Em defesa da Villa Mimosa: uma luta em torno do patrimônio cultural e ambiental de Canoas/RS

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Em defesa da Villa Mimosa Uma luta em torno do patrimônio cultural e ambiental de Canoas/RS Eraci Dias de Oliveira1 e Lucas Graeff2

Introdução Objeto de planificação, racionalização e imaginação por parte dos diferentes agentes que arquitetam as cidades e Estados modernos, a valorização de edificações, produções, locais de interesse, paisagens naturais e monumentos ditos “históricos” e “artísticos” vem ganhando em complexidade com a inclusão de temas como cultura operária, minorias étnicas e proteção ambiental. Como mostram os exemplos da inscrição da Capoeira de Angola (Pelegrini, 2008) e dos Doces de Pelotas (Rieth, Cerqueira et al., 2008) nos Livros dos Saberes e de Formas de Expressão do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a atribuição de “valor cultural” a determinados bens, paisagens e processos sociais contribui não apenas à produção de novos saberes e práticas, mas sobretudo à multiplicação de pontos de vista sobre o papel do patrimônio na afirmação e redefinição de identidades nacionais, regionais e locais. No que toca a formulação da noção de patrimônio cultural, o grande marco na proteção e preservação de bens de valor histórico, artístico e social se dá com a criação da UNESCO, em 1945, e se consolida com a redação e divulgação da Carta de Veneza, em 19643. Oito anos mais tarde, durante a conferência da ONU sobre o 1Licenciada em História pelo Centro Universitário Unilasalle (Canoas/RS). Contato: [email protected] 2 Doutor em Antropologia pela Universidade de Paris 5 – Sorbonne. Professor do curso de mestrado profissional em Memória Social e Bens Culturais do Centro Universitário Unilasalle (Canoas/RS). Contato: [email protected] 3 A Carta de Veneza é um documento de caráter internacional elaborado no II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos, que teve lugar em Veneza, na Itália, em 1964. Assinada por diversos países, dentre os quais o Brasil, a carta define os bens culturais como patrimônio comum de toda humanidade e, o que importa salientar neste artigo, estende o conceito de edifício histórico e de seu entorno para sítio histórico, bem como o de monumento para bem cultural,

Meio Ambiente Humano, em 1972, realizada em Estocolmo, foi estabelecido o Plano de Ação Mundial com o objetivo de orientar a humanidade para a preservação, a conservação e melhoria do “ambiente humano”. Entendido como a interseção entre os meios “artificiais” (isto é, criados pelo homem) e “naturais” (os recursos existentes no planeta Terra independentemente da ação humana, inclusos o ar, a água, o solo, a flora e a fauna), o ambiente humano passa a ser percebido desde então como um patrimônio universal a ser salvaguardado e transmitido às gerações futuras da humanidade. Esses marcos históricos das políticas patrimoniais mostram, por um lado, o papel preponderante das instituições e organismos internacionais na delimitação de um conceito de patrimônio capaz de abarcar as mais diversas noções e definições de bens culturais e ambientais que devem ser identificados, colecionados, preservados e, se for o caso, tombados. Por outro lado, desde um ponto de vista voltado exclusivamente para o contexto internacional da formulação de políticas patrimoniais, as preocupações dos gestores urbanos e da sociedade civil, interessados pelo potencial patrimonial dos bens culturais e naturais das localidades onde vivem, aparecem como meras reações às proposições e diretrizes formuladas por tais organismos e instituições. Dito de outra maneira, quando se trata de pensar as políticas voltadas para a valorização de bens culturais e ambientais, as iniciativas de gestores e da sociedade civil costumam se apresentar apenas como corolários de leis e convenções estipuladas por outros agentes – e não como resultado de verdadeiros embates jurídicos, econômicos e sociais entre diferentes grupos de interesse. O presente trabalho tem por objeto um desses embates locais e seus efeitos na política patrimonial da cidade de Canoas, no Rio Grande do Sul. Mais precisamente, estudaremos a luta em torno da proteção ambiental que resultou no tombamento da casa da Família Ludwig, popularmente conhecida como “Villa Mimosa”, que entrou para a história de Canoas como primeira edificação tombada do município4. Nas duas primeiras seções deste artigo, apresentaremos alguns aspectos his-

compreendendo tanto grandes criações quanto obras modestas que adquiriram, com o tempo, uma significação cultural. Nesse sentido, a salvaguarda patrimonial passa a abranger tanto obras de arte como testemunhos históricos, buscando promover a recuperação dos “tecidos” urbanos antigos 4 O tombamento, ato jurídico realizado pelo Governo Federal pelo intermédio de órgãos públicos competentes, é o primeiro ato de processo para a preservação de bens culturais, impedindo legalmente a sua descaracterização ou destruição. “A palavra tombar significa, no contexto do patrimônio,

