Eleitores sem memória?

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Eleitores sem memória?

A mídia brasileira descobriu, pela enésima vez, a "amnésia eleitoral". Segundo Pedro Fernandes, o Instituto Data Rio publicou dados que mostravam que somente 4% dos votantes sabiam em quem votaram para deputado federal e, em igual percentagem, para deputado estadual. Embora exista uma clara correlação positiva entre nível educacional e lembrança, o autor nos lembra de que 53% dos que possuem educação superior não se lembravam em quem votaram, segundo pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas. O autor lembra a responsabilidade de fatores políticos, que contribuiriam para o esquecimento.
Sem dúvida; porém, outros fatores pesam. A experiência dos estudos policiais e criminológicos mostra que, nos alinhamentos para identificação de testemunhas, o número de pessoas colocadas no alinhamento influencia o resultado. O número conta: quanto maior, mais erros. Experimentos desse tipo minaram a fé na prova testemunhal. Fica pior: brancos identificando negros erram mais do que brancos identificando brancos, provando que há um aspecto relacional que afeta a qualidade do testemunho. A identificação funciona melhor entre semelhantes do que entre diferentes.
O esquecimento eleitoral não opera num vácuo de instituições. As instituições e a legislação eleitorais, partidárias e, no sentido amplo, políticas, podem facilitar ou dificultar o esquecimento. No Brasil, facilitam.
A "amnésia eleitoral" não começa depois das eleições: começa antes. Começa com a legislação eleitoral. Há dois anos, Jairo Nicolau alertava para pesquisas feitas pelo IBOPE e pelo DATAFOLHA, em grandes capitais, próxima das eleições: "o percentual de eleitores que disseram não saber em quem votar na pergunta espontânea, em algumas das capitais... é muito alto, oscilando entre cerca de 30% e 80%. " Os dados permitiam concluir que o problema era nacional e não do nosso querido Estado do Rio de Janeiro. Com 66%, estávamos próximos do Recife (58%); de Porto Alegre (61%) e abaixo de Belo Horizonte (79%). Não sabiam em quem votariam, deixando ver que não havia uma relação forte com um candidato ou com um partido.
O sistema eleitoral se impõe como variável invisível, mas de muito peso, sobre a memória do votante. Em sistemas com áreas geográficas mais restritas de votação há mais conhecimento sobre os candidatos. Com base nesse fator, e somente nesse fator, esperaríamos que a memória fosse melhor em eleições geograficamente menores do que nas mais amplas.
O sistema partidário também pesa sobre os resultados. Além da amnésia individual também há uma amnésia partidária. É mais fácil se lembrar do partido preferido num sistema bipartidário do que num multipartidário. Não leiam nessa afirmação uma profissão de fé no sistema bipartidário, mas uma preferência por um multipartidarismo moderado, sem micropartidos.
A permanência dos políticos num só partido favorece a identificação, por parte da população, da filiação partidária de um candidato. Porém, os políticos, dentro e fora do nosso estado, mudam muito de partido. Como exemplo, o ex-governador Garotinho, Começou sua militância no PCB (Partido Comunista Brasileiro); em 1980 filiou-se ao PT, onde permaneceu por escassos três anos, do qual saiu para entrar para o PDT, onde três anos depois conseguiu ser eleito Deputado Estadual. Como pedetista foi eleito Prefeito em Campos e reeleito na eleição seguinte. Antes de se filiar ao PR esteve no PSB de 2001 a 2003, e no PMDB, de 2003 a 2009. Quando primeiro escrevi esse artigo militava no PMDB. Porém, sem dominar o partido, não conseguiu ser escolhido o candidato a governador. Saiu do PMDB e concorreu ao governo do estado pelo PR. A pouca significação dos partidos não é um fenômeno obrigatório, da natureza, mas consequência da pouca significação atribuída a eles por alta percentagem dos políticos.
