Ensaio Teórico-metodológico: Uma contribuição Sociológica para o Estudo da Comunicação

June 4, 2017 | Autor: P. Bandeira de Melo | Categoria: Sociology of Culture, Media Studies, Sociology of Communication
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IV Encontro Nacional da Ulepicc-Brasil – Rio de Janeiro/RJ – 9 a 11/10/2012

Ensaio Teórico-metodológico: Uma contribuição Sociológica para o Estudo da Comunicação1 Patricia Bandeira de Melo2 Resumo: O objetivo deste artigo é refletir acerca das escolhas teórico-metodológicas para o estudo dos objetos selecionados por pesquisadores, discutindo o processo de construção do conhecimento pelas ciências sociais. Neste contexto, apontamos a confluência teórica entre os campos da sociologia e da comunicação e problematizamos os processos de definição de teorias e metodologias para as pesquisas sociais que se estendem às investigações no campo da mídia. Aqui, discutimos a constituição teórica e metodológica da pesquisa e a revisão de conceitos como imperativo categórico contemporâneo da ciência, em especial nos estudos da comunicação – como campo científico em processo de reconhecimento.

Palavras-chave: teoria, metodologia, conhecimento, sociologia, comunicação. Abstract: The aim of this paper is to reflect about theoretical and methodological choices for studying some issues for researchers, arguing about construction process of knowledge by social sciences. In this context, we are pointing out the theoretical convergence between the fields of sociology and communication and we are confronting the definition of theories and methodologies for social research, that extend to investigations in the field of media. In this paper we are debating the theoretical and methodological constitution of research and revision of concepts such as the categorical imperative of contemporary science, particularly in communication studies - as a scientific field in recognizement process.

Key words: theory, methodology, knowledge, sociology, communication. INTRODUÇÃO: AS RAÍZES SOCIOLÓGICAS DA COMUNICAÇÃO Como e por que a sociedade é possível? Como padrões de organização social são criados, reproduzidos e modificados? Ao longo da história, vários tipos de estrutura social, em todas as suas formas, foram construídos, reproduzidos, modificados e superados. A busca da ordem social é uma luta incessante, inclusive na ciência, e o veículo de toda a compreensão científica é a práxis – a relação inevitável de teoria e prática –, caminho de resposta para as questões: porque este processo é viável? Porque prevalece uma estrutura e não outra? A teoria se constitui em um somatório de delimitações que permitem visualizar o mundo objetivo a partir de ângulos específicos. Assim, a teoria é uma atividade mental, um tipo de pensamento que almeja explicar eventos. É um processo de desenvolvimento de ideias, na qual estão contidos conceitos, variáveis, afirmações e formatos. As teorias são construídas a 1

Trabalho apresentado no GT5 – Teorias e Temas Emergentes, IV Encontro Nacional da ULEPICC-Br. Doutora em Sociologia e mestre em Comunicação. Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj). E-mail: [email protected]. 2

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partir dos conceitos, que denotam ou indicam os fenômenos. Grupos, organizações formais, poder, estratificação, interação, norma, regra, status e socialização são conceitos definidos numa ampla gama de teorias. Um mesmo termo pode ser entendido de modo diferente e resultar em conceitos distintos, mesmo que conservem a nomenclatura. O que define o sentido do conceito é a teoria em que ele se assenta3. E qualquer pesquisa deve atender a este exercício proposto pelas ciências sociais, dando substância aos seus resultados. Antes de avançarmos em nossa discussão teórico-metodológica, faremos um hiato para questionar onde entra os estudos de comunicação e de temas correlatos4, se nos baseamos aqui em pensamentos de raízes sociológicas para discutir processos teórico-metodológicos. É verdade que os estudiosos contemporâneos da mídia buscam o reconhecimento da área como um campo independente de pesquisa, mas ao mesmo tempo em que esta fase se consolida, os paradigmas dos estudos midiáticos ainda tem suas raízes no campo sociológico5. E, mesmo com a confirmação do campo da comunicação como área independente de pesquisa, não há como retirar deste campo seus alicerces, que se fundaram na sociologia. É preciso reconhecer que as primeiras pesquisas sobre comunicação floresceram entre sociólogos, entre os quais podemos citar os estudos embrionários de Robert Park, Max Weber e Robert Merton e, mais contemporaneamente, Pierre Bourdieu, Jürgen Habermas, Jean Baudrillard, Roland Barthes e Stuart Hall. Um dos estudos mais fortemente marcados de mídia feita pela sociologia teve início na Escola de Frankfurt, por Theodor Adorno e

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A título de exemplo: numa perspectiva marxista, “ideologia” é um dos aspectos da história. Para Marx e Engels (2002) “ideologia” é uma concepção deturpada da história, pois se restringe a apenas um dos seus aspectos, é uma força quase imperceptível que permeia as relações sociais, a partir da visão da classe dominante. Já Outhwaite (1996) apresenta três significados associados à “ideologia”: “uma ciência de ideias, a noção de que as ideias se originam de alguma base fundamental, extra-ideacional (fisiologia, classe, luta pelo poder e assim por diante), a denúncia de ideias como visionárias e subversivas” (OUTHWAITE, 1996, p.371). 4 O campo da comunicação compreende todas as formas de mídia, entre as quais a imprensa, a internet, a TV, o rádio e o cinema, e também os seus produtos, como o jornalismo, a publicidade e o entretenimento. Trabalhos acadêmicos que apontam relações incestuosas entre a mídia e o poder político-econômico e alertam para a necessidade de reconexão entre a imprensa e o seu propósito cívico são frequentemente negligenciados pelos formuladores de políticas de comunicação e pelos empresários do setor (COLEMAN, 2012). A marginalização de estudos críticos sobre comunicação em seu próprio campo exige uma postura ativa da sociologia e dos estudiosos de mídia que fazem uso da economia política da comunicação como perspectiva teórica (ROCHA, 2011). 5 Segundo Rocha (2011), este movimento se iniciou nos anos 70, numa tentativa de composição de forma e dinâmica próprias para o campo da comunicação.

