Em tempo de temporais: o caso do Furadouro (NW de Portugal) como exemplo de (in)gestão do litoral

June 24, 2017 | Autor: João Dias | Categoria: Coastal Management, Storms
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Bastos, M.R.; Pereira, O.N.A.; Dias, J.A, (2015) - em tempo de temporais: o caso do Furadouro (NW de Portugal) como exemplo de (in)gestão do litoral. In: Davis Pereira de Paula & J. Alveirinho Dias (orgs.), Ressacas do Mar / Temporais e Gestão Costeira, pp.203-244, Editora Premius, Fortaleza, CE, Brasil. ISBN: 978-85-7924-440-7

Capítulo

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EM TEMPO DE TEMPORAIS: O CASO DO FURADOURO (NW DE PORTUGAL) COMO EXEMPLO DE (IN) GESTÃO DO LITORAL

Maria Rosário Bastos1; Olegário Nelson Azevedo Pereira2; João Alveirinho Dias3

1. Introdução A localidade do Furadouro pertence atualmente ao concelho de Ovar, onde também se encontra a zona setentrional da laguna de Aveiro. O concelho apresenta uma área de 160,64 Km2 com aproximadamente 20 Km de comprimento e 15 de largura, situando-se no litoral Norte do distrito de Aveiro, na região do Baixo Vouga (LAMY, Vol.I, 2001, p. 15). Depto. de Ciências Sociais e de Gestão, Área de História, Universidade Aberta – Delegação do Porto - Portugal, Centro de Estudos da População, Economia e Sociedade (CEPESE), Porto – Portugal, [email protected] 2 Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Meio Ambiente pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPG-MA / UERJ) & Bolsista da FAPERJ (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) procedente do convénio FAPERJ / CEPESE (Centro de Estudos da População Economia e Sociedade, Porto, Portugal). Email: [email protected] 3 Centro de Investigação Marinha e Ambiental (CIMA) – Faro, Portugal [email protected] @ Autor de correspondência: 1

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Figura 1 - Área de Estudo.

A freguesia de Ovar ter-se-á constituído através da junção de diversas vilas, sendo as mais importantes a vila homônima e Cabanões (OLIVEIRA, 1967, p. 19). Eclesiasticamente, o nome Ovar substituiria o de Cabanões a partir do século XVII (LAMY, Vol.I, 2001, pp. 86-87). Entre os séculos XIII e XV era Cabanões a principal designação da vila e do concelho, porém, a partir da centúria de quinhentos, o vocábulo Ovar eclipsaria aquela denominação (LAMY, Vol. I, 2001, p. 81). Tais conjunturas devem-se à importância do núcleo populacional e à paulatina concentração

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em Ovar, ao longo da primeira metade do século XV, dos serviços administrativos e religiosos de Cabanões (LAMY, Vol. I, 2001, pp. 100-101). Pese embora existam referências em 1283 à restinga arenosa em desenvolvimento onde se implementaria a localidade do Furadouro, denominada gelfa (OLIVEIRA, 1967, p. 67. LAMY, Vol. I, 2001, p. 69. BASTOS; DIAS, 2012, p. 246), o documento mais antigo onde se noticia este topônimo data de 1354. Informa que os domínios de Cabanões, se estendiam desde aí até à foz do rio Vouga (LARANJEIRA, 1984, p. 65. LAMY, Vol.I, 2001, p. 69). O Furadouro era, portanto, administrativamente adstrito a Cabanões, inserindo-se nos limites do seu domínio, afigurando a sua fronteira administrativa a Norte. Isto é importante, na medida em que a localidade nos é apresentada por alguns autores como a primeira colónia de pescadores de Ovar (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 11). Embora a tardia menção nos diplomas coevos, houve uma anterior ocupação da área em apreço, não em termos de fixação populacional, mas antes, como local explorado pela população da região. Para tal situação contribuiu a geodinâmica costeira ocorrida na área, resultando na formação da restinga. Seria nesta onde despontaria o Furadouro, local inexistente até essas alterações se iniciarem e a mesma restinga se ter formado, começando a sua exploração. Apesar do estabelecimento populacional na região se apresentar bastante anterior às primeiras referências documentais conhecidas (OLIVEIRA, 1967, pp. 12-19), os primeiros diplomas históricos que seguramente se referem às vilas de Cabanões e Ovar são do século XI. No entanto, através da evolução onomástica e do adiantado fracionamento das suas propriedades, é possível supor um povoamento bastante anterior da área. Pese embora

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existam dúvidas relativamente à sua datação (Cf. LAMY, Vol.I, 2001, pp. 39-40), reconhecendo-se como o mais antigo diploma referente a Ovar, o datado do ano 922, onde aparece referido o porto de Obal (P. M.H., Diplomata et Chartae, doc. 25), verificamos desde logo que a região em tempos medievos pertencia ao litoral Atlântico, situação completamente diferente do presente. O posicionamento geográfico de Ovar, e o fato de, como se verá, a pesca representar uma importante atividade ao longo da História do Furadouro, leva-nos à necessidade de nos inteirarmos relativamente à situação geomorfológica coeva nos seus entornos. O topônimo (Furadouro) terá surgido devido à existência de uma barra intermitente (OLIVEIRA, 1967, p. 170). Supõe-se a presença, nesta área, de um corpo hídrico (credivelmente integrante do que na atualidade é a Lagoa de Aveiro) que frequentemente a furasse, restabelecendo provisoriamente a sua comunicação com o mar (LAMY, Vol.I, 2001, p. 72), isto é, pressupõe-se a existência de uma barra cortando a restinga. É-nos assim indispensável a análise do setor costeiro onde se insere Ovar (e consequentemente o Furadouro) para melhor se contextualizar tanto a ocupação humana e a exploração do meio, quanto as vicissitudes enfrentadas pela população no que respeita aos impactes de tais modificações.

2. Breve História do Furadouro 2.1 A geodinâmica costeira e o advento do Furadouro O traçado costeiro medieval na região em estudo apresentava-se com uma configuração diferente da atual (MARTINS, 1947, p. 6 e 7. BASTOS, 2006), correspondendo a uma grande baía onde desaguava o rio Vouga. A área hoje ocupada pela laguna de Aveiro correspondia, na transição do primeiro para o segundo milênio, a uma grande baía situada entre

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o norte de Ovar (Cabanões, à época) e as proximidades do Cabo Mondego, existindo uma pequena restinga arenosa enraizada a sul de Espinho. Progressivamente, esta restinga foi crescendo para o sul, confinando a grande baía aludida e, consequentemente, formando a Laguna de Aveiro, que apenas viria a ficar concluída no século XIX (e.g., SOUTO, 1923. BASTOS et al., 2012). O crescimento da referida restinga só foi possível devido à existência de uma deriva litoral que envolvia grandes volumes de areias, o que pressupõe intenso abastecimento sedimentar. Na origem de tão grande fornecimento de areias estão, por certo, causas naturais (designadamente variações climáticas, oscilações do nível médio do mar e tectônica), as quais foram fortemente incrementadas por ações antrópicas, de onde ressalta a sobreocupação da região Entre-Douro-e-Minho nos séculos X e XI. Poder-se-ia mesmo dizer que a restinga (e a laguna por ela definida) foram, em muito, construções antrópicas indiretas. Pese embora a exploração da região do Vouga já se verifique no decorrer do século X, especialmente no que concerne à atividade salineira e à pesca, a partir da reconquista da cidade de Coimbra em 1064, e da consequente delimitação fronteiriça, a pacificação do território proporcionou a fixação dos excedentes populacionais até então concentrados no Entre Douro e Minho. Este fluxo migratório ter-se-á devido não só à aludida situação de pacificação, mas também pelas potencialidades dos novos ambientes costeiros abrigados que se encontravam em plena constituição (DIAS et al., 2012, pp. 220-225. Cf. BASTOS, 2006, pp. 59-135). Trata-se, de fato, da formação da lagoa de Ovil e do sistema lagunar de Aveiro. Não obstante a anterior progressão da restinga arenosa da qual resultou a formação da lagoa de Ovil se tivesse iniciado a partir de Espinho, o sistema lagunar de Aveiro implementar-se-ia

