Em busca do sujeito perdido: a superação do trabalho no novo livro de John Holloway

July 21, 2017 | Autor: Daniel Cunha | Categoria: Marxismo, John Holloway, Trabalho Alienado, Autonomismo, Crítica Do Valor
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[-] Sumário # 10

EDITORIAL

4

ENTREVISTA MARX, DIALÉTICA, CAPITAL Com Lucio Colletti, por Perry Anderson

8

ARTIGOS DA METAFÍSICA DO CAPITAL Revisitando Lucio Colletti Nuno Miguel Cardoso Machado

28

DOIS ROSTOS OU UM VASO A paralaxe marxista como um problema em Zizek Joelton Nascimento

69

ESCRAVOS E SERVOS DO CAPITAL Uma análise sócio-histórica de duas formações periféricas Rodrigo Campos Castro

85

NOS 50 ANOS DE ONE-DIMENSIONAL MAN Marcuse e o espectro da recusa intempestiva Cláudio R. Duarte

120

DÉFICIT SOCIOLÓGICO OU NEGAÇÃO DETERMINADA? Diferença entre as Teorias Críticas de ontem e hoje Raphael F. Alvarenga

130

EM BUSCA DO SUJEITO PERDIDO A superação do trabalho no novo livro de John Holloway Daniel Cunha

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AS SUTILEZAS METAFÍSICAS DA LUTA DE CLASSES Sobre as premissas tácitas de um estranho discurso nostálgico Norbert Trenkle

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CRISE DO CAPITALISMO E “MUNDO DO TRABALHO” EM DAVID HARVEY Notas críticas à “restauração do poder de classe” Maurílio Lima Botelho

190

A FORMA E O FIM Comentários sobre um livro de Anselm Jappe Pedro Eduardo Zini Davoglio

215

SOBRE A CRÍTICA DO CAPITALISMO EM DECOMPOSIÇÃO Joelton Nascimento

224

O OVO DA SERPENTE NACIONAL Alexandre Vasilenskas

232

UMA “CLASSE MÉDIA” BIFRONTE? Sobre as “utopias do agora” de Chris Carlsson Daniel Cunha

235

“OS VÂNDALOS AO PODER” Violência política e poder popular nos protestos de 2012/2013 em Porto Alegre. Reflexões estratégicas à luz de Benjamin e Lukács. Alex Martins Moraes

239

UM PARTIDO É UMA PARTE DO QUÊ? Círculo de Estudos da Ideia e da Ideologia

266

THE TURN OF THE SCREW O duplo como fantasmagoria social Cláudio R. Duarte

275

SARTRE EM BUSCA DE FLAUBERT Fredric Jameson

290

EXPEDIENTE

297

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Em busca do sujeito perdido A superação do trabalho no novo livro de John Holloway

HOLLOWAY, John. Fissurar o capitalismo. Trad. Daniel Cunha. São Paulo: Publisher (2013), 270 p.

Daniel Cunha

Build for me your tightest ship, make the oars run swift and fast Send me out your strongest crew, make their hearts and minds steadfast Bless me with Athena there's no meaner, she's the best When we hit the roughest sea we'll need all we can get Sleater-Kinney, The End of You

Certas épocas exigem o abandono de antigos dogmas e a coragem para lançar-se ao mar teórico-prático desconhecido sem as certezas de uma carta náutica previamente navegada. Nossa época, que reúne a crise do capital, a necessidade de uma teoria radical emancipatória e a crise das teorias tradicionais, é uma delas. O novo livro de John Holloway, Fissurar o capitalismo, embarca nessa corrente de destino incerto onde poucos se aventuram, lutando contra monstros conhecidos e desconhecidos na busca do sujeito anticapitalista. Nele o autor aprofunda temas que foram abordados na entrevista publicada na primeira edição da Sinal de Menos1. Em relação ao seu livro anterior, Mudar o mundo sem tomar o poder2, há um deslocamento do centro do foco do “poder” para o “trabalho”. Para a empreitada, Holloway articula a sua peculiar constelação de referências, que reúne comunismo de conselhos, autonomismo italiano, teoria crítica e crítica da economia política. São esses quatro eixos que determinam o que é por ele chamado de “método da fissura”. 1 2

Entrevista com John Holloway, Sinal de Menos #1, 2009, pp. 5-29. Boitempo, 2003. 162

