Ensaio sobre a obra As relações naturais, de Qorpo Santo

June 15, 2017 | Autor: Cybelle Santana | Categoria: Theatre Studies, Dramaturgy, Brazilian Literature, Essays, Qorpo Santo
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As relações naturais, de Qorpo Santo.

Segunda metade do século XIX, o Brasil vivia um processo de
crescimento econômico e caminhava para dar um fim à escravidão. A expansão
da cultura do café e o início da industrialização abriu caminho para o
surgimento de novas camadas sociais no país. As famílias buscavam manter
seus costumes e seus preceitos de acordo com os ideais morais, políticos,
sociais e religiosos da época que estavam em sintonia com um comportamento
de um bom cidadão, que respeitava as leis e zelava pela instituição
familiar. É nesse contexto que Qorpo Santo escreve As relações naturais,
mais especificamente, como consta em seus escritos, em 14 de maio de 1866,
na cidade de Porto Alegre.
Nascido em 19 de abril de 1829, José Joaquim de Campos Leão, ou Qorpo
Santo, foi um escritor atípico para o seu tempo. Defendeu uma reforma
ortográfica com a intenção de eliminar as letras não utilizadas,
foneticamente falando, das palavras. Visava facilitar o processo de
alfabetização e assim temos palavras escritas de uma forma muito particular
como o próprio nome que adotou, Qorpo Santo, que ele escrevia com q e não
com c; ou a forma de grafar ensiqlopédia, também muito própria de sua
escrita.
De acordo com Fraga (2001), o autor desenvolveu uma Ensiqlopédia
qorposantense, composta por nove volumes que tratavam dos mais diversos
assuntos, pois seu conhecimento de mundo era vastíssimo. Dentre esses
volumes, um traz dezessete peças escritas por ele, estando uma delas
incompleta. O mais curioso é que essas peças foram escritas em um curto
espaço de tempo – entre 31 de janeiro e 16 de maio de 1866 e, de acordo com
Fraga (2001), seus textos As relações naturais, Mateus e Mateusa e Eu sou
vida; eu não sou morte foram montados pela primeira vez em agosto de 1966,
na cidade de Porto Alegre.
A obra de Qorpo Santo apresentava algumas características que não
eram comuns às obras de seu tempo carregadas de um teor basicamente
dramático. O autor é considerado um representante brasileiro do "teatro do
absurdo" – características que não eram comuns nem na Europa nem no Brasil
daquela época -, pois suas peças traziam a realidade humana de uma forma
muito inusitada e debochada; além disso, elas apresentavam uma estrutura e
composição dos personagens um pouco confusa e ilógica. Qorpo Santo
costumava abordar temas cujas discussões não eram comuns na sociedade
oitocentista. O autor parecia carregar um constante conflito entre o que é
moralmente aceito e o que não é; um conflito entre o homem de bons costumes
e o homem envolvido com as coisas do mundo. Tal conflito foi claramente
transportado para as suas peças e para os seus personagens.
Na composição desses personagens percebe-se uma inconstância
psicológica e comportamental frequente. Além disso, é interessante ver em
As relações naturais como um determinado personagem muda de nome,
demonstrando assim uma confusão e o particionamento de um ser que se
encontra envolto em preceitos religiosos e legais e ao mesmo tempo sente-se
como se não fizesse parte daquela sociedade buscando exatamente o oposto
