Em Busca dos Crânios Perdidos: Museus, Repatriação Arqueológica e o valor da diversidade

September 16, 2017 | Autor: P. Funari | Categoria: Arqueologia, Patrimonio Cultural, Museologia
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MENEZES, L. ; FUNARI, P. P. A. ; FUNARI, P. P. A. . Em busca de crânios perdidos: museus, repatriação arqueológica e o valor da diversidade 18/05/2008. Revista Museu, v. 2008, p. 1-2, 2008.

Em Busca dos Crânios Perdidos: Museus, Repatriação Arqueológica e o valor da diversidade Lúcio Menezes Ferreira (Mestre e Doutor em História Cultural pela Unicamp. Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos – Unicamp, Bolsa FAPESP. E-mail: [email protected]) Pedro Paulo Abreu Funari Professor Titular, Departamento de História, IFCH e Coordenador do Núcleo de Estudos Estratégicos “Tudo bem nessa área, murmurou, perguntando-me, a seguir, com certa impaciência, se o deixaria medir minha cabeça (...). Sempre peço permissão, no interesse da ciência, para medir o crânio dos que partem para lá (...). Essa é minha participação nas vantagens que meu país deverá colher na posse de tão magnífica colônia”. (Joseph Conrad. O Coração das Trevas, 1902)

Aqueles que militam nos museus, nas mais variadas formas e funções, nem sempre atentam para o passado e seus meandros. Instituições venerandas, os museus passam, muitas vezes, por santuários isolados das preocupações mundanas. Tantas vezes, os dignitários pensam-se como observadores superiores, em uma suposta torre de observação, neutra e alheia aos embates sociais e políticos. Neste artigo, mostramos, a partir do caso dos museus arqueológicos, como os museus nunca foram distantes das clivagens sociais e quais os desafios de nossos dias. Em 1965, Bernard Finn, em artigo publicado na Technology and Culture, argumentou que a “nova museologia” subverteu a herança dos museus oitocentistas. Contudo, o passado dos museus do século XIX ainda não passou completamente. Tome-se, por exemplo, o atual debate sobre repatriação arqueológica. Ele é acesso pelo fogo da memória histórica, por chamas cujas primeiras brasas se atearam pelo sopro do colonialismo do século XIX. Os museus do século XIX, como já observaram Tim Barringer e Tom Flyn (Colonialism and Object: Empire, Material Culture and the Museum, 1997), eram expressões espaciais, culturais e sociais da expansão dos impérios. Os museus atrelaram-se ao advento do colonialismo moderno. Foi o colonialismo que propiciou a abertura de rotas de exploração comercial e o franqueamento de novos territórios para as viagens científicas. A idéia de se fazerem coleções em meio às viagens científicas remonta ao século XVI. Mas ganhou maior elaboração no século XVIII. A viagem Napoleônica ao Egito (1798), contudo, representou um ponto de inflexão nas relações entre viagens científicas, colonialismo e obtenção de coleções. Desde então, o termo expedição, de origem militar, passa a ser empregado nas ciências de campo. Além da necessidade de estudar os objetos científicos em seu contexto e de granjear coleções, tinham o fito de preparar o terreno e legitimar a colonização. Dentre as coleções arqueológicas mais visadas por esta aliança entre colonialismo e ciência, os crânios e esqueletos dos grupos nativos figuraram como uma das principais. Organizar coleções de crânios e ossos foi exigência de uma nova ciência do século XIX: a Antropologia Física. Os estudos antropométricos se impuseram a antropólogos físicos e arqueólogos como um dos modos de conhecer filiações históricas, especular sobre movimentos de imigração e postular esquemas evolutivos. Já no final do século XIX e 1