tóricos e arquitetônicos da Villa Mimosa que são importantes para compreender por que o local pode ser pensando como um “monumento não-intencional” (RIEGL, 1984). Em seguida, analisaremos como se deu a luta jurídica e civil em torno do tombamento da casa e de seu jardim, especialmente a partir do processo administrativo nº 195/2007, de reportagens de jornais e de entrevistas realizadas com atores engajados no processo. Finalmente, discutiremos por que a luta da sociedade civil acabou agindo menos em favor da preservação ambiental que da proteção do prédio histórico. O objetivo é mostrar como, além de critérios técnicos (históricos, arquitetônicos, etc.), o ato de tombamento da Villa Mimosa se deu a partir de grupos de influência agindo numa conjuntura sócio-política favorável, onde a preservação da edificação se impôs como moeda de troca pela destruição do patrimônio natural da cidade de Canoas. 1. A Villa Mimosa e a cidade de Canoas Canoas é uma cidade jovem. Localizada a menos de quinze quilômetros da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, sua emancipação data de 27 de junho de 1939. Até o início da década de 1930, as fazendas, chácaras, sobrados, residências, praças, pequenos comércios e outras edificações que compunham a região pertenciam ao município de Gravataí. Desde então, como sublinha Antonio Jesus Pfeil, “algumas medidas de caráter econômico e político passaram a dar uma consciência uniforme e mais ativa, no sentido de reivindicar melhores condições de vida” (PFEIL, 1992, p. 175). O desenvolvimento urbano e o fortalecimento do centro da cidade enquanto núcleo religioso e político viriam a estabelecer as condições necessárias para o processo de emancipação do município5. Antes de se urbanizar, porém, Canoas era marcada por chácaras, vivendas e fazendas adquiridas por famílias de imigrantes, em especial de origem alemã. Como destaca Tânia Ramos de Oliveira, a fim de compreender como se deu o povoamento registrar num livro, designado Livro de Tombo, os objetos, os monumentos, os documentos, as construções, as manifestações culturais, os lugares etc., identificados como os que representam de maneira clara a identidade cultural brasileira” (ASSUNÇÃO, 2003, p.93) 5 “A transferência da Igreja Matriz (...) passa a convergir, num forte sintoma, os interesses particulares na criação de uma área valorizada. A igreja, a estação, o Colégio La Salle, a Casa Vargas, o Cinema Central, a Pensão Matte, uma linha telefônica e algumas vivendas de famílias importantes da sociedade portoalegrense, que aqui veraneavam, constituíam um núcleo a ser incentivado (...).” (PFEIL, 1992, p. 175).

urbano da cidade, “temos que levar em consideração o desenvolvimento da zona colonial (São Leopoldo) e a localização de Canoas – entre São Leopoldo e Porto Alegre. Fazia-se necessário uma via que escoasse a produção da zona colonial alemã para Porto Alegre.” (OLIVEIRA, 2000, p. 18). A “via de escoamento” referida pela autora é a atual linha de ferro do Trensurb. Inaugurada em 1874, com uma primeira estação construída no atual centro de Canoas, é a partir dela que a cidade viria a se transformar não apenas numa região colocada entre Porto Alegre e de São Leopoldo, mas sobretudo em local de veraneio para as famílias mais abastadas desses dois centros urbanos em ascensão. A construção da Villa Mimosa se inscreve nesse contexto bucólico de uma Canoas em vias de urbanização. Como conta Oswaldo Kessler Ludwig, filho de Frederico Ludwig e um dos antigos moradores da Villa: “Em fim do século passado, a última década do século passado, o meu avô materno Felix Kessler adquiriu uma chácara a uma quadra ao norte da Estação, que era o centro demarcado de Canoas, da tranqüila e pequena Vila de Canoas e ai construiu a sua residência, que, de início era de veraneio. Posteriormente passou a ser residência fixa. (...). Meu pai, que havia conhecido aqui em Canoas a minha mãe, (...) casando com ela em um chalé, que fica aqui ao lado e que era propriedade da família Schell, donde o nome hoje desta Rua Guilherme Schell6. [Ele] Passou um ano morando neste chalé, estilo suíço, muito bonito e acompanhou a construção da primitiva Vila Mimosa, que só ficou pronta em fins de 1905. (...). Nesta casa, inicialmente eram quatro peças no andar térreo e ) no andar superior. Aos fundos uma cozinha e em cima, um banheiro. Nas duas peças térreas da frente, que tinham então quatro portas, duas em cada peça, minha mãe instalou de um lado um armazém de secos e molhados e do outro lado a primeira loja de fazendas e armarinhos de Canoas. Com isso ela ajudava o sustento da família, já que meu pai não era abonado, era um funcionário do escritório da firma Chaves Almeida. Assim nós vivemos durante anos, até que em 1923, meu pai havia comprado um bilhete de loteria e ganhou 40 contos de réis, que na época era quase uma pequena fortuna. Com isso ele resolveu ampliar a casa, pois eram muitos filhos e vinham muitas pessoas, parentes de família que queriam desfrutar do veraneio de Canoas (...).” (apud PENNA, CORBELLINI E GAYESKI, 2004, p. 29). Em pouco mais de cinquenta anos, Canoas deixa de ser um conjunto de chácaras loteadas para o veraneio de algumas famílias abastadas e torna-se um impor-

