise sobre a necessidade convencional da busca pelo “novo”, expressa o seguinte: Não sou pessimista quanto ao tempo presente, nem quanto ao futuro. Penso simplesmente, que houve na arte bem como na filosofia uma espécie de terrorismo da desconstrução [...]. Mas tudo isso passou, e eu acredito que o segundo humanismo tem agora seus artistas e romancistas geniais que dão forma e dimensões até então ocultadas do nosso conhecimento, da qual descobrimos a beleza e o sentido que contribuem para a representação de nossas vidas (FERRY, 2015, p.111).

Em cidades interioranas, longe dos modernos e badalados centros urbanos, é comum que se preserve uma arquitetura mais convencional, que ajude a contar a história daquela cidade, suas raízes e tradições. Assim como, em alguns lugares, encontram-se prédios e instalações, às vezes abandonados, às vezes conservados e transformados em espaços de visitação, que nem sempre trazem boas lembranças do passado. Na cidade litorânea de Santos, em algumas praias é possível encontrar ainda a estrutura de prédios ������������������� à������������������ beira-mar, utilizados para prender e castigar (quando não matar) escravos durante o período de colonização. Há também espaços preservados e transformados em museus, como é o caso do Museu da Resistência, em SP, que era uma unidade prisional para os cidadãos que resistiam aos desmandos autoritários do período de ditadura militar no Brasil. Esses lugares já não são mais utilizados para os mesmos propósitos, mas permanecem existindo para mostrar que a cidade possui suas cicatrizes e que a história não será esquecida. Assim entendemos a complexidade da linguagem, da comunicação presente até mesmo em atos de silêncio de uma sociedade. “Em cada uma das duas linguagens em que aparece, a das elites globais e a dos deixados para trás, a noção de ‘comunidade’ cor-

8 ���������������������������������������������������������������������������������� Esse modelo de pavimentação era comum de ser encontrado nas ruas da cidade, principalmente nas regiões centrais, na década de 90, mas a necessidade de restauração e reforma dos espaços, acabou resultando em mudanças que substituíram os clássicos formatos dos mapas, por outros modelos de calçada.

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responde a experiências inteiramente diferentes e a aspirações contrastantes” (BAUMAN, 2003, p.60). Você pode pensar em Nova Iorque ao visualizar ruas cheias de propagandas ou mesmo na imagem dos famosos táxis amarelos; na capital dos Estados Unidos, Washington, representada pelo monumento de um obelisco; na capital inglesa, Londres, pela presença de uma cabine telefônica vermelha; na cidade de Salvador pela presença de mulheres vestindo longas saias brancas rodadas ou por bancas de Acarajé; nas monumentais pirâmides que representam o Egito; na torre Eiffel, símbolo de Paris; no Coliseu, localizado no coração de Roma; e até mesmo na história e no surgimento dos primeiros jogos olímpicos, representados em antigas estruturas e cenários das paisagens gregas. Como diria o célebre ditado “uma imagem vale mais que mil palavras” e, nesse caso, vale complementar dizendo também que “uma palavra pode carregar a representação de mil imagens”, ou você realmente não pensou em várias outras paisagens enquanto imaginava cada uma das cidades citadas acima? Sob as palavras de Bakhtin, Os signos só emergem, decididamente, do processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, consequentemente, somente no processo de interação social (BAKHTIN, 2014, p.34)

4. Paulista: a avenida de todas as tribos Já ficou claro que as ruas da cidade são capazes de dialogar com seus habitantes e que a comunicação nem sempre se restringe apenas ao uso da palavra escrita. Há fala nos sons e também nos silêncios das informações. Como diria Fernando Pessoa, Há metáforas que são mais reais do que a gente que vive na rua. Há imagens nos recantos de livros que vivem mais nitidamente que muito homem e muita mulher. Há frases literárias que têm uma individualidade absolutamente humana. Passos de parágrafos meus há que me arrefecem de pavor, tão nitidamente gente eu os sinto, tão recortados de encontro aos muros do meu quarto, na noite, na sombra (...). Tenho escrito frases cujo som, lidas alto ou baixo – impossível ocultar-lhes o som – é absolutamente de uma coisa que ganhou exterioridade absoluta e alma inteiramente (PESSOA, 2011, p.159).

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No livro “Educação e Cultura Literária9”, publicado em fevereiro de 2016, há um capítulo que contextualiza um projeto fotográfico batizado como “as ruas falam” que trata do registro de intervenções artísticas e políticas realizadas no ambiente urbano por pessoas anônimas. Esse é só mais um exemplo dentre tantas formas de comunicação presentes em espaços públicos da cidade. Entretanto, vamos fazer um recorte mais específico, retratando a avenida mais paulista de todas as avenidas do Brasil. A Avenida Paulista, localizada na região central da cidade de São Paulo, é um grande palco que recepciona diariamente manifestos urbanos em suas mais variadas proposições. Casa de todas as tribos, a avenida é conhecida por receber pessoas de diversos estilos e níveis culturais, sociais, econômicos, étnicoraciais, educacionais, etc.. Além de dar voz e visibilidade para grandes atos e encontros com teores políticos, a avenida também se abre10 para receber os grandes eventos da cidade e vários tipos de intervenções artísticas e culturais – espalhadas por suas calçadas – que podem ser encontrados em qualquer dia da semana e em diferentes horários. Com um cenário como esse, a Avenida Paulista representa um belo recorte dos diálogos entre a população e a “terra da garoa”, onde o “normal” é a excentricidade de um espaço marcado pela presença de uma ampla pluralidade de informações que só uma cidade cosmopolita como São Paulo poderia oferecer. “Normalidade” é um nome ideologicamente forjado para designar a maioria. Que mais significa ser “normal” além de pertencer à maioria estatística? E que mais significa ‘anormalidade’ senão pertencer a uma minoria estatística? Falo das maiorias e minorias porque a ideia de normalidade presume que algumas unidades de um agregado não se ajustam à “norma”; (BAUMAN, 2013, p.70).

Apesar de estar localizada longe da periferia da cidade de São Paulo, a Paulista tornou-se o ponto de encontro de muitos grupos de jovens que buscam aventura, diversão ou apenas um espaço para confraternizar, praticar atividades esportivas (aos domingos), vivenciar um pouco do que a selva de pedra tem de melhor entre suas paredes cinzentas. As “tribos urbanas” se misturam de 9 10

SEROZINI, Jefferson. Literatura marginal e o projeto “as ruas falam”: expressões e desabafos de anônimos urbanos. In: BAPTISTA, Ana Maria Haddad; SILVA, Mauricio (org.). Educação e Cultura Literária. São Paulo: BT Acadêmica, 2016. 167-181p. Aos domingos a Avenida Paulista fica aberta somente para os pedestres das 8h às 18h, sendo proibido o trânsito de carros nesse período.

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tal forma que os sons, as cores e até as novas palavras, acabam se incorporando ao conceito de linguagem urbana. Pessoas que se comunicam visualmente por meio de roupas, penteados e acessórios, ou mesmo pela verbalização de novas gírias, específicas e comuns aos seus grupos, carregadas muitas vezes de doses de humor, ironia e tantos outros significados, que os desavisados não saberão “traduzir” em um conceito. A rua, nesse contexto, ganha corpo por ser uma propriedade comum entre todos. A paisagem perfeita do que seria um cenário democrático, comportando a diversidade humana sem restrições. A Paulista é uma avenida que durante os dias de semana, em horários comerciais, se comporta como o centro empresarial e financeiro que ela representa para as referências econômicas da cidade e do país. Aos domingos, contudo, se transforma em um espaço de lazer que não tem outro propósito senão o de oferecer diversão ao seu fiel público. Skate, patins ou bicicleta circulando pelas faixas da ciclovia – instalada recentemente no canteiro central – são objetos que alteram o cenário de máquinas automotivas e imprimem uma nova forma de interação com o espaço urbano. Freire (2014, p.94) já nos dizia que “é no diálogo que nos opomos ao antidiálogo tão entranhado em nossa formação histórico cultural, tão presente e, ao mesmo tempo, tão antagônico ao clima de transição”. É nesse transitar pela cidade, de uma forma diferente, que podemos abraçá-la à nossa maneira e, também, sentir a retribuição desse abraço entre os espaços e estruturas que nos rodeiam. Como descreve Bauman (2003, p.60) “em cada uma das duas linguagens em que aparece, a das elites globais e a dos deixados para trás, a noção de ‘comunidade’ corresponde a experiências inteiramente diferentes e a aspirações contrastantes”. Os grandes prédios comerciais localizados ao longo da Avenida Paulista representam um código visual que vai ao encontro da fama de “capital financeira” e de “coração da economia”. Há também uma grande quantidade de bancos, o que deixa claro o contingente financeiro da região, além de unidades do Banco Central e das principais instituições internacionais (embaixadas, bancos de outros países, etc.). A linguagem do poder fica estampada e contrapõe a realidade das ruas e avenidas das regiões periféricas da cidade. Inclusive, a imagem elitizada que se faz desse espaço abre parâmetros para pensar que Em nenhum momento dos últimos dois séculos mais ou menos, as linguagens faladas respectivamente pelas elites instruídas e abastadas e pelo resto do “povo”, assim como as experiências relatadas nessas linguagens, foram tão diferentes entre si (BAUMAN, 2005, p.103).

Uma das maiores obras arquitetônicas da avenida é o prédio do MASP – Museu de Arte de São Paulo – que tem em seu projeto estético uma identidade

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única, marcada por um código visual que simboliza e representa tanto as belezas da cidade, quanto a imponência da modernidade e da inovação de uma grande cidade. Além disso, o museu é também um espaço para fomentação da arte e da cultura, além de estar disponível para reuniões e encontros casuais em sua área aberta11. Outro exemplo icônico é o prédio da FIESP, que recentemente se tornou símbolo dos protestos político-econômicos por estampar a bandeira do Brasil em sua fachada. A simples imagem da bandeira do país foi suficiente para concentrar em seu entorno os principais debates e diálogos sobre essas questões nos últimos tempos, assim como, reacendeu também as alusões ao patriotismo, que estava adormecido. Palco dos principais protestos que ocorrem na cidade de São Paulo – e na maioria das vezes estão em destaque por todo o país – a Avenida Paulista acolhe todos os tipos de linguagem para os mais esfuziantes diálogos (nem sempre civilizados). Passeatas, gritos de ordem, cartazes, discursos, sons, músicas, movimentações ou coreografias padronizadas, são alguns exemplos que encontramos na forma como a população se comunica e transmite o que pensa em suas manifestações. Movimentos sociais dos mais diferentes setores, o levante da bandeira que busca a conquista de direitos, reconhecimento e proteção das minorias, a luta dos trabalhadores, o combate à violência ou os pedidos de paz, todos são falas que ecoam e marcham pela Avenida. A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de base da língua, trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um “horizonte social”. Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem-definido (BAKHTIN, 2014, p.16)

Antigamente, as falas de uma manifestação eram pautadas por palavras de ordem e cartazes. Hoje em dia essa linguagem foi aprimorada e a seriedade intocável dos termos deu espaço ao uso do humor, da ironia e do sarcasmo, muitas vezes em roupagens amplamente sagazes e inteligentes, que fazem com que o problema ainda seja discutido na língua dos jovens.

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Vão do MASP – Espaço localizado abaixo da construção do prédio, que é suspendido por colunas de concreto. Reúne diversas tribos que usam o espaço como ambiente de socialização. É também palco de show, eventos culturais, exposições e feiras de artesanato, assim como, ponto de encontro para protestos e manifestações políticas.

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Há, na ironia, uma pretensão insuportável: a de pertencer a uma raça superior e ser a propriedade dos mestres (...). O humor se reclama, ao contrário, de uma minoria, de um devir-minoritário: é ele quem faz uma língua gaguejar, que lhe impõe um uso menor ou constitui todo um bilinguismo na mesma língua. E, justamente, nunca se trata de jogos de palavras (...), mas de acontecimentos de linguagem, uma linguagem minoritária tornada ela própria criadora de acontecimentos (DELEUZE; PARNET; 1998, p. 56).

Não só as falas verbalizadas, mas os comportamentos humanos nos transmitem esses “novos” modelos de comunicação. Protestos em que não há uma marcha, mas sim pessoas sentadas no chão lado a lado, em que não há gritos de ordem, mas sim o silêncio, acabam trazendo uma nova roupagem para a manifestação, um novo diálogo que, às vezes, comunica e representa de forma muito mais contundente a intensidade da revolta ou a da dor dos que clamam contra injustiças. Nem todos os protestos terminam de forma pacífica, nem todos os manifestos se constroem sob essa intenção. Mas a rua sempre estará lá, aberta, disponível como um canal de comunicação. Como diria Bakhtin (2014, p.17), a língua, assim como a linguagem é uma “expressão das relações e lutas sociais, veiculando e sofrendo o efeito desta luta, servindo, ao mesmo tempo, de instrumento e de material”. As intervenções sociais espalhadas por todo o espaço urbano, também fazem parte das paisagens que compõem a Avenida Paulista. Desde as calçadas, até o asfalto das ruas, passando pelos muros dos prédios públicos e privados – tão bem vigiados por câmeras e seguranças – tudo é passível de intervenção. Algumas com teor artístico e cultural mais apurado, sendo traduzidas em forma de desenhos, frases, cartazes, poemas; outras mais agressivas e depreciativas à composição das paisagens, como pichações e depredações do mobiliário urbano. Não importa a forma, o palco é o mesmo para a pronúncia de todas as vozes que anseiam ser ouvidas. Nas palavras de Bakhtin, Toda crítica viva pode tornar-se elogio, toda verdade viva não pode deixar de parecer para alguns a maior das mentiras. Esta dialética interna do signo não se revela inteiramente a não ser nas épocas de crise social e de comoção revolucionária. Nas condições habituais da vida social, esta contradição oculta em todo signo ideológico não se mostra à descoberta porque, na ideologia dominante estabelecida, o signo ideológico é sempre um pouco reacionário e tenta, por assim dizer, estabilizar o estágio anterior da corrente dialética da evolução social e valorizar a verdade de ontem como sendo válida hoje em dia. (BAKHTIN, 2014, p.48)

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Ainda pensando na questão dos manifestos urbanos, Bakhtin (2014) nos contempla com sua análise sobre a linguagem como resultado de um diálogo social. Como descreve o autor, A enunciação, compreendida como uma réplica do diálogo social, é a unidade de base da língua, trata-se de discurso interior (diálogo consigo mesmo) ou exterior. Ela é de natureza social, portanto ideológica. Ela não existe fora de um contexto social, já que cada locutor tem um “horizonte social”. Há sempre um interlocutor, ao menos potencial. O locutor pensa e se exprime para um auditório social bem-definido (BAKHTIN, 2014, p.16)

5. Considerações Finais A linguagem das ruas e os manifestos urbanos são representações que caracterizam e confirmam as constantes evoluções da língua e das variadas formas de representação da linguagem. A comunicação e o diálogo social nos permitem compreender o surgimento de novas expressões, ainda que integrem um discurso informal por meio da fala coloquial, assim como estão sujeitos ao surgimento de novos formatos, “novas gírias”, de acordo com a época ou espaço-tempo que esteja sendo vivenciado. Com isso, é possível concluir que: a linguagem é a ação. E como toda ação, a linguagem permanece em constante movimento, não sendo algo imutável ou congelada no tempo. A compreensão e a interpretação ainda estão suscetíveis ao campo da subjetividade, mas não são excluídas dos resultados e das convenções da interação social. O ser humano evolui, a sociedade evolui, o pensamento evolui, portanto, a linguagem não poderia ficar de fora do campo das oportunidades. Como diria Bauman (2005, p.59-60), “uma identidade coesa, firmemente fixada e solidamente construída seria um fardo, uma repressão, uma limitação da liberdade de escolha. Seria um presságio da incapacidade de destravar a porta quando a nova oportunidade estiver batendo”. As ruas são os palcos para todos os manifestos, para todas as falas, todos os discursos. Elas representam, simbolizam e incorporam as expressões, o comportamento e os pensamentos mais ocultos de seus habitantes. As ruas vibram. Morremos. Esse deve ser o sentido da vida. Mas fazemos linguagem. Essa deve ser a medida de nossas vidas. (MORRISON, 1998)

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PLATÃO. Crátilo, ou sobre a correção dos nomes. Tradução de Carlos Alberto Nunes. New York: Oxford University Press, 2011. PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. 544p. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou da Educação. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. 592p. SARAMAGO, José. Cadernos de Lanzarote II. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. 504p. SAES, Sílvia Faustino de Assis. A linguagem. Filosofias: o prazer de pensar (coleção). 1 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013. 88p. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? 3 ed. São Paulo: Ática, 2004. 231p. ______. O que é a subjetividade? 1 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2015. 160p. STRECK, Danilo R. Rousseau e a Educação. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2008. 96p. VIGOTSKI, Lev S. Pensamento e linguagem. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2008. 194p. WITTGENSTEIN, Ludwig. Tractatus Logico-Philosophicus. In: GIANNOTTI, José Arthur (Trad.). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968. 152p.

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IDAS E VINDAS DA REALIDADE À FICÇÃO: A PRÁTICA DO CINEMA NA SALA DE AULA Márcia Fusaro1 O movimento é a alma do cinema, sua subjetividade e sua objetividade. Atrás da câmera, navegadora do tempo e do espaço, desenha-se até o infinito o duplo sulco da vida e do sonho. Edgar Morin

Nosso olhar para o mundo das imagens nunca mais foi o mesmo desde a invenção da fotografia, na segunda metade do século XIX, em sua versão mais recente, como registro sobre uma placa resultante de um efeito químico. Pouco depois, com a passagem quase inevitável para o cinema – fotografia em movimento – a partir dos experimentos dos irmãos Lumière e das trucagens de George Méliès, a riqueza possibilitada pela leitura das imagens em movimento foi adquirindo ares assombrosamente ampliados, legando-nos novas e interessantes possibilidades de leitura de mundo perpassadas pelo universo da ficção posta em movimento diante da tela. Com a magia do cinematógrafo, concretiza-se no mundo a alegoria da caverna de Platão. Não é pouca coisa. Anteriormente, somente à literatura e ao teatro cabia o privilégio da lida representativa do imaginário, do ficcional. Com o cinema, estabelece-se um novo e sofisticado diálogo entre o verbal e o não verbal, com consequências que nos têm rendido toda uma necessidade de redimensionamento sobre a educação do olhar e dos demais sentidos para a leitura do audiovisual. De modo geral, infelizmente, os entraves do olhar já são estabelecidos na infância. As crianças não são devidamente alfabetizadas para ler imagens. A preocupação escolar ainda se volta, em grande medida, à alfabetização somente para o verbal. Essa falha na formação tende a se agravar com o passar dos anos escolares, formando, posteriormente, jovens e adultos desatentos à leitura do imenso universo de imagens que nos cercam todo o tempo. O uso criativo 1

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Doutora em Comunicação e Semiótica (PUC-SP). Mestra em História da Ciência (PUC-SP). Especialista em Língua, Literatura e Semiótica (USJT). Autora de diversos artigos, líder e membro de grupos de pesquisa da Universidade Nove de Julho e da PUC-SP chancelados pelo CNPq.

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e bem conduzido da fotografia e do cinema, em sala de aula, pode se mostrar um grande aliado na alfabetização também para a leitura do não verbal. Por abrigar elementos verbais (texto) e não verbais (imagens), aliados à amplitude imaginativa do ficcional e de inúmeras linguagens em interfaces dinâmicas, o cinema é poderoso instrumento alfabetizador dos sentidos. Trabalha também todo um universo de linguagens favorável ao estabelecimento de empatia com o espectador. Atuação de atores talentosos, enquadramentos de câmera, edição, música, cores, ou a ausência destas (dramaticidade do claro-escuro do preto e branco), além de inúmeros outros elementos de linguagem contribuem não somente para a criação da rica linguagem cinematográfica, mas também para o envolvimento com o espectador. Enfim, o cinema nos ensina a ler o mundo.

Realidade vs. ficção: a busca de uma linguagem cinematográfica Os primeiros registros de imagens pelo cinematógrafo foram feitas pelos irmãos Lumière, na segunda metade do século XIX. Em seus preciosos registros, acessíveis na atualidade para todos nós, pela internet, vê-se uma preocupação com o cotidiano, em filmagens mostrando a família, pessoas saindo de fábricas, um trem chegando a uma estação, entre outros. Sobre esta última filmagem, inclusive, conta-se a já famosa história, misto de fato e lenda, de que os espectadores que assistiram pela primeira vez a projeção do trem chegando à estação teriam saído correndo, com medo de serem atingidos pela imagem do veículo vindo em sua direção na tela. Lenda ou não, o fato é que o duplo do mundo projetado na tela nos proporcionou espanto no passado, e continua a nos proporcionar no presente. O uso do imaginário no cinema começa, posteriormente, com os truques fotográficos do ilusionista francês George Méliès. Seu Viagem à Lua, de 1902, também disponível na internet, além de outros filmes criados por ele, mostram ao mundo as possibilidades da magia do cinema. Em seu livro, já clássico, O cinema ou o homem imaginário (1956), Edgar Morin apresenta-nos, em sua escrita envolvente, uma destacável leitura antropológico-sociológica sobre a representação da magia presente na captura da imagem inicialmente pela fotografia, depois pelo cinema, que a coloca em movimento e sob novas perspectivas de tempo e espaço. Nosso estranhamento identitário diante da reprodução do duplo também passa a ser percebida nesse novo processo de registro da imagem. Citando Jean Epstein, importante cineasta que ajudou a definir os conceitos sobre a linguagem do cinema, Morin nos aponta os estranhamentos do registro do duplo pela imagem em movimento.

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A animação revela fenômenos latentes da fotografia, ou até mesmo desconhecidos. A visão cinematográfica de si mesmo é muito mais emocionante e rica do que a autocontemplação fotográfica. Epstein dizia “não é relevante que na tela ninguém se reconheça? Que na tela nada seja reconhecível?”. A mesma observação já tinha sido feita em relação à audição radiofônica da própria voz, sempre estranha, ou semiestranha. Somos, na verdade, tomados por um sentimento profundo e contraditório de nossa semelhança e de nossa dessemelhança. Parecemo-nos ao mesmo tempo externos e idênticos a nós mesmos, eu e não eu, ou enfim, o ego alter. “Para o melhor ou para o pior, o cinematógrafo em seu registro e reprodução de um sujeito, sempre o transforma, recria, numa personalidade segunda, cujo aspecto pode perturbar sua consciência a ponto de levá-lo a se perguntar ‘quem sou eu?’ Onde está minha verdadeira identidade?” (MORIN, 2014, pp. 56-7).

