“EL BRINCO DE LOS CHINELOS”: breves reflexões sobre o carnaval em Tepoztlán, México.

July 23, 2017 | Autor: Wallace De Deus | Categoria: Performance Studies, Mexico, Uto-Aztecan (Tepoztlan (Morelos) Nahuatl), CARNAVAL
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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA

“EL BRINCO DE LOS CHINELOS”: breves reflexões sobre o carnaval em Tepoztlán, México1 Wallace de Deus Barbosa*

O título deste trabalho2 serve, antes de tudo, para advertir ao leitor sobre a natureza do exercício a que estou me propondo aqui. Digo isso porque lidamos com um tema que é caro e relevante para antropólogos no Brasil (o carnaval), e por outro, devido ao fato de que Tepoztlán foi o palco da discórdia protagonizada por Robert Redfield e Oscar Lewis no final dos anos sessenta do século passado, no contexto da antropologia norte-americana. Assim, quando anuncio que serão breves as reflexões aqui apresentadas, tento desviar-me da tentação de discorrer mais demoradamente sobre o que se convencionou chamar de “gênero etnográfico” ou sobre o modo de escrita dos etnógrafos, e opto por apresentar algo que poderia classificar quase como um mero relato de minha experiência, como morador/visitante3, neste conhecido município mexicano do Estado de Morelos. 1

- Agradeço a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Capes pelo financiamento de meu estágio pós-doutoral no IIA - Instituto de Investigaciones Antropológicas da UNAM, no México (DF), entre os anos 2007 e 2008. Fui, neste período, supervisionado pelo Prof. Dr. Carlo Bonfiglioli, a quem devo e agradeço a sugestão de incursionar no carnaval de Tepoztlán e conhecer o baile dos chinelos, considerado um patrimônio cultural do Estado de Morelos. * Professor do Bacharelado em Produção Cultural e do Mestrado em Ciência da Arte da Universidade Federal Fluminense. Doutorado (2001) em Antropologia Social pelo PPGAS-Museu Nacional (UFRJ). 2 - Comunicação originalmente apresentada no II Seminário do LEME (Laboratório de Estudos em Movimentos Étnicos), em maio de 2009, na UFAL, em Maceió. Agradeço aos colegas Rodrigo Grünewald e Clarice Mota pelo amável convite, bem como aos demais integrantes da mesa-redonda “Diálogos interculturais e o dilema da autenticidade”: Maria José Alfaro Freire e Marcos Alexandre Albuquerque, pela construtiva interlocução. 3 - Ser morador visitante (não Tepozteco) em Tepoztlán (lá vivi por um ano) implica em integrar uma classe de pessoas batizada jocosamente pelos locais de tepoztizos, entendido como `tepozteco postizo’, com o mesmo sentido damos em português à palavra “postiço”; como algo falso e/ou sobressalente. No

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA Os trabalhos de Redfield e Lewis sobre Tepoztlán, quando contrapostos, sugerem tratar-se de duas etnografias sobre lugares distintos, de tão diversos que são os olhares postos sobre este povoado (pueblo) morelense. Esta querela antropológica é destacada por Clifford Geertz (1989, p.15) em seu livro O antropólogo como autor, em que reflete sobre a natureza da escrita etnográfica e o lugar de seus autores. Ao mencionar a análise do kula nos Argonautas de Malinowski, afirma que, da forma como foi construído, promove em seus leitores a impressão de uma inesquecível imagem. E acrescenta uma possibilidade contraposta:

Mesmo naqueles casos em que estudos empíricos se poderiam considerar diretamente contraditórios (a polêmica de Robert Redfield e Oscar Lewis sobre Tepoztlán, por exemplo), a tendência majoritária em antropologia, na medida em que ambos os estudos gozem de merecido respeito, é considerar que o problema surge de dois tipos diferentes de enfoque (...) e uma terceira opinião não faria mais que lançar lenha adicional na fogueira.