6 O chalé em estilo suíço localiza-se ao lado da Villa Mimosa. Hoje, ele abriga uma creche.

tante pólo econômico-industrial7. Ampliada e conservada ao longo dos anos pela família Ludwig, a Villa Mimosa se transformou não apenas em marco históricoarquitetônico da cidade, mas em testemunha, através de suas árvores, matas e jardins, das relações de força entre o processo de desenvolvimento urbano e os esforços de salvaguarda e promoção dos recursos naturais de uma região. 2. Villa Mimosa: de patrimônio familiar a monumento não-intencional Como atestado pelo parecer técnico realizado pela Comissão de Patrimônio Histórico do município de Canoas e pelos estudos históricos organizados por Rejane Penna, Darns Corbellini e Miguel Gayeski, a família Ludwig sempre procurou conservar o seu patrimônio familiar, prezando tanto pela conservação da residência quanto pela manutenção e salvaguarda das árvores e vegetações que compõem o sítio da Villa Mimosa (GRAEBIN, AGOSTINI E FINKLER, 2007; PENNA, CORBELLINI E GAYESKI, 2004). Em relação ao patrimônio ambiental, imóvel comportava cerca de 8.000 m2 de mata Atlântica nativa até meados de 2010, época em que, como discutiremos mais tarde, foi cassada a liminar concedida pelo Ministério Público visando a proteção temporária do sítio contra qualquer tipo de intervenção ou obra. No que tange a residência propriamente dita, trata-se de uma edificação que guarda ainda hoje seu estilo neoclássico composto com alguns elementos ecléticos: o frontão tem estilo barroco, tendendo para o colonial brasileiro; os capitéis das colunas são em estilo jônico e coríntio; nos dormitórios, foram utilizadas janelas e venezianas, enquanto que nas salas de viver, a família instalou janelas duplas (uma externa, de vidro, e uma interna, de madeira). De acordo com a entrevista realizada com uma representante do Ministério Público8, o bom estado de conservação do sítio deve ser considerado como fundamental para o processo de Tombamento Municipal da Villa Mimosa. Em primeiro lugar, em virtude da visibilidade dos elementos arquitetônicos que compõem a edificação, que contribuem a marcar um período em que o hibridismo dos estilos rococó, 7 Atualmente, o PIB de Canoas é o segundo maior do Rio Grande do Sul.O seu parque industrial, que compoõe 68% da base econômica da cidade, conta com sobretudo com a Refinaria Alberto Pasqualini (REFAP) e com grandes empresas do setor metalúrgico. 8 Entrevista informal da promotora Maria Augusta Menz concedida à Eraci Dias de Oliveira em 11 de junho de 2010.

barroco e neoclássico compunham as paisagens urbanas e rurais no Brasil (D’ARAUJO, 1997; SEGAWA, 1999). Em segundo lugar, porque a conservação ao longo dos anos da totalidade do sítio da Villa Mimosa é um dos fatores decisivos para sua imposição como “monumento não-intencional” (RIEGL, 1984) capaz de encarnar e expressar experiências vivenciadas coletivamente pela população canoense. Outro fator fundamental que atua a favor do caráter monumental da Villa Mimosa é composto pelas personalidades canoenses que ali viveram e cresceram. Entre elas, podemos citar a do Major Geraldo Gilberto Ludwig – que, como prefeito, oficializou a bandeira da cidade em 1979 – e a do médico e antigo prefeito de Gravataí, Victor Hugo Ludwig, um dos principais protagonistas da luta pela emancipação de Canoas 9. Mesmo os fundadores da Villa Mimosa, Frederico Ludwig e Armínda Genuína Kessler, a “Dona Mimosa”, sempre estiveram envolvidos com atividades relacionadas ao desenvolvimento de Canoas. Juntamente com Fernando Amaral Ribeiro, Frederico Ludwig foi responsável pela vinda dos Irmãos lassalistas a Canoas, que fundariam o Instituto São José (na época, escola agrícola e, mais tarde, de ensinos primário e secundário). Dona Mimosa, por sua vez, dedicou-se a atividades da vida religiosa local, sendo a organista da Igreja São Luiz Gonzaga e organizadora do coral que ali se instalou (GRAEBIN, AGOSTINI E FINKLER, 2007). Mais tarde, procurando angariar fundos para a construção da atual Igreja Matriz, ela realizou diversos festivais nos cinemas Porcelo e Vargas, chegando a tomar parte na secretaria e diretoria executiva das obras (cf. PFEIL,1992). Além de grandes personalidades10, Villa Mimosa encarna as relações entre o passado e o futuro da cidade e de seu processo de urbanização, contribuindo à con9 Segundo Antonio Jesus Pfeil, “o ano de 1935 pode ser considerado o marco deflagrador que precipitou Canoas no caminho de sua emancipação, com o inicio, em 25 de março, das primeiras obras de instalação do 3º Regimento. Dois meses depois configurou-se o prestígio da Aeronáutica, com a inauguração da corrente de luz e força, diretamente da Companhia de Energia Elétrica de Porto Alegre, com o apoio do Prefeito de Gravataí, jornalistas e comunidade.” (PFEIL,1992, p. 235). Ainda segundo Pfeil, Victor Hugo Ludwig teria sido influenciado pelo Coronel Ivo Borges, que comandava o 3º regimento, e pelo “clima de Estado Novo”, deflagrado por Getúlio Vargas em 1937. 10 Seria redundante insistir nas diferentes contribuições da família Ludwig para o desenvolvimento de Canoas. Por exemplo, Geraldo Gilberto Ludwig, filho do casal Frederico e Arminda, foi prefeito de Canoas de 1973 a 1979. Durante a sua gestão foram pavimentados 80 km de ruas, houve a modernização da iluminação pública, foi construída a galeria pluvial no bairro Niterói, local no qual os moradores sofriam com constantes alagamentos. Rubem Carlos Ludwig, filho de Victor Hugo Ludwig e Iracema Xavier Ludwig, fez carreira militar no Exército Nacional, chegando ao posto de General. Em 1978, ocupou o cargo de porta-voz do governo Ernesto Geisel (1974-1979). Durante o governo de