daqueles preceitos.
Devido à forma diferenciada de lidar com os temas sociais, Qorpo
Santo foi visto por alguns críticos da época como louco e realmente foi
mandado por sua família para ser tratado em algumas instituições.
No caso da obra em estudo neste ensaio – As relações naturais – pode-
se ver claramente a presença de temas como adultério, prostituição, incesto
e situações de relacionamentos sociais e familiares conflituosos chegando a
ocorrer violência entre os personagens. Alguns outros temas não são
abordados de forma tão clara no decorrer da peça como o homossexualismo e
as dualidades naturais do ser humano. Seguirá adiante uma breve análise da
obra abordando tais pontos.
No ato primeiro, cena primeira, surge o personagem nomeado como
Impertinente que é um escritor, assim como Qorpo Santo, e que apresenta a
peça que está escrevendo denominada As relações naturais. Nesse momento o
personagem reclama da sua "nojenta imaginação" e introduz seus escritos
situando o leitor: "São hoje 14 de maio de 1866. Vivo na cidade de Porto
Alegre, capital da Província de S. Pedro do Sul; e para muitos, - Império
do Brasil... Já se vê pois que é isto uma verdadeira comédia! (Atirando com
a pena, grita:) Leve o diabo esta vida de escritor! É melhor ser
comediante!". Neste trecho, pode-se perceber a relação estreita entre autor
e personagem através do fato de o local e o período em que ambos viviam
serem os mesmos. Há também uma brincadeira comparando a importância de um
escritor com relação a um comediante, indicando que o trabalho deste é
inferior ao daquele e uma crítica jocosa ao país.
No ato primeiro, cena terceira, o personagem Impertinente entra de
braços dados com uma jovem de 16 anos chamada Intérpreta. Nessa cena, logo
após Impertinente chamar a sociedade de "um grande rebanho de ovelhas
merinas", Intérpreta apresenta um discurso em favor da mulher: "sempre
entendo que a mulher como o homem é um ente que deve ser por todos
respeitado, como a segunda primorosa obra do criador; e que assim não
sendo, só milhares de males e transtornos se observarão na marcha geral da
humanidade!". Impertinente responde dizendo que as ideias dela são
ultrapassadas. Aqui surge uma personagem feminina que sabe discernir as
coisas e não se deixa enganar.
Ao iniciar o ato segundo, cena primeira, o personagem Truquetruque,
uma nova face do personagem Impertinente, apresenta um momento de fluxo de
pensamento onde traz questões espirituais ao tratar de morte e inferno
-temos aqui a dualidade céu e inferno -, traz questões legais como
homicídio e trata do sentimento de inveja que está relacionado diretamente
aos dogmas da Igreja Católica como os sete pecados capitais, que são
condutas humanas contrárias às leis divinas. Aborda ainda a expressão
"hermafroditos", fazendo uma alusão a algo dual - macho e fêmea -, que pode
se apresentar tanto de forma física quanto de forma psicológica nos
indivíduos.
Mais adiante, na cena segunda, surgem diversas mulheres que se
denominam prostitutas e que são nomeadas como Elas, Uma delas, Outra. Essas
mulheres conversam com Um indivíduo, uma terceira forma do personagem
Impertinente, que é colocado por elas como um conde que tem filhos carnais,
ou seja, um pai, e também padre eterno. Como explica Dalvi (2008):