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Do autonomismo, Holloway importa a ênfase no sujeito: “Romper. Queremos romper. Queremos romper com o mundo tal como ele é”, são as primeiras frases do livro. A própria teoria e sua forma de exposição moldam-se ao ponto de vista do sujeito: “queremos entender o capitalismo não como dominação, mas a partir da perspectiva de sua crise, suas contradições, suas fraquezas, e queremos entender como nós mesmos somos estas contradições” (p. 13). A horizontalidade conselhista é enfatizada como meio e fim da articulação da subjetividade e da organização revolucionária: “falar das fissuras como impulso em direção à autodeterminação faria pouco sentido se isto não se refletisse em sua organização interna” (p. 41). As experiências históricas conselhistas e assembleístas são apresentadas como pontos de apoio, em contraponto à organização hierarquizada de estilo bolchevique: Comuna de Paris, Guerra Civil Espanhola, os sovietes da Revolução Russa, os conselhos operários italianos e alemães, os conselhos comunais zapatistas e outros (p. 43). A revolução, então, não é vista como a tomada do poder, mas como a confluência

de

fissuras,

a

“revolução

intersticial”.

Camaradagem,

dignidade,

amorosidade, solidariedade, fraternidade, amizade, ética são apresentados como meiosfins desse tipo de organização (p. 43-6), que articula a emergência dos sujeitos contraditórios que lutam contra a sua própria objetivação; não há espaço aqui para uma “consciência privilegiada” que vem fora. Holloway utiliza a dialética negativa de Adorno e o “ainda-não” de Bloch, enfatizando o não-idêntico das relações sociais capitalistas e de seus agentes ou personificações, e as formas alienadas são tomadas como antagonismos “extáticos”. Assim, a criatividade humana no capitalismo é subsumida no trabalho abstrato, mas não sem um resíduo. O trabalhador é subsumido nessa “máscara de caráter” (Marx), mas não sem um resíduo que não se adequa a esse papel de “trabalhador”. De forma geral, o capitalismo seria um processo vivo de fetichização sempre renovado (e sempre em questão), como formas-processos: processo de fetichização, processo de monetização, processo de classificação, etc. O fazer criativo livre existe como “aindanão”, na forma do trabalho abstrato, mas transborda dele. Holloway cita Bloch para lembrar que a alienação não é absoluta: “a alienação nem sequer poderia ser vista nem condenada por roubar às pessoas sua liberdade e por privar o mundo de sua alma, se 163

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não existisse medida alguma de seu oposto (...) contra o qual a alienação pode ser medida” (p. 165). Da crítica da economia política, Holloway extrai o conteúdo mais radical e negligenciado das leituras de Marx: a crítica do valor, do fetichismo da mercadoria e do trabalho abstrato. O valor e o trabalho abstrato são desnaturalizados como relações sociais historicamente determinadas, formas essas que devem ser superadas para a superação do capitalismo. O capital não é um sistema de exploração subjetiva consciente, mas um processo fetichista que reduz os seus agentes a “máscaras de caráter”, executores de uma lógica objetivada que lhes escapa. Daí Holloway deriva a crítica da positivação do valor, do trabalho e da classe trabalhadora no marxismo tradicional: “a classe trabalhadora pode ser considerada revolucionária apenas (...) na medida em que luta contra a sua própria existência como classe trabalhadora” (p. 116). Esses quatro eixos convergem e se entrelaçam no ponto fulcral do livro: o “duplo caráter do trabalho” (parte IV). Nada novo aqui por si, pois trata-se da velha análise marxiana presente em O capital. O esforço de Holloway é para levar a sério o que o próprio Marx afirmou, ou seja, que “este ponto é o pivô em torno do qual gira a compreensão da Economia Política” (p. 87). É aqui que se encontram o meio e o fim da fissura: “não trabalharemos sob o comando do capital, faremos o que consideramos necessário e desejável” (p. 85). O “trabalho concreto” é redesignado como “fazer”, para ressaltar a sua assimetria em relação ao trabalho abstrato. A fissura, para Holloway, deriva da incapacidade do capital de subsumir completamente a criatividade social humana no trabalho abstrato; é a articulação da inadequação. O trabalho abstrato e o fazer criativo constituem um antagonismo vivo. Da subsunção do fazer criativo ao trabalho abstrato, o autor deduz uma série de sintomas sociais derivados dessa acumulação primitiva: da objetivação da natureza à dimorfização sexual, da abstração do tempo no tempo-relógio à constituição das esferas separadas da economia e da política (que têm como pressuposto o domínio do trabalho abstrato) e ao predomínio dos substantivos sobre os verbos (a reificação social permeando a linguagem). A crítica de Holloway atinge aqui um caráter antissistêmico contra a “síntese social” capitalista, cujo núcleo é a transformação do fazer criativo em trabalho abstrato criador de valor. Ganha destaque a determinação do valor como 164