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Max Horkheimer, a partir da elaboração do conceito de indústria cultural6. No Brasil, temos autores como Gabriel Cohn, Gisela Taschner, Maria Arminda do Nascimento Arruda e Maria Eduarda da Mota Rocha envolvidos em estudos sobre a comunicação. Hoje, a temática ainda figura como área nos programas de sociologia, mas observa-se uma escassez nas pesquisas sociológicas contemporâneas, o que denota a relevância da consolidação de uma sociologia da comunicação e da cultura (ROCHA, 2011). Em 1910, Weber7 publicou um programa de pesquisa no qual salientava o valor genuíno de se elaborar uma sociologia da imprensa, salientando o papel da mídia na produção do conhecimento. Ele chegava a questionar como seria a vida moderna sem a existência da imprensa, citando o articulista socialista Anton Menger, para quem a imprensa teria como papel “trazer à luz pública aqueles assuntos que não possam ser submetidos aos tribunais de justiça; sua incumbência seria a de assumir o antigo papel de censor” (WEBER, 2005, p. 15). Weber destacava ainda as relações de poder criadas pela mídia em virtude de determinar quais fatos têm relevância para ingressar no conhecimento da sociedade. Ao propor um programa de pesquisa para o campo, Weber estava claramente fundamentando a importância da pesquisa sociológica sobre a área. Seu trabalho é repleto de perguntas que precisam ser respondidas por cientistas sociais que tenham a mídia como objeto de pesquisa. Entre elas, estas são fundamentais, ao falar da atividade jornalística: “Que influências exerce sobre os elementos culturais objetivos supraindividuais?” e “o que se destrói ou é novamente criado no âmbito da fé e das esperanças coletivas, (...) que possíveis atitudes são destruídas para sempre, que novas atitudes são criadas?”(WEBER, 2005, p. 20). Assim como Weber, Robert Park sugeriu caminhos para a realização de pesquisas no campo jornalístico e, embora não tenha chegado a sistematizar teorias, fez uma conexão entre os estudos da sociologia e da comunicação. Segundo ele, o conhecimento empírico é a 6

Não podemos reduzir os estudos desses teóricos ao conceito de indústria cultural, embora seja ela a mais evidente contribuição dos frankfurtianos. Por trás dela, floresce um sentido dialético do esclarecimento decorrente das novas tecnologias nas comunicações, muitas vezes constituindo-se em espaço discursivo para legitimação de valores de determinados grupos sociais como valores nacionais de uma sociedade mistificada como sem contradições (BARROS FILHO & SÁ MARTINO, 2003; BASTOS, 2011). 7 O texto de Weber foi republicado em coletânea editada em 2005. O trabalho foi publicado originalmente como Alocução no Primeiro Congresso da Associação Alemã de Sociologia, em Frankfurt (p. 434-441).

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base para a pesquisa formal e sistemática (PARK, 1950 apud MACHADO, 2005). Por sua formação como sociólogo e jornalista, Park vincula fortemente as atividades jornalísticas e sociológicas: para ele, chegar à sociologia foi uma forma de conhecer a função das notícias e a sua influência sobre os indivíduos. Park vê a notícia como uma manifestação da sociologia do conhecimento, tendo como base o conhecimento do senso comum compartilhado pelos indivíduos. Por sua vez, o conhecimento de domínio dos sociólogos, de nível científico, resulta da pesquisa sistemática, com uso de métodos determinados. Reelaborando as proposições de Park, podemos estender esta perspectiva a todos os meios e produtos midiáticos – entre os quais os blogs, os micro-blogs e as redes sociais. Deste modo, a razão deste artigo levantar um debate teórico-metodológico de fontes sociológicas é passível de ser expandido para se pensar as teorias e as metodologias para as pesquisas no campo da comunicação. Nas relações de forças simbólicas, a mídia participa como um grupo que se articula e investe na luta para se legitimar como um campo social, porta-voz e articulador dos vários discursos que circulam na sociedade. É como se a identidade da mídia se configurasse justamente na posse dessa legitimidade, pública e oficialmente reconhecida pela coletividade dos campos sociais. O poder simbólico é determinado pela dominação que a mídia exerce e pelas relações de poder que mantém (BOURDIEU, 2004). Para Barros Filho e Sá Martino, “o indivíduo é sujeito de seu conhecimento unicamente na medida em que saiba mover-se dentro de um universo limitado, mas potencialmente ampliável de estipulação de sentidos e significados” (BARROS FILHO & SÁ MARTINO, 2003, 218). A sociologia do conhecimento trouxe luz à ideia de que mesmo as verdades precisavam ser “consideradas socialmente explicáveis, que tinham que ser postas em relação com a sociedade histórica em que apareciam” (MERTON, 1970, 557). Segundo Merton, há um problema constante que atenta para o fato do conhecimento ser influenciado pelas condições de existência. A solução para isso passa pela gênese do pensamento e o relativismo sobre a verdade. A verdade assim o é por sua base social e cultural, ou seja, é fruto do consenso social, o que significaria que a verdade é verdade dentro de um dado contexto cultural. Para Merton, “de

