Em cada cristão, um teólogo: sobre teologia, comunidade e missão

June 7, 2017 | Autor: Jonathan Menezes | Categoria: Teologia, Missiologia
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Em cada cristão, um teólogo: sobre teologia, comunidade e missão 1 Por Jonathan Menezes

1. Início: teologia para quem? Cada cristão é um teólogo. Consciente ou inconscientemente, cada pessoa de fé abraça um sistema de crença. E cada crente, seja de maneira deliberada ou implicitamente, reflete sobre o conteúdo dessas crenças e sua significância para a vida cristã (GRENZ, 1994:1).

Durante muito tempo, sustentou-se uma posição um tanto alienígena em relação à teologia cristã (considerando sua razão de ser e propósito), qual seja: a de que consiste em uma tarefa e disciplina quase exclusivamente destinada a especialistas – “os teólogos” (no masculino mesmo) – que obtiveram essa honraria pelo mérito de altos estudos acadêmicos, possuindo, assim, o saber e a autoridade para falar em termos normalmente rebuscados, metafísicos e, como tais, distantes da realidade, sobre a magnífica revelação de Deus, que se encontra nas Escrituras Sagradas. Teólogos “de calibre” precisam possuir essas características, ou não são teólogos. Essa posição, com algumas exceções, já não mais se sustenta em nossos dias. E, junto com ela, outras visões do gênero, tão obsoletas quanto, como a de que a prática pastoral deve ser apenas feita por pastores ordenados; de que ministério e liderança são funções clericais; ou ainda a visão (embora bastante resistente, mesmo em pleno século XXI) de que às mulheres deve ser reservado o papel de auxiliar ou coadjuvante ao homem, na vida e no ministério. No “Ocidente cristão”, eu diria, todas essas falácias deveriam ser obsoletas de berço, e só não foram (ou ainda não são) por força de um éthos, isto é, de um hábito ou o “costume unificado” (MCMANUS, 2009:113) que marcou a história do cristianismo mormente a partir de seu processo de institucionalização, e tem a ver com a formalização constante das práticas, das crenças e dos comportamentos dentro de uma estrutura hierárquica. Ou seja, isso criou raízes profundas por séculos, de modo que podemos até chamar esse éthos de obsoleto, a partir de certa percepção da contemporaneidade, mas não de extinto. E quando digo que é obsoleto desde o berço, é devido à lógica antagônica a ele que encontramos nos escritos neotestamentários, a exemplo do universalismo paulino, sobre o qual tratou Alain Badiou2, cuja premissa foi (o máximo possível) de 1

Palestra proferida na “Aula Magna” do curso Vida & Missão, na Igreja Batista de Água Branca (IBAB), em São Paulo, 29 de fevereiro de 2016. 2

Não pretendo polemizar, nem discorrer de modo mais amplo, sobre a questão das mulheres segundo a cosmovisão de Paulo. Para o momento, basta dizer que concordo com a tese de Alain Badiou de que é tanto premeditada a visão de que Paulo foi uma espécie de fundador de uma misoginia cristã, quanto o desejo implícito ou explícito de fazê-lo comparecer a um tribunal feminista contemporâneo qualquer. Basta lembrar que Paulo teve muitas companheiras mulheres em seu ministério e no trabalho com as igrejas. Entretanto, o mais importante, como pontua Badiou (2009:121ss), “é saber se Paulo,