Quanto se trata do período inicial da busca por uma linguagem cinematográfica, o nome do grande mestre do cinema russo, Serguei Einsenstein, é sempre lembrado. Diretor consagrado pelos clássicos O Encouraçado Potemkin (1925) e Outubro (1927), entre outros, desenvolveu uma relação de criação complexa no cinema, considerando aspectos objetivos e subjetivos, além de fatores artísticos, históricos e antropológicos. Cinema, para ele, é não somente uma manifestação de arte, mas também um meio de apreender o mundo. “A tarefa do cinema é fazer com que a plateia ‘se sirva’, não ‘diverti-la’. Atrair, não divertir. Proporcionar munição ao espectador, não dissipar a energia que o levou ao teatro [sala de cinema]” (EISENSTEIN, 2002b, p. 89). Sua fina leitura da construção cinematográfica é sempre perpassada por espantosa erudição de quem frequentava os clássicos da literatura, do teatro e tinha um interesse inesgotável por outras culturas. Aprendeu francês, inglês, alemão e japonês, tornando-se estudioso do haikai (poesia japonesa), do teatro Kabuki japonês e do uso dos ideogramas na linguagem oriental. O diálogo entre o Ocidente e o Oriente, em suas diferentes, imensamente ricas, manifestações de linguagens também se insere em suas propostas estéticas. Para Eisenstein, o cinema não se separa das outras artes, nem tampouco da ciência propiciadora de novas tecnologias. Cita, por exemplo, Einstein e suas novas propostas sobre a relatividade como parte das influências possíveis sobre tempo-espaço no cinema, gerando um conjunto de erudição que atribui teor diferenciado a seus escritos teóricos sobre cinema e às suas criações cinematográficas. É hora de parar de ficar com medo deste novo conhecimento de uma quarta dimensão. O próprio Einstein nos assegura: “O indivíduo não-matemático, quando ouve falar de coisas ‘quadridimensionais’, é tomado

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por um misterioso arrepio, por um sentimento que não é diferente do despertado pelas reflexões sobre o desconhecido. Porém, não há declaração mais lugar-comum do que a de que o mundo no qual vivemos é um continuum espaço-tempo quadridimensional”. Possuindo um instrumento de percepção tão excelente como o cinema – mesmo em seu nível primitivo – para se obter a sensação de movimento deveríamos aprender logo a nos orientar concretamente nesse continuum espaço-tempo quadridimensional, e nos sentir tão à vontade como em nossos próprios chinelos (EISENSTEIN, 2002b, p.76).

Como professor de cinema, no Instituto de Cinema de Moscou, mostrou-se vigoroso e exigente em relação às produções dos alunos. Suas concepções, dentre elas aquelas que consideram o professor como instrutor, por um viés educador bastante vanguardista, também podem nos servir de exemplo a ser aplicado caso optemos por utilizar o cinema em sala de aula, tanto do ponto de vista a instruir os alunos como espectadores, quanto como criadores cinematográficos. Podem me criticar, mas quero abordar este tema [a criação cinematográfica] e este ensino de modo simples, como a vida – como o trabalho. (...) Estudaremos esta questão na vida do processo criativo. E esta será nossa forma fundamental de agir. (...) O instrutor é nada mais do que primus inter pares – o primeiro entre iguais. O coletivo (e mais tarde cada membro, individualmente) trabalha passando por todas as dificuldades e tormentos do trabalho criativo, por todo o processo de formação criativa, da primeira indicação fraca, vaga, do tema, até a decisão de se os botões da jaqueta de couro do último extra se adequam aos objetivos da filmagem. A tarefa do instrutor é apenas, através de um hábil e bem programado impulso, empurrar o coletivo em direção das dificuldades “normais” e “frutíferas”, empurrar o coletivo na direção de uma apresentação correta e distinta (para o próprio instrutor) exatamente dessas questões, as quais, uma vez respondidas, levam à construção e não a infrutíferos palavrórios “em torno” do assunto (EISENSTEIN, 2002b, pp. 90-4).

Ou seja, Eisenstein se volta à criação cinematográfica prática, pautada por rigoroso e fundamentador repertório teórico.

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Por uma prática criativa da ficção cinematográfica em sala de aula Pautando-se no exemplo de Eisenstein, o professor tem uma fonte de inspiração segura para o uso criativo do cinema em sala de aula. Por esse viés, é possível propor um projeto de estudos teóricos e aplicações práticas sobre cinema em sala de aula, envolvendo seu rico conjunto de linguagens, além do exercício prático e dinâmico das possibilidades de interfaces entre as diversas linguagens que o constituem, com vistas à sensibilização estética e à alfabetização dos sentidos dos alunos, bem como do professor. Na condição de orientador de projetos desse tipo, não resta dúvida de que o aprendizado do professor também é altamente destacável. Sabe-se bem quanto se faz necessária a atualização de professores, e futuros professores, quanto à amplitude de formação e acesso a recursos para o uso de novas abordagens de entendimento sobre leitura e produção textual. A linguagem não verbal, em sua vertente que abriga a leitura de imagens, tem sido, em geral, relegada a segundo plano no ensino. Alunos não são ensinados a ler imagens, nem tampouco a produzi-las de forma criativa. E não necessariamente por culpa dos professores, mas porque, em geral, eles próprios também não foram ensinados a ler imagens, nem produzi-las com criatividade, quando eram estudantes. Percebe-se, então, essa lacuna no ensino, privilegiador da linguagem verbal (literatura, língua portuguesa, entre outras) em detrimento da linguagem não verbal (imagem, música, entre outras). Em um mundo altamente perpassado por imagens dinâmicas e interativas como o atual, o ensino de língua e literatura necessita urgentemente se rever e reconhecer a linguagem audiovisual como uma de suas grandes aliadas, inclusive no quesito “criação”. Como ponto de partida, primeiro há que se mudar o desavisado paradigma de que cinema, vídeo e afins são feitos para “matar aula”. Quando inteligentemente utilizada, no sentido de refinar e educar os sentidos de todos – alunos e professores-orientadores – a linguagem audiovisual é grande aliada da Educação. Mas é preciso que primeiro os professores comecem a se conscientizar disso e se atualizar, sobretudo, para tornar suas aulas mais ricas, dinâmicas e interessantes às gerações mais jovens e, claro, também a eles próprios. Aos interessados, porém, alerta-se de que não basta somente o emprego da boa vontade. Evidentemente que ela é necessária, bem-vinda, mas frequentar um bom acervo bibliográfico e audiovisual sobre teorias e práticas de cinema é ponto de partida fundamental para o desenvolvimento de trabalhos de qualidade. Enfim, não basta colocar câmera, máquina fotográfica ou celular nas mãos dos alunos e pedir que eles saiam filmando e fazendo cinema. Nietzsche nos alerta,

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ao se referir à arte de qualidade, que esta deve buscar a dança do equilíbrio entre o rigor apolíneo da forma, pelo uso da técnica, e a embriaguez dionisíaca, pela entrega à emoção. Como instrutor, durante seus cursos para formação de cineastas, Eisenstein também se mostrou muito ciente sobre a importância da busca desse equilíbrio conduzido pelo uso rigoroso da técnica. A arte está no fato de cada fragmento de um filme ser uma parte orgânica de um conjunto organicamente concebido. Estas partes, organicamente pensadas e fotografadas, de uma composição geral e de amplo significado, devem ser segmentos de algum todo, e de modo algum études vagos e errantes. Nestes segmentos filmados, nos episódios não-filmados mas preparados e planejados para precedê-los ou segui-los, no desenvolvimento dos planos e listas de montagem de acordo com o lugar destas partes do conjunto – sobre tal base, a irresponsabilidade criativa será realmente liquidada entre os estudantes. De início ao fim, seu trabalho será examinado, simultaneamente com demonstrações de até onde eles são capazes de realizar na prática o conceito geral firmemente planejado; apesar de neste estágio não ser ainda o conceito individual do estudante, mas o conceito trabalhado coletivamente, isto já ensina a árdua lição de autodisciplina (EISENSTEIN, 2002b, p. 95).

Conforme já mencionado, a literatura e o cinema trabalham com características de linguagens favoráveis a estabelecer empatia com o leitor. Antes mesmo do cinema, a língua e a literatura podem ser excelentes pontos de partida para o trabalho inicial que levará à criação cinematográfica. Afinal, ambas (língua e literatura) precedem a criação das imagens cinematográficas, uma vez que para fazer cinema é preciso basear-se inicialmente em um roteiro. A interdisciplinaridade, e mesmo a transdisciplinaridade (D´AMBROSIO, 2012), também se tornam muito viáveis e bem-vindas nessa proposta de projeto, uma vez que professores de várias áreas do conhecimento podem aderir à criação cinematográfica, que é, por base, uma criação coletiva. A adaptação de obras literárias para o cinema pode se mostrar um ponto de partida educador. O próprio Eisenstein incentivava esse percurso em suas aulas, a exemplo do que ele mesmo apreciava exercer como diretor. “Já chegando à produção fora da escola, os estudantes passam por uma longa lista de ‘especialistas’ vivos e mortos. Num determinado estágio isto assumirá a forma de uma longa discussão sobre o tipo, imagem e caráter dos personagens de seu projeto. As cinzas de Balzac, Gogol, Dostoiévski e Ben Jonson vão se revolver em tais discussões” (EISENSTEIN, 2002b, p. 96).

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Esse vínculo entre literatura e cinema, inclusive, pode levar os alunos a superarem possíveis “traumas” de leitura adquiridos anteriormente. No contexto da educação, o vínculo afetivo e intelectual, relacionado à literatura e ao cinema, pode se dar de uma maneira enriquecedora, ou não, para o aluno, dependendo do tipo de caráter interventivo que o professor aplique na teoria e na prática do acesso a esses conteúdos. No caso da literatura e do cinema, uma condução docente desavisada sobre os elementos de fruição presentes na leitura verbal e não verbal pode acarretar entraves no desenvolvimento da leitura e da interpretação pelo aluno. Nesse sentido, em vez de conduzir o aluno a um libertador prazer de descoberta, o trabalho com o texto literário e cinematográfico pode acabar gerando bloqueios de leitura e interpretação, se não for conduzido de forma responsável e criativa pelo professor. Professores mal preparados para lidar, na teoria e na prática, com o uso da literatura e do cinema em sala de aula podem gerar, no limite, aversão a esses gêneros pelos alunos, em vez de processos libertadores do olhar estético e crítico em relação à arte e ao mundo. Outro fator importante a ser considerado sobre tais gêneros é a diferença entre a “obra para entretenimento” e a “obra para formação”, escopo conceitual nem sempre muito bem entendido e aplicado pelo professor. Uma proposta de projeto, como este, propõe-se a pensar os usos da literatura, da fotografia artística e do cinema na educação como contexto para maiores reflexões sobre como o professor já atuante e o futuro professor, no caso dos licenciandos, podem se apropriar de forma responsável e criativa desses destacáveis instrumentos educacionais, sem deixar que sejam encarados como meros objetos de entretenimento. O acesso enriquecedor à leitura dos dispositivos verbais e não verbais pode se transformar em instrumento libertador para o aluno, incluindo nesse processo sua formação cidadã. Momento de exercício de sensibilização literária, sensória, óptica e auditiva que ele pode estender à própria vida, tornando-se mais sensível aos fatos da percepção e de sua própria interação com o mundo nesse processo. Pensar o uso da literatura e do cinema na educação se trata, a nosso ver, de proposta pertinente para maiores reflexões sobre como o docente já atuante e o docente em formação podem aproveitar construtivamente, com fundamentação teórica, esses instrumentos de acesso à leitura verbal e não verbal, na teoria e na prática da sala de aula, sem deixar que caiam na banalidade de enfoque, ou que sejam encarados erroneamente, por alunos e professores, enfatizemos, como mero acesso a fontes de entretenimento. O enfoque que aqui nos interessa ressaltar, nesse sentido, é aquele que caminha para além do cinema e da literatura como arte, incluindo também conceitos sobre seu uso como instrumento educacional que leve a pensar e criar.

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Por esse viés, não se pode deixar de também mencionar a monumental obra filosófica de Gilles Deleuze sobre cinema. Em Cinema 1: a ImagemMovimento (1983) e Cinema 2: a Imagem-Tempo (1985) desenvolve uma classificação lógica, sem compromisso direto com uma linha propriamente histórica, sobre os cinemas clássico e moderno. Para tanto, toma como um dos pontos de partida a lógica de Peirce, criador da Semiótica. “A importância de um lógico como Peirce é ter elaborado uma classificação dos signos riquíssima, relativamente independente do modelo linguístico. Era ainda mais tentador verificar se o cinema não trazia uma matéria movente que exigiria uma nova compreensão das imagens e dos signos. Nesse sentido, tentei fazer um livro de lógica, uma lógica do cinema” (DELEUZE, 2000, p. 63). Também interessa-nos, pelo olhar deleuzeano, a definição de arte como uma criação que, para além da fruição contemplativa, também força a pensar. Deleuze é um dos destacáveis pensadores a fazer a importante ressalva sobre os prejuízos da filosofia que ignorou o cinema, desde seu surgimento. A filosofia deleuzeana, valorizadora do inconformismo, da criação, da diferença, do devir, da vida em suas manifestações cotidianas, das multiplicidades, dos acasos, dos deslizamentos, dos descentramentos, entre outros conceitos que subvertem a tradição filosófica, propõe que se encare a literatura e o cinema como ambientes onde se deva exercitar o pensamento. Os filósofos se ocuparam pouco do cinema, mesmo quando o frequentavam. E no entanto, há uma coincidência. É ao mesmo tempo que o cinema surge e que a filosofia se esforça em pensar o movimento. Mas talvez seja esta a razão pela qual a filosofia não atribui suficiente importância ao cinema; ela está demasiado ocupada em realizar por si só uma tarefa análoga à do cinema; ela quer pôr o movimento no pensamento, como o cinema o põe na imagem (DELEUZE, 2000, p. 75).

Em tempos de grandes produções cinematográficas hollywoodianas em 3D e de uma sociedade cada vez mais imersa no uso das redes sociais, dos livros digitais e de todo o aparato tecnológico disponível nesse início de século XXI, faz-se cada vez mais pertinente refletir e criar interfaces práticas entre a literatura e o cinema como poderosos instrumentos educativos. Evidentemente que não se trata de assunto inédito. O ineditismo reside, a nosso ver, na proposta de uma fundamentação teórica mais consistente para tal prática. Isso porque é com os entraves dos alunos em relação à leitura e à interpretação do discurso verbal e não verbal que nos deparamos em nossa experiência, no dia a dia da sala de aula presencial ou em EAD (Educação a Distância). Portanto, retomar e renovar as reflexões sobre esse tema, com as devidas fundamentações,

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pode proporcionar ideias arejadoras ao professor interessado em sensibilizar seus alunos à fruição artística e a consequentes novas percepções de mundo. Diante disso, enfatizemos mais uma vez a necessidade do uso da literatura e do cinema em sala de aula não como meros objetos de entretenimento, mas, sobretudo, como instrumentos de educação literária, sensória, óptica e sonora portadoras de um libertador levar a pensar. Arte que, para além do sentir, faz pensar. No caso da literatura, uma construção sempre em devir, nunca terminada, posto que em constante diálogo entre o autor e o leitor. “A literatura está antes do lado do informe, ou do inacabamento. (...) Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido. A escrita é inseparável do devir” (DELEUZE, 1997, p. 11). Essa construção, em devir, quando bem identificada e conduzida pelo professor-orientador, incita no aluno também a construção de um belo olhar de reconhecimento para as singularidades do mundo: “A literatura (...) só se instala descobrindo sob as aparentes pessoas a potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal, um ventre, uma criança...” (Ibid., p.13). Também o grande educador, Paulo Freire, destaca a importância do exercício da leitura para além da escrita, como portadora não somente do verbal, mas também do não verbal, fundamental para nossa leitura de mundo. A leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. (...) Este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescrevê-lo”, quer dizer, de transformá-lo através de nossa prática consciente (FREIRE, 2009, p. 20).

Essa proposta ampla de leitura, generosa o bastante para abrigar o verbal e o não verbal em um mesmo grau de importância estendido à nossa leitura de mundo é aquela que um projeto de criação de cinema em sala de aula pode contemplar. Para criar, primeiro é preciso conhecer as técnicas e possibilidades artísticas. De saída, dá-se então a necessidade de uma educação dos sentidos que dê conta de uma criação cinematográfica bem dirigida. Por mais que professores exibam e comentem filmes em sala de aula, ainda há dificuldade em se reconhecer o cinema como possibilidade de educar e proporcionar conhecimento. Em geral, ele é tratado como mero entretenimento, com análises

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superficiais, que, de fato, não educam devidamente os sentidos e os potenciais de criação audiovisual dos alunos. Preparar uma aula eficiente sobre uma obra literária ou um filme é trabalhoso e, evidentemente, exige muita pesquisa e criatividade. Porém, o resultado final, quase sempre libertador do olhar e da sensibilidade do aluno, sem dúvida se mostra recompensador. Tomemos mais um exemplo nas palavras de Deleuze: “Uma aula é algo que é muito preparado. [...] Se você quer 5 minutos, 10 minutos de inspiração, tem que fazer uma longa preparação. [...] Eu vi que, quanto mais fazia isso... Sempre fiz isso, eu gostava. Eu me preparava muito para ter esses momentos de inspiração” (DELEUZE, 1988, p.70). As dificuldades que os alunos em geral apresentam durante o exercício da leitura, seja ela verbal ou não verbal, deveria servir como instigante ponto de partida para a utilização de livros e filmes como instrumentos educacionais. No entanto, ao que parece não é isso o que mais comumente acontece. O que se vê, em geral, conforme já mencionado, são professores que se acomodam na aplicação de leituras superficiais, voltadas ao entretenimento. Ignoram-se, no caso da literatura, análises mais complexas, como a tipologia dos gêneros literários e seus desdobramentos narrativos, temporais, espaciais e de personagens. Ou então, ignoram-se, no caso do cinema, da fotografia e de suas possibilidades de interfaces: os enquadramentos de cena, o estilo de música que acompanha as cenas, a edição das imagens, entre outros interessantes detalhes técnicos, que, em geral, passam despercebidos pelos alunos, e muitas vezes até mesmo pelo professor menos literária e audiovisualmente alfabetizado, quando o interesse se foca apenas em ler uma obra ou assistir a um filme como mero entretenimento. Maior dificuldade se percebe ainda quando o aluno é exposto aos métodos de composição da literatura e do cinema modernos, focados na não-linearidade, e justamente por isso, muito mais interessantes como elementos de reflexão sobre a própria vida, também impregnada pela multiplicidade, complexidade e não-linearidade do tempo-memória, entre outras questões já apontadas pela ciência e absorvidas pela arte. Vê-se, portanto, algumas das contribuições possíveis que um projeto de criação cinematográfica em sala de aula pode desenvolver, englobando nessa proposta educadora, inclusive, novos índices de leitura voltados à literatura.

A prática do cinema na sala de aula: breve manual para uma docência mais lúcida As possibilidades do uso do cinema em sala de aula são, conforme se viu até aqui, infinitas. Por uma questão de ordem prática, relacionada ao espaço

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disponível neste capítulo, selecionemos duas para algumas reflexões: a) análise técnica de filmes; b) criação de filmes pelos alunos. Ambas as escolhas requerem, de antemão, uma autoavaliação por parte do professor, a mesma válida, a nosso ver, para qualquer atuação docente: você gosta de ler? Pode parecer estranho iniciar mais algumas reflexões sobre a prática do cinema em sala de aula por uma tal pergunta, mas considero-a fundamental como ponto de partida, posto que conheço exemplos, e não poucos, lamentavelmente, de professores de variadas áreas que não gostam de ler! Portanto, no caso de uma resposta negativa à questão “Você gosta de ler?”, recomenda-se repensar urgentemente sua escolha profissional. Por razões óbvias. Conforme já mencionado, a leitura comporta, em nossa abordagem, a amplitude da linguagem verbal (textos) e não verbal (imagens). Um professor que não se atualiza constantemente por meio de leituras consistentes e interessantes, sobre todas as áreas e não somente a sua, está destinado, como qualquer pessoa desinformada, a não ler o mundo com a devida amplitude de possibilidades. Ler um filme (objeto audiovisual) de qualidade requer primeiramente preparo teórico fundamentado por leituras consistentes. No final deste capítulo, uma bibliografia introdutória já pode iniciá-lo nesse percurso. Gostar de frequentar diversos gêneros de filmes é a autoanálise sugerida ao professor em seguida. Tanto quanto na literatura, no cinema também há que se saber discernir entre as obras mais voltadas ao entretenimento daquelas voltadas também à formação intelectual e sensório-estética. Enfim, o exercício da leitura, dessa vez voltada a filmes, mostra-se fundamental mais uma vez. a) Análise técnica de filmes Para educar os sentidos dos alunos, e também os do professor-orientador, por meio do estudo compartilhado de filmes, é importante exercitar, além das tradicionais análises de enredo e personagens, também outros detalhes cinematográficos mais técnicos dos filmes. – Tipos de planos utilizados pelo diretor em determinadas cenas Plano geral; aberto; americano; conjunto; médio; fechado; close-up; detalhe; subjetivo; primeiro e segundo planos. – Iluminação e fotografia A escolha pela filmagem em preto e branco, ou colorida, em conjunto com os efeitos de iluminação, podem mudar completamente a dramaticidade de um filme. Nesse sentido, há, inclusive, diretores que alternam essas escolhas, dependendo do efeito dramático que queiram proporcionar em determinadas cenas de um filme. – Efeitos e trilha sonora Os efeitos sonoros, bem como a cuidadosa seleção musical, também interferem enormemente no conjunto da edição final de um filme. Alguns

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filmes, inclusive, nos vêm à memória já associados às suas músicas temas, como efeito dessas escolhas bem conduzidas. Todavia, em geral há detalhes sonoros que geram efeitos no espectador, mas que nos passam despercebidos. Quando estamos atentos a eles, os filmes se tornam ainda mais interessantes. – A importância da edição A análise da edição e das mudanças necessárias, por exemplo, na adaptação de uma obra literária (linguagem predominantemente verbal) para o cinema (misto de linguagem verbal e não verbal) é fundamental. Essa análise, em particular, ajudará alunos e professores a detectarem e discutirem opiniões equivocadas do tipo: “O livro é sempre melhor do que o filme!”. Na verdade, trata-se de universos de linguagens diferentes! Não há como exigir que um filme seja como um livro, ou vice-versa, a começar pela impossibilidade de recortes idênticos de tempo e espaço, entre outras tantas questões que podem ser analisadas nesse item. O que pode haver são adaptações cinematográficas melhores ou piores de um livro, mas não há como haver a identidade absoluta entre esses dois universos de linguagem que o público menos informado costuma exigir. b) Criação de filmes pelos alunos Esse item surgirá muito possivelmente de forma espontânea, após o professor-orientador trabalhar os detalhes do item “a” com os alunos. Quando aprendemos a analisar filmes a partir de um ponto de vista mais técnico, a paixão pelo cinema também se amplia, por efeito da ampliação de nossa visão e leitura de mundo. O passo seguinte é quase natural, caso surja oportunidade na sala de aula: querer fazer cinema. – Partir ou não de uma adaptação literária? Em geral, a adaptação literária costuma ser mais fácil, por já apresentar um texto pronto como ponto de partida. O exercício de tradução intersemiótica (adaptação do texto literário para um roteiro e, posteriormente, para filme) é imensamente rico e desmistificador quanto às “semelhanças” em geral exigidas para esse tipo de adaptação. Por outro lado, partir de uma obra literária não é obrigatório. Nesse caso, a criação de um roteiro original, escrito pelos próprios alunos, para posterior filmagem, também se mostra um exercício imensamente rico, embora mais desafiador. – A opção pelo curta-metragem Aos iniciantes, mostra-se aconselhável trabalhar com curtas-metragens, dada a exigência de todos os detalhes que envolvem a realização cinematográfica. Ao iniciarem os processos de produção, logo os alunos e o professor-orientador se darão conta de quanto trabalho requerem al-

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guns minutos de filme. Assim, dependendo das escolhas de roteiro, é possível produzir desde curtas de 1 minuto até 5, 10 ou 15 minutos. Para os iniciantes, é sempre recomendável trabalhar com pouco tempo (1 a 5 minutos), a fim de haver maior oportunidade de elaboração na edição final. Um filme curto, mas muito bem esteticamente conduzido e editado surtirá mais impacto no espectador do que um filme mais longo menos cuidado. – O drama da escolha Na hora de escolher o tema do curta-metragem os alunos podem se mostrar perdidos diante de tantas opções. Nesse momento, a intervenção mais aconselhável para o professor-orientador é direcioná-los no sentido das paixões. Quando se escolhe realizar um filme sobre um livro, ou um tema, pelo qual se tem paixão, os desafios que com certeza surgirão poderão ser melhores administrados. – Filmagem e edição Atualmente somos beneficiados por todo um aparato tecnológico facilitador da realização de fotografias e filmagens. Não é preciso ter uma câmera de última geração para se conseguir realizar um curta-metragem, para exercício em sala de aula. Evidentemente que se houver essa possibilidade, a qualidade do filme ficará bem melhor, mas, em geral, mesmo os celulares já são suficientes para o exercício de criação de um curta-metragem. Para editar as cenas, incluindo a trilha sonora, na internet há softwares de fácil utilização, que podem ser baixados gratuitamente, com manuais disponibilizados pelos próprios usuários, também pela internet, em vídeos no formato tutorial.