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numa vasta chanfradura onde desaguava o rio Vouga, junto duma zona atualmente chamada de Bico da Murtosa. A mesma chanfradura encontrava-se inserida numa grande baía, cujo limite meridional se situava junto ao cabo Mondego e o limite setentrional junto a Cabanões. Este dado é relevante pois indica-nos que a evolução da aludida restinga arenosa, delimitadora do sistema lagunar de Aveiro, se terá iniciado no limite sul da lagoa de Ovil (BASTOS, 2006, pp. 32-39). Por outro lado, leva-nos a perceber que no diploma de 1354, ao ser referido o limite sul do domínio de Cabanões, aludia-se a uma área que se estendia até ao atual concelho da Murtosa, onde como se viu, desaguava o rio Vouga. Interessa-nos particularmente a sua evolução, pois os limites dos domínios de Ovar (em que se integra o Furadouro) a acompanharam (OLIVEIRA, 1967, p. 76. LAMY, Vol.I, 2001, p. 69). A sua expansão para sul da lagoa de Ovil e a aproximação à região de Ovar avaliam-se através de alguns dados históricos que sustentam tal opinião. Refira-se o já aludido diploma referente ao porto de Obal, porto que seria marítimo (BASTOS; DIAS, 2002, p. 114). Se a sua datação for realmente do ano 922, poder-se-á conjecturar a existência de uma barra em frente a essa região. No entanto, caso a esse documento não se atribuam elementos comprovativos da datação referida, sustenta-o a existência de marinhas de sal em Válega (OLIVEIRA, 1967, p. 60). Confirma-se, assim, a situação evolutiva da restinga arenosa, uma vez que a exploração salinífera e a existência de uma área portuária pressupunham a chegada de águas marinhas a essa localidade e, simultaneamente, um ambiente relativamente calmo, o que lhe seria conferido pela zona de sombra da dita restinga que, difratando as ondas oceânicas incidentes, fazia com que estas atacassem este litoral já com grande parte da energia dissipada (BASTOS, 2006, p. 39).

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A restinga ao século XI terá permanecido a norte de Ovar, pois os diplomas coevos mencionam as localidades de Cabanões e Vilar localizadas junto do mar. No século XII situar-se-ia já na zona da Torreira, onde permanecerá ao longo da centúria seguinte. A intensa exploração de sal observável para tal cronologia na região costeira entre Ovar e Vagos, sustentam a hipótese do cordão arenoso se situar nessa área geográfica, oferecendo a proteção do impacte direto do oceano, imprescindível a essa exploração. No entanto também é observável, pela formação de ilhas, o início de assoreamento do golfo anteriormente referido onde se desenvolveria o sistema lagunar. Entre os séculos XIII e XV, o cordão arenoso pouco progrediria para sul, chegando, na última centúria referida, à zona de S. Jacinto. Tal situação deve-se à conjuntura da época que desincentivaria as atividades antrópicas, até à data contributo essencial na questão da deposição de sedimentos fluviais transportados pelo mar. A progressão continuaria nos séculos subsequentes, atingindo no século XVIII, a zona de Mira (BASTOS, 2006, pp. 41-55). Com a drástica redução da circulação lagunar e a quase inexistência de trocas hídricas com o oceano, o assoreamento foi fortemente incrementado. Grande parte da área lagunar transforma-se em zonas pantanosas. As atividades portuárias, bem como a salinicultura e outras atividades, reduzem-se a um mínimo. Toda a região se torna muito insalubre, designadamente com elevada incidência de malária e outras doenças. Este conjunto de problemas só começaria a ser revertido em 1808, com a abertura de uma barra artificial frente a Aveiro, a qual propiciou, de novo, a intensa circulação lagunar e as trocas hídricas com o oceano (BASTOS; DIAS, 2012, p. 246).

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Figura 2 – Evolução do litoral da Laguna de Aveiro.

2.2 A exploração do meio O desenvolvimento da restinga arenosa propiciaria uma profícua exploração do meio por parte da população de Ovar. De entre as atividades exercidas, a agricultura era bastante remota e a mais importante (OLIVEIRA, 1967, p. 71. Cf. BASTOS, 2006, pp. 120-130). O sal, até ao início de trezentos, também teria um importante peso econômico e social na região (BASTOS, 2006, pp. 157-158). No entanto, igualmente a pesca desempenharia uma importante atividade. Numa primeira fase como complemento econômico à agro-pecuária e à produção e comércio de sal (BASTOS, 2006, p. 186) e numa fase subsequente, com o declínio da salicultura, tornando-se uma atividade preponderante (OLIVEIRA, 1967, p. 110-111. BASTOS; DIAS, 2002, p. 119). 2.2.1 - O sal A produtividade salinífera em Ovar foi evoluindo, mercê do desenvolvimento da restinga arenosa, atingindo o seu apogeu nos séculos XII e XIII. São diversos os exemplos de tal evolução

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de produtividade, sendo a localidade de Cabanões um importante centro gerador de sal (OLIVEIRA, 1967, pp. 64-67. LAMY, Vol.I, 2001, pp. 50-53. BASTOS, 2006, pp. 154-155. BASTOS, 2009, pp. 34-35). De qualquer forma, o crescimento da restinga para sul e o progressivo assoreamento da região promoveriam o seu declínio. Deste aspecto nos chama atenção Miguel de Oliveira ao referir que Tinha assim continuado a progressão [da restinga] para sul, dilatando-se pela faixa litoral os termos de Cabanões, ao mesmo passo que se extinguia a norte a exploração salineira (OLIVEIRA, 1967, p. 62.). A partir de 1315 são inexistentes as referências documentais a salinas de Ovar (OLIVEIRA, 1967, p. 66). As referidas posteriormente, entre os séculos XV e XVII, reportam-se a salinas existentes a sul, implementadas à medida que a restinga foi aumentando o domínio territorial de Ovar (LAMY, Vol.I, 2001, pp. 51-52). 2.2.2 A criação pecuária na gelfa A primeira referência à gelfa (restinga) data de 1283. Informa o documento que pertencia ao termo de Cabanões e a aforava a partir de então um particular, para a utilizar como terreno de pasto para coelhos e gados. O locatário seguinte foi o mosteiro de Grijó. Pelo mesmo valor pago pelo anterior possessor (5 libras anuais) passou a usufruir da restinga para pasto de numerosos e diversos tipos de gado (OLIVEIRA, 1967, p. 77. LAMY, Vol.I, 2001, p. 69. BASTOS; DIAS, 2012, p. 246). O valor inalterado, e a sua comparação com outros montantes estabelecidos à época no aforamento de marinhas de sal, revelam uma baixa valorização patrimonial do território (BASTOS; DIAS, 2012, p. 246). No século XIV (1354), a restinga era já considerada logradouro comum e as gentes de Ovar levavam os seus gados a pascer no local,

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tendo sido necessária a intervenção régia e um acordo que dividiria as pastagens e o gado entre o mosteiro e os invasores (OLIVEIRA, 1967, pp. 78-80. LAMY, Vol.I, 2001, p. 69. BASTOS; DIAS, 2012, p. 246) No ano seguinte o mosteiro de Grijó foi obrigado a pagar os foros em atraso devido à pestilência que teria assolado a região (Cf. OLIVEIRA, 1967, pp. 121-123), 35 libras, o correspondente a 7 anos, portanto, uma divida remontando a 1348 (OLIVEIRA, 1967, p. 77. LAMY, Vol.I, 2001, p. 69). A indicação de pastagens na gelfa termina aqui. Miguel de Oliveira informa que a faixa litoral veio a mudar de aspecto e os gados tiveram de procurar outro campo de pastagem (OLIVEIRA, 1967, p. 77). Tal condição poderá resultar do paulatino incremento da atividade piscatória marítima nessa região costeira, impedindo assim os gados de continuarem a usufruir dos pastos. Até 1835, ano em que é desanexada a praia da Torreira, e 1855, quando se desanexam as restantes zonas costeiras a sul, a gelfa sempre fora pertença administrativa de Ovar. Os concelhos fronteiros à restinga, até então, nunca haviam reivindicado a posse desse território uma vez que era considerado improdutivo e a sua ocupação não consistia em povoações fixas. Compunha-se de palheiros (Cf. LARANJEIRA, 1984, pp. 143-147. LAMY, Vol.I, 2001, pp. 294-297), infraestruturas ligadas à atividade piscatória, utilizadas na altura da safra da sardinha como habitação secundária dos pescadores e na época de Inverno, quando não se pescava na costa, aproveitadas para guardar a utensilagem. Porém, como se verá, o incremento piscatório a partir do século XVIII e os consequentes tributos arrecadados às companhas de pesca pelo concelho de Ovar, ditariam tal desfecho (LAMY, 2001, Vol. I, pp. 458-459).

