Entre a espada e a balança da Têmis burguesa: da multidão como homini sacrii em potência (Trabalho de Conclusão de Curso)

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ UENP – CAMPUS DE JACAREZINHO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CURSO DE DIREITO

Entre a Espada e a Balança da Têmis Burguesa: a Multidão como Homini Sacri em Potência – Por uma Desconstrução do Sistema Penal sob a Ótica Marxista

DIOGO MARIANO CARVALHO DE OLIVEIRA

Jacarezinho-PR 2015

DIOGO MARIANO CARVALHO DE OLIVEIRA

Entre a Espada e a Balança da Têmis Burguesa: a Multidão como Homini Sacri em Potência – Por uma Desconstrução do Sistema Penal sob a Ótica Marxista

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Centro de Ciências Sociais Aplicadas da UENP como requisito parcial para a obtenção do grau de Bacharel em Direito.

Orientador: Ms. Luiz Fernando Kazmierczak

Jacarezinho-PR 2015

DIOGO MARIANO CARVALHO DE OLIVEIRA

Entre a Espada e a Balança da Têmis Burguesa: a Multidão como Homini Sacri em Potência – Por uma Desconstrução do Sistema Penal sob a Ótica Marxista

Esta monografia foi julgada adequada para a obtenção do grau em Bacharel em Direito e aprovada em sua forma final pela Banca examinadora do Centro de Ciências Sociais Aplicadas – UENP.

Banca Examinadora

Prof. Ms. Luiz Fernando Kazmierczak (orientador)

Prof. Dr. Marcos César Botelho

Prof. Dr. Fernando Brito de Alves

Jacarezinho, 11 de Setembro de 2015.

Agradecimentos Antes de começar esta tarefa, devo ressalvar que a ordem e a forma de disposição destes agradecimentos não reproduz de forma alguma o grau de importância de cada um dos agradecidos, já que eu acabaria por incorrer numa injustiça ao dar a impressão de que alguns me ajudaram mais ou melhor que outros. A verdade é que cada uma das pessoas que aqui agradeço possuíram importância fundamental para a feitura desse trabalho e, principalmente, para que eu pudesse concluir minha graduação. Sem elas esse trabalho não seria o que é e tampouco eu seria quem sou. Agradecer talvez seja uma das tarefas mais difíceis. Primeiramente porque a memória às vezes me trai, o que pode me impedir de lembrar de todos aqueles que deveriam ser lembrados; segundamente, porque a minha própria limitação pessoal sobre o léxico talvez me seja um obstáculo quanto à precisão e fidelidade dos agradecimentos deste trabalho se comparado à verdadeira gratulação pessoal que carrego. Por essa razão, advirto: ainda que o texto não seja capaz de transmitir de maneira verossímel minha real gratidão, os agradecimentos que passo a redigir não poderiam ser mais sinceros. Por uma questão de lógica temporal, começo por eles, aqueles que colocaram sobre mim os primeiros olhos e braços protetores e através de quem descobri os primeiros tons e texturas do mundo sensível. Alçamos nossos pais e mães quase que para além do transcendental, como se eles fossem figuras mágicas, indestrutíveis e imortais que tudo podem resolver. No entanto, quando crescemos, começamos a perceber que eles tentam ser toda essa fortaleza sim, mas porquê querem lhe transmitir toda a segurança e proteção do mundo; a carne que deve ser rocha, mas nunca o poderá ser, eis o tamanho do fardo. Esse simples sentimento já seria o suficiente para que eu louvasse meus pais, pois acredito que, em última instância, tudo o que desejamos nessa vida é o amparo de lugar seguro. No entanto, foram tantas e tão importantes as contribuições de meus pais para a minha vida, seja no âmbito sentimental, material ou moral, que jamais poderia eu agradecê-los apenas com as palavras que existem; muito menos o poderia fazer neste exíguo espaço. Portanto, Valter e Rubia, pela própria e imanente impossibilidade de redigir-lhes um agradecimento apropriado, deixo-lhes o

meu amor e o mais profundo e sincero obrigado por tudo o que fizeram e fazem por mim. Sigo, e agora me regozijo, pois nem todos têm o privilégio de dividir o lar com irmãos. E, ao falar de divisão, o termo talvez pareça ter uma conotação negativa. Dividir significa decompor, quebrar, repartir, compartilhar. Ou seja, dividir é rejeitar o eventual desejo e a possibilidade de se possuir um objeto por inteiro. Apesar disso, contrariando a lógica do contexto semântico, não vejo nada melhor do que poder dividir tudo que possuo com os meus irmãos: “a alegria compartilhada é alegria redobrada” e, nesse sentido, a tristeza dividida é a tristeza que se dissipa. Por isso agradeço e enalteço o amor pelos irmãos que tenho: ao Douglas, pessoa da mais boa índole e caráter, sujeito que sempre enxerguei como espécie de bússola moral pela qual pude me orientar e que constantemente me protegeu; à Carol, minha irmã, pessoa com quem divido toda a minha vida, alegrias e agruras, desde o útero até hoje e sobre quem projeto a proteção que outros puderam me proporcionar. Extendo também com muito carinho, ainda que um tanto contido, um especial agradecimento aos meus amigos. Ao longo destes cinco anos de graduação tive o imenso privilégio de conhecer uma quantidade inesperada de pessoas maravilhosas que tornaram a experiência de desbravar esse mundo algo absolutamente sensacional e muito menos angustiante. Pelos motivos que expus acima, prefiro não delimitar nomes, até mesmo porque esses que aqui agradeço sabem eles mesmos que lhes devo minha amizade e acima de tudo minha gratidão. Portanto, agradeço profundamente por todos os ombros oferecidos, por todos os abraços dados, por todos os conselhos oferecidos, por todas as ideias debatidas, por todas as discussões filosóficas e por todas as desculpas aceitas. À vocês, minha família fora do lar, meu eterno amor e reconhecimento. Além disso, não poderia deixar de agradecer também a minha companheira, parceira e amiga, Lizandra, uma das pessoas mais maravilhosas que já conheci na vida, mulher que me acompanhou ao longo de toda a produção desse trabalho e me ofereceu segurança, apoio e compreensão incondicionais para que eu pudesse perseguir meus sonhos, mas que acima de tudo, me ensinou o que é o amor genuíno e me faz querer ser sempre uma pessoa melhor. À você, meu mais profundo e sincero obrigado.

O amor, o carinho e a admiração que tenho por ti possuem e sempre possuirão um lugar reservado em mim. Por isso, além de lhe agradecer, eu desejo que o destino e o tempo lhe sejam como são os pais para os filhos, proporcionando à voce tudo de melhor que puderem proporcionar. Que você conquiste tudo o que deseja e realize todos os seus sonhos, pois merecimento com certeza nunca te faltará. Ao Prof. Ms. Luiz Fernando Kazmierczak, excelente professor por quem tive a honra de ser orientado, agradeço não apenas pela orientação e por toda a discussão de ideias, mas principalmente pela confiança depositada em mim. Jamais esquecerei de seus impulsos e incentivos nesse caminho que escolhi seguir e por eles lhe sou muito grato. Ainda, não poderia deixar de agradecer à Universidade Estadual do Norte do Paraná, aos professores e a todos os profissionais que contribuem e contribuíram para a manutenção material e imaterial de nosso espaço acadêmico. Graças a este espaço e a todos que nele colaboram pude começar a me embrenhar com determinação, seriedade e alegre inquietação numa das tarefas que me é das mais caras e dificultosas: compreender o mundo.

Bom, mas para que? Sim, não és venal, mas o raio Que sobre a casa cai também Não é venal. Nunca renegas o que disseste. Mas que disseste? És de boa fé, dás a tua opinião. Que opinião? Tens coragem. Contra quem? És cheio de sabedoria. Para quem? Não olhas aos teus interesses. Aos de quem olhas? És um bom amigo. Se-lo-ás do bom povo? Escuta pois: nós sabemos Que és nosso inimigo. Por isso vamos Encostar-te ao paredão. Mas em consideração Dos teus méritos e das tuas boas qualidades escolhemos um bom paredão E vamos fusilar-te Com boas balas atiradas por bons fuzis E enterrar-te Com uma boa pá debaixo da terra boa. Bertold Brecht

OLIVEIRA, Diogo Mariano Carvalho de. Entre a Espada e a Balança da Têmis Burguesa: a Multidão como Homini Sacri em Potência – Por uma Descontrução do Sistema Penal sob a Ótica Marxista. 2015. 167f. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Centro de Ciências Sociais Aplicadas da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP), Jacarezinho – PR. 2015.

Resumo O presente trabalho busca estudar, sob uma metodologia específica, os fenômenos que se estendem na relação entre penalidade e economia. Para tanto, o que intentou-se inicialmente foi uma teorização sucinta do surgimento e da evolução das penas e das teorias punitivas, estabelecendo-se em seguida, na segunda parte deste trabalho, o marco teórico que orienta essa pesquisa e, na terceira parte, uma delimitação dos problemas atuais que permeiam a sistemática penal. Nesse sentido, a tarefa que se esboça – sem pretensão alguma de esgotar o tema que lhe conforma – parte de uma crítica marxista do Direito enquanto aparato ideológico de dominação e controle social sobre determinadas classes politicamente selecionadas, utilizando-se para tanto de uma metodologia materialista-histórica. Ao percalço desse método, o que constatou-se foi a imanente relação entre as políticas econômicas e as políticas penais da modernidade, onde ambas se interelacionam e mutuamente influenciam-se, de tal forma que as alterações estruturais de uma repercutem diretamente no complexo organizativo da outra. Para que tal conclusão pudesse ser alcançada foi necessário expor como o Direito se constitui como uma forma

de

dominação

enquanto

roupagem

jurídico-ideológica

do

discurso

hegemônico capitalista, analisando as implicações de uma sociedade disciplinar inserida em um paradigma de produção fordista que posteriormente desembocará em um pós-fordismo caracterizado pelo trabalho imaterial, pela ruptura com a tradicional estruturação capitalista e corolária formação de uma nova figura social, a Multidão, inseridos num contexto de controle social biopolítico. O que se desvela ao final é a existência concreta no âmbito prático de uma política penal de aprisionamento do risco, de contenção espaço-temporal de classes indesejadas, de exclusão e marginalização social e de uma expropriação violenta e ilegítima de direitos e garantias. Palavras-chave: Penalidade. Controle social. Marxismo. Biopolítica.

OLIVEIRA, Diogo Mariano Carvalho de. Between the Sword and the Balance of the Borgeouse Têmis: the Crowd as Homini Sacri in Potency –For a Desconstruction of the Penal System under the Optic of the Marxism. 2015. 167f. Course Conclusion Work (Law Graduation). Applied Social Sciences Center of State University of the North of Paraná (UENP), Jacarezinho – PR. 2015.

Abstract The present work seeks to study, under a specific metodology, the phenomenons which that extend in the relationship beetwen penalty and economy. Therefore what was brought initially was a theorizing brief of the appeareance and the evolution and the penalties and the punitive theories, establishing then, in the second part of this work, the theoretical framework that guides this research and, in the third part, a delimitation of the current issues that permeates the criminal systematic. In this sense, the task that is outlined – without any claim to exhaust the theme that shapes itself – starts of a marxist crítica of the Law while as na ideological apparatus of domination and social control over certain politically selected classes, using for that a historical-materialist metodology. On the mishap of this method, what was found was the immanent relationship beetwen the economic policies and the penal policies of modernity, where both interrelate and mutually influence each other, such that the structural alterations of one has a direct impact on the organizational complex of the other. For that such a conclusion could be reached it were necessary to expose how the Law constitutes itself as a way of domination while legalideological drapery of the capitalist hegemonic speech, analysing the implications of a disciplinary society inserted into a fordist production paradigm that later will culminate in a post-fordism characterized by immaterial labor, the rupture with the traditional capitalist structure and corollary formation of a new social figure, the Crowd, entered in a biopolitical social control context. What is revealed at the end is the concrete existence in the pratical level of a criminal policy of entrapment of the risk, of spatiotemporal containment of unwanted classes, of exclusion and social marginalization and violent and unlawful expropriation of rights and guarantees.

Keywords: Penalty. Social control. Marxism. Biopolitics.

SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 11

1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E TEÓRICA DO SISTEMA PENAL .......................... 14 1.1 Noções Introdutórias ............................................................................................. 14 1.2 Perspectivas Históricas da Penalidade ................................................................ 18 1.2.1 A Cultura dos Povos Primitivos.............................................................. 18 1.2.2 A Antiguidade ........................................................................................ 20 1.2.3 A Idade Média........................................................................................ 24 1.2.3 A Idade Moderna ................................................................................... 26 1.3 Contruções Teóricas Sobre a Finalidade da Pena ................................................ 35 1.3.1 Teorias Absolutas ou Retributivas ......................................................... 35 1.3.2 Teorias Relativas, Preventivas ou Utilitárias .......................................... 39 1.3.3 Teorias Mistas ou Unificadoras.............................................................. 44 1.3.4 Teoria da Prevenção Geral Positiva ...................................................... 45

2 CAPITALISMO, DIREITO E CONTROLE SOCIAL ................................................. 50 2.1 Poder e Ideologia – Entendendo o Papel do Direito na Consolidação do Capitalismo.................................................................................................................. 51 2.2 A Lógica do Capital - Penalidade e Disciplina ....................................................... 64 2.3 Gênese e Desenvolvimento da Penalidade no Mundo e no Brasil ........................ 76 2.3.1 A Penalidade no Berço do Capitalismo Europeu – Bridewells, RaspHuis, Hóspitaux Géneraux e o Trabalho Carcerário .................................................... 76 2.3.2 Revolução Burguesa no Brasil – Ascensão do Capitalismo e Penalidade ................................................................................................................. 101 3 O CAPITALISMO E A PENALIDADE HOJE – O CONTEXTO BIOPOLÍTICO ...... 124 3.1 O Mundo com Ford e Depois de Ford – Trabalho Imaterial e Multidão ................ 125 3.2 O Novo Contexto Pós-Disciplinar – Bem Vindo ao Deserto da Biopolítica ........... 136 3.3 Sistema Penal Deslegitimado – Excesso Negativo e Atuarialismo ...................... 142

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 157

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................................... 161

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Introdução A história da penalidade e das instituições penais não pode ser compreendida sem que se entenda também a própria história das sociedades e de seus arranjos economico-políticos. Ao longo da história, a penalidade sempre existiu. No início, encontrava-se sempre vinculada ao entrecho da justiça divina. Essa forma de estabelecimento e reprodução do discurso penal encontrava-se visceralmente ligada à própria formação das primeiras sociedades, caracterizadas essencialmente pela

figura

de

um

poder

soberano

divino

representante

de

desígnios

transcendentais. Com algumas alterações deflagradas pelas próprias tranformações políticas e sociais, e consequentemente dos critérios de legitimação da soberania, a penalidade vai se modificando, constituindo tipos diversos de sistemas e aparatos penais

ao

longo

do

séculos;

as

penas

mais

comuns



desenvolvidas

fundamentalmente sobre a punição do corpo do infrator – como a pena de morte, os suplícios, as galés, o banimento, etc. – pouco a pouco vão sendo substituídas por novas formas de sanção. Com o advento do Iluminismo – Aufklärung – o que se verifica é o prelúdio da sobrepujança da razão sobre a religião, do logos sobre o theos, do poder político sobre o poder divino. Esse período marca assim profundas vicissitudes que permearão todos os âmbitos do social, afetando principalmente o direito, a política e a penalidade. A legitimidade do poder soberano não funda-se mais agora sob a aprovação divina, mas sob o reconhecimento da vontade soberana supostamente ratificada pelo povo, alteração que permite, a partir da Revolução Francesa, o surgimento do império de uma dominação política encabeçada pela burguesia e que se legitima pela suposta implementação e luta pelos direitos à liberdade e à igualdade. O que irá se notar, porém, é que a partir do “Esclarecimento”, visto pela maioria como evento paradigmático de triunfo da razão e de concepção dos direitos humanos, deflagra-se o estabelecimento cada vez mais sólido do capitalismo e da dominação da burguesia sobre o proletariado. E essa relação de poder irá produzir sua legitimação precipuamente por meio do Direito.

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Não se pretende, porém, dizer que o capitalismo nasceu apenas a partir da realização do momento paradigmal que foi a Revolução Francesa. Pelo contrário, é necessário compreender, nos dizeres de Marx, o surgimento do modo de produção capitalista como um processo natural-espontâneo. Dessa forma, pode-se determinar a gradual formação do capitalismo ainda a partir do declínio do feudalismo nos séculos XIII e XIV onde já se torna possível visualizar algumas das categorias e formas descritas por Marx na obra d‟O Capital. A forma-mercadoria, a forma-social e a forma-trabalho nascem gradualmente dentro do modo de produção feudal e aos poucos vão tomando contornos mais definidos a partir do processo de acumulação primitiva do capital e principalmente a partir da Revolução Industrial inglesa. Em contínuo, seria possível afirmar que é essencialmente a partir da Revolução Francesa que se determina então uma forma-jurídica conformada aos moldes do modo de produção capitalista. Ainda, também não se deve compreender o capitalismo como uma invenção burguesa ou mesmo como um sistema lógico previamente teorizado e colocado em prática. Como exposto, ele deve ser visto como um processo espontâneo-natural, isto é, um modo de produção que surge como imanência do próprio devir histórico. Pressupõe-se assim que o termo capitalismo deve ser entendido como conceito, ou seja, como termo semântico-teórico que procura abarcar a totalidade dos processos e transformações que produz. Todas essas formas hifenízadas que são teoricamente propostas juntamente com o método descritivo, conceitual e historiográfico do processo de transformação e consolidação do capitalismo constituem premissas que acabam por determinar e determinarem-se pelo plano ontológico. Dessa feita, somente torna-se plausível compreender as feições do modo de produção capitalista se abstraírmos suas formas e categorias sob sua lógica. Assim, para que se possa estudar essencialmente o estado das coisas, a política, a econômica, o direito e a penalidade, é necessário partir da premissa de que todos os processos econômicos, políticos e sociais estão determinados, ainda que dialoguem dialeticamente entre si e com sua superestrutura, pelos dados ontológicos constituídos dentro de um modo de produção totalizante, universal e singular. Portanto, a penalidade deve ser enxergada para além da concretude político-social que lhe delimita, pois, já que, à guisa do materialismo históricodialético, tenciona-se uma ruptura com as formas de exploração humana, a única

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forma de alcançar uma solução definitiva para o problema da exclusão social e da marginalização não deve ser pela crítica, realizada e conformada dentro da própria lógica do total singular, mas sim pela metacrítica, que deve se realizar de modo a tentar transpor os limites impostos pela weltanschauung – visão de mundo – do modo de produção capitalista. Dessa feita, o que se tenciona no presente trabalho não é oferecer ao seu campo de estudo uma solução pronta e prática aos problemas que decorrem da penalidade inserida no contexto de uma sociedade global capitalista, mas sim direcionar uma metacrítica que demonstre a origem e a profundidade dessas questões na esperança de que ela possa oferecer os primeiros fios condutores de uma superação do paradigma da exploração, da exclusão e da marginalização social perpetuados pela sistemática penal. Para a realização dessa árdua tarefa, é necessário, portanto, investigar não apenas os processos de formação e consolidação do modo de produção capitalista, mas também de alguns de seus desdobramentos nos âmbitos econômico, político e penal, a fim de que se possa, ainda que de forma parcial e esboçativa, compreender todo o devir histórico do capitalismo, condicionado pela praticabilidade social determinada pelas relações materiais, seu estágio atual e suas consequências na penalidade do contemporâneo.

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1 CONSTRUÇÃO HISTÓRICA E TEÓRICA DO SISTEMA PENAL

1.1 NOÇÕES INTRODUTÓRIAS

Inicialmente, antes de empreender-se o estudo do sistema penal sob uma perspectiva materialista-histórica crítica, é mister a conceituação das expressões “Direito Penal” e “sistema penal”, objetos essenciais deste trabalho. A princípio, o Direito Penal deve ser entendido simplesmente como o conjunto sistematizado de normas penais, regras jurídicas que definem condutas e comportamentos obrigatórios que, quando não observadas, terão como efeito uma medida sancionatória. O sistema penal, por sua vez, deve ser abstraído sob um alcance mais amplo, apresentando-se como complexo organizado do controle social institucionalizado. Zaffaroni e Pierangeli descrevem que por meio da expressão “Direito Penal” deve-se entender uma significação de aspecto dúplice. Dessa forma, o Direito Penal constitui: 1) um conjunto de normas penais; 2) um sistema de interpretação do saber penal1. Portanto, o Direito Penal apresenta uma ciência que opera tanto na estruturação de um conjunto de normas, como também pela formação um saber jurídico que objetiva a tutela de bens jurídicos e a definição do alcance e dos postulados interpretativos de como essa proteção deve se projetar. Outra maneira de dar forma ao conceito de “Direito Penal” é perceber a sua finalidade. Segundo Rogério Greco, o Direito Penal possui como precípuo fim garantir a proteção dos bens mais importantes e indispensáveis para a manutenção da sociedade2. Sob uma acepção técnico-jurídica, Bitencourt preconiza que o Direito Penal é um aglomerado de normas jurídicas que se caracteriza pela positivação de condutas e situações que repercutem na esfera penal; para que sua observância seja obrigatória, essas normas devem também estar acompanhadas por sanções – 1

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 79. 2 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 2.

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penas ou medidas de segurança – que poderão ser aplicadas caso a lei penal seja descumprida3. De forma sincrética, é possível definir o Direito Penal como:

O segmento do ordenamento jurídico que detém a função de selecionar os comportamentos humanos mais graves e perniciosos à coletividade, capazes de colocar em risco valores fundamentais para a convivência social, e descrevê-los como infrações penais, cominando-lhes, em consequência, as respectivas sanções, além de estabelecer todas as regras complementares e gerais necessárias à sua correta e justa aplicação4.