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estruturalmente masculino, a ponto de Holloway propor fórmulas como “fazedorascontra-o-trabalho” ou “mulier abscondita” como o sujeito reprimido sob a máscara de caráter do trabalhador patriarcal (cap. XVI e XXVIII). Assim como outros antes dele (Marcuse, Postone, Colletti), Holloway traça uma linha de continuidade entre o “trabalho alienado” do jovem Marx e o “trabalho abstrato” do Marx maduro (cap. XII). Correspondentemente, ele também traça a linha entre a “atividade vital consciente” dos Manuscritos e o “trabalho concreto” ou “fazer”, tentando precaver-se contra o ontologia: ele “muda a cada época histórica e só pode ser entendido em seu contexto histórico” (p. 91). O “trabalho abstrato” ressurge, então, como o negativo que deve ser superado, assim como o seu executor aparece como o sujeito negativo, que deve abolir a si mesmo como trabalhador para emancipar-se. A base material para tal superação está na existência presente do “trabalho concreto” ou “fazer criativo”. O “fazer criativo” tende a transbordar do trabalho abstrato, e o sujeito criativo transborda da máscara de caráter do “trabalhador”, uma “relação extática” que fissura o tecido da dominação capitalista. Holloway reelabora o conceito de luta de classes, não mais apenas como luta do trabalho contra o capital, que é o seu nível mais superficial, mas com a emergência de um nível teórico-prático mais radical, a luta do fazer contra o trabalho. Tem-se, então, um duplo nível da luta de classes, onde o nível mais fundamental e radical é o da transformação dos fazedores criativos em “trabalhadores”, a sua proletarização, a acumulação primitiva sempre renovada. Esse nível mais fundamental da luta de classes não é visto como estanque em relação à luta tradicional, mas como o seu “transbordamento”, a sua radicalização. Para o autor, esse é o núcleo da crise do capital: a fuga dos trabalhadores do trabalho (abstrato).

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Eye of the storm. What a cruel, cruel myth. There’s no bigger spotlight than shown on the ones brave enough to live. Sleater-Kinney, The End of You

Para o círculo de leitores da Sinal de Menos, importa uma análise comparativa entre os conceitos de Holloway e aqueles dos grupos Krisis e Exit e de Moishe Postone. Holloway pode ser considerado um “crítico do valor”, mas com algumas peculiaridades derivadas de sua influência do autonomismo italiano. Jogá-lo contra os outros pode esclarecer questões teóricas importantes. Isso merece uma análise de maior fôlego, mas pode-se aqui fazer uma breve tentativa esquemática. Há alguns pontos fulcrais nos quais percebem-se divergências e diferenças de enfoque: o tratamento do duplo caráter do trabalho, a teoria da crise, a conceituação da luta de classes e o não-idêntico no capitalismo. A diferença de enfoque em relação ao duplo caráter do trabalho é comentada pelo próprio Holloway. Enquanto ele vê esse duplo caráter como um antagonismo vivo, no Krisis e em Postone esse duplo caráter aparece de forma esquemática, nãoantagonista (pp. 180-2; 187-8). A seguir comentamos o que não é explorado pelo autor. A crise, para Holloway, conforme já exposto, consiste na fuga dos trabalhadores em relação ao trabalho abstrato criador de valor, assim como da fuga do capital em relação à insubmissão dos trabalhadores. Daí deriva, inclusive, o sistema de crédito, que para o autor seria uma forma de adiar o efeito da rebeldia dos trabalhadores. Holloway enxerga uma dupla saída para a crise: de um lado, os trabalhadores fogem do trabalho e reconfiguram o seu fazer criativo, a saída emancipatória; de outro, o capital expulsa os trabalhadores do processo de trabalho (com o maquinário, o aumento da composição orgânica do capital), resultando em desemprego estrutural e queda da taxa de lucro, em uma espiral descendente (a intensificação da crise) (p. 174). No entanto, a causa da crise permanece exclusivamente subjetiva, a “mão rebelde do trabalho” (Marx): “a queda da taxa de lucro do capital tem em sua base uma não-subordinação, uma incapacidade de nos subordinar no grau que o capital requer” (p. 242). Para o Krisis/Exit, a crise deriva não dessa insubordinação reclamada por Holloway, mas da concorrência entre os 166

