Em briga de marido e mulher, o leitor mete a colher: a narrativa enigmática em Divórcio, de Ricardo Lísias

June 1, 2017 | Autor: Ívens Matozo | Categoria: Contemporary Brazilian Literature
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Em briga de marido e mulher, o leitor mete a colher: a narrativa enigmática em Divórcio, de Ricardo Lísias Ívens Matozo SILVA1 Xênia Amaral MATOS2

Resumo Ao lançarmos um olhar para o atual cenário literário brasileiro, é perceptível a presença de uma profusão de narrativas que possuem seu foco centrado no sujeito, as chamadas escritas de si. Diante disso, o presente trabalho possui os objetivos de analisar no romance Divórcio (2013), do escritor brasileiro Ricardo Lísias, as técnicas narrativas utilizadas pelo autor para realizar um mergulho na consciência da personagem protagonista do romance e propor uma problematização sobre o caráter autoficcional e autobiográfico expresso na obra. Para tanto, o embasamento teórico se ampara nas contribuições prestadas por Doubrovsky (1988), Hall (2002), Klinger (2006) e Lejeune (2012).

Palavras-chave: Divórcio. Autobiografia. Autoficção. Ricardo Lísias.

Abstract By analyzing the contemporary Brazilian fiction, it is possible to perceive a growing output of publications expressing concern over the writing of the self. To that end, the present paper aims at verifying in Divórcio (2013) written by the contemporary Brazilian writer Ricardo Lísias some aesthetic elements exploited by the author in order to depict the protagonist’s inner thoughts and to reflect about autobiographical and autofictional features expressed in the novel. To do so, we based our analysis on the studies developed by Doubrovsky (1988), Hall (2002), Klinger (2006), and Lejeune (2012).

Keywords: Divórcio. Autobiography. Autofiction. Ricardo Lísias. 1

Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Bolsista CAPES. CEP: 96010-610. Pelotas, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected]. 2

Mestranda do Programa do Pós-Graduação em Letras pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Bolsista CAPES/DS. CEP: 97105-900. Santa Maria, Rio Grande do Sul. E-mail: [email protected].

Introdução “Decifra-me ou devoro-te!” Édipo Rei – Sófocles Ao lançarmos um olhar para o atual cenário literário, é perceptível a presença de uma profusão de narrativas que possuem seu foco centrado no sujeito, as chamadas escritas de si. Nesse prisma, diários íntimos, memórias, relatos pessoais, confissões e autobiografias acabaram se tornando produto de consumo corrente e, com isso, passaram a ocupar um lugar de destaque no mercado editorial e a constituírem um terreno fértil para uma variedade heterogênea de estudos teóricos e críticos a respeito dessas escritas. Nesse contexto, Antoine Compagnon (1999), ao refletir sobre fatores universais analisados pela teoria da literatura e os critérios utilizados para uma melhor interpretação dos textos literários, ao discorrer sobre figura do autor, o teórico identifica a presença de duas correntes apolares. A primeira, denominada tese intencionalista, defende que “a intenção do autor é o critério pedagógico ou acadêmico tradicional para estabelecer-se o sentido ao literário” (COMPAGNON, 1999, p. 49); em completa oposição, cita a segunda tese, a anti-intencionalista, que denunciava o uso da intenção do autor para determinar o significado de uma narrativa, visto que “o sentido de uma obra não é, necessariamente, idêntica à intenção do autor e é mesmo provável que não o seja” (COMPAGNON, 1999, p. 81). Levando em consideração as reflexões de Compagnon, o que observamos, atualmente, no que concerne ao terreno das narrativas pertencentes à escrita de si, é uma verdadeira dissolução das fronteiras entre essas duas teses, uma vez que as atuais produções literárias passaram a apresentar temáticas complexas e discursos situados em um “entre-lugar”, ou seja, possuindo traços característicos tanto da corrente intencionalista como o da anti-intencionalista. Voltando-se nosso olhar para a ficção brasileira contemporânea, observamos a presença cada vez mais marcante da figura extratextual do autor, de relatos expressos em primeira pessoa e do constante jogo entre a presença de fatos reais misturados a elementos ficcionais. Consoante Tânia Pellegrini (1999), ao examinar a relação da tríade escritor – público – mercado literário, a pesquisadora sublinha a grande importância da imagem pública do escritor, que passou a funcionar como uma espécie de “marca literária” ou como uma performance, que possui o papel de instigar a