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2.2.3 A Pesca O pescado foi um recurso natural aproveitado desde cedo pela população da região de Ovar. Os autores que se debruçaram sobre a questão piscatória afirmaram a exiguidade de informações a si alusivas em cronologias mais recuadas (OLIVEIRA, 1967, p. 67. BASTOS, 2006, p. 185. FERREIRA, 2008, pp. 160-161). Pese embora tal situação, já se descobre a prática da pesca, tanto fluvial quanto marítima, sendo a segunda tipologia mais rentável economicamente (COELHO, 1983, p. 267. MATTOSO et al, 1989, pp 88-90. BASTOS, 2006, pp. 195-196.). Neste contexto, desde cedo se exercem na região. Debrucemo-nos na pesca de mar pois é a que mais interessa para o caso do Furadouro. A faina marítima foi, desde cedo, potenciadora de aproximação populacional ao litoral (SAMPAIO, 1979, pp. 60-73. MARREIROS, 1996, p. 443). Não existindo o porto de Obal do século X, confirma-a, no século XI, a referência a um porto em Cabanões (BASTOS, 2006, p. 194). Nas Inquirições de 1251, já se depreende o exercício da pesca marítima, uma vez que o imposto sobre o pescado só era cobrado nos dias cujas condições permitissem a ida ao mar. Em 1284 as Inquirições de D. Dinis confirmam esse tipo de pesca, pois o tributo era imposto a cada pinaça chegada do mar e reservava-se para a coroa o pescado real, nomeadamente as baleias (BASTOS, 2006, pp. 195-196). No século XV comprova-se a continuidade da faina uma vez que as chancelarias régias registam vários oficiais ligados à cobrança da tributação sobre o pescado (OLIVEIRA, 1967, pp. 151-152. LAMY, Vol. I, 2001, p. 76). A captura de cetáceos, registada desde 1284, demonstra claramente a pesca no mar, pois, nem se pode facilmente admitir a vinda de baleias a uma ria, embora diferente da actual e com largas entradas marítimas (OLIVEIRA, 1967, p. 68). Já a partir

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do século XIX, houve vários casos de cetáceos arrojados à costa, sendo a sua carne e óleo fruídos pela população ou pescadores (LARANJEIRA, 1984, pp. 70-75). O Furadouro seria, neste contexto de pesca no mar, a primeira colónia de pescadores de Ovar (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 11), afirmando Miguel de Oliveira que por distar 4 Km da vila, era o lugar mais próximo para os pescadores de Ovar exercitarem as suas artes, quando a abundância de sardinha os convidou a intensificar a pesca marítima. Questiona, porém, se a pesca marítima já estaria organizada (OLIVEIRA, 1967, pp. 170-171). Ora, tendo em conta a prática da mesma atividade na centúria de duzentos em Cabanões, acrescendo o fato das águas que bordejavam o litoral de Ovar apresentarem condições perfeitas para pelágicos, nomeadamente as sardinhas (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 12), quer-nos parecer que a pesca no Furadouro já estaria perfeitamente estabelecida antes da primeira referência documental alusiva à captura dessa espécie piscícola, somente em 1501 (OLIVEIRA, 1967, p. 68. LAMY, RODRIGUES; 2000, p. 12). É a partir dessa altura que podemos seguramente observar uma ocupação e utilização da restinga para a prática piscatória (BASTOS; DIAS, 2012, p. 246). Note-se porém, que na região de Aveiro a arte xávega e a captura de sardinha remontaria a tempos anteriores, uma vez que no apuramento das vintenas do mar em 1443, se revelam embarcações chamadas de enxaveguas e sardinheiras (Milenário de Aveiro, Vol. I, doc. XCVIII, p. 191). No Furadouro a conexão das águas marítimas com as lagunares já não acontecia no século XIV (OLIVEIRA, 1967, p. 169). Devido à evolução da restinga para sul, proporcionou-se o aceleramento da formação de canais no interior da laguna, estando definida nesse século a veia de Ovar (OLIVEIRA, 1967, pp. 61-62). Não será assim de admirar que os pescadores a partir do Furadouro praticassem a pesca marítima, nomeadamente da sardinha, e exercessem, como os de Aveiro, a arte xávega.

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2.3 Pinhal de Ovar, bastião contra a invasão de areias O litoral de Ovar, fruto das condições geomorfológicas, era baixo e arenoso. Esta configuração acarretava um enorme problema para as povoações. A força do mar, as suas ondas, impeliam continuamente areia para terra. Posteriormente a força do vento transportava-as para o interior a distâncias consideráveis, pondo em causa a produtividade dos terrenos agrícolas dos povoados confinantes com a costa. Por tal motivo era necessária a tomada de alguma medida que evitasse, ou ao menos protelasse, essa situação. Decidiu-se então iniciar a plantação de vegetação apropriada para a estabilização das dunas, recorrendo-se ao pinheiro. Pelo menos desde 1725, embora outros autores apontem o início de sementeira em 1623 (LARANJEIRA, 1984, p. 66), e até 1887, a população foi semeando pinhais a norte e poente de Ovar. Designado por tapagem, estrumada, ou monte municipal, foi-se formando uma extensa região arbórea (LAMY, 2001, Vol. I, pp. 145-146). A ação direccionada para a resolução do problema da invasão de areias, aumentou paulatinamente a área dos pinhais, não obstante ao longo dos tempos, houvesse zonas florestadas na região, onde os habitantes recolhiam madeira para a construção das suas habitações (e não só), bem como dos palheiros construídos no areal, para alimentação de gados e para outras necessidades (supomos, por exemplo, para os utensílios de pesca: Cf. PEREIRA, 2012, p. 52). São inúmeras as referências à recolha de madeira ou outros elementos vegetais nas Inquirições régias, designando-se para a Idade Média a estromeira, correspondendo possivelmente à estrumada (OLIVEIRA, 1967, passim). Os pescadores tinham consciência da importância dos pinhais, revoltando-se em 1804 contra a intenção de aforamento

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da sua metade pelo alcaide e escrivão das sisas de Santa Maria da Feira. No ano seguinte dá-se a declaração de pertença em favor do concelho de Ovar, tendo-se proibido o seu aforamento (LAMY, 2001, Vol. I, p. 146, 230). O concelho tomaria então medidas para proteger esse espaço florestado, nomeando-se guardas e vigilantes para o proteger de incúrias e tratar da sua manutenção. Posteriormente legislarse-ia no sentido da sua protecção, impondo-se pesadas penas a quem danificasse ou se aproveitasse das condições ofertadas pelo pinhal. Defendeu-se igualmente o território florestado de usurpações feitas por proprietários de terrenos consigo confinantes. Para as despesas inerentes à sua expansão e manutenção, disponibilizou-se o chamado real de areia em cada quartilho de vinho vendido em Ovar e seu termo. As arrematações que se seguiram ao longo dos tempos revelam os estipêndios gastos no pinhal, bastante elevados à época e demonstrativos da vontade da população em defender os territórios costeiros da deposição de areias. Pese embora a vontade da população e das autoridades civis neste projeto, com o crescimento da urbe e a necessidade de novas infraestruturas, foi-se progressivamente destruindo o pinhal. Em 1884 são expropriados mais de 16 mil metros para a construção de uma estrada. Pelo ano de 1886 restava ao pinhal cerca de 8 Km de comprimento e 2 a 3 de largura. Em 1893 vendeu-se o seu primeiro talhão e até 1906 destruir-se-ia por completo o labor de quase dois séculos duma simbiose entre o Homem e a Natureza (LAMY, 2001, Vol. I, pp. 146-149. LAMY, 2001, Vol. II, pp. 216-220). A rearborização do pinhal seria novamente implementada entre os anos de 1920 a 1938. A câmara de Ovar entendia a necessidade de tal projeto pelos dividendos que se poderiam vir a retirar de uma área agora constituída de terrenos arenosos

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e incultos, mas também pela premente necessidade da fixação de areias. Dessa forma e com o apoio do estado, através do Conselho Superior de Agricultura, procedeu-se à plantação de pinheiro bravo (LAMY, 2001, Vol. III, pp. 96-98).