Nestor García Canclini (2006, p.77) localiza este debate no cerne da chamada “cena pós-moderna” em antropologia. Em seu entender, “o debate sobre os textos antropológicos levou a se pensar que nós antropólogos também não sabemos muito bem do que estamos falando quando fazemos etnografia”. E pontifica:

As polêmicas entre Redfield e Oscar Lewis sobre Tepoztlán sugerem que talvez não estivessem falando da mesma localidade, ou que suas obras, além de testemunharem o fato de “terem estado ali”, segundo a suspeita de Clifford Geertz, seriam uma tentativa de encontrar um lugar entre os que “estão aqui”, nas universidades e simpósios.

Ao chegar a Maceió, para o seminário do LEME, Clarice Mota comentou comigo que já estivera em Tepoztlán, ao que retruquei: “não poderei inventar muito, não é mesmo?” No entanto, mesmo com o concurso da reconhecida generosidade da período do carnaval, morei no bairro de Santo Domingo, e fui convidado por minha senhoria, Tamara Lipschutz, a integrar a “bola” (a turma) da comparsa Anáhuac, brincando atrás da banda dos “chinelos” de nosso bairro. A ela, que se tornou minha amiga tepoztiza (é texana, mas vive há décadas naquele orgulhoso pueblo mexicano) e a seus filhos Andreas e Sasha, dedico o presente trabalho.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA colega e, principalmente, a contar com a igualmente reconhecida indulgência antropológica nesta seara, creio que posso me sentir a vontade; “a gusto”, como diria em “Tepoz”, para construir este breve relato.

TEPOZTLÁN, o pueblo.

