\"Entre a cooperação civilizadora e o conflito político: missão e império durante o novo imperialismo\" [Between civilising cooperation and political conflict: mission and empire in new imperialism]

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Entre a cooperação civilizadora e o conflito político: missão e império durante o novo imperialismo Em Agosto de 1885, na sequência de várias décadas marcadas pelas relações tensas entre o Estado português e a Cúria romana, centradas, sobretudo, nas questões dos Padroados Oriental e Africano e na conflituosa redefinição das relações entre o Estado e a Igreja em Portugal que ocorreu após a revolução de 1820, o núncio Vincenzo Vannutelli remeteu um relatório circunstanciado para Roma, no qual avaliava o estado das políticas da missão no império português. Os debates ocorridos na Conferência de Berlim de 1884-1885 e os acordos resultantes do seu Acto Geral exigiam uma reapreciação do posicionamento dos vários poderes coloniais em matérias políticas e religiosas. O mesmo sucedeu nas várias nunciaturas e nos principais órgãos da Santa Sé. Apesar das constantes promessas de reformulação e aperfeiçoamento do projecto eclesiástico e missionário nas colónias portuguesas feitas pelos governantes portugueses, em Il Portogallo e la Missioni di Africa, Vannutelli declarava que as autoridades portuguesas apenas ponderavam os “resultados comerciais e políticos da acção missionária”. A suposta autonomia do religioso, da doutrina e da prática missionárias não era protegida pelas decisões políticas estratégias diplomáticas relativas às colónias. Cerca de dois anos mais tarde, em Setembro de 1887, Vannutelli reiterava a sua opinião, perante o anúncio da criação da Junta Geral das Missões Ultramarinas. Para as autoridades portuguesas, o “serviço missionário” era apenas “um ramo do Ministério da 11

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Marinha”. A vincada subordinação do argumentário e dos interesses religiosos e eclesiásticos aos políticos afigurava-se inaceitável para o núncio(1). Contudo, contrariamente à leitura de Vannutelli e a simplificações de sentido oposto – aquelas que postulam uma sinergia perfeita entre a esfera política e a religiosa no expansionismo imperial de oitocentos e, mais concretamente, na partilha de África, ou outras que apontam para a estrita autonomia do religioso e do político –, as relações entre política e religião foram intensas mas estiveram longe de ser estáveis, foram constantes mas não foram lineares, exclusivamente marcadas ou por uma cooperação civilizadora ou por um conflito político sobre soberanias morais e territoriais ou sobre mundividências em competição. Nem sempre a esfera religiosa e as suas instâncias eclesiásticas e missionárias legitimaram ou facilitaram a expansão imperial e a consolidação colonial. Nem sempre a esfera política e as suas instâncias administrativas e militares toleraram ou promoveram a expansão eclesiástica e missionária. Mesmo quando tal sucedeu, as motivações que sustentaram tal alinhamento de interesses e de acção foram muito variadas, das justificações vincadamente teológicas ao mero oportunismo táctico(2). As relações entre ambas as esferas e respectivas instituições e actores decorreram de circunstanciais e periclitantes modi vivendi históricos. Foram persistentes mas dinâmicas. Sobreviveram sempre às retóricas unificadoras dos discursos políticos e programáticos das instituições. A constelação de possibilidades e de constrangimentos que governou a interacção entre estas esferas foi sempre mais complexa do que as leituras mais redutoras sugerem(3). A Missão da República: Política, Religião e o Império Colonial Português (1910-1926) é um trabalho original, de inegável rigor, assente na fertilização (1) Veja-se Miguel Bandeira Jerónimo, A Diplomacia do Império. Política e Religião na Partilha de África (1820-1890) (Lisboa: Edições 70, 2012), pp. 296-300. Para a política da Santa Sé no período veja-se Claude Prudhomme, Stratégie Missionnaire du Saint-Siège sous Léon XIII (1878-1903) (Roma: École Française de Rome, 1994). (2) A mais incisiva crítica aos simplismos que abundam, num sentido ou noutro, na análise das relações entre o poder político e o poder religioso no contexto do expansionismo imperial de oitocentos reside em Andrew Porter, Religion vs. Empire? British Protestant Missionaries and Overseas Expansion, 1700-1914 (Manchester: Manchester University Press, 2004). (3) Para uma síntese recente veja-se Miguel Bandeira Jerónimo e Hugo Gonçalves Dores, “As Missões do Império: Política e Religião no Império Colonial Português”, in Miguel Bandeira Jerónimo, org., O Império Colonial em Questão (Lisboa: Edições 70, Colecção História & Sociedade, 2012), pp. 119-156. Para o desenvolvimento destas questões veja-se Miguel Bandeira Jerónimo e Hugo Gonçalves Dores, As Missões do Império. A Política do Religioso em Portugal (1870-1930) (no prelo, 2015).