solidação daquilo que podemos chamar de “paisagens da memória” de Canoas11. De 1905 a 2010, datas de fundação e tombamento da casa da família Ludwig, a cidade ganhou eletricidade12, uma base aérea13 e passou do status de “cidadedormitório”14 para o de pólo industrial e comercial contando com o segundo maior PIB do Estado do Rio Grande do Sul (IBGE, 2009). Portanto, se a Villa Mimosa é reconhecida coletivamente como um dos símbolos populares da cidade, isso se explica não apenas por sua arquitetura e pela presença política das pessoas que ali moraram nos grandes acontecimentos de Canoas, mas sobretudo em virtude dos laços afetivos entre as paisagens de ontem e hoje que o local é capaz de evocar em virtude de sua continuidade ao longo dos anos. É nesse sentido que podemos afirmar que a Villa Mimosa é um “monumento não-intencional”, no sentido proposto por Alois Riegl (1984), isto é, um lugar ou edificação capaz de encarnar e expressar experiências vivenciadas coletivamente e significadas a partir do presente. Enquanto monumento, a Villa Mimosa “atua sobre a memória”, como diria Françoise Choay, fazendo-a trabalhar “pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente” (CHOAY, 2001, p. 18). 3. O tombamento da Villa Mimosa: uma luta jurídica e civil Pensada e imaginada como monumento, a Villa Mimosa tornou-se objeto de um parecer técnico que viria a delinear os aspectos jurídicos de sua importância sóJoão Figueiredo (1979-1985), foi chamado para ocupar o cargo e Ministro da Educação, onde esteve até 1982. 11 As “paisagens da memória” são imagens de lugares e momentos investidos de afeto e emoção, que se apresentam como marcos a partir dos quais as memórias individual e coletiva se encontram, permitindo a cada grupo de redefinir sua identidade e revitalizar seus próprios percursos históricos (cf. FREITAS E GRAEFF, 2010). 12 Em 1929, “um motor de 3 HP fornecia luz pública e particular à zona urbana, e em maio do 1935 inaugurou-se a corrente de luz e força da Companhia de Energia Elétrica de Porto Alegre” (PENNA, CORBELLINI E GAYESKI, 2004, p. 44). 13 Trata-se da vinda do 3º Regimento de Aviação, hoje o 5º Comando Aéreo Regional, que se instalou na cidade em 1937. 14 “Em relação ao apelido de cidade-dormitório, Armando Würth confirma que ele tinha razão de existir: ‘o custo para morar em Porto Alegre era inviável. Então sob este aspecto Canoas trouxe benefícios para eles, o direito de ter casa própria. Os loteamentos se multiplicaram, e no tempo da moeda relativamente mais estável que passou a ser depois, eles pagavam em cinco ou mais anos as prestações. Tinha gente vindo do interior para Porto Alegre procurando emprego também. Não havia emprego potencial em Canoas que justificasse o número de lotes vendidos.’” (PENNA, CORBELLINI E GAYESKI, 2004, p. 44-45).

cio-cultural. Segundo as pareceristas da Comissão de Patrimônio Histórico de Canoas, “A Casa da Família Ludwig — A Vila Mimosa — é patrimônio de inquestionável importância: no âmbito da cultura arquitetônica, da cidade de Canoas e da sociedade canoense”, sendo portanto indicada para “Tombamento Municipal, pelo símbolo, marca e valor histórico-cultural-afetivo que representa ao Município de Canoas” (GRAEBIN, AGOSTINI E FINKLER, 2007, p. 7). Mais ainda: além da preservação da edificação, os pareceristas ressaltam a importância da proteção da área envoltória do sítio, considerada essencial para preservação do caráter histórico da edificação segundo o decreto-lei n° 25/193715 e pela Carta de Veneza. Assim, segundo o parecer, “Caso ocorra a necessidade de construir novas edificações na área envoltória da Vila Mimosa, somos de parecer que seja respeitada uma área que não comprometa a visibilidade e a integridade da edificação. Salientamos que o aspecto de proteger a visibilidade do bem não tem por único objetivo "poder enxergar” a edificação. Tal proteção, garantida pela legislação, busca permitir o destaque do bem na massa urbana, a manutenção de seus predicados culturais, históricos, arquitetônicos, estéticos e paisagísticos, de forma a assegurar a preservação das características que o identificam como integrante do patrimônio cultural de Canoas” (GRAEBIN, AGOSTINI E FINKLER, 2007, p. 7). Apesar de sua importância histórica e do parecer favorável ao tombamento da Villa Mimosa e de seu entorno, emitido em 2007, o sítio foi objeto de uma disputa civil que acabou o desmembrando em dois lotes. Isso significa que o processo de tombamento, concluído em 29 de maio de 2009, não contemplou as recomendações do parecer histórico em sua totalidade. A fim de compreender o por quê dessa parcialidade, retomemos alguns pontos da disputa: 1. Em 2008, uma empreiteira obtêm junto à Prefeitura de Canoas uma petição para o planejamento de um condomínio a ser edificado no terreno da Villa Mimosa, há alguns metros da casa da família Ludwig. A petição prevê o desmatamento das árvores nativas e exóticas ali existentes; 2. Em março de 2009, uma Ação popular é ajuizada na comarca de Canoas. Organizada por uma ONG e assinada por dois advogados locais é impetrada junto ao Ministério Público, a Ação reivindica o reconhecimento da importân15 O decreto-lei n° 25 de 30 de novembro de 1937 organiza, no Brasil, a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional.