O alto número de partidos e de candidatos por vaga conspira contra o voto responsável e contra a memória. O maior número de candidatos explica porque a memória é consideravelmente melhor nas eleições majoritárias. Ari Ferreira de Queiroz, em interessante artigo, comenta que, em Goiânia, em 2004, concorreram às eleições para vereador nada menos do que 27 partidos, coligados ou não. É o esfarelamento partidário. Desses, treze não elegeram ninguém, mas receberam 83.955 votos. Quantos desses 27 comandam uma parcela significativa das identificações e preferências do eleitorado? Não são partidos políticos; são legendas de aluguel. Havia vinte candidatos para cada vaga de vereador, mas somente quatro candidatos a prefeito. Vale repetir: Goiânia tinha mais de 1,3 milhão de habitantes e oitocentos e tantos mil eleitores, mas bastaram menos de duzentos mil votos para eleger os representantes na Câmara Municipal. Visto sobre outro prisma, os votos de menos de vinte por cento do eleitorado prevaleceram sobre os de oitenta por cento; a minoria prevaleceu sobre a maioria. O sistema está errado e injusto. Além de possibilitar a eleição de quem tem (bem) menos votos em detrimento de quem apresenta votação mais consistente, mas talvez não tenha "escolhido" o melhor partido para se candidatar, permite que a minoria se sobreponha à maioria.
Fica pior: o artigo 10 da Lei das Eleições estabelece que cada partido pode registrar até 150% do número de cadeiras disponíveis na Câmara Municipal. É uma aberração aritmética que permite a um hipotético partido receber todos os votos e deixar de eleger um terço dos candidatos que apresentou. Assim, se a Câmara local tem dez cadeiras, cada partido pode registrar até 15 candidatos. Já no caso de coligações, a lei permite que sejam registrados até o dobro do número de vagas em disputa, independentemente do número de partidos que componham a chapa.
O segundo turno das eleições majoritárias (nas que há segundo turno) apresenta a melhor aproximação ao que acontece num sistema distrital e bipartidário. Há somente dois candidatos. Nessas eleições, a memória é menos prejudicada e o resultado, ajudado, superior.
O olhar institucional não termina aí: ainda é fácil trocar de partido. Nosso sistema pensou os mandatos como propriedade do eleito e não do partido que o elegeu. Houve mudança legislativa para reduzir a migração que, eleição após eleição, se observa na direção do Executivo. Deputados e senadores migram para o grupo que apoia o Presidente; deputados estaduais migram para o grupo que apoia o Governador; vereadores migram para o grupo que apoia o Prefeito. Porém, acordos internos esvaziaram essa legislação benéfica. Esses acordos anulam a oposição, enfraquecem o Legislativo, e fortalecem o Executivo.
Fica pior: mesmo sem migrar de partido, os votos e o apoio dentro da Casa migram na direção do Executivo e os partidos dispõem de poucos instrumentos para manter um mínimo de fidelidade partidária. Essa prática também enfraquece o Legislativo e mina a memória do eleitor que não consegue associar de maneira estável o nome de um político, ou sequer de um partido, a posturas políticas definidas.
Podemos ir além: nossas leis e cultura política concedem supremacia ao Executivo, tornando o Legislativo pouco relevante. O Executivo pode legislar diretamente, através de medidas provisórias ou propor legislação que raramente é rejeitada. O contraste é grande, por exemplo, com os Estados Unidos, que levam o equilíbrio entre os poderes em sério. O Executivo não pode apresentar projetos de lei diretamente; só pode fazê-lo através de seus legisladores. Comparativamente, os legisladores brasileiros quase não legislam.
Assim, olhar para a amnésia eleitoral como um problema do eleitor ou mesmo da pobre ou inexistente relação entre o eleitor e o eleito, conduz à condenação dos dois. É injusto, porque a amnésia varia com a legislação e as instituições políticas, eleitorais e partidárias. Não podemos julgar e apedrejar eleitores se o sistema dificulta a identificação partidária e reduz o Legislativo à condição de coadjuvante político.
Tem jeito! Mas o jeito passa por uma reforma política séria.

GLÁUCIO SOARES IESP-UERJ
















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