Assim, o Direito Penal se lança como ramo do Direito que busca a tutela dos bens mais importantes da vida; ele assume o papel de tutela dos bens máximos da vida, fundamentais para a existência digna do indivíduo, que ganha forma no mundo jurídico através de um conjunto de normas e de um verdadeiro ramo do saber que tem como finalidade definir a aplicabilidade e o alcance das leis penais e auxiliar na interpretação dessas normas. E para que possuam imperatividade e força coercitiva, elas caracterizam-se, precipuamente, pela aplicação de sanções que possuem o intuito principal de coibir o seu descumprimento, ocorrência que colocaria em perigo os valores construídos socialmente. Denota-se, pois, que várias são as concepções contemporâneas do que vem a ser o Direito Penal e qual é a sua finalidade, de tal forma que não pretende-se esgotar aqui o conteúdo dessa expressão. O que importa para o presente estudo, todavia, não é especificamente o conceito, alcance e objeto do Direito Penal, mas sim a forma como ele se revela e produz consequências no plano fático. À luz da concepção de Direito Penal, torna-se enfim tangível significar a expressão “sistema penal”, objeto elementar do estudo dessa pesquisa. Apesar da proximidade semântica e da inegável influência do Direito Penal em relação ao sistema penal, ele ocupa apenas um lugar bem limitado neste instituto que guarda em si um campo muito mais amplo de atuação5:

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal 1. 17. ed. São Paulo: Saraiva. 2012. p. 2. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: volume 1, parte geral: (arts. 1º a 120). 16 ed. São Paulo: Sairava. 2012, p. 1. 5 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. p. 65. 4

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O sistema penal é a parte do controle social que resulta institucionalizado em forma punitiva e com discurso punitivo. [...] Chamamos “sistema penal” ao controle social punitivo institucionalizado, que na prática abarca a partir de quando se detecta ou supõe detectar-se uma suspeita de delito até que se impõe e executa uma pena, pressupondo uma atividade normativa que cria a lei que institucionaliza o procedimento, a atuação dos funcionários e define os casos e condições para esta atuação. Esta é a ideia geral de “sistema penal” em um sentido limitado, englobando a atividade do legislador, do público, da polícia, dos juízes, promotores e funcionários da execução penal6.

Portanto, verifica-se que o sistema penal vai além da esfera de influência do Direito Penal, permeando limites mais amplos que este. Não se trata apenas da aplicação, alcance e interpretação da lei penal, mas sim do aparato penal enquanto instrumento de controle social institucionalizado e que possui como fim precípuo a penalização e a reverberação do discurso punitivo. Além da aplicação da norma penal e de suas consequências, deve-se observar também o envolvimento de uma série de outros mecanismos que integram o aparato estatal e auxiliam no processo punitivo, criando e realizando medidas repressivas e controladoras que no mundo das aparências não guardariam nenhuma relação com a sistemática penal7. O sistema penal, portanto, não encontra-se afeto especificamente ao Direito Penal ou mesmo ao Direito Processual Penal, já que caracteriza-se pela correlação com várias outras instâncias do saber, relacionando-se indissociavelmente com o fenômeno punitivo como um todo. Importa destacar ainda, no que tange à finalidade do sistema penal no âmbito teórico, que ele supostamente se constituria sob a diretriz de atingir igualitariamente todas as pessoas que realizam condutas penalmente tipificadas, atuando sob o primacial escopo de garantir a justiça social8. Todavia, o sistema penal efetiva um papel muito mais profundo e preocupante no âmbito social; trata-se da construção de uma eficiente estrutura de controle e vigilância responsável pela manutenção da ordem social e pela exclusão e marginalização de parte da sociedade. Nesse sentido, consoante os dizeres de Kazmierczak, essa estrutura denominada sistema penal tende a se afirmar por meio 6

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 65, 66. 7 Ibidem, p. 65, 66. 8 KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. Por um sistema penal não excludente: uma releitura constitucional do direito penal. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2009, p. 51.

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do controle social e de seus aspectos punitivos, sendo um dos métodos mais truculentos de conservação9. Em virtude do exposto, é possível concluir que:

O sistema legal [penal] trabalha como um aparato de sustentação e imposição da ordem, afastando o caos e a ambivalência, em relação com outros sistemas sociais, culturais, econômicos, contruindo uma imensa rede sistemanticamente organizada. O Direito, em especial o Direito penal, não mais tem relação com a falta moral ou religiosa, e sua fonte está no poder político da sociedade e não na lei natural10.

Portanto, muito mais do que um conjunto de normas ou de regras que determinam e impõem determinados comportamentos, teoricamente com a finalidade de garantir a paz social e o respeito aos direitos fundamentais individuais, o sistema penal vai além, instituindo um verdadeiro discurso de controle social pelo qual se constroem e sustentam determinados valores morais, políticos e sociais. De acordo com Alessandro Baratta, o sistema penal é responsável por realizar a:

[...] manuntenção da estrutura vertical da sociedade, criando, em particular, eficazes contra-estímulos à integração dos setores mais baixos e marginalizados do proletariado, ou colocando diretamente em ação processos marginalizadores.11

Em outras palavras, o papel que o sistema penal desempenha tem como finalidade absoluta a manutenção da ordem e a constituição e solidificação de um poder dominante que é exercido por determinados indivíduos, questão controversa que se tenciona investigar no presente trabalho.

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KAZMIERCKZAK, Luiz Fernando. Por um sistema penal não excludente: uma releitura constitucional do direito penal. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2009, p. 52. 10 SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 37. 11 BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal: introdução à sociologia do direito penal. Tradução de Juarez Cirino dos Santos. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 175.

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1.2 PERSPECTIVAS HISTÓRICAS DA PENALIDADE

Sob o intuito de estabelecer uma contextualização histórica para a melhor compreensão da atual conjuntura do sistema penal, é necessário um estudo histórico da “evolução” das penas. Todavia, cabe ao leitor a advertência de que a origem das penas remonta à períodos muito antigos, de forma que a própria doutrina não é unívoca ao determinar quando de fato elas surgiram.

1.2.1 A Cultura dos Povos Primitivos

Na cultura dos povos primitivos aquilo que era retribuido como espécie de sanção à transgressão de um indivíduo não corresponde exatamente à pena como se conhece hoje. Neste período as sanções eram determinadas e aplicadas pela comunidade, e não por um indivíduo em particular investido no poder de punir. Isso decorre do fato de que a comunidade era vista por seus membros como uma entidade nuclear. O homem primitivo, quando fora de sua comunidade, sentia-se absolutamente desprotegido e suscetível a quaisquer espécies de perigos imaginários, pois considerava seu vínculo com a comunidade uma conexão vital e imanente12. Portanto, nessa conjuntura, a pena era na verdade uma vingança de sangue que ocorria quando da morte de um membro da comunidade, na medida em que constituía, conforme aponta Fromm, uma obrigação sagrada que recaia sobre o membro de determinada família, clã ou tribo, e que implicava na eliminação de um membro da outra unidade correspondente responsável pela ofensa. Mas se o ato transgressor fosse perpetrado por um membro interno da comunidade a vingança de sangue contrangia o infrator a sua expulsão13:

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FROMM, Erich apud MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 9. 13 DEL VECCHIO, Giorgio apud MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2ª edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 10.

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Tal vingança, de forma simbólica, tinha o poder de desfazer a ação do malfeitor, por meio de sua própria destruição ou banimento do grupo. Retratava o sentimento coletivo de repulsa ou represália que se expressava no grupo contra o agressor, gerado pela frustração ocasionada pela ofensa14.

Outrossim, depreende-se que na cultura dos povos primitivos não havia um poder central que limitava, regulamentava e aplicava as penas, prerrogativa que viria a surgir a partir do fortalecimento de um poder central que se observaria no prelúdio da Antiguidade. Nesse período a vingança de sangue possuía um papel simbólico, místico, que transmitia à comunidade o sentimento de desfazimento dos prejuízos causados à família ou ao clã; a eliminação do ofensor era percebida como a destruição do malfeito. Além da vingança de sangue também era comum que os agrupamentos primitivos cultuassem totens e tabus, atividade que refletia diretamente sobre o sistema punitivo da comunidade. A inintegibilidade dos fenômenos da natureza fazia com que os homens primitivos acreditassem em forças divinas, sobrenaturais ou transcendentais, que os levavam ao culto de certos entes ou ao respeito de determinadas tradições15. A cultuação de totens e tabus possuía fins estritamente divinos, mas constituía a base da organização social e era responsável pela edificação dos valores morais que regiam a comunidade. Madrid aduz que o totem era representado, em regra, por um animal, um vegetal ou às vezes até mesmo por algum fenômeno natural, e possuía um vínculo íntimo com o clã, atribuindo à ele a função de proteção da comunidade. Em contrapartida, a afronta aos princípios totêmicos tinha por consequência a punição do ofensor16. O tabu, por sua vez, era caracterizado por uma proibição convencional decorrente de uma tradição de cunho sagrado que não possuía origem ou explicação exata e que passava a fazer parte dos valores culturais daquele povo, sendo transmitida de geração em geração17. De acordo com Florestan Rodrigo do Prado: 14

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 11. 15 Ibidem, p. 16. 16 MADRID, Fernanda de Matos Lima. A função oculta da pena privativa de liberdade e do sistema prisional. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2013, p. 17. 17 Ibidem, p. 17.

20

O Direito Penal primitivo tinha feição totêmica. Os povos imaginavam que entidades sobrenaturais poderiam castigar suas comunidades com doenças ou fenômenos da natureza e, por isso, cultuavam objetos, almejando serem perdoados ou premiados de acordo com seus comportamentos. [...] O infrator, ao ser punido, redimia-se frente aos deuses, restaurando-se a integridade18.

Dessa feita, depreende-se que os povos primitivos possuíam um “protosistema penal” que estabelecia à comunidade algumas restrições morais, cuja inobservância repercutia medidas sancionatórias impostas por ela. Mas a vingança de sangue, os totens e os tabus não tinham como finalidade o controle e a manutenção da ordem social tal como ocorre hoje; estes institutos revestiam-se de um caráter muito mais místico do que jurídico; existia na comunidade um temor revencial diante do divino, resultante da incapacidade dos povos primitivos de explicar a maior parte dos fênomenos da vida. Assim, estes institutos existiam com a principal finalidade de promover a sobrevivência e a prosperidade da comunidade.

1.2.2 Antiguidade

Foi a partir da Antiguidade que o monópolio da pena passou a ser exercido por um poder central fortalecido. A punição deixou de ser exercida pela comunidade e passou a ser administrada por uma entidade eminentemente político-religiosa. Como afirma Marques, em razão de um notável progresso político-social dos povos, atesta-se uma limitação cada vez mais intensa sobre a independência dos grupos e das famílias. A vingança de sangue, método de punição comum e recorrente, foi gradativamente colocada de lado como força de repressão punitiva 19. Em razão disso a pena deixou de ter como fim elementar a reparação do malfeito, a satisfação do desejo de vingança e a punição do ofensor para garantir a “benção dos deuses” e passou a ter como um de seus objetivos fundamentais a

18

PRADO, Florestan Rodrigo do. Sistema Penitenciário e Exclusão Social: um olhar sobre a realidade das prisões brasileiras. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2012, p. 71. 19 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 12.

21

manuntenção da ordem social e a repressão de guerras e conflitos; surgem, portanto, os primeiros sistemas penais com o escopo de controle social. Impende destacar que a vingança de sangue não desapareceu, e até mesmo nos ordenamentos jurídicos hodiernos é possível encontrar resquícios da aplicação deste instituto. Isso foi possível apenas porque, com a transferência do poder de punir para uma estrutura centralizada, ela é incorporada no âmbito social e se integra aos sistemas penais20. A despeito do deslocamento do poder punitivo para um poder central, ainda na Antiguidade, as penas – apesar de instituírem uma forma de um controle social – guardavam consigo uma forte conotação divina. As civilizações antigas manaram substancialmente por meio da fundação de uma estrutura de poder teocrática e, por essa razão, a justificativa da pena sustentava-se por meio de explicações religiosas, alçando como finalidade principal da pena a satisfação da divindidade ofendida pela ofensa21. Nesse sentido, Marques descreve que:

A administração da pena foi sendo pouco a pouco transferida do particular ao poder central. Embora inicialmente representasse uma espécie de satisfação a determinada divindade ofendida pelo crime, passou a ser considerada como ofensa à própria comunidade22.

A propósito, em razão do caráter divino das penas, elas eram determinadas e aplicadas pelos sacerdotes. Estes eram vistos como interprétes e mensageiros da vontade divina, razão pela qual atuavam no controle do sistema punitivo e muitas vezes até do governo do Estado. A crença nas divindades era tamanha que a autoridade que as representava era vista como uma ínsignia da vontade transcendental da qual emanava o poder punitivo 23. Ademais, é importante sobrelevar que ainda na Antiguidade não é possível falar de qualquer espécie de pena de reclusão como medida punitiva:

20

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 12. 21 MADRID, Fernanda de Matos Lima. A função oculta da pena privativa de liberdade e do sistema prisional. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2013, p. 18. 22 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 43. 23 Ibidem, p 25.

22

A antiguidade desconheceu totalmente a privação de liberdade estritamente considerada como sanção penal. Embora seja inegável que o encarceramento de delinquentes existiu desde tempos imemoráveis, não tinha caráter de pena e repousava em outras razões24.

A partir da Antiguidade surgem os primeiros compêndios de leis penais; os mais conhecidos são o Código de Manu, elaborado na Índia, e o Código de Hammurabi, proveniente da Babilônia. Zaffaroni e Pierangeli explicam que:

As leis, livro ou código de Manu é o texto penal mais elaborado da Índia, de idade sumamente controvertida, sendo por alguns situado no século XIII a.C. e por outros no sécuvo V a.C. Para esse código, a pena cumpria uma função eminentemente moral, porque purificava aquele que a suportava. [...] Da Babilônia, procede-se o mais antigo direito penal conhecido, através do célebro código do Rei Hammurabi, do século XXIII a.C. (entre 2285 e 2242 a.C.), que contém disposições civis e penais. Esse texto distinguia entre homens livres e escravos e estabelecia pena para vários delitos.25

Na Grécia Antiga assistiu-se às formações das primeiras metateorias e elaborações teóricas sobre o direito penal e o enfraquecimento da ideia de estado teocrático; evidencia-se, mesmo que tênue, uma laicização do direito penal. É a partir da Grécia Antiga que as leis passam a ser encaradas como instrumento de defesa da sociedade, e não apenas de respeito aos deuses e concretização da justiça divina. A ideia de um estado teocrático vai sendo depauperada em razão do aprimoramento da política, o que acaba por originar reflexamente a necessidade de leis escritas26. Em contínuo, eclodem concepções inovadoras acerca do conceito de justiça e da finalidades das penas, destacando-se os discursos de filósofos como Platão e Aristóteles:

[...] para Platão (427-347 a.C.), a lei possuía origem divina e a justiça seria a força da harmonia entre as diversas virtudes da alma. Para ele, que acreditava na imortalidade da alma, a justiça terrena tinha como único fim o respeito à lei [...]. Para o filósofo, a pena, quando merecida por quem a recebe, tem por objetivo torná-lo melhor ou 24

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 28. 25 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 160, 161. 26 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 35.

23

servir de exemplo para outros [...]. Aristóteles, por sua vez, embora discípulo de Platão, tinha outra concepção de pena. Para ele, ela seria um meio apto a atingir o fim moral pretendido pela convivência social. Por acreditar no poder de intimidação das sanções, sustentava que o delinqüente que foge da dor deve ser castigado, já que as pessoas, em sua maioria, só se abstêm da prática de más ações por temerem a punição, e não por causa da baixeza de tais ações27.

Roma, conforme divisão tradicionalmente aceita, encerra o período da Antiguidade. A partir daqui é possível falar do nascimento, de fato, de uma ciência da penalidade28. Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli descrevem: Nos primórdios de Roma – como nos de qualquer povo primitivo – o direito penal teve origem sacra. Não obstante, a partir da Lei das XII tábuas (século V, a.C), o direito já se encontra laicizado e estabelece-se a diferença entre delitos públicos e privados29.

A despeito do exposto supra, é importante ressaltar que na era da Antiguidade não haviam penas restritivas de liberdade; a retenção ou a reclusão eram utilizadas apenas temporariamente a fim de garantir a custódia do indivíduo para posterior cumprimento da pena. Nessa época a natureza da pena encerra um caráter extremamente aflitivo, já que ela era aplicada sobre o corpo do infrator; a constituição física do ofensor era quem pagava pelo mal praticado por ele 30. Tortura, mutilamento e morte eram as penas mais comuns. Em suma, é possível concluir que, apesar da pena inicialmente ser direcionada para uma espécie de satisfação da divindidade protetora de determinada comunidade, com o desenvolvimento urbano e político ela passa a ter como objeto a defesa da própria comunidade. Todavia, ela não perde seu caráter retributivo e religioso; a pena durante este período manteve como essência sua natureza vingativa, possuindo como intuito essencial a punição do infrator perante a sociedade para a satisfação do clamor público e a remissão com os deuses.

27

I MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 36. 28 ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 163. 29 Ibidem, p. 165. 30 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. 14. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 471.

24

1.2.3. A Idade Média

Durante o período da Idade Média, é possível verificar um notável fortalecimento das doutrinas teológicas, fato que influenciou diretamente na organização dos Estados e, consequentemente, na formação de novas políticas penais. Entre as civilizações desse período, destacou-se o povo germânico, marcado por uma sociedade de estruturação político-social fortemente estatal e individual. Hodiernamente, o direito germânico tem sido referenciado como uma importante experiência histórica para o direito penal:

[...] sua tendência ao restabelecimento da paz social por via da reparação e, portanto, sua função verdadeiramente reparadora do bem jurídico frente à tendência estatista do direito romano, que é a que passa à legislação penal posterior e predomina até nossos dias. As atuais abordagens abolicionistas insistem nessa experiência histórica individualista e observam que, se para nós parece inamovível a atual configuração do sistema penal, isso não se funda em razões históricas, posto que até o século XIII a influência germânica impunha-se com este gênero de sanções mais reparatórias do que punitivas31.

No direito penal germânico era possível, portanto, a realização da transação penal, permitindo uma cultura penalista com nuances menos retributivas e punitivas e mais reparatórias. Foucault afirma que o antigo direito germânico oferecia ao infrator a oportunidade de estabelecer um acordo, uma forma de transação da pena, permitindo assim interromper a série de vinganças pessoais recíprocas que aconteciam através de um pacto32. É valoroso denotar também nessa época a criação das ordálias. Tratavamse de formas de provação, eivadas de natureza divina, por meio das quais o infrator podia ser salvo ou sentenciado. No entanto, elas geralmente consistiam em coisas impossíveis como sobreviver a uma fogueira ou a um afogamento. Dessa forma, desempenhavam um papel duplo, sendo concomitantemente meio de prova e pena.

31

ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro: volume 1: parte geral. 8. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 167, 168. 32 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 57.

25

Além do direito germânico, também teve forte presença nesse período o direito canônico, onde qualquer ato de heresia consistia em uma afronta ao próprio Estado, já que o poder secular e a religião encontram-se aqui visceralmente conectados.33. Com a ascensão da Igreja Católica, a religião volta a ter forte influência, não apenas na constituição das leis, mas no próprio governo do Estado, reinvocando o poder teocrático. Ademais, o direito canônico também teve grande importância na reforma do direito penal, já que nele observam-se as primeiras investidas na humanização das penas. Marques descreve que:

A Igreja, mandatária de Deus, uniu-se ao poder secular e passou a ter influência decisiva nas questões de Estado. Entre os séculos VIII e XV, o cristianismo estabeleceu-se em toda a Europa Ocidental e o direito canônico foi praticamente o único escrito durante quase todo o período medieval. Apoiados no catolicismo, os bispos, defensores de suas dioceses, procuraram humanizar as práticas penais, criando, inclusive, o direito de asilo em suas igrejas, onde os culpados escapavam das torturas e das mortes34.

Além do abrandecimento das penas, nota-se pela primeira vez a aplicação da pena com a finalidade de corrigir o ofensor, e não apenas puní-lo. Deveras, não obstante a natureza claramente retributiva, a pena orientava-se por desígnios religiosos, sempre pretendendo a correção do infrator.35. É imperioso ressaltar que o direito canônico sofreu forte influência da escolástica – filosofia cristã – através de autores como Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Para estes filósofos, as leis dos homens, para que fossem justas e corretas, deviam obrigatoriamente observar os princípios das leis divinas:

A lei eterna é a razão de Deus no comando da regularidade, e a apreensão intelectual humana dos princípios eternos é chamada de direito natural. Para que as leis criadas pelo Estado sejam totalmente justas [...] as leis temporais devem estar de acordo com o princípio do direito natural, que, por sua vez, deriva do direito eterno36.

33

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p 50. 34 Ibidem, p. 49. 35 PRADO, Florestan Rodrigo do. Sistema Penitenciário e Exclusão Social: um olhar sobre a realidade das prisões brasileiras. Dissertação (Mestrado em Ciência Jurídica). Universidade Estadual do Norte do Paraná: Jacarezinho, 2012, p. 75. 36 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 72.

26

A repressão penal canônica tinha como intuito não apenas a punição e a possível correção do infrator. A pena possuía, em certa extensão, propriedade medicinal, na medida em que não busca uma finalidade em si mesma, mas objetiva a remição do ofensor, revelando um ato de piedade e benevolência37. À pena eram atribuídos efeitos transcedentais permitindo ao criminoso que ele se redimisse com Deus. Quanto às inovações afetas às instituições carcerárias, a Idade Média trouxe consigo duas modalidades de prisão. A prisão custodial perdurou no período medieval com a mesma finalidade com que existia na Antiguidade, a de manter o réu preso enquanto aguarda a aplicação da pena para a qual foi sentenciado (morte, açoite, multilações, etc.). Todavia, o direito penal canônico inovou ao conceber o instituto da prisão eclesiástica. Consoante ensina Bitencourt:

A prisão eclesiástica [...] destinava-se aos clérigos rebeldes e respondia às idéias de caridade, redenção e fraternidade da Igreja, dando ao internamento um sentido de penitência e meditação. Recolhiam-se os infratores em uma ala dos mosteiros para que, por meio da penitência e da oração, se arrependessem do mal causado e obtivessem a correção ou emenda38.

Apesar de limitada aos clérigos, o direito canônico possibilitava ao ofensor se redimir de seu delito – ou pecado, já que alguns doutrinadores aduzem que os delitos na época não eram considerados algo mais do que um pecado normatizado sem a necessidade de sofrer uma pena corporal. Assim, pela primeira vez, erige-se uma modalidade penal com a proposta de correção do delinquente, apesar de ainda presente o aspecto retributivo.

1.2.4. A Idade Moderna

O início da Idade Moderna se deu a partir do século XVI e foi marcado pela queda de Constantinopla, o fim do feudalismo e como efeito o início do pré37

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 54. 38 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 33.