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ENTRE A COOPERAÇÃO CIVILIZADORA E O CONFLITO POLÍTICO

cruzada de historiografias, baseado em inúmeros arquivos nacionais e internacionais, muito bem fundamentado e que corrige adquiridos historiográficos, reinantes dentro e fora da academia. As relações entre o político e o religioso, sobretudo no que concerne à evangelização e à missão em contexto internacional, metropolitano e colonial, são analisadas de modo escrupuloso, embaraçando os autores de simplismos de vária ordem, sobretudo os que reproduzem, sem qualquer distanciamento, a retórica e as disputas políticas da época e os que, posteriormente, procuram vigiar a história e a sua memória. Ao contrário dos que exploram os dados históricos com o mero objectivo de participar (e beneficiar) das políticas da memória, promovendo ou aceitando como válidas lógicas de análise histórica que visam meramente acusar ou ilibar indivíduos (normalmente os grandes homens) e instituições (sobretudo os ditos pilares da sociedade, porquanto relativamente imunes aos processos de recomposição política que marcaram o século passado: a igreja, as forças armadas, a diplomacia...), este livro explora, de modo equilibrado e com uma fina análise, a diversidade de motivações e interesses de múltiplos actores e instituições, operantes em espaços sociais diversificados, dos encontros internacionais aos lugares coloniais onde a prática missionária se exercia. A este propósito, aliás, este livro revela com clareza as limitações das opções analíticas e metodológicas, estabelecidas a priori e determinadas ao arrepio de qualquer conhecimento aprofundado dos vários arquivos de relevo, que postulam o privilégio de uma única escala de análise ou que reproduzem acriticamente “modelos” bottom-up ou top-down, cuja substância e sentido objectivos estão por determinar. Estes modelos podem servir para criar movimentos e posições de análise, mas dizem muito pouco sobre os processos que deviam iluminar e explicar. A reserva em relação à adopção acrítica do jargão em voga (e das correspondentes metodologias) é certamente uma das características a destacar neste trabalho, com todos os riscos de ostracismo que ela acarreta. O esforço metodológico e analítico de interpretação das intrincadas articulações entre as dimensões políticas e religiosas (eclesiásticas e missionárias) dos fenómenos imperiais e coloniais nos planos internacional, transnacional, metropolitano, regional e local revela-se bem mais importante. E mais proveitoso, acrescente-se(4). (4) Para outros exemplos importantes, veja-se Vincent Viaene, «International History, Religious History, Catholic History: Perspectives for Cross-Fertilization (1830-1914)», European History Quarterly, 38 (2008), pp. 578-607. Para o caso português veja-se ainda

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A MISSÃO DA REPÚBLICA

Outro aspecto a salientar é que A Missão da República demonstra, de modo inequívoco e judicioso, a centralidade da definição de uma política de missão na definição do regime republicano, que, em inúmeros sentidos, por vezes contraditórios, prolonga a importância daquela na definição histórica do regime monárquico. A interrogação acerca das relações do político e do religioso em função das interacções dinâmicas de inúmeros actores históricos, situados em diversas escalas de análise, é assim acompanhada por um salutar, e pedagógico, questionamento da subordinação da análise histórica às cronologias formais do político e às putativas características a-históricas atribuídas recorrentemente a cada um dos respectivos regimes. Este trabalho fá-lo sem se revelar incapaz de identificar o que mudou, como mudou e por que mudou. Deste modo, como já notámos acima, a reprodução simplista dos discursos e das práticas de diferenciação política, ideológica e religiosa que alimentaram o espaço público nacional (e internacional) desde as guerras da cultura do século XIX, na sua relação com o fenómeno do dito novo imperialismo, torna-se mais difícil. Torna-se claro, a partir deste trabalho, que os momentos aparentemente excepcionais não o são de modo cristalino, nem são privilégio de um regime, de uma ideologia, de um momento histórico(5). Ao alargar o enquadramento analítico a processos internacionais e transnacionais e ao convocar experiências semelhantes noutros contextos metropolitanos (dois aspectos que podiam e deviam ser mais explorados), este livro contribui para que possamos apreciar criticamente as abundantes propostas de singularidade e de excepcionalidade oriundas de estudos fechados nos limites, determinados a priori, dos regimes políticos, dos casos nacionais, do local, de um determinado actor individual ou institucional (6). Para além do mais, ao iluminar a centralidade da política de missão, este livro contribui de modo decisivo para a correcção de dois problemas historiográficos evidentes: o da desvalorização da importância do fenómeno religioso, eclesiástico e missionário na compreensão do fenómeno colonial e o da marginalização do Miguel Bandeira Jerónimo e Hugo Gonçalves Dores, “Internacionalismos en competición: Política, religión y el Imperio colonial portugués (1890-1930)” (no prelo, 2015). (5) Clark Christopher e Wolfram Kaiser, orgs., Culture Wars. Secular-Catholic Conflict in Nineteenth-Century Europe (Cambridge, Cambridge University Press, 2003); Andrew Porter, Imperialismo Europeu, 1860-1914 (Lisboa: Edições 70, Colecção História & Sociedade, 2011). (6) Vejam-se, por exemplo, inúmeros casos semelhantes ao português em James P. Daughton e Owen White, orgs., In God’s Empire. French Missionaries and the Modern World (Oxford: Oxford University Press, 2012).

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ENTRE A COOPERAÇÃO CIVILIZADORA E O CONFLITO POLÍTICO

estudo da conflituosa política da missão na história religiosa ou eclesiástica do país (7). Por todas estas razões (e algumas outras que convidamos o leitor a descortinar), que adquirem expressão concreta ao longo das páginas que se seguem, A Missão da República constitui uma indispensável contribuição para o estudo integrado da história portuguesa e dos seus projectos imperiais, da história dos impérios coloniais europeus e do papel nesta desempenhado pelas relações entre “império” e “missão”, das diplomacias do imperialismo, da história internacional do colonialismo e da religião organizada e da história das relações entre universalismos e nacionalismos em competição, os associados às esferas cristãs (com suas rivalidades intestinas) e aqueles associados ao Estados-império.

MIGUEL BANDEIRA JERÓNIMO Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa

(7) Aspectos já apontados em Miguel Bandeira Jerónimo, A Diplomacia do Império, pp. 13-14.

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