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premissas maiores de cada cultura é que derivam os sistemas da verdade e do conhecimento” (MERTON, 1970, 563). Como nem todas as visões de mundo são de fato válidas, verificamos que muitas vezes o que parece ser verdadeiro é mais adiante tido como ilusão, superstição ou erros socialmente condicionados. É neste terreno de (possíveis) mistificações de sentidos sobre os fatos sociais que a mídia opera, legitimando-se a si mesma como a visão de mundo que contém validade interna. No campo do jornalismo, faz parte do senso comum a compreensão de que a intencionalidade dos meios de comunicação é trazer à sociedade a verdade dos fatos. Falar de verdade na notícia remete a falar sobre que verdade se está falando. A verdade do sujeito que recebe a mensagem ou a verdade do produtor da mensagem que intervém no discurso que dá publicidade? Neste processo, a verdade vai sendo elaborada para garantir a intervenção jornalística em questões sociais, e a partir daí é fundamental pensar sociologicamente os objetos de pesquisa que advêm da mídia. Cada vez mais, a mídia ocupa o espaço de mediadora do conhecimento social que circula nas sociedades. Desde a concepção inicial de esfera pública como espaço de debate (HABERMAS, 1984) até a chegada da internet, observa-se o deslocamento do debate para a instância mediada. Os meios de comunicação legitimam os agentes culturais das diversas culturas e produzem bens culturais resultantes de fragmentações dos significados dos quais se apropriam e colocam em circulação. E nesta circulação os fenômenos sociais são apreendidos e ganham sentido, via discurso midiático, provocando ações sociais para as quais a sociologia pode voltar-se, buscando um entendimento para além das compreensões trazidas pelas narrativas dos meios de comunicação.

TEORIA E ABSTRAÇÃO Na construção teórica em sociologia, extensiva à comunicação, há a necessidade de abstração. Os conceitos abstratos são cruciais, embora a abstração traga um problema: como é possível atrelar os conceitos abstratos para os eventos cotidianos do mundo? Para isso, é preciso ter um grande número de definições operacionais – cada uma descrevendo procedimentos para discernir situações particulares ou eventos tomados pelo conceito. As

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proposições teóricas podem ser regularizadas dentro de um número diferente de formatos, proposições essas que partem de uma ideia geral e, pelo método dedutivo, descem em níveis até chegar aos fatos. A não ser que as proposições teóricas não sejam ordenadas sistematicamente, elas não podem ser testadas eficientemente. Sem algum senso de interrelação entre proposições, cada uma e todas as proposições teriam que ser testadas independentemente. As proposições teóricas conectam conceitos entre si e deixam os cientistas aptos a visualizar relações entre fenômenos no mundo. Tais proposições organizam-se no interior de esquemas de pensamentos voltados ao entendimento dos diferentes níveis de relações que o objeto passível de análise mantém com seu contexto de existência. Embora pareça contraditório, a refutação de teorias é crucial para a construção teórica. A eliminação de proposições incorretas torna a pesquisa mais acurada. Além disso, mesmo proposições que sobrevivam às refutações não podem ser dadas como “provadas”. É sempre possível reprová-la num teste empírico posterior. Claro que, se insistentemente uma proposição resiste aos testes, vai se fortalecendo e ganhando credibilidade (TURNER, 1991). Por isso, é uma falha metodológica a garantia de obtenção de respostas fechadas às questões de pesquisa em ciências sociais. Os problemas existem, mas nem sempre as respostas são únicas e objetivas. Uma bula de remédio pode ser um exemplo de controvérsia: muitas vezes um medicamento é recomendado para uma determinada doença porque a substância ativa gera o efeito esperado de cura, mas na apresentação do remédio está dito que “seu exato mecanismo de ação para o efeito esperado não é conhecido”, havendo o risco de efeitos colaterais. Isso significa que se chega a uma resposta, mas desconhece-se como: a resposta não é fechada, embora o objetivo alcance êxito, que é a cura, mas haja o risco potencial de respostas inesperadas. Alguns teóricos, como o francês Auguste Comte, desejavam fazer da sociologia o ponto de convergência e de integração de todos os saberes específicos relacionados aos fenômenos humanos. Émile Durkheim, também francês, recebe a herança de Comte e defende a concepção de hierarquização das ciências, tendo a pretensão de dar toda a explicação

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apenas à sociologia, eliminando outras formas de pensar (história, filosofia, economia, psicologia) (BOUDON, 1995). Tal como Comte, Durkheim era positivista e detentor de um sociologismo, por querer, também como Comte, que a sociologia explicasse tudo. Esta supremacia, porém, é colocada em questão pelos alemães Max Weber e Georg Simmel, que reagem às visões totalizantes. Na pesquisa administrativa norte-americana8, porém, volta-se para uma perspectiva funcionalista da ciência social: a função da sociologia é de assistente à decisão, especialmente a decisão política. É a partir do século XX que começa a ser desenhada uma nova ideia de síntese, de criação de uma teoria geral, cuja figura central foi Talcott Parsons. Tem início uma tradição descritiva e a ansiedade por uma síntese explicativa que não se concretiza. Aliás, é preciso aceitar, ao menos em nível epistemológico, a perspectiva kuhniana de que cada período de uma ciência é dominado por um paradigma, que em seguida ingressa em processo de superação por outro. A superação dos ideais de uma teoria geral, porém, não parece ter sido alcançada, mas é certo que a defesa da sociologia como explicação total já não vigora. Assim, o desenho de teorias aqui proposto de fato toma como base a sociologia, mas surge como uma proposta de estudo extensiva para o campo da comunicação. Ainda que o olhar teórico-metodológico que lançamos para os estudos de mídia tenha fundamentação sociológica, nossa intenção é de que a análise dos conflitos seja feita tanto por sociólogos como por teóricos próprios do campo no interior dos sistemas de comunicação, dentro de sua realidade, na qual surgem discursos problemáticos que legitimam uma visão normativa da sociedade e redutora de suas contradições. A dimensão sociológica pode contribuir para transformações internas desse campo, não apenas em nível acadêmico, mas em sua prática. Um estudo clássico feito por Merton (1970) trouxe uma análise sobre a propaganda no rádio e no cinema, no qual destacava os efeitos de sentido imprevistos da mensagem. Num viés funcionalista, ele pretendia estudar as possibilidades de modificações no discurso da propaganda para garantir as reações previstas em sua mensagem. Mais recentemente, 8

Nas estudos de comunicação, a pesquisa administrativa é chamada de mass communication research.