curiosidade e, com isso, conquistar novos leitores. Segundo a autora: “Nunca a imagem do escritor foi tão importante: veiculada pela imprensa e em menor escala pela mídia, chega a substituir a importância da própria obra” (PELLEGRINI, 1999, p. 173). É nesse ínterim que se torna mister destacar as considerações de Pedro Galas Araújo (2011), que propõe uma leitura crítica a respeito de outra tendência do cenário literário brasileiro, ou seja, a tematização do antigo embate estabelecido entre a verdade e a ficção através de relatos que se dizem autoficcionais. De acordo com o autor:

[...] vê-se também uma profusão de relatos fictícios que incorporam fatos reais vividos por seus autores, e mesmo falsas autobiografias, que imitam seu código e transitam em um terreno de ambiguidade e indecisão entre o que é verdadeiro e o que é falso, inventado (ARAÚJO, 2011, p. 21).

Nesse caminho, conforme aponta o pesquisador, o que encontramos na contemporaneidade é a presença de um terreno nebuloso e repleto de dúvidas e questionamentos norteando as escritas de si. Assim, tal qual o grande enigma da esfinge, na obra de Sófocles (mencionado no início dessa seção), aqui cabe ao leitor a incumbência de tentar decifrar as várias armadilhas ou enigmas apresentados por uma proliferação de obras que ora afirmam dramatizar a vida nua e crua dos escritores, através da apresentação de uma verdade inquestionável, ora afirmam que tudo o que está diante dos olhos do leitor não passa de uma mera invenção. Várias obras, tais como Nove Noites (2002), de Bernardo Carvalho, O falso mentiroso (2004), de Silviano Santiago, O filho eterno (2012), de Cristovão Tezza e, por fim, O irmão alemão (2014), de Chico Buarque, só para citar alguns, são exemplares que problematizam a legitimação de uma escrita de si, que se pretendia destinar à descrição da verdade e com fronteiras bem delimitadas entre a fantasia e a realidade. O romance Divórcio (2013), do escritor contemporâneo brasileiro Ricardo Lísias, é representativo de uma literatura que discute a tênue linha que separa (ria) o real do ficcional, o autobiográfico do autoficcional, assim como a sanidade da loucura, através da representação de uma personagem totalmente desestabilizada e que luta para se recompor emocionalmente após descobrir uma mancha negra em seu casamento. Desse modo, levando em consideração essas premissas, o presente trabalho possui os objetivos de analisar as técnicas narrativas utilizadas pelo autor para realizar um mergulho na consciência da personagem protagonista do romance e propor uma

problematização sobre o caráter autoficcional e autobiográfico expresso na obra. Para tanto, o embasamento teórico se ampara nas contribuições prestadas por Doubrovsky (1988), Hall (2002), Klinger (2006) e Lejeune (2012). Antes de iniciarmos a análise dessa narrativa, torna-se necessário identificarmos algumas características relativas à literatura brasileira contemporânea. Tânia Pellegrini (2001), no artigo intitulado “Ficção brasileira contemporânea: assimilação ou resistência”, pontua que no atual cenário brasileiro não há mais espaço ou credibilidade para a presença das chamadas “grandes narrativas”, em outras palavras, aquelas obras que se destinavam a descrever verdades absolutas (cf. PELLEGRINI, 2001). Além disso, a crítica literária sublinha que uma característica marcante de várias obras é a presença dos chamados “pequenos relatos”, concebidos como aquelas produções em que se focalizam o indivíduo atomizado dos grandes centros urbanos, apresentando, dessarte, um retrato quase que instantâneo do cotidiano. Consoante Pellegrini:

O que cresce é a ficção centrada na vida dos grandes centros urbanos, que incham e se deterioram, daí a ênfase na solidão e angústias relacionadas a todos os problemas sociais e existenciais que se colocam desde então (PELLEGRINI, 2001, p. 59).

