Em busca do Palácio Celeste

July 27, 2017 | Autor: André Bueno | Categoria: History of Religion, Chinese Studies, Chinese Religions
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EM BUSCA DO PALÁCIO CELESTE

2001/2010

ÍNDICE Uma religiosidade complexa Relatos da mitologia chinesa Sobre o Velho que movia montanhas A evolução do pensamento religioso chinês O sonhar e a religião na China Aspectos da Religiosidade Chinesa O que é o Budismo? Do Exercício da Dúvida e da Sabedoria Do Exercício da Crença

Relatos da Mitologia Chinesa 2004

Inseridos num complexo sistema politeísta, os deuses chineses estão entre os mais numerosos do mundo, tornando praticamente impossível contabilizá-los de forma razoável. Isto ocorre graças à incrível diversidade de religiões existentes na China, e a uma longa tradição histórica que tem enriquecido cada vez mais seu folclore e crenças. Por esses motivos, é sempre complicado fazer uma apresentação sobre a mitologia chinesa. Sua aparência é, para o ocidental desavisado, de um sistema complexo, incoerente, sem uma lógica ordenada tal como a do politeísmo greco-romano. Este engano é compreensível, levando-se em conta o nosso grande desconhecimento sobre a cultura chinesa, além da dificuldade natural que possuímos em tratar com a história de uma civilização que vem acumulado milênios de experiências sobrepostas. Neste pequeno texto, portanto, vamos apresentar algumas das características básicas da religiosidade chinesa e sua relação coma mitologia, além de algumas de suas principais divindades. Em princípio, devemos saber que este grande número de deuses que compõe o panteão chinês não alcança todas as religiões existentes na China. Tradicionalmente afirma-se que as três grandes crenças chinesas são o confucionismo, o daoísmo e o budismo. Destas, apenas o daoísmo parece

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compartilhar o culto popular aos deuses, posto que o confucionismo e o budismo desenvolveram-se por caminhos diferentes. Não sabemos ao certo a datação histórica dessa mitologia. Indicações preliminares apontam para o culto de deuses da natureza durante a época Shang (séculos XVIII – XII a.C.), tal como deus da água, deus do fogo, das árvores, etc. No final deste período, porém, e no início da época Zhou (XII – III a.C.) delineia-se a organização de uma cosmogonia chinesa autêntica, composta por uma corte celeste semelhante a corte do império chinês. Esta seria uma tendência clássica da religião popular chinesa: o mundo do além é igual ao mundo material, e organiza-se da mesma forma que o império chinês. Um mundo é reprodução do outro, e ambos funcionam de forma interrelacionada. Esta cosmogonia não parece ter tido grande importância no desenvolvimento da filosofia chinesa em seus períodos iniciais. Confúcio, por exemplo, pouco fala sobre a religião e os deuses; Laozi, da mesma forma, praticamente nada cita. Nenhum mito de criação será comentado, e a cosmogonia será substituída por uma cosmologia, baseada em princípios lógicos e científicos. Desde a época Zhou, pois, as ciências, o pensamento e as crenças das elites possuirão uma tendência a afastar-se da religiosidade popular, exceto pela presença forte e organizada do daoísmo, que a partir do século III a.C. deixará de ser um sistema filosófico para constituir-se numa prática de cunho esotérico. Assim sendo, falar dos deuses chineses significa tratar de uma mitologia de características folclóricas e populares, inserida num sistema bastante flexível 5

de crenças que os organiza de maneira liberal e criativa. Apesar de sua possível antiguidade, os especialistas têm buscado tratar estas crenças somente depois o século V a.C em diante, quando podem ser obtidas informações mais seguras das fontes e da arqueologia. Um dos mitos mais famosos, por exemplo, é o de Pangu. Ele aparece pela primeira vez na iconografia de uma tumba datada do período Han (século III a.C – III d.C.), e parece ter sido importado de alguma das minorias étnicas chinesas existentes na época. O mito de Pangu parece responder a necessidade de um mito de criação nessa religiosidade popular, enquanto os pensadores chineses preferiam apostar no estudo da física e do espaço para responder ao problema. Pangu teria sido um deus mítico, nascido de um ovo cósmico fundido pelas duas energias primordiais, o yin e o yang. Ele teria separado o céu e a terra, e levou milênios na construção do mundo, sendo ajudado por cinco animais; um dragão, uma fênix, uma tartaruga, um unicórnio e um tigre, que seriam depois considerados os guardiões de pontos cardeais e representantes das forças da natureza. O corpo de Pangu é o universo, seu hálito o vento, seus olhos são o sol e a lua. Outros deuses importantes na mitologia primordial chinesa são Foxi e Nugua, os fundadores da civilização humana. Estes mitos parecem ser legitimamente chineses, e Confúcio citava Foxi como um patriarca da cultura (mas como ser humano divino e abençoado, e não como um deus). Formando um casal que, por vezes, é apresentado com corpo humano e caudas de cobra (ou dragão), Foxi e Nugua são responsáveis pela difusão das técnicas de domínio da 6

natureza. Foxi foi o descobridor dos guas, os trigramas que interpretam a relação das energias yin-yang e que formam o bagua (oito trigramas) que seriam a base do Yijing, o livro das mutações. Teria também descoberto como manipular os metais, o calendário, praticar a caça, fazer leis, escrever, apreciar a música, entre muitos outros atributos. Já Nugua teria ensinado a medicina, as belas artes e a confecção dos tecidos, embora em outros mitos ela tenha sido a própria criadora dos seres humanos, a partir de moldes de barro, e também a deusa que consertou o mundo após uma grande inundação. Sheng-nung é um deus que completa esta tríade primordial, tendo vindo depois de Foxi e Nugua para ensinar os seres humanos as artes da agricultura e da botânica. Se na mitologia popular ele é apresentado como um deus que possui uma cabeça de búfalo, Confúcio nos informa que ele teria sido um ser humano especial, tendo conhecido a natureza através de anos de pesquisa e trabalho. Como podemos ver, os chineses desenvolveram esta tendência a mistificar e/ou racionalizar seus próprios mitos, embora não diminuísse sua importância histórica. Este período mais antigo da mitologia diz respeito a um mundo de seres humanos que ainda luta contra a natureza. Por isso, mesmo que os três patriarcas tenham ensinado como sobreviver às agruras da vida, os homens tem a necessidade de realizar grandes façanhas para assegurar sua existência. É o caso do arqueiro Yi, herói arqueiro chamado a deter a revolta dos sóis. Neste tempo imemorial, a terra era banhada pela luz de dez sóis que se revezavam no trabalho. Quando, porém, eles resolveram apresentar-se todos juntos, a terra começou a ser calcinada pelo calor e as pessoas, juntas com os 7

animais, começaram a morrer. Yi foi chamado e matou a flechadas nove destes dez sóis, deixando um para iluminar a humanidade. Vejam aqui a contradição – nunca explicada – de como os olhos de Pangu seriam os astros e depois, na história de Yi, surgem dez sóis, o que mostra que o Pangu parece realmente não pertencer, de forma original, a mitologia chinesa. A mulher de Yi, Zhang, seria também famosa por roubar e ingerir um elixir mágico que a levou até a lua, tornando-a deusa deste astro. A Humanidade ainda teria que enfrentar os chamados Dramas Universais, tal como a grande batalha entre Huangdi, o primeiro soberano mítico e Zhouyi, um ambicioso demônio-homem, que quase destruíram a Terra. Com um exército composto por seres fabulosos, deuses, animais sagrados e seres humanos, o imperador Amarelo deu combate e venceu definitivamente o vilão, não sem antes ter de enfrentar diversos perigos mágicos e calamidades da natureza. Considerado o sábio patrono da medicina e das artes alquímicas, Huangdi teria sido também o descobridor da bússola e de vários instrumentos técnicos. No final da vida, atingiu a imortalidade e voou para o céu nas costas de um dragão. Já neste momento encontramos um panteão politeísta organizado em moldes semelhantes ao da vida na terra, como havíamos indicado anteriormente. Este panteão é presidido por um deus supremo, Shangdi (soberano do alto), também chamado de Yuhuang shangdi – imperador de Jade do alto. Presidia uma enorme burocracia celeste, encarregada de aferir a vida dos mortais e administrar-lhes benefícios ou punições. Sua mulher, Wangmu, era padroeira das mulheres e dos partos, além de matrona das artes. Ninguém sabe sua 8

origem; a mitologia diz que ele pode ter surgido de um ―soberano primeiro de perfeita pureza‖, ou ainda, um antigo imperador desconhecido que, ao morrer, recebeu a ordenação do céu. Tal como no Olimpo grego, Shangdi e sua corte habitavam numa montanha chamada Kunlum, tida como sagrada pelos antigos chineses. O imperador celeste era acompanhado por um grande número de deuses auxiliares, responsáveis pela administração da natureza e das tarefas propiciatórias ou punitivas. Num primeiro escalão, podemos situar os deuses das regiões, dos pontos cardeais (acompanhados pelos animais celestes) dos domínios (montanha, mar, lagos, rios, etc.) e os padroeiros das cidades, que eram acompanhados pelos deuses das tarefas. Estes, mais populares entre os chineses, são conhecidos por sua ação intercessora junto aos deuses maiores. Entre eles, podemos citar os Sanxing (Três deuses), que representam os três anseios básicos do povo chinês: Fuxing (sorte), Luxing (fortuna) e Xouxing (vida longa). Às vezes eles são acompanhados de um cão celeste, que afugenta os maus espíritos. Tão bem quistos como estes três deuses são as divindades domésticas, protetoras do lar e da família. Zaojun é o deus protetor do lar, ao qual todo ano são dirigidas cerimônias especiais. Para que ele traga maior fartura, sua imagem é posta da cozinha, e todo ano Zaojun é convocado a prestar contas, no céu, sobre a família que guarda. Temos também o casal Menshen, protetor das portas e entradas, que afugenta os maus espíritos, e o deus visitante Shoulao, que passeia pelas cidades distribuindo o pêssego da imortalidade de casa em casa. Seus

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auxiliares (o morcego, a cegonha e o cervo) são considerados sinais auspiciosos de sua presença numa localidade. As crenças populares chinesas acreditavam na reencarnação, e por isso os deuses da morte eram também bastante respeitados. Ao morrer, a alma da pessoa era levada para o inferno, domínio do deus-rei Yama, onde seria avaliada por um tribunal encarregado de medir seus méritos e erros em vida. Se julgada virtuosa, essa pessoa poderia renascer em uma vida melhor ou ainda, viver eternamente no palácio celeste. Se julgada culpada, porém, ela seria torturada durante algum tempo até purgar suas dívidas, quando então voltaria a terra numa posição condizente com suas necessidades e potencialidades. O tribunal era presidido por Yenlowang, deus que recebia os relatórios do deus da Cozinha, Zaojun, sobre a vida do réu. A decisão, porém, cabia ao juiz supremo da morte, Pankoan, que determinava a pena a ser aplicada. Outro mito diz que este trabalho é atribuição de Tongyue Dadi (soberano do monte oriental), mestre do monte tai e dos subterrâneos, que sempre aparece com um ábaco na mão, contabilizando os pecados. Outros deuses completam essa extensa relação, tal como Caishuen (deus da riqueza e da fartura), Chenghuan (deus da muralha, patrono da cidade e censor da vida dos homens) e Kuixing (deus dos exames e do estudo). Uma categoria específica de divindades chinesas é formada por aqueles que, segundo as lendas, já foram seres humanos normais, mas obtiveram a divindade por algum grande feito ou descoberta que tivesse beneficiado a humanidade. Mais do que santos, esses heróis passam a atuar como responsáveis por alguma parcela das forças divinas, e os crentes passam então 10

a dedicar-lhes culto tal como qualquer deus antigo. É o caso, por exemplo, dos deuses da prosperidade, os gêmeos Hehe. Tendo trabalhado muito em vida, os irmãos se tornaram o símbolo de grandes empreendimentos e do esforço. No início de todo o ano, presta-se homenagem aos Hehe para obter graças em negócios ou no comércio. Outro deus famoso é Luban, patrono dos inventores e descobridor do barco, da arquitetura, da engenharia, do guarda-chuva e do carrinho de mão. Os mais conhecidos destes seres humanos que teriam obtido a divindade, porém, seriam os oito imortais daoístas, cujas biografias são facilmente encontradas na história chinesa. Atuando junto aos homens, os oito imortais estão sempre atentos as demandas dos crentes, pois já foram mortais um dia e sabem de suas agruras. São eles Zhang Guolao, padroeiro da longa vida; Ludong pin, protetor dos sábios e do conhecimento; Zhongli guan, dos militares; Hexiangu, protetora das mulheres; Caoguojiu, dos bons cavalheiros; Hanxiangzi, dos poetas e literatos; Litieguai, dos mágicos, médicos e doentes; e Lancaihe, dos pobres. Não podemos esquecer ainda de Guanyin, divindade budista altamente prestigiada pelos chineses como a deusa da compaixão e da misericórdia. Tendo sido uma devotada freira budista, Guanyin foi sincretizada com o Buda da compaixão (avalokitesvara), um caso único de uma imagem de deus masculino que ganha forma feminina. Outro deus cuja história é bastante conhecida foi Guangong, ou Guandi (soberano da justiça). Guerreiro famoso na época dos três reinos, Guandi ascendeu ao posto de defensor da justiça encarnando um herói disposto a tudo para defender os fracos e oprimidos.

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Esta breve apresentação mostra, pois, a diversidade de deuses que podemos encontrar no panteão popular chinês. Tais tradições encontram-se vivas nos cultos daoístas e xamânicos, espalhados pela China e nas regiões próximas, e convivem plenamente com a veneração aos ancestrais e a valorização da ética em vida. Como afirma Julia Ching, ―O senso religioso peculiar dos chineses visa de fato a um harmonioso equilíbrio entre dois mundos, o visível e o invisível, o temporal e o supratemporal. Mas orienta a pessoa humana a procurar sua salvação, ou mesmo sua perfeição, no aqui e agora, particularmente na moralidade das relações humanas como quer o confucionismo, mas também na beleza da natureza como querem os sábios daoístas‖ – uma outra forma, portanto, de manifestar o sentimento religioso presente no íntimo de cada pessoa.