27

capitalismo. Este momento da história teve uma enorme influência na formação dos sistemas penais contemporâneo, destacando-se o surgimento das primeiras instituições prisionais. Nesse período, sobretudo entre a instauração do Absolutismo e o irrompimento do Iluminismo, houve intensa produção intelectual e ideológica e diversos foram os intelectuais e filósofos que exerceram influência sobre a estruturação do direito e do sistema penal em si. Com o Renascimento, movimento cultural iniciado na encetadura do séc. XIV e marcado pelo aparecimento de Estados monárquicos unificados, é possível observar-se

o

crescente fortalecimento e

centralização

do poder estatal,

características elementares que viriam a permitir o advento do Absolutismo. Os Estados absolutistas puderam ser justificados principalmente através dos dicursos ideológicos políticos do italiano Nicolau Maquiavel. Para o autor, o Estado possui suas próprias razões e meios para a persecução dos seus fins. Sob esse pressuposto:

Os castigos [ou penas] podiam ser justificados como forma de intimidação, para a segurança da sociedade e garantia do poder do soberano, concepção própria do absolutismo, que não visava outra finalidade da pena, a não ser a de incutir temor em nome da salvaguarda da monarquia absolutista39.

O Princípe – o Estado - não precisa justificar seus atos, já que todos eles visam – supostamente – a garantia e proteção da sociedade e a manutenção do poder soberano. Dessa feita, legitima-se a criação de um sistema penal essencialmente retributivo que exalta o poder da intimidação do castigo sob a finalidade de manter o exercício do poder sob o controle do soberano. Essas ideias fazem-se nítidas na obra de Maquiavel: O príncipe deve ignorar o fato de suas ações serem consideradas virtuosas ou corruptas; ao contrário, deve fazer o que quer que for necessário – o que quer que for apropriado – à situação em que se encontra, de modo que obtenha sucesso da maneira mais rápida e eficiente possível40.

39

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 59. 40 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 89.

28

Talvez não seja necessário apontar que o Estado podia empregar qualquer meio ou instrumento para garantir o poder do monarca, sempre sob a justificativa da garantia da ordem e segurança social. O poder é absoluto, pois não é legitimado, mas legitima a si mesmo, retirando-se do império das próprias leis. Essa construção ideológica também encontra seu fundamento elementar na teoria do contrato social hobbesiano. Em sua obra “Leviatã”, Thomas Hobbes aduz que: O soberano de um Estado, seja ele uma assembléia, seja um homem, não está sujeito às leis civis. Como é ele quem tem o poder de fazer e revogar as leis, pode, quando lhe aprouver, libertar-se dessa sujeição, revogando as leis que o estorvam e fazendo outras novas; consequentemente, já era livre antes. Porque é livre quem pode se libertar quando quiser. Ninguém pode estar obrigado perante a si mesmo, pois quem pode obrigar pode libertar; portanto, quem está obrigado apenas perante si mesmo não está obrigado41.

Também cabe destacar que neste momento é possível notar uma tímida ruptura com o pensamento teocrático, deflagrando-se a primeira tentativa histórica de separar a política da religião. Para Maquiavel, o cristianismo havia produzido homens debilitados, aspecto que os tornavam presas naturais de homens maldosos42. Hobbes, igualmente distanciando-se da união Estado-religião, afastou a hipótese de legitimação do soberano por meio da religião, afirmando que o poder soberano era legitimado pela própria união de uma maioria que o elegeu como tal e que o faz:

[...] com base no instinto de conservação. Os homens procuram conviver em sociedade somente quando sua vida encontra-se ameaçada. [...] O absolutismo não tem origem na delegação divina de poder, mas na convenção estabelecida entre os homens43.

No entanto, o filósofo partidário do absolutismo político não rejeitava a infiltração de conceitos religiosos nas estruturas intelectuais, apesar de rejeitar a própria existência de algo maior:

41

HOBBES, Thomas. Leviatã, ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil. Tradução de Rosina D‟Angina. 3. ed. São Paulo: Martin Claret, 2009, p. 189. 42 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 88. 43 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 61-62.

29

O naturalismo admite que a experiência religiosa tem algum sentido, mas nega a existência de algo para além da natureza, e portanto, não há base alguma para a crença no sobrenatural – tal crença era, de fato, uma condição da mente que tinha um papel a cumprir na manutenção do poder na sociedade44.

Acrescenta-se a isso que, sob a perspectiva hobbesiana, o cosmos – o divino, místico ou sobrenatural – era indecifrável, e portanto, indiscutível. Os desígnios divinos não eram passíveis de serem compreendidos:

O mundo iria tornar-se um lugar para o indivíduo buscar a satisfação de seus desejos, elaborar seus projetos pessoais e sociais e dar-se conta de seu poder. [...] A expansão e o progresso eram possíveis, mas só o seriam se pudéssemos, primeiro, criar a estrutura de uma ordem social estável45.

Após a queda do Absolutismo, inicia-se o período humanitário, produto do Iluminismo e da Revolução Francesa, momento de intensa agitação política e social que permeou o século XVIII. O resultado em âmbito penal foi uma revolução da sistemática penal; se antes a pena tinha como escopo a redenção divina, e posteriormente, a reafirmação e manutenção poder soberano, ela passa a ser aplicada em razão da ordem social. Se antes as penas tinham um caráter essencialmente punitivo e retributivo e eram aplicadas de forma completamente desproporcional, elas agora são aplicadas de forma “mais justa e humana”. Os súplicios gradualmente são extintos e denota-se um certo nível de mitigação das penas. Marque entende que:

Com as novas conquistas liberais, ocorreu, no campo penal, o fim gradativo dos suplícios impostos pela vingança pública. A partir de então, deveria a sociedade encontrar uma forma humana e justa de punir os criminosos, com proporção entre a transgressão e o castigo, o que ocasionou a mitigação das penas. Com o fim do absolutismo, as sanções, por via de conseqüência, perderam a função de reafirmar o poder do rei e passaram a constituir a uma represália em nome da própria sociedade. O delinqüente, por sua vez, passou a ser considerado violador do pacto social, tornando-se inimigo da sociedade46.

44

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 93. 45 Ibidem, p. 92. 46 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008,p. 79, 80.

30

Destacaram-se nesse momento histórico vários autores importantes como Cesare Beccaria, John Howard, Jeremy Bentham, Imannuel Kant, Cesare Lombroso, Jean Paul Marat, Manuel de Lardizabal y Uribe etc.,

que apresentaram uma

diversidade de ideias inovadoras sobre a penalidade. É evidente que o presente estudo não tenciona esgotar o conteúdo produzido por todos estes autores, mas apenas ressaltar algumas das mudanças mais importantes para a história da evolução das penas. Um dos primeiros pensadores realmente relevante desse período foi Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria. Reputa-se que os postulados engendrados por ele marcam efetivamente o começo da Escola Clássica de Criminologia, assim como da Escola Clássica de Direito Penal47. Sua obra “Dos Delitos e Das Penas” ainda hoje guarda grande relevância para o estudo da sistemática penal, sendo considerada na época de sua elaboração uma proposta de vanguarda. Essa consideração decorre do fato de que Beccaria foi o primeiro teórico das penas a propor a abolição da pena de morte, considerando-a bárbara e ineficaz aos objetivos da prevenção geral48. Não obstante, Beccaria entendia que a pena capital era aplicável apenas em duas circunstâncias, que envolviam diretamente questões de segurança nacional. Estando o réu preso, mas ainda sim conservando poder e relações que podem afetar a segurança da nação, a pena de morte era plenamente possível. Além dessa situação, também autorizava a pena capital a circunstância em que a mera existência do réu possuía o potencial para produzir uma revolução perigosa para a ordem governamental que fora estabelecida49. Para Bitencourt:

Beccaria tinha uma concepção utilitarista de pena. Essa orientação tem estreita relação com a tendência empírica que dominou entre os penalistas de seu tempo. Essa concepção utilitária considerava a pena um simples meio de atuar no jogo de motivos sensíveis que influenciam a orientação da conduta humana. Procuravam um exemplo para o futuro, mas não uma vingança para o passado50. 47

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 52,53. 48 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 81-82. 49 Ibidem, p. 82. 50 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 56.

31

De fato, para Beccaria a pena não tinha como função precípua punir o ofensor, mas orientá-lo no sentido de não reincidir na atividade criminosa. A pena aplicada também servia para que outros membros da sociedade não perpetrassem a mesma conduta. Nesse sentido, o autor preconizava que os castigos tinham por finalidades precípuas impedir que o culpado se tornasse prejudicial à sociedade e que outros cidadãos se desviassem para o caminho do criem51. Dessa forma, para o autor italiano, a pena possuiria dois objetivos essenciais: a prevenção geral e a prevenção especial. Além de seus estudos e teorias sobre a finalidade da pena e de outras instâncias do Direito Penal em geral, Cesare Beccaria também teceu algumas considerações acerca da pena de prisão. Bitencourt afirma que para Beccaria a prisão possui uma essência punitiva e sancionadora, apesar de já insinuar o objetivo reformador da pena privativa de liberdade52. Em sua obra, Beccaria enalteceu uma das primeiras críticas ao instituto do cárcere. É vítreo seu posicionamento no sentido da necessidade de humanização do direito penal e das penas: À proporção que as penas forem mais suaves, quando as prisões deixarem de ser a horrível mansão do desespero e da fome, quando a piedade e a humanidade adentrarem as celas, quando, finalmente, os executores implacáveis dos rigores da justiça abrirem o coração à compaixão, as leis poderão satisfazer-se com provas mais fracas para pedir a prisão53.

Dessa feita, Bitencourt demonstra que Beccaria propõe um sistema penal que tenciona substituir o sistema criminal vigente da época, livrando-se de seus aspectos desumanos e abusivos54. Todavia, salta aos olhos que a França, mesmo sendo influenciada pelas obras de Beccaria, Voltaire e outros filósofos do

51

BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 2. ed. São Paulo: Martin Claret: 2000, p. 49. 52 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 57. 53 BECCARIA, Cesare. Dos Delitos e Das Penas. Tradução de Torrieri Guimarães. 2. ed. São Paulo: Martin Claret: 2000, p. 26. 54 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 70.

32

Iluminismo, demorou a banir a tortura e ainda manteve a pena capital no ordenamento jurídico, conservando um regime carcerário extremamente cruel55. Contemporâneo de Beccaria, Jean Paul Marat também se posicionava no sentido de que as penas deviam guardar certa proporcionalidade e serem menos cruéis. Para ele, as penas também tinham o escopo precípuo de garantir a intimidação da sociedade a fim de que se coibisse a prática de condutas delituosas e de evitar reincidência criminosa do ofensor. Deveras, Marques indica que: [...] Marat considerava que toda sociedade bem ordenada priorizava a prevenção dos crimes em vez do castigo. Dessa ótica, a prevenção dos crimes poderia ser conseguida com a menor pena. [Ele] propunha a proporcionalidade das penas aos delitos, sustentando que as sanções humanitárias não fossem jamais atrozes56.

Além de se posicionar pela proporcionalidade e humanização das penas, Marat também se antecipou ao correcionalismo penal aduzindo que era importante que a pena possuísse um caráter corretivo a fim de evitar que o infrator voltasse a delinquir. Em adição, ele também defendia uma justiça imparcial que estabelecesse penas semelhantes a todos os infratores que cometessem determinado delito e que não fizesse distinção de classes sociais. Além de Beccaria e Marat, outro pensador de renome dessa época foi John Howard, autor que exerceu grande influência no processo de humanização e racionalização das penas e investiu uma persistente crítica da prisão. Nunca aceitou as condições lamentáveis que se encontravam as prisões inglesas, empregando em sua crítica um profundo sentido abnegativo57. Deveras, Bitencourt aponta que Howard:

Não admitia que o sofrimento desumano fosse consequência implícita e iniludível da pena privativa de liberdade, embora nessa época, como agora, a reforma da prisão não fosse um tema que interessasse ou preocupasse muito ao público ou aos governantes58.

55

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 87. 56 Ibidem, 89. 57 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 72. 58 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 59.

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Em suma, John Howard teve grande influência no penintenciarismo, sendo o primeiro autor a sustentar a necessidade de um controle jurisdicional sobre os poderes dos carcereiros, além de advogar a premente necessidade de fiscalização dos magistrados sobre o sistema penintenciário. Apesar de não ter alcançado transformações relevantes no sistema prisional inglês, para sua época suas ideias eram de extrema vanguarda. Sua obra resume uma luta interminável pela humanização das prisões e a adoção de uma perspectiva reformadora do delinquente59. No período das Luzes outro grande filósofo que se destacou no âmbito da criminologia foi Jeremy Bentham, teórico da filosofia jurídica utilitarista moderna. Suas contribuições não foram necessariamente positivas, mas suas elaborações teóricas viriam a contribuir para a correção da prática de castigo desproporcionais e desumanos. Bentham não críticava o controle social que era realizado através das estruturas institucionais – principalmente a prisão – mas dizia procurar um método de controle do comportamento humano que fosse realizado da maneira mais ética possível. E o princípio que orientaria esse controle social ético seria o utilitarismo, traduzido na procura da felicidade para a maior parte da população ou meramente da felicidade maior. Para Bentham, a utilidade de um ato se faz presente na medida em que ele intenta produzir algum benefício, prazer, vantagem, bem-estar ou se serve para prevenir a dor60. A partir do princípio da utilidade, Bentham elaborou suas teorias sobre a pena:

O princípio da utilidade criou uma nova e simples teoria da punição, uma teoria que, na opinião de Bentham, não só podia ser justificada mais rapidamente do que as teorias mais antigas, como também era capaz de alcançar de modo mais eficaz os objetivos da punição61.

Todavia, é importante destacar que a celeuma do utilitarismo se encontra na dificuldade de se determinar o conceitos de prazer, já que, para o autor, o homem fugia da dor e buscava o prazer a fim de alcançar sua felicidade. Em razão da

59

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 72-73. 60 Ibidem, p. 73. 61 MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 229.

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dificuldade de definir e delimitar o termo “prazer”, é difícil precisar se aquilo que proporciona alegria à maioria pode também proporcioná-la à minoria. No que tange à finalidade da pena, Bentham trouxe, pela primeira vez na teoria penal, os termos “prevenção geral” e “prevenção especial”, conceitos que Beccaria já havia ilustrado em suas ideias, mas sem a indicação precisa desses termos: Embora defendesse a função retributiva da pena, na linha do pensamento clássico, sustentou sua medida na necessidade de prevenção geral, com critérios também voltados para a individualização. Antecipando-se ao correcionalismo, não afastava a possibilidade de emenda do condenado, almejada no curso da execução penal62.

O diferencial do pai do utilitarismo de outros teóricos da época foi que, de fato, Bentham foi o primeiro teórico a se preocupar com o arquitetura penintenciária, idealizando

o

“panóptico”



estrutura

de

fundamental

referência

para a

arquiteturização dos espaos carcerários –, e que serviu de objeto de estudo acerca do controle social institucionalizado. Conforme descreve Foucault: O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição [dos mecanismos de poder]. O princípio é conhecido: na periferia uma construção em anel; no centro, uma torre: esta é vazada de largas janelas que se abrem sobre a face interna do anel; a construção periférica e dividida em celas, cada uma atravessando toda a espessura da construção; ela têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, que dá para o exterior, permite a luz que atravesse a cela de lado a lado. Basta então colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um escolar. [...] Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento automático do poder63.

Denota-se, portanto, que o utilitarismo benthâmico, juntamente com o panoptismo, trouxe à superfície o primeiro amálgama teórico sobre as penas e o sistema prisional como instrumento de controle social.

62

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 94. 63 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 190-191.

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De modo geral, o direito penal atual – e, consequentemente, o sistema penal – sofreu diversas alterações ao longo dos séculos, passando de um direito penal retributivo e tirânico de natureza divina para um direito penal preventivo e corretivo com finalidades de controle político-institucional. E, por toda essa extensão temporal, surgiram várias teorias júridicas que buscaram explicar e fundamentar as finalidades e os efeitos das penas. Tais teorias merecem ser compreendidas para que posteriormente, sob a luz de seus contextos históricos, elas possam ser percebidas de maneira apropriada.

1.3 CONSTRUÇÕES TEÓRICAS SOBRE A FINALIDADE DA PENA

As escolas da teoria penal surgiram no intento de realizar uma sistematização própria dos conceitos de crime, da pena e do direito de punir no âmbito do Direito, empreitada que se intensificou a partir do período de gestação ideológica verificado durante o Absolutismo e posteriomente ao longo do Iluminismo. Foi o início de uma fase de teorização dos fundamentos da pena e de burocratização dos procedimentos penais. Assim, várias doutrinas penais, a partir do pré-capitalismo, passaram a elaborar teorias que justificassem e expusessem as finalidades da pena, percebendo-a desde sanção dotada de papel eminentemente punitivo e repressor até instrumento de prevenção do delito e de ressocialização do infrator. Em razão das diversas teorias erigidas ao longo da história, é necessário deter-se no estudo destas escolas para a compreensão do desenvolvimento da penalidade ao longo dos séculos.

1.3.1. Teorias Absolutas ou Retributivas

As teorias absolutas ou retributivas pressupõem a pena sob o escopo precípuo de punição e castigo do transgressor da lei. A pena então desempenharia o único papel de reprimir o delito em sua raiz, de castigar o ofensor e lhe retribuir o

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mal causado. Para as teorias absolutas a pena é, portanto, retributiva, e carrega em si um caráter essencialmente vingativo. A pessoa que rompe com a ordem social e infringe as regras do ordenamento jurídico deve ser punida e retribuir à sociedade com seu sofrimento; o mal que causou deve ser diretamente à ele redirecionado. Salta aos olhos que essas teorias são fruto do próprio contexto histórico e político no qual floresceram. O Estado absolutista encontra o seu maior fundamento nas teorias contratualistas, de tal forma que o contrato social era, teoricamente, o instrumento legitimador do poder estatal:

O indivíduo que contrariava esse contrato social era qualificado como traidor, pois com sua atitude não cumpria o compromisso de conservar a organização social, produto da liberdade natural e originária. Passava a não ser considerado mais como parte desse conglomerado social e sim como um rebelde cuja culpa podia ser retribuída com uma pena.64

Deveras, consoante a teoria contratualista, o indivíduo que desvia-se do comportamento social exigido pelo Estado e esperado pelo corpo social torna-se inimigo do Estado. Ora, o inimigo do Estado é, sob essa lógica, inimigo da sociedade e, portanto, não pode esperar que seja tratado como seus concidadãos. O violador da ordem social deve, assim, ser punido, por ter afrontado o poder estatal e ter se levantado contra sua comunidade. Para Roxin, essa teoria seria absoluta na medida em que para seus idealizadores o fim da pena é independente, desvinculado de seu efeito social 65. Assim, a pena é como um fim em si mesmo; sua aplicação guarda como essência a punição do infrator; sua principal e única finalidade é de penitenciar o infrator, de forma que seu efeito social – a sensação de que a justiça foi feita – é mera consequência. Nesse sentido, atribui-se à pena, exclusivamente, a laboriosa tarefa de efetivar a justiça. A finalidade da pena é empreender a justiça, e apenas isso. A responsabilidade do transgressor deve ser equilibrada com a sobreposição de um mal, simbolizado pela pena66. Ferrajoli descreve que as doutrinas absolutas ou 64

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 118. 65 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte Geral, Tomo I: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. 2. ed. Traducción de Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2003, p. 82. 66 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 118.

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retribucionistas se fundamentam todas na máxima de que é justo devolver o mal pelo mal. A legitimidade externa da pena é apriorística, no sentido de que não está condicionada a fins extrapunitivos67. Nesse mesmo sentido, Saliba sustenta que a pena não está atrelada à qualquer finalidade extrapenal, de forma que a legitimidade da pena é a priori, pois sua necessidade fundamenta-se pelo próprio crime, não havendo qualquer indagação quanto ao para quê e porquê punir.68 O que se possibilita depreender é que, para os defendentes da escola retributiva, a pena tem como elementar finalidade a punição do ofensor, sob a fundamentação de que este é o o único e mais adequado meio para que se faça justiça e para que o mal causado seja repelido e redirecionado ao próprio infrator: A pena [...] não tem nenhuma utilidade senão a afirmação da idéia de justiça [...]. A justificação para impor o sofrimento que exsurge da pena é aplicada pela assunção de que o indivíduo tem livre-arbítrio e é responsável por seus atos, devendo responder na mesma medida da violação. Com esse pressuposto, a sociedade pune o indíviduo porque violou uma norma geral, com um fim exclusivo, que é o de castigar o delinqüente: ao mal do crime é preciso contrapor o mal da pena69.

Infere-se, pois, que as teorias retributivas percebem a pena como um meio para a persecução de dois objetivos: a retribuição do mal causado pelo infrator e a afirmação do ideal de justiça. No entanto, a retributividade acaba por deixar de lado a proporcionalidade e a humanização das penas, já que não há delimitação de pressupostos que orientam as formas como o Estado pode e deve punir; nessa ótica, a teoria da retributividade permite que os fins – a justiça – justifiquem os meios – a pena – de forma que não há uma delimitação sobre os limites da aplicação da pena. As teorias retributivas foram sustentadas por vários autores importantes, destacando-se entre eles Immanuel Kant e Georg Wilhelm Friedrich Hegel, que formularam-a sob diferentes fundamentações.

67

FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón. Teoría del garantismo penal. Traduccíon de Andrés Ibáñez et al. 7. ed. Madrid: Trotta, 2005, p. 253-254. 68 SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 45. 69 AZEVEDO, Mônica Luise de. Penas alternativas à prisão: os substitutivos penais no sistema brasileiro. Curitiba: Juruá Editoria, 2005, p. 88.

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Imannuel Kant, ao tratar da teoria retributiva, utilizou-se de uma fundamentação de ordem ética. Para o pensador, o elemento basilar que orientaria a formação das regras jurídicas seria o imperativo categórico. Este “dogma” pressupõe que:

As exigências fundamentais da moralidade são concebidas de modo que façam parte da própria estrutura da racionalidade; segue-se, então, que as exigências morais devem, a priori, ser reconhecidas por todos os seres racionais como obrigatórias70.

Dessa forma, o ordenamento jurídico realizaria a positivação dos preceitos do imperativo categórico, tendo em vista que ele representa a postulação das exigências morais que seriam inerentes à própria racionalidade humana. Por essa razão, o método filosófico kantiano sustentava que a pena deveria ser aplicada apenas quando houvesse inobservância da lei. O objetivo da pena é unicamente a realização da justiça71. Nesse sentido, Bitencourt conclui:

Em síntese, Kant considera que o réu deve ser castigado pela única razão de haver delinquido, sem nenhuma consideração sobre a a utilidade da pena para ele ou para os demais integrantes da sociedade. Com esse argumento, Kant nega toda e qualquer função preventiva – especial ou geral – da pena. A aplicação desta decorre da simples infrigência da lei penal, isto é, da simples prática do delito72.