Tepoztlán é um município do Estado mexicano de Morelos, cuja formação demográfica original é predominantemente indígena. Muitos dos habitantes locais são bilíngües: falam o espanhol e o náhuatl. Quando lá cheguei, o “pueblo” ainda respirava o ar da resistência política e cultural que aflorou em torno da mobilização dos habitantes locais contra um projeto privado para a construção de um campo de golfe, em 1995. Este empreendimento visava instalar, nas dependências do “Parque Nacional del Tepozteco”, um clube de golfe e um condomínio privado de moradias luxuosas, contra o que se rebelou a população local, construindo barricadas que impedia o acesso de não moradores, ao ponto de conquistarem o privilégio democrático inédito da “autonomia municipal”, vigente naquele período (ROSAS, María -1997). Sua formação político-administrativa é constituída por oito bairros (eram ainda sete, na época de Redfield), cada qual com a capela de seu santo padroeiro e sua organização interna: realizam sempre uma festa anual em honra do santo do bairro, através dos esforços coordenados e financiados por um mayordomo (festeiro) e seus respectivos moradores. São bairros tepoztecos: Santo Domingo, São Miguel, La Santíssima, Santa Cruz, Los Reyes, São Sebastião, São Pedro e Santa Cruz (pequena). Os bairros, em geral, se fazem também representar através do símbolo de um animal que adotam segundo sua vocação: em Santo Domingo era o sapo, indicador da abundância de água no bairro; o símbolo de La Santíssima é a formiga; do bairro de São Pedro é o cacomixtle (o furão), ambos por sua reconhecida incidência. As figuras destes animais aparecem em destaque nos estandartes que anunciam as “comparsas” de cada bairro. “Comparsas” são grupos organizados pelos bairros para o carnaval, compostos pela banda, grupo de dançarinos, trajados de chinelos, e pelos simpatizantes (brincantes em geral) locais. Durante o “brinco” (desfile das comparsas em torno da praça central do povoado), se pode alternar entre as comparsas livremente, ainda que se possa manter uma espécie de vinculação proxêmica com uma comparsa preferencial. O nome Tepoztlán significa, em náhuatl, “lugar da machada de cobre”. Morada do Tepozteco, divindade que se hospeda na pirâmide de mesmo nome. Esta divindade é Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA conhecida como um “diós niño”, travesso e gozador, senhor dos ventos e da chuva, que, em certa feita, levou uma carreira do grande Quetzalcóatl, seu irmão mais velho, de quem fugiu literalmente “ventando” em função de uma de suas traquinagens, produzindo com seu deslocamento os acidentes geográficos que são típicos daquelas paragens: as montanhas cortadas, em grandes e vertiginosas retas, registram, segundo a convicção dos zelosos tepoztecos, a rota da fuga del Tepozteco em direção à sua morada. (BROTHERSTON, G. – 1995, p.186). Ao Tepozteco, gentílico do povoado de Tepoztlán situado no noroeste do Estado de Morelos, são atribuídas várias façanhas, entre elas, ter derrotado o monstruoso Xochicálcatl, habitante do conhecido complexo de pirâmides de Xochicalco, que se alimentava diariamente de um idoso do lugar, a quem lhe era sistematicamente ofertado. Quando o menino tinha por volta de dez anos, chegou à vez de seu avô adotivo ser oferecido ao monstro, para evitar maiores danos advindos de sua fúria. Nesta ocasião, o menino teria dito: “eu irei em seu lugar”. O avô retrucou dizendo que, sendo tão franzino, não iria aplacar o apetite do monstro. O garoto não se contentou com este argumento e partiu, advertindo aos seus parentes que, caso aparecesse no céu uma nuvem branca, ele havia conseguido derrotar o monstro. Ao contrário, se surgisse uma nuvem negra, era sinal que havia sido vencido pelo temido Xochicálcatl. O menino/deus partiu em direção ao complexo de Xochicalco recolhendo cacos de obsidiana e colocando em seu bornal. Ao chegar frente ao monstro foi desprezado pelo mesmo ao ver tão insignificante alimento que aquele dia havia lhe proporcionado: engoliu inteiro o niño Tepozteco, sem sequer mastigar. Já no ventre do monstro, o jovem foi cortando com os cacos de obsidiana o intestino do animal até encontrar o couro da barriga, donde saiu são e salvo. O monstro havia morrido, salvando-se o menino e todo o seu povo. (BESSO, H. & GONZALEZ, O.) Situada a 74 km ao sul da cidade do México, Tepoztlán é um ponto atrativo para o turista local e para os estrangeiros. Em sua famosa praça de tianguis (barraquinhas onde se come comida típica e se pode provar as dezenas de cervejas mexicanas, servidas quase à temperatura ambiente) se pode encontrar as requisitadas quesadillas (espécie de pastel de tortilla de milho, recheado com queijo do tipo oaxaca e algum outro aditivo como cogumelos; flores de abóbora salteadas; carne picada ou frango desfiado), os tamales (semelhantes às pamonhas de milho verde, recheadas e cozidas em folha de bananeira: com carne, queijo, etc.), hongos diversos (cogumelos comestíveis), chapolines (gafanhotos crocantes, tostados e temperados com sal e limão), além de Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA sucos de frutas locais, variados de outros insetos comestíveis (além dos gafanhotos), além dos indefectíveis nopales, cactácea semelhante à nossa palma, vendidos pelas índias que circulam na feira. O artesanato também tem bastante prestígio junto aos visitantes, sobretudo os têxteis e as tapeçarias indígenas. Neste caso, são vendidos por comerciantes locais que se encontram estabelecidos, em sua maioria, em pequenas lojas espalhadas pelas estreitas ruas do povoado. As terapias holísticas, temazcales 4, e um sem número de itens esotéricos que também são motivo de expressiva demanda pelos turistas tornaramse a especialidade dos moradores tepoztizos (imigrantes americanos, italianos, espanhóis e argentinos) que para lá acorreram, na década de setenta do século passado, em busca dos “hongos mágicos”, segundo me informou Charlie, um dos mais conhecidos tepoztizos de todo o povoado: professor de música de origem estadunidense que se encontra radicado no México desde a década de 70 e integra uma das comparsas, tocando trombone na banda de metais. Por sua aura mística e vasto repertório intangível relacionado às lendas e mitos locais, Tepoztlán é considerado um “Pueblo Mágico”, integrando um circuito nacional de turismo cultural, criado na forma de um Programa pelo governo mexicano com a chancela da UNESCO. Em um dos mais visitados restaurantes de comida tradicional mexicana instalado no povoado, Los Colorines, lê-se ao final de cada cupom fiscal eletrônico emitido ao fechar a conta: “Cuando los extraterrestres visitan Tepoztlán, comen en Los Colorines”.