Bibliografia indicada: Ching, J. ―O senso religioso dos chineses‖ in Boff, L. (org.) China e o Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1978. Ching, S.C. & Luo, L. W. China – Lendas e Mitos. SP: Rosita Kempf, 1984 Christie, A. Mitologia Chinesa. Lisboa: Verbo, 1988. Coletânea. Mitologias Chinesas. SP: Landy, 2000. Maspero, H. Taoísmo y las religiones chinas. Madrid: Trotta, 2003. Palmer, M. Elementos do Taoísmo. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993 Rawson, P. Tao. Lisboa: Del Prado, 1998. Schmaltz, J. & M. Histórias da Mitologia Chinesa. Porto Alegre: Xerox - Cone Sul, 2000. 12

Uma Religiosidade Complexa 2004

Ao falarmos sobre o tema ―religião‖ na China, somos praticamente forçados a rever nossos parâmetros sobre o assunto. O pensamento religioso chinês é bastante diferente do ocidental: ele se dispõe a aceitar qualquer crença vinda de fora, contato que ela seja capaz de dialogar com a sua cultura milenar. Complexa, sutil e abrangente, a idéia de religião chinesa funde elementos diversos da filosofia, ciência e cosmogonia, e deve necessariamente ser investigado numa perspectiva bem diferente da qual estamos acostumados. As religiões chinesas são muito mal conhecidas até hoje. Resultado de uma evolução de crenças e ritos bastante particulares, cuja datação remonta a milênios, os conjuntos das crenças e da mitologia chineses exigem uma disposição ímpar do estudioso. Não é à toa que a tradição folclórico-políteísta chinesa já foi considerada, junto com a indiana, como uma das maiores do mundo. Mas, ao contrário do Hinduísmo, que ao longo dos séculos ordenou de alguma forma sua estrutura cosmo-teológica, as religiões chinesas seguiram caminhos diferentes, crescendo, multiplicando-se, a ponto de se tornarem unidades

quase

autônomas

dentro

de

grandes

denominações

(―confucionismo‖, ou ―daoísmo‖, etc.) que as associam muito vagamente com a idéia de um sistema religioso.

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A primeira questão para entender este problema é: existe religião na China? O problema é importante, quando relacionamos a utilização do termo ―religião‖ e ―mitologia‖ no contexto orientalista. Em geral, aplicamos o termo ―mitologia‖ para uma série de narrativas de cunho religioso ou cultural que integram a história e o pensamento de uma civilização. Seriam elementos que, essencialmente, não possuiriam comprovação material, constituindo-se, assim, de histórias ―irreais‖. Ora, como podemos considerar como ―mitológicos‖ a existência dos deuses que compõe uma religião como o daoísmo ou o budismo chinês, compostos por mais de um bilhão de crentes e ainda praticados em todo o mundo? Se a questão é, em si, a comprovação material, então até o judaísmo e o cristianismo teriam problemas sérios em suas cronologias, já que não existem provas quaisquer sobre a vida de Abraão ou Moisés, além das presentes na Bíblia. Se um sistema de culto qualquer pode ser considerado como Religião, ele o pode porque existe enquanto tal; logo, ele independe de uma comprovação material total e completa. Portanto, é importante fazer a distinção entre os dois termos, tendo em vista que o argumento da ―mitologia‖ e da ―comprovação material‖ têm sido utilizado inúmeras vezes contra as religiões asiáticas, na tentativa de provar a sua ―falta de base histórica‖. Além disso, como utilizar a denominação religião quando sabemos que, na China, o aspecto devocional ou ritualístico pode ter muito pouco haver com a própria idéia de crença no sobrenatural? Podemos considerar o Budismo uma religião, tendo em vista que ele comporta em sua estrutura sistemas de crença tão distintas como o ateísmo e politeísmo?! Ou o Confucionismo, que foi

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eleito como religião estatal na China imperial, apesar de pregar a liberdade de culto e de não possuir qualquer espécie de sacerdócio, propondo-se a existir apenas como um conjunto de regras morais, e não religiosas? Assim sendo, elas são filosofias, e não religiões? O problema que se insere aqui é simples: a idéia de Religião que usualmente empregamos é aquela derivada do Judaísmo-Cristianismo, com uma crença vinculada a um sistema metafísico, e a presença de elementos ditos ―clericais‖. Quando nos deparamos com situações complexas como a do movimento religioso budista ou do Confucionismo, o emprego da idéia de ―religião‖ ou ―filosofia‖ tem sido utilizada, geralmente, como detrator, e não esclarecedor. Logo, quando um é ―religião‖, termina por não ser ―filosofia‖, e vice-versa. Fica patente que tal dubiedade perversa somente é aplicada a sistemas religiosos e filosóficos que não seguem nossas regras gerais; caso contrário, poderíamos nos perguntar se São Tomás de Aquino ou Kant foram menos religiosos apenas porque foram filósofos. É necessário, portanto, que esclareçamos como queremos abordar estes sistemas culturais asiáticos, posto que muitos fundem elementos diversos de filosofia, religião e história, com aplicações e sentidos próprios que podem – ou não – aproximar-se dos nossos. Por fim, temos que lidar com as próprias distinções que os chineses fazem de suas religiões. Embora as grandes correntes religiosas estejam estruturadas em torno do Confucionismo, do Daoísmo e do Budismo, estas divisões nem sempre correspondem à realidade. O confucionismo, por exemplo, admite a diversidade de crenças teológicas; o daoísmo mistura uma série de elementos 15

do folclore e da ―mitologia‖; e o budismo chinês recebeu um grande impacto destas tradições, modificando-se em muitos aspectos. Além disso, podemos dizer que na China antiga existia ainda um conjunto de crenças praticadas essencialmente pela elite (que possuíam um cunho estatal) e um outro de caráter popular, bastante diferenciado. Esta breve introdução nos mostra, portanto, que estudar as religiões chinesas é um processo bem complicado. O que faremos nos próximos textos, portanto, é investigar um pouco de suas estruturas, movimentos, crenças e mitologia, tentando compreender alguns de seus elementos básicos. Bibliografia: Ching, J. ―O senso religioso dos Chineses‖ em Boff, L. (org.) China e o Cristianismo. Petrópolis: Vozes, 1978. Ching, J. Chinese Religions. New York, 1998. Eliade, M. Tratado da História das Religiões. Lisboa: ASA, 1997. Smith, D. As Religiões chinesas. Lisboa: Arcadia, 1969. Smith, H. As Religiões do Mundo. São Paulo: Cultrix, 2001.

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Sobre o Velho que movia Montanhas 2005

Os dois montes Haihang (em Shansi) e Wangwu ocupam um território de setecentos li quadrados e têm dez mil cúbitos de altura. Outrora ficavam situados ao sul de Chichou e ao norte de Hoyang. O Velho Louco da Montanha do Norte tinha quase noventa anos e morava numa casa em frente do monte. Ele não gostava de subir e descer o monte quando saía, pelo que pediu à família que se reunisse e lhe disse: — Vós e eu poremos mãos a obra com toda a nossa força e arrasaremos esta montanha de modo que tenhamos um caminho plano que conduza diretamente a Yünan (Honan) e vá dar bem na margem setentrional do Rio Han (em Hupeh). Que dizeis? A família concordou, mas a mulher disse: — Com a vossa força, não podeis mesmo com a Colina de K‘ueifu. Como podereis com o Taíhang e o Wangwu? Demais, onde ides despejar todas as rochas e a terra? As diversas pessoas responderam: — Podemos lançá-las na extremidade do Puhai (Golfo de Peichili, ao sul da Mandchúria) e ao norte de Yntu (Sibéria).

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Ele levou então três de seus filhos e netos que podiam transportar pesos, e começou a talhar as rochas e a cavar a terra, levando-as em cestas para a extremidade do Puhai. Um menino filho da viúva do vizinho, de nome Chíng‘eng, que acabava de mudar os dentes de leite, saltou atrás deles e veio ajudá-los, e só voltou a casa uma vez em toda a estação. O Sábio de Hach‘u riu-se do velho e tentou detê-lo dizendo: — Como és louco! Com toda a tua força e com os anos que ainda viverás, não poderás sequer raspar a superfície deste monte. Que farás com todas essas rochas e com a terra? O Velho louco da Montanha do Norte soltou um profundo suspiro e disse: — É somente o teu espírito que não está formado; quando o estiver, nada poderá detê-lo. Tens menos serventia que o filho da viúva. Quando eu morrer, ficarão meus filhos (para continuar o trabalho), e os filhos terão netos, e os netos por sua vez terão filhos, e os filhos terão filhos e os filhos ainda netos. Assim, meus filhos e netos não têm fim, ao passo que a montanha não pode crescer. Por que não seria ela arrasada algum dia? O sábio não pôde dar resposta alguma. Ora, o Espírito da Serpente soube do caso, e tendo ficado receoso da sua segurança, foi falar a Deus. Deus apiedou-se da sinceridade de coração do velho e mandou que dois filhos de Kuafu transportassem os dois montes e

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colocassem um em Sutung e outro em Yungnan. Desde então, o sul de Chichow e o norte do Rio Han tornaram-se terreno plano. [Do ―Escritos de Liezi‖, capítulo 5, versão de Lin Yutang]

O enredo da historia é simples, e sua mensagem moral parece óbvia; a determinação pode quase tudo. Obstinados, os chineses não buscaram apenas preservar sua cultura e modo de vida, mas entenderam que a própria concepção de humanidade consistia em interferir no curso da natureza, adaptando-se mas também, modificando-a. A fábula que surge no livro de Liezi nos permite, porém, fazer algumas inferências mais profundas. A concepção de abnegação, em primeiro lugar, não comporta o sentimento de ansiedade ou rapidez, mas supõe, antes de tudo, a paciência e o domínio do tempo. A idéia da obra por si só determina sua continuidade, e por isso parece ser calcada na sabedoria. Um ignorante não pode compreendê-la, pois só vê o agora. Confunde também o pragmático e o eficaz com a questão da objetividade: porque, afinal, uma boa e simples idéia é somente aquela que pode ser aplicada rapidamente? O Tempo não tem relação direta com eficácia, senão quando a comprova como algo real. O projeto do velho era simples, e por isso perfeito. Se era possível a ele concluílo, isso ele não sabia (embora tivesse a consciência deste impedimento temporal) - no entanto, a sua proposta era absolutamente plausível, tornandoa aplicável a longo prazo. Confúcio, disse sobre a abnegação:

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"A fim de aprender a ter um verdadeiro eu é preciso obter um conhecimento largo e profundo do que tem sido dito e feito no mundo; indagar sobre isso com espírito de critica; ponderar cuidadosamente; sondar claramente; e levá-lo avante logo depois. Não importa o que você aprender; porém, assim que aprender alguma coisa, não o abandone enquanto não o souber bem. Não importa o que motiva suas indagações, porém, quando as fizer sobre alguma coisa, jamais deverá abandoná-la enquanto não a compreender perfeitamente. Não importa o que você tenta meditar, porém, desde que você tenta meditar sobre uma coisa não deve deixar de fazê-lo enquanto não chegar à conclusão desejada. Não importa o que você tenta descobrir, porém uma vez que você tentou descobrir uma coisa, não deve abandoná-la enquanto não a tiver descoberto clara e distintamente. Não importa o que você tenta levar a cabo, porém, desde que tentou levar a cabo uma coisa não deve abandoná-la enquanto não a tiver levado a cabo perfeitamente bem. Se outro homem obtiver sucesso por meio de um só esforço, você lançará mão de centena de esforços. Se um outro homem for bem sucedido com dez esforços, você usará mil. Proceda um homem realmente dessa maneira e, embora tolo, ele se tornará

inteligente

na

certa:

seguramente" (Zhong Yong, 7).

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embora

fraco,

ficará

forte,

A Sabedoria está, portanto, em reconhecer a capacidade de transformação, e não negá-la. E o ato de transformar (a si mesmo, antes de tudo) que embasa a mutação da natureza ao redor. Disso podemos extrair, igualmente, a idéia de que o ser humano - com todo seu potencial criativo - tem uma capacidade única de influenciar o seu meio. O tom monocórdio das concepções religiosas chinesas dão-nos uma aparência inequívoca de que os deuses (ou o Céu, Tian) controlam nossa vida de um modo absoluto, mas isso não é de todo real. O mesmo Confúcio não afirmou que "Ainda não conheces a vida, como poderias conhecer a morte?" Zilu perguntou como servir aos Espíritos e aos deuses. O Mestre disse: "Ainda não és capaz de servir aos homens, como poderias servir aos Espíritos?" Zilu disse: "Posso vos perguntar sobre a morte?" O Mestre disse: "Ainda não conheces a vida, como poderias conhecer a morte?"? (Lunyu, 11) A atitude confucionista era de respeito, mas também, de uma consciência desafiadora. No Liji (Manual dos Rituais), Confúcio dizia:

―O Filho do Céu, de cinco em cinco anos, fazia uma viagem de inspeção pela terra. No segundo mês do ano visitava os do leste, indo à venerada montanha de Tai. Ai ele queimava uma grande pilha de madeira e anunciava a sua chegada ao céu; e com os olhares dirigidos para eles, sacrificava à colina e aos rios. Se algum dos espíritos das colinas e dos rios não recebia atenção, era considerado um ato de irreverência‖. (Liji, 3) e ―Eram dadas ordens

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(no segundo mês de Verão) aos oficiais, para rezarem pelo povo, e oferecer sacrifícios aos espíritos das colinas, das correntes e de todas as fontes. Isto era seguido pelo grande sacrifício de Verão, a Deus, a pedir chuva, em que se empregavam todos os instrumentos de música. Eram dadas ordens em todos os distritos para sacrificar ao (manes de) vários príncipes, ministros e oficiais que tivessem beneficiado o povo, rezando para que pudessem ter uma boa colheita‖. (Liji, 4)