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Bourdieu (1997) fez um estudo sobre a televisão em que enfatizou a capacidade da mídia de impor princípios de visão de mundo e afirmou: “caminha-se cada vez mais rumo a universos em que o mundo social é descrito-prescrito pela televisão. A televisão se torna o árbitro do acesso à existência social e política” (BOURDIEU, 1997, p. 29). No Brasil, outros trabalhos fazem esta imersão crítica na mídia, a exemplo dos estudos de Maria Eduarda da Mota Rocha (2010) acerca da publicidade e as estratégias de legitimação do capital. Segundo ela, o discurso publicitário, entremeado ao espaço jornalístico em revistas, jornais impressos, televisivos ou nos sites da internet, é o lugar de uma retórica do capital – as empresas anunciantes – cujas mensagens de oferta de felicidade e de vida plena buscam justificar o fomento ao consumo compulsivo subjacente. Outro estudo sociológico dos meios de comunicação foi feito por mim (2010), quando analisei a construção do sentido do medo nos discursos sobre crimes violentos na mídia brasileira. As notícias tal como produzidas alardeiam riscos de crimes bárbaros a qualquer instante de nossas vidas, produzindo como efeito de sentido o medo coletivo. Estas pesquisas tentam pensar sociologicamente o campo comunicacional na contemporaneidade.

FRAGMENTAÇÃO E SUBJETIVIDADE Mesmo que o consenso teórico (no singular) dentro da sociologia, almejado pelos teóricos, continue sendo buscado, percebemos que as ideias que defendem o predomínio de uma teoria são, na verdade, resultado de um bom trabalho de divulgação, não de um fato concreto. É necessário, portanto, reconhecer a diversidade da sociologia, assim como de outras ciências – e da comunicação, vista de uma perspectiva sociológica. A clássica tensão entre agência e estrutura permanece em foco, com a busca de soluções constantes que superem as explicações dadas em nível micro e macro. Como diz Alexander (1987), é preciso articular ação e estrutura. Porém, alguns autores prosseguem em sua busca de uma teoria geral, o que próprio Alexander admite (1987, 1999). Mas, ainda que se busque esta grande teoria, deve-se considerar que a ciência moderna não produz verdade, mas sim consensos (agora, no plural), que quanto mais permanentes, mais legitimados. No entanto, estão sempre passíveis de crise paradigmática, com espaço para

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novos debates, numa volta filosófica que pressupõe o surgimento de novos paradigmas teóricos. E, como diz Alexander (1999, p. 35-36), “as condições que Kuhn define para a crise paradigmática nas ciências naturais são rotineiras nas ciências sociais”. O grande desafio científico é assumir as descobertas amparadas na subjetividade, aceitando a transitoriedade das respostas. Não defendemos a supremacia do indivíduo, mas sim um olhar mais acurado sobre sua dimensão emotiva na pesquisa social. Por isso, há de se reservar o espaço do sujeito e da razão. Se a ciência tem como função melhorar a qualidade de vida dos indivíduos, como pode ser ela racional e objetiva para estudar o irracional e o subjetivo? Mesmo as grandes pesquisas são transitórias, por mais que se tenha um objeto localizado num contexto no qual se buscam as invariantes, numa prática sociológica reflexiva, na qual se relacionam objeto e meio, objeto e contexto, seja entre campos distintos, seja do mesmo campo em épocas distintas (BOURDIEU, 2004). De partida, recusamos o método positivista, o apriorismo e as verdades universais e concordamos com a perspectiva nietszcheana de que a verdade é uma suposição humana. Pesquisas sobre os efeitos da mídia nos indivíduos ou a capacidade interventiva dos indivíduos sobre os meios de comunicação, sobre o discurso midiático acerca do crime e da violência, sobre questões de gênero ou sobre a relação de jovens com a publicidade ou o consumo, por exemplo, mostram que as realidades estão imersas num contexto sociocultural dinâmico, diverso no tempo e no espaço. É fundamental a prática da dúvida radical defendida por Bourdieu (2004), sem escapar do decreto essencial da pesquisa: a pesquisa como busca racional, não como atividade mística, mas uma razão que esteja em relação com a emoção, algo como certa racionalidade movida pela paixão. É preciso exercer o ofício da pesquisa aceitando o inacabado. Bourdieu (2004) fala da obra acabada antecedida pela confusão, pelo esboço, pelo retoque e o risco de se estragar todo o resultado “pela moral do trabalho bem feito, bem acabado”, na qual a estética acadêmica é a expressão (BOURDIEU, 2004, p. 19). Enfim, aceitar as respostas inconclusas, as hesitações, os embaraços. Karl Marx colocaria a questão em termos de determinação da ação do indivíduo por forças subjetivas, em busca de projetos e destinos comuns. Talcott Parsons, partindo de uma