equivalência (e unidade em Cristo) entre os gêneros, as raças e as posições sociais (cf. Gl 3.28) ou da perspectiva petrina sobre o sacerdócio de todos os crentes (cf. 1Pe 2.9). Isso deveria despertar os cristãos para o fato de que, se o Cristo é Senhor sobre todos, Ele também habita em todos por intermédio de seu Espírito; e se Ele é o mediador, logo não precisamos de xamãs, videntes, oráculos, profetas ou sacerdotes de alto escalão para nos achegar ao Pai; enquanto Sumo-sacerdote, Cristo fez de cada um dos membros do povo de Deus um sacerdote. A questão é: por que tendemos tão facilmente a negligenciar isso e a nos contentar em terceirizar a outros a responsabilidade sobre o que fazemos com nosso próprio caminho na fé? O grande lance é que, tendo nos dado, pela graça, a liberdade de nos achegarmos a Ele, também nos conferiu a inteligência para pensar e a paixão para conferir sentido, na luta com Sua Palavra, a essa vida nova que Ele nos convida a viver no, e a partilhar com, o mundo. Por essa razão, Stanley Grenz foi assertivo ao dizer, na epígrafe acima, que em cada cristão há um/a teólogo/a. Lembrando também de Jürgen Moltmann (2004:23), “todos os cristãos, quer jovens ou velhos, quer mulheres ou homens, que creem e fazem alguma reflexão sobre isso, são teólogos”. Stanley Grenz e Roger Olson (2002:13) os chamam de “teólogos anônimos”, a partir de uma compreensão de que “qualquer reflexão sobre as questões essenciais da vida que aponte para Deus” é teologia. São anônimos aqueles que fazem teologias nesses termos sem se dar conta. E, uma vez que esse Deus com quem nos relacionamos e sobre o qual falamos está presente no mundo (pelo que Paulo em Rm 1.20 chamou de “atributos invisíveis de Deus”) e nas “questões básicas da vida”, é possível encontrar teólogos/as anônimos/as também na cultura popular, por exemplo, “através de autores populares, compositores, novelistas, e mentes criativas” (Ibid.). Cineastas como Woddy Allen e Terrence Malick; artistas da MPB como Gilberto Gil, Milton Nascimento ou a banda O Teatro Mágico; autores como Dostoievsky, Tolstoi, Hermann Hesse, Simone Weil, Simone de Beauvoir, Adélia Prado – apenas para citar poucos de minha predileção –, todos foram/são a meu ver teólogos/as anônimos/as. E já não deveria ser nenhuma surpresa que às vezes aprendamos mais teologia – mais de uma humana teologia – com esses e outros anônimos do que com os profissionais. Voltando ao ponto inicial, é preciso ter em mente que a vivência e a inteligência da fé são irmãs uma da outra. E como diz Gustavo Gutiérrez (2000:51), “o nível da vivência da fé sustenta o da inteligência da fé”, sendo o contrário também verdadeiro: o nível de inteligência da fé também deveria, por suposto, alimentar e guiar a vivência da fé, sob a iluminação do Espírito. De acordo com René Padilla (1986:131), “a função primeira e mais básica da educação teológica é preparar líderes ‘leigos’ para ajudar no considerando sua época, é mais progressista ou mais reacionário no que se refere à situação das mulheres”. Não há dúvidas de que as questões culturais e as diferenças são importantes nesse caso, mas mais importante é compreender o que a extensão de uma “participação igualitária como essa poderia mobilizar”. Aqui reside na visão de Badiou (ibid.) boa parte da visão universalista de Paulo.