Estes trechos mostram que existia um caminho direto de encontro às divindades, mas a atitude do ser humano era a parte fundamental do rito. Disso podemos concluir que quando o velho da montanha começa sua obra, ele nada mais fez do que seguir o curso das propensões humanas - ou seja, realizar, alterar, interferir. Por conta disso os espíritos resolvem ajudá-lo; e o que poderiam fazer? Lançar intempéries poderia significar um sinal de insatisfação divina, mas nunca poderia se ter certeza disso; ademais, não haveria justiça em punir alguém cuja atitude era justa e correta, posto que sua ação se fundamentava na mais elevada intenção moral. Do mesmo modo, se eles não interferirem no assunto (positiva ou negativamente), seu silêncio seria considerado sua distancia (ou mesmo inexistência). Só restava aos deuses recompensar o homem, a comprovação de que as leis da natureza são inexoráveis. Mas o desafiador na historieta de Liezi não está explícito: a sua moral mais profunda é de que até mesmo os deuses temem o homem, pois se este 22

descobrir que pode realizar tudo sozinho, ele não mais dependeria da ajuda divina. São os deuses que precisam do ser humano para existir, e não o contrário. Liberto, o ser humano poderia se conduzir de modo independente mas ao mesmo tempo, sabe ele suas limitações? Poderia ele atingir o infinito? Disse Dong Zhongshu no seu ―Chun Qiu Fanlu‖ (cap. 6): ―O céu, a terra e o homem são a origem de todas as coisas. O céu dá-lhes nascimento, a terra alimenta-as, e o homem aperfeiçoa-as‖. Assim sendo, o que podemos concluir é que a única fé realizante é aquela no qual a crença não se baseia no que os deuses podem fazer por nós, mas sim no que podemos fazer por nos mesmos. Atingir esta concepção e pô-la em pratica e o cerne da sabedoria. As divindades são a representação máxima daquilo que podemos atingir, então como negá-las? Não o podemos, diriam os chineses. Mas Confúcio e Liezi deixam claro que a única via realizante (Dao) é aquela que pressupõe uma ação humana consciente, engajada e humanamente ecológica. Pautada nestes pressupostos, qualquer busca pela sabedoria será bem sucedida, e poderá contar ate com a ajuda dos deuses afinal, não havia sábio na época que não recorresse ao uso do Yijing (O Tratado das Mutações) para saber qual a maneira mais adequada de agir. Crendice? Pode ser. Mas o conjunto de realizações chinesas bem sucedidas (traduzindo - a própria sobrevivência de sua civilização) está estranhamente ligado ao uso deste livro, bem como de todos os conceitos antes enunciados. Tal como o velho da montanha, tudo os chineses fizeram por conta de seu próprio esforço - mas como saberemos que força estranha os ajudou? Esta

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talvez seja mais uma daquelas "verdades" que torna o campo da História das Religiões altamente necessário à compreensão da existência humana.

Fontes: Liezi, Escritos de Liezi (Liezi Jishi) in Lin Yutang, « A Importância de Compreender », 1993 – outra versão do mesmo texto pode ser vista em ―O Tratado

do

Vazio

Perfeito‖.

São

Paulo:

Landy,

2006.

Confúcio, Diálogos (Lunyu), Manual dos Rituais (Liji) e Justo Meio (Zhong Yong) em Lin Yutang, ―A Sabedoria de Confúcio‖, Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

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A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO RELIGIOSO CHINÊS 2007

Dentre as civilizações atualmente existentes, a China é uma das únicas a conseguir manter viva, de uma forma bem própria, a sua estrutura religiosa básica. Dizemos "estrutura" pois não podemos afirmar com clareza que - além do daoísmo - a China tenha o que nós ocidentais classificamos propriamente como "religiões". Sejam quais forem os critérios que adotarmos, a tríade fundamental das crenças e do pensamento metafísico chinês - o confucionismo, o daoísmo e o budismo chinês - costumam usualmente escapar, de um lado ou de outro, de nossas tentativas de categorizá-las ou enquadrá-las. Mas isso não significa, absolutamente, que a China seja uma civilização desprovida de religiosidade; ao contrário, um conjunto rico de crenças, costumes, superstições e mitologias continua a existir, e suas origens podem ser traçadas até uma antiguidade distante. Do que trata, então, este artigo? A idéia que desenvolveremos adiante é de que o pensamento religioso chinês se orienta através de uma estrutura cosmológica e mental claramente definida, estabelecida em tempos ermos (porém rastreáveis) que fundamenta a sua relação com o que definimos pertencer ao campo do "religioso". Tal estrutura, eminentemente filosófica, foi capaz - no caso chinês - de organizar os métodos de exploração do real

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através de campos diversos que categorizamos como "ciência", "medicina", "história" e, no caso deste texto, "religião". Por este motivo, mais do que organizar a interpretação das concepções religiosas, a estrutura básica do pensar chinês consegue explicá-la, analisá-la, de modo teológico e antropológico, ensejando mesmo a conexão com um passado anterior ao seu tempo de construção. As possibilidades geradas por esta íntima ligação permitem nos fazer compreender, por conseguinte, os fundamentos pelos quais a visão religiosa chinesa tem se desenvolvido ao longo dos séculos. Esta é, provavelmente, uma oportunidade única no campo da história das religiões.

Aspectos iniciais Como analisei no meu artigo ―A estrutura do pensar chinês‖ [2005], desde um tempo remoto os chineses buscam explicar os significados de sua existência no real através de uma estrutura geradora (Li, ou princípio, estrutura) que se bifurca na oposição complementar primordial (o sistema yin-yang), base pelo qual se explica como os objetos existem, e de como são percebidos através de suas contraposições ideais. Por esta razão, os chineses tenderam – até onde podemos investigar sua história – a opor (mas sempre de forma complementar e dependente, nunca excludente) o mundo da terra ao mundo do céu, o mundo dos homens ao dos animais, o mundo real ao mundo do sonho; e neste último está a chave para compreender o cerne do pensamento religioso chinês.

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O sonho é o meio de acesso ao mundo espiritual (que se opõe ao mundo material), e por meio dele conseguimos alcançar um outro nível de existência onde tudo se realiza, pois lá vivenciamos o nosso ―verdadeiro eu‖ (ou eu interno, a alma, em oposição ao corpo) (veja também meu artigo ―sonhar e religião na china‖). Estes mundos estão ligados, imbricados, e ambos funcionam dentro de regras similares (embora no mundo celeste ou infernal estas regras sejam extrapoladas além dos limites materiais, pois lá é o mundo do espiritual, do sonho, onde tudo pode ser realizado). A prova de que possuímos um ―eu verdadeiro‖ dentro de nós está, porém, na evolução do próprio corpo material: como podemos ter consciência de que somos os mesmos se desde criança nossos corpos mudam, e mesmo a nossa forma de pensar? Sabemos que somos algo além do corpo: sonhamos com pessoas que já foram, ou mesmo, no sonho temos poderes que vão além de nossa capacidade. No sonho encontramos as leis pelas quais o mundo espiritual é regido, e como manipulá-las. E se o sonho é resultado do sono cotidiano, a morte é o ―sonho eterno‖. Ao morrer, podemos voltar nos sonhos ou no oráculo de outros, mas não diretamente (exceto nos casos em que conseguimos tomar ―emprestado‖ o corpo de alguém, como afirmam os daoístas e alguns budistas). Podemos viver toda uma vida na corte celeste ou nas fontes amarelas (uma espécie de ―hades‖ chinês‖), uma vida semelhante a deste mundo, mas potencializada pela libertação do verdadeiro eu. Reencarnamos? Na China antiga, não sabemos bem se tal crença existe ou não. Zhuangzi parece ter dado uma pista que sim, Confúcio preferia acreditar que os ancestrais ficam onde estão (mas sabemos, o mestre era um especialista

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em confundir as pessoas sobre a questão da morte – afinal, seu pensamento sempre focou mais a ―vivência da morte‖ através dos rituais e do luto dos que ficam do que propriamente tentou explicá-la de forma cosmológica). Se vamos para um outro mundo, então, que é parecido como nosso, porque não levar o que mais gostamos daqui para lá? Ao sacrificar as coisas que gostamos – animais, livros, objetos – estamos também ―matando-os‖ ritualmente e permitindo que eles vão para o outro lado junto conosco. Eis a razão pelo qual, então, desde a antigüidade, os chineses defenderam a continuidade da vida sobre a morte, não importando a concepção religiosa do praticante. Este é um ponto importante, e completamente arraigado no pensar religioso chinês: nenhuma religião se afirmaria na China sem defender, de algum modo, a duplicidade dos mundos (o material e o espiritual) como um continuum. Se reencarnamos ou não, tanto faz: há uma outra realidade, e nela continuamos a ser quem éramos aqui (embora possamos, virtualmente, mudar). Somente os confucionistas, num momento avançado de suas especulações, pretenderam alguma forma de ateísmo, que resultará inútil; as crenças chinesas nascem de uma especulação que conjuga a mitologia popular e uma interpretação intelectual, e como toda boa ―oposição complementar chinesa‖, será indefectível até os dias de hoje.

As primeiras manifestações rituais Estas afirmações adquirem forma nos modos primitivos de enterramento chinês, realizados durante o período da dinastia Shang. Um vasto conjunto de

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túmulos reais e nobres demonstra como a crença da continuidade no mundo do além operou no imaginário da época: uma grande quantidade de nobres menores, auxiliares, esposas, concubinas e serventes eram sacrificados junto com o personagem principal, com o fim de servi-lo no outro mundo. Mesmo animais familiares, como cavalos e cães eram postos na tumba. O conjunto completo de todo uma vida deveria segui-lo, eternamente. A partir desta constatação, porém, é que percebemos como a estrutura do pensar chinês idealiza a noção de continuidade e se torna capaz de alterá-la. No tempo da dinastia Zhou, atribui-se ao eminente Duque Zhou a modificação do macabro ritual. Teria dito ele que após a morte, os corpos de tornam pó, e viram barro. Se de barro somos feitos, e ao barro retornamos, que diferença fará, portanto, sacrificarmos estátuas de barro ou bronze ao morto? Além disso, se o mundo espiritual é tal como o sonho, então, ao chegarmos do outro lado, podemos ordenar que as estátuas se transformem em autômatos e elas nos servirão. Tal concepção demonstra que se é possível manter o princípio da continuidade no pós-morte, mas que ele pode ser modificado sem prejuízo a teoria. Confúcio (e provavelmente muitos chineses mais humildes) louvou a iniciativa sobremaneira, apesar de alguns soberanos mal-humorados terem lhe dado prosseguimento, ocasionalmente. Ao longo dos Zhou, porém, o pensamento social e moral modificaram-se lentamente, ensejando a consolidação da prática. Mesmo o período de surgimento das escolas de pensamento no século VI a.C. não alterou de modo substancial esta concepção, e discutiu-se muito mais os aspectos éticos e

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econômicos dos enterramentos do que, propriamente, o problema da vida além. Um exemplo claro disso pode ser observado pela monumental tumba do primeiro imperador Qin, Qinshi Huangdi. O re-unificador da China encomendou para si um exorbitante mausoléu formado por uma quantidade infindável de guerreiros de terracota, componentes de um exército temível que embarcaria consigo para o além. Sabemos que o imperador era dado a execuções em massa de sábios, escravos, prisioneiros, entre outros. Mesmo os engenheiros e operários de sua tumba foram sacrificados para não revelar os seus segredos: mas nenhum ser humano, a princípio, parece ter sido sacrificado para servi-lo no mundo espiritual. Aparentemente, Qinshi tinha planos ainda mais audaciosos: mesmo tendo testado inúmeros elixires da imortalidade, seu desejo era o de – após a morte física – conquistar o mundo espiritual com seu exército invencível (ou, ao menos, protegê-lo de todos os seus inimigos).

A evolução A tumba do imperador Qin nos dá uma idéia do seu desejo de continuar reinando após a morte. Seus guerreiros - cópias fiéis de seu exército segundo a tradição - são proporcionalmente maiores que os seres humanos comuns. Teríamos aí um caso singular, portanto, de um tumba super dimensionada por um soberano megalômano. Mas, o que Qinshi fez foi apenas abrir um precedente.

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No tempo da dinastia Han, o imperador Jingdi inspirou-se na idéia e construiu, para si, uma tumba similar, porém de proporções muito menores do que a de Qin. Seus guerreiros e funcionários têm de um terço a um quarto do tamanho de um ser humano real, e são igualmente feitos de barro. Sendo uma descoberta arqueológica recente, podemos supor que outros soberanos Han tenham feito o mesmo. O interessante aí é a diminuição da escala: apesar do argumento economicista de que estas estátuas seriam mais baratas, não podemos supor, apenas, que esta justificativa seja válida. A diminuição só ocorre, novamente, por uma evolução desta teoria mortuária: que diferença faz o tamanho, se do outro lado alguém pode ordenar que as estátuas mexamse e tomem outra estatura ou forma? Para aqueles que conhecem as regras do além, tudo é possível; apenas os que a ignoram continua fracos do outro lado. No entanto, Jingdi não nos deixa entrever a conquista do paraíso celeste: sua tumba parece muito mais o desejo de manter uma boa vida no além do que, propriamente, de conquistar o mundo do imperador de Jade. Estas modificações graduais operar-se-iam nos modos de enterramento chinês ao longo de toda a sua história. Os imperadores mais recentes da dinastia Ming e Qing optaram por tumbas menos sofisticadas, porém sempre repletas de seus objetos pessoais preferidos. Não nos iludamos também pelo fato de ilustrarmos a teoria com os mausoléus dos poderosos: no seio do povo, os mesmos tipos de crenças, práticas e rituais se encontram reproduzidos em escala menor. Parentes do morto lhe queimam dinheiro falso para que ele possa ser rico em outra vida; miniaturas de seus instrumentos de trabalho, roupas e desejos de consumo são ―sacrificados‖ junto com morto. Hoje

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mesmo, se sacrificam bonecos de papel (para serem serviçais do morto) junto com brinquedos de plástico que representam carros, tevês, geladeiras e outros objetos materiais que às vezes o próprio morto não possuiu em vida. Os budistas adicionaram a esta crença a idéia de que atos meritórios nesta vida geram um ―crédito especial‖ na vida além que pode ser convertido em poder de compra de benesses materiais e espirituais (do outro lado). Os daoístas chegam ao limite em afirmar – reproduzindo a total materialidade desta crença – de que é melhor levar um dinheiro certo para subornar o barqueiro da morte e o tribunal que julga os pecados da pessoa, buscando lhe garantir e proporcionar uma vida melhor. Há absoluta certeza, pois, de que o outro lado é muito parecido com aqui.