Na mesma linha de pensamento, Regina Dalcastagné (2012) destaca que na ficção brasileira contemporânea, abre-se um lugar de destaque para a presença do leitor, que deve esquecer e abandonar a antiga posição confortável de testemunha que anteriormente possuía, visto que as atuais narrativas, com o passar dos anos, vêm se fazendo mais complexas, tanto pelo completo estilhaçamento da ordem linear dos fatos narrados quanto pela nova configuração do narrador. Dalcastagné parte da ótica de que o narrador está adquirindo um espaço mais amplo em meio à trama e que, ao classificá-lo como “confuso”, “obstinado” e “mentiroso”, ele passa a exigir a presença de um leitor mais compromissado. Características essas que se intensificam quando se apresentam obras com um narrador em primeira pessoa, que, por natureza, já é não confiável por apresentar um discurso parcial. Nas palavras da pesquisadora:

O espaço da ficção, hoje, é tão ou mais traiçoeiro que o da realidade. Não há a intenção de consolar ninguém, tampouco, de estabelecer verdades definitivas ou lições de vida. Reafirmam-se, no texto, a

imprevisibilidade do mundo e (DALCASTAGNÉ, 2012, p. 93).

as

armadilhas

do

discurso

É sob esse horizonte, de narradores e personagens desarvorados e perplexos, que se inscrevem as produções literárias de Ricardo Lísias, que foi incluído pela revista Granta como um dos vinte melhores jovens escritores brasileiros. Iniciou sua carreira com o romance Cobertor de estrelas (1999), seguido por Dos nervos (2001), Anna O. e outras novelas (2007), finalista do Prêmio Jabuti de 2008, e O livro dos mandarins (2009), também finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2010. Já em 2012, publica O céu dos suicidas, vencedor do prêmio de Melhor Romance da APCA. Na sequência, Divórcio (2013), Concentração e outros (2015) e, mais recentemente, lança online partes da obra intitulada Delegado Tobias, que se tornou alvo de investigações policiais por suposta falsificação de documentos públicos. Em Divórcio, Lísias problematiza a possível fronteira entre o imaginário e o real. Tendo como pano de fundo a cidade de São Paulo e narrado em primeira pessoa, o enredo do romance centra-se no grande desmoronamento do casamento, de apenas quatro meses, do narrador-protagonista Ricardo Lísias. Levando-se em consideração a escolha do nome dessa personagem, inicialmente o leitor é levado a conectar tudo o que é descrito na narrativa a uma identidade fielmente estabelecida entre o escritor, elemento extraliterário, e o pretenso narrador, ou seja, que o nome do autor é o mesmo do narrador e da protagonista. Ao encontrar, acidentalmente, o diário íntimo da sua ex-esposa e descobrir o valor depreciativo que ela possuía dele, somando-se a isso a grande revelação de que fora traído, a personagem Ricardo Lísias vê seu mundo entrar em colapso e, enquanto isso, somos inundados tanto pelas memórias como pelas tentativas de compreensão da realidade dessa personagem densa e psicologicamente conturbada. Logo no início da narrativa, deparamo-nos com o narrador-protagonista em um estado de completa agonia. Além disso, a descrição de um ambiente fechado, aliados à solidão que ele sente e pela sensação de que seu corpo estava em carne viva, reverberam o tom claustrofóbico que permeia as páginas iniciais e que acaba sendo pulverizado por toda a obra, conforme é possível constatar no excerto a seguir:

Meu estômago encolheu. Senti falta de ar. É difícil respirar com tanta escuridão. O coração disparava. Veio-me à cabeça o dia em que minha ex-mulher demorou para fazer alguma coisa enquanto eu me afogava. Tive dificuldade para abrir os olhos. Minhas mãos latejavam. Um

clarão distante me deixou com tontura. Um corpo em carne viva é quente (LÍSIAS, 2013, p. 8).