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sociologia positivista, dispôs sobre valores como fundamentais para a ação humana, embora não tenha explicado a natureza desses valores. Em comum, havia entre muitos teóricos a tendência à racionalidade, fazendo-os evitar o contato com os rituais de catarse, as emoções incompreensíveis, as solidariedades e os mistérios do mal contidos nas sociedades. Neste sentido, muitos tomaram (e ainda tomam) como ponto de partida métodos reducionistas, nos quais as subjetividades são dispostas como produto das objetividades, considerando as irracionalidades das ações humanas como “mero reflexo das estruturas reais, como organizações, sistemas de estratificação e grupos políticos” (ALEXANDER et al., 1993, p. 10). No entanto, estes autores, que ainda perseguem uma teoria geral, defendem uma teoria que dê conta da subjetividade e da emoção nas ações: “o mundo tem irremediavelmente uma dimensão mística”, no qual estão Deus e o Diabo, o bem e o mal. Uma tendência da teoria de desenvolvimento aplicável a qualquer sociedade pode seguir um caminho no qual qualidades como racionalidade, individualidade, confiança, verdade são pertinentes ao “mundo moderno”, à esfera civil moderna; já irracionalidade, conformismo, desconfiança relacionam qualidades do “mundo tradicional” e requerem exclusão e punição. Esta tradução em esquema categórico, constituído de forma distante na tentativa de servir em qualquer cultura do mundo, é perigosa porque deixa de fora os sentimentos que atravessaram os períodos históricos, nos quais se alternam conflito e guerra, esperança utópica de transformação social, revoluções políticas e expectativa de instalação de estados de bem-estar social, períodos de normalização, desmobilização política e ordem social. Em cada região do mundo, houve aceitação, fatalismo e conservadorismo, colocando em relação binária (MELO, 2010): realismo X narrativa heroica; ceticismo X idealismo; Deus que falhou X expectativa de retorno de Deus. Mais interessante ainda é pensar que ao longo da história as qualidades ruins do tradicional e boas do moderno foram ressignificadas: considerando os paradoxos e as contradições e deixando de lado as simplificações dualistas, o moderno passou a ser visto como profano ou poluído e o tradicional como sagrado ou puro. Há uma inversão do código binário como resultado, logicamente, da reconstrução dos conceitos de ambos, dentro do processo

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histórico. Este é apenas um exemplo trazido por Alexander (1995) sobre a evolução histórica da teoria social que nos serve para explicar que os sentimentos compartilhados mudam dentro da rede de significações, dimensionando como sagrado ou profano situações ou vivências antes percebidas de modo oposto. Desta maneira, o que é sagrado para um grupo pode não ser para outro, o mesmo valendo para o sentido de profano. Além disso, o profano pode ser defendido como mal necessário numa época, ainda que tenha o sentido invertido mais adiante (as escravidões, as ditaduras, as guerras). Por esta razão, é primordial estudar os eventos sociais em sua relação com a história e com o indivíduo – resultando na reconstrução do próprio objeto analisado (BOURDIEU, 2004).

PENSANDO NO OBJETO Todo corpus de pesquisa é inevitavelmente arbitrário para atender às funções simbólicas que buscamos entender. O que garante a relevância e a confiabilidade da constituição do corpus da pesquisa é a garantia de que a nossa amostra tem amplitude significativa e um registro indexado de fontes reconhecidas, corroborando as suas origens. Além disso, é preciso ser capaz de derivar resultados empíricos a partir de nossa escolha teórica. E o que oferece relevância a este entendimento é aquilo que pode ser surpreendente, aquilo que comunica de novo à sociedade, fugindo do senso comum. Assim, é evidente que o cuidado teórico-metodológico é necessário para validar o objeto de pesquisa. É fundamental, pois, saber que o que se estuda pode estar numa dimensão microscópica, mas deve-se fazê-lo bem, com requinte teórico-metodológico. Pesquisar é inventar, sem abandonar métodos, protocolos de observação, conceitos e teorias. Seguir normas, sim; aceitar o risco de que estejam erradas, também; e ter como objeto os objetos do mundo irracional e subjetivo em que vivemos. Teoria e metodologia devem ser uma construção do pesquisador na prática de pesquisa. Assim, ele não busca apenas uma teoria, cola a ela uma metodologia e analisa o seu objeto. É preciso, a partir do objeto, construir todo o resto. A cada pesquisa um modelo; é desafiante, mas correto. O resultado de uma pesquisa pode deixar lacunas, por não dar conta de explicar tudo, mas

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aquilo que explica deve aparecer suficientemente claro e traduzir o mesmo resultado não apenas na amostra em questão, permitindo generalizações para outros fatos e circunstâncias (STINCHCOMBE, 1970; MELO, 2010). A “reciclagem” de um esquema teórico-metodológico anteriormente testado é fascinante, porque gera tranquilidade ao pesquisador ao recorrer às aspas confirmadoras reconhecidas na academia. No entanto, a prática pode redundar numa importação fraudulenta, como diz Lahire (2005), apontando para uma incapacidade do campo de estudo de analisar o objeto escolhido. Isso pode resultar num estudo forçado, cujas conclusões podem ser muitas vezes duvidosas. Mas isso não implica em partir do nada: há de se consultar Weber, Parsons, Durkheim, Marx, mas sem comprometer a especificidade e a originalidade do seu objeto. Enfim, é preciso nunca parar de olhar a realidade tal como se apresenta e aí introduzir o estranhamento do pesquisador diante de indivíduos que são bons e maus, fazem o bem e o mal, amam e odeiam. Ou seja, aceitar a incoerência da prática humana, perceber o mundo que transita entre o sagrado e o profano, entre o pecado e a virtude (ALEXANDER, 1992; SZTOMPKA, 2000; MELO, 2010). Este estranhamento é ainda mais arrojado quando se inclui teóricos mais recentes, que avançaram em relação às tensões teórico-metodológicas anteriores.