A formação das mitologias cotidianas E se a China Antiga possuía uma mitologia rica (apesar do acachapante desinteresse confucionista pelos mitos de criação, somente resolvida pelas especulações daoístas que surgem depois do século IV a.C.), esta nunca parou de se desenvolver, posto que a convivência entre o mundo espiritual e o terreno promoveu um aumento constante do número de divindades existentes. Os chineses continuam até os dias de hoje alimentando seu panteão divino com deuses e santos provenientes das mais diversas fontes. Alguns surgem de revelações míticas (sonhos, transes, aparições), mas um grupo bastante especial (e ainda mais interessante, a meu ver) é o daqueles que tiveram uma vida mortal e foram deificados depois de sua passagem. Seria um tanto impreciso caracterizá-los como ―santos‖, apesar de algumas 32

características comuns os aproximarem com esta classificação ocidental. O fato é que alguns mortais não apenas destacam-se em vida, mas, continuam a interferir no mundo terreno através do ―outro lado‖. Casos clássicos disso são Guan-yin, a encarnação de Buda na forma feminina, que intervém pelos fracos e oprimidos, ou Guan-gong, deus da justiça, guerreiro da época dos Três reinos que se destacou em vida na busca da perfeição ética e retidão moral, e que continua a defender aqueles que precisam de sua ajuda. Exemplos mais recentes desta prática encontram-se na deificação da imagem de Maozedong e Zhu Enlai – o primeiro transformou-se num vingador dos pobres, num santo furioso, enquanto o segundo (famoso pela suas artes diplomáticas) tem sido invocado em questões onde é necessária a conciliação ou obtenção de alguma benesse material. Botton‘s e imagens destes personagens estão, cada vez mais, dividindo espaço em altares das classes mais humildes e devotas. Ironia do destino, ateus convictos viram divindades numa sociedade onde as pessoas, inequivocamente, acreditam no além.

Conclusão O estudo da religião na China pressupõe, portanto, a continuidade. Sem ela, nada há de fazer sentido, pois a intima ligação com o passado se mantém através da concepção de princípio (Li) que permeia todo este pensar hierofânico. As distinções pertencem a uma concepção ideológica em que elas mesmas são apenas opostos complementares indispensáveis a existência um do outro. A evolução do pensar chinês é, pois, um eterno jogo de reproduções de um ciclo infindável. Nele se perdem mitos, e ao mesmo tempo se criam

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outros. Como uma árvore milenar, cujas raízes fincam-se num passado distante, ela ainda dá frutos, e alimenta o imaginário religioso do povo chinês.

Bibliografia Os documentos clássicos para saber os ritos funerários encontram-se principalmente no Liji (O Livro dos Rituais) de Confúcio. Uma versão condensada dos capítulos que tratam sobre estes ritos pode ser encontrada o livro de Le Dru, ―Rituels de la mort en la Chine Ancienne‖. Uma importante bibliografia sobre o assunto pode ser encontrada em francês na página Chine Ancienne: (http://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/clas sique). Consulte o manual dos rituais (em francês, Liki), na seção clássicos chineses; na seção Marcel Granet os textos La vie et la mort. Croyances et doctrines de l‘antiquité chinoise, Le language de la douleur, d‘après le rituel funéraire de la Chine classique, La religion des Chinois, e na seção dos outros autores, os livros La religion chinoise dans son développement historique, Mythologie de la Chine moderne, Histoire des croyances religieuses et des opinions philosophiques en Chine, The Religious System of China e Le Taoisme et les religions chinoises. Em inglês, podemos achar o livro dos rituais na página: http://www.sacred-texts.com/cfu/index.htm. Em português, a sugestão de leitura é o livro de Smith, ―Religiões chinesas‖, 1971.

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Outros: Chu Hsi Chu Hsi's Family Rituals, traduzido por Patricia Ebrey. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991. Watson, J. e Rawski, Evelyn.(org.), Death Ritual in Late Imperial and Modern China. Berkeley: University of California Press, 1988. Ebrey, Patricia Buckley. Confucianism and Family Rituals in Imperial China. Princeton, NJ: Princeton University Press, 1991. Loewe, Michael. Ways to Paradise: The Chinese Quest for Immortality. London: George Allen and Unwin, 1979. Poo, Mu-chou. In Search of Personal Welfare: A View of Ancient Chinese Religion. Albany: State University of New York Press, 1998. Yang, C. K. Religion in Chinese Society. Berkeley: University of California Press, 1970

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O Sonhar e a Religião na China 2005 O papel do sonho nas sociedades antigas já foi razoavelmente bem discutido por antropólogos e historiadores da religião. O sonho possui uma função explicativa, para a possível dimensão extra-corpórea do ser humano, e iniciática, como via de acesso à esta realidade transcendente. A China clássica nos oferece, no entanto, algumas informações significativas sobre como o sonho adquiriu este caráter ―metafísico‖ em suas crenças religiosas (oportunamente criando um modelo teórico que pode vir a ser utilizado como contraponto para outras civilizações). A influência da análise antropológica sobre este tópico ainda é forte, posto que ela se baseia nas experiências realizadas com culturas ditas ―primitivas‖ que, ainda hoje, praticam alguma espécie de xamanismo - mas o problema, neste caso, é saber se estas observações podem ser efetivamente aplicáveis a contextos mais antigos. Alguns tratados sobre a interpretação dos sonhos sobreviveram no Egito, Mesopotâmia e Índia, mas todos se tratam de chaves para decodificação de premonições - nenhum deles propõe, necessariamente, uma interpretação da atividade ou da morfologia da sonhar (Callois, 1978). O caso chinês apresenta uma possibilidade razoável de nos conduzir pelo tema através de referências textuais clássicas, estabelecendo uma possível continuidade entre a perspectiva dita ―primitiva‖ xamânica e a evolução de concepções religiosas antigas através de um outro sistema interpretativo, cujo

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fundamento se assenta na estreita relação entre este mundo e o outro como realidades apenas relativamente distintas. Mas no que constitui esta contribuição chinesa? Na possibilidade de demonstrar o processo de concatenação entre a experiência do Sonho e elucubração da idéia de Espírito (aqui entendido como o princípio fundamental e individual subjacente a vida corpórea). A idéia de como os chineses concebem a percepção da existência do espírito é ilustrada pela atividade do sonhar. O sábio daoísta Zhuangzi sonha que é uma borboleta,

―voando aqui e acolá, sendo somente uma borboleta. Só tinha consciência de minha felicidade como borboleta sem saber que eu era Zhuang. Depressa acordei e ali estava eu, eu mesmo, na verdade. Agora não sei se eu era um homem sonhando ser borboleta, ou se eu sou uma borboleta sonhando ser um homem. Entre um homem e uma borboleta há, naturalmente, uma distinção‖ [porque] ―Mesmo você e eu somos talvez sonhadores que ainda não acordamos. Além disso, ele sabe que sua forma está sujeita a transformação, mas que seu espírito continua o mesmo. Não crê na morte real, mas considera-a como se se movesse numa nova casa‖.

Qual é, pois, a realidade do ser humano? Em que plano ela se situa? No sonho, os chineses descobrem que há uma outra realidade alternativa a vida

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material; um outro plano, no qual eles percebem que há uma individualidade que subjaz e transcende, ao mesmo tempo, o molde simples do corpo. Esta realidade é o espírito, o ―eu real‖ por trás do corpo. Seu domínio é justamente o mundo espiritual, de onde ele provém, ao qual ele visita em sonho e de onde ele retira idéias (espíritos de coisas) que irá materializar na forma de objetos neste mundo material. No mundo do sonhar (doravante um sinônimo para o mundo espiritual), os chineses encontram com os ancestrais mortos, recebem mensagens e adquirem poderes inusitados para o mundo material. É por isso, pois, que este mundo seria tão real, para os chineses, quanto o mundo material. Quando acordamos do sonho, temos sensações físicas reais e profundas; ao longo do sono, nosso corpo se aproxima de um estado de quase morte, que é a inação total - mas para onde foi o nosso eu real? Porque ao chamá-lo, ele não responde? E quando o espírito retorna, ele conta que esteve em outro lugar, em outro mundo. Disso se extrai a concepção de que o mundo espiritual e o material estão interligados, são indissociáveis - quando estamos acordados em uma realidade, estamos ―dormindo‖ em outra. Conta-nos Liezi;

―Havia em Zheng um lenhador que encontrou no campo um gamo assustado, alvejou-o e matou-o. Temeroso de que outras pessoas o vissem, escondeu-o em uma moita e cobriu-o com lenha picada e ramos de árvores, ficando muito satisfeito. Logo depois, no entanto, esqueceu onde havia escondido o gamo e acreditou que tudo deveria ter acontecido em sonho. Como sonho contou-o a 38

todos nas ruas. Entre os ouvintes um houve que, ouvindo a história desse sonho, foi à procura do gamo escondido e encontrou-o. Trouxe o gamo para casa e disse à esposa: - Há um lenhador que sonhou ter matado um gamo, esquecendo onde o escondera, e eis que o encontrei. Esse homem é realmente um sonhador. - Tu mesmo deves ter sonhado que viste um lenhador que matara um gamo - disse a mulher. - Acreditas verdadeiramente que exista esse lenhador na realidade? Mas agora realmente tens um gamo, de modo que teu sonho deve ter sido verdadeiro. - Encontrei o gamo - respondeu o marido. - De que vale discutir se foi ele quem sonhou, ou se fui eu? Naquela noite, o lenhador foi para casa, ainda a pensar em seu gamo, e realmente teve um sonho; e nesse sonho tornou a sonhar com o lugar em que escondera o gamo, e também com quem o encontrara. Ao amanhecer, bem cedo, foi à casa de quem o encontrara e achou o gamo. Ambos, então, discutiram e foram ter ante o juiz, para que decidisse a questão. E o juiz disse ao lenhador: - Mataste realmente um gamo e pensaste que foi sonho. Depois, realmente sonhaste e pensaste que era realidade. Ele realmente achou o gamo e agora o disputa contigo, mas sua mulher pensa que ele sonhou que havia encontrado um gamo que outra pessoa matara. Assim, ninguém, na realidade, matou o gamo. Como,

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porém, temos o gamo diante de nós, pode ele ser dividido entre os dois. Essa história foi levada aos ouvidos do rei de Zheng, e o rei de Zheng disse: - Ah! Não tornou esse juiz a sonhar que está dividindo o gamo entre os outros?‖

No plano do sonhar, pois, é que alcançamos a exercitamos a plenitude de nossos poderes. Fora dele podemos nos confundir, pois no mundo material torna-se difícil perceber o principio subjacente (Li, forma, estrutura) das coisas;

―Certo carpinteiro Shi viajava para o Estado de Qi. Ao chegar ao Circulo Sombrio, viu uma árvore li sagrada no templo do Deus da terra. Ela era tão grande que sua sombra podia abrigar um rebanho de vários milhares de cabeças. Tinha centenas de palmos de circunferência e subia a oitenta pés antes de abrir os ramos. Uma dúzia de botes poderiam ser cortados de seu tronco. Em multidões as pessoas paravam para olhá-la, mas o carpinteiro nem a notou e prosseguiu em seu caminho sem mesmo lançar um olhar para trás. Entretanto, o aprendiz olhou-a bem e quando alcançou o mestre disse - "Desde que manejo a machadinha em seu serviço nunca vi

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uma peça de madeira tão esplêndida. Por que razão o senhor, Mestre, nem mesmo se deu ao trabalho de parar para olhá-la?" - "Esqueça-se dela. Não merece que conversemos a tal respeito", replicou o mestre. "Não serve para nada. Transformada num bote, afundaria; num caixão de defunto apodreceria; em mobília, quebrarse-ia facilmente; numa porta, racharia; numa coluna seria devorada pelos vermes. Não é madeira de qualidade e não é útil: por isso chegou aos nossos dias presentes. A chegar em casa, o carpinteiro sonhou que o espírito da árvore lhe aparecia e lhe falava do seguinte modo: - "Com que pretendeu comparar-me? Com madeira suave? Olhe para uma cerejeira, uma pereira, uma laranjeira, uma ameixeira e outras árvores frutíferas. Mal seus frutos amadurecem são esbulhadas e tratadas com indignidade. Os grandes galhos são retirados, os pequenos ficam quebrados. Assim, devido ao próprio valor dessas árvores, elas sofrem enquanto vivem. Não podem viver o período de vida que lhes é concedido, mas perecem prematuramente porque destróem-se pela (admiração do) mundo. O mesmo se dá com todas as coisas. Além disso, eu tentei durante longo tempo ser inútil. Muitas vezes estive em risco de ser decepada, porém finalmente alcancei o que desejava e assim torneime excessivamente útil a mim mesmo. Tivesse eu prestado para alguma coisa e não teria chegado à altura a que cheguei. Demais tanto você como eu somos coisas criadas. O que adianta criticarmonos mutuamente? Um sujeito que não presta para nada em perigo

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de morte iminente e uma pessoa indicada para falar de uma árvore que não presta para nada?" Quando o carpinteiro Shi acordou e contou o sonho que tivera, o aprendiz disse: "Se a árvore ansiava por ser inútil como foi que conseguiu tornar-se uma árvore sagrada?" - "Psiu!" Volveu o mestre. "Fique calado. Ela simplesmente refugiou-se no templo para fugir ao abuso dos que a não apreciavam. Se não tivesse se tornado sagrada quantos não teriam desejado cortá-la! Além disso, os meios que adota para sua segurança são diferentes dos dos outros e criticá-los pelos padrões ordinários será ficar bem longe do objetivo". (Zhuangzi)

A própria vida, enfim, pode ser mesmo um grande sonho - e no entanto, ela será tão real quanto a existência verdadeira do espírito no plano do sonhar, posto que ambos não podem ser dissociados. Continua o mesmo Zhuangzi;

―Os que sonham com uma festa acordam para se lamentar pesar. Os que sonham com os lamentos e os pesares acordam para reunirse aos que vão caçar e se divertir. Enquanto sonham, não sabem que estão sonhando. Alguns até interpretarão o sonho mesmo que estavam tendo; e apenas quando acordam compreendem que estavam no sonho. Pouco a pouco aproximam-nos do grande despertar e então verificamos que esta vida foi realmente um grande 42

sonho. Os tolos pensam que estão acordados agora e ficam convencidos de que tudo sabem - este é um príncipe e aquele é um pastor. Que estreiteza de espírito! Confúcio e você são ambos sonhos; e eu que afirmo que são sonhos - eu não passo de um sonho também. É um paradoxo. Amanhã um Sábio talvez se erga para explicar isso; mas o amanhã não virá senão depois que se tiverem passado dez mil gerações; e, no entanto, [se tudo é um sonho] você poderá encontrá-lo amanhã, por acaso, em qualquer lugar‖.