Como pode ser observado, o uso de expressões como “falta de ar”, “difícil respirar”, aliadas aos verbos “encolher”, “afogar” e “latejar” representam o campo semântico da atual situação da protagonista Ricardo Lísias, ou seja, um homem que se encontra em uma situação de quase-morte devido a conturbadora descoberta a respeito das intimidades de sua esposa e, por apresentar-se metaforicamente sem pele, sem qualquer proteção contra as vicissitudes da vida. É no “cafofo” – local onde o narrador Lísias foi residir após deixar a casa que morava enquanto casado – que ele passa, então, a remoer sua tristeza e a nos apresentar, como uma verdadeira colcha de retalhos, pequenas passagens do diário íntimo de sua ex-mulher, as quais somam-se vinte ao longo de todo o romance. Através desses pequenos fragmentos dispersos na obra, o leitor é instigado a costurá-los no intuito de adquirir maiores informações sobre a infidelidade da sua mulher e, principalmente, a tentar compreender a protagonista. Abaixo, temos o fragmento datado no diário do dia 27 de julho em que sua esposa, que, em nenhum momento, possui seu nome próprio revelado - apenas possuímos a informação que ela é uma famosa jornalista de cultura - declara ter traído Lísias com um famoso cineasta, nomeado apenas como “[x]”, enquanto cobria o Festival de Cannes. Tal excerto, que vai sendo aos poucos revelado, torna-se o catalisador do desequilíbrio tanto emocional como da identidade da protagonista e da sua perda de pele:

27 de julho: Em Cannes, eu pude confirmar a mulher que eu sou. As carícias do [X] me desabrocharam [...] O [X] me mostrou a verdadeira mulher que eu sou, o que só homens muito maduros sabem fazer. O que eu vivi em Cannes moveu o mundo e me fez nascer de verdade [...] A noite que eu passei com o [X] no Festival de Cannes me mostrou quem eu sou de verdade (LÍSIAS, 2013, p. 101).

Ao transpor a atual fragmentação de sua identidade, através da apresentação de um discurso repleto de vazios e silêncios, como em “não me lembro de nada” (LÍSIAS, 2013, p. 28) e “De novo há um hiato entre a terceira e a quarta semana fora de casa. Não lembro o que aconteceu” (LÍSIAS, 2013, p. 93), características essas que possuem um efeito sintomático se as aliarmos ao caráter fragmentário do romance, é perceptível que

as atitudes da protagonista se coadunam com as reflexões de Stuart Hall (2002) ao discorrer sobre a identidade do sujeito contemporâneo. Segundo o autor, o sujeito pós-moderno, ao contrário das normas Iluministas que se pautavam na presença de uma identidade unificada e estável, caracteriza-se por apresentar uma considerável complexidade no que tange ao reconhecimento da sua própria identidade. Nas palavras do pesquisador:

O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou nãoresolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático (HALL, 2002, p. 12).

O excerto, apesar de longo, torna-se de suma importância, pois a protagonista de Divórcio apresenta sua identidade tão esfacela que se torna complicado, nesse contexto, pensarmos na manutenção de um indivíduo pleno e com uma identidade única; muito pelo contrário, a diegese prima por apresentar um narrador-protagonista com uma identidade volátil e problematiza, desse modo, a falência de um sujeito pleno, autônomo e centrado. Ao perder misteriosamente a sua pele e, ao longo da obra, preocupar-se constantemente em narrar a reconstituição desse desfalecimento epidérmico, como descrito em: “[...] eu estava em carne viva” (LÍSIAS, 2013, p. 29) e “Minha pele já voltou. Está novinha. Não sou a mesma pessoa, claro, mas superei quase tudo” (LÍSIAS, 2013, p. 173), depreende-se que o narrador, à proporção que vai adquirindo sua pele, acaba reconstituindo fragmentos da sua identidade, assim como a sua autoestima. Nessa perspectiva, observa-se que Ricardo Lísias vai se transformando e passando por uma lenta metamorfose no decorrer da narrativa. No início, a personagem apresenta-se totalmente imersa em um ambiente caótico; entretanto, o que se percebe é que à medida que seu fôlego começa a melhorar e sua pele a se reconstituir, uma nova personalidade emerge. Nesse ínterim, torna-se importante destacar que os quinze títulos que nomeiam os capítulos, ao expressarem uma progressão quilométrica que Lísias vai percorrendo ao