cia do sítio, em especial de seu patrimônio natural, e solicita o impedimento das obras de construção; 3. Alguns dias após a entrada da Ação junto ao Ministério Público, uma liminar é concedida, impedindo a realização de qualquer intervenção ou obra no imóvel Villa Mimosa até que ultimado o processo de tombamento e aprovado o projeto urbanístico e ambiental pela Prefeitura de Canoas. A liminar estabelece ainda que a construtura deveria se comprometer com a preservação da vegetação existente no interior e exterior do prédio histórico, bem como na área onde seria construído o condomínio e, caso necessário fosse a remoção de vegetação, a empresa deveria indenizar os danos ambientais causados na forma sugerida pelo parecer técnico junto ao Fundo Municipal do Meio Ambiente de Canoas no prazo fixado pela SEMPA; 4. Em julho de 2009, a liminar é cassada pelo Tribunal de Justiça do Estado. Aproveitando-se da oportunidade, a construtura inicia a derrubada das árvores e da mata nativa e começa a estabelecer as fundações do futuro condomínio. Segundo a entrevista realizada com uma representante da Promotoria de Justiça Especializada de Canoas, o processo referente à Villa Mimosa foi tratado como um “caso especial” em virtude do interesse de uma grande empreiteira e da repercussão popular. Efetivamente, as discussões sobre o tombamento e a proteção do sítio mobilizaram membros notórios da sociedade civil canoense que, decididos a impedir toda derrubada da mata nativa e contribuir para a efetivação do tombamento da totalidade do imóvel, tomaram parte direta ou indiretamente de uma organização não-governamental chamada “Villa Mimosa”. Criada especialmente para lutar contra o lobby político-econômico instalado durante o segundo quatriênio administração do prefeito Marcos Antônio Ronchetti e mantido durante a gestão seguinte16, a ONG Villa Mimosa se constitui a partir de um sentimento de indignação frente a possibilidade de ver destruída uma parte fundamental do patrimônio ambiental canoense, mas igualmente como uma resposta às promessas não cumpridas do novo gestor muni16 Por lobby, entenda-se um ou vários grupos de pressão agindo no sentido de “influenciar direta ou indiretamente os processos de elaboração, aplicação ou interpretação de medidas legislativas, de normatização e de regulamentação e, mais geralmente, de toda intervenção ou decisão dos poderes públicos” (FARNEL, 1994, p. 12, tradução nossa).

cipal. Segundo os representantes da ONG, o “novo prefeito, Jairo Jorge, não rejeitou os termos contratuais elaborados entre a gestão anterior e a empreiteira. Ele poderia. A gente acreditou que ele iria proteger o patrimônio canoense, mas ele não o fez. E esta foi a primeira de uma série de desilusões que nós tivemos”17. Não obstante o caráter extraordinário da disputa jurídica e da repercussão social em torno da Villa Mimosa, o Ministério Público não fiscalizou o cumprimento das cláusulas processuais18. Se não houve derrubada de árvores nem descumprimento dos termos estabelecidos entre 2008, ano em que foi assinado o termo de ajuste, e 29 de maio de 2009, data efetiva do tombamento da edificação, isso se explica em grande parte pelas ações organizadas pela ONG Villa Mimosa e pelas reportagens do jornal O Timoneiro, de Canoas. No período supracitado, além de passeatas, abaixo-assinados e entradas na mídia, a ONG organizou vigílias noturnas nos arredores do sítio a fim de identificar “qualquer barulho de motoserra”, conforme a expressão de uma das ativistas19. De fato, independentemente da falta de fiscalização, a construtora seguiu os termos da lei, dando início à derrubada das árvores apenas quando o Tribunal de Justiça cassou a liminar. Além da cautela jurídica, a empreiteira procurou se mostrar atenta às solicitações da Prefeitura de Canoas e às pressões da ONG Villa Mimosa. Afinal de contas, o sucesso do empreendimento dependia senão do apoio popular, ao menos da redução das repercussões negativas em torno do caso. Em matéria publicada no Jornal Zero Hora em 19 de março de 2010, o advogado da empresa afirma que sua cliente “seguiu todas as normas ambientais e administrativas para a construção” (ZERO HORA, 2010, p. 6). Segundo ele, após a obtenção da licença junto à Prefeitura, resultado da petição de 2008, a empreiteira teria acordado diversas contrapartidas: “doação” da casa da Família Ludwig para prefeitura; investimentos da ordem de R$ 1 milhão na restauração do imóvel./ e alteração do projeto inicial do condomínio a fim de preservar 251 das 366 árvores existentes no sítio. Em relação à Prefeitura de Canoas, na mesma matéria jornalística que acabamos de citar encontramos algumas declarações que procuram legitimar a decisão 17 Entrevista realizada com membros da ONG Villa Mimosa no dia 30 de março de 2011. 18 Segundo a promotoria, a falta do acompanhamento mais próximo do processo se explicaria pelo corpo reduzido de funcionários trabalhando na Promotoria. 19 Entrevista realizada com membros da ONG Villa Mimosa no dia 30 de março de 2011.