Buscando compreender este mundo do sonhar, portanto, é que os chineses elaborariam algumas fórmulas com as quais pretendiam acessá-lo de forma consciente, tendo um pleno domínio das faculdades emocionais e mentais do espírito. A interpretação dos sonhos seria apenas um recurso acessório e imperfeito para aqueles que não conhecessem estas vias. Confúcio (séculos -6- 5) defenderia que a conexão entre os dois mundos se daria por meio da prática ritual, através da manutenção entre o canal de comunicação entre os vivos e os espíritos. Sua abordagem consagrava-se na execução das atividades devocionais descritas minuciosamente no Liji (O Manual dos Rituais), um texto já clássico e ancestral na época do sábio. Este admitia, ainda, que o uso oracular do Yijing (o Tratado das Mutações) possibilitava a atuação dos ancestrais por meio de avisos, conselhos e presságios. Sua opção, pois, era de um contato consciente com o outro mundo, legando a atividade do sonhar uma condição espontânea do momento 43

na existência corpórea; ―Estou ficando assombrosamente velho. Passou-se muito tempo desde que vi o duque de Zhou em sonhos pela última vez" (Lunyu, 7). Deixai, pois, que os mortos retornem quando lhes convier. Os daoístas, no entanto, optariam por desenvolver o método do sonho extático como método de contato com o mundo espiritual.

A prática do sonho e atuação do espírito na matéria segundo os daoístas Se o sonhar é o momento onde nos libertamos do corpo material e temos a possibilidade de reencontrarmos o mundo espiritual, é deste mesmo mundo que podemos extrair soluções para problemas práticos ou intelectuais que manifestaremos, posteriormente, neste plano. Assim sendo, os chineses desenvolvem a crença no espírito devido ao sonho; o espírito está para o corpo material assim como yang está para yin. Na oposição complementar em que se funda a realidade, a existência dos dois mundos é uma circunstância, uma condição da existência indispensável a manifestação das coisas. Shen (o espírito) está ligado ao corpo por ―duas almas‖ ou corpos espirituais, hun (seu princípio material-espiritual) e po (sua manifestação material-corporal, ou um tipo de ―perispírito‖) (Smith, 1971). Para os daoístas, a via real do espírito conduz-se pelo desenvolvimento e pela depuração das condições de acesso ao outro plano da existência. As capacidades sensoriais devem ser estimuladas e sensibilizadas o suficiente para

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atingirmos de modo consciente o mundo espiritual - e conseqüentemente, a imortalidade plena. Uma destas práticas denomina-se sonho extático. Os daoístas acreditavam poder dominar as funções dos corpos espiritual e material através de uma prática meditativa calcada na modulação do sono e na investigação do sonho. No ato de dormir, pois, um conjunto de procedimentos era realizado para assegurar que o praticante entrasse de forma consciente no sonho. Percebendo-se livre das amarras corpóreas, ele teria condições de exercitar práticas espirituais necessárias a melhoria do seu corpo, viajar por longas distancias, visitar ancestrais, imortais ou deuses e por fim, ativar a conexão entre os dois mundos através do seu próprio corpo espiritual-material (Wilson, 2004). A experiência do sonho premonitório, curativo ou revelador já havia sido, provavelmente, experienciada pelos xamãs chineses e siberianos (Eliade, 1978). O que os daoístas fazem, porém, é desenvolver estas técnicas, não somente aprimorando os métodos de entrada no mundo do sonho como ainda, mapeando as divisões do plano espiritual (céus, infernos, zonas intermediárias), suas criaturas, potencialidades, etc. O aperfeiçoamento do sonho extático favorece, igualmente, o controle do transe mediúnico (o ―sono acordado‖, em que o praticante sai de si para enxergar o mundo espiritual). Tais experiências seriam fartamente descritas pelos daoístas como meios de acesso e prática da alquimia interior. Uma pintura do século +15, por exemplo, mostra claramente um sábio daoísta vagando pelas montanhas enquanto seu corpo dorme numa cabana (Bowker, 2003); uma gravura ainda 45

mais antiga (século +10?) apresenta o mestre Chen Tuan simplesmente saindo do corpo enquanto dorme (Wilson, 2004:69). Estas representações remetemse exatamente ao que Zhuangzi já chamava de ―vaguear sem rumo‖ ou ―brincar no céu‖, termos que os textos daoístas irão reproduzir constantemente ao longo dos séculos. No sonho extático, pois, os chineses encontram uma via de acesso ao plano espiritual, uma forma de alcançar a unidade plena das faculdades intelectuais e físicas nos dois planos. Do sonho, advém a idéia do espírito; por ele, nos reencontramos com o real, com a existência plena. Como disse o mesmo mestre imortal Chen Tuan:

Assim, grandes sonhos têm grandes despertares; Pequenos sonhos, apenas pequenos; Durmo o sono de tudo que é perfeito; Sonho o sonho da ampla eternidade – Nenhum deles seria deste mundo!

Bibliografia Os Textos de Zhuangzi e Liezi podem ser encontrados nas traduções de Lin Yutang (Sabedoria da Índia e da China. Rio de Janeiro, 1957) e de Burton Watson (Escritos Básicos de Chuang-tzu. São Paulo, 1987); os textos de Roger Callois, ‗Prestígios e Problemas do Sonho‘ e Mircea Eliade, ‗Visões e

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sonhos iniciatórios entre os xamãs siberianos‘ podem ser encontrados no livro de Callois, R. (org.) O Sonho e as Sociedades Humanas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1978; ver também o livro recente de Peter Lamber Wilson, Chuva de estrelas - o sonho iniciático no sufismo e no taoísmo. São Paulo, 2004. Por fim, Smith, D. As Religiões chinesas. Lisboa, 1971 e o livro Para entender as Religiões - São Paulo, 2003, de P. Bowker, com a imagem da pintura de Chou Chen.

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O que é o Budismo?

Apresento aqui a transcrição da entrevista sobre Budismo que apresentei em 28/09/2009, e que pode ser encontrada na revista http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&Itemi d=23&task=detalhe&id=1822

IHU On-Line – É possível falar em pensamento oriental e ocidental? André Bueno - Para falarmos daquilo que, no Ocidente, chamamos de ―religião‖, faz-se necessário um conjunto extenso de ressalvas em relação aos pensares e crenças do mundo asiático. Ele é vasto, amplo, multifacetado, e tentar criar qualquer ideia de um ―pensamento oriental‖ é tão falso e perigoso quanto dizer que há um ―pensamento ocidental‖. Em segundo lugar, nossas classificações usuais para os fenômenos religiosos da Ásia não funcionam muito bem. Não encontramos, muitas vezes, as tais diferenças que separariam ―filosofia‖ ou ―ciência‖ de ―religião‖. No entanto, acho instigante pensar que, aos olhos de muitos asiáticos, quando os ocidentais lêem Santo Agostinho ou discutem a pesquisa com embriões humanos tendo como referência a crença na vida e em Deus, para eles, essas classificações também não fazem muito sentido. Um olhar sobre a Ásia nos traz, pois, um fantástico espelho cultural, no qual os sentidos parecem inversos e, no entanto, encontramos diversos pontos de semelhança.

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IHU On-Line - Que aspectos históricos e culturais favoreceram o surgimento da filosofia budista, seu desenvolvimento e expansão ao redor do mundo? André Bueno - O budismo nasce de uma insatisfação social e intelectual com o mundo indiano tradicional. Vamos rever brevemente a história budista: um príncipe abençoado, Sidarta Gautama, descobre lá pelos idos do século VI a.C. - uma época proveitosa para a humanidade, se pudermos acreditar nas tradições, visto que surgiram também Mahavira, Sócrates, Zoroastro, Laozi, Confúcio, Jeremias, entre outros - que a realidade não é tal como parece. Há fome, doença, velhice e morte; mas há, também, a sabedoria, meio pelo qual podemos nos livrar de um repetitivo ciclo de reencarnações. Depois de tentar métodos diferentes de meditação, ele descobre um novo caminho, mais equilibrado, menos exigente e liberal, que o torna o iluminado, o ―Buda‖. Então, voltemos agora à pergunta: quando o budismo nasce, ele traz consigo uma série de elementos daquilo que chamamos ―hinduísmo‖, tais como a questão da reencarnação, dos deuses, da meditação etc. No entanto, porque o ―hinduísmo‖ não ia para além do mundo indiano? E ainda, o que Buda trouxe de diferente para este mundo? Em primeiro lugar, o budismo inovou quando ignorou a questão das castas. Se para o hinduísmo a figura do brâmane, aquele que por nascimento está destinado à religião e ao topo da sociedade tradicional é fundamental, para os budistas, a libertação da alma é um potencial humano – assim sendo, se é humano, está em todos. Logo, todos poderiam se libertar da reencarnação! Isso era uma novidade excitante na época, e contrariava seriamente a elite da sociedade. Mas Buda havia sido um príncipe, e, por isso, conquistou ainda mais autoridade, por ter abandonado

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todas as vantagens que poderia conseguir por sua posição social especial. Sendo o budismo um movimento que nasce, então, como uma libertação espiritual – mas também, é importante frisar, social – o segundo passo foi fazer algo diferente do que as religiões da época faziam: pregar. Sim, o budismo é, provavelmente, o primeiro movimento deste gênero a ser proselitista, e seus missionários começaram suas andanças pela Índia a fim de espalhar a boa nova: a transcendência ao alcance de todos. Expansão do budismo pelo ocidente Depois disso, o resto é história. O budismo se dividiu em escolas diferentes, que continuaram suas pregações ao redor da Ásia. No início, tentaram ir em direção ao Ocidente, pegando carona nas conquistas macedônicas – por exemplo, alguns dos éditos do Imperador Ashoka, um governante da dinastia Maurya que teria tido uma certa simpatia pelo budismo, foram escritos em grego. Além disso, temos um texto delicioso, chamado ―Milinda Panha‖, que se trata do diálogo entre um rei grego da Ásia, Menandro, e um sábio budista chamado Nagasena. Talvez as crises no império helênico, e depois, o conturbado panorama do Oriente Médio na época romana acabaram desestimulando a ida dos budistas para o oeste, voltando seus olhares para a China. Lá, principalmente depois do século IV d.C., os budistas tiveram uma acolhida significativa, que reforçou a continuidade do movimento depois que ele praticamente desapareceu da Índia. As razões que levaram ao enfraquecimento do budismo em sua terra de origem foram, provavelmente, a ausência de possibilidades sociais para os conversos – lembremos, eles podiam não mais acreditar em castas, mas o restante dos indianos continuava a 50

acreditar – e, por fim, a grande retomada do hinduísmo na época Gupta, promovida por uma geração de sábios que souberam desconstruir o budismo e reafirmar as suas tradições perante o povo. De qualquer modo, o budismo só ganhou com isso, tornando-se um movimento internacional e multicultural, e o centro de seu discurso – a possibilidade de transcendência para todos – é a razão fundamental de sua receptividade e difusão. IHU On-Line - Como o senhor caracteriza a filosofia e o pensar budista? Que aspectos a diferem de outras práticas orientais? André Bueno - Prefiro sempre dizer que o budismo é um movimento, e se fosse classificá-lo de acordo com um critério ocidental, estaria inclinado a chamá-lo de filosofia. Creio que o problema é o seguinte: uma religião, tal como entendemos, tem um clero, um credo e uma liturgia. Os budistas têm cleros e liturgias, mas não tem um credo definido. Senão vejamos: as principais correntes budistas são três, a Theravada, Mahayana e Vajrayana. A primeira se entende como detentora do budismo mais antigo e tradicional, no que se inclui a dúvida na existência de Deus ou dos Deuses; a segunda defende que podem existir Deus ou Deuses, de acordo com cada escola; por fim, a Vajrayana, que constitui o budismo tibetano, diz que os deuses podem existir enquanto você acredita neles. Mesmo que estas definições possam ser discutidas, posto que foram apresentadas de maneira bem superficial, são mais do que suficientes para demonstrar que o budismo está bem distante de ser uma ―religião‖ tal como concebemos. Por outro lado, não podemos deixar de perceber que o budismo é um fenômeno de características profundamente religiosas, e como tal não pode ser ignorado. No mais, como disse 51