Mas, se Kant fundamentou a retributividade da pena sob um fundamento ético, Hegel, por outro lado, viria a justificar o caráter retributivo da pena sob uma justificativa de natureza eminentemente jurídica:

Para Hegel, não há um imperativo categórico, uma racionalidade ética inerente à todos os seres racionais; a ontologia do Direito é resultado do materialismo dialético. Assim, “o desenvolvimento jurídico em sua totalidade é o Estado em busca dos interesses universais da humanidade à medida que tais interesses vão aos poucos se tornando conhecidos”. [...] Lições universais são extraídas da particularidade dos conflitos sociais. Através dessa história do 70

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 166. 71 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 122. 72 Ibidem, p. 123.

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conflito social e da concretização da interdependência do particular e do geral, do individual e do social, o Estado se “educa” e cria instituições que “concretizam” a racionalidade73.

O Direito é, portanto, um produto histórico-cultural; um produto dos conflitos sociais que se desdobram ao longo da história. A partir da análise histórica desses conflitos é que o Estado adquire a ciência de como eles se espraiam e de suas contingências, e através desse conhecimento torna-se capaz de direcionar-se na persecução da proteção dos interesses universais. A ordem jurídica é, portanto, a representação da vontade geral. Dessa feita, o crime é aquilo que vai contra o Direito; é o descumprimento das normas legais e, portanto, constitui uma afronta aos interesses universais, afronta esta que deve de ser reprimida:

O delito, entendido como a negação do direito, é a manifestação de uma vontade irracional – vontade particular -, configurando assim uma comum contradição entre duas vontades. [...] A imposição da pena implica, pois, o restabelecimento da ordem jurídica quebrada74.

Ambos os filósofos foram dois dos mais importantes precursores da teoria retributiva e, não obstante a coerência teórica de suas teorias, suas ideias mantiveram-se apenas no plano hipotético, legitimando-se somente no âmbito teórico. Além disso, uma das críticas mais relevantes que se faz à teoria retributiva é o seu caráter taliônico. Para Kant e Hegel, a pena deve refletir a lesão que o infrator causou à comunidade, abordagem que acabava por legitimar a aplicação de penas cruéis e desumanas.

1.3.2. Teorias Relativas, Preventivas ou Utilitárias

73

MORRISON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Tradução de Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 206, 207. 74 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4 ed. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 124.

40

As teorias relativas ou preventivas desenvolveram-se a partir do Iluminismo, momento em que as penas passaram a ser aplicadas de forma mais humana e racional, sendo influenciadas especialmente pelo utilitarismo. A sanção penal passou a ser vista como instrumento de manutenção da paz social, deixando de ser uma ferramenta com o exclusivo fim de castigar o ofensor:

Para as teorias preventivas, a pena não visa retribuir o fato delitivo cometido e sim prevenir a sua comissão. Se o castigo ao autor do delito se impõe, segundo a lógica das teorias absolutas, quia peccatum est, somente porque delinquiu, nas teorias relativas a pena se impõe ut ne pecetur, isto é, para que não volte a delinquir75.

Dessa feita, a pena tem como escopo principal a intimidação por meio da imposição do temor do castigo com a finalidade de que o ofensor não volte a praticar a conduta delituosa. Todavia, salta aos olhos que que essa intimidação pode apresentar-se sob um viés dúplice; busca-se por meio da pena, além da intimidação do infrator, o atemorizamento do corpo social, de tal forma que é possível apresentar as teorias preventivas pela divisão em duas sub-teorias: a teoria da prevenção geral e a teoria da prevenção especial. Ao contrário do que se verificava com as teorias absolutas, para as teorias preventivas, a legitimação da pena se concretiza apenas quando de sua aplicação seja possível ensejar a utilidade de seus efeitos empíricos:

A legitimidade [da pena] é a posteriori, uma vez que a pena somente se justifica com os resultados práticos obtidos. A sanção tem de ter valor utilitário para a prevenção de outros crimes e relação, proporcional, com a danosidade social da conduta criminosa76.

Apresentando como um de seus maiores expoentes Feuerbach, a teoria da prevenção geral possui como aspecto substancial a intimidação da sociedade, relegando a repreensão do delinquente à uma dimensão secundária. Denota-se, pois, que o objetivo cardeal da pena encontra-se na sua atuação como instrumento de intimidação social.

75

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4 ed. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 132. 76 SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 47.

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Isso se consegue, de um lado, com a cominação penal, isto é, com a ameaça de pena, avisando aos membros da sociedade quais as ações injustas contra as quais se reagirá; por outro lado, com a aplicação da pena cominada, deixa-se patente a disposição de cumprir a ameaça realizada77.

A pena aspira, portanto, o exercício de uma coação psicológica. O transgressor é punido para demonstrar a força do império da lei e sua finalidade elementar é de repercutir na sociedade o atemorizamento da totalidade social, coibindo os ímpetos delituosos de criminosos em potencial indeterminados por meio da possibilidade da prescrição de uma pena78. É imperioso notar que o aspecto geral da teoria da prevenção ainda exerce grande influência na teoria penal hodierna; conquanto não exista qualquer corroboração científica da efetividade do poder intimidativo da prevenção geral, essa pretensa eficiência hoje tem sido um dos grandes sustentáculos do Direito Penal.79 Assim, é possível afirmar sem embargos que a pena possui até hoje como fundamento inerente a finalidade de intimidação do corpo social sob escopo de inibílo da prática penal. No entanto, alerta Roxin que

Esta doctrina, al querer prevenir el delito mediante las normas penales, constitue fundamentalmente una teoría de la amenaza penal. Pero constituye asimismo, por lá acción de su efecto, necesariamente una teoría de la imposición y de la ejecución de la pena, puesto que de esto dependa la eficacia de sua amenaza80.81

A teoria preventiva-especial, por sua vez, concebeu a pena como mecanismo de intimidação do próprio infrator, possuindo como objetivo central impedir que o delinquente venha a reincindir na prática criminosa. Na esteira dessa abordagem serão erigidos os primeiros fundamentos teóricos que se orientam pela correção e ressocialização do ofensor. 77

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4 ed. edição. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 133. 78 AZEVEDO, Mônica Luise de. Penas alternativas à prisão: os substitutivos penais no sistema brasileiro. Curitiba: Juruá Editoria, 2005, p. 91, 92. 79 MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 121. 80 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte Geral, Tomo I: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. 2. ed. Traducción de Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2003, p. 90. 81 Esta doutrina, ao querer prevenir o delito mediante as normas penais, constitui fundamentalmente uma teoria da ameaça penal. Mas constitui assim mesmo, pela ação de seu efeito, necessariamente uma teoria da imposição e da execução da pena, posto que disto depende a eficácia de sua ameaça (tradução livre).

42

Essa teoria exerceu grande influência na Escola Positiva, alocando-se como questão primordial no ideario de Franz Von Lizt. Para o autor:

A necessidade de pena [...] mede-se com critérios preventivoespeciais, segundo os quais a aplicação da pena obedece a uma ideia de ressocialização e reeducação do delinquente, à intimidação daqueles que não necessitem ressocializar-se e também para neutralizar os incorrigíveis82.

Roxin descreve que para Von Lizt a prevenção especial pode atuar de três formas: assegurar a comunidade dos perigos gerados pelos delinquentes; intimidar os infratores por meio da pena para que não cometam crimes futuramente; e preservá-los da reincidência através de sua correção83. Essa teoria, portanto, manifesta seu enfoque principal na pessoa do delinquente. A reclusão do criminoso teria como objetivo transmitir à sociedade o sentimento de segurança e de cumprimento da lei; a aplicação de medidas sancionatórias impediriam que o autor do crime reincindisse na conduta criminosa e também resultaria na correção do delinquente para que ele pudesse então ser reinserido na sociedade despossuído do risco de incorrer novamente em práticas delituosas. Não obstante a significativa importância e contribuição dessas teorias para os paradigmas punitivos correntes, a doutrina majoritária posiciona-se atualmente de maneira cética em relação à prevenção geral e à prevenção especial. Dentre as razões, tem-se que a teoria da prevenção geral: a) não levaria em conta um importante aspecto psicológico que envolve o delinquente, sua confiança em não ser descoberto, de forma que o medo que deveria ser incindido no delinquente em razão da ameaça da pena não é o suficiente para impedí-lo de delinquir; b) não seria adequada, na medida em que, conforme propõem algumas reflexões teóricas de Kant, Roxin e Sauer, nenhum indivíduo deveria ser castigado em benefício de outros indivíduos, de forma que seria reprovável qualquer tentativa de instrumentalização do homem; e c) não considerava que nem todos os cidadãos conhecem as normas

82

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 132. 82 Ibidem, p. 139. 83 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte Geral, Tomo I: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. 2. ed. Traducción de Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2003, p. 85, 86.

43

jurídicas, ou mesmo que conheçam, não compreendem seu conteúdo, de forma que podem não captar a lei e muito menos a sua cominação penal84. A teoria preventivo-especial, assim como a teoria geral, também é objeto de muitas objeções doutrinárias. Apesar disso, admite-se o seu mérito no que tange ao seu caráter humanista, já que a teoria da prevenção especial suscita singular consideração sobre a necessidade de se ponderar os benefícios e prejuízos da aplicação da pena considerando sua finalidade. Ainda sim várias são as críticas sobre essa teoria: a) os fins da prevenção especial seriam nulos em relação ao infrator que, independentemente da gravidade da prática delituosa, não necessita de correção ou intimidação, já que não há a menor probabilidade de que ele venha a reincidir na criminalidade. Presente situação, nessas circunstâncias, levaria à impunidade do autor, considerando que a finalidade precípua da pena seria a correção do delinquente e o impedimento da reincidência na prática criminosa; b) para Roxin, essa teoria seria incapaz de definir limitações ao poder de punir do Estado; a intervenção estatal poderia ocorrer por tempo indeterminado, de maneira que não haveria uma limitação previamente fixada da duração da pena, permintindo que sua eficácia fosse mantida até que o delinquente fosse corrigido. Emblemática situação poderia conduzir o cidadão à uma situação de desproteção perante o ilimitado arbítrio jurídico-penal do Estado; c) a tentativa de ressocialização do indivíduo não levaria em consideração a identidade e os valores pessoais e morais do próprio infrator, reproduzindo a imposição de valores pré-determinados pelo Estado. Para Gramsci, isso resultaria no dirigismo intelectual do delinquente, que serviria de instrumento para a criação de um conformismo social cuja utilidade é caríssima aos interesses da classe dominante85. Denota-se, portanto, que apesar da inegável contribução das teorias preventivo-geral e preventivo-especial na edificação de novas teorias penais, algumas observações apontadas pela doutrina demonstram uma série de lacunas e falhas que poderiam possibilitar o desvirtuamento da finalidade da pena, o que levaria à deslegitimação do sistema penal enquanto instrumento proposto à persecução da justiça.

84

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 135-138. 85 Ibidem, p. 143-147.

44

1.3.3. Teorias Mistas ou Unificadoras

No início do século XX floresceram teorias que buscariam conciliar as propostas das teorias anteriores através de uma integração dialética considerando suas limitações e incompletudes, principalmente no que tange ao seu caráter monista,

aduzindo

que

suas

unidimensionalidades

seriam

excessivamente

formalistas e incapazes de tangenciar todos os fenômenos sociais atinentes ao Direito Penal. O que denota-se das teorias mistas ou unificadoras é a ótica de que a retribuição da pena, por exemplo, não constituiria óbice à necessidade de segregação e ressocialização do transgressor. Ademais, a pena manteria sua função preventiva, promovendo-se também como forma de intimidação direcionada à coletividade86. Nesse sentido, Saliba preconiza que a pena, em razão de sua própria natureza, é essencialmente retributiva, possuindo certo aspecto moral. No entanto, sua finalidade não é integrada apenas pela prevenção, mas também pela frustração da reincidência e reinserção social do delinquente. Este último é quem legitima a pena, garantindo à ela sua função social87. As teorias mistas tentaram conciliar tanto o aspecto retributivo da pena, quanto os aspectos de prevenção geral e prevenção especial. Elas consideram esses objetivos como fins da pena que devem ser perseguidos simultaneamente88; tais finalidades constituem ângulos do abstruso fenômeno que é a pena89. Em suma, o prisma fundamental dessas teorias é a proteção da sociedade. O objeto mediato da pena é a defesa da sociedade, de maneira que as bases fundamentadoras da pena de cada subdivisão das teorias unificadoras variaram conforme a adoção de uma corrente mais ou menos conservadora. Para as correntes mais conservadoras, acreditava-se que a finalidade cardeal da pena – a manutenção da ordem social - poderia ser alcançada mediante a justa retribuição na 86

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2 ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 137. 87 SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 55. 88 ROXIN, Claus. Derecho Penal. Parte Geral, Tomo I: Fundamentos. La estructura de la Teoría del Delito. 2. ed. Traducción de Diego-Manuel Luzón Peña. Madrid: Civitas, 2003, p. 85, 86. 89 AZEVEDO, Mônica Luise de. Penas alternativas à prisão: os substitutivos penais no sistema brasileiro. Curitiba: Juruá Editoria, 2005, p. 105.

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determinação da pena, de forma que os fins preventivos realizariam um papel exclusivamente complementar. Para os teóricos menos conservadores, a retribuição teria como função apenas estabelecer o limite máximo de exigência da prevenção, sendo o aspecto basilar da pena a proteção da sociedade, que seria garantida por meio da proteção dos bens jurídicos90. Em síntese, Bitencourt descreve: As teorias unificadoras aceitam a retribuição e o princípio da culpabilidade como critérios limitadores da intervenção penal como sanção jurídico-penal. A pena não pode, pois, ir além da responsabilidade decorrente do fato praticado, além de buscar a consecução dos fins de prevenção geral e especial91.

Essas teorias apenas se limitaram a reproduzir uma fusão dos fundamentos da teoria retributiva e das teorias preventivas, mantendo as mesmas concepções monistas da pena. Por essa razão, a mera justaposição dessas teorias não foi capaz de resolver as incompletudes de cada uma delas, acabando por apenas concentrar as críticas num único modelo teórico. Todavia, se outrora consideravam-se apenas os aspectos retributivos e preventivos da pena, a fenomenologia penal passou a ir além, possibilitando a construção de novas teorias legitimadoras do poder de punir.

1.3.4. Teoria da Prevenção Geral Positiva

Na tentativa de superar as críticas feitas às teorias retributivas e preventivas que demonstraram sua insuficiência para justificar e legimitar a imposição de sanções penais, nas últimas decadas manaram novas teorias legitimantes essencialmente preventivas que se fundamentaram sobre um postulado ético positivo. De forma geral, as teorias da prevenção geral positiva buscaram essencialmente a reafirmação do império normativo no meio social. A pena tem como finalidade primacial reafirmar a validade e força do comando legal perante a sociedade. Nesse sentido, Marques afirma que: 90

BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 151. 91 Ibidem, p. 151.

46

Essa nova teoria não vê na pena ameaça destinada a intimidar possíveis delinquentes, nos termos preconizados pelos defensores da chamada “coação psicológica” [...]. Ela a vê, antes, como possibilidade de reafirmar a consciência social da norma ou confirmar sua vigência, mediante a imposição de sanções penais92.

Na verdade, a natureza intimidatória da pena, tanto em relação à sociedade quanto ao delinquente, não é retirada da equação. Para a teoria da prevenção geral positiva, a intimidação não é fundamento da pena, mas natural desdobramento dela. O que importa para justificar a aplicação da sanção penal é que ela tem como finalidade essencial demonstrar o império da norma. Apesar das peculiaridades presentes nas exposições de cada teórico, desdobraram-se basicamente duas correntes que subdividem a teoria da prevenção geral positiva: a teoria da prevenção geral positiva fundamentadora, que encontra guarida em Hans Welzel e Gunther Jakobs, e a teoria da prevenção geral positiva limitadora, defendida por Mir Puig e Winfried Hassemer. A corrente fundamentadora vislumbra na pena a finalidade crucial de garantir a validade da norma jurídica perante a sociedade; não há necessidade de que o delito resulte em prejuízos para o corpo social, bastando apenas que aconteça o desencontro entre a conduta do agente e a norma de conduta; o mero descumprimento da norma de conduta implica na aplicação legítima de uma sanção penal. Nesse sentido, Marques retrata que, na perspectiva de Jakobs:

A pena não tem o poder de reparar o dano causado pelo crime, sobretudo porque muitas infrações completam-se antes que se produza um dano externo. Os delitos ocorrem quando há contradição entre a conduta e a norma prevista abstratamente, sem necessidade de produzir-se dano externo93.

Infere-se, portanto, que a função da pena não é impedir a lesão de bens jurídicos, já que para a aplicação da pena sua ocorrência não é um fator determinante. Sua finalidade medular é afirmar a vigência e a supremacia da norma jurídica. A imposição da sanção penal possui a única função de revelar que o

92

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 141. 93 Ibidem, p. 142.

47

transgressor não organizou seu comportamento de maneira correta para manter-se adstrito às determinações delineadas pelas normas de conduta94. É através da constante reafirmação da norma que se forma uma consciência ética e valorativa no corpo social, razão pela qual a aplicação da pena acaba por também repercutir indiretamente sobre a sociedade. Dessa maneira, é evidente que a corrente fundamentadora não deixa de atuar pela via da intimidação, mesmo que de forma reflexa, reproduzindo os efeitos da prevenção geral negativa 95. Na verdade, a intimidação constitui desdobramento da pena, efeito secundário que decorre dela, e por isso não é necessário que ela se constitua com um de seus fundamentos centrais. Apesar de Welzel e Jakobs serem ambos defensores da teoria da prevenção geral positiva fundamentadora, eles discordam no que tange à qual seria a finalidade do Direito Penal:

Para Welzel o direito penal cumpre uma função ético-social, para a qual mais importante que a proteção de bens jurídicos é a garantia de vigência real dos valores de ação da atitude jurídica. [Já para Jakobs], ao direito penal [...] corresponde garantir a função orientadora das normas jurídicas. [...] As normas jurídicas buscam estabilizar e institucionalizar as experiências sociais, servindo, assim, como orientação da conduta que os cidadãos devem observar nas suas relações sociais96.

Não obstante, é justamente por buscar precipuamente a proteção dos bens jurídicos e tentar garantir a função reguladora das normas jurídicas que essa teoria é criticada, pois relegaria ao segundo plano o respeito aos direitos e garantias individuais de cada indivíduo na medida em que tentasse impor determinados imperativos axiológicos.

As críticas contra a teoria fundamentadora partiram de sua ambiciosa pretensão em impor valores éticos, coativamente, aos seres humanos, o que afronta o Estado Democrático de Direito. Além disso, a teoria não é uma alternativa real que satisfaça as atuais necessidades sociais e da teoria da pena. Há uma base para o expansionismo do Direito penal dentro da teoria fundamentadora, em especial naquela defendida por Jakobs, enquanto a teoria de Welzel, 94

MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. 2. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2008, p. 142. 95 Ibidem, p. 143. 96 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 153-154.

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alicerçada numa atitude interna, supõe a interiorização do Direito pelo castigo, o que fere a dignidade da pessoa humana em sua liberdade97.

Alessandro Baratta observa que sob o ponto de vista interno da teoria fundamentadora não há uma justificativa sustentável do por quê a afirmação do império da norma jurídica deve ocorrer por meio da imposição de um castigo e não por outros métodos menos gravosos e que poderiam ter resultados equivalentes 98. Além disso, os conceitos fundantes da teoria limitadora não estabelecem uma delimitação apurada acerca de quais seriam os limites do ius puniendi, fato que pode conduzir à legitimação de uma política criminal anti-democrática. Por essas razões, erigiu-se uma nova teoria de caráter menos conservador, direcionada à proteção dos direitos humanos e fundamentais: a teoria da prevenção geral positiva limitadora. A teoria da prevenção geral positiva limitadora traz, pela primeira vez, uma ótica essencialmente humanitária, diante da qual a pena, ao ser aplicada, deve respeitar mínimos direitos fundamentais e buscar a ressocialização do infrator. Mas não é apenas isso; o Direito Penal deve ser o último recurso - a ultima ratio - para a contenção das figuras delituosas. Sob a proposta da teoria limitadora, a prevenção geral deve operar no sentido de limitar o poder punitivo do Estado99. A finalidade principal da pena é a prevenção geral, de maneira que ela deve ser constituída sob um elemento limitador do ius puniendi ao mesmo tempo em que que promove a ressocialização do transgressor penal100. Saliba define de forma vítrea os fundamentos essenciais da teoria limitadora ao afirmar que: A pena [...] impõe limites ao poder punitivo estatal, em proteção aos Direitos fundamentais do ser humano, numa concepção democrática, social e humanista. O Direito penal somente encontra espaço quando se mostra absolutamente necessário, o que não dispensa sua contenção por uma série de limites, como proporcionalidade, legalidade, humanidade, dentre outros. A punição é uma resposta

97

SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 57. 98 BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão: causas e alternativas. 4 ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 155. 99 Ibidem, p. 157. 100 Ibidem, p. 158, 159.

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imposta pelo Estado, dentro dos limites constitucionais e com observância das garantias previstas101.

Portanto, depreende-se que a legitimidade da pena encontraria-se na convergência de determinados elementos que limitam sua aplicação levando em consideração principalmente a necessidade, a humanidade e a proporcionalidade da pena; o respeito aos direitos fundamentais e a aplicação fragmentária do Direito Penal seriam de observância obrigatória para o exercício da sanção penal, sem os quais não seria possível legitimar a sistemática penal. É possível concluir que, pelo menos no nível ideológico, a maioria dos países constitiu um Direito Penal sob essas finalidades. Haveria uma busca tanto pela afirmação da ordem jurídica – prevenção geral – quando pela repreensão do crime no intuito de evitar a reincidência na prática delituosa – prevenção especial; tais finalidades da pena deveriam ser concretizadas sempre de forma a resguardar a inviolabilidade dos direitos fundamentais. Não obstante, o presente estudo tenciona demonstrar que, na prática, o sistema penal encontra-se deslegitimado; as funções que a pena deveriam desempenhar não se concretizam na prática. Principalmente no Brasil, se a função da pena deveria ser ressocializar o delinquente e preservar a ordem jurídica, ela não reproduz nenhum desses efeitos; a pena se torna mecanismo de contenção de “classes perigosas”. A prisão se torna parte de um complexo biopolítico excludente e marginalizador, separando espacialmente as “subclasses” das “classes laboriosas”. No capítulo seguinte restará claro que a constituição do sistema penal opera no plano do poder, permitindo que ele funcione como instrumento de controle e vigilância social e como mecanismo de dessubjetivação. Dessa forma, ele enceta em si a crucial responsabilidade de manter e reafirmar o discurso ideológico dominante.