ministério educacional da igreja”. Em seguida é que vêm as funções de preparar pessoas para o ministério “ordenado” e, por conseguinte, de formar mestres e “cientistas da fé”. Por que precisamos continuar invertendo essa ordem? A quem interessa essa inversão? A igreja precisa parar para refletir sobre isso, pois essa consciência (ou a falta dela, como parece ser mais corrente) muda muita coisa em seu modo de ser. Com isso, quero concluir essa primeira parte com três afirmações básicas: (1) o fazer teológico é tarefa de todo o povo de Deus; (2) em todo crente há um esboço de teologia, como bem disse Gutiérrez em outro lugar (GUTIÉRREZ, 1986:15); (3) como inteligência da fé, a teologia é tanto servida pela, quando serve à prática de fé. O que significa que ela pode ser uma disciplina acadêmica, mas também é fruto de uma práxis. Isso é o que aprendemos basicamente com o modo latino-americano de se fazer teologia, desde idos dos anos 1960-70, como na conhecida formulação de Gutiérrez, de que a teologia (enquanto formulação teórico-conceitual) vem na esteira de uma práxis de fé e, portanto, é ato segundo. Em uma entrevista recente, mais de quarenta anos depois de invocar esses postulados que ajudaram a fundar uma teologia latino-americana, Gutiérrez (2015) disse: “Repito que a teologia é um ato secundário. Nós dissemos isto desde o princípio. Não é secundário em sentido pejorativo. Eu, pessoalmente, aos 40 anos não falava de teologia e acho que eu era cristão. Sim, foi possível, para mim, ser cristão antes da teologia e espero ser cristão depois da teologia”. Quero insistir, porém, que não reforcemos essa dicotomia, como essa fala de Gutiérrez pode parecer indicar. Não deveria haver antes ou depois da teologia, se a considerarmos como pressuposto (e não o oposto) da fé cristã. Falarei mais sobre isso a seguir. 2. Meio: teologia para quê? Qualquer definição do que é a teologia, ou de sua função, está ligada ao contexto e aos pressupostos de quem fala. Aqui vale repetir o óbvio ululante de que toda teologia é uma teologia contextual e, portanto, historicamente condicionada. Isto para dizer que em minha visão atual da teologia não quero apelar a formulações universais sobre o que ela é ou em que consiste, mas tentar entender o que ela representa, significa e a quem se destina à luz dos problemas do tempo e do espaço a que pertenço. Preocupo-me em pensar atualmente não apenas se (e por que) há necessidade da teologia na igreja, mas também se (e por que) a sociedade precisa da teologia. E, se precisa, de que tipo? (Essa última pergunta nos remete mais ao fim dessa breve discussão). Antes de qualquer coisa, é preciso dizer que, para mim, a teologia, sim, envolve uma forma de saber ou conhecimento racional, que nasce do impulso humano de entender melhor sua própria experiência de fé e conferir sentido para sua existência, o que requer uma ampliação de seu entendimento sobre Deus a partir do que Ele

escolheu revelar sobre si em sua Palavra. Como disse Karl Barth (1960:19), a “fé nele também demanda conhecimento sobre ele”. Isso significa, como já foi dito, que a fé Nele antecede a teologia, mas também que a fé Nele pressupõe teologia. Nesse sentido, minha primeira resposta ao para quê teologia deve ser: pelo prazer ou a alegria de conhecer e prosseguir em conhecer a Deus, e se regozijar Nele! Isso faz lembrar a célebre formulação de Anselmo (1033-1109), em forma de oração: Senhor, não tenho a intenção de penetrar a tua profundidade porque minha inteligência não poderá de modo algum esgotá-la; desejo, porém, em certa medida, compreender algo de tua verdade, que meu coração crê e ama. Não busco compreender para crer [sic.], mas creio para compreender, pois estou seguro de que se não cresse não compreenderia (ANSELMO, Apud. GUTIÉRREZ, 2000:51, grifos meus).

É possível pensar em mais algumas questões a partir dessa passagem. Primeiro, se creio para compreender, a teologia pressupõe, antes de tudo, fé. É claro que é possível fazer teologia sem crer, mas não o tipo de teologia que Anselmo tem em mente, passional antes mesmo de ser racional. Apresso-me em salientar, em segundo lugar, que a racionalidade ocupa um lugar importante para o autor, ou seja: não poderia compreender sem crer, mas o crer pressupõe a busca pelo entendimento constante sobre o crido. Como expressa Barth (1960:18), não é a “existência da fé”, mas a “natureza da fé, que deseja conhecimento”. Em terceiro lugar, sendo um dos pais da teologia no Ocidente, Anselmo se mostra bastante modesto na aproximação ao crido, pois reconhece que sua inteligência jamais poderia esgotá-lo, e que seu desejo é o de compreender algo dessa verdade. Mas não nos enganemos: a “verdade” aqui não é uma abstração da mente, mas o próprio Deus, que nosso coração “crê e ama”; trata-se menos da expressão propositiva da verdade, e mais uma relação com e reverência a ela. Partindo das formulações do Evangelho de João, a verdade (do Evangelho) se expressa na natureza e ser de uma pessoa (Jesus Cristo) e não pode ser reduzida às proposições da teologia de alguém. E antes que alguém venha me interpelar com essa conversa fiada sobre “cair no relativismo”, reconheço que o fazer teológico parte do anseio natural do fiel de apresentar declarações verdadeiras sobre seu Amado Eterno – o que deveria impedir o ímpeto de “dizer qualquer coisa” ou de sugerir que “qualquer coisa vale”. Mas isso, primeiro, não garante precisão e assertividade sempre e, segundo, essa pretensa fidelidade e veracidade não nos outorga o direito de nos autonomearmos “donos de Deus”, pelo aspecto da contingência inerente a todo fazer-saber humano. Comentando Anselmo, Barth (1960:29,30) nos lembra que “cada declaração teológica é uma inadequada expressão de seu objeto”, e mesmo que seja possível haver expressões teológicas verdadeiras sobre Deus (Aquele que não pode ser “expresso”), toda afirmação teológica dessa natureza permanece sendo “especulativa”.