Considerações finais Como resultados do processo de desenvolvimento de um projeto de cinema na sala de aula, tem-se, entre tantos outros benefícios, a educação refinada dos sentidos de alunos e professores. A seleção, leitura e análise de bibliografia teórica, bem como o exercício prático dos possíveis diálogos entre cinema e literatura surgem como resultados altamente relevantes quanto ao enriquecimento e atualização do repertório sobre leitura verbal e não verbal por parte de alunos e professores. Também se acrescentam como resultantes: novas reflexões bem pensantes, na teoria e na prática, sobre a construção literária e cinematográfica no contexto da educação; o levantamento diagnóstico e a aplicação experimental e avaliativa de métodos criativos relacionados ao uso de linguagens verbais e não verbais na sala de aula; a elaboração de conceituações teóricas e exercícios práticos aplicados

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à pesquisa em educação; o exercício e a reflexão que poderão gerar relatórios e produções acadêmicas teóricas e de aplicação prática que podem servir de base para a reprodução do projeto em outros grupos.

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Introdução As relações entre literatura e cinema não são novidade e se ao compararmos aspectos da criação literária com o percurso dos realizadores cinematográficos, nos depararemos com muitas questões em comum. Se buscarmos por diferenças, também as descobriremos, é claro! Mas a influência que a literatura exerce sobre o cinema é evidente e pode ser facilmente confirmada no trabalho das adaptações. Portanto, a relação entre narrativa fílmica e literária sempre foi permeada por questões de encontros e desencontros, comparar/ adaptar um livro para o cinema, por exemplo, diminui/rebaixa o primeiro produto ou o eleva? Sabemos que literatura e cinema nutrem uma inseparável relação dialógica, desde as adaptações ao modo com que uma história é narrada. Christian Metz, em sua obra A significação do cinema (2004), na parte dedicada ao cinema e literatura, em que trata da questão da expressividade fílmica, discute algumas semelhanças e diferenças entre o cinema e a literatura. Para ele, ambos se assemelham no sentido de que, da mesma maneira que o cinema possui sua expressividade própria, com um sentido preexistente (o espetáculo filmado era um pedaço do mundo), a literatura também possui um sentido preexistente (as palavras usadas pelo romancista são pedaços da língua). Assim, literatura e cinema ligam-se à conotação (sentido figurado). Há, porém, diferenças entre ambos: no cinema, a expressividade revela-se de modo natural (verdadeira expressividade primeira), enquanto que na literatura ela se manifesta numa significação convencional, que é a da língua. Daí o fato de, no cinema, a dimensão estética se dá dar-se de modo fluente, já que as imagens são, por si só, expressivas, configurando-o, segundo o autor, como uma arte fácil; na literatura, a dimensão estética é atingida por meio de um empenho mais complexo – o de tornar as palavras, que não são expressivas por si só, mais expressivas –, configurando-a como uma arte difícil. Daí, também, a literatura ser uma arte de conotação heterogênea, “conotação expressiva sobre denotação não expressiva” (p. 97), enquanto o cinema é uma arte de conotação homogênea, “conotação expressiva sobre denotação expressiva” (p. 97). De 1

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Mestre em Educação. Doutoranda em Letras (Mackenzie-SP).

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qualquer modo, mesmo com suas diferenças, as narrativas continuam próximas, embora se manifestem por signos distintos: a arte cinematográfica tem, desde o seu nascedouro, um contato muito próximo com outras formas narrativas. Isso nos faz ver com muita frequência as recriações de obras literárias no cinema, sejam elas explícitas, como o que se convencionou chamar de adaptação; ou sutilmente sugeridas, como a que se percebe em filmes que trazem fortes referências literárias em seus temas e em suas estruturas narrativas. No segundo caso, a pista inicial para o espectador é, muitas vezes, dada intencionalmente apenas por alusões ou por citações (ALVES, 2013, p. 142).

A literatura e o cinema são meios que ocuparam um lugar predominante na sociedade. Para os estudos de literatura e também de cinema interessa compreender os processos de mudanças, transformações, traduções, citações, adaptações entre as duas mídias. Perceber de que modo ambas as artes (literatura e cinema) representam ou até deixam de representar a realidade, a partir de suas semelhanças e relações. Desse modo, no campo literatura-cinema, uma das questões mais significativas entre as duas artes, é a da adaptação, o processo de “transferência” de uma narrativa para a outra. Em L´Encyclopedie du Cinema (1980), Boussinot, tratando da adaptação, define: “a adaptação é a formatação cinematográfica de uma idéia ideia, de um tema ou de uma obra literária” (p. 07). Para o autor, enquanto o termo cenário se reporta a uma criação literária, o termo adaptação é seu correspondente na área cinematográfica. Discutindo a relação entre adaptação e fidelidade, o autor conclui: “a primeira regra da matéria é fazer obra de arte: tanto melhor se, por acréscimo, se é fiel ao original” (p. 08). Na definição de Boussinot, ao ser adpatada para uma segunda, a primeira obra não perde sua essência, pois para ele o termo adaptar é “o desenvlvimento de uma ideia”, portanto o termo “desenvolver”, já aponta para um produto/conceito preexistente. Essa definição não renega a obra de origem e nem prioriza o objeto adaptado. Já no Dictionnaire Théorique et Critique du Cinéma (2008), Aumont e Michel pontuam que a adaptação é uma prática antiga e controversa. Segundo os autores é, ela mesma, uma noção fluida, aproximando-se da ideia de uma “transposição de um romance em cenário e depois em filme” (p. 10). Embora presente desde a origem do cinema, ainda no século XIX, a adaptação foi condenada pela crítica posterior (a partir da década de 1920), uma crítica só revista na década de 1950, com os críticos do Cahier du Cinéma (notadamente Bazin), que consideravam a adaptação um “meio paradoxal de reforçar a especificidade cinematográfica” (BAZIN apud AUMONT & MICHEL, 2008, p.

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11). Posteriormente, com a influência das teorias elaboradas pela narratologia e pela linguística gerativa, a ideia de adaptação passou a ser concebida como uma operação de transcodificação (opération de transcodage) (AUMONT & MICHEL, 2008). Vemos, portanto, que, embora considerada uma técnica antiga, a adptação sofreu seus ataques e rejeições e, por muito tempo, o embate entre fiel/infiel foi perseguida pelos vigilantes da separação entre as artes de contar, a literatura e o cinema, embora, como já enfatizado, ambas tenham suas proximidades, sendo que sua diferença principal se dá, obviamente, pelo modo de narrar. Consequentemente, na crítica sobre cinema se impôs um debate em torno da aceitação e da não aceitação da adaptação de uma narrativa escrita para outra imagética.

A linguagem da adptação adaptação Historicamente, na crítica literária também assistiu-se a um debate em torno da aceitação e da não aceitação da adaptação no cinema. George Bluestone, em uma das publicações mais importante sobre o assunto – Novels into film (1957) –, inicia a obra afirmando que romances e filmes são fundamentalmente diferentes, tanto na sua forma quanto nos seus temas, mas também em relação ao seu público, apesar de que, em épocas remotas, ambas as expressões caminharam muito próximas e juntas, com muitos filmes baseados em romances, com a busca de filmes que possuíam equivalentes na literatura, efeitos de adaptação na leitura etc. Daí a especificidade da relação entre filme e romance: “abertamente compatível, secretamente hostil”2 (BLUESTONE, 1971, p. 02). Assim, nessa colaboração mútua, tem-se tanto, de um lado, os filmes baseados em romance de sucesso (Bird on a Nation, Gone with the Wind, Alice Adams, All the King’s Men etc.); quanto, por outro lado, filmes que, baseados em romances pouco conhecidos, tornaram-nos sucesso de público (David Copperfield, The Good Earth, Wuthering Heights, Pride and Prejudice, Moby Dick etc.). Para Bluestone ������������������������������������������������������������������ (1971), contudo, apesar desse relacionamento intenso entre romances e filmes, não se deve pautar na idea ideia de maior ou menor veracidade, de maior ou menor aproximação entre as obras na passagem de um suporte para outro, já que todo processo mutacional (mutational process) pressupõe alterações necessárias às especificidades dos respectivos suportes (texto gráfico ou imagem cinematográfica): “mudanças são inevitáveis no momento em que se abandona o meio linguistico pelo visual” (p. 5). E completando: “o produto final do romance e do filme representa diferentes generos estéticos 2

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Todas as traduções foram realizadas pela autora.

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[…] O filme torna-se uma coisa diferente, da mesma maneira que uma pintura histórica é distinta do acontecimento historico que ela ilustra” (p. 05). Para o autor, o romance é mais complexo do que o filme (em razão de sua longa história e seu material mais refinado). Enquanto o filme incorpora a fotografia, o diálogo e a música, o romance incorpora o ensaio, a carta, as memórias, os manifestos, os tratados religiosos etc., o que lhe confere complexidade maior. Contudo, ressalta que o filme se baseia em princípios óticos, com a câmera livre para utilizar infinitas variações visuais e efeitos visuais sem precedentes, o que faz dela um instrumento artístico – por esta razão muito do processo criativo do filme localiza-se na relação do cineasta com a câmara. Nesse sentido, o filme, ao apelar para os sentidos da percepção, pode trabalhar com infinitas variações da realidade física, enquanto que a literatura é completamente dependente do meio simbólico que se situa entre aquele que percebe e o objeto ���������������������������������������������������������� simbolicamente percebido: “enquanto a imagem em movimento chega até nós diretamente por meio da percepção, a linguagem deve ser filtrada pela tela da apreensão conceitual. E o processo conceitual, embora associado e frequentemete tendo como ponto de partida a percepção, representa um modo de experiência diferente, um modo distinto de apreensão do universe universo” (p. 20). Bluestone destaca, como forma de compensar os limites linguísticos do cinema, a importância do trabalho de edição (process of editing), que revela uma qualidade metafórica única: “por meio da edição, o diretor pode eliminar intervalos sem sentido, concentrar-se em detalhes significativos, ordenar seu plano de acordo com a linha central da narrative narrativa” (p. 14). É por meio do processo de edição que o cineasta pode trabalhar mais profundamente o movimento espacial (spatial movement) e a sonoridade (embora esse elemento seja secundário em relação à imagem). Assim, enquanto no romance o som (diálogo) é exposto isoladamente, no filme “a palavra falada é vinculada a sua imagem especial” (p. 58). Há que se atentar, ainda, para o fato de que cada meio (filme e romance) supõe um receptor distinto, diretamente relacionado às propriedades de cada um deles: o discurso, no caso do romance; a imagem, no caso do filme. Em outros termos, “onde o romance discursa, o filme deve desenhar” (p. 47). Finalmente, o autor estabelece algumas diferenças significativas entre romance e filme: “enquanto que o princípio formativo do romance é o tempo, o princípio formativo do filme é o espaço. Se o romance toma o espaço como algo dado e forma sua narrativa num complexo de valores temporais, o filme toma o tempo como algo dado e forma sua narrativa em disposições espaciais […] o romance cria mais ilusão de espaço caminhando ponto a ponto no tempo; o filme cria mais ilusão de tempo caminhando ponto a ponto no espaço”

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(p. 61). Apesar disso, lembra Bluestone, tempo e espaço são elementos inseparáveis em ambos os meios. De qualquer maneira, a adaptação do romance para filme (o que ele chama, como visto antes, de mutation) nunca é completa: o que se adapta é uma parte do romance, “uma espécie de parafrase do romance – o romance visto como matéria-prima” (p. 62). E completa: “eis porque não há, necessariamente, correspondência entre a excelência de um romance e a qualidade do filme gravado dele” (p. 62). Conclui-se, de tudo o que foi dito, que há, portanto, cruciais diferenças entre o romance e o filme: “uma arte cujos limites dependem da imagem em movimento, da audiência em massa e da produção industrial tem que se diferir de uma arte cujos limites dependem da linguagem, de uma audiência limitada e da criação individual. Em suma, o romance filmado, a despeito de certas semelhanças, tornar-se-á, inevitavelmente, uma entidade artistica diferente do romance em que se baseou” (p. 64). A perspectiva de Bluestone se difere do ataque de muitos em relação a obrigatoriedade de uma adpatação fílmica ser «fiel» ao texto fonte, mas o autor também apresenta, em seu estudo, os percalços daquilo que ele chama de mutação. Para Johnson (1982), George Bluestone �������������������������������������� e Robert Richardson são teóricos que veem dificuldades e às vezes até impossiblidade no processo de adaptação de romance em cinema. No decorrer do tempo, alguns teóricos viram-se divididos entre a aceitação ou não da literatura como referência no cinema, o embate fiel versus infiel passou a ser a base inicial para discutir adaptação entre literatura e cinema. Ainda em um dado momento da história, o cinema foi considerado por muitos críticos como uma “arte impura” pois, segundo eles, compunha aspectos de artes mais antigas como a literatura, o teatro, a pintura. Nesse ínterim, convém destacar um momento importante na história do cinema, a nouvelle vague francesa, em que os autores e críticos dessa estética defendiam um cinema “miscigenado”, que mesclasse formatos e conteúdos, com audácia. Contudo, alguns teóricos e diretores se dividiram entre a aceitação ou não da narrativa literária como referência no cinema. André Bazin, por exemplo, um dos percussores nouvelle vague na França, se posicionava de maneira positiva às adaptações; já o diretor e crítico François Truffaut não tinha o mesmo pensamento – para Truffaut, os grandes cineastas acabariam se tornando apenas “empregados” dos roteiristas. Por volta de meados anos 50, Bazin utilizou o termo “cinema impuro”, considerando o diálogo do cinema com outras artes naturalmente inevitável e de grande importância para o processo de enriquecimento da arte cinematográfica. Em Pour un cinéma impur (Défense de l´adaptation), publicado primeiramente em 1952, André Bazin inicia o ensaio afirmando que é uma prática antiga a utilização do texto literário (romance ou teatro) pelo cinema, mas atualmente (ele se referia à década de 50) essa tendência tem crescido e a for-

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ma como se dá a interação entre esses campos é diferente. Assim, quando um cineasta se propunha a transpor para a tela do cinema uma obra literária, ele buscava, antes, “transcrever para a tela, numa quase-identidade, uma obra cuja transcendência ele reconhecia a priori” (p. 60). Sabe-se, contudo, que a passagem de um romance para um filme requer “certa margem de criação” (p. 60). De qualquer maneira, essa questão diz respeito a um problema mais geral: o da influência recíproca entre as artes e o da adaptação em geral. Há um equívoco, diz o autor, em considerar o cinema uma manifestação artística de menor valor diante do romance e do teatro, por exemplo, por ter sido uma arte relativamente tardia em relação àqueles, pois as condições sociológicas dadas durante o aparecimento do cinema eram diferentes daquelas presentes quando do aparecimento das outras manifestações artísticas; outro equívoco, diz Bazin (1952), é considerar que a adaptação, o empréstimo e a imitação, no cinema, é sinal de decadência. O melhor do cinema moderno – mesmo aqueles filmes que não são adaptações de obras literárias – deve muito à evolução da literatura, aos grandes romances e aos grandes autores. Por isso, pode-se dizer – por mais contraditório que pareça – que a adaptação é, senão um sinal certo, ao menos “um fator possível de progresso do cinema” (p. 70). Dessa forma, não faz sentido críticar a adaptação considerando-a uma decadência da originalidade e critatividade do cinema; da mesma maneira, não faz sentido criticá-la, considerando-a uma corrupção da obra literária, pois “por mais próximas que sejam as adaptações, elas não podem prejudicar o original em relação à minoria que o conhece e o aprecia” (p. 71). Essa suposta traição é, portanto, muito relativa, e a literatura mesmo não tem nada a perder com ela. O cinema, por sua vez, só tem a ganhar com as adaptações e, paradoxalmente, sobretudo quando o resultado são filmes em que se mantém uma soberana independência (souveraine independence) do cineasta. Além disso, por serem o romance e o filme estruturalmente diferentes, este último requer do artista um alto grau de invenção e imaginação, a fim de que se restitua, no filme, não a obra literária de modo fiel, mas “o essencial da letra e do espírito” (p. 73). Não obstante tudo isso, a fidelidade de uma obra literária no filme pode ser, muitas vezes, um valor positivo, pois não é bom para uma adaptação nem a tradução palavra a palavra, nem a tradução demasiadamente livre de um texto. Trata-se, assim, do que Bazin chama de paradoxo da adaptação (paradoxe de l´adaptation): quanto mais as qualidades literárias da obra são importantes e decisivas, mais a adaptação transtorna o equilíbrio, mais, também, ela exige talento criador para reconstruir segundo um equilíbrio novo, não absolutamente idêntico, mas equivalente ao antigo. Tomar a adaptação do romance por

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um exercício preguiçoso, com o qual o verdadeiro cinema, o ‘cinema puro’, não teria nada a ganhar, é portanto um contrassenso critic crítico, desmentido por todas as adaptações de valor. São aqueles que menos se preocupam com a fidelidade em nome das pretendidas exigências da tela que traem ao mesmo tempo a lieratura e o cinema (p. 74).

Assim, a adaptação não é um trabalho menor, uma ameaça a um suposto cinema puro, mas uma atividade que exige talento criador, para que se possa reconstituir um novo equilíbrio (no filme) equivalente ao antigo (no livro). Portanto, concluindo, com as palavras de Bazin, “adaptar enfim não é trair, mas respeitar” (p. 78). Embora essas ideias de Bazin, em defesa da adaptação, tenham sido fortemente críticadas por outros diretores de cinema, o crítico abraçou fortemente sua defesa em relação a mescla da sétima arte com outras. Em Adaptation, or the Cinema as Digest (2000), Bazin afirma que o problema da essência (digest), da adaptação (adaptation), do resumo (summary) é, comumente, relacionado com a estrutura da literatura, contudo a literatura apenas compartilha um fenômeno muito amplo, frequente frequente em outras manifestações artísticas, como a pintura ou o cinema. E embora haja muitos críticos que se oponham a esse fenômeno – defendendo, por exemplo, a especificidade ou a distinção de toda obra literária autêntica –, raros são os que se recusam a utilizá-lo. Contudo, mesmo que se considere o romance uma obra de síntese única, cujo equilíbrio pode ser afetado facilmente, cujas características devem ser consideradas no seu todo, a questão da adaptação fílmica (cinematic adaptation) não é completamente incontornável, como comprova a própria história do cinema. Em primeiro lugar, dentro do escopo da teoria da adaptação, deve-se atentar para um fato fundamental: o de que não se pode confundir o estilo narrativo (prose style) com os invariantes formais (formal constants). Desse modo, a fidelidade absoluta a uma forma artística (literária ou não) é uma ilusão, já que toda forma artística é, no final das contas, uma manifestação do estilo, inseparável de seu conteúdo narrativo. O que importa, portanto, nessa questão, é a equivalência do sentido da forma (equivalence in meaning of the form), do mesmo modo que certos filmes possuem estilos idênticos ou fieis fiéis ao espírito dos livros em que se inspiraram. Assim, o verdadeiro princípio da adaptação fílmica é reter as principais personalidades e situações, é manter o espírito e o estilo do livro, no que o autor chama de defesa da adaptação condensada (defense of the condensed adaptation). Em resumo, a adaptação se justifica esteticamente, independentemente de seu valor pedagogico pedagógico e social, porque a obra adaptada existe à parte

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do que é erroneamente chamado de seu ‘estilo’, numa confusão desse conceito com a palavra forma. Além disso, a diferença básica entre as artes no século dezenove e a relativamente recente noção subjetiva do autor identificado com uma obra não se encaixa muito com a sociologia estética das massas, segundo a qual o cinema disputa uma corrida de revezamento com o teatro e o romance, e não os elimina, mas os reforça. As verdadeiras diferenças estéticas, de fato, não devem ser feitas entre as artes, mas dentro dos generos gêneros mesmo: entre o romance psicológico e o romance de costumes, por exemplo, ao invest invés de entre o romance psicológico e o filme que eventualmente fosse feito dele (p. 26).

Indo a um movimento contrário aos críticos que se opõem a essa “técnica”, a adaptação se tornou cada vez mais comum e natural. Um ponto polêmico em relação às adaptações, é a questão da “fidelidade”, já mencionada neste estudo, em relação a obra original. Em A literatura através do cinema (2008), o crítico Robert Stam considera que a busca pela fidelidade em adaptações é devido a insatisfação do espectador ao assistir o filme: quando se trata de fidelidade em relação à obra de origem, Stam considera que o desejo por ela se deva ao descontentamento do espectador, ao assistir um filme, por “não consegu[ir] aquilo que entendemos ser a narrativa, temática, e características estéticas fundamentais em sua fonte literária” (p. 20). O autor também argumenta que não se deve determinar a questão fidelidade como um princípio metodológico. Segundo ele, a adaptação torna-se, inevitavelmente, original e ao mesmo tempo diferente da obra que se baseia, devido já à mudança do meio de comunicação: A passagem de um meio unicamente verbal como o romance para um meio multifacetado como o filme, que pode jogar não somente com palavras (escritas e faladas), mas ainda com música, efeitos sonoros e imagens fotográficas animadas, explica a pouca probabilidade de uma fidelidade literal, que eu sugeriria qualificar até mesmo de indesejável (p. 20).

Em suma, Stam não defende a necessidade de traduzir exatamente da mesma forma que o texto apresenta, até porque, em uma narrativa literária, apesar de todas as descrições e propriedades apontadas pelo narrador da história, o leitor tem a possibilidade e até a liberdade de idealizar a cena da forma que quiser. Por outro lado, a narrativa fílmica não proporciona este modo de criação/imaginação para o espectador; ademais, o cinema também tem a possibilidade de avivar muitos outros sentidos e sensações, além da visão. Tratando especificamente da idéia ideia de fidelidade, Stam, em seu Beyond fidelity: the dialogics of adaptation (2000), diz reconhecer aspectos valorosos

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neste termo, mas afirma não se poder adotá-lo como princípio metodológico exclusivo, uma vez que se trata de uma noção, em muitos sentidos, problemática, a começar pelo fato de que a transposição de um meio verbal, como o romance, que lida basicamente com palavras, para um meio multidimensional (multitrack medium), como o filme, que lida, além de palavras, com performance teatral, música, efeitos sonoros etc., é, do ponto de vista da fidelidade literal, improvável e – diz o autor – indesejável. Em suma, “os signos verbais não são sempre comunicados do mesmo modo em um contexto modificado” (p. 57). Há ainda, lembra o autor, uma variação da discussão em torno da fidelidade que diz que uma adaptação não deve ser fiel à fonte textual como um todo, mas à essência do meio de expressão, o que é igualmente problemático, já que sugere que determinados meios são essencialmente mais apropriados a determinados conteúdos. De modo diferente, afirma o autor, uma formulação mais adequada deveria enfatizar não a essência ontológica do meio, mas sua especificidade diacrítica (diacritical specificity): o fato de o cinema lidar com vários recursos (enquanto a literatura, basicamente com um) faz com que ele ofereça possibilidades de arranjos não imediatamente disponíveis na literatura: “as possíveis contradições entre as dimensões torna-se um recurso estético, abrindo caminho para um cinema multitemporal e poliritmico polirítmico” (p. 60). Há, assim, ainda segundo Stam (2000), várias distinções a serem consideradas, no trabalho de adaptação do livro para o filme, como demonstra, por exemplo, a questão das personagens no romance que, quando adaptadas para o cinema sofrem uma espécie de fragmentação, já que, enquanto no livro, são construídas por meio de artefatos verbais, no filme resultam de um amalgama amálgama de elementos (movimento, voz, ações etc.), amplificados por diversos recursos (luz, sons etc.); além disso, enquanto o romance possui apenas a personagem, o filme possui a personagem e o/a ator/atriz. É preciso lembrar, ainda, que tanto o romance quanto o filme sempre “canabalizaram” outros gêneros, sendo que o cinema levou esse processo ao paroxismo, o cinema é, ao mesmo tempo, uma arte sinestésica e sintética; sinestésica por sua capacidade de reunir vários sentidos (visão e audição) e sintética por sua capacidade de absorver e sintetizar artes anteriores […] Ambos, romance e filme de ficção são a soma de suas verdadeiras naturezas. Sua essência é não terem essência, é serem abertos para todas as formas culturais (p. 61).