101

SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 57.

50

2 CAPITALISMO, DIREITO E CONTROLE SOCIAL

O advento do capitalismo inaugura não apenas uma nova forma de produção e de circulação de mercadorias, mas todo um modo de vida. A historiografia demonstra que por toda história moderna da humanidade os modos de produção de uma sociedade sempre influenciaram seu contexto político e econômico, de forma que é assertivo compreender que ambos os conceitos interrelacionam-se dialeticamente, transformando-se sincrônico e mutuamente. Nesse sentido, sendo a questão da penalidade determinada pelo binômio jurídico-político, é preciso encontrar os pontos de confluência entre este e a economia, a fim de que os problemas que circundam a penalidade se tornem mais palpáveis. Ao longo do primeiro capítulo explanou-se de forma concisa e breve as formas de penalidade que se desenvolveram ao longo da história. No entanto, é preciso compreender que cada uma delas decorreu de seu contexto específico; a vingança privada somente pôde nascer a partir e dentro de sociedades organizadas comunitariamente, sem Estado; as penas de morte, as galés e os suplícios que se verificam na modernidade também só puderam ser concebidas dentro de determinada sociedade, fundamentada num modo de produção feudal latifundiário e servilista onde o rei detinha o poder absoluto e era o efetivo dono dos meios de produção, de forma que a penalidade servia como instrumento ideológico-repressivo para a manutenção da ordem estabelecida. Revela-se premente, assim, compreender a gênese, o desenvolvimento e os contornos do modo de produção capitalista no contexto da modernidade e da pós modernidade para que seja então possível apreender a penalidade moderna e contemporânea.

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2.1 PODER E IDEOLOGIA – ENTENDENDO O PAPEL DO DIREITO NA CONSOLIDAÇÃO DO CAPITALISMO

A despeito do exposto no primeiro capítulo deste trabalho, é imperioso realizar uma releitura crítica das escolas teóricas e das práticas penais ao longo da história através de uma análise histórico-materialista. A penalidade contemporânea deve ser vista além dos discursos construídos ideologicamente, tratando-se de instância que deve ser analisada como elemento imerso num contexto de luta de classes. Dessa forma, é mister compreender os pressuspostos elementares sob os quais orientou-se a formação da sistemática penal a partir da modernidade até os dias presentes. Parte-se, assim, da perspectiva de que o Direito é um elemento instrumental, essencial ao capitalismo e, por conseguinte, tem como função precípua a manutenção das relações de poder que erigem-se em meio às lutas de classes. Dessa maneira, a morfologia da lei é orientada pelos desígnios daqueles que possuem a competência para elaborá-la, os “legisladores”, ou aqueles que constituem o poder soberano, de tal forma que será percebido que o Direito não constitui apenas um instrumento do Capital, mas é de fato um produto da própria ideologia capitalista. A princípio, diria-se que, no contexto atual, o legislador é o poder legislativo, prerrogativa esta atribuída pelo poder constitucional. Porém, é mister tecer algumas ponderações: a sociedade é constituída por um amálgama de relações sociais horizontais e verticais. No nível horizontal, as relações são determinadas nessa disposição pelo fato de os indivíduos se situarem em um plano de atribuição similar ou por possuírem atribuições diversas. Já no plano vertical, estas relações são constituídas pelo menor ou maior valor que a sociedade afere a essas diferentes atribuições; no paradigma capitalista, este valor é produto imanente dos modos de produção e das relações sociais102. E é a distribuição do posicionamento no nível vertical que determinará quem é o soberano, e portanto, quem possui o poder. Dessa maneira, os indivíduos que ocupam os níveis mais altos das relações verticais detém o poder dominante, subjulgando e exercendo controle sobre os outros grupos,

102

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 22-23.

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apropriando-se dos resultados dos modos de produção que, nessas circustâncias, representam o que é mais valioso e útil para o aparato social. Esses indíviduos passam a possuir o direito de legislar, já que detêm o poder de mando em razão de sua posição superior nos estamentos sociais103. Instituídos do poder de legislar, esses grupos dominantes passam a ter a prerrogativa de criar normas para si e para os outros grupos da sociedade, que deverão aceitar essas normas; ou porque seus interesses compatibilizam-se com os desígnios dos grupos dominadores; ou porque encontram-se em um estado de ignorância de sua própria condição e acreditam cegamente que as regras criadas possuem como intuito a criação de uma sociedade melhor; ou porque neles foi internalizado um discurso de desconstrução de sua capacidade de se autogovernarem; ou ainda, através da força, materializada pelo suplício, pela pena, pela sanção ou por alguma outra espécie de punição104. Portanto, o poder legislativo concentra-se nas mãos daqueles que exercem o poder por si. O poder é o verdadeiro Leitimotiv do Direito, assim como o Direito é o que, em grande parte, sustenta o poder. É através do Direito que o discurso dominante se socializa e se legitima; é por meio dele que se embaraça na vontade coletiva exprimida pelo poder soberano o interesse particular de um ou de poucos. O poder soberano legitima-se como tal através de um discurso ideológico; o legislador, representante deste poder, o é por forças transcendentais de uma racionalidade divina, por virtude de um pacto social, ou por representar a vontade do povo105. Nessa lógica:

A realidade é que uma pessoa ou um colégio de pessoas são investidos dessa função com justificativas como aquelas citadas, mercê de pertencerem a um grupo social que detém, na pirâmide de uma sociedade, a posição ou posições mais privilegiadas, isto é, são melhor situados na escala social, detém mais riquezas e, consequentemente, maior poder de mando, confundindo-se com o aparelho de controle público, comumente denominado Estado. Ora, esse legislador, pertencente ao poder do Estado e oriundo dos grupos mais fortes, que por isso mesmo empalmaram o Estado, nunca legislará contra a sua ideologia que será, por extensão, a ideologia do próprio Estado. Nenhum legislador é suicida106. 103

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 23. Ibidem, p. 23-24. 105 Ibidem, p. 26 106 Ibidem, p. 26. 104

53

Por essas razões, não obstante o posto no capítulo anterior, é necessário adotar uma postura crítica e vislumbrar que, por trás dos discursos jurídico-penais de ressocialização e reinserção social, existe a princípio uma lógica contrária de exclusão e marginalização dos grupos sociais dominados baseada em anseios mercadológicos, que se transformará numa lógica correcional de reinclusão social com o intuito de atribuir ou garantir a produtividade laborativa dos desviantes, e posteriormente

desembocará

numa

racionalidade

de

separação

espacial,

periferização e controle por meio da vigilância. Os discursos de ressocialização e de correção do apenado na verdade não constituem nada mais que uma ideologia, um discurso ilusório que direciona seus objetos para um engodo. Para Marx, essa ideologia nada mais é que uma falsa conscientização. Ela tem como único objetivo a imposição de ideais que viabilizem a dominação das relações de produção e das classes envolvidas. Esse processo se realiza através da inversão ou ocultamento da realidade e da real vontade das classes dominantes, eliminando, através de um falso discurso, as diferenças que existem entre as classes, fornecendo à sociedade a sensação de identidade social; constitui-se uma ontologia social, travestindo o real, dando uma nova roupagem às instâncias materiais, impedindo ao indíviduo que construa a si mesmo e a sua realidade.107 Portanto, a ideologia surge como uma forma de perversão do real e sobreposição do virtual sob a função de manter a hegemonia dos discursos da classe dominante. Tal efeito se dá em todos os discursos e saberes produzidos pelo poder dominante, mas emerge fundamentalmente no seio do Direito e, por conseguinte, da sistemática penal. O que se constata, assim, é que as normas jurídicas:

Dirigem-se para os grupos, que por sua necessidade e ideologia, tendem a assumir comportamentos opostos ao interesse dos grupos no poder e se dirigem, também, aos próprios grupos ou grupo no poder, para manter sua coesão comportamental de acordo com o seu modo de produzir, transacionar e relacionar-se108.

107

KAZMIERCZAK, Luiz Fernando. Direito penal constitucional e exclusão social. Porto Alegre: Núria Fabris, 2010, p. 57. 108 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 36.

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No entanto, ressalta-se que não seria possível à dominância da classe burguesa prevalecer somente por meio da consecução de instrumentos coercitivos. A ideologia que se constrói através da forma jurídica faz com que a sociedade viva em um mundo imaginário, diferente do real, resultado de uma peculiar distorção que é concomitantemente uma alusão ao real enquanto ilusão do real, e que por essa razão não pode ser simplesmente corrigida ou extinta pela simples exposição da verdade à luz da racionalidade109. Essa ideologia jurídica exerce-se sempre em razão do poder, e portanto, sob o mando de quem o exerce. O poder trabalha apenas para si e para sua manutenção; ao mesmo tempo que se limita, constitui seu próprio limite; legitima-se por si só e existe por força de sua própria determinação de existir. O poder é sempre empregado com vistas a um resultado desejado por quem o exerce e traduz afetações sobre a mudança ou constância das condutas de quem se encontra subjulgado pelo poder; o submetido ou será obrigado a manter-se como está, ou será proibido de continuar como está, ou será ordenado a realizar determinada conduta de forma específica, conforme comanda o poder. Mas é importante definir que o poder não é uma coisa, não é um objeto, não é algo que pode ser guardado ou transferido às mãos de outrém. O poder é uma relação entre indivíduos, uma relação volátil, que pode ser alterada a qualquer tempo ou até mesmo rompida110. Além disso, o poder e a ideologia coexistem e se sustentam, pois é necessária a articulação de um discurso que promova e mantenha o poder, mas de tal maneira que seus reais interesses não sejam demonstrados:

Quem detém o poder justifica-se no sentido de estar prestando um serviço à coletividade, de estar levando a empresa a um melhor posicionamento no mercado, de estar transmitindo cultura para os outros, de estar traduzindo os valores da nacionalidade etc... Ressalte-se que quem diz essas coisas pode fazê-lo honestamente, crendo realmente no que diz, mas o observável nos diz que os detentores do poder lá estão por representarem forças sociais, direta ou indiretamente, forças que tentam fazer do poder o veículo de seus interesses e de sua ideologia111.

109

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 102. 110 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 50-51. 111 Ibidem, p. 53.

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Mas é preciso, ainda, esclarecer a premissa inicial de que o Direito – a ideologia jurídica – é o resultado das relações de poder – relações de troca – que sustenta a totalidade capitalista, já que ao não fazê-lo estar-se-á a colocar um argumento pressuposto, posto, não-verificável racionalmente ou transcendental. É necessário, portanto, confrontar o real e a teoria para que se torne possível compreender – ao menos superficialmente – que o Direito somente pode ser entendido enquanto fenômeno específico do modo de produção capitalista: [...] a “gênese” (genezis) da foma do direito se encontra na relação de troca; a forma jurídica é o “reflexo inevitável” (neizbejnym otprajeniem) da relação dos proprietários de mercadorias entre si; o princípio da subjetividade jurídica “decorre com absoluta inevitabilidade” (vytekaiut s absoliutnoi neizbejnost‟iu) das condições da economia mercantil-monetária; esta economia mercantil é a “condição prévia fundamental” (osnovnoi predposylkoi), o “momento fundamental e determinante” (osnovnym opredeliaschim momentom) do direito; a forma jurídica é “gerada” (porojdaet) pela forma mercantil; a relação econômica de troca “deve existir” (doljno byt‟) para que “surja” (vozniklo) a relação jurídica; a relação econômica é a “fonte” (istotchnikom) da relação jurídica. Todas essas expressões denotam evidente afirmação do caráter derivado do direito, e de sua específica determinação pelo processo de trocas mercantis. É, portanto, a esfera da circulação das mercadorias que “produz” as diversas figuras do direito, como uma decorrência necessária de seu próprio movimento112.

À guisa disto, a análise deve ser aprofundada, pois seria possível dizer que se a relação jurídica nasce como reflexo das trocas econômicas então o Direito sempre existiu. No entanto, é preciso separar o Direito daquilo que poderíamos chamar de “pré-Direito”; apenas o Direito “burguês” exprime determinada forma de revestimento que regulamenta todas as relações sociais reproduzindo em sua estrutura interesses dominantes específicos. O Direito é, portanto, a “forma-jurídica” do Capital, e somente existe enquanto produto dessa totalidade ontológica. Nesse sentido, Naves afirma que:

A forma jurídica nasce somente em uma sociedade na qual impera o princípio da divisão do trabalho, ou seja, em uma sociedade na qual os trabalhos privados se tornam trabalho social mediante a intervenção de um equivalente geral. Em tal sociedade mercantil, o circuito de trocas das mercadorias só se realiza se uma operação 112

NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo: 2008, p. 53, 54.

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jurídica – o acordo de vontades equivalentes – for introduzida. Ao estabelecer um vínculo entre a forma direito e a forma mercadoria, Pachukanis mostra que o direito é uma forma que reproduz essa equivalência, essa “primeira ideia puramente jurídica” a que ele se refere. A mercadoria é a forma social que necessariamente deve tomar o produto quando realizado por trabalhos privados independentes entre si, e que só por meio da troca realizam seu caráter social. O processo do valor de troca, assim, demanda para que se efetive um circuito de trocas mercantis, um equivalente geral, um padrão que permita “medir” o quantum de trabalho abstrato está contido na mercadoria. Portanto, o direito está indissociavelmente ligado à existência de uma sociedade que exige a mediação de um equivalente geral para que os diversos trabalhos privados independentes se tornem trabalho social113.

O Direito é a forma-jurídica que reveste as relações de troca enquanto equivalente geral jurídico. Através dele é possível mediar a reprodução das relações de troca e revestir as relações sociais com contornos jurídicos, transformando assim os sujeitos sociais em sujeitos de direito, tornando-os “livres” e iguais ao menos a nível formal, o que habilita e garante a troca de valores e a disposição do sujeito como detentor de uma mercadoria que é ele mesmo enquanto titular de sua própria força-trabalho. Nessa nova “forma-sujeito” moldada pela forma-jurídica, a liberdade e a igualdade revestem o sujeito social e constituem-se como condições necessárias para que a esfera geral de trocas possa se consolidar, construindo assim a figura de um proprietário privado dessas mercadorias objetos de circulação; o desenrolar do processo mercantil enquanto realização de valor pressupõe necessariamente um ato volitivo livre e consciente por parte do detentor de mercadorias. É a exteriorização do desejo do sujeito que possibilita a ele firmar com outros indivíduos, possuidores de vontade igual a dele, uma relação recíproca baseada na consensualidade. Na ausência dessa “equivalência subjetiva”, elemento que permite e operacionaliza a circulação de vontades iguais e livres, a troca de mercadorias não se daria114. Isto posto, já é possível afirmar preliminarmente que o Direito é imanentemente capitalista, traduzindo-se como superestrutra jurídica que permite e regulamenta a reprodução das relações de troca entre os sujeitos e constitui um aparato ideológico que viabiliza a imortalização do modo de produção capitalista.

113

NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e Direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo: 2008, p. 57, 58. 114 Ibidem, p. 67-67.

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O que se propõe portanto é que o Direito, nada mais é que a ideologia jurídica do poder, e assim, do próprio capitalismo, enquanto este como conjuntura econômico-política que enseja a dominação das classes burguesas, indivíduos que ocupam os mais altos níveis das relações verticais em razão de seu prestígio econômico, social e e político. Não é possível, nessa esteira, falar de um Direito que não esteja imerso na ideologia do Capital; o Direito é uma das formas de manuntenção do poder e nasce como uma das formas do Capital, um instrumento imanente à sua constituição. A relação entre o Direito e o Capital nasce dentro do processo de acumulação primitiva – período do pré-capital - no momento em que o trabalhador não possui as condições de trabalho e recebe as condições sociais primordiais para que seja inserido na esfera de circulação115. Esse fenômeno da acumulação primitiva traduz-se, em síntese, pelo:

Processo de separação do trabalhador direto dos meios de produção. É essa separação que constitui as relações de produção capitalistas que, como Marx explica, não são relações intersubjetivas, nem são apenas relações entre classes, mas são relações entre os agentes da produção e os meios de produção, portanto, são relações entre classes mediadas pelos meios de produção116.

Dessa forma, somente é possivel falar de capitalismo a partir do momento em que se verifica o processo de acumulação primitiva, pelo qual o trabalhador é separado de seus meios de produção. A figura do artesão gradualmente desaparece para dar espaço a outra classe social: a dos trabalhadores livres e assalariados. Essa acumulação primitiva, que constitui o modo embrionário de produção capitalista, divide-se assim em duas etapas, a subsunção formal e a subsunção real do trabalho ao capital, de maneira que, inicialmente, os aspectos materiais e técnicos da produção não sofrem alterações substanciais. A forma de fabricação das mercadorias na constância da subsunção formal do trabalho continua da mesma forma como se dava na sociedade feudal, não havendo significativa diferença entre os primeiros operários manufatureiros e o artesão; a divisão do trabalho é quase

115

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 79. 116 Ibidem, p. 44.

58

inexistente e o operário cria parte substancial do produto ou o fabrica em sua totalidade117. Essa passagem da subsunção formal para a subsunção real do trabalho demonstra a tendência gradativa e cada vez mais intensa de separação e expropriação do proletariado dos meios de produção, de tal maneira que o trabalhador estará cada vez mais alienado do processo produtivo; o exórdio do capitalismo somente foi possível em razão dessas circunstâncias e a partir da acumulação primitiva do capital:

A relação capitalista pressupõe a separação entre os trabalhadores e a propriedade das condições da realização do trabalho. Tão logo a produção capitalista esteja de pé, ela não apenas conserva essa separação, mas a reproduz em escala cada vez maior. O processo que cria a relação capitalista não pode ser senão o processo de separação entre o trabalhador e a propriedade das condições de realização de seu trabalho, processo que, por um lado, transforma em capital os meios sociais de subsistência e de produção e, por outro, converte os produtores diretos em trabalhadores assalariados. A assim chamada acumulação primitiva não é, por conseguinte, mais do que o processo histórico de separação entre produtor e meio de produção. Ela aparece como “primitiva” porque constitui a pré-história do capital e do modo de produção que lhe corresponde118.

Na primeira etapa desse processo de acumulação primitiva não há de fato uma dependência do trabalhador inserido na cadeia produtiva; o trabalhador produz e cria as mercadorias de forma quase que ou às vezes totalmente independente. A mudança dos modos de produção é extremamente sutil; o trabalhador está expropriado dos meios de produção, já que não participa da totalidade das etapas produtiva e comercial, mas ainda não está expropriado de suas condições subjetivas de trabalho, de forma que há ainda apenas uma subsunção formal do trabalho ao capital. No entanto, verifica-se posteriormente uma efetiva subsunção do trabalho ao modo de produção capitalista, de tal forma que o trabalho deixa de depender da técnica e da habilidade do operário; a subsunção torna-se real, total, e denota-se uma verdadeira transformação dos modos de produção, principalmente a partir do emprego da tecnologia do sistema de máquinas. A expropriação agora é completa; o 117

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 42. 118 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderie. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 786.

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trabalhador torna-se um apêndice da máquina. O trabalho se torna uma soma de operações que não prescinde mais da habilidade produtiva e intelectual do trabalhador como ocorria antes, de tal forma que ele se torna apenas um vendedor de sua energia laboral, que agora se torna indiferenciada; o trabalho dos operários, agora mecânico e igualizado, não é mais distinguível. A partir daí, o detentor dos meios de produção passa a possuir o domínio absoluto sobre o operário e o processo de produção, constituindo uma subsunção real do trabalho ao capital119. Nesse processo de acumulação primitiva, que resulta na separação universal do trabalhador dos meios de produção, principia uma nova forma de mercantilização: o operário torna-se mercadoria; seu produto é a sua própria força de trabalho, capacidade indissociável de si. E com a instauração desse novo paradigma de circulação de mercadorias erigem-se novos conceitos de liberdade e igualdade. Marx descreve que:

A esfera de circulação ou da troca de mercadorias, em cujos limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham. Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre arbítrio. Eles contratam como pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos. O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma expressão legal comum a ambas as partes. Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente. Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham, pois cada um olha somente para si mesmo120.

Os direitos à liberdade e à igualdade estão assim intrinsecamente ligados ao processo de expropriação do trabalho da massa camponesa, que é retirada do local onde produz e vive, expropriada dos meios que viabilizam sua subsistência e colocada à mercê dos donos dos meios de produção. Esse novo arranjo irá constituir uma esfera de circulação de mercadorias completamente nova na qual o próprio

119

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 44. 120 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderie. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 250, 251.

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indivíduo ingressa como possuidor de um bem que é ele mesmo, podendo se vender sem que isso resulte na perda de sua liberdade121. O trabalhador, portanto, é livre, mas a sua liberdade está precipuamente atrelada à sua faculdade de dispor de sua energia laborativa. A compra e venda da mão de obra somente é possível nessa conjuntura; o operário somente pode ser contratado se é livre; o contrato só pode existir se houver livre manifestação de vontade de quem contrata e de quem é contratado. Se em tempos pretéritos o processo de produção e circulação de mercadorias era marcadamente servil ou escravagista, agora a mão de obra predominante é totalmente “livre”. Logo atesta-se que essa liberdade e igualdade não nasceram de forma romântica. Com a separação do trabalhador dos meios de produção, deflagra-se a expulsão das massas camponesas de suas terras, dissolvendo-se gradualmente as formas de produção e organização feudais. Desse rompimento urge uma nova classe de trabalhadores livres que recusa a nova disciplina de trabalho imposta pelo Capital e deve, portanto, ser readaptada aos novos mecanismos de circulação de mercadorias. Assim, se antes esses trabalhadores eram possuidores de sua própria força de trabalho, detentores de sua capacidade técnica individualizada e diferenciada e donos de seus próprios modos de produção, com o processo de acumulação primitiva e a consequente transição gradual para o capitalismo, eles passam a ser expropriados de suas condições subjetivas de trabalho e são separados dos meios de produção, tornando-se alienados ao trabalho. Transformam-se em força laboriosa, energia produtiva, objeto de troca. O trabalho é fetichizado:

Marx já havia demonstrado como esse processo [de acumulação primitiva do capital] introduz a liberdade, entendida em um duplo sentido: por um lado, como já vimos, como o despojamento das condições de vida e de trabalho do homem do campo, e, por outro, como a capacidade de disposição de si, como mercadoria, desse mesmo homem. É somente como homem livre e igual a outro que se torna possível a operação de compra e venda da força de trabalho. Ora, como Marx explica, essa operação é fundamental para que ocorra a valorização do valor, pois é justamente a existência de uma mercadoria que tem a propriedade única de, ao ser consumida,

121

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 46.