QUEBRA DE CONCEITOS Os conceitos apontam para a existência de fenômenos e são construídos a partir de definições: as sentenças de uma linguagem, os símbolos da lógica ou a notação matemática. Cada conceito permite aos cientistas visualizarem o fenômeno que é denotado pelo conceito. Embora os conceitos tentem comunicar um sentido uniforme, como são expressos através de palavras da linguagem cotidiana, é difícil evitar palavras que conotem vários sentidos. Em sociologia, a expressão de conceitos em uma linguagem especial algumas vezes é impossível e indesejável. Entretanto, é importante que os símbolos verbais usados para desenvolver um conceito sejam definidos o mais precisamente possível, de modo a que

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os mesmos fenômenos sejam pontuados de forma apreensível por todos os investigadores, mesmo que seus resultados de pesquisa sejam divergentes. O zelo teórico-metodológico não pode se traduzir em uma adesão rígida a métodos, aceitando-se estatísticas, dados e números e esquecendo-se de sua situação no mundo-dascoisas. Esta atitude produz a ruptura entre o resultado da pesquisa e a sua aplicabilidade aos seres viventes: “quem só vê porcentagens significantes não enxerga o conteúdo sendo significado” (SANTOS, 2011, p. 20). A reflexividade da vida social moderna consiste no fato das práticas sociais poderem ser constantemente examinadas e reformadas à luz de muitas informações de práticas pela pesquisa, que são constitutivamente alteradas. A reflexividade constitui-se na aplicação do conhecimento. Deste modo, o método de investigação deve ser aquele que compartilhe, ao mesmo tempo, razão e sensibilidade: o pesquisador precisa olhar para o seu objeto imbuído desta condição analítica (ALEXANDER, 2002). As análises realizadas devem conferir confiabilidade e relevância ao nosso estudo. Para isso, devem-se seguir alguns critérios, a partir de seus indicadores (GASKELL & BAUER, 2002): i. Confiabilidade – triangulação e compreensão reflexiva através de inconsistências, clareza nos procedimentos, construção do corpus e descrição detalhada; ii. Relevância – construção do corpus, descrição detalhada, valor surpresa e validação comunicativa. Ignorar o entorno do objeto é uma fuga recorrente de alguns pesquisadores, que querem o tempo todo controlar para. Assim, grandes sondagens superficiais ganham peso, mas poucos sabem ler o que elas de fato querem dizer ao mundo. A sociedade é marcada por ambiguidades úteis: o indivíduo faz uso da incoerência por conveniência. Por isso, a relação significante/significado, a coisa-em-si e o seu sentido perdem a nitidez em sua linha divisória. Como afirma o Teorema de Thomas: “se um homem define uma situação como real, ela é real em suas consequências”. Por isso, crenças9 não-realizadas são tomadas como reais e a partir delas são adotadas posturas no mundo da vida: ser contra o aborto por tomálo como pecado, convertendo a crença em lei, por exemplo. 9

Lahire (2005) diz que as crenças constituídas podem ser confirmadas pela experiência ou rompidas, quando a experiência nega a crença. Crer não exige, porém, ter disposição para agir: pode-se apenas acreditar sem nunca fazer nada sobre isso.

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Os conceitos são abstrações empregadas para organizar o inconquistável, mas são, por outro lado, simplificações e, por isso, redutoras de uma realidade que é caracterizada pela continuidade e pela heterogeneidade. O arbitrário, o simbólico marca a definição das coisas. Não importa o fato, mas como eu o vejo, e esta subjetividade na forma de ver o mundo contamina também o cientista. Foucault (1986) acreditava na transitoriedade teórica: toda teoria é provisória e está submetida a limites, produzindo conceitos que são sempre revistos, reformulados, substituídos, conduzindo análises fragmentadas e transformáveis. Não se pode defender, então, que a escolha dos caminhos da ciência seja objetiva, marcada pela evidência e pelo fenômeno. É preciso ter coragem de pensar em objetos que não estão à mostra, embora estejam no mundo da vida. Por isso, não se deve pautar-se apenas pelos problemas sociais alçados ao nível de problemas sociológicos a partir de uma agenda definida pelo campo político ou midiático (GUSFIELD, 1984; MELO, 2010). A coragem em pesquisa é escolher problemas que podem não estar em sintonia com os administradores públicos, rompendo com as pressuposições do senso comum. No dizer bourdieusiano, deve-se romper com os instrumentos de ruptura. É claro aí o receio do campo científico em incorrer num mundo que não está visível, que pode mesmo não existir, mas que carece de estudos desafiadores que façam perguntas e partam da dúvida radical. Bourdieu (2004) clama por uma sociologia que invente uma realidade a partir de projetos tradicionalmente excluídos da academia, saindo do lugar comum de estudar apenas pessoas e coisas “socialmente designadas como importantes” (BOURDIEU, 2004, p. 20). E acrescenta: “é preciso saber converter problemas muito abstratos em operações científicas práticas” (BOURDIEU, 2004, p. 20). Os objetos no campo da comunicação e o próprio campo em si precisam de um olhar sociológico para que se faça a sua crítica em seu próprio espaço, um olhar crítico às condutas em seu interior. Especialmente no campo midiático, esta atividade de pesquisa é fundamental em virtude do seu crescimento atrelado às novas tecnologias e às redes sociais, trazendo mudanças sociais velozes em diversas instâncias, subvertendo inúmeras vezes a linha que separa o público do privado no mundo da vida.

