\"Em seu feitio tradicional, a crítica não faz hoje nenhum sentido\"

July 5, 2017 | Autor: J. de Castro Rocha | Categoria: Critical Theory, Cultural Studies, Literary Criticism, Literary Theory, Media Theory, Press and media history
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"Em seu feitio tradicional, a crítica não faz hoje nenhum sentido"  Categoria: Leitura Publicado: Terça, 09 Junho 2015 13:57 Escrito por Priscilla Campos

Ensaísta e professor de Literatura Comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), João Cezar de Castro Rocha realizou estudos de pós-graduação na Stanford University e na Freie Universität. Entre outros, autor de Machado de Assis: Por uma poética da emulação (prêmio de Crítica e História Literária da Academia Brasileira) e dos recém-lançados Culturas shakespearianas? Teoria Mimética e América Latina e Por uma esquizofrenia produtiva (da prática à teoria). Nesta entrevista concedida à Continente, Castro Rocha comenta o aspecto subjetivo e linguístico presente na crítica literária contemporânea brasileira, o espaço dedicado à veiculação desse gênero textual e afirma que a marginalização do discurso literário deveria ser celebrada.

CONTINENTE: A crítica literária argentina Beatriz Sarlo cunhou um termo, na minha opinião, importante para o debate sobre a crítica literária/jornalismo hoje: guinada subjetiva. Ela define o

conceito como uma “rememoração da experiência e a revalorização da primeira pessoa como ponto de vista”. Temos então, no texto crítico, uma estima pela memória (individual e, também, coletiva). De que maneira tal ideia dialoga com a sua teoria – abordada em Crítica literária; em busca do tempo perdido?– de que “qualquer reflexão contemporânea sobre a literatura, em geral, e os estudos literários, em particular, deve partir da teorização das consequências da centralidade dos meios audiovisuais e digitais na definição da cultura contemporânea”? JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: Na verdade, apesar da grande estima que tenho pelas reflexões de Beatriz Sarlo, devo dizer que a opção de uma guinada subjetiva me parece insuficiente. Explico: a radicalidade da situação contemporânea exige um pensamento que saiba correr riscos, recusando toda forma de facilidade e autoindulgência. Ora, será que esquecemos o sentido subjetivo dos exercícios oitocentistas de leitura de Anatole France? Voltaremos a ler textos ou olhar o mundo para reencontrarmos a imagem especular de uma interioridade narcísica? Será possível que a voga dos selfies terminará por contagiar a prática ensaística? Cada página do ensaio será lida como um selfie de palavras? Prefiro imaginar uma atitude oposta: o texto, o filme, a série de televisão, a música, as artes plásticas, enfim, o mundo importa porque me obriga a sair de meu ensimesmamento; trata-se de um desafio que me revela o que não sei, o que não fui capaz de pensar ou de supor sozinho. Eu tenho tão pouco interesse em mim mesmo que chego a me sentir esgotado pela simples possibilidade de uma guinada subjetiva. Admiro os que se julgam capazes de sustentá-la – não é o meu caso.

Há mais: no fundo, tal guinada subjetiva equivale a renunciar ao aqui e agora, cujo dilema é precisamente a marginalidade da “literatura” num mundo audiovisual e digital. Daí, muitos críticos reagem à perda de prestígio, e, no limite, de legitimidade de sua função, recorrendo a um duplo expediente. De um lado, descobrem-se “escritores”, buscando, na aura do criador, a presença única que deixaram de ter como ensaístas – nesse registro melancólico, a subjetividade redescoberta, e nada proustiana, ocupa o centro do palco, em geral esvaziado. Ao que parece, não lhes ocorre a ideia singela de que a crítica também possa ser criadora – de conceitos, de visão de mundo, de jogos de linguagem. De outro lado, passam a rabiscar linhas sobre temas os mais variados, desde que não tratem mais de literatura, bem entendido. Eis a demonstração plena, embora exaustiva, de como são inespecíficos, portanto, antenados. Como se, em algum momento de sua história multissecular, o discurso literário tivesse sido homogêneo ou singular! Tudo se esclarece na equivalência banal, e por isso mesmo constrangedora: esses discursos confundem, sem sutileza alguma, estudos literários e a prática discursiva que, por comodidade, chamamos “literatura” – assim, nesse singular empobrecedor.