participar da corrida Internacional de São Silvestre, ajudam-nos a assimilarmos essa tomada de fôlego da personagem e, consequentemente, seu ressurgir das cinzas. À proporção que o romance progride, vão sendo expostos os problemas pessoais da protagonista, seu passado perpassado pelo uso de drogas, que acabaram o levando a ter uma overdose quando ainda era universitário, e detalhes picantes inerentes à sua intensa vida sexual. Além dessas lembranças, o leitor acaba descobrindo que o que ora se apresentava como sendo o presente da narrativa, na verdade, era passado, ocorrendo, assim, uma verdadeira fusão cronológica no romance. Nessa mistura, o narradorprotagonista nos informa, em várias passagens, que está simultaneamente: organizando os fatos em sua memória; tentando compreender o episódio da descoberta da infidelidade de sua esposa; e, por fim, descrevendo as dificuldades que está tendo ao escrever o próprio romance Divórcio. Nesse contingente, tal qual um efeito mise en abyme, o romance vem a apresentar três possíveis Ricardo Lísias distintos, mas inter-relacionados: o primeiro, o que descobre o diário íntimo e sofre as consequências de se deparar com a verdade; o segundo, aquele que está escrevendo o romance dentro do romance, baseando-se nas suas lembranças e, por fim, o terceiro Ricardo Lísias, o verdadeiro, o sujeito empírico, representado pela figura extratextual do autor. Somando-se a isso, destaca-se o caráter singular dessa obra por versar sobre os métodos e escolhas usados em sua escritura. Nessa perspectiva, intensificando ainda mais a complexidade dessa diegese, o romance de Lísias passa a nos apresentar fortes características metatextuais, como podemos verificamos em: “[...] senti uma enorme tremedeira na mesa onde estou sentado agora escrevendo” (LÍSIAS, 2013, p. 38), “Estou escrevendo sentado no chão, em uma mesa de rodinhas que trouxe do apartamento antigo” (LÍSIAS, 2013, p. 60), assim como em: “Estou escrevendo onze meses depois de ter saído de casa e visto meu corpo morto no cafofo. Passei dez dias esquematizando esse trecho, mas consegui pouquíssima memória” (LÍSIAS, 2013, p. 131). Por fim, outra temática fortemente explorada por Lísias em seu romance é a verdadeira brincadeira que o escritor contemporâneo realiza ao problematizar questões inerentes à autobiografia e à autoficção. Dessa maneira, torna-se interessante

recorrermos às reflexões teóricas do francês Philippe Lejeune, que nos apresenta vários conceitos atribuídos ao gênero autobiográfico. Considerado pela crítica literária como um dos mais importantes teóricos da autobiografia, Lejeune nos apresenta estudos aprofundados sobre esse gênero, através de um aparato teórico inerente à própria autobiografia. Além disso, o teórico francês foi inovador na época em que publica seus primeiros trabalhos, visto que ele trouxe para o centro de discussão literária a importância do autor para o entendimento da obra, enquanto muitos em sua época defendiam fielmente a tese da morte do autor. Assim, Lejeune parte da premissa de que a autobiografia seria compreendida como uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, enquanto focaliza sua história individual, em particular a história de sua personalidade” (LEJEUNE, 2014, p. 16) e, mais adiante, o autor assinala que: “Para que haja autobiografia (e, numa perspectiva mais geral, literatura íntima), é preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem” (LEJEUNE, 2014, p. 18). Entretanto, os estudos inovadores de teórico francês abriram brechas para inúmeras críticas, as quais ilustram a fragilidade das suas reflexões. O primeiro traço marcante criticado leva em consideração que Philippe Lejeune acabou simplificando muito a questão da autobiografia ao fixar-se no estabelecimento do que ele denominou de “pacto autobiográfico”, que se realiza “mediante um contrato implícito entre autor e leitor, de tal maneira que o primeiro se compromete com a veracidade e o segundo garante acreditar nas revelações” (MERINO, 2009, p. 74). Aliado a esse fator, incluemse a presença de um estudo pouco teórico e muito descritivo, que acaba não apresentando uma análise cronológica sobre o tema nem levando em consideração definições mais antigas, ficando, assim, completamente preso unicamente às produções literárias do contexto francês. Por conseguinte, critica-se, entre outras coisas, o caráter simplório atribuído ao pesquisador para tratar de um tema de ampla complexidade. Ao associarmos o conceito de autobiografia descrito por Lejeune ao romance Divórcio, uma gradual complexidade gerada pelas inúmeras contradições expressas pelo discurso do narrador possui o efeito de confundir o leitor. Em um primeiro momento, o livro cumpre com todos os requisitos para ser classificado como uma autobiografia, uma vez que a narrativa nos guia a chegarmos à conclusão que realmente exista uma