começo do XX, viajar para obter crânios e esqueletos tornou-se premissa para as pesquisas arqueológicas e antropológicas. Assim, Ales Hrdlicka (1869-1943), curador, a partir de 1903, da Divisão de Antropologia Física da Smithsonian Institution, Museu Nacional dos Estados Unidos, reuniu, depois de dez expedições para o Alasca e Ilhas Aleutas, uma extensa coleção osteológica. Com elas, ele estribou a tradicional hipótese de que os nativos americanos vieram da Ásia pelo Estreito de Bering. As coleções osteológicas armazenadas nos museus dos Estados Unidos, contudo, não resultaram simplesmente da obstinação e espírito empreendedor de cientistas como Hrdlicka. No final do século XIX, enquanto o exército dos Estados Unidos repelia os indígenas para o oeste e para as reservas, antropólogos e arqueólogos coletavam artefatos no campo de batalhas e reviravam sepulturas recentes à procura de esqueletos. O mesmo ocorreu na Austrália. Em meio às “missões civilizadoras” e ao extermínio, arqueólogos e antropólogos devassavam, no século XIX, as sepulturas aborígenes e enviavam, por conseguinte, as coleções obtidas para museus ingleses. Esses exemplos, que poderiam ser multiplicados, ilustram que para diversos grupos indígenas, como os nativo-americanos e aborígenes australianos, o passado oitocentista dos museus não é fogo morto. A consciência histórica das relações pregressas entre colonialismo e museus levou nativo-americanos e aborígenes a requererem a repatriação arqueológica dos artefatos, e, em especial, dos ossos e crânios, de seus antepassados. Repatriação arqueológica significa trazer de volta à pátria, ao solo originário, as coleções depositadas em vários museus do mundo. O argumento principal destes grupos em prol da repatriação arqueológica diz respeito à diferença de tratamento destinado aos materiais ósseos e crânios. Em 1980, Walter Echo-Hawk, um dos ativistas mais radicais pela igualdade de direitos dos nativo-americanos, sintetizou a questão: “Profane uma sepultura de branco e você vai para a prisão. Profane uma sepultura indígena e você ganha um doutorado”. De fato, não existe registro de museus que exibam publicamente ossos e crânios escavados de cemitérios cristãos modernos; o público ocidental e cristão, contudo, foi educado para apreciar com curiosidade exibições de esqueletos e crânios indígenas. Stephen Jay Gould (The Mismeasure of Man, 1981) já assinalou que a Antropologia Física, conquanto tenha sido e seja importante para entendermos os fluxos de imigrações pré-históricas (como nos mostram, por exemplo, os trabalhos de Walter Neves no Brasil), ajudou a legitimar o racismo científico. Para os grupos indígenas, a repatriação arqueológica implica instauração do ponto de vista nativo da História e revisão histórica do passado colonial. Para os nativo-americanos e aborígenes a repatriação arqueológica e a escrita da História sob o ponto de vista indígena é parte integrante dos conflitos pela cidadania, igualdade de direitos e reapropriação de territórios espoliados pelo colonialismo. A luta pela repatriação, nos Estados Unidos, resultou em lei federal: a Native American Graves Protection and Repatriation Act (NAGPRA) (Lei de Repatriação e Proteção aos Cemitérios Nativo-Americanos), aprovada em 1990. A lei visa a mediar as relações entre arqueólogos e indígenas, garantindo a proteção das sepulturas e a repatriação de objetos sagrados. Na Austrália, não se tem ainda uma lei federal como o NAGPRA. Mas os códigos de ética do World Archaeological Congress (Congresso de Arqueologia Mundial), primam – e isto obviamente não vale apenas para as pesquisas arqueológicas realizadas na Austrália – pela repatriação, pelo nivelamento de poder entre arqueólogos e indígenas e pela inserção do ponto de vista nativo da História. A luta pela repatriação, ademais, ajudou a fomentar uma série de mudanças na Arqueologia. Nos últimos anos,

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publicaram-se trabalhos que propugnam a descolonização das metodologias arqueológicas e da escrita da disciplina desde a perspectiva do indígena e do colonizado. Em termos museológicos, os reclames pela repatriação arqueológica também ajudaram a promover mudanças positivas. Um exemplo é-nos dado pelos próprios aborígenes. Com o apoio de arqueólogos e curadores de museus, eles, em meados dos anos 1990, montaram exposições, no Immigration Museum de Victoria (Museu da Imigração), com um duplo objetivo: mostrar o processo de extermínio a que foram submetidos pelo colonialismo inglês e a crosta de estereótipos culturais com que os cobriu a Arqueologia colonialista. Muitos australianos, que se concebiam como descendentes dos ingleses, desconheciam a crueza do processo colonial da Austrália e a especificidade cultural dos aborígenes. O que gerou um amplo debate em várias instituições de ensino da Austrália. O resultado mais imediato foi a inclusão destas discussões em manuais didáticos . Essa experiência evidencia que o trabalho museológico ao lado das comunidades pode acomodar múltiplos paradigmas e exibir para o público os processos de diálogo e tradução cultural. Arqueólogos e historiadores, tanto nos Estados quanto na Austrália, ao incorporarem diferentes memórias sociais e seus conhecimentos tradicionais nos trabalhos em museus, aprenderam uma pluralidade de significados, antes insuspeitados, sobre os artefatos. A emergência de grupos sociais no cenário social, como as mulheres, os afrodescendentes, os diversos grupos identitários de gênero e religião, levou ao questionamento dos modelos normativos e da busca pela homogeneidade. Este movimento já se fazia claro ao final da Segunda Guerra Mundial (1945) e a criação da UNESCO, mas essa luta pelos direitos sociais acentuou-se nas décadas finais do século XX e início do século XXI. Os modelos normativos foram criticados e, em seu lugar, reconheceram-se os valores da diversidade e do pluralismo. A UNESCO aprovou, em 2005, documento sobre a diversidade cultural da humanidade, com o devido reconhecimento das identidades e interesses sociais. Os museus, na esteira dessas transformações, tendem, cada vez mais, a abandonar a missão pretensamente civilizadora, em benefício da ação com os agentes sociais, em busca da diversidade como valor humano. Neste contexto, entende-se que a “busca pelos crânios perdidos”, portanto, não é mero voluntarismo ou vingança histórica. Eis talvez a principal função educativa dos museus como agentes de mudança e desenvolvimento social.

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