Assim, considerando que a categoria de fidelidade revela-se inadequada, o autor propõe uma outra categoria – a de tradução (translation), que suge-

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re um esforço de transposição (transposition) intersemiótica. De qualquer meneira, a teoria da adaptação disponibiliza uma série de categorias (tradução, dialogismo, transmutação etc.) que apontam para a diversidade de possibilidades de adaptação, partindo do princípio de que “cada adaptação projeta uma nova luz cultural sobre o romance” (p. 63). Trata-se, em última instância, de um processo de dialogismo intertextual (intertextual dialogism), que se baseia no conceito de intertextualidade e leva um romance a um complexo processo de transformação, operacionalizado a partir de operações diversas (amplificação, atualização, extrapolação, popularização, reculturalização etc.), num procedimento que não dispensa outros modos mais “clássicos” de adaptação, como a paródia. Em resumo, “nós precisamos ficar menos preocupados com noções incipientes de ‘fidelidade’ e dar mais atenção às respostas dialógicas – às leituras, críticas, interpretações e reescrituras do material precedente” (p. 76). Segundo Stam, em Introdução à teoria do cinema (2013), a partir da década de 1980, houve uma decadência do texto como objeto de estudo e a ascensão do intertexto, conceito mais amplo, que engloba não apenas discussões acerca de conceitos como fonte e influência ou relacionamentos entre textos, mas uma série de práticas que dizem respeito, inclusive, ao relacionamento entre obras de arte de estatuto distinto, como relacionar um texto literário, por exemplo, a outros sistemas de representação. Daí o fato de discussões mais recentes sobre a adaptação de obras literárias para o cinema passarem de um discurso moralista (baseado na fidelidade) para um discurso baseado na intertextualidade, uma vez que “as adaptações localizam-se, por definição, em meio ao contínuo turbilhão da transformação intertextual, de textos gerando outros textos, em um processo infinito de reciclagem, transformação e transmutação, sem um claro ponto de origem” (p. 234). No texto Cinema e literatura: adaptação ou hipertextualização? (2011), a pesquisadora Naiara Sales Araújo – baseando-se nas obras de Genette e de Naremore – afirma, considerando que a literatura e o cinema comunicam de forma diferente, que “faz pouco sentido encontrar paralelos exatos entre os dois níveis de comunicação denotativa” (p. 10). Nesse contexto, a noção de adaptação vincula-se às de intertextualidade e de transtextualização. Em suma, por adaptação podemos compreender, portanto, uma transcrição de linguagem equivalente a uma ‘transposição de substância’. Essa transcrição de linguagem irá alterar o suporte linguístico utilizado para se contar uma história. Essa alteração ocorre no momento em que o conteúdo é expresso em outra linguagem dentro de um processo de criação com base no maior ou menor aproveitamento da obra original (p. 16).

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O que podemos sugerir, dadas tantas teorias e formulações sobre adaptação, é que um texto pode suscitar diversas leituras, assim como adaptações diversas. Ainda complementando a visão de Robert Stam (2008), no processo de adaptação há sucessivas referências intertextuais, sem que precise existir um ponto de vista aparente. Assim, no decorrer dos séculos e com a era tecnológica, os meios foram se aproximando, se hibridizando e interagindo entre si. O estreitamento dessas relações foram abrindo, cada vez mais, espaço para o estudo dessas relações comparativas e até interdisciplinares, como já citado neste estudo: diante das transformações produzidas pelas revoluções tecnológica e eletrônica/digital, que alteram o espaço das manifestações artísticas, seus recursos materiais e a percepção tanto de quem produz quanto de quem recebe (que já não é um passível receptor), talvez se faça necessário entender a relação entre arte literária e arte cinematográfica, além das questões relativas a afinidades, a contaminações na narrativa, a especificidades da linguagem e a métodos de recriação” (ALVES, 2013, p. 145).

Uma das teorias mais recentes e conhecidas sobre adaptação vem da autora canadense Linda Hutcheon, que em sua obra Poética do Pós-Modernismo. História, Teoria, Ficção (1991) procura sistematizar o pós-modernismo, chamando-o de “fenômeno contraditório” (p. 9). Desafiando instituições, o pós-modernismo debate sobre “as margens e as fronteiras das convenções sociais e artísticas” (p. 26), bem como as fronteiras entre os gêneros literários ou entre a ficção e a não-ficção não ficção. O resultado são, por exemplo, narrativas que se afirmam como “paródias em sua relação intertextual com as tradições e as convenções dos gêneros envolvidos” (p. 28), o que leva a autora a afirmar: “em certo sentido, a paródia é uma forma pós-moderna perfeita, pois, paradoxalmente, incorpora e desafia aquilo a que parodia” (p. 28). Situando historicamente a questão, a autora afirma que a ficção pós-moderna desafia o formalismo (estruturalista/modernista) e quaisquer outras noções mimeticistas/realistas de referencialidade. A ficção modernista levou muito tempo para recuperar sua liberdade artística, “que fora tirada pelo dogma das teorias realistas da representação” (p. 79); o romance pós-modernista levou exatamente o mesmo tempo para recuperar sua historicização e sua contextualização, que haviam sido tiradas pelo dogma do esteticismo modernista. Nessa obra a anunciação do hibridismo estético na literatura (romance) atual já é discutido pela autora, principalmente no que concerne a mistura/troca de interação entre as narrativas. A própria paródia, a qual a autora se refere, como um modo irônico de apropriação e contestação da estética pós-moder-

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nista com as estéticas anteriores já anuncia o hibridismo e ousadia nas representações de ficções atuais. Em Ironie et parodie: stratégie et structure (1978b), Hutcheon faz referência à ironia como um procedimento que resulta de uma forma moderna de paródia, no sentido de se tratar de uma paródia que, sem necessariamente desqualificar o outro texto, realiza uma ação de diferenciar (action de différer), em que se pode perceber até mesmo um “respeito considerável pelo texto parodiado” (p. 468). Já na obra Theory of Parody. The Teachings of Twentieth-Century Art Forms (1985), a autora fundamenta ainda mais a questão paródia-imitação: segundo ela, tendo sido considerada parte indispensável do trabalho artístico da Renascença, a imitação passou a ser combatida a partir da valorização da genialidade e da originalidade individuais, ideia defendida pela estética romântica. A paródia, como uma espécie singular de imitação, não podia deixar de sofrer toda forma de discriminação, renegada como procedimento estético desde a época pós-iluminista. Apenas recentemente, já no século XX, é que ela viria a ser readmitida nos círculos artísticos, contestando a concepção romântica de singularidade e revelando “uma crise na noção completa de sujeito como uma fonte de signficação contínua e coerente” (p. 04). Finalmente, em Parody Without Ridicule: Observations on Modern Literary Parody (1978a), a autora reforça que convém voltarmos à principal característica da paródia no seu uso moderno – o respeito e a homenagem à obra parodiada, o que sugere uma concepção diferente da natureza da paródia: ela pode também ser um meio de o parodiador se livrar de determinadas influências, ultrapassando o estilo do parodiado: “talvez o ato paródico de incorporação e síntese [...] pode ser um meio de sacudir, para alguns escritores, a influência estilística, de dominar, suplantando assim, o antecessor influente” (p. 205). Neste sentido, a acepção de paródia aqui proposta funcionaria como mais um tipo de recurso, por meio do qual o autor poderia lutar contra a angústia da influência bloomiana (The Anxiety of Influence): “a paródia torna-se um exorcismo, uma ato de amancipação emancipação” (p. 205). No decorrer dos anos, os estudos de Linda Hutcheon foram partindo da paródia como um conceito mais restrito de relacionamento entre textos/meios para o conceito mais abrangente de adaptação, dentro dessa mesma relação. Em seu Uma teoria da adaptação (2013), a autora enfatiza que, assim como a tradução, as adaptações transgridem ainda mais o processo de recriação da obra, e como Robert Stam, já citado neste estudo, a autora critica pensamentos conservadores sobre o processo de adaptar: o discurso moralmente carregado da fidelidade baseia-se na suposição implícita de que os adaptadores buscam simplesmente reproduzir o texto adaptado. A adaptação é repetição, porém repetição sem replicação. E há

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claramente várias intenções possíveis por trás do ato de adaptar: o desejo de consumir e apagar a lembrança do texto adaptado, ou de questioná-lo, é um motivo tão comum quanto a vontade de prestar homenagem, copiando-o. Adaptações tais como as refilmagens podem inclusive expor um propósito misto: ‘homenagem contestadora’, edipianamente ciumenta e, ao mesmo tempo, veneradora” (p. 29).

Hutcheon aponta, nesta nessa obra, alguns aspectos que caracterizam a adaptação: “vista como uma entidade ou produto formal, a adaptação é uma transposição anunciada e extensiva de uma ou mais obras em particular” (p. 28) – esse primeiro ponto a autora nomeia de “transcodificação”, modo que pode envolver uma mudança de mídia ou gênero ou, até mesmo, uma mudança de foco, como uma mesma história ser recontada por pontos de vistas diferentes. Um outro aspecto da adaptação é que ela pode ser vista também como “um processo de criação, a adaptação sempre envolve tanto uma (re-)interpretação quanto uma (re-)criação; dependendo da perspectiva, isso pode ser chamado de apropriação ou recuperação” (p. 29). Ao ser adaptado, o objeto inicial pode ser recuperado por alguém que dele se aproprie. Um terceiro e último aspecto proposto por Hutcheon é a adaptação como uma “forma de intertextualidade, nós experenciamos as adaptações (enquanto adaptações) como palimpsestos por meio da lembrança de outras obras que ressoam através da repetição com variação” (p. 30). Em resumo, e ainda nas palavras da autora, a adaptação pode ser definida como um processo de transposição declarado de uma ou mais obras, uma ação criativa e – por que não? – interpretativa do que Linda Hutcheon chama de apropriação/recuperação, um empenho intertextual com a obra adaptada. Com a adaptação pode acontecer não só a “repetição”, mas também a mudança: nas adaptações, “acontecem um processo de recriação cultural mais amplo” (FISCHLIN & FORTIER apud HUTCHEON, 2013, p. 32). É inevitável admitir que a adaptação é algo difícil de se definir; para se chegar a uma possível definição do conceito, é importante levar em consideração seus processos e perspectivas. Adaptar, vale ressaltar, não é apenas traduzir: em vários casos, por envolver diferentes mídias, as adaptações são recodificações, ou seja, traduções em forma de transposições intersemióticas de um sistema de signos (palavras, por exemplo) para outro (imagens, por exemplo). Isso é tradução, mas num sentido bem especifico específico: como transmutação ou transcodificação, ou seja, como necessariamente uma recodificação num novo conjunto de convenções e signos (p. 40).

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Ao se adaptar, ocorre um processo de apropriação, e a obra original pode ser reconfigurada, filtrada, ajustada ao olhar sensível e talentoso e, até mesmo, tendencioso do adaptador. Portanto, quem adapta primeiro traduz a obra, depois a (re)cria. Em relação à adaptação de narrativas literárias para narrativas fílmicas, como já enfatizado neste trabalho, a prática sofreu transformações diversas, desde a não-aceitação não aceitação de diretores de cinema, quando a adaptação começa a ser praticada, até se tornar algo comum e distante da patrulha que impõe a necessidade da “fidelidade”, como ocorre na atualidade. Percebemos, portanto, que a relação cinema-literatura sempre foi marcada por fortes ambiguidades e segregações. Para Cunha (2013), no âmbito de um recente e produtivo comparatismo indisciplinado, é preciso reconhecer que os críticos e teóricos ‘antigos’, operando em diversos campos do conhecimento, contribuíram com ideais que repercutem ainda hoje, no quadro de uma compreensão totalizante que não considera limites entre textualidades fílmicas e literárias (p. 79).

De acordo com este autor, atentando para a realidade do comparatismo atual, onde as relações entre literatura e outras mídias são, cada vez mais, interdisciplinares, o que vem sendo largamente estudado pela academida na atualidade enfatiza essa relação de mão dupla, entre texto fonte e suas inúmeras e híbridas possibilidades: “esse exercício acadêmico tem sido o must no quadro do comparatismo contemporâneo e tem convocado em larga escala a manifestação de outros constructos teóricos – como o dos estados de tradução, por exemplo, ou dos estudos culturais” (p. 89).

Conclusão Sabemos que fatores inúmeros podem levar um texto literário a ser adaptado, inclusive seu valor canônico. Aquele que adapta também é um leior leitor da obra e pode adaptá-la de acordo com sua leitura/interpretação, “além de intenções outras que possam estar envolvidas nesse processo, de ordem econômica ou social, ou mesmo a tentativa de ‘agradar o público’, realizando uma adaptação de acordo com o que se supõe esperar do trabalho do roteirista” (KAMITA, 2010, p. 166). O processo de adaptação, contudo, não se limita à transposição do texto literário para um outro veículo, mas pode suscitar uma série quase infinda de alusões a outros textos/meios, compondo acontecimentos culturais que podem envolver processos dinâmicos de mudanças, traduções e interpretações de diverosos significados e valores histórico-culturais.

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Importante enfatizar, portanto, como destacam os teóricos, que na adpatação adaptação cinematográfica de um romance, eventualmente, pode-se gerar leituras variadas, marcando, assim, aspectos diferentes de um determinado romance: uma obra pode motivar variadas adaptações. Cada vez mais os teóricos procuram discutir o assunto, porém, o foco de análise não é o mesmo. Sabe-se que o diálogo entre o cinema e a literatura é eminente e este é aceito no meio acadêmico e crítico do cinema. O cinema ‘precisa’ de histórias para contar; os cineastas e roteiristas as buscam na literatura. Porém, enquanto a história pode ser a mesma, a maneira de contar diverge de um meio para o outro. No entanto, o aspecto que mais interessa atualmente é como ocorre o processo de transposição de um meio a outro” (SCHLOGL, 2011, p. 9).

O texto adaptado, portanto, não é algo a ser copiado, mas sim um elemento a ser decifrado e recriado, frequentemente numa nova mídia, “pois o adaptador é um intérprete antes de tornar-se um criador” (HUTCHEON, 2013, p. 123). Imprescindível também citar neste estudo o que problematiza Renato Cunha na sua obra Cinematizações (2007) – segundo o autor, a palavra adaptação pode significar muitas coisas, como “ato ou efeito de converter uma obra escrita em outra forma de apresentação” (p. 9) ou “ação ou efeito de adaptar-se” (p. 9). Para ele, todas essas definições, “confirmam a sedimentação de um termo que, além de não expressar com convicção o deslocamento de códigos de uma linguagem para outra, parece ser largamente utilizado pela falta de outro mais específico que o supra” (p. 9). O autor também, com suas ressalvas, rejeita os termos de tradução intersemiótica e transcriação, pois, para ele, o termo que mais se aproxima da prática adaptativa seria “cinematização”, conceito definido como uma forma de transcriação – é o termo que melhor define a elaboração audiovisual que, para a construção de uma nova narrativa, lança mão de texto marcado pela literariedade [...] o nome ‘cinematização’, por si só, não determina um único procedimento, mas a potencialidade de vários, que dependem de análise para desvelá-los. Uma coisa é evidente: é palavra que, ao contrário de ‘adaptação’, não corre o perigo de cair no esvaziamento” (p. 13).

O fato é que, embora possam sugir nomes diversos por críticos diversos, a adaptação é prática cada vez mais comum e vista como bons olhos pela

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maioria dos cineastas, autores literários e críticos de ambos os meios. A As duas artes (literatura e cinema) parecem, comumente, se unir de modo harmônico e natural. Assim, arte literária e arte cinematográfica caminham juntas, organicamente, no percurso estético a que ambas pertencem: a narrativa, seja ela verbal ou visual. A relação entre a linguagem literária e a linguagem cinematográfica, quando inserida no contexto da adaptação, não resulta apenas, como sugere Linda Hutcheon (2013), em espécies de palimpsestos que guardam em si marcas das obras adaptadas, mas, mais do que isso, numa terceira linguagem, intermediária entre as duas expressões artísticas, uma linguagem de fronteira, a que podemos dar o nome de linguagem da adaptação cinematográfica. Daí não considerarmos a adaptação apenas um “instrumento” de transformação de uma expressão (ou um suporte) artística para outra, mas uma autêntica linguagem, com suas metodologias, seus procedimentos e sua epistemologia próprias.

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Resumo O presente artigo tem como objetivo discutir questões relativas à ocorrência da linguagem na e da literatura infantil, considerando tanto sua natureza pedagógica quanto estética. Para tanto, utilizaremos alguns exemplos retirados de autores da literatura infantil brasileira contemporânea. Palavras-chave Linguagem, literatura infantil, aquisição da linguagem, estilo.

Introdução A linguagem infantil tem sido, já há muito tempo, estudada, dentro e fora da academia, por diversas áreas do conhecimento humano. Analisada, por exemplo, ora pela Linguística – preocupada especialmente por seus processos de aquisição –, ora pela Psicologia do Desenvolvimento – que se volta, circunstancialmente, para sua consolidação e desenvolvimento –, ora ainda pela Pedagogia – que a aproxima da alfabetização e de processos afins –, a linguagem infantil é objeto de estudo abordado sob perspectivas as mais distintas, chegando a resultados igualmente diversos. Diante desse fato, parece lógico que uma expressão literária que tenha a criança como público ideal – como é o caso da literatura infantil – não apenas ressinta da influência desse fenômeno, mas, numa relação dialética, influencie essa mesma linguagem, contribuindo indiretamente com o complexo processo de aquisição, consolidação e desenvolvimento da linguagem verbal. Em termos mais diretos, a literatura infantil possui especificidades que, ao fim e ao cabo, levam (ou deveriam levar) em conta a competência linguístico-cognitiva de seu público eletivo, o que, se por um lado “limita” suas possibilidades enquanto discurso linguístico, por outro lado “expande” suas potencialidades enquanto expressão estética. O resultado que decorre dessa realidade é que, pelas contingências particulares tanto da linguagem quanto da literatura infan1

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tis, autores e obras escritas prioritariamente para o leitor-mirim acabam desempenhando, ainda que não deliberadamente, um duplo papel: um papel de natureza pedagógica, em que os textos contribuem para o processo de aquisição, consolidação e desenvolvimento linguísticos; e um papel de natureza estética, em que os textos expressam seu estatuto artístico-literário por meio da criatividade estilística. O objetivo deste artigo é justamente discutir a ocorrência da linguagem na/da literatura infantil, considerando, por um lado, sua natureza pedagógica (por isso, linguagem na literatura) e, por outro lado, sua natureza estética (por isso, linguagem da literatura).

1. A linguagem na literatura infantil De modo geral, quando pensamos sobre o uso da linguagem, podemos definir, pelo menos, três “funções” distintas: uma função pragmática, relacionada à comunicação, mobilizada para expor uma ideia (por exemplo, por meio da persuasão, clareza, objetividade etc.) ou para receber uma ideia (quando entra em questão noções como as de universo comum e experiência), ambas fazendo parte de nossa competência linguística; uma função estética, relacionada à fruição artística, isto é, ao uso estético da língua e fazendo parte de nossa competência estética; e uma função teórica, relacionada ao conhecimento, voltada assim para a crítica/análise da língua e fazendo parte de nossa competência cognitiva. Pode-se dizer que, grosso modo, a literatura infantil aciona essas três “funções”, tendo implicações diretas ou indiretas ora na competência linguística, ora na estética, ora ainda na cognitiva do leitor-mirim, na medida em que o auxilia não apenas na aquisição da linguagem, mas também em sua consolidação e em seu desenvolvimento. Portanto, estudar a linguagem na e da literatura infantil é buscar abarcar todo o amplo e complexo rol de possibilidades discursivas que tanto a linguagem quanto a literatura nos podem oferecer. Mas o que dizer, por ora, sobre a linguagem na literatura infantil e, consequentemente, seu caráter psicopedagógico? Sabe-se, por exemplo, que o processo de aquisição da linguagem pela criança passa por diversas etapas distintas, mais ou menos complexas, que podem ter a ver, por exemplo, com o domínio e a competência linguísticos ou a aquisição e expansão do léxico. Tais ocorrências relacionam-se, em momentos distintos e de modos variados, com as fases pré-linguística, em que prevalece o estágio fonológico da linguagem, e linguística, em que prevalecem os estágios morfológico, sintático, semântico e pragmático da linguagem infantil. Em cada um desses estágios, como nos ensinam a Psicologia do Desenvolvimento e a Psicolinguística, a criança passa por processos distintos de aquisição e de-

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senvolvimento da linguagem, como a aprendizagem de novas palavras e dos primeiros rudimentos gramaticais, a apreensão das flexões verbais e das palavras funcionais, a formação de frases mais complexas e o processo de interação linguístico-discursiva (RAPPAPORT, 1981; BIAGGIO, 2001; BEE, 1996; MENYUK, 1975; PETERFALVI, 1970). Desse modo, não seria exagero afirmar que o contato com a literatura infantil – e, particularmente, como a poesia, que trabalha no limite da palavra, explorando ao máximo o que a linguagem pode oferecer – contribui sobremaneira para vários desses aspectos aqui listados, tendo incidência, inclusive, em fatores como o desenvolvimento da escrita, com implicações no processo de alfabetização (REGO, 1995), e o uso social da linguagem, com implicações no processo de letramento (SANTOS & MORAES, 2013). Trata-se, em resumo, no que Celso Pedro Luft (1985) chamou, com muita propriedade, de gramática interior, ao explicar que “a criança sabe analisar, e analisa, desde o momento em que entende frases, mesmo antes dos 3 anos [...] Obviamente, trata-se de uma análise implícita, intuitiva. É o próprio domínio interior das regras da língua que provê tais análises” (p. 47). A produção literária voltada prioritariamente para o público infantil revela-se particularmente propícia às estratégias de desenvolvimento de competências, nos termos expostos acima. Aliando, por exemplo, criação literária e jogos infantis, valorizando o lúdico nos interstícios do texto, essa literatura promove, indiretamente, alguns princípios fundamentais ao desenvolvimento mental da criança. Com efeito, analisando produções poéticas destinadas à criança, Ana Gebara (2002) lembra que uma das características centrais da poesia é sua utilização particular do código linguístico, levando a criança a participar ativamente do ato comunicativo promovido pelo poema: “o texto poético incorpora as características da língua, seus constituintes e seus modos de significar e constrói mais concretamente os liames entre fala e escrita [...] O poema estabelece, nos contatos iniciais do letramento, um suporte para que a criança elabore um modelo de escrita que permitirá pensar numa fala 2, própria do meio letrado, melhorando sua competência e desempenho” (p. 144).