identificação homonímia entre o autor/herói/narrador, bem como o comprometimento deste em dizer a verdade. Conforme podemos analisar nos excertos a seguir, temos, primeiramente, a revelação do nome da protagonista que é o mesmo do autor (extratextual): “Quando o medo de ter enlouquecido ficou muito forte, parei em um sinal vermelho e repeti o meu nome. Ricardo Lísias. O meu nome é Ricardo Lísias” (LÍSIAS, 2013, p. 78); já em um segundo momento, temos descrições de que estamos diante do relato de um sujeito sem máscaras, ao descrever, em letras garrafais, que tudo o que ele diz: “ACONTECEU NÃO É FICÇÃO” (LÍSIAS, 2013, p. 16), assim como em: “Aliás, não há uma palavra de ficção nesse romance” (LÍSIAS, 2013, p. 172). Além disso, a obra apresenta, em páginas aleatórias, fotos da família e da infância do escritor Ricardo Lísias, característica esta que intensifica o caráter autobiográfico expresso na obra. Todavia, somos confrontados pelas revelações do narrador de que tudo o que ele narra não passa de uma invenção, fato que acaba desestruturando por completo tanto o pacto de leitura estabelecido entre o autor e o leitor quanto à compreensão deste acerca do conteúdo que ora se apresenta. Dessarte, em trechos como em: “Divórcio é um livro de ficção em todos os seus trechos” (LÍSIAS, 2013, p. 190) e, ao refletir sobre a existência do diário íntimo e da sua ex-esposa, o autor frisa que: “Esse diário nunca existiu” (LÍSIAS, 2013, p. 162) e que: “Não estou tratando de uma pessoa em particular. Minha ex-mulher não existe: é personagem de um romance” (LÍSIAS, 2013, p. 128). Diante dessas revelações, depreende-se que a noção de pacto autobiográfico, formulada por Philippe Lejeune, começa a se esfacelar e a se tornar insuficiente para dar conta da complexidade do romance de Lísias. Assim, recorremos às considerações de Serge Dobrovsky (1988) e de Diana Irene Klinger (2006), os quais tematizam a respeito do conceito de autoficção e do impasse entre esta definição em comparação à autobiografia. Desenvolvido pelo francês Serge Dobrovsky, seu conceito parte do princípio de que a autoficção é um gênero híbrido, ou seja, misturaria traços da realidade com aspectos ficcionais. Assim, nas palavras do crítico francês, “todo o contar de si é ficcionalizante” (DOUBROVSKY, 1988, p. 73 apud MARTINS, 2014, p. 147) e assinala que com esse termo, descreve-se “uma ‘história’ que, qualquer que seja o acúmulo de referências e sua opinião, nunca aconteceu na ‘realidade’, e cujo único lugar

real é o discurso em que se desenrola” (DOUBROVSKY, 1988, p. 73 apud MARTINS, 2014, p. 30). Na mesma esteira, Diana Irene Klinger também apresenta considerações a respeito do conceito de autoficção. Segundo a pesquisadora, ao comparar os aspectos inerentes da autobiografia com os da autoficção, a autora parte da ótica de que esta seria superior às autobiografias, pois ao fundir fatos reais com ficcionais, privilegia-se, como em um palco teatral, um caráter artístico sobre a realidade, ou seja, esta apresenta-se como uma fonte para a ficção. Por conseguinte, Klinger descreve que:

[...] a ficção seria superior ao discurso autobiográfico pois o romancista (ou o contista) não tem como prioridade contar sua vida mas elaborar um texto artístico, no qual sua vida é uma matéria contingente [...] Assim, o texto literário, privilegiando a função artística sobre o referencial, seria uma forma mais elaborada, e portanto, ‘mais verdadeira’ que a autobiografia (KLINGER, 2006, p. 42).