anteriormente, o budismo tem como um dos seus elementos mais empolgantes a noção de liberdade espiritual aberta e irrestrita. O budismo não tende, em linhas gerais, a tratar as pessoas como culpadas de pecados ou como vítimas do destino. A opção por libertar-se é apenas sua. O que a pessoa precisa saber são as quatro grandes verdades, que seriam: tudo é dor; a dor nasce do desejo; suprimindo o desejo, se suprime a dor; e como fazer isso? - Por meio de atitudes corretas. Este caminho é fácil e simples de compreender, difícil é segui-lo. Mas se a vida é dura, não é inevitável, portanto, fazer esforço por qualquer coisa que seja? Porque não dirigir este esforço para a transcendência? Em linhas gerais, contudo, o budismo se mescla com as outras tradições asiáticas em seu modo de agir e debater suas propostas, se destacando apenas por seu proselitismo e ação social. Tanto na Índia quanto na China ou Japão, o budismo foi recebido como uma opção de pensamento. IHU On-Line - No budismo, diferente de outras tradições, a relação do eu é com seu próprio eu. Qual é o sentido e o significado dessa prática no pensamento chinês? André Bueno - O budismo foi bem acolhido na China pela população em geral, mas os intelectuais chineses sempre mantiveram uma grande desconfiança em relação ao budismo. Os chineses tinham uma tradição milenar de cultura antes do budismo chegar em suas terras; na China dá-se, até os dias de hoje, um valor incomensurável ao estudo da história, da literatura e da filosofia. Assim, quando os missionários indianos chegaram, eles conquistaram o coração da população mais pobre, mas convenceram 52

pouquíssimos intelectuais chineses do valor de suas propostas. E qual era o cerne da crítica chinesa aos budistas? Além do receio deste pensamento estrangeiro afetar as estruturas culturais e sociais desta civilização, que já estavam estabelecidas há muito tempo, os pensadores chineses propuseram algumas questões bastante pertinentes aos budistas, como, por exemplo: se uma pessoa medita para alcançar a iluminação, ela não trabalha. Quem trabalha, sustenta o que vai se iluminar, mas ele mesmo não se ilumina. Ora, onde está a justiça nesta situação? Isso significa, portanto, que aquele que se esforça no campo para favorecer o nirvana alheio nada conquista para si? E para aquele que medita, o egoísmo e a inação são um prêmio? Uma outra história cômica ilustra bem isso: um mestre budista quis, uma vez, ensinar à um sábio chinês o que era meditação. Ele lhe explicou que a meditação consistia em ficar parado, com os olhos fechados, alheio ao mundo e esquecendo-se de si mesmo. O sábio lhe respondeu: ―eu já faço isso todas as noites, quando durmo. Para que preciso fazer mais?‖. O que vemos, portanto, é que o budismo, para sobreviver dentro da China, precisou adaptar-se à cultura local. Embora tenha proposto problemas interessantes para a filosofia chinesa, o seu espaço consolidou-se justamente neste terreno que chamamos de ―religioso‖, e depois de algum tempo, seu principal desafio foi o de disputar crentes com os taoístas. No mais, não estou nem um pouco convicto de que o budismo é o único movimento que tenha uma relação especial de ―eu comigo mesmo‖. Salvo algumas escolas específicas, muitos budistas dedicam-se diariamente aos seus deuses, e entendem-se como partes atuantes de um cosmo absolutamente

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interligado. Talvez possamos precisar que os budistas defendem sim uma superação individual como fator indispensável de iluminação. Mas será isso tão diferente do que alguns de nós ocidentais acreditamos? IHU On-Line - Qual é o significado do silêncio sobre Deus no budismo? Qual é o sentido de atuar no vazio? André Bueno - Dependendo da tradição budista na qual o praticante se insere, há um grande cuidado em afirmar a existência de Deus ou de qualquer outra força divina. Talvez sejamos tão ínfimos diante dela que apelar a ela é perda de tempo e de energia. Algumas teorias chinesas, por exemplo, defendem que o universo, se for infinito, sempre existiu – tanto em tempo como em constituição. Assim, o fenômeno da criação, tanto quanto do fim de tudo, pertencem ao finito, e não ao infinito. Se Deus for infinito, então a criação do mundo pode ser apenas um momento nisso tudo. Diante da magnitude da questão, os intelectuais chineses apelaram para respostas diversas, que vão desde teorias físicas até mesmo o desinteresse pelo problema. Quanto aos budistas, eles resolveram encarar o problema de dois modos diferentes: um deles foi a criação da escola Chan (que no Japão, viria a ser o Zen), que consiste em dedicar-se a si mesmo, buscando uma conexão interior e integradora com o cosmo, a fim de dar cabo da questão; o outro foi investir numa religiosidade popular, repleta de deuses e mitos, que facilitam o diálogo com o povo mais humilde, simplificando o problema da libertação por meio de um discurso que privilegia a execução de boas ações como forma de libertação espiritual. Pode parecer estranho que existam duas tendências tão opostas, e a aceitação de sua coexistência seja uma grande hipocrisia: no 54

entanto, se as pessoas podem se libertar por dois meios diferentes, então, a questão fundamental é de como o indivíduo encontra o método correto para libertar-se. O resto é detalhe. Entidades irreais e a atuação no vazio Quanto ao ―atuar no vazio‖, isso diz respeito, dentro do pensamento chinês tradicional, à capacidade do sábio se deslocar de modo discreto, harmônico e necessário diante do desenrolar da vida. Dado que não podemos provar a existência de uma vida após a morte, ou ainda, se há reencarnação, os chineses – principalmente os intelectuais confucionistas, e em certa medida, os pensadores daoístas – acreditavam que a sabedoria correta no agir traria a felicidade aqui, agora, na imanência. Isso significa compreender os mecanismos pelos quais as coisas operam, a sua ecologia funcional, e, através disso, evitar os atritos e o desgaste inútil. Sabendo isso, o sábio não atua de modo direto, ele sabe adaptar-se ao movimento, sabe conduzir sem forçar, sabe promover sem impor, e assim por diante. Se ele consegue isso, ele ―atua no vazio‖, realizando as coisas de modo ―invisível‖. Ele só se manifesta quando necessário, tendo em vista que os seus conhecimentos geram, inevitavelmente, ações e reações. Esta concepção é bastante diferente do ―vazio budista‖, conceito importado da Índia que pressupunha que somos entidades ―irreais‖. Nesta visão, se tudo é composto por partículas ínfimas sem um caráter distinto, então, nós mesmos somos uma grande massa de coisas indistintas! A busca deste sentido do que somos, encontrada num esvaziamento da noção de que ―sou algo‖, é o que traria a libertação. Mas lembremos, sempre: tais definições, como aqui apresentadas, são bastante 55

gerais, e costumam ser temas de livros inteiros. Creio que podemos mesmo é instigar um pouco o debate sobre o tema, tendo em vista que temos muito poucos especialistas no assunto, mas muitos iniciantes dogmáticos prontos a discordar da primeira sílaba de cada uma dessas frases. IHU On-Line - Que ensinamentos os ocidentais podem adquirir a partir dessa compreensão do caminho do ―eu ao si mesmo‖? Nesse sentido, em que medida essa prática pode contribuir de alguma maneira para o diálogo interreligioso? André Bueno - Octavio Paz gostava de dizer que só faltou, ao mundo, o encontro fértil entre o budismo e o cristianismo. O budismo poderia ensinar técnicas mais efetivas de meditar, um pouco mais de tolerância e um modo de vida mais responsável e menos duro com os erros humanos. O cristianismo antigo, contudo, tinha uma mensagem de esperança e libertação muito especial, e já nasceu, igualmente, fadado a ser multiétnico, transcultural e igualitário. A preocupação humana do cristianismo original, de Jesus a São Francisco, é o cerne de um discurso de caridade e apoio muitas vezes desconhecido em alguns recantos da Ásia. E o que isso tem com a relação ―eu comigo mesmo‖? É bastante simples: um budismo meditativo como o Zen, por exemplo, pode ensinar a descoberta por si mesmo, mas também pode levar ao egoísmo; o cristianismo pode apegar-se a uma mensagem dogmática radical, fundamentalista, que faz o indivíduo esquecer-se de si mesmo, o que pode torná-lo tanto um autômato desprovido de arbítrio quanto um santo ativo e reformador. O encontro desses pensares sempre leva à algum tipo de atrito, mas os resultados podem ser saudáveis. O raciocínio é simples, mas 56

verdadeiro: podemos utilizar o melhor de ambos em proveito de uma consciência renovada, da construção de uma tolerância maior, e de uma individualidade mais sadia. O mais difícil, contudo, é ter uma consciência nítida sobre o que estamos fazendo. Lembro-me de alunos que já desistiram dos cursos de pensamento asiático que ofereci porque achavam que eu ―estava tentando mudá-los em suas crenças‖, o que manifesta uma ignorância e uma intolerância absurdas, principalmente para pessoas que se dizem ―abertas ao diálogo‖ (ou, traduzindo, ―ocidentais‖). Por outro lado, já me cansei também de encontrar falsários e embusteiros que apregoavam um ―ensino de artes orientais‖, em que faziam uma mistura promíscua de fragmentos de cultura asiática, sem um conhecimento profundo do que fosse, e defendiam isso de maneira absolutamente intransigente. Então, se fizermos uma tentativa real de aproximação, é bem possível que algumas experiências significativas pudessem ser extraídas disso; do contrário, seremos continuamente reféns dos fundamentalistas ou dos falsários, e nisso o diálogo religioso ficará inevitavelmente prejudicado. IHU On-Line - Para o budismo, a ―causa primeira‖ não está em Deus e também não há ―uma‖ causa de origem para as coisas. O senhor pode nos explicar essa ideia de ―causas e condições‖, a qual permite a existência das coisas? André Bueno - Como havia dito, talvez por isso o budismo possa ser considerado, no geral, um movimento filosófico. A questão fundamental é: como libertar-se? Os discursos de origem do universo são, em geral, uma herança dos primeiros tempos das religiões, e serviam para a legitimação de 57

uma ideologia igualmente religiosa. Por esta razão, o budismo pouco se preocupou com a origem, mas sim, em como resolver as coisas agora. Só para termos uma ideia, uma das linhas budistas defende que a existência ocorre tal como um filme de cinema, em quadros distintos que, interligados, geram o movimento. Se aceitarmos esta proposição, então, a criação ocorre todo o tempo, em ―flashes‖ imperceptíveis, e o nirvana é a cessação deste movimento! Creio que esta é uma questão bem complicada e abrangente, da qual tenho que me eximir; dar uma resposta implicaria em favorecer uma escola em detrimento das outras, o que não acho correto. A literatura budista é vastíssima, e, por esta razão, estudar o budismo é, antes de tudo, adotar interpretação de uma linhagem de mestres. Por outro lado, o objetivo final destas buscas – o nirvana – significa exatamente a compreensão destas coisas. O que os budistas querem dizer com isso é que ―não importa neste momento como tudo surgiu, mas sim, a iluminação. Depois disso, você compreenderá tudo‖. Por esta razão o nome ―Buda‖, iluminado: todos podem ser, inclusive, budas. IHU On-Line - Que análise o senhor faz da concepção de Justa Medida existente na obra dos pensadores Confúcio e Aristóteles? É possível classificálos como um conceito comum na perspectiva da filosofia intercultural, tema de sua tese de doutorado? André Bueno - A filosofia intercultural é uma proposta de metodologia para o diálogo das civilizações por meio de suas práticas culturais – nas quais podemos destacar aquilo que chamamos de ―filosofia‖ e, ocasionalmente, o que chamamos de ―religião‖. Seu ponto de partida é: se os ―conceitos‖ 58

existem, então, eles são acessíveis a todos os seres humanos. A coisa funciona, por analogia, como uma espécie de lei da natureza; os conceitos, para existirem, dependem do ser humano; se o mesmo ser humano os concebe, então o surgimento de um conceito, dentro de uma sociedade, depende de uma série de condições culturais e sociais, mas ele não é privilégio de uma única civilização. Por esta razão, por exemplo, é que vemos tanto os chineses quanto os europeus discutindo se a natureza humana é boa ou má; só que os chineses fizeram isso quase 20 séculos antes dos ocidentais. Por outro lado, a Europa absorveu algumas das melhores invenções chinesas (como a pólvora e a imprensa) e as desenvolveu num nível que superou em muito os seus criadores ao longo do século XIX e XX. Hoje, os asiáticos estão fascinados por algumas conquistas da filosofia ―ocidental‖, e a têm estudado com interesse sincero. Isso tudo significa que o pensamento não é privilégio de uma cultura, mas sim do ser humano. As questões fundamentais para uma sociedade são o que determinam, em geral, a construção das respostas que elas buscam, mas não impossibilitam, de modo algum, que outras sociedades já as tenham resolvido de forma diferente, ou mesmo, que nem as tenham concebido. Assim sendo, a Filosofia intercultural busca identificar se determinados conceitos se manifestaram, a princípio, em duas sociedades diferentes; se sim, como isso ocorreu; o que resultou de sua aplicação; e, por fim, se ele é válido como um ponto de diálogo entre estas duas culturas. Foi por esta razão que fiquei fascinado quando percebi esta possível intercessão entre Aristóteles e Confúcio, por meio do conceito de justamedida – a meson grega, ou o zhong yong chinês. Até mesmo a terminologia

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e os modelos de exemplo eram mais que similares, chegavam a ser idênticos: ambos propõem, por exemplo, que a busca da harmonia central é como o exercício do arco e flecha. Um leitor desatento se deixa levar pela tentação das teorias fantásticas e exotéricas; um antropólogo antiquado invocaria alguma sabedoria ancestral, que surgiu num lugar incerto e se difundiu pelo mundo; mas a questão intrigante é que não há absolutamente nenhuma chance de Aristóteles e Confúcio terem dialogado, ou mesmo lido alguma coisa um sobre o outro. Esta impossibilidade comprova que a tese central da filosofia intercultural está correta: é possível conceber o mesmo conceito em sociedades diferentes, traçar sua origem e entender sua funcionalidade. No entanto, creio que o mais interessante da concepção da justa-medida aristotélico-confucionista é a abertura que ela dá para a criação de uma ética moderna e universal isenta de paradigmas religiosos. Embora ambos fossem, em princípio, ―consequencialistas‖, suas propostas mostram a possibilidade de serem aplicadas em sociedades diferentes, de modo global, resgatando a necessidade da sabedoria como um guia na contemporaneidade. IHU On-Line - Como a filosofia oriental e ocidental podem se fundir sem perder suas características e identidades? Nesse sentido, de que maneira ambas podem oferecer sabedoria ao homem? André Bueno - Tomara que percamos nossas identidades! (risos). Qualquer fusão implica na perda de parte da sua identidade original, no ganho de algo e na criação de uma nova. Não devemos temer tais fusões, na verdade, devemos estimulá-las. Porque manter identidades antigas e desgastadas, se elas já não nos servem mais? Mesmo no caso chinês, onde algumas coisas funcionam há 60

séculos, existiram outros aspectos de sua cultura que se foram com o tempo, porque a mudança é inevitável. Podemos apenas escolher se ela será feita de modo paulatino ou se ela ocorrerá de modo violento depois das postergações irresponsáveis. Eu acho maravilhosa a experiência que está sendo feita aqui, no Brasil, agora: temos uma grande leva de descendentes europeus, capitalizados em linhas gerais pela cultura portuguesa – no entanto, quase metade da população trouxe as contribuições da África para a nossa cultura, e devemos contar ainda com a presença indígena, tão massacrada, mas tão vital para a conquista da terra. Isso significa que, em breve, graças à lei que determina o ensino de história africana, um descendente de alemães ou poloneses aprenderá a importância da cultura de Angola, e a receberá como parte de SUA cultura (a brasileira); que descendentes afros poderão afirmar que o macarrão é tão seu quanto dos italianos; e que todos nós tomamos um chá que nos foi ensinado pelos índios. Essa sim é a construção de uma nova riqueza cultural, de uma fusão fantástica com possibilidades inimagináveis, se a levarmos para o campo do pensamento. Por esta razão que sempre insisto; devemos voltar nossos olhares também para a Ásia, pois ela já faz parte de nossa vida cotidiana por meio de milhares de produtos e tecnologias que utilizamos. Falta-nos, pois, compreender como eles pensam, e disso tirar lições que nos sejam proveitosas. IHU On-Line – O teólogo alemão Hans Küng propõe a paz mundial através de uma ética planetária e diz que as religiões podem contribuir nesse sentido. O senhor concorda com essa proposta?