Portanto, Anselmo nos leva a pensar que a teologia é uma forma muito limitada de conhecimento, tendo em perspectiva que seu assunto, se seguirmos a etimologia da palavra, é Deus. Mas será possível uma “ciência de Deus”? Barth nos ajudou um pouco a resolver esse problema: a teologia estuda a Deus em sua revelação ou “na história de suas ações” (BARTH, 2003:12). Assim sendo, Deus não é propriamente o “assunto”, muito menos “objeto” da teologia, mas quem graciosamente a possibilita. As ações de Deus são feitas, mas também ditas; experimentadas, mas também narradas. Logo, a forma de estudo da teologia não é, primordialmente, investigação científica objetiva, baseada em modelos, repetibilidade ou evidências, mas um estudo sobre as narrativas do povo de Deus a respeito dos feitos desse Deus ao longo da história, ou sobre o que Deus já-falou. Nesse sentido, toda fala sobre Deus pressupõe referência a outro alguém que falou, ao passo que façamos de Deus, sim, mas a partir da experiência humana. Precisamos, por isso, ter cuidado ao chamar a teologia de “ciência”, se não problematizarmos o tipo de ciência que temos em mente. Se o uso do termo ciência, como expõe Andrew Kirk (2006:24), “tem a intenção de levar a um compromisso com o rigor intelectual na busca pelo entendimento de diferentes aspectos da fé, então ele é apropriado”. Por outro lado, se significa verificação e comprovação da veracidade da revelação por critérios de objetivação da realidade que ela retrata, eu diria que é um erro chama-la de “ciência”. Teologia pode ser uma espécie de ciência na medida em que se propõe a fazer uma reflexão crítica e disciplinada sobre a relação do ser humano com Deus, e de Deus com o ser humano e o seu mundo, a fim de avaliar e iluminar “a fé e a prática daqueles que afirmam conhecer a Deus” (KIRK, 2006:25). Pensando em termos mais concretos, a reflexão teológica, como a entende Gutiérrez (1986:23), pode ser vista como “uma crítica da sociedade e da Igreja enquanto convocadas e interpeladas pela palavra de Deus; teoria crítica, à luz da Palavra aceita na fé, animada por intenção prática, portanto indissoluvelmente unida à práxis histórica”. Daqui é possível abstrair uma segunda resposta possível ao para quê teologia: a teologia não é apenas “uma função eclesial” e comunitária (GUTIÉRREZ, 2008:29), como ressaltei no início, mas também está a serviço da comunidade e de sua missão no mundo. Isso não é nenhuma novidade, é claro, mas não custa lembrar. Como muito bem coloca Gutiérrez (2015), na entrevista já mencionada: “A reflexão teológica deve estar ligada à vida cotidiana das pessoas. Não se trata de metafísica religiosa. Nunca li na Bíblia algum trecho que diz ‘ide e fazei Teologia’, mas sim ‘ide e fazei discípulos’. A Teologia é uma hermenêutica da esperança, dá a visão para quem está comprometido na ação”. Quem está comprometido na ação, segundo Gutiérrez? Volto a destacar: TODO o povo de Deus. Isto é, todas as pessoas engajadas em alguma forma de ação na vida (o que envolve trabalho, estudos, família, relacionamentos em geral) e, portanto, capaz de traduzir, melhor até que o clero ou os “teólogos da torre de marfim”, a mensagem teológica em termos e atitudes que as