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capitalistas, “como luta entre as unidades empresariais particulares pela realização da mais-valia”, que impulsiona o aumento da composição orgânica do capital e a crise do trabalho abstrato.3 Enquanto Holloway deduz a crise a partir do sujeito, o Krisis/Exit deduz a crise a partir do objeto, ou das relações sociais objetivadas. Provavelmente a análise do movimento real exija a integração dialética dos dois momentos. No que se refere à luta de classes, Holloway a redefine, em sua concepção mais radical, como a luta contra a classificação. A crise do trabalho abstrato implica uma crise teórico-prática da luta de classes como luta do trabalho contra o capital, mas isso abre as portas para uma luta de classes mais radical, e não para a obsolescência da luta de classes como antagonismo social classista. Para o Krisis/Exit, de outra parte, a crise do trabalho torna a luta de classes obsoleta devido à “dessolidarização radical”, ainda que isso não deva ser entendido como uma superação do antagonismo social.4 Tal diagnóstico é possível a partir de uma redução sociológica da “classe” ao “operário fabril”.5 Importa também observar que a análise de Holloway dos dois níveis da luta de classe se refere a objeto semelhante ao “duplo Marx” de Robert Kurz. Para Kurz, o Marx “exotérico” da luta de classes estaria historicamente superado, com a correspondente emergência teórico-prática do Marx “esotérico” da crítica do fetiche da mercadoria e do trabalho abstrato.6 A análise de Holloway parece integrar dialeticamente o Marx “esotérico” e o “exotérico” em um único movimento dialético, e parece estar mais de acordo com as condições práticas da luta real, que nunca prescinde das necessidades imanentes (como o próprio Kurz não negaria), e nisso assume contornos classistas – “a luta é uma luta contra o trabalho abstrato ou alienado, e esta luta parte daqueles que são mais submetidos a esta abstração ou alienação” (p. 168); “o trabalhador tem muito mais razão para se revoltar contra a máscara de caráter do que o capitalista” (p. 214) –, com o que Kurz discordaria. Outro confronto relevante concerne ao não-idêntico em Holloway e Postone.

Como exposto por Robert Kurz em O colapso da modernização, Paz e Terra, 1992, especialmente o capítulo “Concorrência e emancipação”. 4 Cf., por exemplo, o Manifesto contra o trabalho, Conrad, 2003. 5 Para uma análise mais detalhada a esse respeito, ver meu texto “Penúltimos combates” na Sinal de Menos #1, pp. 80-92. 6 Cf. Robert Kurz, O pós-marxismo e o fetiche do trabalho, disponível em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz136.htm. 167 3

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Holloway o reduz ao sujeito. Postone toma o aumento da composição orgânica do capital, que torna o valor uma base mesquinha para a medição da riqueza social, como descrito por Marx nos Grundrisse, e a partir disso constata que o “trabalho morto” (maquinário, etc.) constitui um “aspecto não-idêntico do valor de uso”, já que ele corresponde ao tempo histórico do capitalismo, em contradição com o tempo da valorização, relacionado ao trabalho vivo. A contradição entre a imensa acumulação de trabalho morto e a base mesquinha do valor potencializa a passagem da “consciência constituinte de classe” (imanente) para a “consciência de transcendência de classe”.7 Pode-se falar aqui em uma “acumulação ampliada do não-idêntico”. Quando Holloway reduz o não-idêntico ao sujeito, ele perde essa determinação histórico-cumulativa, arriscando descolar a análise da crise das condições materiais vigentes e recair em uma metafísica do sujeito. O sujeito é apresentado como uma constante sem dinâmica histórica intrassistêmica: “o problema do capital é o problema que ele teve desde o seu nascimento: transformar o selvagem em trabalhador” (p. 242). De outra parte, a apreensão pelo sujeito do não-idêntico objetivado pressupõe o não-idêntico também naquele – de forma que, mais uma vez, talvez a análise do movimento real exija a integração dialética do não-idêntico em ambos os seus momentos, no trabalho vivo e no trabalho morto, no sujeito e no objeto. Por fim, é fácil associar a “consciência constituinte de classe” de Postone com a “luta do trabalho contra o capital” de Holloway, assim como a “consciência de transcendência de classe” do primeiro com a “luta do fazer contra o trabalho” do segundo.