Seria impertinente recordar que, antes da criação da disciplina “estudos literários”, em sua feição moderna, isto é, na Berlim de Wilhelm von Humboldt, em 1809-1810, o discurso literário já possuía uma longuíssima tradição? (Assim diria o crítico literário José Dias.) Seria excessivo sugerir que, mesmo após o colapso dos estudos literários, textos continuarão a ser escritos e apropriados numa miríade de possibilidades? O solipsismo universitário chegará ao ponto de

imaginar-se o mundo mesmo? Improvável mapa borgiano levado a sério pelos partidários da guinada subjetiva!

CONTINENTE: Leyla Perrone-Moisés, em Texto, crítica, escritura, fala sobre a ideia da crítica como simulacro, posta em debate, de fato, aberto a partir do século 19. Nesta época, o “eu” passa a ter existência discursiva, torna-se sujeito enunciado/da enunciação. Essa mudança reflete na literatura como uma quebra de hierarquia entre o ato de escrever e o de ler. O crítico, então, alcança um certo afastamento da sua posição de submissão diante da obra, propagada, com rigor, durante os séculos anteriores. Como você enxerga esse lugar do crítico hoje, no Brasil? A quem o texto crítico se destina? JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: Vamos lá: esclareço minha posição ou a resposta anterior me consagrará como um anacronismo vivo – nas palavras sempre duras de Euclides da Cunha, um Antônio Conselheiro da universidade. Em seu feitio tradicional, a crítica não faz hoje nenhum sentido. Não se trata mais de atribuir valores às obras do momento, segundo normas preestabelecidas – mas, de fato, alguém o ignora? Há alguma novidade nessa constatação, por assim dizer, empírica? Em algum momento, teremos de abandonar o hábito de bater em cachorro morto. O crítico deve abrir caminho ao ensaísta, mas, aqui, não no sentido de uma tediosa subjetividade circular, porém, no sentido de uma espiral, cuja direção se desconhece, mas que leva o crítico invariavelmente para espaços e experiências fora de seu círculo subjetivo.

Os motivos pelos quais se advoga a crise da crítica são pueris e recordam um involuntariamente divertido “positivismo pós-moderno” – nada surpreendente nos tempos que correm. Veja se não tenho alguma razão. É comum escutar-se frases do gênero: “nas atuais condições de fragmentação da experiência, de volatilização de todos os valores, de aceleração da fruição do tempo, etc, a literatura não é mais possível e muito menos a crítica”. Não importa a sofisticação dos argumentos desenvolvidos a partir de premissas similares, pois, nesse caso, o cenário aponta para uma relação simplista de causa e efeito entre sintomas contemporâneos e consequências consideradas necessárias. Os mesmos fervorosos defensores da transgressão das vanguardas nos anos de 1970 e 1980, metamorfoseiam-se, em seus anos outonais, em autênticos funcionários do contemporâneo. Ao fim e ao cabo, se, de fato, o aqui e o agora desfavorecem a literatura e cobrem de ridículo a crítica, haveria atitude mais contestadora do que cultivá-las? A birra como valor epistemológico não valerá uma rodada de boa cerveja? Os críticos renitentes pagarão a conta.

CONTINENTE: Queria falar um pouco sobre a linguagem. O escritor catalão Vila-Matas afirma que uma diferença entre a crítica feita por um escritor e pelo crítico é a preocupação do primeiro com “a técnica da linguagem, mais do que propriamente com a interpretação” da obra.

Ele defende que essa “falta” de abordagem acontece porque é muito difícil escrever a respeito da linguagem. Como você observa esse aspecto do recurso linguístico na crítica literária brasileira contemporânea? JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: A frase é um lugar-comum que não resiste a dois minutos de um exercício apressado de memória. Terá Vila-Matas jamais lido uma única página de Erich Auerbach? Ou de René Girard? Ou de Antonio Candido? Ou de Pedro Henriquez Urena? Ou de Ali Chumacero? Ou de Northrop Frye? Ou de Antonio Cornejo Polar? Ou de Kenneth Burke? Ou de Alfredo Bosi? A lista poderia prosseguir nas ruas do sono, mas basta para caracterizar a pobreza do repertório do escritor catalão. Os críticos que realmente interessam sempre dedicaram seus melhores esforços ao estudo cuidadoso da técnica da linguagem; aliás, a interpretação surge como fruto daquele exame. Se eu me permitisse um momento de guinada subjetiva (você viu? Nunca se deve dizer dessa taça de Malbec...), diria que meus modestos artigos de jornal, reunidos pelo colega Valdir Prigol no livro que agora estou lançando, Por uma esquizofrenia produtiva (da prática à teoria), procuram dar conta precisamente dessa técnica da linguagem. Radicalizemos o questionamento, a fim de expor o limite da formulação de Vila-Matas: como arriscar uma interpretação sem levar em conta a linguagem? Por que dividir a tarefa intelectual e artística em escaninhos tão bem etiquetados? Contudo, não deixa de ser um sintoma divertido que levemos a sério frases como a do escritor catalão. Mais ou menos como acreditar que Gonçalo Tavares seja um escritor criativo. Mais ou menos como fingir que não sabemos que há os que publicam muito mais do que escrevem.