pessoas e seus contextos compreendam e possam ser tocadas de modo significativo por ela. Parafraseando o defendeu David Engel (1964:202), a igreja tem uma pequena chance de se tornar não mais que uma relíquia histórica, a não ser que um maior número de seus membros possa articular as afirmações do evangelho nesse tipo de ambiente – ou seja: nas universidades, no mercado de trabalho, nos guetos, nas tribos, nas ruas, e no coração da cidade. 3. Fim: que teologia queremos? Para seguir pensando, é preciso lembrar que nenhuma das proposições que são fruto dessa reflexão crítica por parte do/a teólogo/a deve ter a pretensão de ser unívoca, isto é, de pretender ser a única voz, a mais verdadeira e legítima, representante de Deus na igreja e no mundo. Isto, pois a linguagem teológica, como lembra Grenz (1994:11), “é sempre um construto humano”, no sentido de que “é feita por seres humanos falíveis tentando construir o sentido a partir de dois dados – a auto-revelação de Deus e a nossa experiência humana” (KIRK, 2006:26). De igual modo, para além daquilo que qualquer teologia é capaz de significar, está a ação do Espírito de Deus que “sopra onde quer”. E teologia que tenta, em sua ânsia por poder, apagar ou confinar o Espírito não merece o nome de cristã. Nesse sentido, só posso consentir que a teologia seja uma ciência, se os teólogos admitirem, como de modo tão feliz pontuou Barth (2003:11), que ela é uma “ciência modesta”, ou, como eu prefiro dizer, a mais modesta de todas as ciências. E que seja, lembrando aqui de Nietzsche, também uma “gaia ciência” ou uma ciência alegre, um modo leve e apaixonado de se falar das coisas de Deus, sem perder de vista o chão em que nos encontramos, nem desviar os olhos do Cristo. Refiro-me à teologia como uma ciência mais modesta, porque reconhece os limites de suas cogitações, e porque o cogito (as ideias) é fruto de uma relação com o que é cogitado (Deus em sua Palavra); e também é a mais divertida ou alegre das ciências, porque o conhecimento de Deus é uma graça, um prazer, em que posso me regozijar integralmente sem deixar de lado a reverência, a responsabilidade ao interpretar, na Palavra e no mundo, os modos de ser e de agir de Deus, e como isso afeta diretamente o nosso modo de ser no mesmo mundo. Como consequência, isso deve nos conduzir a uma intimidade e entendimento maior com (o conhecimento de) quem somos, de quem Deus é e da missão na qual somos partícipes-cooperadores. Por essa razão, em segundo lugar, nenhuma corrente teológica, bem como nenhuma linha de pensamento tem, embora pretenda, a primazia de interpretação sobre por onde deve se orientar o Espírito, a Igreja, e a Missão. Simplesmente porque o Espírito sopra onde quer, e principalmente porque interpretações são geradas e geram diferentes maneiras de falar, e maneiras de falar são sempre provisórias. A linguagem teológica é composta por várias línguas, vários modos de expressar e de dar significado às palavras, ou, melhor dizendo, por vários dialetos. E dialetos teológicos,