Elas se referem a ele como se já o conhecessem e fazem uma
imagem dele contrária ao que se via anteriormente: "um
homem honesto", "tolo", "é um conde e tem filhos carnais",
"padre eterno" que tem filhos espirituais. Atribui-se a
ele uma imagem de moralista e títulos valorizados na
época: pai, conde, padre – ainda que eles, em um mesmo
ser, sejam paradoxais, na obra e na fala desses
personagens é perfeitamente possível.




Na quarta cena do ato segundo encontra-se a Velha Mariposa com suas
filhas, dividindo claramente esses papéis com os de cafetina e suas
prostitutas. Elas se preparam para ir à missa e percebe-se novamente a
confusão no comportamento das personagens que ao mesmo tempo em que agem
como mulheres dadas às coisas carnais, não deixam de lado a obrigação
espiritual ou religiosa, mostrando uma igreja sempre presente no
comportamento social da época.
Ato terceiro, cena primeira, surge o criado Inesperto reclamando da
arrumação da casa e verbalizando que seus amos não o respeitam nem o
obedecem, indicando aqui uma inversão de valores. As relações familiares
nesse trecho se mostram um pouco complicadas ao apontar o adultério
cometido tanto pela esposa Mariposa com seu criado Inesperto, quanto pelo
marido – ainda com o agravante de cometer incesto – com Mildona,
supostamente sua filha e por quem nutre um claro amor. E aqui se apresenta
na fala do pai, Malherbe, uma mistura entre um discurso mundano e um
discurso religioso ao declarar para Mildona: "Sim, sois minha; és minha; e
serás sempre minha por todos os séculos dos séculos, Amém!".
Ainda no ato terceiro, mas na quarta cena, Inesperto, agora nomeado O
criado, põe um xale da sua ama e demonstra um comportamento alusivo à
homossexualidade como se quisesse assumir o lugar dela. Nesse caso, essa
alusão não é explícita, mas podemos percebê-la nas entrelinhas da escrita
de Qorpo Santo. Logo após, entra Malherbe agredindo seu criado fisicamente
com uma bengala e gritando: "Não quero mais servi-lo! Não quero! Não quero!
Já disse" e percebemos novamente uma inversão de papéis com o amo a serviço
de seu criado.
Ao iniciar o quarto ato, na cena primeira, há um incêndio no local;
embora no texto surja a indicação de que o incêndio não é real, mas
aparente, o que remete o espectador à ideia de uma confusão causada pelos
comportamentos perturbadores dos personagens, especialmente as mulheres.
Depois de extinto o fogo, temos um discurso de Malherbe, que é contrário a
tudo que fez até então: "Sempre a desordem nas casas sem ordem! Sempre as
perdas; os desgostos; os incômodos de todas as espécies! Santo Deus! Por
que não crucificais aqueles que desrespeitam vossos santos preceitos!?". Um
discurso moralista realizado por um personagem que cometeu adultério e
incesto, afirmando mais uma vez a confusão psicológica e comportamental dos
personagens do autor.
Na segunda cena do quarto ato temos novamente Elas falando do
personagem Malherbe que não quer viver de acordo com suas vontades, não
quer acompanhá-las nas relações naturais. Neste trecho novamente invocam os
pecados capitais da preguiça e da vaidade/orgulho: "Já que é preguiçoso,
vaidoso, ou orgulhoso; ao menos preguemos-lhe um susto!", marcando um
contraste entre o humano e o divino, mais uma dualidade.
Ao tratar das relações naturais as mulheres expõem a satisfação de
viver conforme essas relações através da junção de uma comida ou bebida e a
existência de um homem, ou seja, duas coisas que saciam somente o corpo
físico. Surge então Inesperto que se redime de seus erros ao apoiar o seu
amo Malherbe, manifestando-se contra as mulheres e suas relações naturais.
Atitude seguida por um esquartejamento de um Malherbe de papelão contra
todas elas.
Ao final, uma aparente tranquilidade reina com as mulheres aceitando
aparentemente as ideias de Malherbe e do criado Inesperto.
Na peça As relações naturais, Qorpo Santo rompe com alguns conceitos
socialmente aceitos apresentando ao espectador personagens corrompidos pelo
mundo, mas ao mesmo tempo muito confusos, apresentando mudanças de
comportamento que dialogam com o que é moralmente aceitável e, ao concluir
a obra, o autor aparentemente coloca tudo e todos em seus devidos lugares,
tornando a moral algo supremo, mas fazendo o espectador refletir as suas
próprias confusões internas.










Referências

APPEL, M. L. G. O teatro subversivo de Qorpo Santo. Revista Eletrônica
VIDYA. Santa Maria, v. 19, n. 33, 2000. Disponível em: <
http://www.periodicos.unifra.br/index.php/VIDYA/article/view/541/530>. Data
de acesso: 16 set. 2015.

DALVI, C. D. Metamorfoses e duplos: uma leitura de As Relações Naturais, de
Qorpo Santo. Revista Eletrônica de Estudos Literários, Vitória, a. 4. n. 4,
2008. Disponível em: <
http://periodicos.ufes.br/reel/article/view/3503/2771> . Data de acesso: 8
set. 2015.

Desvendando teatro. Teatro do absurdo. Disponível em: <
http://www.desvendandoteatro.com/teatrodoabsurdo.htm> Acesso em: 16 set.
2015.

FRAGA, E. Um corpo que se queria santo. In: QORPO-SANTO. Teatro completo.
São Paulo: Iluminuras, 2001. p. 7-23.

PERIA, M. A. Décadas de 1860-1870. Disponível em: <
http://www.nossataquaritinga.com.br/v2/categorias/83-decadas-de-1860-
1870.html> Acesso em: 16 set. 2015.

QORPO-SANTO. As relações naturais. Disponível em: <
http://www.biblio.com.br/defaultz.asp?link=http://www.biblio.com.br/conteudo
/qorposanto/asrelacoesnaturais.htm> Acesso em: 03 set. 2015.

























UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
Disciplina: Panorama da Dramaturgia Brasileira
Professora: Renata Pimentel Teixeira












As relações naturais, de Qorpo Santo (Ensaio)

Cybelle de Medeiros Santana
















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