61

produzir um valor superior ao seu próprio valor, que encerra todo o segredo do capital122.

Nesse ínterim, é de vital importância compreender a morfologia do capitalismo, já que de seu nascimento enquanto sistema econômico, social e político, resulta também o aparecimento do Direito como é apresentado principalmente a partir do século XVIII até hoje. O Direito existe como condição subjetiva que permite um sistema de trocas. Organiza-se essa subjetividade como forma de expressão de uma vontade totalmente autônoma, de modo que elas se confundem; o sujeito somente existe juridicamente se for capaz de

manifestar

livremente sua vontade e seu querer, sem que seja embaraçado por quaisquer tipos de constrangimentos que contaminem essa vontade e o levem a se manifestar de forma diversa de sua real intenção. É por essa razão que os atos jurídicos não podem ser considerados perfeitos se não existe vontade livre. E é nesse sentido que Marx aduz que a troca de mercadorias demanda que seus titulares reconheçam-se no momento da alienação daquilo que possuem, ou seja, suas vontades devem ser suficientemente capazes de operar o circuito de mercadorias, de forma a excluir qualquer tipo de intervenção unilateral e coercitiva da propriedade privada123. À vista disso, Marx, ao tratar do fetichismo da mercadoria, afirma:

As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado e trocar-se umas pelas outras. Temos, portanto, de nos voltar para os seus guardiões, os possuidores de mercadorias. Elas são coisas e, por isso, não podem impor resistência ao homem. Se não se mostram solícitas, ele pode recorrer à violência; em outras palavras, pode tomá-las à força. Para relacionar essas coisas umas com as outras como mercadorias, seus guardiões têm de estabelecer relações uns com os outros como pessoas cuja vontade reside nessas coisas e agir de modo tal que um só pode se apropriar da mercadoria e alienar a sua própria mercadoria em concordância com a vontade do outro, portanto, por meio de um ato de vontade comum a ambos. Eles têm, portanto, de se reconhecer mutuamente como proprietários privados. Essa relação jurídica, cuja forma é o contrato, seja ela legalmente desenvolvida ou não, é uma relação volitiva, na qual se reflete a relação econômica. [...] Aqui, as pessoas existem umas para as outras apenas como representantes da mercadoria, e, por conseguinte, como possuidoras de mercadorias124.

122

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 46. 123 Ibidem, p. 51. 124 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderie. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 159, 160.

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No processo da troca de valores determina-se a organização da sociedade burguesa na qual os indivíduos tomam-se como simples trocadores de mercadorias, de forma que a diferença entre eles, nessa constância, desaparece, e todos são considerados plenamente iguais, já que todos possuem o mesmo “valor”. A troca de valores é a base efetiva de toda liberdade e igualdade. O indíviduo, revestido na forma de sujeito, torna-se vontade pura, livre e indiferenciável125. No entanto, essa liberdade e igualdade se apresentam sob um prisma paradoxal, já que, como Marx demonstra, o trabalhador é obrigado a ser livre; ele é obrigado a vender a sua força de trabalho – e, portanto, vender a si mesmo – de forma voluntária. Isso decorre justamente do processo de acumulação primitiva do capital, já que o trabalhador, ao ser expropriado dos meios de produção e expulso de suas terras, depara-se com a impossibilidade de continuar desenvolvendo suas atividades habituais126. Dessa feita, o modo de produção capitalista enseja uma nova forma de estruturação do trabalho sob uma estratégia tão perspicaz que o proletariado não mais opõe à ele resistência, mas nele enxerga a única e legítima forma de prosperar:

No evolver da produção capitalista desenvolve-se uma classe de trabalhadores que, por educação, tradição e hábito, reconhece as exigências desse modo de produção como leis naturais e evidentes por si mesmas. A organização do processo capitalista de produção desenvolvido quebra toda a resistência; a constante geração de uma superpopulação relativa mantém a lei da oferta e da demanda de trabalho, e, portanto, o salário, nos trilhos convenientes às necessidades de valorização do capital; a coerção muda exercida pelas relações econômicas sela o domínio do capitalista sobre o trabalhador127.

O modo como o Capital subsiste, reproduzindo-se e valorizando a si mesmo, fundamenta-se basicamente na produção do “mais-valor”, efeito que se torna possível graças à usurpação pelo capitalista do valor que o trabalho realizado pelo capitável variável, ou seja, a força social produtiva, imprime sobre a mercadoria. Dessa forma, o modo de produção capitalista somente pode perpetuar-se graças à

125

NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do Direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p. 52-55. 126 Ibidem, p. 47. 127 MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderie. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 808.

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produção do mais-valor, valor expropriado do operário que somente é possível graças ao trabalho. Nesse sentido, o processo de concretização do mais-valor é constituído fundamentalmente pela troca de mercadorias, convertendo-se em lucro do capital. Para que os lucros possam ser ampliados, os capitalistas são forçados a reinvestir o excedente expropriado, com base em critérios estabelecidos pelas relações de mercado, e não conforme sua vontade própria. Como o fim último das ações produtivas capitalistas é a realização do mais-valor, as exigências que são levadas em conta são as do mercado, ou seja, as mercadorias produzidas são aquelas que poderão ser vendidas no mercado em razão de sua real demanda. É aí que o processo de reificação das relações sociais chamado de “forma social” capitalista torna-se vísivel128. Assim, é imprescindível que a forma social capitalista se imortalize, evoluindo de maneira dinâmica e flexível numa suprassunção – Aufgehoben – constante e infinita que permita a contínua realização do mais-valor e do modo de produção capitalista. Para tanto, a forma social deve postar-se como relação articulatória entre as instituições sociais e a totalidade das relações sociais, estabelecendo-se assim, como propôs Althusser, uma relação dialética entre a superestrutura e o social:

É por isso que o Estado, mesmo em suas facetas mais democratizantes e participativas, é sempre um Estado de classe. A sua conformação como uma forma social instrumento de estabilização das relações de exploração está sempre ligada à criação das condições necessárias à realização da compra e venda da força de trabalho e, portanto, da apropriação privada do excedente do trabalho social. Assim, poderemos ver claramente a função de consenso cumprida pelo Estado capitalista, sem prejuízo da face repressiva que é comumente mais visível a olho nu. Nesta, aqueles que se recusam a agir de acordo com as regras do jogo, admitindo estratégias anti-capitalistas [...] são neutralizados fisicamente129.

Ainda nesse raciocínio ressalta-se, porém, que toda a estrutura estatal moderna, a ação social e a solução dos conflitos sociais é regulamentada,

128

DAVOGLIO, Pedro Eduardo Zini. A „coerção da forma: elementos teóricos para a compreensão do direito como forma social in Direito e democracia: anais do seminário realizado em 2012. Coordenação científica Jeanine Nicolazzi Philippi. Florianópolis: PET / DIREITO / UFSC, 2013, p. 33. 129 Ibidem, p. 36, 37.

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estabelecida e limitada por meio do Direito. Mas como tais conceitos são imanentemente dinâmicos e instáveis e encontram-se em constante movimento transformativo, é inerente ao próprio Direito que acompanhe suas variações para que possa garantir a estabilidade e a permanência do todo:

[...] assim como o Estado é a forma da dominação política da sociedade capitalista, o direito é uma face necessária da sociedade baseada na troca de mercadorias por meio de equivalentes sociais. Desse modo, enquanto mediador dos processos de realização da expropriação do excedente de trabalho, o direito representa uma das engrenagens chave da reprodução da totalidade social. Aí faz vir à luz seu caráter eliminavelmente classista, apesar de todas as vitórias sociais que é capaz de incorporar à sua ossatura130.

O Direito, portanto, deve ser permanente; não no sentido de que deva se manter estático, mas de que deve manter-se em movimento para que seja possível à ideologia capitalista perpertuar-se. A existência necessária de dialógo entre as necessidades sociais e a forma-jurídica decorre justamente da imprescindibilidade dessa relação para a manutenção do Direito. Mas a consideração dessas necessidades pela forma-jurídica e a aparente progressividade do conteúdo jurídico não devem ser encarados como uma efetiva transformação, mas como mudança periférica que apenas visa à perenização da totalidade capitalista:

É preciso que o poder legiferante permaneça cedendo, pelo menos à nivel formal, às exigências dos destinatários das normas. Mas é preciso dizer que isso não significa uma mudança substancial do direito, pois o que acontece é uma concessão acomodatícia do poder131.

À essa altura, deve ter se tornado cristalino como as relações econômicas passaram

a

determinar

as

relações

sociais

e

como

essas

vieram

ser

regulamentadas por um Direito imanentemente burguês que nasce no momento em que deflagra-se a expropriação do trabalhador dos meios de produção. Denota-se, nessa conjuntura, o caráter essencialmente capitalista do Direito moderno enquanto instrumento de administração jurídica das relações capitalistas entre classes e de

130

DAVOGLIO, Pedro Eduardo Zini. A „coerção da forma: elementos teóricos para a compreensão do direito como forma social in Direito e democracia: anais do seminário realizado em 2012. Coordenação científica Jeanine Nicolazzi Philippi. Florianópolis: PET / DIREITO / UFSC, 2013, p. 37. 131 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 79-80.

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perenização do modo de produção capitalista e a impossibilidade de separar o Direito de seu caratér ideológico. Nessa esteira, Aguiar afirma que:

Falar de direito e ideologia é tautológico. O direito é a ideologia que sanciona, é a linguagem normativa que instrumentaliza a ideologia do legislador ou a amolda às pressões contrárias, a fim de que sobreviva. [...] O direito é a expressão mais alta da tradução ideológica do poder. Ele estabelece os princípios, delimita as condutas, defende atitudes e “ofende” as outras por meio da sanção132.

O Direito é a expressão legitimante de um discurso ideológico em favor do poder dominante; a decisão jurídica é proferida sempre sob o intuito de dar continuidade à hegemonia de um dos lados da balança, o lado da classe dominante. Trata-se de um método, por excelência, de legitimação e manutenção da ideologia capitalista. O que deve ser evidenciado, porém, é que as normas jurídicas constituídas por esse poder podem ser evadidas ou não obedecidas, de tal forma que é necessário que se constituam mecanismos que façam com que essas normas sejam dotadas de imperatividade e coercibilidade. Por essa razão as normas devem possuir um efeito sancionatório para reprimir aqueles que desviam sua conduta do dever-ser jurídico da norma, se não de que outra forma seria possível manter a hegemonia do discurso ideológico-jurídico do Capital? É de fundamental importância para o capitalismo e para a manuntenção e o estabelecimento sólido de sua ideologia que as normas possuam um sistema de repressão das condutas desviantes. Mas não apenas isso; se o capitalismo rege-se sob a premissa fundamental de que devem existir forças produtivas e disciplinadas que viabilizem a produção e circulação de mercadorias, as normas jurídicas se constituem no sentido de assegurar principalmente estas condições. Aqueles que não se enquadram sob essa conjuntura devem, portanto, ser eliminados da sociedade, corrigidos, excluídos, marginalizados e vigiados; o exercício de um controle punitivo, social e disciplinar sobre as massas é indispensável para manter a hegemonia da classe dominante e garantir a continuidade da acumulação de capital.

132

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 79-80.

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Assiste-se, portanto, à profanação da mitologia grega da deusa Têmis, representada por uma mulher de espírito imparcial que carrega com si uma balança em uma das mãos como proposição da justiça equilibrada e uma espada na outra como signo do poder da justiça. Mas se antes alçavam-na como símbolo inconteste de uma justiça possante, agora emburguesaram-na. Por detrás dos véus ideológicos que lhe revestiram, a Têmis da modernidade abre os caminhos para a burguesia e caminha de mãos dadas com o Capital; mira bem qual lado da balança deve pesar mais e brande destemidamente sua espada contra aqueles que se usurpam de seu poder.

2.2 A LÓGICA DO CAPITAL – PENALIDADE E DISCIPLINA

No presente momento perfaz-se mister compreender de que forma é possível assegurar a ideologia capitalista por meio do Direito. Como se dá a manuntenção do poder? De que forma é possível garantir a vigência de diretrizes jurídicas que muitas vezes repercutem de forma contrária à maioria, mas a favor e de acordo com os desígnios de uma minoria? Como apontado anteriormente, a sobrevivência de um discurso ideológico hegemônico não é possível apenas através da força e da truculência; são necessários instrumentos, métodos, estratégias, uma arte perfomática do convencimento. Surge nesse âmago o poder disciplinar; é através dele, principalmente, que será possível garantir o ideal funcionamento do social. Por meio da disciplina tornase possível a separação e transformação do indíviduo; é através dela que o indivíduo

é

alterado

com

precisão

cirúrgica,

enquanto

separado

socio-

geograficamente, onde é incumbido das aptidões necessárias para se tornar um ser produtivo e útil. A disciplina deve ser compreendida, antes de qualquer coisa, como uma tecnologia positiva do exercício do poder, um complexo pluralístico de táticas, um mecanismo estratégico mediante o qual se efetivam as relações de poder.133 É possível afirmar, sem ressalvas, que o poder disciplinar destaca-se como um dos principais estratagemas de afirmação e manutenção de poder a partir da

133

FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e o Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 153.

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consolidação do capitalismo. Ao ínicio do séc. XVIII vislumbra-se a gênese da sociedade disciplinar:

A origem da sociedade disciplinar, como um tipo de sociedade na qual uma rede de instituições de sequestro realiza uma função de controle sobre as virtualidades dos indivíduos, deve ser historicamente buscada nos processos de remanejamento da riqueza industrial e agrícola ocorridos no final do séc. XVIII. O domínio das disciplinas é aquele do nascimento e afirmação do capitalismo entre o final do séc. XVIII e o início do século XIX134.

O poder disciplinar surge justamente como um dos instrumentos acessórios de manutenção de um poder maior, manipulado e empreendido pela classe burguesa. É em parte através da disciplina que será possível aos grupos hegemônicos garantir a acumulação e detenção de capital, já que ela será empreendida para transformar os indivíduos selecionados em cidadãos dóceis, disciplinados, utéis e produtivos. Mas essa disciplina é necessária também justamente para proteger as riquezas. Nos séculos XVI e XVII, a fortuna é investida cada vez mais dentro de um capital que deixa ser simplesmente monetário. Nesse período a riqueza era essencialmente formada pelo domínio de terras, por espécies de pecúnia ou às vezes por letras de câmbio trocáveis entre os indivíduos. No século XVIII, porém, surge uma nova forma de riqueza que é agora investida no interior de um novo tipo de materialidade; investe-se agora em mercadorias, maquinários, matéria-prima, etc. E a instauração e aceleração do desenvolvimento do capitalismo vai ser traduzida neste novo modo de investimento material da fortuna. Ocorre que essa nova modalidade de investimento em objetos materiais estará completamente exposta à depredação. Há toda uma população de indivíduos pobres e sem emprego que agora tem contato direto com essas materialidades que se traduzem em riqueza. O roubo de navios, o furto de armazéns e estoques, a destruição de oficinas, são acontecimentos que tornaram-se comuns na Inglaterra do final do séc. XVIII. E é justamente nesse período que erige-se a grande necessidade de se adotar mecanismos de controle que permitam a proteção dessas riquezas; é em razão

134

FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e o Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 165.

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dessa nova distribuição espacial e social da fortuna agrícola e industrial que surge a necessidade do controle social, e consequentemente, da sociedade disciplinar135. Essa parcela da população, “desocupada e perigosa”, precisa ser disciplinada, educada e transformada em força produtiva; eles devem tornar-se cidadãos utéis. Para esse fim é que surgem as instituições de sequestro, instituições disciplinares ou instituições totais; seu papel tem como objetivo separar os cidadãos “perigosos”, “desviantes”, “anormais”, em espaços arquitetônicos de isolamento, sequestrando-lhes a liberdade e o tempo, submentendo-os a uma “infrapenalidade” normativa e normalizadora. Dentro desses ambientes é possível, por meio da produção de saberes, constituir subjetividades e identidades e incutí-las aos indivíduos em

meio a

um processo tautocronicamente dessubjetivante

e

subjetivante; as relações de poder são, pois, relações de saber. Essas funções de sequestro tem como escopo, em sua totalidade, o manejo do ser, objetivam o domínio como forma de exercício do poder, a administração sobre as virtualidades dos homens136. Mas é imperioso relembrar que as instituições de sequestro nascem em meio a um período crítico, de crise econômica e de desemprego por decorrência da ruptura com os modos produtivos baseados especialmente na agricultura, na lavoura e na servidão. Com o processo de acumulação primitiva de capital, a sociedade feudal é desmantelada e a produção agrícola e artesanal entram em súbito declínio. A mão de obra livre desocupada é enorme, a propridade privada passa a ser acumulada nas mãos de poucos e há um abismo econômico e social cada vez mais profundo na sociedade. Na encetadura do séc. XVII – período de despontamento do capitalismo - há pobreza, marginalização, mendicância, banditismo e o consequente aumento súbito da criminalidade e do surgimento da delinquência; alvorecem os Hospitais-Gerais na França, as Casas de Trabalho na Inglaterra e as Casas de Correção na Alemanha e na América do Norte, formas incipientes do que viria a ser a prisão. O cárcere começa a manar, originando os arquétipos do encarceiramento:

Todas essas instituições [de sequestro] apresentavam características semelhantes. Hospedavam em geral mendigos, ociosos, vagabundos, prostitutas, ladrões, petty offenders, jovens criminosos ou que deviam corrigir-se, loucos. [...] Os pobres, os jovens e as 135

FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais. 3 ed. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2003, p. 100-103. 136 FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e o Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 164.

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mulheres prostitutas enchem, no séc. XVII, as casas de correção. São eles as categorias sociais que devem ser educadas ou reeducadas na laboriosa vida burguesa, nos bons costumes. Eles não devem aprender, mas sim ser convencidos. Desde o início, é indispensável ao sistema capitalista substituir a velha ideologia religiosa por novos valores, por novos instrumentos de submissão137.

O internamento deriva das próprias estruturas da legalidade e passa a organizar, numa unidade abstrusa, uma nova receptividade à paupérie e às obrigações da assistência, novos mecanismos de resposta diante dos óbices econômicos do desemprego e da desocupação, uma nova ética do labor e também o sonho de uma cidade onde as imposições morais se unem à lei civil, sob as formas totalitárias da coação. Através desse sentido econômico é que se dá coesão à população dessemelhante dos locais de internamento. De fato, esses sítios compõem uma solução enérgica à crise econômica que assola o mundo ocidental no século XVII, agrura em que se implicam adversidades de desemprego, redução de salários e falta de moeda138. A partir do final do séc. XVIII, a penalidade gradualmente ganha novos contornos e passa a ser inserida dentro do espaço penintenciário; é essencialmente por meio da reclusão, do encarceiramento, do isolamento geográfico e da manipulação cronológica que será possível a aplicação estratégica de um controle disciplinar sobre os corpos. Eclode uma tecnologia disciplinar de controle social que irá se solidificar com o advento da prisão e a construção da figura do delinquente. Tudo em nome da “defesa da sociedade”. É notável, portanto, que a disciplina não aparece de maneira sincrônica à prisão, mas de fato é otimizada nesta, tornando-se instrumento elementar do sistema penal para a manutenção da ideologia capitalista, garantindo aos “burgueses” a continuidade do domínio dos meios de produção e sua produtividade por meio da vigilância, controle e adestramento:

O sistema penal, num conceito amplo, que engloba não só o Direito penal, mas também todo o aparelho repressivo – policiais, delegados, promotores, juízes, cadeias, presídios – foi direcionado para a produção e garantia capitalistas, tornando-se um propósito da burguesia urbana a tipificação de condutas específicas para 137

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 55-57. 138 FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e o Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 106, 107.

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combater delitos patrimoniais. Nas palavras de Zaffaroni, coincidentes com Althusser, a necessidade de contenção das “massas carentes” e sua disciplina para o “trabalho e salário minguado”, permitindo aos capitalistas a obtenção de acumulação de capital, orientou preferentemente o controle social139.

Mas de que maneira surge a ideia da pena como reclusão? Por quê, dentre todas as espécies de sanções e penalidades, escolheu-se justamente a privação da liberdade? É possível depreender que a economia eficaz de uma tecnologia disciplinar e de vigilância, indispensável para a manuntenção da ocupação do poder pelas classes hegemônicas, somente pode subsistir adequadamente se inserida dentro das instituições de sequestro. Mas Pachukanis demonstra que não foi esse o aspecto inicial determinante para que se percebesse que as penas restritivas de liberdade reuniam o melhor caminho para garantir os interesses da supremacia burguesa:

A privação de liberdade com uma duração determinada através da sentença do tribunal é a forma específica pela qual o Direito Penal moderno, ou seja, burguês-capitalista, concretiza o princípio da reparação equivalente. Tal forma está inconsciente, porém profundamente ligada à representação do homem abstrato e do trabalho humano abstrato mensurável pelo tempo. Não foi por acaso que esta forma de pena introduziu-se e foi considerada como natural justamente no século XIX, ou seja, numa época em que a burguesia pôde desenvolver e afirmar todas as suas características140.

Jurista soviético e teórico da tradição marxista, o autor continua, afirmando que a pena privativa de liberdade somente se mostrou plausível na medida em que se tornou possível reduzir o valor econômico de uma mercadoria à medida de tempo trabalhado:

Para que a idéia da possibilidade de reparar o delito através de uma multa pela liberdade tenha podido nascer, foi necessário que todas as formas concretas da riqueza social tivessem sido reduzidas à mais abstrata e mais simples das formas, ao trabalho humano medido pelo tempo141.

139

SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça Restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2009, p. 66. 140 PACHUKANIS, Evgeni B. Teoria geral do direito e marxismo. Tradução de Silvio Donizete Chagas. São Paulo: Editora Acadêmica, 1977, p. 130. 141 Ibidem, 1977, p. 130.