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André Bueno - Creio que o problema para construir qualquer ética mundial é que, se elas partem de um pressuposto religioso, então haverá inevitáveis limites no diálogo, resultantes das questões dogmáticas ligadas à crença. Acredito que podemos estimular a tolerância, mas uma verdadeira ética humana, por assim dizer - deve partir dele próprio. Sócrates já havia concluído isso na Grécia Antiga, tal como Confúcio na China: tanto a filosofia quanto as crenças nasceram do ser humano, pelo ser humano e para o ser humano. Então, o que seria uma ética mundial? Teríamos que aceitar, por exemplo, a castração do clitóris, realizada em alguns lugares do mundo, por motivos religiosos e morais? Eu poderia entrar em uma sala, dizendo estar incorporado por um espírito, para dar aulas? Vejam, temos paradigmas diferentes para definir o que é apropriado ou não, e no geral, as propostas de criação de uma moral comum acabam resultando de imposições culturais. Por esta razão, acredito que uma ética mais humana, de fato, resulta das fusões culturais naturais, guiadas por uma consciência histórica e social. Como disse antes, o caso da educação brasileira é maravilhoso neste sentido: aqui estamos testando realmente uma fórmula de integração cultural, resgatando saberes de segmentos minoritários ou desfavorecidos, e nos dispondo a quebrar preconceitos e tocar em pontos de atrito fundamentais para nossa construção. Mais do que nunca, pois, a educação - e neste caso, ela necessariamente deve ser laica - pode dar conta disso. A formação religiosa deve ser uma opção particular, e a disciplina de Ensino Religioso deveria ser uma "História das Religiões", transcultural, multirreligiosa, informativa e esclarecedora, mas nunca confessional.

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IHU On-Line – É possível falar em sociedade pós-metafísica, pós-religiosa? Alguns estudiosos dizem que a pós-metafísica tem um sentido diferente para as religiões orientais e para as ocidentais, já que, em algumas concepções, no oriente, pós-metafísica significa aproximação de Deus com os humanos, e, no ocidente, tal conceito é entendido como afastamento de Deus ou da religião com o humano. Qual sua percepção? André Bueno - Bem, acho que seria interessante aqui dar o ponto de vista geral dos chineses sobre a questão, que é: metafísica? O que é isso? (riso). Com exceção dos budistas - cuja discussão metafísica é extensa e multifacetada - e dos daoístas - que vivem num mundo de crenças, mas não de análises - o ponto de vista chinês majoritário é dominado pela perspectiva confucionista, que defende a imanência, e não a possibilidade de transcendência. Isso significa que qualquer realização possível se dá aqui, neste mundo, e que existimos - simplesmente isso. O pensamento chinês, inclusive, nunca deu valor ao verbo "ser" - ele é um mero verbo auxiliar - e centrou o seu discurso na condição do "estar". "Estamos" e devemos fazer proveito disso; o sentido de aproximação com o divino não é, portanto, um processo automático, mas a aceitação de um discurso. Visto assim, os chineses, em particular, nunca tiveram um interesse definido no que poderíamos classificar como "metafísico", e colocaram a metafísica em um plano de diálogo opcional - algo do tipo "acredite no que você quiser, se isto lhe convence" - centrando a discussão sobre a existência nas áreas da política, história e ética. O resultado disso é que a China é uma civilização em que coexistem milhares de crenças,

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e, ao mesmo tempo, há um sentido de ação prática que aparentemente é contraditório com essa riqueza religiosa. Então, seria possível uma sociedade "pós-religiosa"? E o que viria ser isso? Simon Leys, um sinólogo renomado, disse uma vez que na China Comunista (mas creio que isso pode ser estendido a outros países) tentaram trocar Deus por Mao. A ironia cômica é que hoje Mao está se transformando numa espécie de deus justiceiro para povo, - e Zhu Enlai, o grande diplomata, está se convertendo num espírito abridor de caminhos, um "caboclo chinês". (sorriso). Como dizer, então, que houve a superação da religiosidade? Meu ponto de vista particular – que concorda com o confucionismo, de certo modo - é que estamos apenas emergindo de um momento histórico em que as religiões haviam sido encobertas por outras discussões, que foi o caso da disputa entre comunismo e capitalismo pelo mundo. Com o fim do comunismo, estamos redefinindo os papéis sociais por outros referenciais, e um deles é justamente a religião. Dito isso, o que observaremos num futuro próximo é o debate de discursos religiosos, permeados pelas necessidades pragmáticas da globalização e da integração mundial, quer tendendo a tolerância e a fusão quer se fechando em movimentos fundamentalistas fadados a recusar o futuro em suas visões obscurantistas. IHU On-Line - Deseja acrescentar mais alguma coisa? André Bueno - Que fique bem claro, o estudo da Ásia não implica numa transformação estereotipada do indivíduo, como alguns acreditam. Estudar a China, por exemplo, não exige que alguém faça Kung-fu, abandone o arroz

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com feijão no almoço ou use roupas tradicionais. Este carnaval de aparências é o pior de toda a busca intelectual séria que devemos fazer acerca das outras culturas. Um verdadeiro humanista não pode ignorar que, até hoje, grande parte das nossas teorias em filosofia, ciências humanas e sociais foram construídas sem levar em conta, praticamente, os outros dois terços do mundo. O desafio mais instigante é, justamente, o do desconhecido, que se constitui o campo aberto para as verdadeiras novidades intelectuais – e, neste caso, a Ásia continua tão incompreensível quanto o era na época das navegações. Traduções, textos de viajantes, manuais de história e filosofia já existem a nossa disposição para que possamos dissolver um pouco do nosso preconceito e ignorância sobre estes temas. Mas precisamos, de fato, incorporar a Ásia como uma necessidade intelectual, educativa e cultural em nossas vidas, e não como um apêndice excêntrico de conhecimento.

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Aspectos da Religiosidade Chinesa Esta entrevista, a seguir, foi concedida para um jornal da Universidade Católica de Brasília, em 2008. Observem que alguns temas se repetem, e que a dúvida constante sobre as "religiosidades" chinesas faz com que persevere um ponto de vista estranho e confuso sobre o pensamento chinês antigo.

- Como as religiões influenciaram na formação do pensamento e da cultura do povo chinês? Já de cara, deveríamos inverter a pergunta: o que a China fez com aquilo que chamamos "religião"? Sendo um conceito ocidental, talvez ele não seja totalmente aplicável à civilização chinesa. O Sinólogo Vitor Grossaert identificou muito bem o problema: uma religião precisa ter, segundo os nossos parâmetros, um clero, um credo e uma liturgia. Ora, talvez o taoísmo apresente um clero, mas suas liturgias variam bastante. Os budistas podem ter um clero, mas seus credos são totalmente diferentes; os confucionistas defendem, inclusive, a liberdade de credo, não tem clero mas talvez tenham uma "liturgia" ( a idéia de ritual, li). Dito isso, pois, talvez possamos dizer que a China tem apenas um "pensamento religioso", que atinge diretamente a população em geral, mas que ao mesmo tempo se encontra diretamente atrelado, analisado e medido pelo critério da "Filosofia" chinesa. - O taoísmo e o Confucionismo são duas correntes filosóficas ou podem ser consideradas religiões? Por quê?

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Como disse antes, o taoísmo pode até ser considerado uma religião, se analisarmos as características gerais de cada seita. Mas para isso, temos que enquadrá-los no conceito de religião, o que torna uma análise possível do taoísmo já direcionada para o aspecto teológico. O taoísmo antigo, porém, era muito mais "filosófico" do que propriamente religioso, e tal mudança só ocorrerá em torno do século 4-5 d.C. Já o confucionismo, definitivamente, não pode ser dito uma religião. Um confucionista pode ter o credo que quiser, e suas obrigações são mais morais e sociais do que vinculadas a um tipo de pensamento metafísico. O confucionismo naturalmente inspira a tolerância religiosa, mas não advoga uma religião em especial. - Quais os principais princípios que Confúcio pregava? O centro do pensamento confucionista é a idéia de humanismo (Ren). Uma sociedade equilibrada só será encontrada no dia em que os seres humanos se entenderem como tal, respeitando-se mutuamente. Para isso, Confúcio defendia a idéia de que o meio apropriado para realizar uma transformação social era a educação (Xue). Somente a educação poderia inculcar no ser humano uma série de valores que podemos chamar de Li - incorretamente traduzidos como "rituais", talvez o mais adequado seria chamá-los de "modos de relacionamento e comportamento" - cujo objetivo era construir um ser humano coerente, consciente e crítico. - O que são divindades e deidades? A meu ver, as duas palavras são sinônimas. As divindades constituem o corpo dos deuses que compõe o panteão do antigo politeísmo folclórico chinês.

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Alguns são originais (criados junto co mundo) e outros surgem ao longo da história, através de feitos miraculosos que os transformam em deuses intercessores no mundo. - Quais as grandes contribuições do Confucionismo e do taoísmo? E hoje o que mudou? Ambas as escolas são o alicerce do modo chinês de ver o mundo. Não acredito sinceramente na tentativa de alguém tentar entender a China sem estudar profundamente seu passado. Estudando o passado, se entende tudo que acontece agora - mas se focando apenas o contemporâneo, a mente chinesa será sempre incompreensível para o ocidental. O taoísmo sobrevive ainda nas crenças populares, mas encontra-se bastante diminuído como religião. Creio que no futuro ele voltará a ter mais força, mas agora é o momento do confucionismo. Tido como primeiro sistema filosófico da China, e base do pensamento social, o confucionismo está sendo retomado com toda força. Esta é a segunda fase de um "Neconfucionismo" surgindo na história chinesa. -Na abertura dos jogos olímpicos em Pequim o confucionismo foi apresentado como um dos temas de destaque. O Senhor assistiu a abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim? Se sim, como o Senhor vê a relação de utilização do tema de tradição chinesa evidenciado em um evento dessa grandeza? Se não, por que num evento dessa grandeza um tema tão particular dessa cultura mereceria tamanho destaque?

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Só vi pedaços, foi um espetáculo maravilhoso que faz o mundo pensar no poder de organização que os chineses têm. Quanto ao confucionismo surgir na cerimônia, o objetivo é claro: mostrar ao mundo a importância desta corrente filosófica. O século 21 verá o confucionismo ressurgir como a grande doutrina de pensar chinesa. E o atual regime chinês, afeito a idéia de ordem, educação e disciplina, aceitará com certeza esta ressurgimento saudável. - O budismo de fato tem origem hinduísta? Pode-se afirmar que o budismo é uma religião ou uma filosofia? Com certeza. O budismo nasce no seio do hinduísmo, como uma negação a idéia religiosa que justificava o sistema de castas. Se ele é uma religião, aí voltamos ao problema do conceito. Afinal, os budistas se dividem em correntes que podem ou não acreditar em Deus ou Deuses! Isso quebra qualquer tipo de possibilidade de classificá-lo como uma religião. Preferia então classificá-lo como uma filosofia ou doutrina. - A China possui alguma religião oficial ou qual a distribuição das religiões entre o povo chinês? Não, os chineses não têm uma religião oficial. Os que se consideram "religiosos" são, na maioria, budistas. Existem ainda taoístas, islâmicos e cristãos, mas em menor proporção. E, no geral, todos os que praticam algum tipo de religião acreditam no politeísmo folclórico popular. - Qual a importância do budismo para o povo chinês? O Budismo, como foi dito, muda o panorama intelectual e filosófico da China. Atraente, por pregar a possibilidade de todos alcançarem o nirvana e 69

por defender uma idéia de reencarnação que alivia o indivíduo da possibilidade de só ter uma vida, o budismo transformou-se numa opção interessante para a sociedade chinesa, e conquistou um grande número de adeptos, transformando o país no maior centro budista do mundo. - Qual a maior dificuldade dos ocidentais para interpretar a visão sobre o transcendente que os orientais (em particular os chineses) possuem? Somos incapazes de compreendê-los? Explique. Mesmo a idéia de transcendente não se aplica também aos chineses no geral. O pensamento chinês é, em sua origem, imanente - tudo está aqui, em potência, esperando ser desperto. A transcendência só existe no budismo, que acredita numa libertação completa da matéria. Esta dicotomia, pois, é essencialmente ocidental e indiana - não chinesa. - O Senhor considera que o budismo é uma "religião" aceita no Brasil e no Ocidente como um todo? Há uma parcela considerável de brasileiros ou ocidentais são adeptos? Das religiões não-monoteístas, o budismo é a que conquistou mais adeptos no ocidente, por suas perspectivas filosóficas interessantes. Não existem grandes problemas em sua aceitação, conquanto que o indivíduo aceite basicamente o problema da reencarnação. Creio que um diálogo mais aprofundando com o budismo pode se dar com os kardecistas, cujas crenças se aproximam em alguns pontos. -Como os orientais vêem as religiões monoteístas cristãs?