Tomando por base os postulados acima, depreende-se que um dos enigmas apresentados em Divórcio é o fato do escritor Ricardo Lísias se apropriar e brincar com os dois gêneros, apresentando-os na obra em movimentos pendulares, ora demonstrando características autobiográficas ora autoficcionais, com o intuito de causar um estranhamento ou desconforto no leitor – sentimentos similares aos vividos pelo narrador-protagonista no início da narrativa – e, principalmente, problematizar os supostos limites da literatura.

Considerações finais

O presente artigo teve por objetivos analisar as técnicas narrativas utilizadas pelo escritor Ricardo Lísias para realizar um mergulho na consciência da personagem protagonista do romance Divórcio, bem como propor uma problematização sobre o caráter autoficcional e autobiográfico expresso na obra. A partir da análise apresentada, foi possível perceber o caráter movediço que a diegese demonstra. Dessa forma, quanto mais somos instigados a penetrar no universo em ruínas do narrador, mais ficamos submergidos e aprisionados em um verdadeiro pântano emocional, não havendo, assim, espaço ou credibilidade para a presença de uma narrativa que se propõe a narrar verdades absolutas e inquestionáveis.

Ao longo do romance, podemos verificar o estado de agonia e tristeza da personagem Ricardo Lísias. Através da descrição de um ambiente fechado, aliado à solidão que ele sente, a personagem pulveriza no romance as pequenas passagens do diário íntimo da sua ex-esposa e, enquanto isso, constatamos o completo desfalecimento da sua identidade. Entretanto, a descoberta das percepções negativas a respeito da sua personalidade, em conjunto com a traição expressos no diário, passaram a apresentar uma função essencial na diegese. Conforme observou-se, o romance passa a descrever uma lenta metamorfose do narrador-protagonista através de uma representação metafórica da sua reconstituição epidérmica e da sua capacidade respiratória. Além disso, é durante esse renascimento de Lísias que somos expostos aos vários mergulhos subjetivos da personagem, os quais descrevem detalhes sobre seu passado, que é preenchido pelo uso das drogas e por uma vida sexual ativa. É nesse contexto que o romance passa a nos apresentar vários enigmas. O primeiro deles, refere-se aos distintos, mas inter-relacionados, Ricardo Lísias presentes na diegese, seguido pela manifestação de uma verdadeira fusão cronológica no romance. Desse modo, Divórcio acaba se mostrando como uma narrativa labiríntica, cheia de armadilhas e contradições. A respeito do seu caráter contraditório, mais duas características singulares são expressas na obra. Em primeiro lugar, o romance apresenta fortes traços metatextuais, por versar sobre os métodos e escolhas usados em sua própria escritura. Em seguida, observa-se uma intensa problematização sobre questões inerentes ao gênero autobiográfico, que, como foi analisado, o conceito elaborado pelo francês Philippe Lejeune se esfacela por completo, em Divórcio, pelo caráter pendular expresso na obra, que ora afirma que tudo é verdade, ora nega tudo o que foi narrado e assevera-se que o que está sendo apresentado não passa de uma mera invenção. Nessa ótica, as formulações a respeito da autoficção acabam sendo de suma importância para tentar dar conta da complexidade desse romance, visto que a obra brinca com os conceitos autobiográficos e autoficcionais, desestruturando, desse modo, o “pacto autobiográfico” e levando o leitor a não mais acreditar nas supostas verdades expressas pelo autor. Ao término dessa análise, que não esgotam as leituras possíveis do romance de Ricardo Lísias, podemos observar os impactos desestruturantes causados por uma

infidelidade. Assim, ao abrir as páginas do Divórcio e acabar “metendo a colher” na briga entre um marido traído e uma esposa infeliz, o leitor acaba sendo levado a juntar os cacos de um narrador-personagem denso e psicologicamente conturbado e desafiado a solucionar os vários silêncios e dicotomias expressos em uma narrativa repleta de enigmas.

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