Por isso, podemos dizer que é precisamente no âmbito da produção literária infantil que ganham relevância os três aspectos fundamentais da clássica divisão estruturalista dos estudos linguísticos: o fonético-fonológico, em que se estuda o processo de diferenciação e agrupamento de unidades sonoras distintas; o morfossintático, em que se estuda o processo de organização morfológica e sintática da língua; e o semântico-estilístico, em que se estuda o processo de constituição de sentido e de representatividade dos signos (LOPES, s.d.; MALMBERG, 1976; FIORIN, 2002).

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Ao se observar a linguagem na literatura infantil não se pode prescindir, também, de considerações acerca de determinados fenômenos próprios do processo de aquisição da linguagem pela criança, sob pena de se avaliar essa produção literária pela ótica inapropriada da gramática normativa e padrão, o que, no caso em questão, seria incorrer num erro primário de inadequação analítico-avaliativa. Um desses fenômenos, entre os muitos que poderiam ser apontados, é o da analogia – a que alguns especialistas também chamam de mutação analógica (DUBOIS, 1994) –, sem dúvida alguma determinante no processo de conscientização e amadurecimento da linguagem da criança. É por meio da mutação analógica, por exemplo, entre outras coisas, que as crianças começam a tomar consciência da variedade linguística, uma vez que, via de regra, são instigadas pelos adultos a adotar as formas vocabulares de acordo com a norma gramatical. Isso é particularmente perceptível nas conjugações verbais, que apresentam ao mesmo tempo uma quantidade considerável de paradigmas de conjugação estáveis (verbos regulares), com poucos desvios paradgmáticos (verbos irregulares), levando a criança a utilizar um mesmo e único modelo para qualquer uma das conjugações. Segundo Câmara Júnior (1988), a tendência de um falante novo é adotar um paradigma regular e empregá-lo, por analogia, para todas as situações, procedendo assim à mutação analógica, processo que consiste exatamente, como sugerimos antes, na “criação de uma nova forma, dentro de um paradigma ou de um campo semântico” (p. 64). Aí está, também, a origem de muitos neologismos... Não nos deve causar espanto, portanto, a ocorrência de formas como “currupacou o papagaio” [de currupaco], “raça sereítica” [de sereia], “bruxaria fadal” [de fada], “humilhação sapal” [de sapo], “desensapou” [deixar de ser sapo e transformar-se em gente], que encontramos no livro Avoada: a sereia voadora, de Sylvia Orthof (1995). Tampouco a inúmeras outras ocorrências presentes de seus textos literários, tais como “pantufado caminho” e “enchinelado”, de Bagunça Total na Cidade Imperial (1998); “gaita elefantástica”, “sotaque papônico”, “se enronronava toda” e “inglezava”, em Os Bichos que tive (Memórias Zoológicas) (1983a); ou “certeza ciganítica”, de O Cavalo Transparente (1987). Finalmente, formações semelhantes podem ser encontradas em autores tão distintos quanto um Caio Fernando Abreu, em seu As frangas (2002), com “vezenquando”, “argolou”, “vaga-lumeando”; ou João Guimarães Rosa, em Fita verde no cabelo: nova velha história (1992), com “velhavam”, “encurtoso” e “inalcançar”. Mas nem só de neologismos vive a linguagem na literatura infantil. Há inúmeros outros fenômenos – tanto de natureza fonético-fonológica quanto morfossintática e semântica – que podem ser observados nessa produção literária. Um exemplo de investimento nesse universo fonético-fonológico, para

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ficarmos apenas num dos três aspectos aqui elencados, é o trabalho que José Paulo Paes realiza em algumas de suas obras, ao empregar, por exemplo, palavras que apresentam “semelhanças” fonológicas entre si, sugerindo um processo de formação mais lúdico do que linguístico, ao trabalhar com unidades sonoras similares. É o que se percebe em alguns poemas de Um passarinho me contou (2002), como nas primeiras estrofes desse inusitado “Identificação”: “Seria um siri da Síria ou um grou da Groenlândia? Uma arara do Ararat ou pata da Patagônia? Seria uma anta da Antártida ou um hamster de Amsterdã? Um periquito de Quito ou marmota do Mar Morto?” (s.p.)

Empregando o recurso da ludicidade e, ao mesmo tempo, promovendo uma espécie de consciência fônica no leitor-mirim, Paulo Paes leva ao extremo – o que pode ser facilmente constatado em outras de suas obras (RIBEIRO, 1998; SILVA, 2000) – a utilização de fatos e efeitos de linguagem no plano da poesia infantil. Próprio da linguagem infantil, aliás, é também o apego ao fenômeno da oralidade – que pode ou não se manifestar sob a forma de continuadas repetições –, uma vez que estamos falando de um público, em geral, ainda não alfabetizado. Daí o fato, inclusive, de alguns dos livros de literatura infantil serem expressamente recomendados para crianças “em fase de alfabetização”, como é o caso do livro Travadinhas (1994), de Eva Furnari, que traz essa recomendação na contracapa. Com efeito, há nessa obra um trabalho insistente de repetição, aliado ao uso constante da onomatopeia e de oposições fonológicas, criando assim um efeito estético que, indubitavelmente, tem repercussões diversas no processo de alfabetização da criança: “O chinês chique, de chapéu chocante, chegou com um bicho de luxo. Escorregou na graxa, se esborrachou no chão, machucou a coxa. Chocado, teve um chilique, chutou o lixo e xingou o chão!” (p. 2); ou “A princesa, braba, contratou a bruxa Petronila para transformar o príncipe Petrônio em grilo do brejo” (p. 6). Em outros livros, a vinculação de um trabalho estético ligado ao processo de alfabetização, embora não expresso e assumido, parece ser evidente. É o que acontece com alguns textos de José Paulo Paes, em que o uso continuado de rimas internas e externas, ricas e pobres, agudas e graves, além de aliterações e metafonias, valoriza a ocorrência da oralidade. Um livro bastante curioso, dentro dessa perspectiva, é o seu Uma letra puxa a outra (1992),

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em que o poeta trabalha à exaustão o processo de alfabetização e aquisição da linguagem: “É com H que a filha sai da fila, que malha sai da mala, com H a mana faz manha. [...] “O L é uma letra louca. Transforma a nota mi em 1000 e faz a uva andar de luva, cabra descobrir o Brasil”. (s.p)

Finalmente, a repetição – fenômeno bastante comum na linguagem da criança, sobretudo nos primeiros anos de aprendizagem – é procedimento reativamente comum nas obras de Sylvia Orthof, como nesse seu Ciranda de Anel e Céu (2000), em que ela surge aliada a outros processo de formação vocabular, tanto verbal: “[a ciranda da praia] cantava, cantava”; “[a ciranda da praia] repetia e repetia”; “o Sol, espalhando fagulhas, berrou berrado”; “jangada [...] / roda-rodou-rodava”; “o Sol berrando-berrava”; “cantavam alto a ciranda / que nesta história manda, mandava, canta, cantava”; “a cadeira virou trono, não sei como, vira-virado-virou”; quanto nominal: “a raiva raivosa”; “cortina de renda-rendá”; “a pobre cadeira gemia, de esquentação esquentada”; “cantadora das cantadeiras”. Em outros livros de sua safra, o fenômeno surge novamente com igual intensidade, como em Maria vai com as Outras (1983b): “As ovelhas iam pra baixo. Maria ia pra baixo”; “As ovelhas iam pra cima. Maria ia pra cima”; “As ovelhas pegaram uma gripe!!! / Maria pegou gripe também”; “As ovelhas tiveram ensolação. / Maria teve insolação também” etc. Não é difícil perceber, nos exemplos acima transcritos, o empenho dos autores em utilizar uma linguagem que, em muitos sentidos, aproxima-se da elocução infantil, fazendo da literatura para crianças um locus bastante apropriado tanto para se discutir questões de linguagem em seus processos de aquisição quanto para “auxiliar” a própria criança no complexo processo de desenvolvimento linguístico. Por isso, a linguagem na literatura infantil é mais do que um fenômeno de natureza estritamente estética, assumindo, de modo direto ou indireto, um feitio de caráter pedagógico-formativo. 2. A linguagem da literatura infantil Se a análise da linguagem na literatura infantil apresenta a complexidade que aqui se procurou demonstrar, o que se poderá dizer da presença da lin-

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guagem da literatura infantil, cuja análise começa por colocar sob suspeita a própria existência dessa categoria: afinal de contas, existiria mesmo uma linguagem especificamente literária e, mais do que isso, própria da literatura infantil? Essa é uma questão que tem sido discutida há séculos, seja no âmbito da filosofia da linguagem, seja no da própria teoria literária. Não é o caso de procurarmos, aqui, tentar resolver a questão (se é que ela pode, simplesmente, ser resolvida!) ou estender-se em considerações acerca de um tema tão complexo e profundo. Terry Eagleton (s.d.), em conhecido estudo sobre o assunto, já discorreu satisfatoriamente – embora não suficientemente – sobre o assunto, ao lembrar que entre as várias definições possíveis, na atualidade, sobre o conceito de literatura, podem-se destacar, pelo menos, quatro: aquela que considera a literatura uma escrita ficcional, em oposição à escrita factual; aquela que considera a literatura uma forma peculiar de linguagem, em oposição à fala comum e cotidiana, isto é, uma linguagem que chama a atenção sobre si mesma e que se apresenta como um desvio da norma, contendo suas próprias estruturas e mecanismos; aquela que considera a literatura um discurso não-pragmático, sem finalidade prática imediata; e aquela que considera a literatura uma escrita bela, perfeita (les belles lettres), o que acaba privilegiando a subjetividade do juízo de valor. Michael Riffaterre (1982), estudando agora a linguagem poética, afirma ser necessário fazer a distinção entre a signification (presente na linguagem comum) e a signifiance (produzido exclusivamente pelas propriedades do texto poético), e ressalta que na linguagem cotidiana as palavras parecem ligadas verticalmente à realidade que buscam representar, formando uma unidade semântica incontornável, enquanto que na linguagem literária essa relação é lateral e tende a “annuler la signification individuelle que les mots peuvent avoir dans le dictionnaire” (p. 94). Como se percebe, a questão está longe de ser simples, por isso vamos, de forma mais modesta, partir do pressuposto de que há uma linguagem que, se não pode ser considerada como própria da literatura infantil, ao menos surge nela de modo tão recorrente que podemos afirmar tratar-se, no mínimo, de uma especificidade estilística desse gênero de literatura. Isso não nos exime da complexidade a que nos referimos anteriormente, uma vez que, agora, estamos no âmbito de uma série de manifestações – algumas mais, outras menos presentes no discurso literário infantil – que vão da rima e das figuras de linguagem aos efeitos gráficos e aspectos estilísticos, passando ainda pela metaficção e pela intertextualidade, entre outros. Situando-nos, agora, mais no campo da estética do que da pedagogia, mais no da arte do que no da educação, podemos dizer que o que passa a contar de modo determinante é, grosso modo, o estilo: não exatamente o que o escri-

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tor tem a dizer, mas como ele o diz! Algo muito próximo do que diz Marcuse (1981), quando afirma que “a arte tem sua própria linguagem” (p. 33). Isso pode ser observado, por exemplo, em recursos muito próximos daqueles que aqui destacamos, logo acima, para falarmos da ocorrência da linguagem na literatura infantil, como é o caso da repetição ou o uso de onomatopeias. Mas os resultados alcançados pelo uso “específico” de uma linguagem literária vão muito além daqueles obtidos por meio de um empenho pedagógico do autor ao criar sua literatura: no que compete à linguagem da literatura infantil, são os efeitos estéticos que, no final das contas, interessam... A já aqui bastante citada produção literária de José Paulo Paes pode ser ainda um exemplo do que estamos dizendo, uma vez que se utiliza com frequência dos recursos linguísticos em favor dos efeitos estéticos que a produção literária permite, como se percebe no apelo recorrente à sonoridade/musicalidade das palavras, que pode ser encontrado em poemas como “Sem barras”, do livro Olha o bicho (1989): “Enquanto a formiga / carrega comida / para o formigueiro, a cigarra canta, / canta o dia inteiro” (s.p.); ou “Patacoada”, do livro Poemas para brincar (1990): “A pata empata a pata / porque cada pata / tem um par de patas / e um par de patas / um par de pares de patas” (s.p.). São, aliás, esses e outros recursos que fazem da poesia infantil de José Paulo Paes um universo particularmente propício ao trabalho lúdico com as palavras, semelhante ao efeito alcançado, ainda uma vez, por meio do recurso da rima, que aparece em grande parte dos poemas que compõem seu livro Lê com crê (1993), atingindo inquestionável perfeição em poemas como “Tão”, ao trabalhar com rimas interna e externa, ricas e pobres, agudas e graves: “Tão bom barbeiro que cortava até juba de leão. Tão bom bombeiro que apagava até fogo de vulcão. Tão bom veterinário que fazia condor ficar sem dor. Tão bom professor primário que transformava um burro num doutor. Tão bom atleta que só ouvia dizer: “Venceste!” Mas não tão mau poeta que escrevesse um poema como este”. (s.p.)

Neste poema, verifica-se a presença, como aludimos acima, de rimas externas (barbeiro / bombeiro, leão / vulcão), mas também internas (condor / professor), além da ocorrência do recurso sonoro a que comumente dá-se o nome

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de eco (bom / bombeiro, condor / dor). A aliteração faz-se presente em várias passagens do poema (bom barbeiro, bom bombeiro, professor primário, fazia ficar), bem como a assonância (que escrevesse um poema como este). Nota-se, finalmente, o trabalho como os fonemas, sobretudo alternando alguns traços fonológicos, a criar um efeito sonoro especial (fogo / vulcão, bom / professor, dizer / venceste). O emprego de outras figuras de linguagem – como a litote, a hipérbole, a anáfora etc. – contribuem, por fim, para tornar o poema uma peça singular no universo poético desse autor. Outros aspectos de natureza estética podem ser destacados ao se analisar o que aqui chamamos de linguagem da literatura infantil. E, nesse sentido, os exemplos são muitos e variados... Ciça Fittipaldi, em O homem que casou com a sereia (s.d.) é exemplo de um trabalho consciencioso com a linguagem, na busca de uma prosa poética que não dispensa nem o ritmo cadenciado das frases, nem o uso de uma pontuação diferenciada, nem o emprego de neologismo, como recursos poéticos no interior da narrativa. A própria disposição das frases no texto reforça esse estatuto lírico, por assim dizer, ao se organizar sob a forma de versos, ou por meio da inversão sintática e das rimas, reforçando essas características. Esse uso criativo da linguagem, que se expressa de várias maneiras, mas sobretudo por meio das rimas, das onomatopeias e dos neologismos, pode ainda ser verificado em Trapezunga e terreirão: uma fábula da Abolição (1991), de Chico Alencar; em A botija de ouro (1987), de Joel Rufino dos Santos; em Dito, o negrinho da flauta (1983), de Pedro Bloch; ou ainda em vários livros de Sylvia Orthof, como Os Bichos que tive (Memórias zoológicas) (1983b), Bruzunduanga da Silva (1985), Dumonzito. O avião diferente (Passageiro igual a gente) (1986), A Família Eco-Eco (1991), Bóia, Bóia Lambisgóia (1992), Avoada. A sereia voadora (1995) e Bagunça total na cidade imperial (1998). Um trabalho igualmente criativo com a linguagem, no contexto da estética literária, pode ser verificado nos livros de Eva Furnari, como nesse seu imaginativo Você troca? (1991), título que serve como mote para que a autora aprofunde a ideia de troca e seus significados correlatos: “Você troca um lobinho delicado por um Chapeuzinho malvado?” (p. 16-17), “Você troca um tutu de feijão por um tatu de calção?” (p. 14-15) ou “Você troca um mamão bichado por um bichão mimado?” (p. 20-21). Essa criatividade, que revela o quanto a linguagem da literatura infantil pode ser explorada, levando ao limite suas potencialidades artísticas, é verificada ainda em seu curioso Mundrackz (1998), onde até mesmo um “idioma” novo é criado pela autora.

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Considerações finais Ao discutirmos, no âmbito deste artigo, a ocorrência da linguagem na e da literatura infantil – considerando tanto sua natureza pedagógica quanto estética – buscamos avaliar as mais diversas potencialidades da linguagem e seu emprego no universo literário, destacando ora questões de fundo “puramente” linguístico, ora de base “essencialmente” estética. O resultado é que, no final das contas, podemos considerar a literatura infantil um locus privilegiado de exercício de expressão da linguagem, seja ela artística ou não. É, portanto, no campo daquela literatura escrita preferencialmente para um público infantil que podemos observar os contornos e o alcance da criatividade linguístico-estilística. E embora a crítica de modo geral defenda, majoritariamente, a prevalência dos aspectos internos da linguagem literária, em detrimento dos externos – como faz Northrop Frye (s.d.), ao afirmar que “em literatura o que intretém precede ao que instrui” (p. 79) – há que se considerar que, em especial na literatura infantil, a autonomia artística se coaduna perfeitamente bem aos protocolos da atividade pedagógica, promovendo assim um pacto possível entre a linguagem na e a linguagem da literatura.

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DANÇA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: UMA EXPERIÊNCIA LÚDICA INTERGERACIONAL Mônica de Ávila Todaro1 “É preciso revelar a dança de cada um” (Angel Vianna)

Introdução Estudos a respeito da infância se tornam cada vez mais relevantes à medida que professores e pesquisadores experimentam lidar com novas formas de ser criança construindo história e cultura. A prática educativa na Educação Infantil em seus mais diferentes aspectos: o papel do (a) professor (a), o desenvolvimento da criança, a distribuição do tempo e a organização do espaço escolar, o planejamento e a avaliação vêm sendo foco de pesquisas que trazem para o debate o pensar e o fazer pedagógico. O corpo está presente no cotidiano escolar, nos desafiando a (re) pensar a prática e é objeto de estudo da Pedagogia porque o (a) estudante não é um indivíduo fragmentado, mas uma pessoa que interage com o mundo de corpo inteiro. Cabe a quem pesquisa na área da educação, e aos docentes do curso de Pedagogia, impulsionar as atividades acadêmicas, a partir dos diferentes saberes e pensadores da corporeidade, unindo teoria e prática, quando se trata da Educação Infantil. Pesquisadores contemporâneos e estudiosos do assunto, com formação inicial em diferentes áreas, tais como o filósofo Queiroz (2009), o teólogo Assman (1995), Pereira (2010) graduada em Letras, a economista Bruhns (1993), Lombardi (2014) graduada em Educação Artística e a pedagoga Todaro (2013; 2014), entre outros, vem se debruçando sobre o tema a fim de contribuir com os poucos estudos acerca do corpo e da corporeidade na educação. Nosso corpo é sede de signos e significados. Nele, se mostram as marcas da cultura, da sociedade e do momento histórico presente. A corporeidade traduz a ideia de corpo vivenciado, de totalidade do ser humano. Somos um corpo que se expressa e se comunica. Valorizar isso significa ter uma visão integra1 Foi bailarina profissional e atuou como atriz. É doutora em Educação e Mestre

em Gerontologia pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Líder do Grupo de Pesquisa Pedagogia do Corpo (Cnpq). Professora titular do curso de Pedagogia da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ) e docente convidada do curso de mestrado em Gerontologia da USP-Each.

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da do ser humano. O corpo, de acordo com Foucault (1999) na obra Vigiar e punir, é uma construção sociocultural e não apenas uma realidade biológica a ser dominada para que se torne dócil e obediente. Olhar o corpo é um passo metodológico necessário para a Pedagogia. Nossa corporeidade precisa ser levada em consideração quando pensamos na educação de crianças e em sua formação integral. “A corporeidade do nosso ser é a instância referencial de critérios para a educação, para a política, para a economia e até para a religião” (Assmann, 1995, p. 91). Referindo-se especificamente à educação, o mesmo autor faz uma afirmação categórica: “O corpo é, do ponto de vista científico, a instância fundamental e básica para articular conceitos centrais para uma teoria pedagógica. Em outras palavras: somente uma teoria da corporeidade pode fornecer as bases para uma teoria pedagógica” (p. 113). Vivenciar o corpo por meio da experiência da dança significa apostar nessa linguagem artística como potencializadora de sensibilidade. O corpo que dança revela e desvela novas relações consigo e com o outro. O movimento e a pausa experienciados na dança podem vir a ser parte da busca da consciência corporal e da livre expressão, no caminho do desenvolvimento integral da criança. É objetivo desse texto descrever uma experiência bem-sucedida de dança intergeracional aplicada à Educação Infantil que resultou numa ponte entre crianças de cinco anos de idade e pessoas idosas e, com isso, defender a dança como uma linguagem artística importante para o desenvolvimento infantil e também como um fazer pedagógico promotor de mudança de atitudes. Para tanto, torna-se necessário apresentar as concepções de Arte, Arte-Educação, Dança e Intergeracionalidade correntes nas discussões contemporâneas do universo acadêmico-científico. Ao partir da ideia de contribuir com a produção acadêmica que defende a necessidade de que as crianças bem pequenas construam identidades positivas das experiências dos corpos que são, buscou-se defender, ao longo deste texto, o reconhecimento dos corpos das crianças como sujeitos de educação; a importância da arte e do lúdico no desenvolvimento integral do ser humano; e a dança enquanto linguagem artística que promove uma educação humanizadora. Tal como a epígrafe nos alerta, é preciso que cada pessoa encontre a sua própria dança e a revele. Assim como é importante que pessoas de diferentes idades, partícipes de uma mesma atividade, possam viver a ludicidade no momento presente. A possibilidade de avançar no entendimento de que o corpo que dança participa do processo de aprendizagem, socializa-se, sensibiliza-se e percebe os limites e possibilidades de si e do outro é que dá vida e movimento à reflexão proposta nesse capítulo.

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Arte, arte-educação, linguagem e dança “O que é Arte?” pergunta Coli (1995) na obra cujo título nos indaga. Para o autor, o que denominamos como arte “são certas manifestações da atividade humana diante das quais nosso sentimento é admirado” (p. 8). A arte nasce da criatividade humana. Isto significa que há uma pessoa que se expressou por meio de uma técnica ou de seu estilo, transmitindo sua leitura do mundo e despertando as mais diferentes emoções e sensações naqueles que admiram um quadro, um espetáculo de teatro ou de dança ou leem um livro. Artistas interferem no mundo e também são influenciados por ele. A conceituação da arte é extremamente subjetiva e depende da cultura na qual está inserida, do momento histórico e também das pessoas que produzem e usufruem a obra. Além disso, a arte tem suas dimensões sociais, econômicas e políticas. Sabe-se que a aprendizagem da Arte é obrigatória nas escolas desde 1996 e que isso consta na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Também os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), direcionados ao Ensino Fundamental, destacam o lugar de importância da Arte no currículo. Portanto, professores (as) e alunos (as) estão, desde essa data, fazendo e apreciando algum tipo de arte no interior da escola. Mas, segundo Ana Mae Barbosa (2012), “o papel da Arte na educação é grandemente afetado pelo modo como o professor e o aluno veem o papel da Arte fora da escola”. A Arte-Educação mudou e essas mudanças estão sendo percebidas pelos professores pelo menos em sete aspectos. Há um maior compromisso com a cultura e com a história; tem havido ênfase na relação entre fazer, interpretar e contextualizar; compreende-se a Arte como uma linguagem aguçadora dos sentidos, cujos significados não podem ser transmitidos por intermédio, por exemplo, da linguagem discursiva ou científica; o conceito de criatividade se ampliou; a necessidade de alfabetização visual tem confirmado a importância do papel da Arte na escola; o compromisso com a diversidade cultural tem sido enfatizado; reconhece-se que a Arte é de fundamental importância não só para a subjetividade, mas também para o desenvolvimento profissional (Barbosa, 2012). A arte é considerada uma manifestação de diversas linguagens, como Música; Plástica bidimensional (desenho/pintura); Plástica tridimensional (escultura/ arquitetura); Teatro; Literatura; Cinema e Dança. A linguagem da dança, no contexto escolar, merece uma abordagem didática específica na Educação Infantil. Para Duarte Jr (2008), “A educação é, fundamentalmente, um ato carregado de características lúdicas e estéticas. [...] Quando a educação não leva o sujeito a criar significações fundadas em sua vida, ela se torna simples adestramento (p. 61)”.