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As reações são diversas, e correspondem a cada sociedade. Indianos e chineses vêem de modo bem diferente a questão religiosa. No caso da China, ao qual me atenho, posso dizer que os chineses são, no geral, tolerantes com qualquer crença, desde que ela não busque desafiar a lei estabelecida, que é laica e atinge a todos. Um missionário, portanto, que advogue a proibição da camisinha, dos anticoncepcionais e da prática do sexo num país de super população, ameaçado pela fome e onde o sexo nunca foi pecado encontrará, realmente, problemas para afirmar seus pontos de vista. As opções, como os chineses sabem, sempre serão pessoais. Mas é necessário, numa civilização tão grande como essa, que muitas vezes o ideal dê lugar ao pragmático.

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Do Exercício da Dúvida e da Sabedoria

Existem momentos em que nos cansamos de buscar a sabedoria, ou mesmo de tentar ensinar o caminho a quem quer que seja. Isso ocorre porque nos vemos repletos de dúvidas; afinal, se o que sabemos é tão bom, porque as pessoas não dão ouvidos a sabedoria que buscamos difundir? Em alguns casos, tais crises são um resquício de vaidade, um relance do desejo de fazer parte da transformação do mundo, aliadas a impaciência de ver estas mudanças acontecerem no tempo de uma vida. Isso, contudo, passa. O exercício do conhecimento dos letrados leva ao desapego das coisas comuns, e a única coisa ao qual ele se apega é a humanidade, de forma altruísta, e não haverá dia em sua vida que ele não deixe de se preocupar com o bem estar dos outros. Se isso soa piegas, não é porém insincero. Um letrado, buscando a sabedoria, dedica-se ao estudo, aos livros e a educação, pois sabe que, historicamente, este é único modo de mudar o mundo. No entanto, isso demora; e como o tempo escoa, e os sábios disponíveis são poucos, então... Como saber que se está no caminho da sabedoria? De fato, o caminho letrado não é fixo ou imutável; atento às transformações do mundo, ele sempre tenta nos lembrar que existem princípios pelos quais as coisas surgem, mas a evolução das culturas e das sociedades os manifestam de modo diferente, e a historia da humanidade é um caminho de eterno ajuste, da busca de um equilíbrio constante.

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Neste caso, como sabermos que estamos seguindo o caminho de modo apropriado, compreendendo que não podemos nos apegar totalmente ao passado, mas que não podemos, também, abraçar inteiramente o futuro sem abandonarmos os princípios? Este é o momento crucial das dúvidas. Um sábio entende que as duvidas são parte natural do processo de conhecer as coisas - afinal, não se pode afirmar qualquer coisa sobre aquilo que não se conhece - mas em que momento as dúvidas, em si, abalam as nossas supostas certezas sobre o que estamos fazendo? Nestes momentos, o daoísmo e o budismo parecem mais atraentes do que nunca. Desligar-se de tudo, enfiar-se em florestas, chácaras ou templos, esquecer do humanismo socializante e dedicar-se a si mesmo de modo autocentrado (ou será egoísta?), desenvolver poderes desconhecidos, etc. tudo isso parece tão atraente... não é sem uma certa inveja que imaginamos os sete sábios do bosque de bambu bebendo o dia todo, fazendo poemas, filosofando - embora não se tenha decifrado, até agora, o mistério de como eles se sustentavam. Mas fugir do mundo não será simplesmente negar a duvida, e não respondêla? O hedonismo do jovem, em busca do prazer sexual, é substituído pelo do velho, em busca do sono alienante. Alheiar-se pode ser, então, uma excelente forma de não ter mais dúvidas... como também, é uma maneira de não se ter respostas. Viver assim, pois, é sujeitar-se a uma vida de acidentes, e não acredito que isso seja sábio. Parece ser algo bom, mas só isso torna tal atitude uma via válida? Esta é mais uma dúvida, e mais um pedido de resposta...

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Nos momentos em que nossas convicções estão abaladas, deve haver alguma razão, pois, para as duvidas surgirem. Mesmo Confúcio duvidou, em seu fim, que tivesse cumprido sua missão - ainda que estivesse absolutamente resoluto sobre suas conquistas e certezas então, o que são as dúvidas? Se pudermos acreditar na experiência da própria escola dos letrados - com uma longa historia de duvidar das coisas, e de construir conhecimento a partir da ponderação -, poderemos afirmar que, para estes estudiosos, a dúvida é o momento central da construção do saber. A dúvida surge quando nos incomodamos com o que não sabemos responder - seja para os outros, seja para nós mesmos - e tão somente esta atitude já demonstra que estamos no caminho para chegar a um outro lugar adiante. Precisamos da dúvida para crescermos internamente. Desprover-se delas é estagnar a mente, e abandonar-se a si mesmo numa perspectiva dependente do mundo e dos outros. Disse Zhang Zai:

Não duvidar do que é duvidoso equivale a não ter estudado. Estudar nos leva a duvidar. É o mesmo que se dá com as viagens; quem quer ir até as montanhas do sul tem que perguntar o caminho. Se alguém se contenta em ficar sentado tranquilamente, sem fazer nada, como podem aparecer as dúvidas? (Zhang Zai, 1020-1077)

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Aqui surge a imbricação fundamental entre a dúvida e o estudo, ponto crucial na doutrina dos letrados; só podem existir dúvidas por parte daqueles que buscam conhecer, e isso é inerente a qualquer um que busque uma via. Quem nada procura, nada pode achar também. No entanto, ao nos depararmos com as dúvidas, corremos o risco de entendê-las como uma desconstrução de nossas idéias, para além de uma simples etapa na evolução do mesmo. Zhuxi reproduziu sensivelmente este momento quando escreveu:

No estudo acadêmico, é preciso fazer esforços e levá-los a tal extremo que chegamos a nos ver cercados de trevas por todos os lados, sem encontrar um lugar por onde entrar, e é somente neste momento que podemos dizer que alguém realmente progrediu. São as dúvidas que dão origem aos progressos. Em compensação, aqueles que crêem haver progredido e dizem ter chegado ao seu destino, pode-se ter certeza, é bem duvidoso que hajam realmente chegado muito longe. (Zhuxi, 1130-1200)

Ter dúvidas, portanto, é parte essencial do caminho do estudo. Sem elas, não há estudo real, nem descoberta:

Ao começar a ler, nós não temos dúvidas; mas tão logo a leitura avança, elas vão surgindo, e no meio do caminho, cada passagem nos oferece dúvidas novas; no entanto, depois disso, vamos 75

elucidando cada uma delas, atingindo uma compreensão cabal e livre de dúvidas acerca do texto, e finalmente realizamos o verdadeiro estudo. (idem)

Somente um estudo aprofundado, portanto, leva as dúvidas; e somente as duvidas nos conduzem a construção de um conhecimento próprio e autêntico:

Ao ler obras antigas, não convém somente fazer eco a elas e ficar repetindo-as, sem conhecer devidamente o que elas defendem. É preciso penetrar nelas e analisá-las profundamente, para que possamos sustentar uma opinião sobre elas. (idem)

O surgimento das dúvidas, mais do que um sintoma do verdadeiro estudo, demonstram uma insatisfação sadia com o que se sabe - pois aquele que se propõe a ser um letrado, mas entende-se satisfeito com o que conhece, corre um grande risco de estar agindo de modo arrogante ou pouco esclarecido. Alguém que muito estuda, mas pouco reflete, não pode se dizer que estudou, realmente. Huang Zongxi (1610-1695) foi preciso ao afirmar que:

No estudo acadêmico, o que é útil e eficaz é o que cada um encontra de útil. Quase todos os autores das obras que carecem de idéias originais não são mais do que simples reproduções de

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pensamentos consagrados; eles não são mais do que gente acostumada ao papel de papagaios, repetindo o que todos já sabem, tentando sempre estar na moda, e buscando obter seu sustento com isso.

Huang é bastante esclarecedor sobre os que estudam, mas não tem dúvidas: eles são incompetentes, são ignorantes, e não trilham o caminho para alcançar a sabedoria. Como são incapazes de angariar fama e dinheiro por seus próprios (não) méritos, escolhem a educação como forma de sustentarem suas limitações, e nelas se destacam como aqueles que sempre têm razão, agindo de maneira dogmática e intransigente e atraindo para si alunos que se conduzem de modo semelhante. Assim sendo, ao nos sentirmos desconsolados com nossas dúvidas, devemos ser levados a uma reflexão profunda de nossas ações e propósitos. Sem dúvidas, não podemos progredir; sem progressão, de nada adianta nosso estudo. Há, contudo, um último aspecto nesta explanação: ao acreditarmos neste caminho antes proposto, e mesmo que a dúvida faz parte dele, então, devemos ter fé neste caminho ou mesmo, devemos duvidar dele? Se fosse necessária fé, ou qualquer outra forma de crença neste caminho que desprovesse seu praticante da razão, logo, não seria o caminho dos letrados. Assim sendo, este caminho está aberto a duvida; e sabe-se que só se pode

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estar nele se duvidarmos. Deste modo, se alguém duvida do caminho dos letrados... já começou a estar nele! Como não duvidar disso tudo? E como não ter certeza disso?

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Do Exercício da Crença

Em ocasião anterior, discutimos as dúvidas. Agora, devemos discutir as crenças. São dois os tipos de crenças; as que têm fundamento, e as que não têm. As crenças que não tem fundamento não podem ser afirmadas; alguns dizem que, por isso, também não podem ser negadas. Este é um belo exercício de palavras, mas que em nada ajuda a esclarecer. As crenças que tem fundamento são aquelas dadas pelas ciências e pela investigação das coisas. Tudo que afirmam pode ser provado, mas por isso mesmo, é pouco o que podem afirmar. O primeiro tipo de crença é completada pela imaginação dominada pelo coração; o segundo tipo, pela imaginação amiga da mente e da razão. A crença sem fundamento dificilmente contém erros, exceto quando se põe a dialogar com a razão. A crença com fundamentos sempre tem erros que são resultado da própria evolução do conhecimento. Ora, para dedicar-se a razão, é necessário estudo. Por isso, as pessoas deixam levar facilmente pelo primeiro tipo de crença, que é mais simples, enquanto os sábios lutam para compreender e descobrir o segundo. Em geral, os que acreditam nas crenças sem fundamento se curam pelos médicos, mas agradecem aos fantasmas. Os que acreditam nas crenças fundamentadas, agradecem aos médicos e tentam se curar dos fantasmas.

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A questão, contudo, é - no que devemos acreditar? Se uma crença não se prova, ela, no entanto, nos conforta ou inquieta; a que se prova, depois se vê errada. Não parece haver, pois, uma verdade qualquer que se possa ser dita realmente "verdadeira", já que vivemos na mutação, e nossos sentidos são assim embaçados. Por outro lado, não crer em nada é viver à deriva, e mesmo quem crê em nada, crê em algo - e o nada é o vazio, que existe e não-existe ao mesmo tempo. Isso seria uma crença com ou sem fundamento? Por esta razão, o sábio decide, ao longo de sua vida, que ele deve acreditar em alguma coisa. No trato com as pessoas e as coisas na mutação, ele age com fundamentos; ao discutir as coisas sem fundamentos, ele tenta especular de modo coerente sem, contudo, ser definitivo. Está dito no Zhong Yong: "O poder das forças espirituais no Universo como se faz sentir por toda a parte! invisível aos olhos, e impalpável aos sentidos, é inerente a todas as coisas e nada escapa à sua influência". É fato que existem essas forças que fazem com que os homens de todos os países jejuem e se purifiquem e com solenidade de roupas instituam serviços de sacrifício e de adoração religiosa. Tal como o ímpeto das águas poderosas, a presença dos Poderes invisíveis se faz sentir; algumas vezes sobre nós, outras ao redor de nós. Diz o "Livro dos Poemas": "A presença do Espírito: Não pode ser imaginada sem fundamento, como então pode ser ignorada!" Tal é a evidência das coisas invisíveis que é impossível duvidar da natureza espiritual do homem‖ , o que significa: o que não existe é o que não podemos ver - e o que podemos, passa a existir. Assim, o sábio respeita sem tripudiar, mas

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também sem se submeter, aos costumes de um povo e às suas ciências. Delas, saem tanto o saber quanto as baboseiras. Um sábio investiga os ancestrais, e se guia pelos modelos da sabedoria. O tolo vive sempre perdido, acreditando no que lhe convém. Quyuan consultou o oráculo, uma vez, sobre os problemas de sua vida. Lhe deram a seguinte resposta: há problemas na vida de uma pessoa que só ela mesma pode decidir. Se até o oráculo sabe disso, como não saberíamos nós? O sábio estuda antes de consultar os oráculos; quando o faz, é leal aos presságios e conselhos. Há que se crer no que se pode provar, mas há que se respeitar o desconhecido. Assim, o sábio sempre pondera, busca não errar, empreende sozinho e procura no que está além da razão aquilo que a razão ainda não pode explicar. Chegará o dia, porém, em que a razão explicará todas estas coisas, e provavelmente, o oculto se revelará. Existem conhecimentos que só alcançamos quando estamos prontos para constatá-los. Não há, portanto, espaços longos para uma fé vã - motor inefável da tolice e do fanatismo. A verdadeira crença é construída pela razão e pelo coração, cuja bondade enfrenta, com dignidade, devoção e amor a descoberta do desconhecido.

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‗Em busca do Palácio Celeste‘ faz parte da série Escritos Sínicos de André Bueno, e é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Vedada a criação de obras derivadas 3.0 Unported. Based on a work at escritosinicos.blogspot.com. ISBN 978-85-65996-05-1 2010

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