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O FIM DA VERDADE UNIVERSAL Kant distingue o mundo entre os reinos dos fenômenos (a aparência) e o das coisas-em-si (a essência) e isso provoca uma contradição na capacidade de conhecer que delega ao sujeito: se o mundo das coisas-em-si é inacessível, como é dado ao indivíduo conhecer? Para ele, o indivíduo só conhece as coisas que estão no mundo dos fenômenos, não acessa as coisasem-si. Nesta distinção entre fenômeno e essência, o indivíduo acessa sempre o fenômeno via interpretação (GRONDIN, 1999). Kant fundamenta seu pensamento em regras a priori que nos parecem incômodas, na perspectiva de que está vencida a compreensão de que há relação direta entre significante e significado, entre a coisa-em-si e o seu sentido. A verdade é relativa, cremos estar findo o ideal de verdade universal, de valores permanentes. A intenção do conhecimento é impor um sentido, e não procurar um sentido. Daí a percepção de que saber – interpretar – é lidar com o poder, na medida em que há a tentativa de imposição de uma interpretação. Conclui-se que os valores são produto da criação humana. Assim, o conhecimento não é neutro, é simbólico, carregado de significação, relacionando vontade e poder de definir, de valorar, de controlar interpretações. Se quem controla o direito de entrada não considera adequada a escolha de um objeto, ele pode ficar no limbo da ciência por tempo indeterminado. Assim, estas reflexões teórico-metodológicas são mais uma provocação do que uma resposta aos pesquisadores para que tenham coragem de estudar coisas que não estão lançadas classicamente pela ciência como problemática (ou seja, fáceis de saltar da condição de problema social para problema de pesquisa). O desafio é acessar o aparentemente medíocre e corriqueiro e inventar o caminho de pesquisa que pode desvendar o inesperado. “Praticar a dúvida radical em sociologia é por-se um pouco fora da lei”, diz Bourdieu (2004, p. 39), e eu amplio estas considerações aos vários campos da ciência, lembrando que Descartes não estendia a sua forma de pensar o conhecimento ao campo político – onde ocorrem as negociações e definições de pressupostos. Ele sabia, imagino, que a lógica social não é apreensível de modo cartesiano.

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Descartes abandona em certo momento o método positivo, substituindo o método da observação pelo método da imaginação característico do metafísico-teológico, no qual se considera as funções afetivas e intelectuais. Embora não tenha aplicado isso claramente, Descartes diz que somente a metafísica dava conta de explicar a inteligência e a moral humana. Daí seu embate e a tentativa de substituição do método positivo pelo metafísico (BENOIT, 1999). O combate ao apriorismo – no qual se constitui valores antecipados para os fatos – é fundamental na ciência, mas a este combate deve associar-se a coragem de fazer perguntas incômodas, porque tocam os dois lados do ser: afetos e paixões, de um, e intelecto, de outro. Estes dois flancos da forma de pensar, na verdade, foram divididos na história do conhecimento. No século XVII, afetos e paixões no centro de interesse; no século XVIII, foco no intelectual. No entanto, a razão, venerada como uma força superior, é dependente do voluntarismo do sentimento, que impulsiona para o conhecimento. Para Cassirer (1997), o conhecimento vem de um impulso primário e irracional, no Iluminismo, onde a paixão, o desejo e a ambição levam ao progresso da ciência e das artes. A busca do conhecimento e da elaboração de uma verdade universal atravessou a humanidade, atrelada à construção de significados para os referentes do mundo. Por muito tempo houve quem acreditasse que há um enlace direto entre as palavras e as ideias (FOUCAULT, 2000). O desenvolvimento da filosofia, porém, mostrou que esta é uma construção arbitrária, a fixação dos sentidos é simbólica: o Iluminismo permite rechaçar ideias inatas, afastando-se do divino, mas também rechaça a filosofia empírica, cuja força criadora é divina (CASSIRER, 1997). Cassirer defende a ideia kantiana de que devemos assumir nossa maioridade, renunciando ao auxílio de cima para chegar ao conhecimento, abrindo nós mesmos o caminho da(s) verdade(s). Não é correto, porém, considerar o Iluminismo como irreligioso e inimigo da fé, embora seja a partir de então que se ousa questionar o dogma do pecado original, debilitando a sua força. Kant chega a afirmar que é cômodo ser menor, com um livro que entende pelo indivíduo, dirigindo a sua consciência moral (KANT, 1995). O positivismo lógico conduz o ataque à metafísica e neutraliza a concepção da linguagem: a razão é instrumental e a

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disposição dos sentidos ofertados é dada como se não houvesse interesse e poder em sua construção (BRYANT, 1985). No entanto, que positivismo é esse cujo ponto de partida é o a priori, o dado, aceito e irrevisável, não colocado em questão? Não podemos esquecer Marx (1848), que nos alertava que a história é contada pelos vencedores, e os sentidos estão nela alojados. É necessário assumir que nossas ações vão produzir consequências previsíveis e imprevisíveis – e que a responsabilidade moral requer a presunção de liberdade. A liberdade tem o poder de garantir o direito de selecionar as ações a partir de um conjunto de possibilidades, quando os cientistas conseguem assumir que já não buscam leis gerais. A escolha do objeto é um julgamento antecipado; o conhecimento vem após a escolha do objeto a ser conhecido. Não é o caso de se colocar contra as ciências naturais, mas contra a sua dominação exclusiva. É direito e dever do pesquisador selecionar os fenômenos sociais objeto de seus estudos, o que depende de pontos de vista específicos e unilaterais. Como afirma Elster, “normas sociais podem ser introduzidas na explicação individualista, pois elas apenas „materializam‟ sua existência quando incorporadas às ações, sanções, gestos de aprovação e desaprovação de indivíduos particulares” (ELSTER, 1989a apud RATTON JR. & MORAIS, 2003, p. 386). Se as normas sociais motivam as ações, motivam as disposições do indivíduo. Este comportamento, porém, ainda que resultante das normas, contém singularidades, é contingenciado. Para Ratton Jr. e Morais:

É necessário incorporar às ciências sociais, cada vez mais, a busca pela compreensão do comportamento não racional, partindo do suposto de que tais comportamentos não são residuais e devotando especial atenção às contradições mentais relativas a este tópico (RATTON JR & MORAIS, 2003, p. 387).