política de desmembrar a Villa Mimosa em dois lotes e autorizar o desmatamento. Segundo a Secretária-Adjunta de Desenvolvimento Urbano de Canoas, todos os projetos que prevêem a realização de empreendimentos passam pela Comissão de Controle Urbanístico (CCU), formada por técnicos de diferentes áreas. “Caso o projeto não infrinja normas do Plano Diretor Urbano Ambiental e do Código de Obras”, afirma a secretária-adjunta, “a proposta recebe aprovação” (ZERO HORA, 2010, p. 6).Por sua vez, o Secretário-Adjunto do Meio Ambiente relata não haver elementos justificando o indeferimento das licenças: “A supressão de parte vegetação foi compensada com o plantio de outras contrapartidas, com base na Lei” (ZERO HORA, 2010, p. 6). No final das contas, o sítio da Villa Mimosa foi desmembrado em dois lotes, um tombado e transferido para a Prefeitura de Canoas e o outro adquirido e transformado pela empreiteira. Os ganhos simbólicos e econômicos desse desmembramento são consideráveis. Para a Prefeitura, a Villa Mimosa representa o primeiro Tombamento Municipal da história da cidade, podendo servir de emblema da política cultural da atual gestão tanto do ponto de vista da proteção do patrimônio histórico quanto do investimento na área cultural a partir de casas e centros de cultura20. Para a empreiteira, o condomínio que será construído ao lado do imóvel tombado ganhará termos de valorização imobiliária e de atratividade. Isso explica por que os representantes da construtora rejeitaram as sugestões de representantes da ONG Villa Mimosa de escolher outros terrenos na cidade21. 4. A Villa Mimosa como símbolo das disputas em torno do patrimônio e do desenvolvimento urbano

20 De acordo com dois arquitetos vinculados à Prefeitura de Canoas e responsáveis pela fiscalização das obras no sítio tombado da Villa Mimosa, a casa da família Ludwig está sendo projetada para abrigar a Casa das Artes de Canoas, onde ocorrerão atividades culturais de diversas ordens (leitura, exposições, educação artística, etc.). 21 Entre os membros da ONG Villa Mimosa, encontra-se representantes do Registro de Imóveis de Canoas, que conhecem bem as zonas mais e menos valorizadas da cidade. De acordo com um deles, haviam terrenos maiores e com características semelhantes na cidade que poderiam servir de local para o condomínio. A diferença fundamental era, segundo ele, a proximidade com o futuro prédio tombado. Nesse sentido, importa ressaltar que o condomínio se chamará “Villa Mimosa”.

A exemplo do caso da Villa Mimosa, o ato de tombamento de um “bem cultu22

ral”

depende de vínculos orgânicos que ele é capaz de estabelecer com um deter-

minado grupo ou sociedade em virtude não de suas características intrínsecas, mas de sua capacidade de servir como “sinal diacrítico das categorias e grupos sociais que venham a representar” (Gonçalves, 2002:23). Mas o caso da Villa Mimosa nos mostra também como um ato de tombamento esta sujeito a pressões, negociações e disputas de ordem jurídica, política e social. No caso da Villa Mimosa, o contexto de tais pressões, negociações e disputas é pautado por relações de força de ordem local que envolvem atores interessados seja no desenvolvimento sócio-econômico da cidade, seja na consolidação de uma política patrimonial ou cultural de Canoas, seja no estabelecimento de bases de luta social pela consideração dos recursos naturais enquanto patrimônio ambiental do município e de seus habitantes. Para fins didáticos, tais atores foram reunidos sob três denominações ou grupos de influência – a Prefeitura, a empreiteira e a ONG Villa Mimosa –, mas é possível avançar a hipótese de que outros grupos e indivíduos participaram do lobby econômico-social supracitado (ou mesmo como membros ativos da comunidade civil ou da administração municipal) sem se impor no primeiro plano das disputas e negociações23. Estejam eles no primeiro ou no segundo plano da luta pela Villa Mimosa, os atores locais devem se conformar a alguns fatores estruturais que definem alguns limites tanto em termos de seu potencial de influência quanto em termos de concepção das relações possíveis entre proteção de bens culturais e naturais, desenvolvimento urbano e investimentos imobiliários. No que tange a concepção de patrimônio, é consenso afirmar há uma “busca memorial” justificando “as ações classificatórias do que preservar e inserir como um elemento da tradição e o que pode ser descartado, nessa economia de passados a gerir” (FERREIRA E HEIDEN, 2009, p.34). Ou, como destaca Marta Anico, “nessa conjuntura pautada pela ausência de referentes de identidade, estabilidade e continuidade, em face de uma ameaça de ruptura e de desa22 Por “bem cultural”, entenda-se toda produção humana que, virtude de seu “valor excepcional do ponto de vista histórico, estético, artístico e/ou científico” (UNESCO, s/d), pode vir a ser definido como patrimônio de um grupo ou sociedade. 23 Se tal hipótese aparece como uma espécie de cauçao epistemologica contra provaveis críticas de nossa abordagem, ela cumpre igualmente uma funçao de instigação de novas pesquisas tanto sobre o caso estudado quanto para novos casos de disputa em torno do patrimônio.