Pueblo Mágico

O “La Jornada” é um dos mais prestigiados jornais mexicanos. Sua sucursal do estado de Morelos publicou em uma manhã de sábado, 24 de novembro de 2007, matéria intitulada: “Estrictas medidas en Tepoztlán para seguir en lista de Pueblos Mágicos”. A matéria, assinada pelos jornalistas Kathia Jasso Blancas e Raúl Morales Velázquez, tinha como subtítulo: “regulamentos para comerciantes, proibição do consumo de bebidas alcoólicas em via pública e vigilância extrema aos visitantes do monte (Tepozteco)”. 4

- Espécie de rito terapêutico de origem pré-hispânica em se que se produz um ambiente semelhante a uma sauna, com pedras quentes e ervas aromáticas, onde o cliente permanece em um pequeno recinto com o objetivo de eliminar as toxinas corporais a partir de intensa sudorese induzida, em geral durante algumas horas, sob a supervisão de um curandeiro e/ou terapeuta que conduz a sessão até seu término, após o qual o cliente receberá toalhas para a secagem do banho de ducha a que tem direito e receberá, por fim, um chá ou outro recurso hidratante.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA Segundo a reportagem, o então prefeito de Tepoztlán, Sr. Genaro Villamil Demesa, havia anunciado a proibição estrita, a partir daquele momento, do consumo de bebidas alcoólicas em via pública, bem como fechamento de bares e restaurantes a partir das onze da noite, diariamente. Tais medidas, segundo a matéria, decorriam da advertência sofrida pelo município de Tepoztlán, por parte da Secretaria de Turismo Federal, de que o município poderia sair do “Programa Pueblos Mágicos”, caso não tomasse providências no sentido de reprimir o abuso de álcool. O prefeito teria ainda assegurado, nesta ocasião, que seu governo levou a sério as repreensões que foram enviadas através da Secretaria de Turismo Federal que indicavam que não estavam sendo observados alguns requisitos para que Tepoztlán se mantivesse na lista como um dos 30 municípios com a distinção de “Pueblo Mágico”. Entre as observações foi destacada a proliferação desmedida de comerciantes ambulantes e a venda indiscriminada de bebidas embriagantes em via pública, situação que teve de ser remediada, em concordância com a população. Villamil Demesa disse que elaborou um regulamento para o comércio fixo, semi-fixo e ambulante, que não existia. E entrou em entendimento com os cinco agrupamentos que integram o conjunto de cerca de 300 comerciantes tepoztecos. Como resultado dos acordos se derivou a colocação de um letreiro no acesso a Tepoztlán mediante o qual se adverte aos visitantes que este município é considerado um “Pueblo Mágico” e que “existem regras e uma delas é a proibição do consumo de bebidas alcoólicas em via pública”, advertência que também foi fixada na entrada da trilha montanhosa que leva à pirâmide do Tepozteco. Mediante assembléia, líderes dos comerciantes e os comitês pelos mayordomos dos oito bairros que integram a localidade, acordaram que só serão tolerados ambulantes no caso de artesãos e camponeses,

com

suas

respectivas

mercadorias,

a

saber:

artesanato

e

hortifrutigranjeiros. Também se proibiu, nesta ocasião, a venda de produtos de procedência duvidosa (cujo alvo principal era, sobretudo, os importados chineses). O prefeito comentou que as medidas contra a venda de bebidas embriagantes também diminuiriam o incremento de acidentes no monte do Tepozteco. Uma vez que a Secretaria de Turismo notificou que a distinção de Pueblo Mágico poderia ser revogada, caso a municipalidade não organize os mais de 25 estabelecimentos “callejeros” (barraquinhas e quiosques) que, sem nenhum controle, vendem bebidas alcoólicas, a prefeitura afirmou que uma das primeiras medidas será adotar medidas coordenadas com as autoridades do INAH (Instituto Nacional de Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA Antropologia e História) para restringir o acesso ao sítio arqueológico e colocar guardas para confiscar bebidas alcoólicas e não admitir a entrada para aqueles que se encontrem visivelmente embriagados. Tais medidas incluiriam a supervisão das mochilas e bolsas de mulheres que acessam o Tepozteco e será enfocada principalmente aos jovens oriundos da Cidade do México que compram bebidas no caminho para o monte para posteriormente serem consumidas nas covas (cavernas) ou na parte alta do sítio préhispânico.