Se os seres humanos são propositivos e dotados de intencionalidade, são capazes de constituir crenças e objetivos e decidir, a partir deles, como devem agir. São os mecanismos de passagem que permitem que o contexto do indivíduo resulte em determinada(s) ação(ões). Este resultado não é único, mas contém agregações que variam de indivíduo a indivíduo. No entanto, estas ações produzem resultados coletivos. Assim, como afirma Elster, é possível a explicação dos resultados sociais a partir da escolha feita pelos 17

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indivíduos, com base em suas crenças e seu ambiente de escolha (RATTON JR. & MORAIS, 2003). Quando assumimos que não há verdade universal e defendemos a particularização das teorias e metodologias, não fazemos a apologia à fragmentação sem fim, que redundaria na impossibilidade de se fazer generalizações e, mais que isso, a impossibilidade do conhecimento. A ideia de heterogeneidade da formação do indivíduo permite singularizá-lo no contexto social, o que o coloca como personagem único num contexto de pluralidades. São as estruturas estruturadas e estruturas estruturantes de que fala Bourdieu (2004). Mas, o singular se repete e, ao identificarmos as repetições, podemos captar invariantes (ainda que com perspectiva de mudança futura). E, se há o singular, ele está contido no geral, logo, é parte deste geral. Assim, não há uma oposição aos estudos quantitativos. Como afirma Lahire (2005), estatísticas fundamentadas são capazes de sinalizar as pluralidades, permitindo o caminho para detalhes reveladores, que somente podem ser aclarados quando conhecemos o contexto histórico, geográfico, econômico, antropológico. Ele destaca: “‟singular‟ não significa „não repetível‟ ou „único‟” (LAHIRE, 2005, p. 34). Porque destacamos o fim da verdade universal, é fundamental esclarecermos que o contato do indivíduo é com o mundo dos fenômenos, logo, não há o acesso às coisas-em-si. Como diz Wilson Gomes (1993, p. 70), “se as coisas que conhecemos não são as coisas em si mesmas, pois as percebemos já organizadas e essa organização é fruto de uma intervenção do sujeito, como se pode falar de verdade?”. Por isso, em cada encontro do cientista com o seu objeto vem à tona uma perspectiva, uma representação da coisa-em-si trazida ao mundo pelo olhar do pesquisador.

CONCLUSÃO Não há neutralidade axiológica nas ciências sociais, a escolha do objeto de conhecimento é determinada pelos pontos de vista, a direção da investigação empírica é orientada pelos mesmos, que determinam os conceitos utilizados. Mas vale ter coragem de rever estes conceitos. Aliás, deve ser este o imperativo categórico contemporâneo da ciência, em

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especial nos estudos da comunicação – como campo científico em processo de reconhecimento, mas carente de investigações sociológicas sistemáticas. O sentido no discurso é contingenciado: existe a norma, a crítica à norma e a interpretação (particular) da norma. Este contingenciamento consiste no aspecto ideológico do uso das palavras com as quais se constroem o discurso do conhecimento: se isso não existisse, não haveria no mundo espaço para o duplo sentido e o mal-entendido. Aliás, numa linha bourdieusiana, o mal-entendido é parte da compreensão. O esclarecimento é um mito; a dúvida, sim, tem uma perspectiva emancipatória. É ilusão achar que o entendimento produz objetividade nas teses científicas. Pode ser que pelo fenômeno escolhido como objeto se chegue à sua essência. Ou não. Wittgenstein partiu da lógica e caminhou para a dúvida, Heidegger partiu de dúvidas e caminhou para a certeza de um absoluto. Qual deles estaria correto? Pode-se escolher um dos lados, mas cremos que por trás de toda teoria e de toda metodologia se esconde poder e validade. O marco da modernidade é a subjetividade e, de nossa parte, não buscamos verdades apodíticas: a verdade sempre contém em si a falta de verdade, ou seja, o elemento faltante – o falso que a teoria tenta desvendar com a verdade que sustenta. Ao admitirmos que a ciência é um conjunto de interpretações e que há uma luta simbólica pela imposição de sentidos aos fatos estudados – tentando objetivá-la como a verdade que deve prevalecer através de uma retórica cientificista – que acabamos não sabendo onde se pode chegar. Ainda prevalece o discurso do vencedor da luta simbólica. Há que se assumir, assim, que fazer ciência é travar embates simbólicos em busca de se fazer valer argumentos. E, como desde o princípio quisemos descontruir a possibilidade da verdade invariante, afirmamos que o escrito aqui é parte desta luta e, como parte, encontra-se na batalha pelo monopólio interpretativo. Por mais que se tente, como recomenda Bourdieu (2004), por em suspenso os interesses próprios, é necessário afirmar que este artigo é um metadiscurso acerca do discurso científico ao qual pusemos em questão. Para tentar cumprir a recomendação bourdieusiana, é necessário, como nos alerta Lahire (2005), ficarmos cautelosos quanto à tendência pós-moderna da fragmentação e disseminação sem fim, o que torna impossível o conhecimento. Ao assumirmos a

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multiplicidade de criação de conceitos, teorias e métodos, evidenciando o quão complexo é estudar o indivíduo e a sociedade, o pesquisador deve buscar pontos regulares e únicos na pluralidade do comportamento humano. Ainda em Lahire (2005) encontramos ao menos parte da resposta: no processo de pesquisa, devemos estar atentos – em entrevistas, observações diretas e discursos – às variações e às constantes, dentro das múltiplas contradições do indivíduo, especialmente para dissolver a ilusão da coerência e da unidade. Por fim, cautela para não se cair no relativismo radical, ainda que o dissenso seja inerente às ciências sociais. Há sim pontos de vista em competição, conceitos divergentes (indivíduo, ator ou sujeito? Eis aí uma ausência de consenso acerca de um referente), mas ainda assim é possível o acúmulo de conhecimento acerca do indivíduo e da sociedade (ALEXANDER, 1987, 1999). Ainda que Alexander (1987) esteja engajado na ideia de uma teoria geral, a contingência da teoria é admitida por ele quando afirma a dificuldade de se aplicar explicações contingenciais em termos mais gerais. Como a ação é contingente, mas marcada pela estrutura, pensar a sociedade pressupõe dar limites à objetividade, aceitar a criatividade e entender que as normas regulam e intercambiam os dois lados da questão sociológica.

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