3. Intensificação da ocupação antrópica A intensificação da ocupação antrópica no Furadouro está indelevelmente marcada por duas circunstâncias: o aumento do pendor das pescas e o turismo. 3.1 A colonização do litoral pelos pescadores de Ovar e a potencialização piscatória no Furadouro Embora possamos equacionar o exercício da pesca marítima no Furadouro antes do século XVI, na verdade e como referimos, só a partir de 1501 se pode comprovar documentalmente tal condição (OLIVEIRA, 1967, p. 68. LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 12). Apesar de nesta data ainda se enunciar o aportar de embarcações no porto de Ovar, os pescadores já teriam adaptado os chinchorros (arte de pesca de arrasto utilizando-se pequenos barcos) utilizados na laguna, à pesca marítima. Insistimos que a par desta técnica piscatória também se empregasse a arte xávega desde tempos mais recuados. A partir do Furadouro, os pescadores de Ovar atingiriam diversos pontos costeiros. Antes de 1549 já teriam estendido a sua área de atuação na restinga para sul, designadamente para a zona da Torreira e São Jacinto (OLIVEIRA, 1967, p. 173. LAMY, 2001, Vol. I, p. 85. LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 13). Por essa altura igualmente marcavam presença na região de Aveiro (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 13). A partir do ano 1600 confirmase a existência de quatro companhas do tipo cooperativista

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rudimentar. Nelas se dedicavam à faina cerca de duzentos homens (OLIVEIRA, 1967, pp. 171-172. LARANJEIRA, 1984, p. 65. LAMY, 2001, Vol. I, p. 81. LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 12). O número de indivíduos e a autorização de abertura de um açougue para os pescadores em 1615, revelam dedicação extrema à faina. Como regressavam das colónias piscatórias a Ovar somente ao fim de semana, é-lhes concedida autorização para tal empreendimento (LARANJEIRA, 1984, p. 66. LAMY, 2001, Vol. I, p. 111). O raio de ação dos pescadores de Ovar nos finais do século XVII, inícios de XVIII era já muitíssimo considerável, identificando-se homens dessa proveniência em Matosinhos, Vila do Conde e Póvoa de Varzim (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 14. LAMY, 2001, Vol. I, p. 126). No decorrer do século XVIII também se verifica a sua presença a pescar no rio Douro e no entorno marítimo da cidade do Porto. Equaciona-se a probabilidade de terem fundado o lugar de Afurada, povoação piscatória na margem desse curso fluvial (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 15. LAMY, 2001, Vol. I, pp. 149-150). Não concordamos com tal opinião pois em 1360 a pesca já se exercia nessa localidade (PEREIRA, 2012, p. 50). Certa é a fundação da cidade de Espinho por estes Homens de Ovar (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 15. LAMY, 2001, Vol. I, p. 152-153). Já na segunda metade do século XIX a zona costeira de Paramos, na cidade do Porto, seria explorada por estes pescadores (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 33. LAMY, 2001, Vol. I, pp. 405-406). Mas não foi somente a deslocação para sul, ao longo da restinga, ou para Norte, ao longo da costa do Entre Douro e Minho, que pautou a itinerância dos pescadores. Na segunda metade do século XVIII constata-se a sua presença a sul do rio Tejo,

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nomeadamente na Costa da Caparica (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 19. LAMY, 2001, Vol. I, p. 190). Nesse curso fluvial dedicavam-se no século seguinte à pesca do sável após terminar a época da sardinha (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 33. LAMY, 2001, Vol. I, p. 294). A sua chegada à costa Algarvia (Olhão) em 1774 também é equacionada (LAMY; RODRIGUES, 2000, pp. 19-20. LAMY, 2001, Vol. I, p. 191). A pesca da sardinha moveu por quase toda a costa portuguesa estes Homens e as suas artes. Uma vez terminada a altura da captura dessa espécie, deslocavamse para os cursos fluviais procurando o sável, ou então regressavam a Ovar. Por tais circunstâncias o Furadouro tornava-se uma zona deserta pois, verdadeiramente, ninguém lá residia (OLIVEIRA, 1967, p. 177. LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 19). Por tudo o que ficou exposto podemos concluir que, pelo menos até meados do século XVIII, a ocupação do Furadouro era pequena e sazonal. Essa circunstância fica atestada na ausência de qualquer menção específica ao Furadouro nas Memórias Paroquiais de 1758 (Inquérito de âmbito nacional com vista à elaboração de um “cadastro” do Reino, do ponto de vista geográfico, demográfico, histórico, econômico, e administrativo, para além da questão dos estragos provocados pelo terramoto de 1 de Novembro de 1755). Quando é referida a freguesia de S. Cristovão de Ovar apenas se refere: “Meia légua distante da vila está a costa do mar. É brava e sem enseada nem pedra. Nesta lançam os moradores em alguns dias do Verão quando estão sossegadas as suas ondas as redes de arrasto, de que usam e com mais abundância pescam sardinhas” (http:// digitarq.dgarq.gov.pt. Cod. de Referência Pt-Tt-Mprq/26/45).

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Toda esta dinâmica piscatória ao longo da costa portuguesa a partir do Furadouro tornou-se mais pujante a partir de 1776, quando é aí instalada uma fábrica de conserva de sardinha e extração de óleo de peixe. A sua implementação deveu-se ao francês João Pedro Mijoule que juntamente com uns Catalães, diz-se, teria implementado a arte xávega na região. Pelo sugerido em ponto anterior, julgamos que tal não corresponda totalmente à realidade. Acreditamos não na introdução, mas no incremento dessa arte, presente desde o século XV. Como quer que seja, esta fábrica de João Pedro Mijoule terá tido forte impacto não só ao nível local como nacional, ao ponto da rainha D. Maria I, a 1 de abril de 1791, ter isentado os pescadores de Ovar do serviço militar, situação que veio a ser confirmada pela provisão liberal de 11 de Fevereiro de 1821 (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 25). Verifica-se, então, um acentuado desenvolvimento da pesca no Furadouro. Para o efeito, não terá sido despiciendo o Decreto de 6 de Novembro de 1830 que, em pleno fervor liberal, faz abolir os direitos sobre todas as pescarias, expressando: “Ficão de hoje em diante abolidos todos os direitos, contribuições, dizimas, gabellas ou imposições, debaixo de qualquer nome, titulo ou pretexto, com que até agora se cobravam, ou exigiam do peixe pescado em Barcos ou Navios portuguezes, por companhias ou tripulação portugueza. A disposição d’este artigo comprehende todo o peixe pescado nos mares das costas dos dominios portuguezes, como o que fôr pescado do mar largo, ou em pescarias longinquas, ou nas costas pertencentes a qualquer outro estado” (Decreto de 6 de Novembro de 1830. In Colecções de Leis sobre a pesca desde Março de 1552 até Janeiro de 1891. pp. 75-81).