parecimento de recursos culturais, real ou imaginada, produz-se um sentimento nostálgico em relação ao passado, abrindo o caminho ao desenvolvimento de uma indústria da nostalgia em que o passado é resgatado, idealizado, romantizado e não raras vezes inventado, mediante processos que incluem a patrimonialização da cultura” (Anico, 2005:72). Ora, no caso estudado, essa ''indústria da nostalgia'' foi um fator de barganha para a Prefeitura, que procurou evitar o rompimento do contrato estabelecido durante a gestão anterior em nome da promoção e, por que não acrescentar, da criação de um patrimônio histórico-artístico municipal24. Ao mesmo tempo, a empreiteira procurou vincular seu empreendimento aos ganhos simbólicos e econômicos que a proximidade a um imóvel tombado e restaurado pode suscitar25. Quem parece não ter lucrado com a ''indústria da nostalgia'' que estrutura os discursos sobre o patrimônio histórico no Brasil foi a ONG Villa Mimosa. Arquitetando suas ações de influência a partir da bandeira da proteção do meio-ambiente, o grupo não conseguiu vinculá-las ao discurso de patrimonialização. Nesse sentido, divisão do terreno em dois lotes é paradigmático: aceita-se e desfruta-se do tombamento do patrimônio cultural e rejeita-se e devasta-se o patrimônio ambiental. Em outras palavras, a ''retórica da perda'' não produziu os mesmos efeitos de sensibilização em relação ao patrimônio ambiental que costuma suscitar quando se trata de patrimônio histórico e artístico (GONÇALVES, 2002). Por extensão, as ações de influência da ONG Villa Mimosa tiveram menos condições de vingar. Mas isso não é tudo. Afinal, o insucesso da ONG Villa Mimosa não se deve exclusivamente ao fator concepção de patrimônio. A atividade imobiliária e o desen24

Tal decisão se explica facilmente pelo atual contexto das políticas patrimonais no Brasil. A “indústria da nostalgia” não é necessariamente um discurso que se afirma de “cima para baixo”, isto é, como uma forma de proselitismo cultural. Nos estudos realizados por Irlys Alencar F. Barreira, “O discurso da preservação tem características nostálgicas presentes, muitas vezes, na fala dos habitantes. O que a cidade ‘não é mais’ torna-se a tônica de percepções que, muitas vezes, fazem do passado um momento de felicidade perdida” (BARREIRA, 2003, pp. 323-324).. 25 “As características do mercado fundiário/imobiliário para o qual o produto é direcionado constituem um elemento importante na composição do preço final e, portanto, na viabilidade econômica de adoção, por parte do empreendedor, dos parâmetros exigidos pelo licenciamento ambiental. Dito em outros termos, a realização de empreendimentos imobiliários com observância dos critérios exigidos garante um determinado padrão de qualidade ao produto, mas eleva o investimento realizado, encarecendo o produto final. No limite, chega-se ao paradoxo segundo o qual a observância da regulação urbanística e ambiental, no caso da atividade imobiliária, agrega valor ao produto, encarecendo-o e, conseqüentemente, elitizando-o e tornando-o inacessível para os segmentos mais pobres da população. Assim, diferentemente de uma mercadoria produzida em série por uma indústria, o produto final deste processo de licenciamento de parcelamento do solo é o lote e, em última análise, o espaço urbano, que se diferencia especialmente pelos atributos de localização aos quais se atribui uma valoração segundo sua posição na divisão social e econômica do espaço.” (COSTA E PEIXOTO, 2007, p. 325).

volvimento urbano também devem ser tomados em conta como fatores preponderantes para os resultados da disputa. Pensando a partir de Heloísa Costa Soares Mônica Campolina Diniz Peixoto, é preciso considerar que, apesar do ''controle da expansão urbana/metropolitana ser feito com a participação formal do Estado, de acordo com as normas vigentes'', o capital imobiliário continua operando em condições vantajosas diante de outros setores da economia, influenciando e antecipando ''ganhos decorrentes dos mecanismos formadores da renda da terra'' (COSTA E PEIXOTO, 2007, p. 318). Se aceitarmos a ideia segundo a qual o processo de desenvolvimento urbano pode ser articulado ou desarticulado a partir de interesses ligados a atores vinculados ao setor imobiliário e fundiário, a recusa em preservar as árvores e a mata virgem da Villa Mimosa em sua integralidade também deve ser pensada segundo o peso das ações de influência realizados pela empreiteira. A partir dos dados que dispomos, é difícil avaliar o peso das ações da empreiteira na luta pelo terreno da Famĩlia Ludwig. Tudo que podemos dizer é que se trata de um peso superior ao da ONG Villa Mimosa. Nesse sentido, pode-se argumentar que a empreiteira venceu a disputa porque dispunha de um cenário favorável, onde o principal adversário não dispunha de poder de barganha suficiente para mudar o resultado das negociações. Mas e a Prefeitura? Não deveria ter ela agido como árbitra da disputa, uma vez que sua função primordial é a defesa dos interesses da população da cidade? Frente ao caso da Villa Mimosa, tudo leva a crer que ela agiu como árbitra da disputa, agido em nome do interesse da população. Do nosso ponto de vista, o nó da questão não está na função cumprida pela prefeitura, mas na concepção mesmo do interesse da população. Podemos dizer, por exemplo, que a pressão da atividade imobiliária não deixa de compor o interesse da população, ainda que tal pressão esteja ''no centro das principais dificuldades e polêmicas na política de proteção e preservação cultural e ambiental'' (COSTA E PEIXOTO, 2007, p. 240). Ainda com Heloísa Soares e Mônica Peixoto, podemos nos perguntar sobre como impor limites a indústria da construção civil, ''que se constitui em um dos principais mercados para a mão-de-obra mais barata das camadas populares'' (COSTA E PEIXOTO, 2007, p. 240). Assim, ao decidir pelo empreendimento e pelo loteamento do imóvel, os representantes da Prefeitura de Canoas poderiam estar agindo no sentido de contemplar