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A tempo de privação de liberdade e o tempo dispendido na produção equivalem-se; o cárcere operacionaliza-se ao se apropriar do tempo individual do apenado. O tempo que antes era livre agora é convertido dentro do espaço prisional; sequestra-se o tempo, delimita-se o espaço, pré-determinam-se as atividades a serem realizadas; o lapso temporal que poderia ser empreendido em atividade laboriosa transforma-se em tempo “perdido”. Se o conceito jurídico de liberdade pauta-se no desimpedimento da disposição da própria força de trabalho, o cerceamento desse direito encontra-se justamente na impossibilidade de dela dispor:

A essência da pena é constituída, também no que diz respeito à relação de trabalho, pela privação da liberdade, entendida sobretudo como privação da liberdade de poder contratar-se: o detido está sujeito a um monopólio da força de trabalho142.

Dessa feita, a prisão, nos primórdios do século XIX, desponta como instituição disciplinar ideal. É por intermédio do encarceiramento penitenciário que será possível empreender mecanismos e as estratégias de controle social, adestramento e docilização do sujeito através da distribuição e recomposição do tempo e da delimitação espacial; a prisão é ostentada como o arquétipo da organização social, onde se torna possível a reprodução absoluta e infinita da ordem social burguesa:

A penintenciária nasce e se consolida como instituição subalterna à fábrica, e como mecanismo pronto a atender as exigências do nascente sistema de produção industrial. A estrutura da penintenciária, sob o perfil tanto organizativo quanto ideológico, não pode ser compreendida se, paralelamente, não for observada a estrutura dos locais de produção; é o conceito de disciplina do trabalho que deve ser proposto aqui como termo que faz a mediação entre o cárcere e fábrica143.

O encarceiramento, enquanto espaço de concentração onde é possível o desenvolvimento racional de teias de relações disciplinares, estabelece uma hegemonia de classe. O cárcere consolida-se como insígnia institucional da nova

142

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 71, 72. 143 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 44.

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anatomia do poder burguês, a paragem privilegiada, em termos metafóricos, de uma nova ordem social144. A prisão como apontado anteriormente, representa o aprimoramento de uma série de mecanismos e estratégias da técnica disciplinar, que já vinham sendo reproduzidas em outros espaços totais de isolamento. Foucault retrata, em Vigiar e Punir, que a busca do novo modelo burguês de uma sociedade perfeita – produtiva, dócil e submissa – era perseguida em todas as intituições de sequestro, verificandose não apenas nos Hospitais-Gerais e nas Casas de Trabalho, que lentamente desapareceriam, mas também, por excelência, nas prisões, nas escolas, nos quartéis, nos hospitais, nas fábricas, etc: As disciplinas, organizando as “celas”, os “lugares” e as “fileiras” criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos. São espaços mistos: reais, pois que regem a disposição dos edifícios, de salas, de móveis, mas ideais, pois projetam-se sobre essa organização caracterizações, estimativas, hierarquias. A primeira das grandes operações da disciplina é então a constituição de “quadros vivos” que transformam as multidões confusas, inúteis ou perigosas em multiplicidades organizadas145.

Essa edificação burguesa do corpo no cárcere, na fábrica, no quartel, no hospital ou mesmo na família somente pode ser compreendida se considerada como parte da sistematização do trabalho capitalista que necessita organizar o corpo como aparato no interior do engenho produtivo. Para que se possa compreender a construção burguesa do corpo, é premente entender que no capitalismo a organização do trabalho incorpora o corpo na cadeia produtiva; o corpo não é um objeto estranho à rede produtiva, é considerado parte dela; ele é estruturado de forma sincrônica e canora com o processo de produção, entabulando-se como força

144

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 215, 216. 145 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. p. 190-191.

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de trabalho. O maquinário, assim, compõe-se em parte por uma estrutura anôrganica, fixa e estável, e em parte por um composto vivo, orgânico e variável. 146 A valorização do capital somente é possível se as forças de trabalho realizarem o sobre-trabalho. A acumulação de capital é efeito da condensação do mais-valor decorrente do excedente diferencial entre o valor de troca do produto e a soma do valor total de seus elementos de produção. A ausência de uma força laboriosa úbere impediria o processo de acumulação de riqueza. É por essa razão que o labor deve ser intensamente produtivo e para tanto o proletário deve ser disciplinado e útil. A punição penal dentro dos espaços de reclusão prisional compõe-se a fim de providenciar essa domesticação com vias para a estruturação de indivíduos produtivos e lucrativos. A prisão é a arquiteturização da exclusão; é a materialização de uma estrutura amedrontadora, segregária e marginalizadora, que tem por fim implícito a manuntenção do status quo, a perpetuação do poder nas mão de uma classe social hegemônica e o afastamento espacial dos indivíduos “improdutivos” do meio social a fim de transformá-los em seres laboriosos e ferazes . O proletário (não proprietário) é transmutado em criminoso; dão-lhe a roupagem social de transgressor, de infrator, de delinquente: [...] A classe dos não-proprietários já é considerada – ideologicamente – como homogênea à dos criminosos e vice-versa. A relatividade da diferença entre os dois termos encontra uma correspondência – como um espelho – na diferença entre os mecanismos econômicos e extra-econômicos do controle social. O cárcere – em sua dimensão de instrumento coercitivo – tem um objetivo muito preciso: a reafirmação da ordem social burguesa (a distinção nítida entre o universo dos proprietários) deve educar (ou reeducar) o criminoso (não-proprietário) a ser proletário socialmente não perigoso, isto é, ser não proprietário sem ameaçar a propriedade147.

Para que se possa legitimar esse discurso ideológico punitivo, estes “criminosos” são assim considerados inimigos públicos; o Estado soberano prende em defesa da paz social; age pela segurança do corpo comunitário; o criminoso torna-se inimigo da comunidade. Mas se antes ele devia ser eliminado ou supliciado, 146

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 215, 216. 147 Ibidem, p. 216.

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agora ele deve ser reintegrado. O proletário, agora sob o estigma do criminoso, deve ser reparado até que não represente mais uma potencial ameaça à propriedade e ao corpo social, para que então possa ser reinserido na sociedade: A pena carcerária – como sistema dominante do controle social – surge cada vez mais como o parâmetro de uma radical mudança no exercício do poder. De fato, a eliminação do “outro”, a eliminação física do transgressor (que, enquanto “fora do jogo”, se torna destrutível), a política do controle através do terror se transforma – e o cárcere é o centro desa mutação – em política preventiva, em contenção, portanto, da destrutividade. Passa-se assim, da eliminação à integração do criminoso ao tecido social. Os tempos, os modos e as formas desta “transformação” do criminoso na imagem burguesa de como “deve-ser” o “não proprietário”, isto é, o “proletário”, são complexos e se calcam numa outra identidade: exatamente aquela entre não-proprietário e criminoso. O tema central, vivido em termos de uma verdadeira obsessão, torna-se, portanto, a periculosidade social do potencial agressor da propriedade148.

Será através da aplicação rigorosa de táticas, estratégias e mecanismos disciplinares que estes indivíduos serão reeducados dentro do cárcere ao modo burguês. O corpo agora encontra-se atrelado a uma espécie diversa de investimento de poder; ele deve ser controlado e vigiado; impõem-se a ele limites, obrigações e proibições. As disciplinas perpetram uma economia de poder que persegue, através de uma coação ininterrupta, a docilidade e a utilidade dos corpos:

O corpo entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma “anatomia política”, que é também igualmente uma “mecânica do poder”, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que se operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). [...] Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada149. 148

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 216. 149 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010. p. 133, 134.

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O domínio da disciplina é o espaço do poder sobre corpos; as funções disciplinares sucedem-se em uma delimitação espacial determinada, agindo sobre as forças e as atividades relacionadas aos corpos. O império da disciplina não pode ser dar de outra forma se não sobre os corpos, e os mecanismos e estratégias dessa economia disciplinar que ensejam a normalização são apenas identificáveis no interior das instituições de sequestro. No cárcere, o corpo deve conformar-se à sua submissão. Para Foucault, o tempo, o espaço, as tarefas, o lazer e o trabalho do apenado são estrategicamente determinados. As disciplinas estabelecem uma espécie de infrapenalidade, que atua sobre um espaço onde não existem leis. O espaço é dividido, esquadrinhado, quadriculado, permitindo a localização funcional dos indivíduos. Cada espaço está atrelado ao seu ocupante específico. O tempo torna-se linear, sendo decomposto e recomposto em função das atividades que devem ser realizadas, mas sempre encontrando um ponto final preciso; divide-se em vários seguimentos sucessivos ou paralelos

que

organizam-se

sequencialmente,

combinam-se,

fixam

termos

específicos que devem ser continuamente averiguados; estabelecem-se séries de séries, segmentos concomitantes ou seguidamente separados, de forma que o apenado encontra-se preso dentro de um looping temporal que lhe é próprio e poderá lhe diferenciar dos demais. No espaço disciplinar, todo movimento tem um propósito, e a simples organização de seu exórdio deve atingir sua produtividade. Há uma vigilância hierarquizada; dividem-se os espaços, distribuem-se celas, dispõemse filas e colunas, formando uma espécie de esquema diagramático onde atua um poder com efeito de visibilidade geral. Inserem-se pequenos mecanismos penais próprios; aplicam-se castigos correcionais, sanções normalizadoras que adestram, punindo os pequenos atrasos, a inobservância de regras de conduta interna, a falta de zelo, a insubordinação; hábitos não concretizados requeridos devem ser incutidos. Por fim, instrumentaliza-se o exame; colhem-se informações sobre os indivíduos, que são notadas, organizadas e arquivadas, facilitando a articulação de estratégias de poder que dão formação a novos domínios de saber; a individualidade entra no campo da documentação, permitindo a elaboração de saberes construídos

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a partir do exame sobre as constantes e as variáveis reconhecidas na multiplicidade das singularidades individuais150:

A prisão é acima de tudo, um local de constituição de individualidades. Local de observação, de normalização, de formação de conhecimentos sobre cada prisioneiro, conhecimentos acerca de suas disposições, de sua vida, de sua história. Ela é local de formação de um saber clínico sobre os detentos, saber que permite dizer que tipo de indivíduo é aquele que nela se encontra151.

Através dessa análise do infrator, constrói-se um caráter delinquente; revelase um criminoso que já o era antes mesmo do crime ser cometido; o proletário é uma potencial ameaça contínua à propriedade e aos modos de produção e sobre ele projeta-se a realidade incorpórea de uma delinquência perversa. O não-proprietário é um perigo, um desviante, anomalia que deve ser corrigida para que possa se tornar “útil à sociedade”: A prisão se consolida então como dispositivo orientado à produção e à reprodução de uma subjetividade operária. Deve-se forjar, na penintenciária, uma nova categoria de indivíduos, indivíduos predispostos a obedecer, seguir ordens e respeitar ritmos de trabalho regulares, e sobretudo que estejam em condições de interiorizar a nova concepção capitalista do tempo como medida do valor e do espaço como delimitação do ambiente de trabalho. Delineiam-se aqui os contornos de uma economia política do corpo, de uma tecnologia do controle disciplinar que age sobre o corpo para governá-lo enquanto produtor de mais-valia e que, juntamente com outros corpos “cientificamente” organizados, torna-se capital152.

Assim, a partir da prisão constata-se uma penalidade que é inserida numa política de criminalização seletiva e excludente a partir de critérios essencialmente sociais e econômicos. O cárcere desponta como espaço estrutural de gestão da precariedade indesejada. A ligação entre a penalidade e economia não deve ser compreendida como corolário de um efeito automático ou resultado de uma relação mecânica estabelecida entre a estrutura material das relações de produção e a superestrutura ideológica da pena; o advento de formas específicas de penalidade é resultância da confluência de potências culturais, políticas e sociais que estão

150

FONSECA, Márcio A. Michel Foucault e o Direito. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 171-176. Ibidem, p. 177. 152 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 44, 45. 151

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visceralmente conectadas às relações de produção. Por consequência, a história da pena torna-se uma história socio-econômica dos aparatos de repressão que se estruturam como mecanismos reguladores das relações de classe153:

As classes sociais despossuídas, constituem, assim, o objetivo principal das instituições penais. A história dos sistemas punitivos é, nessa perspectiva, uma história das “duas nações”, isto é, das diversas estratégias repressivas de que as classes dominantes lançaram mão através dos séculos para evitar as ameaças à ordem social provenientes dos subordinados154.

Inserida na sistemática penal, a sanção tem então como principal fim não apenas a eficácia normativa do ordenamento jurídico, mas sobretudo garantir através do disciplinaridade e da reconstrução de individualidades a hegemonia da classe social que compõe o poder. Ela é a repercussão lógica do desvio do deverser jurídico determinado pela ideologia burguesa: O poder não teria nenhuma eficácia se o seu “dever-ser” social traduzido pela norma jurídica não fosse garantido pelas sanções que, desse modo, também garantem a própria continuidade políticoeconômica dos grupos dominantes. Essa é a razão por que o direito é essencialmente conservador. O direito significa ordem, ou seja, organização de uma sociedade segundo valores, ou melhor dizendo, segundo a ideologia dominante155.

Mas, nesse arranjo, é necessário observar que a mais recente organização do sistema penal revela um gradual rompimento da prisão com as políticas de correção e disciplinamento. Esse fenômeno se dá em razão do declínio do modelo industrial fordista a partir da segunda metade do séc. XX e do consequente desenrolar de um processo global de transformação das relações de produção. O epílogo da modernidade encerra uma série de alterações na formas de produção e de trabalho, encetando uma pós-modernidade caracterizada pela pós-fordismo, um regime caracterizado essencialmente pela acumulação flexível.

153

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 36, 37. 154 Ibidem, p. 38. 155 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 91.

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2.3 GÊNESE E DESENVOLVIMENTO DA PENALIDADE NO MUNDO E NO BRASIL

A estruturação de uma história do nascimento do cárcere e de seu desenvolvimento ao longo dos séculos é de elementar necessidade na presente pesquisa. O que se tenciona demonstrar é como a prisão surgiu como elemento indispensável à sistemática penal a partir de outras instituições análogas, analisando-se principalmente o despontamento dela em ambos os cenários europeu e brasileiro. Destarte, é preciso vislumbrar que a prisão constitui resultado de vários acontecimentos históricos que envolveram graduais reformas penais e um processo de criação e estruturação de instituições disciplinares que atuavam sob a fundamental função de controle social. Essa prerrogativa impõe, portanto, a necessidade de um remonte arqueológico da pena a partir da modernidade e das instituições de sequestro, que com certeza constituíram formas embrionárias do que viria a ser o espaço prisional do contemporâneo.

2.3.1 A Penalidade no Berço do Capitalismo Europeu – Bridewells, Rasp-Huis, Hóspitaux Géneraux e o Trabalho Carcerário

A obra “Vigiar e Punir” de Michel Foucault constitui um dos estudos mais apurado e completo das instituições penais da Europa, onde o autor realiza uma escavação histórica, desenterrando desde as primeiras formas da penalidade moderna, como o suplício e a tortura, até o encarceiramento celular idealizado nas prisões. E, inicialmente, é necessário partir da mesma premissa que o epistemólogo francês:

[...] os sistemas punitivos devem ser recolocados em uma certa “economia política” do corpo. Ainda que não recorram a castigos violentos ou sangrentos, mesmo quando utilizam métodos “suaves” de trancar ou corrigir, é sempre do corpo que se trata – do corpo e de suas forças, da utilidade e da docilidade delas, de sua repartição e de sua submissão. É certamente legítimo fazer uma história dos castigos com base nas ideias morais ou nas estruturas jurídicas. [...]

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Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição [...]; o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso156.

No trecho inicial da obra, o autor transcreve um breve relato da história de Damiens. Sentenciado por parricídio, fora condenado à pedir perdão em público perante à porta principal da Igreja de Paris. Após isso, seria levado em uma carroça, nu, carregando uma tocha acesa, e então erguido num patíbulo; às coxas, braços, mamilos e pernas aplicariam-se chumbo derretido, oléo fervente, cera, enxofre derretido e piche em fogo, e sua mão direita, segurando a faca com a qual havia cometido o crime, seria queimada com fogo de enxofre. Feito isso, seu corpo seria desmembrado e puxado por quatro cavalos e depois consumido com fogo, sendo reduzido à cinzas, dispersas com o vento157. Este era o espetáculo horrirífico do suplício. É premente compreender que essa perversa encenação compõe em si um mal necessário, ao menos para o poder soberano. Por meio do suplício, é possível reprimir o mal de maneira performática; a eliminação do infrator é vista como o subjulgo do inimigo, e é pública para que a reafirmação do poder soberano reverbere:

O súplicio tem uma função jurídico-política. É um cerimonial para reconstituir a soberania lesada por um instante. Ele a restaura manifestando-a em todo seu brilho. A execução pública, por rápida e cotidiana que seja, se insere em toda a série dos grandes rituais do poder eclipsado e restaurado (coroação, entrada do rei numa cidade conquistada, submissão dos súditos revoltados): por cima do crime que desprezou o soberano, ela exibe aos olhos de todos uma força invencível. Sua finalidade é menos de estabelecer um equilíbrio que de fazer funcionar, até um extremo, a dissimetria entre o súdito que ousou violar a lei e o soberano todo-poderoso que faz valer sua força158.

Portanto, o suplício opera pela imposição de uma economia de poder. A redução da criminalidade decorrente da intimidação que o assombro do suplício 156

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 28, 29. 157 Ibidem, p. 9. 158 Ibidem, p. 49.

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produz pode até ocorrer, mas o presente efeito é apenas um desdobramento . O que importa de fato é que o suplício garante ao soberano um mecanismo que assegura à ele a manutenção do poder. O supliciamento daquele que transgride a lei soberana demonstra aos súditos as consequências que acometem aqueles que se opõem à vontade soberana. Trata-se, portanto, de uma técnica, nada comparável aos extremos de uma ira ilegal. Para que uma pena seja um suplício, ela deve possuir três pressupostos essenciais: 1) gerar uma certa quantidade de sofrimento, o suficiente para que se possa mensurar, comparar e hierarquizar; trata-se de uma organização calculada de sofrimentos, uma arte quantitativa do sofrimento; 2) a produção do sofrimento físico é regulada, na medida em que é possível correlacionar o modo, a intensidade e a duração de como ele é impingido com o autor do crime, o nível social de suas vítimas e a gravidade do crime; e 3) deve ser ostentoso, visível por todos, na medida que se constitui sob a forma do triunfo do soberano; o sofrimento que produz, a violência em excesso, os exageros da agressão, constituem retratos de sua glória159. A pena do suplício, assim, imprime um mecanismo de poder:

O suplício penal não corresponde a qualquer punição corporal: é uma produção diferenciada de sofrimentos, um ritual organizado para a marcação das vítimas e a manifestação do poder que pune: não é absolutamente a exasperação de uma justiça que, esquecendo seus princípios, perdesse o controle. Nos “excessos” dos suplícios se investe toda a economia do poder160.

O que lança o suplício como forma constante de penalidade entre os século XVI e XVIII é, portanto, o método de estabelecimento e manutenção de poder que é capaz de constituir. Note-se, porém, que as transformações históricas que permearão os séculos XVI e seguintes repercutem fatalmente nessa forma de penalidade. Isso porque o suplício prescindia dos corpos já que eles não possuíam nenhuma utilidade ou valor de troca e, portanto, não eram vistos como potencial força de trabalho, prisma sob o qual somente serão encarados numa sociedade de tipo industrializada161. Ou seja, os corpos, de obstáculos que devem ser eliminados,

159

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 35, 36. 160 Ibidem, p. 36. 161 Ibidem, p. 54.

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mais tarde passarão a ser força de trabalho que deve ser disciplinada, transformada em força laboriosa útil e produtiva. A partir da segunda metade do século XVIII os suplícios passam a ser alvo de protestos. Filósofos, juristas, teóricos de direito, parlamentares, legisladores: para eles, é preciso punir por outros meios. As penas não mais devem promover a confrontação física entre o poder soberano e o súdito transgressor, entre o carrasco e o supliciado, entre a raiva reprimida do povo e a desforra do princípe. O suplício tornou-se ominoso; detestável pelo povo, que enxerga no suplício a tirania, o autoritarismo e uma sede implacável em punir162:

O carrasco forma a engrenagem entre o príncipe e o povo; a morte que ele leva é como a dos camponeses escravizados que construíram São Petesburgo por cima dos pântanos e das pestes; ela é princípio da universalidade, da vontade singular do despota, ela faz uma lei para todos e de cada um desses corpos destruídos, uma pedra para o Estado; que importa que atinja inocentes! Nessa mesma violência, ritual e dependente do caso, os reformadores do século XVIII denunciaram, ao contrário, o que excede, de um lado e de outro, o exercício legítimo do poder: a tirania, segundo eles, se opõe à revolta; elas se reclamam reciprocamente. Duplo perigo. É preciso que a justiça criminal puna em vez de se vingar163.

O que marca, portanto, o século XVIII – período das Luzes - é justamente uma ruptura com a penalidade dos suplícios. Os protestos manam uma verdadeira reforma da penalidade e do Direito; essas modificações não são impulsionadas apenas pelo caráter tirânico que se enxergava nos suplícios, mas vai além. Durante a fase do Iluminismo, o homem passa a se constituir como limite e estremadura genuína do poder punitivo. Não se trata das alterações que devem ser feitas para que o poder de punir possa alcançar o indivíduo e transformá-lo, mas sim do que este poder deve deixar intocado para que ele possa ser encarado como um poder legítimo. O que é de fato perceptível na crítica da reforma penal não é tanto a crueldade ou a inumanidade da penas, mas sim a má economia do poder: Poder excessivo nas jurisdições inferiores que podem – ajudadas pela pobreza e pela ignorância dos condenados – negligenciar as 162

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 71. 163 Ibidem, p. 72.

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apelações de direito e mandar executar sem controle sentenças arbitrárias; poder excessivo do lado de uma acusação à qual são dados quase sem limite meios de prosseguir, enquanto que o acusado está desarmado diante dela, o que leva os juízes a ser, às vezes severos demais, à vezes, por reação, indulgentes demais; poder excessivo para os juízes que podem se contentar com provas fúteis se são “legais” e que dispõem de uma liberdade bastante grande na escolha da pena; poder excessivo dado à “gente do rei”, não só em relação aos acusados, mas também aos outros magistrados; poder excessivo enfim exercido pelo rei, pois ele pode suspender o curso da justiça, modificar suas decisões, cassar os magistrados, revogá-los ou exilá-los, substituí-los por juízes por comissão real164.