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O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI) integra a série de documentos dos PCN e atendendo às determinações da LDB (Lei 9.394/96) estabelece, pela primeira vez na história de nosso país, que a educação infantil é a primeira etapa da educação básica. No volume três do Referencial: “Conhecimento de mundo”, destaca-se a presença do Movimento como parte integrante deste. Dentre os objetivos apresentados no RCNEI, aqueles que se referem às crianças de cinco anos de idade e com os quais a dança pode contribuir efetivamente são: ampliar as possibilidades expressivas do próprio movimento, utilizando gestos diversos e o ritmo corporal nas danças; explorar diferentes qualidades e dinâmicas do movimento, como força, velocidade, resistência e flexibilidade, conhecendo gradativamente os limites e as potencialidades de seu corpo; controlar gradualmente o próprio movimento, aperfeiçoando seus recursos de deslocamento e ajustando suas habilidades motoras para utilização em danças; utilizar os movimentos de preensão, encaixe, lançamento, para ampliar suas possibilidades de manuseio dos diferentes materiais e objetos; apropriar-se progressivamente da imagem global de seu corpo. Todaro (2013), ao discutir a metodologia de ensino de movimento na educação infantil, define o corpo como “laboratório de movimentos” e afirma que ele é um instrumento material e sensorial que contém uma enorme carga de energia que o permite movimentar-se interna e externamente, sendo, portanto, um organismo vivo. O corpo é, nesse sentido, portador de um complexo conjunto de interações biológicas, físico-químicas, psicológicas e emocionais em contextos sócio-histórico-culturais (p.151).

Contudo, nem a obrigatoriedade legal e muito menos o reconhecimento garantem que crianças entrem em contato com experiência de Dança para além das festas comemorativas. Até porque, nem sempre as professoras e os professores desse nível de ensino são licenciados ou especialistas em Arte e muito menos receberam formação inicial em Dança, quando na graduação. Na maioria, são pedagogas formadas de maneira aligeirada, em apenas três anos de curso, sendo que em alguns desses cursos não há na matriz curricular alguma referência à Dança. Em relação à formação inicial do professor de educação infantil e ao currículo, Todaro (2014) tece uma crítica: muitos cursos de Pedagogia não apresentam em sua matriz curricular disciplinas que permitam refletir sobre o corpo, dificultando a articulação entre o corpo e a mente dos graduandos e, consequentemente, de seus futuros alunos (p.110).

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Daí, talvez, venha a justificativa da ausência de atividades de livre expressão corporal, e a ênfase nas atividades chamadas de “desenhos livres” que se pode notar pela presença mais significativa da linguagem plástica no ensino de Arte na Educação Infantil. Hoyler e Todaro (2013), a esse respeito, exemplificam e alertam: [...] cabe aos educadores, às escolas e às comunidades escolares exigir que, nas instituições escolares, o ensino de Arte vá além da mera reprodução ou atividade de colorir desenhos estereotipados, com personagens famosos (p.40).

A dança é uma manifestação culturalmente construída e, portanto, imbuída de relações históricas e sociais. A dança é uma das várias manifestações da cultura corporal – junto aos jogos, esportes, lutas e ginásticas – e, como tal, deveria estar presente como conteúdo das aulas de Educação Física, já que os documentos oficiais trazem esse discurso em suas orientações. Também nas aulas de Arte, a dança está representada com destaque em, pelo menos, dois documentos: nos PCN, como uma das manifestações artísticas (Artes cênicas) e na LDB que traz a Arte como disciplina escolar obrigatória. A dança, portanto, está nas diretrizes, mas nem sempre na prática educativa que está sempre submetida ao conhecimento que hierarquicamente “vale mais”. O ensino de Arte e de Educação Física não conseguiram alcançar o status das demais disciplinas, revelando, assim, como o corpo segue desprezado no ambiente escolar em detrimento da mente. Na dicotomia corpo-mente e numa disputa pela conquista de espaço entre professores especialistas e disciplinas no currículo escolar, quem perde são os estudantes de todos os níveis de escolarização. Ainda a respeito dessa separação e disputa, assiste-se uma luta na qual o desprezo a tudo que possa ser associado ao corpo é, infelizmente, a representação do vencedor. A respeito do trabalho com as linguagens expressivas na infância, Lombardi (2014) traz que o educador deve ser capaz de oferecer oportunidades para que a criança construa conhecimentos por meio de acesso a todas as suas “linguagens”, como desenho, pintura, música, dramatizações, escrita, danças, sendo a corporal, a linguagem que permeia todas elas (p. 46).

A linguagem é utilizada pelo ser humano para se expressar e compartilhar sentidos. No sentido de contribuir para um possível entendimento do termo, Hoyler e Todaro (2013) afirmam que

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A maneira como vemos o mundo está condicionada pela linguagem. Linguagem pode se referir tanto à capacidade especificamente humana para a aquisição e utilização de sistemas complexos de comunicação quanto a uma instância específica de um sistema de comunicação complexo. Por meio da linguagem artística, esperamos que seja revelada uma visão única e particular do mundo, isto é, um olhar sensível e reflexivo que parte de uma experiência estética (p. 38).

Sabe-se que todo movimento pode ser interno ou externo e que este revela a manifestação da vida. A expressão do corpo por meio do movimento pode se transformar em dança. Para Pereira (2010), gestos e movimentos infantis não são apenas uma forma de alcançar objetos ou de se deslocar no espaço, são formas perceptivas e expressivas, refletem sensações, emoções e pensamentos. De acordo com o RCNEI, a dimensão expressiva do movimento, enquanto conteúdo a ser tratado na Educação Infantil (...) engloba tanto as expressões e comunicação de idéias, sensações e sentimentos pessoais como as manifestações corporais que estão relacionadas com a cultura. A dança é uma das manifestações da cultura corporal dos diferentes grupos sociais que está intimamente associada ao desenvolvimento das capacidades expressivas das crianças. A aprendizagem da dança pelas crianças, porém, não pode estar determinada pela marcação e definição de coreografias pelos adultos (BRASIL,1998).

A escola e as pessoas que dela fazem parte (profissionais ou membros da comunidade) podem ajudar as crianças a descobrirem um corpo sensível, criativo e artístico. Estudantes, professores e membros da comunidade escolar (pais, mães, avós) são identidades que se constroem nas relações interpessoais. Por meio da dança, podemos reinventar o ensino e a convivência, trazendo para a escola a dinâmica e as articulações entre corpos, mentes, Arte, Educação Física, na disposição para provocar transformação, fortalecendo a coletividade e o respeito para com as diferenças. Dança é Arte que desperta em cada pessoa sua consciência como ser humano. Para Siqueira (2006), a dança é manifestação social, a dança é, ainda, fenômeno estético, cultural e simbólico que expressa e constrói sentidos através dos movimentos corporais. Como expressão de uma cultura, está inserida em uma rede de relações sociais complexas, interligadas por diversos âmbitos da vida. Como objeto de estudo, a questão é problematizar o significado da dança

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como sinal das transformações por que passa a sociedade – atentando para o perigo das generalizações (p.4).

É grande o volume de danças encontradas nas diversas culturas que, por envolverem complexas sequências motoras, propiciam conquistas no plano da coordenação e precisão do movimento. A prática da dança como manifestação da cultura corporal e as possibilidades de exploração oferecidas pela escola permitem que a criança desenvolva capacidades criativas e construa repertórios próprios. O debate sobre a dança como um tema a ser tratado na escola é muito recente. Os questionamentos sobre quais danças devem ser abordadas no currículo escolar e como desenvolver um trabalho pedagógico com este conhecimento tem sido foco de indagações no âmbito acadêmico (BRASILEIRO, 2001; SALES, 2003). Algumas propostas foram elaboradas objetivando elucidar tal problemática (SBORQUIA, 2002; EHRENBERG, 2008). No entanto, ao pesquisar como a dança é tratada nas abordagens metodológicas da educação física, Lara et. al. (2007) apontam que a maioria dos proponentes concorda com o fato de que, atualmente, a dança não está presente na escola. Além disso, afirmam que não existe uma fundamentação teórica para o encaminhamento desse conhecimento nas aulas de educação física. Tal fato revela a carência de conhecimentos elucidativos sobre o trato e a sistematização da dança na escola, bem como a relevância da divulgação das produções teóricas voltadas para o tema, ainda mais quando está relacionado a promoção de relações intergeracionais de boa qualidade, numa perspectiva da ludicidade.

Ludicidade O lúdico, numa perspectiva integradora, se destaca quando da importância de compreender a criança como um ser em desenvolvimento que possui uma linguagem expressiva própria. Experienciar um envolvimento profundo com tudo o que chamamos de atividade na escola de educação infantil, permite uma apreensão significativa no campo da aprendizagem e, por consequência, do desenvolvimento infantil. A ludicidade e a corporeidade a expressão e o autoconhecimento. Sendo um corpo que vivencia experiências e brinca, nos comunicamos com o mundo. Alguns autores se destacam quando se trata de tecer considerações importantes sobre o tema, como por exemplo Santos (2001), Kishimoto (2009), Brougère (2004) e Wajskop (2005). O direito ao ato de brincar está previsto na legislação. A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembleia das Nações Unidas de 20 de no-

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vembro de 1959 e ratificada pelo Brasil, traz no seu princípio sete que a criança terá ampla oportunidade para brincar e divertir-se, visando os propósitos mesmos da sua educação. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), no artigo dezesseis, indica que o direito à liberdade compreende o aspecto de brincar, praticar esportes e divertir-se. O Parecer CNE/CEB Nº20/2009, que trata da Revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, aponta que brincar dá à criança oportunidade para imitar o conhecido e para construir o novo. A dança pode vir a ser o lúdico em ação, dependendo da maneira como ela é proposta. Se considerarmos que a criança aprende de modo interativo, envolvendo seu corpo, cognição e emoções, então a ludicidade desempenha um papel de relevância na prática educativa quando se dá por meio da dança.

Intergeracionalidade As relações entre gerações vêm sendo estudadas por pesquisadores nacionais e internacionais da área da Gerontologia, preocupados em compreender como estas se dão na família e em outras instituições sociais. Cada geração é historicamente constituída e, as relações entre pessoas de diferentes idades podem ser construídas, desconstruídas e reconstruídas. Antes mesmo de sermos considerados crianças ou idosos, somos todos, ao longo da vida, seres humanos incompletos e imperfeitos. As categorias de idade fazem parte da trama social, política e cultural, definindo relações de poder entre diferentes gerações. Por isso, é preciso reinventar convívios, transformando a cultura do preconceito na cultura do respeito à diversidade etária. Na escola, essa reinvenção de convívios pode ocorrer de maneira formal, por meio da inserção do tema velhice nos conteúdos, por meio de projetos por exemplo. No entanto, engana-se quem pensa que somente o currículo ensina. As crianças, desde muito pequenas, vivem em um ambiente intergeracional natural do qual fazem parte pais, avós, irmãos mais velhos e outros adultos. Extrai-se desse cenário a possibilidade de, desde muito pequenas, as crianças adquirirem, via experiência direta, crenças e atitudes negativas em relação às pessoas idosas. As atitudes são o alvo da atenção educativa traduzidas em disposições pessoais que tendem a se expressar por meio de comportamentos. Uma ação educativa gerontológica, compreendida como um ato dialógico, possibilita a experiência de sermos outros, olhar, saber e sentir outras experiências. Há nela três tipos de atitudes de importância bem particular: 1) As atitudes do educando para com a mudança proposta; 2) As atitudes do educando diante do agente de mudança; 3) As atitudes do educando em face dos procedimentos educativos empregados para introduzir a mudança.

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No contexto brasileiro atual, de envelhecimento populacional, a escola deveria pautar-se por tal entendimento, na possibilidade de avançar no processo de conscientização de indivíduos cada vez mais comprometidos com o respeito às diferenças. Não se trata de ensinar as crianças a apenas tolerarem os idosos, mas principalmente de despertar nelas o interesse por estes serem portadores de outra idade muito diferente da sua. Na medida do possível, deve-se oferecer oportunidades que possam fazê-las colocar-se no lugar dos idosos e entender que não existem diferentes modos de se viver a velhice, e não uma velhice ou um idoso padrão. Os pressupostos teóricos que dão suporte a ações educativas de natureza intergeracional são, em primeiro lugar, o conceito de educação permanente, que prevê que a educação e a aprendizagem sejam contínuas e acumulativas. A pessoa idosa segue ensinando e aprendendo, independente de sua idade. Em segundo lugar, o reconhecimento da heterogeneidade das experiências de velhice como uma dimensão que repercute nas atitudes e crenças em relação aos idosos e contribui para a construção da cidadania. Em terceiro lugar, a noção de que a educação visando à mudança de atitudes em relação à velhice deve ser dialógica, reflexiva e problematizadora, desde a educação infantil com as crianças pequenas. Os projetos intergeracionais podem ser considerados verdadeiros veículos sociais, por criarem oportunidades para a ocorrência de trocas de recursos e de aprendizagem entre gerações mais jovens e idosos, de aproximação entre as famílias e de transmissão de valores culturais de geração para geração. Numerosos dados empíricos indicam que projetos que promovem contato intergeracional possuem efeitos claros, de natureza compensatória e estimulante sobre as atitudes em relação aos idosos e que pelo fato de favorecerem a inserção social, programas de mudança de atitude baseados em atividades envolvendo o intercâmbio entre gerações, rompem preconceitos e ajudam a melhorar a qualidade da convivência dos idosos com as gerações mais jovens. Um estudo de Sherman (1997) investigou relacionamentos intergeracionais entre crianças e idosos, todos surdos, num ambiente de dança intergeracional. Os objetivos foram examinar como os idosos se comportariam com as crianças, mediados por um projeto de dança. Concluiu-se que a dança pode agir como um elemento catalisador para a interação social entre estes dois grupos de idade e os resultados demonstraram um incremento nas medidas de atitudes e motivação para contato tanto para os idosos quanto para as crianças surdas (Todaro, 2009). Rossberg-Gempton & Poole (1999) apresentaram um programa muito criativo de dança intergeracional envolvendo 21 crianças (idade até 8 anos e 6 meses) e 15 idosos (até 83 anos e 7 meses). As crianças eram de escolas rurais

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e os idosos de instituições asilares. Segundo os resultados apresentados, o programa teve um impacto positivo nos campos cognitivo e psicomotor dos idosos e também sobre as atitudes das crianças em relação aos idosos. O método incluía exercícios de aquecimento, entendendo as limitações e a necessidade de adaptação dos participantes, combinações de habilidade para movimentos específicos e também exercícios de relaxamento, todos estes realizados em conjunto (crianças e idosos). A pesquisa e a prática educacional desenvolvidas no âmbito internacional apresentam suficientes evidências de que programas de mudanças de atitudes envolvendo relações intergeracionais podem promover impacto nas atitudes de crianças em relação a idosos. Também oferecem “pistas” de que certos tipos de ação tendem a ser menos eficazes, entre eles a oferta pontual de oportunidades em eventos únicos, como visitas de um dia a Instituições Asilares, comemorações do Dia dos Avós ou festas no Mês do Idoso. Programas unidirecionais, sem reciprocidade e sem levar em conta os interesses e os conhecimentos das crianças e dos idosos também são apontados como menos eficazes. Daí a intenção de relatar a seguir uma experiência intergeracional bem-sucedida, no campo da Arte, mais precisamente da linguagem da dança.

Relato de experiência A ação educativa aqui denominada “Dança intergeracional” teve como objetivo levar para a escola e para as crianças da educação Infantil o conhecimento de danças de diferentes culturas, tempos e lugares do mundo, proporcionando o acesso ao modo de expressão artística não como forma a ser copiada, mas como repertório a ser conhecido, referência ampliada e possibilidade de (re) criação. Além disso, buscou-se colocar a pessoa idosa como mediadora entre os pequenos estudantes e o novo conhecimento a fim de mobilizar as atitudes de crianças em relação a idosos num impacto positivo frente à velhice e ao envelhecimento. Com características de um projeto inter, multi e transdisciplinar, a Dança Intergeracional foi uma experiência que permitiu a integração da corporeidade de cada um dos envolvidos, afinal, um corpo que brinca de dançar nos provoca a (re) pensar e (re) fazer a educação. A mediadora, sra. Lucia, era uma idosa de 65 anos de idade que se ofereceu como voluntária para o projeto denominado “Educação e convivência Intergeracional”. Na entrevista inicial para o voluntariado, Lucia disse que sua experiência passava pelo prazer de dançar, segundo ela, desde criancinha. Além disso, como moradora de uma cidade do interior, contou que não perdia uma festa popular e se dizia fã da congada. Narrou, também, a respeito da formação que havia recebido e na qual se qualificou em Dança Sênior.

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A dança sênior surgiu em 1971 na Alemanha quando um grupo de pedagogos sob a liderança de Ilse Tutt desenvolveu uma prática de exercícios físicos para um grupo de idosos “sentados e em roda” utilizando músicas folclóricas. De forma lúdica, eles realizavam os movimentos criados para interpretar o enredo da música. Constatou-se mais tarde que a prática regular da atividade fortaleceu o convívio social gerando maior autoestima e estímulo físico à realização de algumas atividades da vida diária. Hoje, há duas modalidades de dança sênior: sentada e em pé. A expressão corporal advinda da prática de uma Dança Sênior adaptada para crianças e pessoas idosas foi fruto de uma série de passos que compuseram um caminho único. Ao longo da experiência, notou-se a comunicação dos participantes (consigo mesmos e com os outros) por meio de ações como: olhar, perceber, ouvir, sentir, agir e reagir. A criação artística, em nenhum momento, ficou a cargo apenas da sra. Lucia. Crianças e idosos tiveram a oportunidade de propor e escolher os movimentos da dança. As expressões das emoções e das sensações estiveram presentes e podiam ser facilmente reconhecidas por causa das risadas das crianças e dos olhos mareados dos participantes idosos.

Considerações finais Um novo tempo desafia a escola a repensar-se e a abandonar um modelo racionalista que negou o corpo e uma visão militarista, sexista e higienista, para um outro paradigma que pressupõe o desenvolvimento integral do ser humano. Nesse contexto, a educação infantil nos dias atuais é desafiada a alterar a maneira de ver a infância, a criança (como um corpo), o ensino, a aprendizagem e o currículo. Ao mesmo tempo, um novo momento histórico revela um envelhecimento populacional que possibilita a integração entre gerações. Isso é, quando a expectativa de vida aumenta e as crianças têm mais saúde, os encontros entre gerações se tornam mais possíveis. A escola precisa se abrir para essa importante e atual temática, criando projetos e ações educativas intergeracionais. Se os profissionais e os pesquisadores da educação infantil começarem a refletir a respeito da dança como uma linguagem artística importante para o desenvolvimento integral da criança e nas ações educativas intergeracionais como um fazer pedagógico promotor de mudança de atitudes, abrir-se-á a possibilidade de revisitar os referenciais curriculares, problematizando o processo de constituição das subjetividades contemporâneas e avançando nas discussões contemporâneas do universo acadêmico-científico. Essa constituição, infelizmente, refere-se ao enquadramento das crianças – e, portanto, o disci-

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plinamento de seus corpos – num determinado código de condutas e regras que nada têm a ver com a infância. As diversas situações que desafiam o cotidiano escolar, e a sociedade, nos levam a questionar algumas práticas pedagógicas tidas como verdades absolutas e como mais sérias que outras. As datas comemorativas, a tanto tempo valorizadas pelas escolas de Educação Infantil, precisam ser problematizadas. O “Dia dos avós”, por exemplo, deveria ser repensado e talvez necessite de uma primeira pergunta: “O que entendemos por velhice?”. Também, quanto à expectativa de se alfabetizar tão precocemente as crianças da Educação Infantil cabe questionar: “De que desenvolvimento infantil estamos tratando na escola?”. A dança provoca uma experiência lúdica em pessoas de diferentes idades. No que diz respeito à relevância das linguagens artísticas, ela é uma das muitas manifestações da cultura corporal e sua prática não deve significar apenas a possibilidade de expor crianças e pessoas idosas a coreografias reproduzidas da grande mídia. É preciso revelar a dança de cada um, como nos ensinou Angel Viana. Finalmente, fica a esperança de que a dança assuma seu lugar de direito na educação infantil, enquanto linguagem expressiva, se possível unindo gerações para a promoção de uma educação verdadeiramente humanizadora, na direção de uma pedagogia do corpo consciente.

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POR QUE UMA MEDIDA PROVISÓRIA?! Sonia Regina Albano de Lima1 (IA-UNESP) Um governo que se diz democrático não deve recorrer às Medidas Provisórias para deliberar sobre assuntos que envolvem a Educação

No dia 23 de setembro de 2016 foi publicado no Diário Oficial da União, seção 1, edição extra, a Medida Provisória n. 746, de 22 de setembro de 2016, que instituiu a Política de Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em tempo integral, alterando a LDB nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 e a Lei nº 11.494, de 20 de julho de 2007, que regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de valorização dos Profissionais da Educação. Não é nossa intenção analisar integralmente este ordenamento, mas os prejuízos advindos da falta de inclusão das Artes no Ensino Médio, tendo em vista que esta é a área de conhecimento em que atuo enquanto professora e pesquisadora. Em linhas gerais, a leitura atenta deste dispositivo traz: • No artigo 1º: A reformulação dos artigos 24, 26, 36, 44, 61 e 62 da LDB n. 9394/96; • No artigo 2º: A reformulação do artigo 10 da Lei n. 11.494, de 20 de junho de 2007; • No artigo 13º: A revogação da Lei nº 11.161, de 05 de agosto de 2005, que obrigou o ensino da língua espanhola nas escolas, com matrícula facultativa para o aluno. Considere-se neste dispositivo a impropriedade da redação, já que aquilo que é currículo obrigatório para as escolas não pode ser ao mesmo tempo facultativo para os alunos. 1

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Presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Música. Possui doutorado em Comunicação e Semiótica – Artes pela PUCSP; Pós-doc. em Música pelo IA-UNESP, Bacharelado em Direito pela USP. Foi Diretora da Faculdade de Música Carlos Gomes e da Escola Municipal de Música de São Paulo. Atua no Programa de PósGraduação em Música do IA-UNESP. Possui inúmeras publicações de livros e artigos científicos na área de educação musical, música e interdisciplinaridade.

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Para elucidar o leitor verifica-se que o caput do artigo 24 da LDB 9394/96 trata da organização da educação básica; o caput do artigo 26 relata como se processam os currículos da educação infantil, do ensino fundamental e do ensino médio; o caput do artigo 36, reformulado pela MP, relata que o currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino. O § 3º do artigo 44 da LDB n. 9394/96, com uma redação bastante confusa, atribui ao BNCC a função de definir as competências, habilidade e expectativas de aprendizagem, respeitado o disposto nos incisos I a IV do artigo 36, a saber: linguagens, matemática, ciências da natureza e ciências humanas, em processos seletivos relatados no inciso II do artigo 44. Este inciso por sua vez, revela que a educação superior abrangerá entre outros cursos e programas, os cursos de graduação, abertos a candidatos que tenham concluído o ensino médio ou equivalente e tenham sido classificados em processo seletivo. Vejamos a redação do § 3º do art. 44. § 3º O processo seletivo referido no inciso II do caput considerará exclusivamente as competências, as habilidades e as expectativas de aprendizagem das áreas de conhecimento definidas na Base Nacional Comum Curricular, observado o disposto nos incisos I a IV do caput do art. 36 (BRASIL, LDB N. 9394/96).