A própria atividade da pesca feita coletivamente (companhas) passou a ser objeto de cadastro e prorrogativas específicas. Assim:

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“Os mestres e companhas dos barcos de pescaria, que forem matriculados e com effeito se occuparem a maior parte do anno no exercicio da pescaria, serão isentos do recrutamento para tropa de linha, ou milicias, de todo o serviço de ordenanças, de todos os encargos pessoaes do concelho” (Decreto de 6 de Novembro de 1830. In Colecções de Leis sobre a pesca desde Março de 1552 até Janeiro de 1891. pp. 75-81).

Deve-se a tudo isto o fato de as companhas deixarem de ser do tipo cooperativista rudimentar, iniciando-se a intervenção do capital. Acresce ainda a aplicação do processo de conservação do peixe e a proibição de importação de sardinha galega. O desenvolvimento das infraestruturas de acomodação do pescado conservado reveladoras da enorme quantidade capturada, o crescente comércio do pescado, a contabilização de um crescente número de companhas em funcionamento e a inauguração de outras unidades fabris de conserva de peixe, afiançam o contínuo crescimento da pesca no Furadouro até ao século XX (OLIVEIRA, 1967, pp. 175-176. LAMY; RODRIGUES, 2000, pp. 20-25, pp. 40-43. LAMY, 2001, Vol. I, pp. 192-194, 214-217. LAMY, 2001,Vol. II, pp. 295-298). Aliás, o seu crescimento e os elevados lucros daí advindos não tardariam a resultar em conflitos entre companhas e entre pescadores. Nos finais da centúria de oitocentos o aliciamento de investidores para a formação de novas companhas originava a ruina de outras já estabelecidas, sendo necessário a tomada de medidas legislativas de forma a impedir tal situação (LAMY, 2001, Vol. I, pp. 388-390). Isso mesmo ficará refletido no aumento do número de companhas a operar no Furadouro.

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Figura 3 - Nº de Companhas na costa no Furadouro (1787-1968). (Adap. dos dados de Lamy e Rodrigues, 2000, p. 25)

Apesar de os dados serem descontinuados, eles revelam-nos uma tendência notória. Nos finais do século XVIII e inícios do século XIX temos um primeiro pico que, muito possivelmente estará relacionado com a instalação da fábrica de conserva de sardinha e extração de óleo de peixe do francês João Pedro Mijoule, que terá tornado a atividade piscatória muito aliciante e rentável e, por isso, objeto de especial protecção por parte de D. Maria I e seu filho, o regente D. João (futuro D. João VI). Um segundo pico é revelado entre as décadas de 30, 40 e 50 do século XIX, o que não pode estar dissociado das políticas liberais de abolição dos ancestrais direitos e foros a pagar sobre o pescado, bem assim como da regulamentação para o registo das companhas e privilégios concedidos a seus mestres. Porém, a partir de 1920 o número de companhas apresenta um decréscimo evidente e, consequentemente, não terá sido a comunidade piscatória a principal responsável pela intensificação da ocupação antrópica do Furadouro. Aliás, a ocupação do litoral por parte dos pescadores era sazonal e de fraca intensidade. Ancestralmente o pescador,

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“na costa do mar completamente deserta, e entregue a si próprio nas boas e más horas, virava o barco de borco para se defender da chuva, do vento e da noite, dormindo, como Deus era servido, no abrigo improvisado […] e, quando o mar consentia, lançava os seus aprestos de pesca para recolher o peixe. […] Os anos rolaram uns atrás dos outros. O pescador começou a utilizar a pouca madeira junto à costa no levantamento de humildes palheiros, habitações muito rudimentares, de forma quadrada, de quatro tapumes e cobertas com ramos de árvores” (LARANJEIRA, 1984, p. 143), que deixavam perpassar o vento e a chuva.

Com o incremento da plantação da mata florestal para fixação das areias, tal como atrás ficou descrito, os pescadores passaram a utilizar a madeira de pinho para a construção dos seus palheiros temporários (LAMY, 2001, Vol. I, p. 144). No Furadouro, os palheiros implantaram-se essencialmente na duna norte e estavam muito próximos do mar. Assentavam na própria areia, sem soalho eram facilmente removíveis (LAMY, 2001, Vol. I, pp. 144 - 145). Tal demostra a experiência e sageza dos homens do mar face à recorrência de suas investidas e à destruição que daí necessariamente advém. 3.2 O advento do turismo balnear O outro fator que explica a intensificação da ocupação antrópica do Furadouro é, inquestionavelmente, o turismo balnear, móbil do seu esplendor mas, igualmente, do seu estertor final. Tudo se inicia com a crescente prática da vilegiatura marítima ou, por outras palavras, à moda dos banhos de mar (FREITAS, 2010, pp. 62 - 67). Introduzida entre nós no século XVIII mas apenas era praticada pela elite da sociedade de então (FREITAS, 2010, pp. 68 - 71). Só com a democratização do uso do litoral, já em finais do século XIX, algumas praias passaram a ser utilizadas essencialmente por gente das regiões e localidades mais

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próximas, como sucedia nas modestas praias do Furadouro, Vieira, Lagos e Monte Gordo (FREITAS, 2010, p. 76). Não obstante, em 1864 a linha de caminho-de-ferro do Norte ter ficado completa e a estação de Ovar ter sido inaugurada a 15 de Novembro de 1865, (PINTO, 2011, p. 37) o fato é que a acessibilidade ao Furadouro era, ainda, diminuta. De Ovar ao Furadouro distam 4,5 km que teriam de ser percorridos a pé, por transportes públicos rodoviários ou, ainda, com carro próprio, situação que, até meados do século XX, não era de todo a regra pois os automóveis eram de aquisição e manutenção dispendiosas. “A comissão administrativa da Câmara de Ovar em 1928” ainda “propôs a inclusão no plano da rede ferroviária, de duas linhas: uma de via estreita, de São João da Madeira (linha do Vouga) a Ovar, servindo Arada, numa extensão de 16 quilómetros; “outra de via reduzida, de Oliveira de Azeméis à praia do Furadouro, passando por São Vicente de Pereira, num percurso aproximado de 20 quilómetros. No ano de 1958, ainda se pensava em estender um ramal de via-férrea entre a estação de Ovar e o Carregal” (Pinto, 2011, p. 38), sensivelmente a meio caminho entre Ovar e o Furadouro.

Todavia, nenhum destes projetos passou do papel. Por isso, não é de estranhar que, ainda na década de 40 do século passado, o Furadouro fosse quase desabitado (Pinto, 2011, p. 20). Assim o era porque as companhas só trabalham quando o mar o permite e, além disso, entraram já numa fase de declínio. Por outro lado, só a partir dos anos 50 do século passado é que a praia do Furadouro, à semelhança de tantas praias do Litoral Norte de Portugal, começou a atrair muitos veraneantes nos meses de Verão, aliás em consonância com o que se passava um pouco por toda a Europa Ocidental. Na mesma década, em França, assiste-se a uma grande procura de praias que até então eram ignoradas (tal como o Furadouro). Interessa saber que a

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vulgarização do gozo de férias, permitiu a um número crescente de habitantes, em particular a partir dos anos 50 do século XX, gastar algum do seu tempo de lazer anual numa estadia na praia (PINTO, 2011, p. 23). Alain Corbin aponta o fato de em França, Alemanha e Inglaterra, ter aumentado o número de famílias que partia de férias, sobretudo devido à melhoria das condições de vida registadas neste período (CORBIN, 1995, p. 411). Na época estival, o Furadouro atraía a si muita gente vinda de Ovar e dos concelhos limítrofes de Oliveira de Azeméis e S. João da Madeira, não havendo registo de que fosse procurada por estrangeiros, pelo menos em número significativo (PINTO, 2011, p. 23).