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7

Ver Moishe Postone, Necessidade, tempo e trabalho, disponível em http://obeco.no.sapo.pt/mpt2.htm. Também o comentário de Raphael Alvarenga, “Do aspecto não-idêntico do valor de uso”, Sinal de Menos #2, pp. 179-184. 168

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Let the last storm hit us, let it strike at the hardest part Turn us all to mutiny, turn this boat upside down I am not the captain, I am just another fan Sailing off the edge of truth into the end of you Sleater-Kinney, The End of You

Considerado em sua integralidade e motivação, o livro de Holloway parece ser um esforço homérico para buscar o sujeito revolucionário no século XXI, uma tentativa de superação da crise do marxismo tradicional dos partidos e do movimento operário e de seu sujeito positivado sociologicamente reduzido, o operário fabril, a partir de uma reinterpretação da teoria marxiana. Essa reinterpretação se baseia no retorno à letra de Marx, e implica a demonstração de que o marxismo tradicional do movimento operário, com as suas necessidades e limitações históricas, negligenciou o conteúdo mais radical da obra marxiana. As condições atuais do capitalismo de crise tornam esses elementos mais visíveis e historicamente necessários. Holloway não hesita em arriscar-se na busca desse sujeito. Provocativamente, indica uma menina que não vai ao trabalho para ler um livro no parque como tão revolucionária quanto um grupo de guerrilheiros armados. Aqui, tanto está a crítica do sujeito leninista de subjetividade moldada pelo trabalho abstrato patriarcal, quanto também pode assomar-se um excesso de otimismo resultante da conjugação da necessidade urgente (e do desejo) de um movimento anticapitalista radical com a sua ausência de base real. Para Holloway a base está dada, ainda que (quase) invisível. Mas ele admite: “talvez sejamos loucos, talvez não haja saída, talvez as fissuras que vemos existam apenas em nossa fantasia” (p. 12). Algumas questões permanecem sem resposta. Por exemplo, como se pode enfrentar questões globais a partir de fissuras locais? Como enfrentar o aquecimento global, no qual as emissões de carbono têm efeito global cumulativo? Em tempos de forte ascensão da ultradireita, é pertinente também questionar o que diferencia a constituição de uma fissura emancipatória de um levante de contornos fascistas, que, ao final, também emerge de um impulso para “romper o capitalismo”, ainda que de forma 169

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ideológica e mistificada. Deveria ser investigada, talvez, a possibilidade de existir um “duplo caráter das fissuras”, e suas condições de surgimento. E uma questão crucial: como tomar os meios de fazer (meios de produção, na terminologia mais tradicional), condição essencial para a efetivação do comunismo, e não recair em fissuras que se reduzem a um “apoio mútuo emergencial”, que podem ser, ao final, funcionais ao capital em decomposição? Por vezes, Holloway parece confinar-se na esfera da distribuição e de uma cooperação de pequenos produtores (produção de bolos, enfermagem, grupos de canto...), mesmo que o núcleo de sua teoria indique o contrário disso: ao menos no nível teórico é preciso estar consciente de que é inviável produzir aço, circuitos eletrônicos, energia etc. sem o controle dos grandes complexos industriais. A articulação do fazer criativo contra o trabalho abstrato é decisiva nessa esfera, não porque a “produção fabril” seja uma esfera ontologicamente prioritária da vida social ou engendradora do “verdadeiro sujeito”, mas porque no capitalismo ela o é, concentrando assim os recursos e meios de fazer – para dissolvê-la como esfera separada, é decisivo transformá-la “por dentro”. As “ocupações de fábrica”, mencionadas esporadicamente, podem ser a chave para isso, mas elas não aparecem com a centralidade que talvez fosse devida, e o ponto não é desenvolvido. Isso pode ser reflexo objetivo ou subjetivo da enorme distância que separa essa necessidade teórica da sua possibilidade prática na atual correlação de forças, ou apenas “didatismo” do autor para utilizar apenas exemplos de fácil compreensão para todos.

** The first beast that will appear will entice us with money and fame If you listen long enough you'll forget there's anything else Tie me to the mast, of this ship and of this band Tie me to the greater things, the people that I love Sleater-Kinney, The End of You

À parte as problematizações inevitáveis em qualquer obra que assume riscos, Fissurar o capitalismo faz parte da literatura essencial para o debate marxiano atual. Se 170

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a ênfase unilateral no sujeito que permeia toda a obra carrega as suas limitações e problemas, ela também traz chaves que podem ajudar a desbloquear alguns becos-semsaída teóricos da crítica do valor; e se por vezes a teoria parece esbarrar em certos limites, ao menos em parte se trata dos limites da época. A retomada da crítica marxiana radical do valor e do trabalho (abstrato), da negatividade da classe trabalhadora e da sua classificação, a reconfiguração qualitativa do fazer social criativo e a reelaboração do conceito de luta de classes e das formas de organização anticapitalistas são temas obrigatórios para a teoria crítica emancipatória do século XXI, e neste livro encontram a sua devida centralidade. O sujeito emancipatório só pode surgir do confronto teóricoprático com essas questões e seus monstros.

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