O artigo 10º da Lei nº 11.495, de 20 de junho de 2007, que cuida da distribuição proporcional de recursos dos Fundos, levando em conta as diferenças entre etapas, modalidades e tipos de estabelecimento de ensino da educação básica, incluiu 5 novos incisos aos já existentes: formação técnica e profissional; segunda opção formativa de ensino médio; educação especial; educação indígena e quilombola; educação dos jovens e adultos com avaliação no processo; educação de jovens e adultos integrada a educação profissional de nível médio, com avaliação do processo. É bom relatar que esta Lei regulamenta o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, de que trata o art. 60 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Embora não seja nossa intenção avaliar este quesito, observa-se na leitura dos artigos 3º a 12º da MP, uma preocupação um tanto exagerada por parte do governo de regulamentar e instituir, no âmbito do Ministério da Educação, a Política de

Fomento à Implementação de Escolas de Ensino Médio em período integral. De maneira sucinta os artigos preveem:

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O repasse de recursos do Ministério da Educação para os Estados e para o Distrito Federal, em prazo máximo de 4 anos por escola, captado da data do início de sua implementação; A forma como serão transferidos esses recursos; Como serão aplicados; Como serão supervisionados (BRASIL, MP nº 746/2016, artigo 5º a 12º).

Personalidades ligadas à educação manifestaram certa apreensão com relação a este assunto. A doutora em Educação, Prof. Mirian Celeste Martins, no dia 26 de setembro de 2016, assim se manifestou: Fomos tomados de surpresa com a Medida Provisória (MP) 746/2016 de 22 de setembro. O Ensino Médio precisa de uma reformulação e ela vem em boa hora. [...] Entretanto, de imediato é possível notar alguns aspectos que demandam grande atenção. 1 – Sobre as verbas para a educação. O Secretário da Educação do Estado de São Paulo, José Renato Nalini (mestre e doutor em Direito Constitucional), afirmou em matéria publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 24 de setembro, que deve usar espaços de escolas privadas: “ Vamos poder usar recurso (espaço) de escolas privada. O Sistema S (formado por SENAI e SESC, entre outros), então vamos aproveitar tudo”. Usar recursos é bom, mas para onde iriam as verbas? Parece haver uma brecha para que todas as escolas que se adequarem ao sistema possam receber verba pública. Verbas para a iniciativa privada? E as escolas públicas continuariam com a precariedade em que se encontram? [...] A MP não foi um bom início, mas desvela que tudo estava engendrado há muito tempo. Menos é mais? Ainda lidamos mais com conteúdos do que com conceitos, mais com objetivos, do que propostas que os permitam acontecer... A MP atacou com vara curta e impulsiona o repensar a educação e a profissão docente. E exige de cada um de nós, educadores, cidadãos, bem como de nossos secretários de educação muita atenção, sensibilidade, inteligência e tempo para aprofundar os detalhes importantes que parecem apenas esboçados (Entrevista Mirian Celeste Martins). 2

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https://www.facebook.com/mirianceleste.martins/posts/10207411244500582?comment_ id=10207442690126703. Entrevista Mirian Celeste Martins, acesso em 28 de setembro de 2016

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O professor Paulo Carrano da Universidade Federal Fluminense na área de educação, Pós-doutor pela Universidade de Lisboa, em entrevista concedida em 05/10/2016, assim se posiciona quanto a matéria: [...] quando o Ministério da Educação e o governo federal dizem que esse compromisso de repasse de recursos é apenas durante quatro anos, eles estão na verdade se desresponsabilizando, deixando na mão dos estados, o que é uma outra contrariedade com o Plano Nacional de Educação. O PNE não desresponsabiliza o governo federal. Agora, existe uma clara intenção de fazer com que a política educacional no âmbito federal esteja de acordo com a PEC 241, que congela recursos e investimentos na Saúde, na Educação e na área social. Há todo um arranjo econômico e também ideológica, de minimização do Estado a que essa Medida Provisória também vem responder. [...] Então, o que está se intuindo? É que, sob a força da MP e da lei, os estados possam ter a garantia legal de fazer parcerias com o Sistema S, para fazer esse credenciamento por disciplina. Seria até possível que a sociedade brasileira concordasse com isso, mas é preciso debater, não usar de subterfúgios para implantar um modelo de parceria público-privada que não foi em nenhum momento consagrado no voto (Entrevista Paulo Carrano). 3

O Prof. João Cardoso Palma Filho, professor titular da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, em resposta às solicitações de análise dos professores do IA-UNESP, considera que se afigura um tanto evidente que o principal objetivo da reforma do ensino médio é transferir recursos já escassos e congelados a partir de 2016, para a iniciativa privada, principalmente na opção ensino técnico, pois a rede regular da Secretaria da Educação não suporta ampliar o atendimento, mal consegue atender o ensino médio da forma como se encontra hoje. Para ele não existe a menor possibilidade de a rede estadual oferecer as 5 áreas. É aí que entra a iniciativa privada, principalmente, com a sua rede de cursos técnicos. Inúmeros pesquisadores, professores e autoridades da educação tem redigido textos que estão sendo publicados na internet envolvendo essa temática, contudo, em nosso artigo pretendemos nos ater mais enfaticamente às questões de maior interesse para a nossa área (Artes e Música). Assim dito, verificamos que no art. 24 da LDB nº 9394/96 foi adicionado um parágrafo único destinado ao ensino médio, prevendo o aumento progressivo da carga curricular mínima de 800 horas para 1.400 horas, desde que 3 https://paulocarrano.wordpress.com/2016/10/03/entrevista-paulo.carrano/ . Entrevista com Paulo Carrano, acesso em 2 de outubro de 2016.

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respeitadas as normas previstas no sistema de ensino e as diretrizes, objetivos, metas e estratégias de implementação previstas no Plano Nacional de Educação (PNE). O poder decisório sobre esta medida e outras delineadas neste texto legal não cabe ao governo, mas a outros órgãos. Caberia então indagar: Seria este dispositivo legal uma MP ou poderia ser classificada como uma nova lei a ser agregada ao texto original da LDB n. 9394/96, como tantas outras já implantadas? Este fato não passou desapercebido para o Prof. Paulo Carrano que assim se retratou: E aí uma incongruência muito grande é que muitas lacunas dessa Medida Provisória estão para ser sanadas com uma Base Nacional Comum Curricular que não existe. Então é um contrassenso. Por lei, a MP já está valendo, mas na prática ela não pode gerar efeitos porque tem essa lacuna, tem essa dependência da Base Comum Curricular. E um absurdo maior [...] é que se essa Base não for aprovada até meados de 2017, ela vai ser legada para o novo governo. Então, é um Cavalo de Troia que está se deixando também para quem chegar (Entrevista Paulo Carrano).

Realmente a Base Comum Curricular há algum tempo está paralisada. O Prof. Dr. Marcos Garcia Neira, da Faculdade de Educação da USP, especialista nomeado a partir de junho de 2015 para atuar na BNCC, em entrevista divulgada na Internet4, ao se reportar ao trabalho realizado na BNCC, declara que durante um ano e meio um grupo grande de pessoas com trajetórias ligadas aos percursos curriculares e professores em atuação na educação básica, trabalharam na elaboração de um documento que pudesse fundamentar, apoiar e ajudar as escolas do Brasil e os sistemas de ensino, entretanto, com as mudanças havidas no cenário político, a BNCC foi colocada de escanteio, inclusive foi acusada de ser um documento ideológico, um documento contaminado com certas visões de mundo. Neira declara que esses argumentos devem ser relativizados, pois um texto construído por um grupo tão plural e com a participação de 12 milhões de contribuintes que fizeram suas críticas, suas análises, suas contribuições, suas sugestões, seria um material para estudo e um material de apoio, não só para o professor como também para a Secretaria de Educação. Vejamos o que relata esse especialista:

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https://m.facebook.com/story.php?story_fbid=1512613272098212&substory_ index=66&id=100000486629296, acesso em 02 de outubro de 2016. Entrevista de Marcos Garcia Neira. Acesso em 3 de outubro de 2016.

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O documento (BNCC) passou por uma etapa de discussões nos seminários estaduais, em alguns desses seminários parte do documento relativo ao ensino médio simplesmente não foi discutida porque já se anunciava que viria uma reforma específica no ensino médio e, portanto, não seria necessário abordar o ensino médio [...] esse tal novo ensino médio, essa proposta de reforma, chega às pressas de afogadilho, atropelando todo o processo de discussão da base, inclusive essa etapa dos seminários estaduais. [...] Nós nos sentimos bastante constrangidos diante desses fatos, diante de uma ação autoritária, desconectada da realidade e sem a menor intenção de dialogar com os professores e professoras que estão na sala de aula. [...] Eu não tenho dúvidas que os efeitos deste novo ensino médio serão tremendamente terríveis, sobretudo nas camadas mais humildes da população. Segundo o texto, ficará a critério das instituições oferecer as áreas de aprofundamento. Nós sabemos que o Brasil enfrenta uma dificuldade muito grande para formar professores das áreas das ciências naturais e da matemática, então nós não temos dúvida que provavelmente a maior parte do ensino médio público atenderá às áreas de linguagens e de ciências humanas e no ensino privado nada mudará. O ensino privado continuará com esse ensino propedêutico, porque a lógica do ingresso no ensino superior continua sendo a mesma. Se não mexermos nesse processo, a tendência será essa. [...] como anunciou o professor G. Frigotto, nós teremos um retorno à reforma Capanema, lá nos anos 40, ou seja, nós teremos um ensino que segrega [...] Esse documento anuncia uma profissionalização que interrompe o percurso de acesso aos conhecimentos, que interrompe o percurso acadêmico, que interrompe o percurso escolar dos jovens. Então o documento, essa reforma, ela se anuncia bastante problemática para a realidade brasileira.

Não bastasse esta discussão inicial é bom relatar que não ficou claro no transcorrer da redação da MP se a carga curricular mínima estipulada para o ensino médio em tempo integral será destinada também para os alunos que estudam no período noturno, considerando-se que, via de regra, ele abriga jovens e adultos que já exercem alguma atividade profissional no período diurno, o que inviabiliza a aplicação de uma carga curricular tão extensa. O professor Paulo Carrano também se pronunciou a respeito: [...] algo que a Medida Provisória praticamente ignora, deixa ausente: a enorme quantidade de jovens que estão no ensino noturno. Cerca de 30% dos jovens do ensino médio estudam no noturno. Então como é que você faz compulsoriamente uma escola de horário integral para alunos trabalhadores? Como uma MP que altera a LDB não se refere à Educação de Jovens e Adultos (EJA)? Então, você tem aí o discurso da

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escolha como um adjetivo, uma ilusão, mas que não resiste ao menor confronto com a prática, em termos de realidade e objetivo dos estudantes (Entrevista Paulo Carrano).

O especialista Marcos Neira ao se reportar a esse fato não deixa de manifestar seu espanto, afirmando que as pessoas que elaboraram esse documento desconhecem a realidade escolar do país. Ele considera que há cerca de 3 milhões e meio de alunos no ensino médio, sendo que aproximadamente 2 milhões deles estudam à noite porque trabalham durante o dia, portanto, é importante criar propostas adequadas a esta realidade. Neira também considera temerário apregoar um ensino médio de tempo integral se os conhecimentos a serem repassados para esses alunos não forem suficientemente interessantes: “alardear que o ensino passará a ser de 7 horas diárias sem considerar que uma parcela grande dos alunos estuda à noite e sem considerar o que faremos nestas 7 horas diárias, isso traz problemas” (Entrevista de Marcos Neira). Esses relatos apresentam pontos importantes que foram desconsiderados pela MP e deixa-nos uma outra dúvida: Em que medida um ensino médio de tempo integral pode deixar de incluir em sua matriz curricular disciplinas tão importantes como as artes, a educação física, a sociologia e a filosofia? Como não propiciar aos nossos jovens e adultos atividades circunscritas a essas disciplinas que poderão contribuir favoravelmente para o seu desenvolvimento intelectual, físico, emocional e ético? Continuando nossa análise, as alterações formuladas pela MP com respeito ao § 1º do art. 26 da LDB, determinam que serão currículos obrigatórios no ensino médio, o estudo da língua portuguesa e da matemática para os três anos letivos, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente da República Federativa do Brasil, observado na educação infantil, o disposto no art. 31, no ensino fundamental, o disposto no art. 32, e no ensino médio, o disposto no art. 36. Este artigo 36, por sua vez, determina que o currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas, formação técnica e profissional, o que se coaduna com o disposto ditado no § 1º do art. 26 acima relatado. Nos parágrafos 2º, 3º e 5º do art. 26 da LDB, ficou determinado que o ensino das artes, da educação física e da língua inglesa são componentes curriculares obrigatórios da educação infantil e do ensino fundamental. No que diz respeito ao ensino das artes, observamos que em nenhum momento a MP determinou que essa disciplina fosse optativa ou obrigatória no ensino médio,

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fato que propagou diversas notas de repúdio das associações e dos pesquisadores ligados à área. Não vamos nos reportar ao ensino da educação física e das demais disciplinas não priorizadas pela MP, pois seus profissionais já estão se manifestando com veemência nas redes sociais e em suas associações de classe. O Prof. Marcos Neira assim se pronunciou quanto ao fato: Os nosso colegas que também trabalharam na elaboração da Base Nacional Comum Curricular também já estão se articulando na tentativa de produzir uma resposta e um documento para serem encaminhados para o Ministério da Educação, alardeando os efeitos perversos desse projeto, e também o pessoal do grupo de trabalho temático escola do Colégio Brasileiro de Ciências dos esportes, nessa madrugada também já produziu um texto para ser encaminhado para as autoridades revelando, demonstrando, indicando, apontando, todos os problemas que esse novo ensino médio trará para a área de educação física, para os professores de educação física e, principalmente, para os jovens e adultos brasileiros que estarão alijados desse direito (Entrevista Marcos Neira).

Quanto ao ensino das artes, verificamos que a nova redação conferida ao § 8º do artigo 36 da LDB, deixou bem claro a obrigatoriedade do ensino da língua inglesa nos três anos do ensino médio e optativo para o aprendizado de outra língua. No entanto, com relação às Artes, em nenhum momento houve menção de que ela seria uma disciplina optativa no ensino médio e, mesmo que o fosse, seria temerário pensarmos em um ensino artístico optativo na educação básica em geral, considerando-se a fragilidade com que ele foi conduzido nos últimos 40 (quarenta) anos, principalmente, com relação ao ensino musical. Psicólogos, médicos, físicos sociólogos, antropólogos e educadores em geral têm mensurado os fatos e fenômenos importantes circunscritos à música a partir de testes diversos e exames neurofisiológicos. Estes experimentos trazem para a música uma função sociocultural e humanitária importante, fato que justifica a sua inclusão na educação básica e nos cursos de formação de docentes (LIMA, 2016, p.164). O iminente pedagogo José Carlos Libâneo assim pondera sobre o ensino das artes, da ciência e da cultura: Escola existe para formar sujeitos preparados para sobreviver nesta sociedade para isso, precisam de ciência, da cultura, da arte, precisam saber coisas, saber resolver dilemas, ter autonomia e responsabilidade

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saber dos seus direitos e deveres, construir sua dignidade humana, ter uma autoimagem positiva, desenvolver capacidades cognitivas para se apropriar criticamente dos benefícios da ciência e da tecnologia em favor do seu trabalho, da sua vida cotidiana, do seu crescimento pessoal (LIBÂNEO & SANTOS, 2005, p. 21).

Libâneo relata que, em função de privilegiarmos uma razão voltada quase que inteiramente para o cientificismo, as teorias pedagógicas modernas abafam os sentimentos, a imaginação, a subjetividade e a liberdade. O acúmulo de conhecimentos científicos e técnicos trazidos pela modernidade faz surgir diversos campos disciplinares, no entanto, esses saberes permanecem isolados, fragmentados, ignoram o conjunto de que fazem parte e o significado que lhes é destinado na soma de saberes (LIMA, 2016, p. 169). Com certeza não podemos negar a proposta tecnicista e reducionista atribuída ao ensino médio na MP. O Prof. Paulo Carrano assim se expressa quanto a esse fenômeno: E aí, reside outro reducionismo que é termos uma reestruturação do ensino médio em torno de disciplinas rainhas: português e matemática. Ou seja, todas as outras são servas dessas duas grandes disciplinas que dirigem o processo educacional. E isso num momento em que a sociedade brasileira precisa se repensar é muito grave. Se a escola é lugar do conhecimento, também é o local do pensamento, e deve contribuir para que o estudante pense sobre si, sobre o seu próprio corpo, sobre a sua própria consciência de si, sobre a sua relação com o outro e como essa relação se insere na sociedade. Isso não se faz só com português e matemática. Evidentemente que se faz com todo um arranjo ético, político, institucional que envolve essas disciplinas que foram secundarizadas ou arrancadas do currículo. Então, além dessa forma autoritária que já está sendo criticada por quase toda a comunidade educacional interessada em aprofundar a democracia no Brasil, tem também esses equívocos do ponto de vista da organização (Entrevista Paulo Carrano).

A remodelação imposta no artigo 36 da LDB 9394/96 pela MP é determinantemente tecnicista quando insere itinerários formativos específicos em apenas algumas áreas de conhecimento e tem como indicação a formação técnica e profissional presente no inciso V, combinado com o que dispõe o § 11: § 11; A critério dos sistemas de ensino, a oferta de formação a que se refere o inciso V do caput considerará:

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I – A inclusão de experiência prática de trabalho no setor produtivo ou em ambientes de simulação, estabelecendo parcerias e fazendo uso, quando aplicável, de instrumentos estabelecidos pela legislação sobre aprendizagem profissional, e II – A possibilidade de concessão de certificados intermediários de qualificação para o trabalho, quando a formação for estruturada e organizada em etapas com terminalidade (BRASIL, MP. 746/16).

Há muito o pesquisador e filósofo Antonio Joaquim Severino tem demonstrado a subversão pela qual passa a educação contemporânea, já que o tecnicismo está presente em todas as formas de apreensão do conhecimento, principalmente nos cursos de formação universitária. A humanidade alicerçada na evolução tecnológica e na globalização tem priorizado um conhecimento restrito à eficácia técnica em todos os campos de saber. A preparação técnico-operacional que habilita um profissional para atuar na produção econômica é o norteador de uma educação contemporânea (LIMA, 2016, P. 151). Entendemos que esse comportamento tecnicista repassado para o ensino médio é temerário, não que a formação técnica e profissional não seja importante aos jovens brasileiros, considerando-se que o país não dispõe de um número significativo de alunos que adentram no ensino superior. O que nos parece altamente prejudicial é atribuir ao ensino médio um caráter eminentemente tecnicista, o que pode se concluir na leitura desta MP. Em moção contrária à reforma do Ensino Médio elaborada durante a 306ª Reunião Ordinária da Congregação da Faculdade de Educação da UNICAMP, no dia 28 de setembro de 2016, a Presidente da Congregação, Prof.ª Dr.ª Dirce Djanira Pacheco e Zan relatou que a MP prejudica a formação dos estudantes, induzindo a uma profissionalização precoce, promovendo um estreitamento curricular significativo com a flexibilização da oferta de disciplinas que desobriga o ensino de artes, educação física, sociologia e filosofia: Tal medida subtrai aos estudantes o direito a uma formação geral e, por conseguinte, seu preparo para a cidadania, contrariando, assim, o disposto na Constituição e na LDB/96. Acrescente-se que tais prejuízos afetam principalmente os estudantes das camadas populares, que têm na escola pública seu principal – senão único – meio de acesso aos saberes historicamente produzidos pela humanidade e necessários à sua formação integral. Configura-se, assim, em um mecanismo de aprofundamento da desigualdade social no país. Acreditamos que esta medida provisória reproduz uma história de segregação social na reformulação do currículo do país já experimentada com a Lei n. 5692/71 (PACHECO E ZAN, Deliberação n. 238/2016).

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Não há que se falar que a MP teve o mesmo entendimento da BCNN com respeito a utilização da palavra linguagens. A Base Curricular vê as artes com formas diferenciadas de linguagem, diferentemente do que relata a MP nos artigos 26 §1º e 36, inciso I e § 9º. Vejamos o que cada um desses dispositivos retrata: A utilização do termo linguagens, no plural, aponta para a abrangência do aprendizado na área de conhecimento, que recobre a linguagem verbal, musical, visual e corporal, e para a integração desses recursos expressivos na participação na vida social. O termo abrange também diferentes formas de experiências: estéticas, sensoriais, sensíveis, corporais, sonoras, sinestésicas, imagéticas, performativas. Cada prática de linguagem propicia ao sujeito uma dimensão de conhecimentos à qual ele não teria acesso de outro modo. Interagir em diversas línguas, manifestações artísticas e práticas corporais gera um tipo específico de conhecimento, possibilitando perceber o mundo e a si próprio/a de um modo singular (BRASIL, BCNN, 2º versão, p. 86). Art 26 – § 1º Os currículos que se refere o caput devem abranger obrigatoriamente o estudo da língua portuguesa e da matemática [...] (BRASIL, MP. 746/16) Art. 36. O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos específicos, a serem definidos pelos sistemas de ensino, com ênfase nas seguintes áreas de conhecimento ou de atuação profissional: I – linguagens; § 9º – O ensino da língua portuguesa e matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio (BRASIL, MP nº 746/16).

Como se vê, não há a menor possibilidade de se atribuir à palavra “linguagens” na MP o mesmo significado conferido pela BNCC, mesmo porque esta base, ao especificar as Artes como linguagens também determinou que o componente curricular Arte englobaria as 4 linguagens (Artes Visuais, Dança, Música e Teatro), estabeleceu seis dimensões para a construção do conhecimento em artes na escola (criação, crítica, estesia, expressão, fruição e reflexão) e o que era específico a cada uma dessas linguagens (BRASIL, BCNN, 2016, p. 112-118). Na introdução referente aos fundamentos do Componente a BNCC assim se expressa:

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A trajetória do ensino e da aprendizagem das artes no Brasil é paralela à luta de profissionais comprometidos com a construção de políticas educacionais que subsidiam a qualificação das artes na escola. As lutas têm sido por um “saber de base”, um saber específico”, que reconheça as artes como conhecimentos imprescindíveis na formação plena do cidadão, rompendo com a atuação polivalente estabelecida pela LDB n. 5.692/71, que incluía a “ Educação Artística” no currículo como atividade complementar de outras disciplinas. A partir da década de 1990, a LDB n. 9394/96, os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) reconhecem a especificidade das artes visuais, da dança, da música e do teatro como conhecimento, bem como a necessidade de formação específica para o professor. [...] O ensino e a aprendizagem dos conhecimentos artísticos na escola favorecem o respeito às diferenças e o diálogo intercultural, pluriétnico e plurilíngue [...] (BRASIL, BCNN, p. 112).