Figura 4 - A costa de Ovar e os seus concelhos limítrofes

Já nos meses de outubro e novembro, eram os agricultores da região que, uma vez terminadas as colheitas, iam a banhos a este litoral (PINTO, 2011, p. 24). Os veraneantes, dado que eram da região, iam pernoitar às suas próprias casas no final do dia de praia ou alugavam os atrás

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mencionados palheiros aos pescadores e aí permaneciam alguns dias no verão (PINTO, 2011, p. 31). Não obstante as autoridades de turismo revelarem especial preocupação pela quantidade e qualidade das casas de aluguer para os banhistas, devido à cada vez maior procura delas na época de veraneio e também porque se impunha oferecer boas condições de habitabilidade para atrair mais forasteiros à praia, naturalmente com o intuito de rentabilizar o comércio local. A intensificação da ocupação antrópica do Furadouro está bem patente nas imagens abaixo apresentadas.

Figura 5 - Furadouro nos anos 50 do século XX, coleção particular de José Vidal

Figura 6 - Furadouro no início do século XXI (LAMY e RODRIGUES, 2000, pp. 4-5)

De forma a garantir melhor acomodação dos veraneantes e demais turistas que se deslocavam à localidade do Furadouro no intuito de desfrutar das suas potencialidades naturais, a Sociedade de melhoramentos da praia do Furadouro, decide erigir o Hotel Mar e Sol tendo-o inaugurado em junho de 1946. Entre 1º de janeiro de 1966 e 6 de maio de 1982, altura da sua dissolução, passou a pertencer à então criada Sociedade Hoteleira do Furadouro. O Hotel viria a ser destruído, tendo-se edificado no local um complexo habitacional (LAMY; RODRIGUES, 2000, p. 55).

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Paralelamente, os palheiros na praia deixam de ser opção, tanto mais que são ocasionalmente afetados por incêndios (lembremo-nos que são feitos em madeira com cobertura de ramos de árvores, ou seja, de combustão fácil) e, ainda, porque são alvo fácil dos galgamentos do mar (dada a sua implantação nas dunas).

4. Os galgamentos do mar no Furadouro Resolvida ficara a questão da invasão de areias, com o plantio dos pinhais, não tardaria a surgir um outro problema: o avanço do mar. Com efeito, a variabilidade da agitação marítima e dos processos costeiros faziam com que a praia ora se apresentasse larga, ora ficasse bastante estreita. Por outro lado, a diminuição do abastecimento sedimentar fluvial devido quer variações climáticas, quer a intervenções antrópicas, provocou depauperamento da deriva litoral, instalando progressivamente uma situação de erosão costeira. O grande fornecedor de areias para a deriva litoral que atua nesta zona é o rio Douro. Verifica-se que este rio, em regime natural, debitaria cerca de 1,8 x 106m3/ano de carga sólida transportada junto ao fundo, tendo esse valor sido reduzido para cerca de 0,25 x 106m3/ano, após a conclusão de todas as obras fluviais e estuarinas, o que representa uma redução do volume de inertes transportados por um fator superior a 7 (Oliveira et al., 1982). Segundo Dias (1990), na generalidade das bacias hidrográficas portuguesas, a redução de área drenada diretamente para o mar, devido à construção das barragens, foi, desde o início do século XX, da ordem de 85%. A primeira notícia sobre erosão costeira no Furadouro verificou-se em 1857, quando o galgamento do mar destruiu 15 palheiros. Não obstante tal acidente, a construção ou manutenção de palheiros junto da orla marítima manter-se-ia. Por vezes

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o descrédito da possibilidade do mar chegar a essas construções devia-se ao fato de estarem implementadas sobre altas dunas de areia. No entanto, no ano de 1863, cerca de vinte palheiros situados em tal posição sobranceira, seriam destruídos por uma nova investida do mar. Ainda em 1887 e 1889 seriam destruídos pelo galgamento do mar mais 20 palheiros (LARANJEIRA, 1984, pp. 174-175. LAMY, 2001, Vol. I, pp. 463-464). Ao longo do século XX estes acidentes naturais multiplicar-se-iam. A 2 de fevereiro de 1912, o mar avançando 200 metros no areal, formou uma enseada ao longo de 300 metros com cerca de 5 metros de altura, destruindo 18 palheiros. A câmara deliberaria a reabitação dos seus habitantes noutras zonas, uma vez que não se poderia proceder à reedificação dos palheiros, o mar já tomava conta dos areais onde estavam localizados antes do acidente (LARANJEIRA, 1984, p. 175. LAMY, 2001, Vol. II, pp. 446-447). Volvidos 12 anos, em 1924, o mar atingiria pela primeira vez a capela do Senhor da Piedade ou capela velha do mar. Este templo edificado em 1766 em substituição de uma ermida de madeira remontando a 1759, encontrava-se situado na continuação da avenida Central do Furadouro e voltado para o mar. Nesta primeira investida a capela ficaria com um pilar descoberto em cerca de 2 metros, sendo necessária a colocação duma estacada de madeira para nela se poder entrar. No ano seguinte uma nova investida punha a descoberto parte dos seus alicerces. Como remedeio da situação foi construído um varandim. No entanto, em 1938, nova acometida do mar destruía a escadaria, a parte sul do miradouro e a sacristia. Finalmente, no ano seguinte seria dado o golpe fatal ao templo. O mar derrubaria a capela no dia 23 de fevereiro (LAMY, 2001, Vol. II, pp. 175-176. LAMY, 2001, Vol. III, pp. 295-296).

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A progressão do mar continuaria e nos anos de 1940 e 1946 faria novamente estragos. No primeiro caso seria destruída uma habitação alta de um andar, no segundo destruiria a capela da Senhora da Piedade, sendo os fregueses obrigados a deslocar as imagens sagradas e paramentos aí existentes (LARANJEIRA, 1984, p. 176. LAMY, 2001, Vol IV, p. 31). Algumas medidas foram imediatamente tomadas para apoiar os pescadores. Na década de 1940 construía-se um bairro piscatório composto de 18 habitações. Já em 1970, foram erigidas as primeiras 20 casas desmontáveis (LAMY, 2001, Vol. III, p. 316). Não obstante, os problemas continuariam a suceder. Percebeu-se então, após cerca de um século de tragédias e devastação, a necessidade de construção de uma defesa provisória da praia do Furadouro. Com efeito, tempestades e galgamentos sempre existiram. Porém, com o incremento do turismo balnear e a construção de casas e estruturas fixas na marginal, os riscos e danos não se reportam aos antigos e frágeis palheiros. Agora são estruturas rígidas com valor pecuniário apreciável que ficam completamente vulneráveis não só ao recua da linha de costa como aos galgamentos sazonais. Quanto à primeira, Lamy e Rodrigues calculam que entre 1857 e 1971 o mar tenha avançado entre 400 e 500 metros.

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Datas

Recuo da Linha de costa/metros

1857/1863

50

1887

50

1912

150

1969

200 TOTAL: 450 metros em cerca de 100 anos

(LAMY e RODRIGUES, 2000. p. 59)

Já quanto aos galgamentos, os Autores que temos vindo a acompanhar apresentam os seguintes registos: Anos

Meses

Dias

Palheiros/casas destruídas

1857

Janeiro

12/13

15

1863

Setembro

23/25

20/30

1887

Março

27

18

1889

Março

_

1/2

1912

Fevereiro

2

18

1939

Fevereiro

23

1 (capela velha)

1940

_

_

1

1958

Agosto

_

1

1965

Janeiro

_

2

1969

Novembro

_

3

1969

Dezembro

_

15

1971

Janeiro

_

Vários estragos TOTAL: 106

(LAMY e RODRIGUES, 2000. p. 58 e LARANJEIRA, 1984, p. 181)

Estes dados merecem uma reflexão! Durante o século XIX o número de edificações destruídas pelo mar é significativo. Estamos certamente em presença da já mencionada destruição de palheiros de praia. Este número volta a ter uma expressão