aquilo que eles entendem por interesse da população: uma cidade em desenvolvimento e capaz de preservar seu patrimônio histórico-ambiental. A análise das ações de influência e da tomada de decisão em torno da ato de desmembramento e tombamento da Villa Mimosa são indícios de como o caso pode funcionar como um símbolo das disputas em torno do patrimônio e do desenvolvimento urbano. Por símbolo, entenda-se uma figura de alguma coisa pouco conhecida ou vaga que serve como fonte de ideias (DURAND, 1964). No caso estudado, são as disputas em torno do patrimônio e do desenvolvimento urbano que podem ser consideradas como pouco conhecidas do público. Enquanto figura dessas lutas, a Villa Mimosa revela ideias que nos parecem fundamentais para a compreensão do contexto das políticas patrimoniais no Brasil, a saber: 1) todo ato de tombamento depende de grupos de interesse disputando e negociando o monopólio econômico e os usos sociais da ocupação do solo urbano26; e 2) as mesmas concepções de patrimônio que favorecem a preservação de um bem cultural podem não favorecer ou mesmo dificultar o reconhecimento do caráter patrimonial de recursos naturais27. Conclusão Ao longo deste artigo, procuramos mostrar como a definição e a celebração de determinados temas e objetos enquanto “bens culturais” resulta não de meras reações de agentes locais às proposições e diretrizes formuladas por organismos e instituições internacionais, mas sobretudo de verdadeiras lutas nos campos das políticas culturais e do desenvolvimento urbano. Tais lutas dependem de fatores de diversas ordens. Em primeiro lugar, vimos que o fato da Villa Mimosa haver testemunhado e abrigado personagens e eventos de importância histórica para o município de Canoas é fundamental para compreendê-la como um “monumento nãointencional” (RIEGL, 1984). O processo de tombamento do sítio se inscreve, portanto, nesse vínculo orgânico com os moradores e a história da cidade. Mas isso não é tudo. Através da apresentação esquemática da luta jurídica e civil em torno do tom26

Conforme, entre outros, DRIS (2006), Um dos fatores explicando o por quê dos conceitos de patrimônio nem sempre facilitarem o reconhecimento o caráter de herança e singularidade dos recursos naturais é a hegemonia dos arquitetos quando se trata de pensar e aplicar as políticas públicas relacionadas ao patrimônio no Brasil (MEIRA, 2005). Nesse sentido, a divisão entre secretarias e ministérios de Meio Ambiente e Cultra é sintomática, apontando como as relações entre patrimônio cultural e patrimônio ambiental seguem percursos distintos em termos de gestão e de tomadas de decisão política.

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bamento da casa e de seu jardim e da análise dos grupos de interesse disputando e negociando os usos sociais do sítio da Villa Mimosa, procuramos argumentar de que maneira, além de critérios técnicos (históricos, arquitetônicos, etc.), um ato de tombamento pode se dar a partir de ações de influência que, no caso da Villa Mimosa, fizeram da preservação do patrimônio edificado uma moeda de troca pela devastação de uma parte significativa do patrimônio natural da cidade de Canoas. A luta em torno da Villa Mimosa trouxe à tona essas questões que podem ser consideradas de interesse para a sociedade canoense e para as políticas patrimoniais no Brasil. Concepções heterogêneas de patrimônio, pressões pela ocupação e usufruto da terra e a ação de grupos de interesse são temas que nem sempre se apresentam de maneira articulada quando se trata de pensar as ações públicas responsável pela defesa e pela proteção de um patrimônio. Afinal de contas, como escreveu bem Gilberto Velho, a escolha e definição do que deve ser protegido, preservado, restaurado, renovado, abandonado ou destruído ''implica necessariamente arbítrio e, em algum nível, exercício do poder.'' (VELHO, 1996, p. 2006). Nesse sentido, a tarefa analítica fundamental não é apontar o dedo para representantes políticos irresponsáveis, para empresários inescrupulosos ou para ativistas românticos, mas compreender como se estruturam e se efetuam esses exercícios de poder cujas repercussões políticas, econômicas e sociais costumam atingir as mais diferentes camadas sociais. Referências ANICO, Marta. “A pós-modernização da cultura: património e museus na contemporaneidade”. Horizontes antropológicos, vol.11, n.23, 2005, pp. 71-86. ASSUNÇÃO, Paulo. O patrimônio. São Paulo: Loyola, 2003. BARREIRA, Irlys Alencar F. “A cidade no fluxo do tempo: invenção do passado e patrimônio”. Sociologias, ano 5, no 9, jan/jun 2003, p. 314-339 COSTA, Heloisa Soares de Moura; PEIXOTO, Mônica Campolina Diniz. Dinâmica imobiliária e regulação ambiental: uma discussão a partir do eixo-sul da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Rev. bras. estud. popul. [online]. 2007, vol.24, n.2, pp. 317-336 D’ARAUJO, Antonio Luiz. “Artes na sociedade colonial”. Revista Magis, n. 24, 1997, pp. 2-20.

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