A partir desta leitura pode-se depreender o quão cauteloso foi o trabalho desta Base Comum com relação ao ensino das Artes. O forte apelo tecnicista da MP com relação a se desenvolver no ensino médio, uma base curricular mais voltada para as exigências do mercado trabalho sem incluir disciplinas voltadas a formar um cidadão com valores éticos, estéticos, morais e mais sensibilizados para as artes e a cultura do seu país, vai na contramão do que os pesquisadores ligados à área da educação têm propagado insistentemente. Em nenhum artigo a MP tratou de questões envolvendo a valorização das artes e da cultura. Deve ser pontuado ainda, que em se tratando da implantação de um ensino médio de tempo integral, justificar-se-ia a adoção de uma matriz curricular menos tecnicista, uma vez que o acréscimo de tempo deveria ensejar a inserção de campos de conhecimento diversos, ações e atividades artísticas e culturais que aprimorariam o desenvolvimento cognitivo, afetivo e corporal dos alunos. A MP não poderia abrir mão de um estudo tão apurado como o que se vê na 2ª versão da BNCC que dialogou com seus pares na difusão de uma remodelação curricular. A MP também prevê que os sistemas de ensino poderão compor seus currículos com base em mais de uma área previstas no caput do artigo 36, sendo que caberá ao BNCC, definir a organização das áreas, as respectivas competências, habilidade e expectativas de aprendizagem. Os currículos também deverão considerar a formação integral do aluno conforme diretrizes definidas pelo Ministério da Educação e a parte diversificada dos currículos de que trata o art. 26 deverá estar integrada à BNCC. Poderá ser instituído no ensino médio o sistema modular e o sistema de crédito ou disciplinas com terminalidade específica, observada a normatização instituída pelo BNCC.

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Observa-se novamente que a MP outorga a decisão e a incumbência de dispor de ações referentes às diversas remodelações curriculares ao BNCC e ao Ministério da Educação. Então não seria mais adequado conferir a esses organismos a tarefa de concluir os trabalhos já iniciados há longa data, dispensando o executivo de se pronunciar por meio de MP? Que impacto espera o governo da sociedade, quando implanta uma medida que desconsidera um arsenal de medidas, ações e atitudes já dialogadas por profissionais bem mais qualificados na área educacional? Não se pode negar que o § 16 do artigo 36, conforme expresso em MP, é inovador ao admitir a convalidação dos conteúdos curriculares cursados durante o ensino médio para aproveitamento de créditos no ensino superior, após normatização do Conselho Nacional de Educação e homologação pelo Ministro de Estado da Educação. Se realmente adotada esta diretriz, os alunos dos cursos superiores de Arte serão bastante beneficiados ao comprovarem seu conhecimento artístico obtido nos cursos técnicos de Arte, fato totalmente desconsiderado na atualidade. Enquanto diretora de uma Faculdade de Música, por diversas vezes constatei que alunos com um conhecimento musical efetivo obtido nos Conservatórios e Escolas de Música de ensino técnico não puderam ser validados, o que os obrigava a frequentar aulas com alunos que não tinham nenhum conhecimento musical, fator bastante desabonador. No § 17 do artigo 36, a MP conferiu maior autonomia aos sistemas de ensino, diante da possibilidade de reconhecer, mediante regulamentação própria, conhecimento, saberes, habilidades e competência, sob diferentes formas de comprovação, instituindo como modelo 6 modalidades, entre elas, educação a distância ou educação presencial, mediada por tecnologias. Essa medida se implantada pode beneficiar os adultos que participam do ensino médio e que já seguem uma determinada área de conhecimento, mas não beneficiará os jovens que adentram as instituições e não têm nenhum tipo de formação que possa ser aproveitada. De certa forma, se implantada essa medida em caráter geral, haverá por parte da educação uma ingerência para formar mais técnicos. Não desconhecemos que a base curricular do ensino médio exige uma remodelação, mas não se pode ignorar o prejuízo de se retirar da matriz curricular do ensino médio disciplinas que de certa forma são importantes para o desenvolvimento integral dos jovens e adultos. De maneira geral a redação contida na MP, traz à tona o descaso do legislador para os ordenamentos que já foram aprovados após longa discussão pelos órgãos competentes. No que se reporta ao ensino da música, professores, pesquisadores e associações como a ABEM e a ANPPOM, tiveram ordenamentos aprovados para tornar o ensino musical obrigatório, depois de uma longa discussão com

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parlamentares e o Conselho Nacional de Educação – Câmara de Educação Básica, sem contar outras discussões que ainda estão sendo avaliadas pelos órgãos competentes juntamente com as entidades da classe artística. Tais dispositivos legais não devem ser menosprezados por uma MP que entendemos ser bastante ditatorial. Não podemos desprezar a Lei nº 12.287, de 13 de julho de 2010, que alterou o art. 26, § 2º da LDB n. 9394/96, obrigando o ensino da arte, como componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. A Lei Ordinária 11.769, de 18 de agosto de 2008, que alterou o art. 26, § 6º da LDB n. 9394/96, obrigando a inserção da música como conteúdo obrigatório na educação básica, ainda que não exclusivo, também deve ser respeitada5. De grande importância para a classe musical o Parecer CNE/CEB nº 12/2013 e Projeto de Resolução, aprovado em 04 de dezembro de 2013, homologado pelo Ministro da Educação no dia 05 de maio de 2016, que define as Diretrizes Nacionais para a operacionalização do ensino de Música na Educação Básica. Tal ordenamento resulta de uma ampla discussão promovida pelo CNE em conjunto com os diversos profissionais ligados ao ensino de música. A participação da comunidade musical e das associações de classe foram de suma importância na aprovação deste parecer. Sua redação é minuciosa e clara, contendo um histórico do tema junto ao CNE detalhando os simpósios, as audiências públicas e as reuniões técnicas que subsidiaram a sua aprovação, um relato sucinto do processo de construção do ensino de música no Brasil e como a música pode incorporar um projeto educativo. Aqui foram expostas algumas pesquisas desenvolvidas pela neurociência e estudos diversos demonstrando a importância da inclusão do ensino musical na educação básica. Vejamos parte desse relato: Nas últimas décadas, pesquisas, em especial da neurociência, têm demonstrado a importância da música para o desenvolvimento humano, o funcionamento cerebral e a formação de comportamentos sociais. Considerado como um direito humano, o acesso ao estudo formal de Música atua de forma decisiva no processo de formação humana, afetando os processos de aprendizagem, inclusive os escolares. Assim, o estudo de Música é instrumental para modificar o funcionamento do cérebro em dimensões ligadas às aprendizagens dos conhecimentos formais e de outros fazeres do ser humano. A música mobiliza inúmeras áreas do 5

Entenda-se como Educação Básica aquela definida na LDB n. 9394/96: “Art. 21. A educação escolar compõe-se de: I – educação básica, formada pela educação infantil, ensino fundamental e ensino médio; II – educação superior (BRASIL, LDB nº 9394/96)”

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cérebro, integrando-as de forma única em relação a outras atividades humanas. Segundo Gazzaniga (2008), existem ligações específicas entre o estudo de Música e a habilidade de manipular informação tanto na memória de trabalho (usada para pensar), como na memória de longa duração (usada para arquivar os conteúdos aprendidos, os métodos e a experiência). Nesse sentido, o estudo de Música impacta a aprendizagem de outras áreas do conhecimento, além de formar comportamentos de atenção que impulsionam e melhoram a cognição. Assim, a educação musical atua diretamente no cérebro, promovendo a atenção executiva, necessária para formar memórias de qualquer área do conhecimento formal e de suas metodologias. A prática musical também contribui para a interação social e formação de identidade cultural, fortalecendo os vínculos entre os membros de uma comunidade. Além disso, a música pode ter também um papel central no tratamento de doenças, melhorando o estado físico do organismo e facilitando a cura em muitos casos. O cérebro humano é aparelhado para comunicação e uma dessas formas é a música, que transmite sentimentos e emoções que a própria fala não consegue traduzir em palavras. A prática musical também cria condições especiais de comunicação, tais como aquelas entre e com as pessoas com deficiência (surdas, cegas, mudas, com síndromes, com alterações em seu desenvolvimento, patologias, paralisia cerebral, entre outros) (BRASIL, Parecer CNE/CEB nº 12/2013).

Outro ordenamento que merece destaque e não pode ser menosprezado é a Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação, publicado no DOU de 26 de junho de 2014, edição extra, seção I. Nele a interdisciplinaridade está presente nas diversas metas e estratégias instituídas, como medida salutar ao ensino. O dispositivo legal descreve algumas ações educativas interdisciplinares que poderão ser aplicadas no ensino, no sentido de repassar para a educação conteúdos curriculares que interligam o trabalho, a cidadania, os valores morais e éticos, os valores humanísticos, científicos, culturais e tecnológicos. Uma matriz curricular extremamente tecnicista como a que está determinada na MP, corre na contramão do processo de formação apregoado pela Educação, pois não contempla ações pedagógicas interdisciplinares, já valorizadas pelas ciências e pela educação. Com o processo de especialização do saber perpetuado pelo cientificismo, a interdisciplinaridade tem sido uma resposta benéfica para a excessiva compartimentalização do conhecimento. De certa foram ela veio para combater a fragmentação do conhecimento instaurado pelo positivismo, desenvolvendo para a ciência, novos saberes, novas formas de aproximação com a realidade social, novas leituras das

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dimensões socioculturais. Na Educação, entre outras possibilidades, ela pode contribuir para a implantação de novas finalidades na formação profissional e na atuação do professor, na remodelação curricular dos cursos tanto na educação básica como na superior, na constituição de novos ordenamentos educacionais e na integração das escolas com as comunidades circundantes (LIMA, 2016, p. 128 -129).

Não se pode ignorar, já que nem a própria MP o fez, a última versão do que poderá ser a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) prevista na Constituição para o ensino fundamental e ampliada no PNE para o ensino médio. Este documento tem como propósito, renovar e aprimorar a educação básica como um todo e detém um forte sentido estratégico nas ações de todos os educadores e gestores de educação no Brasil e já conta com propostas educacionais veiculadas e dialogadas com a sociedade. Em linhas gerais, a BNCC traça os princípios orientadores da base nacional comum curricular, inclusive os que dizem respeito as Artes. De acordo com a redação apresentada pelo MEC, a Base Nacional Comum Curricular pretende deixar claro os conhecimentos essenciais pelos quais todos os estudantes brasileiros têm o direito de ter acesso e se apropriar durante sua trajetória na Educação Básica, ano a ano, desde o ingresso na Creche até o final do Ensino Médio. Com ela os sistemas educacionais, as escolas e os professores terão um importante instrumento de gestão pedagógica e as famílias poderão participar e acompanhar mais de perto a vida escolar de seus filhos. Ela será parte do Currículo e orientará a formulação do projeto Político-Pedagógico das escolas, permitindo maior articulação deste. A partir da BNCC, os professores poderão escolher os melhores caminhos de como ensinar e, também, quais os outros elementos que precisarão ser somados nesse processo de aprendizagem e desenvolvimento dos alunos, respeitada a diversidade, as particularidades e os contextos de onde estão. Também deve ser considerada a recente Lei n. 13.278, de 2 de maio de 2016, que altera o § 6º da LDB n. 9394/96, passando a vigorar com a seguinte redação: § 6º – As artes visuais, a dança, a música e o teatro são as linguagens que constituirão o componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. Artigo 2º – O prazo para que os sistemas de ensino implantem as mudanças decorrentes desta Lei, incluída a necessária e adequada formação dos respectivos professores em número suficiente para atuar na educação básica, é de cinco anos. (BRASIL, LDB 9394/96).

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Mais antigos e sem menor importância devem ser mencionados os Parâmetros Curriculares Nacionais: Arte (BRASIL: MEC/SEF, 1997, v. 6) e o Parecer CNE/CES 0195/2003, aprovado em 04 de agosto de 2003, publicado no DOU em 12 de fevereiro de 2004, seção1, p. 14, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais dos cursos de Graduação em Música, Dança, Teatro e Design. Ambos tem sido bastante empregados pelas instituições escolares para implantar seus cursos e suas ações pedagógicas. Desconsiderar esses ordenamentos em prol da implantação de uma MP parece-nos bastante infundado, considerando-se que toda a legislação aqui elencada foi aprovada depois de uma luta considerável promovida pela classe artística. Como se depreende, a Educação pelos seus órgãos competentes, não está adormecida para deliberar sobre a matéria que lhe compete, falta a observância e o conhecimento dessas questões por parte do governo, para que decisões mais acertadas sejam introduzidas na sociedade e no ensino. Também há que se considerar que não é só o ensino médio que precisa ser reformulado. Como sempre as ações vêm de cima para baixo, a reformulação curricular deveria ter início já na educação infantil, quando se constata um nível de analfabetismo alarmante. Sem menor razão, afastar os estudantes de atividades artísticas que auxiliam a criatividade, a reflexão, a sensibilidade, o contato do indivíduo com sua própria subjetividade, o que poderia transforma-los em seres mais saudáveis emocionalmente e intelectualmente, seria negar o sentido do que prega a educação atual. Se imposta a presente MP à população, sem maiores discussões, com certeza os cursos de formação superior de docentes na área de artes serão minimizados, pela impossibilidade de seus egressos atuarem como docentes devidamente preparados, uma vez que a MP outorga a possibilidade de inclusão de professores sem uma formação específica na educação. Isso representa um desrespeito aos professores, aos estudantes e a área como um todo que tem se esmerado no aprendizado de suas especificidades profissionais. É importante que os direitos dos estudantes e professores de artes da educação básica sejam garantidos e que as discussões de âmbito acadêmico sejam respeitadas. As notas de repúdio veiculadas na mídia por parte de todas as associações artísticas e das áreas que foram discriminadas e a petição6 que visa impedir a aprovação desta MP denotam o quanto esta medida é arbitrária aos olhos da sociedade brasileira. 6

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https://secure.avaaz.org/po/petition/congresso_nacional_Impedir_a_aprovacao_da_ medida_provisoria_que_reformula_o_ensino_medio/?kGNZhlb. Petição na mídia em repúdio a MP.

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O Prof. Dr. Marcos Garcia Neira, em entrevista, retrata o seu descontentamento com este ordenamento. Ele não contradiz a importância de uma reformulação do ensino médio, que segundo sua perspectiva é conteudista e propedêutico por excelência e que, basicamente, não tem sido mais do que uma ponte para o ingresso de alguns setores da sociedade na Universidade. [...] ninguém esperava que uma proposta viesse com essa cara, com esse teor e que apresentasse vários pontos que, no meu entendimento, precisam ser rapidamente revogados.[...] essa discussão tem que ser mais ampla, com maior participação da sociedade, sobretudo daqueles setores diretamente envolvidos que são os setores ligados ao magistério, setores ligados aos alunos ou jovens (já que vivemos em uma época em que os jovens se fizeram ouvir – então precisamos ouvir o que eles pensam a respeito da própria educação que está sendo oferecida), bem como, aquelas parcelas da sociedade que deverão receber diretamente os egressos do ensino médio, ou seja, os campos de atuação profissional, o ensino superior e uma série de outras instâncias. Então acho que uma coisa é a necessidade de se repensar o ensino médio e outra coisa é a cara dessa medida provisória (NEIRA, entrevista).

A falta de diálogo presente nesta MP foi apontada pelo especialista ao afirmar: “ é algo que vem de cima para baixo, é algo que foi gestado por um grupo muito pequeno, com quais intenções ninguém sabe, e que vai trazer um impacto muito grande para as escolas, para a vidas das pessoas já a partir do ano que vem”. Também relatou que da forma como vai ser trabalhado o ensino médio, o aprofundamento em determinadas áreas não será possível: Isso é um pouco problemático porque obriga uma mudança curricular que retira o direito de uma grande parcela da população acessar, interagir, conhecer e ampliar o seu universo de conhecimentos. [...] com essas mudanças aquele jovem ou adulto que escolher a área de linguagens e tiver uma carga horária reduzida ou nenhum contato com as outras áreas e com os conhecimentos que vem historicamente caracterizando a área, a possibilidade dele compreender o mundo e dele poder fazer uma intervenção mais qualificada e crítica com muitos, será bastante reduzida (NEIRA, Entrevista).

Não foi esquecido da sua parte a questão da formação de professores e a falta de obrigatoriedade do ensino de psicologia, filosofia, aliado ao ensino das artes e da educação física:

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No momento que você abre para que qualquer pessoa possa assumir a responsabilidade de formar novas gerações, sobretudo na área do ensino médio, onde você precisa de um profissional muito bem qualificado, muito bem formado, isso é temerário, principalmente quando isto está ligado a contratação de um professor sem necessidade de concurso público, como consta na MP. Ou seja, você abre um espaço para clientelismos, para favorecimentos, e nós sabemos, no Brasil afora, como isso pode beneficiar alguns, prejudicando os jovens e adultos que frequentam o ensino médio. [...] eu vejo com muitas ressalvas esse documento, essa possibilidade de mudança, que eles estão chamando de novo ensino médio [...] todos os grupos sociais, todos os grupos humanos, ao longo da história vem produzindo essas formas de expressão da cultura, então, retirar dos estudantes a possibilidade de conhecer isso, retirar dos estudantes a possibilidade de reconstruir, retirar dos estudantes a possibilidade de interagir com esses saberes tão importantes e diversificados, significa, ao mesmo tempo, amputar a possibilidade de uma participação cidadã mais efetiva. São conhecimentos que ganharam relevância nos últimos 50 anos, são conhecimentos que nos constituem enquanto sujeitos, são conhecimentos que nos permitem apurar o nosso olhar crítico para a sociedade (NEIRA, Entrevista).

Diversas associações ligadas ao ensino musical manifestaram seu repúdio a este ordenamento. A Associação Brasileira de Etnomusicologia relata: Esta postura autoritária e desrespeitosa vai na contramão do princípio de “gestão democrática” que representou uma das maiores conquistas de nossa história recente e está garantido no atual Plano Nacional de Educação – 2014/2024 (Lei nº 13.005, de 25 de junho de 2014). A ABET participou com entusiasmo da elaboração do texto preliminar da Base Curricular Nacional Comum para o Ensino Básico num trabalho coletivo que se deu por meio de um amplo diálogo/debate envolvendo gestores públicos, profissionais da educação, associações acadêmicas e a sociedade em geral (ABET, nota de repúdio).7

Igualmente o Presidente da Associação Brasileira de Educação Musical manifestou-se contra a Medida Provisória, manifestando o seguinte relato: A sociedade brasileira tem assumido, cada vez mais, a educação básica como um projeto de nação, com a consciência de que, mais do que 7

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Associação Brasileira de Etnomusicologia. Nota de repúdio: http://abetmusica. org.br/conteudo.php?&sys=noticias.

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transmitir conhecimentos de campos legitimados a partir de tendências pragmáticas de uma educação exclusivamente tecnicista e de cunho neoliberal – tendências essas dominantes no Brasil até o início dos anos 2000 – é preciso uma educação que vise formar fundamentalmente seres humanos. Seres que, além de conhecimentos de sintaxe linguística, de fórmulas matemáticas e de elementos do mundo físico e natural (reconhecendo que esses saberes também são fundamentais para vida), precisam para sua formação plena como humanos de dimensões que perpassam pelas artes, pela filosofia, pela sociologia, pela educação física e por todos os conhecimentos e saberes vinculados às múltiplas faces que configuram a formação do indivíduo (QUEIROZ, 2016).8

Muitas outras notas de repúdio foram publicadas nas redes sociais, inclusive aquela que enviei para a Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Música (ANPPOM) na qualidade de Presidente9. Um fato que nos causou estranheza foi a reportagem publicada na Revista ISTO É10, que contrariando os prognósticos negativos divulgados pelas associações e pesquisadores da área de educação, traz uma matéria ampla relatando os benefícios advindos com a MP. A reportagem relata que este ordenamento se apresenta como a maior mudança na educação nacional dos últimos 20 anos, desde a instauração da LDB n. 93904/96: Além das disciplinas obrigatórias, a ideia é possibilitar ao aluno escolher se aprofundar nas áreas com as quais têm mais afinidade, tornando, assim, o estudo mais atrativo. Há também a preocupação de ampliar o ensino integral. Segundo o presidente Michel Temer, um novo tipo de escola vai surgir a partir desse projeto. “Os jovens poderão escolher o currículo mais adaptado à vocação. Serão oferecidas opções e não mais imposições”, disse. [...] A maneira como a proposta foi colocada, como uma medida provisória, dividiu opiniões entre os especialistas. Para muitos deles, deveria haver mais discussão com representantes de entidades educacionais. O governo se justifica dizendo que a mudança é colocada em caráter de urgência porque não se pode mais esperar [...] Na opinião do presidente do Conselho Nacional de Secretários de Educação, Eduardo Deschamps, as mudanças devem acontecer de maneira gradativa. A adaptação das instituições ao período integral, que já estava em curso, 8 9 10

QUEIROZ, Luis Ricardo Silva; Nota pública da Abem sobre a M. P. n. 746, que altera o ensino médio: http://faeb.com.br/documentos-faeb.html LIMA, Sonia R. A. Nota pública da Presidência da ANPPOM sobre a MP. N. 746/2016: www.anppom.com.br/associação/documento. http://istoe.com.br/uma-revolucao-no-ensino-medio/

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dependerá da capacidade financeira de cada mantenedor. “Isso se dará dentro da realidade de cada rede, mas algumas receberão um aporte financeiro da União”, diz. “A flexibilização curricular terá mais etapas a cumprir.” Uma base comum de disciplinas obrigatórias será definida e terá de passar pela regulamentação do Conselho Nacional de Educação e dos conselhos estaduais. Após esse período, as escolas terão, segundo ele, um período de seis meses para se adaptar às mudanças propostas (REVISTA ISTO É, 2016). A reportagem também traz um estudo comparativo de como é realizado o ensino médio em outros países, fato que não se justifica, tendo em vista que cada país tem suas necessidades próprias, cultura e um tipo de ensino compatível com suas necessidades. Atribuir ao Brasil o mesmo patamar de ensino atribuído aos países mais desenvolvidos é legislar novamente de cima para baixo. Em contraposição a esta reportagem, segue a de Paulo Blikstein11 na Revista Veja de 23 de setembro de 2016, intitulada Ensino flexível, mas chances iguais. O autor declara que a reforma do ensino médio deve respeitar a individualidade do aluno,

guiar-se pela absoluta igualdade de oportunidades e oferecer conteúdos relevantes e atuais, portanto, a flexibilização do currículo promulgada pela MP deve ser feita com cuidado:

A intenção de reformar o ensino médio é excelente. Mas a melhor reforma será aquela que respeita a individualidade do aluno, não o vê como um mero insumo de produção industrial, tem como norte a igualdade de oportunidades e oferece conteúdos e métodos de ensino relevantes e atuais. Uma combinação difícil, mas de forma nenhuma impossível, principalmente para um país criativo como o Brasil (BLIKSTEIN, Revista Veja).

Muito ainda haveria a ser dito sobre a implantação desta MP, contudo encerramos nosso texto relatando mais uma vez que sua implantação é fruto de um desconhecimento do trabalho que já foi realizado em outras esferas legislativas e que nem ao menos foi respeitado – um ordenamento afoito, que se nos apresenta ainda muito subserviente às necessidades econômicas que norteiam o país e que não vislumbram uma formação profissional acoplada a necessidade de se trabalhar o ser humano em sua integralidade. Neste sentido, as artes e as demais disciplinas declinadas nesta MP parecem-nos um contrassenso. Mais uma vez, a educação não foi discutida em suas bases, mas de 11

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BLIKSTEIN, Paulo. Reportagem da Revista Veja: http://veja.abril.com.br/complemento/ pagina-aberta/ensino-flexivel-mas-chances-iguais.html

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302 - Por que uma medida provisória?!

cima para baixo e por uma minoria que não consegue priorizar as necessidades de nossa educação.

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Este livro foi composto com as fontes Minion Pro 11/14 no corpo de texto e Calibri nos títulos e impresso em papel pólen 80 g/m2 em janeiro de 2017.

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