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considerável a partir dos anos 60 do século passado. Estamos convictos que, a este fenômeno, não foi alheia à intensificação da construção de infraestruturas rígidas na marginal, respondendo às preferências do turista que começa a acorrer em massa. Aliás, assim se explica que, em 1957, por iniciativa da Junta de Turismo da Praia do Furadouro, se tivessem arrasado “as dunas que ficavam entre o mar e a Avenida Marginal do Furadouro” (LAMY, 2001, Vol. III, p. 289). E, claro, logo em 1958, as investidas do mar fizeram imensos estragos na parte sul da praia, destruindo um murete da esplanada e derrubando o muro de demarcação dos terrenos da Misericórdia, provocando ainda um corte profundo na Avenida Marginal. Em face dos desastres ocorridos e procurando precaver eventos semelhantes no futuro, a 23 de setembro de 1958 iniciaram-se as obras de defesa da praia com a direção dos serviços marítimos. Constituiu-se um paredão de pedras soltas (enrocamento) depositando-se toneladas de grandes blocos de pedra em frente da Avenida Central, a zona mais atingida pelos galgamentos marítimos. Este empreendimento não resolveria a situação e no decorrer dos anos seguintes novos galgamentos se sucederam (LARANJEIRA, 1984, pp. 177-183. LAMY, 2001, Vol. III, pp. 404-407. LAMY, 2001, Vol. IV, pp. 31-35). Mas as investidas do mar continuam e por isso foi concertado um concurso público para a construção de imponentes obras de defesa costeira. Em 1971, a Etermar (Empresa de Obras Terrestres e Marítimas S.A.R.L.) iniciou os trabalhos utilizando as pedras provenientes de uma pedreira localizada em Santa Maria da Feira (Laranjeira, 1984, p. 182). Para melhor entendermos a magnitude das obras, sigamos um relato sobre elas:

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“Após o lançamento sucessivo de milhares de toneladas de pedra nos pontos da praia mais atingidos pela fúria do mar, foi resolvido construir no Furadouro uma verdadeira obra de defesa, de modo a cobrir toda a extensa área balnear e piscatória. Esta obra constou de três grandes esporões que entram pelo mar dentro, e que apresentam um comprimento de aproximadamente, 200 metros cada, além de uma coroa junto à terra, com a largura de 15 metros e que vai engrossando até atingir o máximo de 22 metros na extremidade, em contacto com o mar. Ao longo de cada esporão corre um caminho com 3 metros de largo, destinado à movimentação de máquinas. Cada esporão fica distanciado do mais próximo cerca de 350 metros. […] Estes esporões firmam um enrocamento frontal de 1300 metros de extensão. […] Ao sul do terceiro esporão, também se estende um enrocamento frontal, a caminho do Torrão do Lameiro, e com uma extensão aproximada de 300 metros”. (LARANJEIRA, 1984, p. 183).

Figura 7– Furadouro (Foto A. Dias 4.AGO.89)

Porém, tudo parece insuficiente e na obra de Lamy Laranjeira, que temos vindo a acompanhar, o Autor lamenta o recuo da linha de costa e refere:

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“Numa visita ao LNEC (Laboratório de Engenharia Civil), Direcção de Hidráulica, foi-nos dada a explicação seguinte: 1. A costa portuguesa, vai para duas centenas de anos está a sofrer uma intensa corrosão do mar, pois o Rio Douro já não é transportador de areias que, por efeito das marés, das correntes e dos ventos, iam sendo depositados ao longo da costa, a sul da foz do Douro. Acresce, também, a circunstância das barragens construídas no Rio Douro, em Espanha e em Portugal, constituírem um obstáculo à movimentação das referidas areias, que vão sendo depositadas junto às barragens. Quando as águas do rio atingem a foz, o volume de areias transportado é reduzido em relação ao que sucedia há umas dezenas de anos atrás. […] 2.

Outro ponto que merece referência, e que até hoje tem sido em parte descurado, pondo em grave perigo as praias desta costa, é o que resulta da extracção indiscriminada de areias na costa para a construção civil, uma vez que não se verifica compensação” (LARANJEIRA, 1984, p. 173).

Não há que duvidar da acutilância das explicações apresentadas pelos especialistas do Laboratório de Engenharia Civil (LNEC) atrás enunciadas. Não obstante, a questão é ainda mais complexa. Se a deriva litoral diminuiu pelas razões atrás expostas, é evidente que a construção de obras de defesa costeira, tanto longitudinais como transversais (esporões) veio agravar ainda mais a situação numa perspectiva geral, pois que tais obras debilitam ainda mais a deriva litoral. Note-se que entre Espinho (onde, em 1909, foi construída o primeiro esporão em Portugal) e o Furadouro, a costa apresenta-se totalmente artificializada, “existindo extenso campo de esporões e enrocamento longilitoral que, em grande parte, é já contínuo” (DIAS et al., 2005, p. 18). Evidentemente que esta situação potencia uma significativa erosão a sotamar. Em inícios da década de 90 do século passado, Dias (2005) já advertia para este fato afirmando:

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“No decurso da segunda metade do século XX o recuo médio da linha de costa nesta zona, com onze quilómetros de extensão, tem sido superior a 2m/ano. […] Actualmente, a frente oceânica do Furadouro encontra-se em posição nitidamente saliente relativamente à linha de costa adjacente, tendo a praia quase desaparecido, o que obriga os banhistas a utilizarem os enrocamentos como praia” (DIAS et al., 2005, p. 19).

Figura 8 - Foto A. Dias 8.AGO.90

Para obviar a este problema e para defender a marginal a solução tem sido sempre a mesma: despejar mais pedras e reparar as obras costeiras existentes. Todavia, numa postura algo “esquizofrênica”, à medida que se vão ampliando e reforçando as obras de defesa costeira, intensifica-se a construção em zonas de risco. Atualmente, no que à gestão do litoral diz respeito, o Furadouro apresenta-se como um autêntico “caso de estudo” porquanto a recorrência das destruições provocadas por temporais e as opções tomadas face a essa situações mimetizam o clássico mito de Sísifo, segundo o qual, é sabido, Sísifo por ter desafiado os deuses do Olimpo, fora por estes condenado a empurrar uma

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pedra de uma montanha até o topo e, aí chegado, a pedra rolaria para baixo e ele novamente teria que começar tudo, para toda eternidade. Assim tem sido, e em tempo de temporais atentemos, apenas, nas ocorrências mais recentes: Na noite de 1º de março de 2010 o Furadouro foi atingido por um temporal que fez o mar invadir a marginal:

Figura 9 - Foto R. Bastos 1.Mar.2010

Figura 10 - Foto R. Bastos 1.Mar.2010

Figura 11 - Foto R. Bastos 1.Mar.2010

O ano de 2014 entrou na Europa Ocidental com um rasto de destruição. Com efeito, a tempestade Hércules que assolou a costa portuguesa, espanhola, francesa e britânica, atingiu o Furadouro na Madrugada do dia 5 de janeiro.

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Figura 12 - Foto Carlos Frazão 5.Jan.2014

Figura 13 - Foto Carlos Frazão 5.Jan.2014

Figura 14 - Foto Carlos Frazão 5.Jan.2014

Volvidos três meses, uma outra tempestade, embora de menor dimensão e consequentemente com impactos mais modestos que os provocados pela tempestade Hércules, assola a costa portuguesa. Referimo-nos à Tempestade Stephanie ocorrida a 9 e 10 de março de 2014.