´El Brinco´ : controvérsias sobre a origem.

O baile carnavalesco dos chinelos constitui uma espécie de símbolo da identidade morelense: um dos mais expressivos itens do patrimônio cultural, de natureza imaterial, do Estado de Morelos - MX. Ocorre nos municípios de Yautepec, Oacalco, Cualtlixco, Atlahuahuacán, Oaxtepec, Jojutla e Totolapan, sendo os de Tepoztlán e Tlayacapan os mais destacados. A imagem do chinelo, desenhada na forma do perfil de um brincante, onde se destaca a característica cobertura de cabeça, transformou-se em logomarca regional, presente nos ônibus, muros de estabelecimentos públicos ou mesmo como decoração de ambientes privados, restaurantes e lojas de artesanato. A cada ano, na época do carnaval, cada chinelo (dançarino trajado da comparsa) desenvolve um estilo próprio de “bailar el brinco”: ainda que se conte com uma coreografia genérica; um modo de dançar que é característico das comparsas de chinelos. Desta forma, cada integrante vai desenvolvendo uma variante dentro do padrão geral que implica em deslocar-se com base nos calcanhares, movendo os quadris e deixando os braços soltos, caídos como se fossem de marionetes. Segundo uma perspectiva nativista, diz-se que a dança dos chinelos e a caminhada ritual que normalmente fazem as “comparsas” no início do carnaval representam as ancestrais peregrinações astecas para fundar a cidade de Tenochtitlán (a antiga capital do México), quando os nativos tinham que carregar nas costas pesadas cargas de milho e outras mercadorias até o local da fundação: neste deslocamento quase não moviam a parte superior do corpo, e sim os pés e as cadeiras. Esta visão mais tradicional, colhida entre moradores de Tepoztlán e Tlayacapan e folhetos de divulgação turística, procura encontrar nas raízes étnicas indígenas a gênese da “brincadeira” carnavalesca. Nesta perspectiva, El brinco poderia também ter surgido do rito asteca Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA conhecido como axcatzitzintin que consistia em ir de povoado em povoado coletando grãos, flores e borboletas para que, posteriormente, os brincantes pudessem utilizá-los na decoração de seus trajes. Assim, se difundiu esta prática cultural até chegar à forma como hoje é conhecida. Ninguém sabe ao certo como reconstruir esta trajetória, nem mesmo como foi se desenvolvendo a produção das fantasias que são hoje sua marca. Alguns associam certos aspectos do baile às dramatizações das antigas batalhas de mouros e cristãos, derivada de uma variante dos antigos ritos pré-hispânicos. Uma das possibilidades para a origem da palavra chinelo viria do vocábulo náhuatl “tzineloa”, que quer dizer “meneio de cadeiras” (CARMONA, A. A. - 2005). Outra versão, mais heterodoxa (e historicamente mais plausível) para a origem do folguedo diz que, por volta de fins do século XIX, um grupo de jovens nativos, cansados de verem-se excluídos dos festejos carnavalescos (ainda mais porque cumpriam o tradicional jejum da quaresma cristã), promoveu uma espécie de quadrilha, produzindo grande balbúrdia, disfarçados com velhas roupas (huehuetzin 5), encobrindo a face com pañuelos (tradicionais lenços mexicanos), assobiando e falando em falsete, em uma espécie de burla dos espanhóis 6. Este grupo, dado o sucesso da primeira edição, passou a se apresentar a cada carnaval, introduzindo elementos ano a ano, como a máscara de face branca com longa barba e o modo desengonçado de bailar, típico dos colonizadores, na versão nativa. A suntuosa roupa de veludo com aplicações de lantejoula e miçangas, luvas e o tradicional sombrero del chinelo7 (item primordial do traje, nos dias de hoje) faz com que o brincante sofra com o calor, sendo a inadequação da veste completa ao clima quente, mais um elemento da crítica burlesca ao modo de ser do elemento colonizador. Gradativamente foram agregados outros elementos, tais como a banda de metais e o próprio nome de chinelo que, segundo esta visão, poderia derivar alternativamente de palavra árabe “chinelas”, pois o uso deste tipo de calçado, como parte integrante do traje, se encontra em conformidade com o estilo mais geral do conjunto, claramente assemelhado às túnicas árabes. Estas duas perspectivas (uma mais nativista e outra mais histórica), utilizadas para explicar as origens dos chinelos, parecem até hoje competir no imaginário dos moradores de Tepoztlán e Tlayacapan, que se envaidecem pelo renome de seus carnavais: os primeiros por serem os mais conhecidos e visitados (em grande medida 5