ouso dizer, são como roupas, que a gente usa por um tempo, mas depois joga fora ou deixa guardado quando percebe que ficou velho e desgastado com o tempo. Assumir essa provisoriedade requer da gente uma abertura para a desconstrução e ressignificação de nossos discursos teológicos, não apenas passando uma maquiagem neles, mas questionando seus pressupostos, expondo sua “porosidade e transitoriedade”, como disse meu amigo, teólogo argentino, Nicolás Panotto (2012:80). Uma vez que é uma linguagem, Panotto afirma que toda e qualquer teologia precisa ser colocada entre parênteses, isto é, “reconhecer que não está livre de determinismos e reducionismos subjetivos, contextuais, políticos e discursivos”. Toda boa teologia, em meu modo de ver, é aquela em que encontramos consistência, mas também a humildade de manter as portas abertas para constantes revisões de sua linguagem. Igualmente, todo bom teólogo é um transgressor por natureza, não porque transgride o pensamento alheio, mas porque desenvolveu a coragem de transgredir os seus próprios, de não se levar tão a sério. Para tanto, parafraseando Pedro Demo, é preciso, mais que acreditar no que se pensa, questionar seu próprio pensamento. Desse modo, fazer teologia no mundo atual deve passar pelo reconhecimento de que, quando teologizamos, utilizando a analogia de Brian McLaren (2008, p. 102), “somos vasos avaliando o oleiro, crianças questionando seus pais, formigas discutindo sobre o elefante”. Daí vem seu lado “modesto”, seu caráter essencialmente humilde, porque conta inelutavelmente com a graça de Deus e o sopro de seu Espírito sem os quais a teologia não passa de um saber sem sabor e vida. Nesse contexto, se permitirmos que a teologia volte a sua vocação de ser, de acordo com McLaren (2008, p. 103), “uma exploração sem fim e na busca eterna pela verdade, pela bondade, e pela beleza de Deus e sua relação com o nosso universo e tudo o que nele há”, então ela será “maravilhosamente ressuscitada por nós”, como tarefa de todos, não para substituir o lugar das Escrituras (como parece ser o receio de alguns, mais tradicionais), mas para nos ajudar a entendê-las e aplicá-las melhor. Sem isso, possivelmente teremos não apenas líderes e teólogos rasos (superficiais), mas discípulos rasos e testemunhas rasas. E não nos espantemos, portanto, ao observar o crescimento conceitual (Costas) da Igreja e nos depararmos com uma realidade muito similar àquela com a qual o autor de Hebreus se deparou em seu tempo: quando as pessoas da comunidade, pelo tempo de estrada, já deveriam ser mestras de si mesmas, autodidatas na Palavra, ainda havia a necessidade de alguém que sentasse com elas para explicar as coisas básicas sobre Deus de novo, tornando-se necessitadas, assim, do alimentado destinado a crianças, e não a adultos (cf. Hb 5.12). Ora essa, caso desejemos que as pessoas numa comunidade rumem à maturidade na fé, e deixem de ser infantes, precisamos estimulá-las a viver a fé como gente crescida, que precisa de outro tipo de alimento, e que não necessita mais, também, que ninguém venha colocar esse alimento direto na boca delas.

Contudo, essa é uma via de mão dupla, e tem a ver com nossa compreensão da natureza e razão de ser da Igreja. Infelizmente, ainda reduzimos a Igreja de Cristo, aos moldes neotestamentários, a uma organização, um templo e uma instituição. Para muitos, essas coisas não são meras funcionalidades, mas o centro do que a igreja é: um espaço no qual pessoas se reúnem em busca de transcendência. Por essa razão, como lembra David Engel (1964:197), “parece haver um entendimento muito pequeno de que o motivo dessa reunião é para que o povo seja enviado em uma compreensível e comunicável missão”. Assim, ele conclui que, de forma geral, “ainda pensamos na igreja como um lugar para ir ao invés de algo que somos chamados a ser”. E enquanto continuarmos pensando que vamos à igreja e não internalizando nossa vocação para ser a igreja, onde quer que estejamos, também continuaremos reproduzindo a ideia de que a missão é para os missionários, e não para mim, e de que a teologia é para os teólogos, e não para mim (um simples crente). Meu recado aqui, porém, é muito simples e direta: nós somos Igreja, nós fazemos teologia, e a missão é também uma tarefa nossa. 4. Para continuar a pensar... Quero finalizar com duas provocações básicas sobre isso: I. Os pastores, teólogos profissionais e líderes das igrejas hoje estarão dispostos a promover, em suas comunidades, uma teologia emancipadora do povo de Deus, que contribua para a emergência de todo o seu potencial criativo e transformador? Abrirão mão da patente concentração de poder e saber que envolve o ministério pastoral, considerando cada um/a dos membros de sua comunidade como um/a igual? Terão coragem de mobilizar o povo de Deus “para fora da porta”, para a praça? II. A igreja, povo de Deus, estará realmente disposta a aceitar não apenas os benefícios, mas também os custos dessa emancipação, ou ficará olhando para trás – como o povo de Israel no Egito – com nostalgia da comodidade da escravidão? Da resposta a essas duas provocações, penso eu, depende a eficácia de boa parte do que tratei nessa apresentação. Do contrário, pode ser que isso não passe de “conversa para boi dormir”. Tomara que não.

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