Figura 15 - Foto R. Bastos 17.Mar.2014

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Figura 16 - Foto R. Bastos 17.Mar.2014

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Figura 17 - Foto R. Bastos 17.Mar.2014

Segundo o jornal Correio da Manhã a população do Furadouro “exige “obras sérias”, pois a zona é uma “rampa de lançamento para a água” (Correio da Manhã, 10 de março de 2014). A população clama por soluções. Compreende-se! Tal postura demonstra o aumento da consciência cívica e da cidadania de uma comunidade; e isso é bom, muito bom numa democracia que se quer sólida e madura! Evidentemente que não compete ao cidadão apontar as soluções. O diagnóstico da situação e a indicação das possíveis medidas a tomar devem ser feitos pela Academia, com base em trabalhos de fundo e de natureza transdisciplinar. Depois disso, as decisões são um ato político e como tal devem ser assumidas. Saliente-se que no momento em que este trabalho é escrito, o Governo português nomeou uma (mais uma) equipe para “avaliar a estratégia de gestão da zona costeira nacional” (Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, 25-02-2014). Segundo as palavras do Ministro da tutela, a ideia é que a “equipa que não deve apenas olhar para a questão hidrológica e hidrográfica, para a questão do ordenamento do território, mas também para a relação das alterações climáticas com o litoral”, de modo a que a avaliação inspire “os novos planos de ordenamento da orla costeira, que entrarão em revisão em 2014/2015 e que vão definir os termos de referência para os novos Planos de

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Acção do Litoral (PAL)” (Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, 25-02-2014). O fundo financeiro disponível para as intervenções na orla costeira portuguesa é de 28 milhões de euros: 11 milhões de euros previstos no Plano de Ação do Litoral e 17 milhões adicionais, totalmente comparticipados pelo fundo comunitário (Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, 25-02-2014). O ministro do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia evidencia as alterações climáticas como uma das causas da frequência dos temporais e do (suposto) agravamento dos respectivos impactes quando refere que “um “agravamento de fenómenos climáticos externos”, o que será um padrão “cada vez mais frequente”, e por isso “não podemos olhar para zona costeira de forma estática e não dinâmica” (Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, 25-02-2014). Por ora, não é nosso intuito escalpelizar uma correlação directa e evidente estabelecida entre as alterações climáticas, a subida do Nível Médio do Mar, a recorrência e aumento de intensidade dos temporais e os fenómenos de destruição costeira. No entanto, sabe-se que o aumento de destruições ao longo do tempo não decorre obrigatoriamente de qualquer modificação climática, mas pura e simplesmente do aumento da ocupação de zonas de risco muito elevado. Todavia, aguardamos as conclusões da referida equipa nomeada de especialistas, para “avaliar a estratégia de gestão da zona costeira nacional”. Uma coisa é certa, porém, em finais de Fevereiro deste ano de 2014, o Ministro anunciava que a criação desta equipa “Foi uma solução expedita; espero que, nos próximos dias, as autarquias, a Agência Portuguesa do Ambiente, as Administrações das Regiões Hidrográficas, e as sociedades Polis possam concertar-se para a apresentação de candidaturas, para que estes investimentos possam ser

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realizados até abertura da época balnear” (Ministério do Ambiente, Ordenamento do Território e Energia, 25-02-2014). O fato é que estamos em maio, prestes a dar início a uma nova época balnear e, até ao momento, ainda nada foi sabido e muito menos feito.

5. Conclusão

O Furadouro integra a atual costa de Ovar que, primitivamente, era designado por Cabanões. Todo este segmento costeiro é resultante de uma acelerada geodinâmica (sécs X-XVIII), dado que surge na sequência da evolução de uma restinga arenosa que, enraizada a sul de Espinho, cresce no sentido N/S, delimitando a zona setentrional da atual laguna de Aveiro. Por esse fato, não é de estranhar que o topónimo “Furadouro” só apareça documentado em meados do século XIV, admitindose que, uma das barras intermitentes da formação inicial deste litoral. Aliás, a riqueza e exploração do Meio esteve em muito dependente da evolução da restinga arenosa que separa (ainda hoje) o oceano do litoral. Assim foi com a salicultura de Ovar, com a pesca costeira, feita principalmente através da arte xávega (reportada ao longínquo ano de 1443) e que fazia da restinga o local de “apoio” dos pescadores para a sua arte. A sobredita restinga arenosa é mencionada nos documentos históricos como gelfa e nela, nada mais encontramos que não seja a vegetação autóctone de que se alimentavam os gados que por lá iam pastando. A primeira intervenção antrópica significativa na gelfa data de 1623 (segundo LARANJEIRA, 1984, p. 66) ou 1725 (segundo LAMY, 2001, Vol. I, pp. 145-146) e reporta-se à sementeira da mata que teve por objetivo a fixação das areias. Parece precoce esta preocupação ambiental, como o foi a construção dos palheiros primitivos nas dunas mas, sempre através de estruturas móveis; como quer que seja, ambas são louváveis e decorrem, certamente, de um saber de experiências vividas. O mesmo se

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diga da intensificação da atividade piscatória que atingiu o seu apogeu na época liberal, quando o números de companhas a laborar no Furadouro é significativo, mas que, na verdade não causa perturbação em relação ao equilíbrio do sistema natural. Verdadeiramente, os impactes negativos da ocupação antrópica só se fazem sentir na segunda metade do século XX, quando a democratização do vilegiatura marítima se faz sentir em praias mais modestas, como é o caso daquela que é objeto do presente estudo. É, então, que os problemas surgem! Na ânsia de atrair cada vez mais veraneantes, a Junta de Turismo local promove a destruição das dunas primárias da fachada atlântica (1957) para aí se começarem a construir estruturas de apoio turístico mas, agora, ao contrário do que acontecia com os palheiros mais antigos, de caráter rígido e permanente. Permanente, claro está, até que os galgamentos decorrentes dos temporais as destruíssem. Para obstar a esta situação, lançou-se mão de recursos que artificializaram a costa. Imediatamente um ano depois da devastação voluntária da duna primária, face à destruição provocada por um galgamento do mar, foi necessário recorrer à deposição de pedregulhos nas zonas mais frágeis da marginal, designadamente em frente à avenida principal. Intenta-se a construção de obras de defesa costeira, as quais efectivamente vêm a tomar forma nos inícios da década de 60 do século XX. Sucedem-se a construção de três estruturas costeira longilitorais e a edificação de estruturas rígidas paralelas à costa. Ou seja, paradoxalmente o Homem tenta reproduzir artificialmente aquilo que destruiu de forma voluntária (a duna primária). Acresce que a carga sedimentar que assolava à barra do Douro e que era posteriormente distribuída pela costa a sul desta barra diminuiu drasticamente mercê da obras de engenharia hidráulica construída ao longo do rio, as quais interromperam o fluxo natural do transporte sedimentar. Se aduzirmos a extração intensiva de areias costeiras para a construção civil,

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facilmente concluímos que a situação é dramática. A praia não é reabastecida e, consequentemente, o recuo da linha de costa é muito preocupante. É-o ao ponto de sempre que se registam temporais os mesmos desencadearem galgamentos, se gerar (justificadamente) o pânico no Furadouro. Estamos em pleno tempo de temporais. Não tanto dos temporais meteorológicos, porque esses sempre existiram, mas em tempo de “temporais” e convulsões políticas e sociais. Se o Homem não tivesse tentado subjugar a natureza, esta seguiria o seu curso normal de fluxo e refluxo das águas marinhas sem que isso provocasse qualquer perturbação. Assim não foi! Por ora, apenas as populações ameaçadas clamam por ação e os políticos, desorientados, adiam decisões que, tarde ou cedo, terão de ser tomadas sob pena de o mar “naturalmente” reclamar o que é seu. Parece-nos que haja o que houver, investigue-se o que se investigar, só há 3 alternativas para o problema: - Continuar a reparar as estruturas defensivas costeiras e eventualmente construir mais e mais até “betonar” praticamente toda a costa; - Realocar as populações que se encontram em zonas de risco, fazendo-as recuar, deixando que o oceano resgate o que fora seu; - Consciencializar a população dos perigos que correm em instalar-se em zonas altamente vulneráveis e, uma vez advertidas, se insistirem, deixá-las por sua conta e risco. Qualquer solução que venha a ser adotada implica custos: pecuniários, sociais e políticos. Porém, a pior das soluções é não adotar solução e adiar “ad eternum” o problema. Todavia, essa é também uma solução possível, porquanto a inércia levará a que o mar resolva o que o Homem não soube ou não quis fazer.

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Agradecimentos:

Os autores querem expressar a sua gratidão a Vasco Flores Cruz pelo apoio prestado na elaboração de algumas figuras.

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