- Em náhuatl,”pessoa que se veste com roupas velhas”. Os dançarinos utilizam esta palavra para referirem-se uns aos outros. 6 - Informação da Casa de La Cultura de Tlayacapan, segundo prospecto local. 7 - Ver figura 1.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA como conseqüência do prestígio turístico do município de Tepoztlán) e os segundos, por reivindicarem para si o status de locus original onde ocorreu o primeiro “brinco”.

A Festa

Quando participei do carnaval de Tepoztlán (fevereiro de 2008) vivia no Bairro de Santo Domingo, na Rua Anicetto Villamar, em um pequeno imóvel alugado próximo à casa de Don Pato; artesão, dançarino e hombre de gusto8 do bairro, detentor do saber de confeccionar os elaborados e caros sombreros típicos do traje dos chinelos, que falava com orgulho de sua comparsa (Anáhuac) do bairro de Santo Domingo. Estive com Pato algumas vezes, antes, durante e depois do carnaval, quando me explicou sobre o modo de funcionamento das comparsas e falou sobre as origens do folguedo. Lamentou o pouco apoio da municipalidade para a realização do baile, que se limitava em deslocar a praça de tianguis e fornecer os dispositivos de segurança necessários para a plena realização da festa. O grande e principal apoio para as comparsas de cada bairro vinha mesmo do mayordomo e da vizinhança que se mobiliza para a realização do desfile da banda e do grupo de trajados. Este apoio consistia na comida e bebida servida nos dias de carnaval, para dançantes e o pagamento dos músicos. Minha companheira de “brinco”, Tamara Lipschutz, com quem compartilhei as impressões do carnaval daquele ano, logo no início de nossa jornada me perguntou: “_ ¿Sacáste El rollo?”, indagando se eu já tinha assimilado o passo básico daqueles que acompanhavam banda de chinelos. Apoiados sobre os calcanhares, minha companheira de “brinco” demonstrava como tínhamos que deslocar os quadris da esquerda para a direita, em compasso ternário. Não é fácil, em um primeiro momento. A música da orquestra de metais soava repetitiva aos ouvidos não iniciados e, a cada novo começo da banda, o entusiasmo dos brincantes era notável, sempre que se iniciava uma peça, de um total de não mais que cinco melodias claramente identificáveis em seu conjunto. O combustível para tanto entusiasmo, fui logo entender, eram as renomadas micheladas tepoztecas, cerveja acrescida de suco de limão, sal, pimenta do reino e, em alguns casos mais excepcionais de criatividade gastronômica, molho inglês. Consumidas em vasilhames (copos descartáveis) de 500 ml, em cuja borda se polvilha chili (pimenta vermelha em pó) e sal, fazem parte do patrimônio cultural do carnaval 8

- A expressão hombre de gusto é utilizada para referirem-se aos guardiões de tradições específicas, vinculadas aos saberes indígenas e locais envolvidos em celebrações, danças, festas e rituais religiosos.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA tepozteco e a intensidade de seu consumo suscitou, no período em que lá estive, certa polêmica: alguns moradores se perguntavam como um “Pueblo Mágico” poderia garantir a manutenção de tal chancela sendo cenário da propagação de tão espúria demanda. O consumo de bebidas alcoólicas nas ruas de Tepoztlán (fora dos restaurantes e tianguis) não é oficialmente permitido, ainda que tolerado, em determinadas situações (Cf. FIG 5). No período de carnaval, o controle é feito com o auxílio de forças policiais vizinhas (como da localidade de Yautepec), convocadas exclusivamente para este período em particular, o que não deixava de produzir conflitos com os moradores locais de Tepoz, quando reprimidos por policiais estrangeiros.