CONTINENTE: O pesquisador Frederico Coelho levanta uma questão interessante sobre como o crítico, talvez, não possa mais apresentar algo novo e sim “organizar de forma inovadora as informações”. Você fala sobre uma crise no esgotamento do formato que atinge a crítica; a morte do jornal como espaço de reflexão escrita, etc. Bem, as duas proposições convergem para uma mesma pergunta: Qual o “novo” espaço que a crítica pode ocupar? Existe um “molde” a ser buscado? JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: Organizar de forma inovadora, informações existentes, não equivale a produzir uma novidade? Teoricamente, só é possível responder negativamente se ainda insistíssemos numa noção substancialista de “novo” – e, sem dúvida, não é o caso de Frederico Coelho. De qualquer modo, reitero: não há mais uma única resposta, pois precisamos aprender a pensar paradoxalmente. Não há um “novo” espaço, porém territórios possíveis para intervenções pontuais: o jornal, o livro, a revista, o blog, o vlog, o Twitter, o Facebook, as listas de endereço eletrônico, a televisão, o rádio, a web, os festivais literários, as casas de saber, as livrarias, os clubes de leitura, etc. Eis o sentido do que tenho proposto: é urgente aprimorar a técnica de uma esquizofrenia produtiva, capaz de lançar mão de registros discursivos tão diversos quanto sejam os lugares de enunciação. Essa é uma lição elementar da arte retórica: em lugar de limitar o exercício crítico ao universo acadêmico, devemos ampliar as fronteiras dos nossos discursos. Numa palavra: aprender a ser poliglota no próprio idioma,

mas sem jamais perder o rigor e a complexidade. (Provavelmente, a pequena revolução que nos resta.)

CONTINENTE: Quatro anos após o lançamento de Crítica literária; em busca do tempo perdido?, como você observa o desenvolvimento da ideia de esquizofrenia produtiva? Como está, hoje, a colaboração entre universidade e imprensa no universo da crítica literária? JOÃO CEZAR DE CASTRO ROCHA: A marginalização do discurso literário deveria ser celebrada. Explico, e não se trata de masoquismo hermenêutico: à literatura sempre se atribuíram funções limitadoras. Grosso modo, até o século XVIII, ela foi visto como locus privilegiado para pensar a condição humana; no século XIX, ela foi confundida com a expressão da nacionalidade; no século XX, nos então poderosos departamentos de teoria da literatura, ela foi reduzida ao eterno retorno da “literariedade”.

O atual “desinteresse” pelo discurso literário inaugura, potencialmente, um momento de liberdade, no qual podemos arriscar hipóteses e, simplesmente, cometer erros – e, ainda assim, seguir inventando novas conjecturas. Sinal definitivo dos tempos: na época das vacas gordas da literariedade, do estranhamento, do dominante, e outros que tais, os críticos afirmavam sua identidade com a alegria e a segurança dos que recebem um holerite recheado no final do mês, ainda que fosse estreita a margem de liberdade para caminhar com os próprios pés. Hoje, quando todos os caminhos conduzem aos versos de Antonio Machado, os mesmos críticos preferem colocar-se à sombra das tendências do momento. Contudo, por que não pensar a contrapelo? Por que não aproveitar a marginalização do discurso literário para pesquisar aspectos até então negligenciados? A atualização permanente só é um valor absoluto para os telefones de última geração; aliás, expressão que se anula a si mesma a cada seis meses. Termino com uma nota irresponsavelmente otimista: a colaboração entre universidade e imprensa conhece um vigor que há muito se havia perdido. Caso contrário, caro leitor, como explicar esta longa entrevista que você acabou de ler?

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