Considerações Finais

O caso aqui brevemente apresentado, sobre o carnaval de Tepoztlán, serve para refletir sobre os modos de construção e reprodução das políticas de patrimônio em circuitos locais, nacionais e/ou globais. A dinâmica das negociações em torno da produção da festa, as representações suscitadas, bem como as polêmicas acerca das origens do folguedo, seus significados e modos de continuidade, permitem apreender a dimensão negociada dos bens culturais, que podem se tornar objeto de políticas públicas, bem como apontar para o caráter histórico das expressões e valores culturais, em igual medida que as políticas e ações culturais que se relacionam com essas mesmas expressões. Por outro lado, políticas elaboradas para os campos do patrimônio cultural e do turismo cultural na América Latina que estariam aparentemente alinhadas em uma primeira vista, segundo alguns especialistas e pesquisadores da área de patrimônio com quem estive em contato durante meu estágio pós-doutoral9 no México, muitas vezes não se revelam convergentes ou mesmo compatíveis. Ao contrário, havia, a partir da Convenção de Salvaguarda de 2003, uma cautela em relação às listas representativas da UNESCO no sentido de que poderiam servir tão somente para fomentar a crescente “indústria do turismo”, em particular no segmento do turismo cultural. As diferentes versões sobre a origem do folguedo dos Chinelos, acionadas por moradores de Tlayacapan e Tepoztlán e genericamente por todo o Estado de Morelos,

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- Agradeço a atenção que tive, durante o estágio pós-doutoral, por parte dos colegas mexicanos, pesquisadores do INAH (Instituto Nacional de Antropologia e História), em particular aos Professores Dr. Antonio Machuca e Dr. Samuel Villela.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA refletem modos diversos de internalizar e reelaborar parte da história colonial. As interpretações formuladas no exercício investigativo e de construção narrativa sobre o surgimento do baile e de cada item do repertório que constitui o suporte material do brinco refletem diferentes modos de internalização de um bem cultural pelo cidadão comum. Perspectivas nativistas ou heterodoxas convergem, no entanto, no sentido de circunscrever um campo que está relacionado aos processos identitários mais correntes, bem como a todo um leque de possibilidades reflexivas que podem ser colocadas como pauta para os debates entre especialistas do campo da educação patrimonial e das políticas de patrimônio no contexto latino-americano.

BIBLIOGRAFIA

BESSO, H. & GONZALEZ, O. 1980. Tepozteco. Guia Oficial. México. DF: SEP/INAH.

BROTHERSTON, Gordon. 1995. Las Cuatro Vidas del Tepoztecatl. In Estudios de Cultura Náhuatl. Vol 25. México: UNAM / IIH.

CANCLINI, Nestor G. 2006. Consumidores e cidadãos. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ.

CARMONA, Andrés A. 2005. Tlayacapan. Cuna del Chinelo. Tlayacapan: Família Alarcón Carmona.

GEERTZ, Clifford. 1989. El antropólogo como autor. Barcelona: Paidós.

LEWIS, Oscar. 1968. Tepoztlán. Un pueblo de México. México: Editorial Joaquín Mortiz.

REDFIELD, Robert.1930. Tepoztlan: A Mexican Village. Chicago, University of Chicago Press.

ROSAS, María. Tepoztlán. 1997. Crónica de desacatos y resistencia. México: Ediciones Era. Cadernos do LEME, Campina Grande, vol. 2, nº 1, p. 60 – 74. jan./jun. 2010.

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“EL BRINCO DE LOS CHINELOS” - WALLACE DE DEUS BARBOSA ANEXO FOTOGRÁFICO

FIG 1 - Grupo de chinelos, comparsa Anáhuac. 2008, foto do autor.

FIG 2 - Banda de metais. Comparsa de Santo Domingo. 2008, foto do autor.

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FIG 3 - El Pato, preparando o traje de Chinelo. 2008, foto do autor.

FIG 4 - Tianguis de comida. 2008, foto do autor.

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FIG 5 - Advertência contra o consumo de bebidas alcoólicas em via pública. Tepoztlán, carnaval de 2009. Foto de Tamara Lipschutz.

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FIG. 6 - Cartão Postal de Tepoztlán, vendidos nas lojas de artesanato.

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