Não obstante, a efetiva presença de todos esses elementos acabavam por contrastar a necessidade de um poder de punir efetivo com uma distribuição inadequadamente regulada, desencadeando uma série de conflitos que resultavam na paralisia da justiça. Mas as factuais mudanças que conduziram para o paulatino devanecimento dos suplícios não podem ser delimitadas apenas por esses fatores. É indispensável atinar que o que se verifica nesse período – entre os séculos XVI e XVIII – é um momento histórico de ruptura com os modos de produção feudais onde o trabalho era eminentemente rural. Com a deflagração do processo de acumulação primitiva do capital, o trabalhador é expulso dos campos, expropriado dos seus meios de produção. Pouco a pouco, o que se verifica na cidades é a formação de um atraente pólo comercial e nos campos um processo de êxodo dos produtores rurais; o resultado é a instumescência vultuosa de uma multidão de desempregados, mendigos, vagabundos e bandidos. Nesse momento, é possível testemunhar o surgimento das primeiras instituições totais ou de sequestro de natureza penal. Nessa acepção, para Goffman:

Toda instituição conquista parte do tempo e do interesse de seus participantes e lhes dá algo de um mundo; em resumo, toda instituição tem tendências de “fechamento”. Quando resenhamos as diferentes instituições de nossa sociedade ocidental, verificamos que algumas são muito mais “fechadas” do que as outras. Seu “fechamento” ou seu caráter total é simbolizado pela barreira à relação social com o mundo externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico – por exemplo, portas fechadas, paredes altas, arame farpado, fossos, águas,

164

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 77.

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florestas ou pântanos. A tais estabelecimento dou o nome de instituições totais [....].165

Tais instituições surgem com a função de articular e gerir essa nova população que habita as cidades. A reforma penal não pode ser vista apenas sob a romântica ilusão de uma proposta cheia de boas intenções; é necessário ir além e perceber o surgimento com repercussões incertas de uma nova classe – o proletariado – e de novos problemas que principiam a partir do processo de acumulação primitiva e da explosão demográfica urbana que passam a exigir novas formas de penalidade:

Os métodos de punição começaram a sofrer uma mudança gradual e profunda em fins do século XVI. A possibilidade de explorar o trabalho de prisioneiros passou a receber crescentemente mais atenção, com a adição da escravidão nas galés, deportação e servidão penal através de trabalhos forçados; as duas primeiras por um certo tempo, a terceira como precursora hesitante de uma instituição que tem permanecido até o presente. Algumas vezes elas apareceram simultaneamente com o sistema tradicional de fianças e penas capital e corporal; em outras, tenderam a substituí-lo. Essas mudanças não resultaram de considerações humanitárias, mas de um certo desenvolvimento econômico que revelava o valor potencial de uma massa de material humano completamente à disposição das autoridades166.

É necessário um novo regime punitivo que possa reorganizar a estrutura social garantindo sua eficiência econômica. O que se pode constatar na virada do século XVI é o estabelecimento inicial e cada vez mais significativo de um novo poder de punir que agora orienta-se não mais pela reafirmação da ordem social e do soberano, mas pela ascensão de uma nova ordem burguesa norteada pelo interesse direto na submissão do proletariado ao novo modo de produção capitalista e de sua adequação como força de trabalho produtiva inserida nestes moldes. Dessa forma, as penas capitais e corporais vão paulatinamente perdendo sua importância, sendo substituídas por um novo método punitivo caracterizado pelo poder disciplinar. Esse novo poder, exercido dentro das instituições que despontam no início do século XVI, reúne como precípua finalidade a realização de processos

165

GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos. Tradução de Dante Moreira Leite. São Paulo: Editora Perspectiva, 1961, p. 16. 166 KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 43.

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de assujeitamento do indivíduo que constituem novas subjetividades, orientadas à submissão ao trabalho, inerentemente alienado. Nesse sentido, é possível observar o exórdio de uma das primeiras instituições de sequestro, as bridewells. Estes estabelecimentos surgiram em diversas partes da Inglaterra a partir de 1530, após a publicação de um estatuto que obrigava o registro dos “vagabundos”, inserindo a primeira diferenciação entre aqueles que não estavam aptos ao trabalho, quem podia mendigar e quem não podia de forma alguma obter qualquer auxílio. A pena para estes era a capital, mas logo seria superada por novos métodos de penalidade mais “proveitosos”:

Por solicitação de alguns expoentes do clero inglês, alarmados com as proporções alcançadas pela mendicância em Londres, o rei autorizou o uso do castelo de Bridewell para acolher os vagabundos, os ociosos, os ladrões e os autores de delitos de menor importância. O objetivo da instituição, que era dirigida com mão de ferro, era reformar os internos através do trabalho obrigatório e da disciplina. Além disso, ela deveria desencorajar outras pessoas a seguirem o caminho da vagabundagem e do ócio e assegurar o próprio autosustento através do trabalho, a sua principal meta. O trabalho que ali se fazia era, em grande parte, no ramo têxtil, como o exigia a época. A experiência deve ter sido coroada de sucesso, pois, em pouco tempo, houses of correction, chamadas indistintamente de bridewells, surgiram em diversas partes da Inglaterra167.

É necessário ressaltar que essas mudanças somente podem ser apreendidas caso sejam levadas em consideração a realidade contextual desse momento históricos. A expropriação do trabalhador dos meios de produção e o corolário rompimento com o sistema de produção feudal demarcam um intenso crescimento demográfico urbano no continente europeu que resultou num contraste entre o aumento demográfico urbano e as possibilidades de emprego. Essas circunstâncias encetaram problemas fulcrais nos rearranjos produtivos na medida em que o modo de produção capitalista dependia da abundância de uma mão de obra que agora é escassa. Após o processo de expropriação dos produtores rurais, essa nova massa de potenciais trabalhadores infestam os recentes e venturosos centros urbanos, geradores de uma demanda gradativa de consumo que não pode ser suprida em razão dos próprios acontecimentos da época: as taxas de

167

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 36.

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crescimento populacional sofrem agora uma significativa queda por força da deflagração da Guerra dos Trinta Anos e do surgimento de conflitos religiosos e outros distúrbios internos que impingem um duro golpe na disponibilidade de trabalhadores livres. Além disso, Marx aponta que:

Expulsos pela dissolução dos séquitos feudais e pela expropriação violenta e intermitente de suas terras, esse proletariado inteiramente livre não podia ser absorvido pela manufatura emergente com a mesma rapidez com que fora trazido ao mundo. Por outro lado, os que foram repentinamente arrancados de seu modo de vida costumeiro tampouco conseguiam se ajustar à disciplina da nova situação. Converteram-se massivamente em mendigos, assaltantes, vagabundos, em parte por predisposição, mas na maioria dos casos por força das circunstâncias. Isso explica o surgimento, em toda Europa ocidental, no final do século XV e ao longo do século XVI, de uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da atual classe trabalhadora foram inicialmente castigados por sua metamorfose, que lhes fora imposta, em vagabundos e paupers. A legislação os tratava como delinquentes “voluntários” e supunha depender de sua boa vontade que eles continuassem a trabalhar sob as velhas condições, já inexistentes168.

As transformações políticas, econômicas e sociais, logo, ensejam a necessidade de repensar a dogmática penal. Manifestam-se a criação de leis contra os expropriados e de instituições penais que exercem uma nova economia de poder norteada pela correção e adequação dessa potencial mão de obra reserva. Nesse sentido, além das bridewells, será possível atinar nesse período inicial do capitalismo a concepção de uma série de outras instituições similares, formadas sob a unívoca função de adequar essa nova camada social constituída por um proletariado indócil. Até a derrocada do séc. XVIII, serão principalmente nos espaços das bridewells ou houses of correction, das spinhaus ou rasp-huis e dos hôspitaux généraux onde se articularão as estratégias do poder disciplinar. Ao alvorecer do séc. XIX, a penalidade e a disciplina estarão quase que totalmente condensadas sob o império da prisão. Contudo, primeiramente é necessário notar que a carência de mão de obra e o declínio da produtividade simbolizaram um ampla mudança no posicionamento das classes proprietárias. Enquanto a amplificação dos mercados e o aumento da 168

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. Livro I: o processo de produção do capital. Tradução de Rubens Enderie. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 806.

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necessidade por equipamentos técnicos vindicavam mais investimento de capital, o trabalho era algo moderadamente parco. Os capitalistas do mercantilismo somente conseguiam contratar forças de trabalho no mercado livre se pudessem oferecer condições de trabalho favoráveis e o pagamento de salários altos. A falta de mão de obra reserva engendrou um preocupante infortúnio para os proprietários dos meios de produção. Nesse momento, era possível aos trabalhadores a efetiva reivindicação de melhores condições de trabalho. A acumulação de capital era essencial para o crescimento do comércio e da manufatura, mas as resistências dos trabalhadores, que bradavam por melhores condições de trabalho simbolizavam um tremendo embaraço para que isso pudesse se realizar. Aos capitalistas coube a única opção que tinham para garantir a produtividade do capital e a redução dos salários: recorrer ao Estado169. Nesse sentido, é preciso ressaltar que as instituições penais e assistenciais não foram os únicos instrumentos que garantiram a supremacia do capitalismo. As medidas tomadas para que o Capital pudesse sobrepujar toda e qualquer resistência ao seu domínio foram desde decisões econômicas e políticas até a restrição das liberdades individuais; modificação das formas de recrutamento e da disciplina militar, de forma a incluir até mesmo criminosos; estímulos para o aumento da taxa de natalidade; constituição de monopólios alimentados pelo Estado; tabelação de salários para conter a alta dos preços de mão de obra; proibição da emigração; alterações nas diretrizes educacionais, etc170. Não obstante, as instituições penais e assistenciais que habitaram os séculos XVI, XVII, XVIII e XIX desempenharam um papel elementar na manutenção da ideologia capitalista e da dominação burguesa e também no acúmulo de capital através do enrobustecimento da produtividade e da utilização de uma mão de obra abundante e barata. No início do século XVI, é flagrante a distinção enfática que se faz entre a mendicância apta e a não apta ao trabalho. Aquela era vista como passível de sujeição à uma sistemática racionalização de bem-estar social; a última devia ser sujeitada às políticas criminais. Referido aspecto é amplamente verificável por meio das regulamentações das cidades alemãs que tratavam a pobreza por meio de

169

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 47. 170 Ibidem, p. 47-57.

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políticas assistenciais realizadas nos âmbitos das administrações locais. Já na Inglaterra, o estatuto de 1547 predizia que todos os vagabundos que recusassem o trabalho ou fugissem deveriam tornar-se escravos por dois anos; a reincidência teria como sanção a escravidão pelo resto da vida; uma nova reincidência implicaria na pena capital171: Convém, porém, esclarecer o real significado da “recusa ao trabalho” no século XVI. Uma série de estatutos promulgados entre os séculos XIV e XVI estabelecia uma taxa máxima de salário acima da qual não era lícito ir (o que implicava sanção penal); não era possível nenhuma contratação de trabalho, muito menos coletiva; e até se chegou a determinar que o trabalhador aceitasse a primeira oferta de trabalho que lhe fizessem. Ou seja, o trabalhador era obrigado a aceitar qualquer trabalho, nas condições estabelecidas por quem lhe fazia a oferta. O trabalho forçado nas houses of correction ou workhouses era direcionado, portanto, para dobrar a resistência da força de trabalho e fazê-las aceitar as condições que permitissem o máximo grau de extração da mais-valia172.

As workhouses, inspiradas pelos modelos das bridewells, consolidam-se na Inglaterra a partir do ato de 1576, o qual estabelecia a implementação de instituições equivalentes por todo o país. Por meio das casas de correção o que se buscava era remediar o fenômeno sintomático da escassez de mão de obra, oferecendo trabalho a quem fosse desempregado ou impondo-o a quem o recusava. Para Melossi e Massimo:

Tratava-se de instituições que, calcadas no modelo da primitiva Bridewell, atendiam a uma população bastante heterogênea: filhos de pobres “com a intenção de que a juventude se acostume a ser educada para o trabalho”, desempregados em busca de trabalho e aquelas categorias que [...] povoaram as primeiras bridewells, ou sea, petty ofenders, vagabundos, ladrõezinhos, prostitutas e pobres rebeldes que não queriam trabalhar. A diferenciação de tratamento, se havia alguma, era interna à instituição, através das diversas gradações da rudeza do trabalho173.

Portanto, na casas de correção a forma de punição encontra-se consubstanciada no trabalho forçado, mas sob uma dúplice função. A primeira é 171

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 64-65. 172 MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 37, 38. 173 Ibidem, p. 37.

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transformar o delinquente por meio da disciplina e do trabalho forçado em sujeito produtivo, adequando-se aquele que de início era inapto ao trabalho nos moldes capitalistas. A segunda, tão importante quanto a primeira, é providenciar um mecanismo de regulação do preço do trabalho livre disponível no mercado; quanto mais barata fosse a mão de obra das workhouses, mais barata deveria ser a mão de obra livre, para que pudesse fazer frente àquela. O modelo das workhouses britânicas foi vital para a reprodução continuada do capitalismo europeu. A partir do arquétipo institucional das bridewells, surgiram na Europa diversas instituições similares, alcançando nas Rasp-huis de Amsterdã uma de suas formas mais desenvolvidas – apesar de posterior às casas de correção inglesas, alguns historiadores afirmam que não houve sobre elas nenhuma influência direta das bridewells. A primeira Rasp-huis aparece em 1596:

Destinava-se em princípio a mendigos ou malfeitores. Seu funcionamento obedecia a três grandes princípios: a duração das penas podia, pelo menos dentro de certos limites, ser determinada pela própria administração, de acordo com o comportamento do prisioneiro [...]. O trabalho era obrigatório, feito em comum [...]; e, pelo trabalho feito, os prisioneiros recebiam um salário. Enfim, um horário estrito, um sistema de proibições e de obrigações, uma vigilância contínua, exortações, leturas espirituais, todo um jogo de meios para “atrair para o bem” e “desviar” do mal enquadrava os detentos no dia-a-dia174.

A Rasp-huis constituiu modelo exemplar de instituição disciplinar na Europa do século XVI. Sua criação foi tão valorosa para a sistemática penal da época que ela posteriormente viria a servir como modelo para a elaboração das primeiras instituições penitenciárias como se conhece hoje. Sua estruturação mostra como essa nova espécie de isolamento punitivo está muito mais vinculada à necessidade do progresso universal do capitalismo do que ao espírito humanitário de algum reformador – espúrio que a história tradicional tenta impor175. A divisão organizacional do espaço das Rasp-huis era essencialmente formada por partições com isolamento celular; a edificação continha várias celas onde conviviam diversos detentos e o trabalho era desenvolvido no pátio central ou 174

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 116, 117. 175 MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 39.

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até mesmo nas celas, dependendo da estação do ano. Nesse arranjo, é possível verificar sobretudo a aplicação de um modelo produtivo inspirado na própria organização da manufatura:

A casa de trabalho holandesa era conhecida por toda a parte pelo termo Rasp-huis, porque a atividade de trabalho fundamental que ali se desenvolvia consistia em raspar, com uma serra de várias lâminas, um certo tipo de madeira até transformá-la em pó, do qual os tintureiros retiravam o pigmento usado para tingir os fios. Esse processo de pulverização da madeira podia ser feito, basicamente, de dois modos: com uma pedra de moinho, e este era o método comumente usado por quem empregava trabalho livre, ou, na maneira já descrita, na casa de trabalho [...]. O trabalho era considerado particularmente adequado para os ociosos e os preguiçosos [...]. Era esse também o motivo com o qual se justificava a escolha do método de trabalho mais cansativo. É interessante notar que aqueles que compravam o pó de madeira da Rasp-huis reclamavam da sua má qualidade se comparada com o pó produzido no moinho176.

No período da manufatura – onde não há ou quase não existe o emprego de maquinários – o valor de aplicação feito dentro dessas instituições limita-se quase que completamente ao investimento de matéria-prima. O trabalho forçado é caracterizado essencialmente por uma pequena inversão de capital, produção rala e de baixa qualidade, de tal forma que o auferimento de lucros é garantido pela invulgar constrição dos salários. Dessa forma, a esse tipo de indústria é possível sobreviver graças aos privilégios característicos de sua própria estruturação. Mas essa constituição é claramente contrastante com as indústrias do mercado livre; aqui o que se verifica é uma verdadeira escassez de mão de obra, em grande parte graças à sua concentração nas casas de trabalho. Uma das tentativas de driblar esse obstáculo foi introduzir o uso das máquinas, buscando assim um aumento do processo de extração da mais valia. A contenda da luta de classes por meio dos estratagemas impositivos do isolamento institucional se manifesta, assim, desde o princípio, como uma trava à própria evolução do capitalismo e insurge ao preceito do trabalho forçado nas casa de correção não apenas os trabalhadores livres, mas também os setores capitalistas despojados desses apanágios. A definição de um processo produtivo mais duro e 176

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 43.

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fatigante depende, assim, da hipótese de auferir significativa lucratividade sem que sejam necessários vultuosos investimentos de capital numa situação onde o monópolio mercantilista tradicional se resguarda da concorrência externa. Na verdade, esse arranjo possui uma outra função. A manufatura arregimenta sua força de trabalho principalmente em dois conjuntos sociais que foram falidos pela expansão do capitalismo: os antigos camponeses e artesãos. Estes eram basicamente os que populavam as casas de correção, já que não estavam acostumados a trabalhar sob os novos moldes do modo de produção capistalista, deveras diferente do trabalho que exerciam nos campos; por isso, eram marcados por uma resistência e uma insubordinação incompatíveis com a produção manufatureira177. Mas o que se pode verificar também é um efeito externo que decorre da forma como as casas de correção eram organizadas. Trata-se de um efeito de prevenção geral impingido sobre os trabalhadores livres, que ao descobrir a realidade das casas de correção, presumiam que era mais favorável aceitar as condições de trabalho impostas no mercado livre do que sucumbir nas workhouses. Na França, também é possível verificar a predominância cada vez crescente de novas instituições que perseguiam a transformação dos indivíduos sob o império da disciplina do trabalho. Os Hoxpitaux géneraux eram locais de internamento onde misturavam-se religião e trabalho e persistia a aplicação de novos métodos produtivos utilizando-se do material humano disponível sob a condição legitimante de oferecer condições assistenciais de amparo aos pobres e desempregados:

O primeiro Hôxpital général foi fundado em Paris em 1656, e logo outros foram criados em toda França, como resultado da atividade enérgica dos jesuítas Chauraud, Dunod e Guevarre. A capacidade de trabalho dos internos era utilizada de duas maneiras: as próprias autoridades administravam as instituições, ou os reclusos eram entregues a um empregador privado. Ocasionalmente, toda a instituição era entregue a um contratante. Os internos do sexo masculino eram utilizados principalmente no trabalho de raspar as madeiras duras, destinadas à tintura de tecidos, uma prática primeiramente introduzida em Amsterdã178.

177

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 44, 45. 178 KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 70.

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Na França, assim como na Holanda, grande parcela do trabalho era desempenhado sob a gerência direta das próprias instituições, ao contrário do que acontecia frequentemente nas Bridewells de Londres, onde era comum a saída dos detentos para a realização de serviços particulares, sempre seguidos de mecanismos específicos para a capacitação de aprendizes. Para que o êxito financeiro da instituição pudesse ser garantido, os internos eram amiúde comandados a permanecer trabalhando por um tempo significativamente longo após a conclusão do treinamento como forma de saldar as despesas de educação e manutenção179. É possível observar ao longo dos primeiros momentos de evolução do capitalismo que penalidade e assistencialismo de certa forma se confudem, acabando por produzir consequências parecidas. De um modo geral, fosse por meio de políticas penais ou através de implementação de políticas assistenciais, era eminente que o trabalho devia integrar a vida de todos. Àqueles que não tivessem condições de trabalhar, dava-se trabalho; àqueles que se recusassem à trabalhar, impunha-se trabalho. Tudo pelo progresso do capitalismo. Até meados do séc. XVIII, o cárcere não estava inserido nessa dogmática. O espaço carcerário era um âmbito apenas de custódia; o sujeito era preso, mas não era punido; as grades serviam apenas para manter o criminoso detido até a realização do julgamento. Apesar disso, excepcionalmente efetivavam-se sentenças de prisão, geralmente aplicadas pelo não pagamento de fiança e enquanto o detido não pagasse o valor da fiança ao carcereiro ele não era libertado. Mas, na segunda metade do século XVIII, a partir de um surto industrial verificável principalmente na Inglaterra, a situação mudaria radicalmente:

Uma excepcional aceleração do ritmo do desenvolvimento econômico, o fenômeno da Revolução Industrial, rompe com todos os tradicionais equilíbrios sociais precedentes. Uma repentina inclinação da curva do crescimento demográfico, juntamente com a introdução das máquinas e a passagem do sistema manufatureiro para o sistema de fábrica propriamente dito, servem para assinalar contemporaneamente a idade de ouro do jovem capitalismo, acompanhado pelo período mais escuro da história do proletariado. A incrível aceleração da penetração do capital no campo, e, concomitantemente, a expulsão da classe camponesa, em especial através dos bills for inclosures of commons, as leis para o 179

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, p. 70-71.

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cercamento das terras comunais, contribui para levar ao mercado de trabalho uma oferta de mão-de-obra sem precedentes. Um novo período de grande compressão dos salários se estende na Inglaterra de 1760 a aproximadamente 1815180.

No início segunda metade do século XVII a Inglaterra conheceu um grande surto comercial e, por outro lado, um processo de reforma agrária concluído ao final do século. Mas o fator que sobretudo desencadeou o enrobustecimento da produtividade capitalista foi o salto tecnológico vivenciado pelo setor da produção têxtil em razão da introdução de maquinários, resultando no irrompimento de grandes fábricas e o nascimento de uma nova classe de empresários industriais: a Inglaterra inicia sua Revolução Industrial. Ao final do séc. XVII, surge a primeira casa bancária do País, o Banco da Inglaterra, que um século mais tarde se tornaria o maior centro financeiro do mundo; inicia-se um intenso aprimoramento das vias terrestres de comunicação e a multiplicação de águas navegáveis; as terras, antes submetidas à um regime agrário feudal, passam a submeter-se ao modo capitalista de exploração e são cercadas e concentradas nas mãos de proprietários únicos, criando

novos

latifúndios,

substituindo

a

agricultura

de

subsistência

e

implementando espaços para a criação de gado ovino direcionados para a produção de lã181. Essas importantes mudanças também são acompanhadas paralelamente por outros acontecimentos: o sistema implementado nas casas de correção, antes extremamente bem sucedido, gradualmente começa a se deteriorar. O trabalho realizado nas workhouses, que haviam se difundido para vários países, torna-se escasso e pouco a pouco volta-se a punir os pobres e vagabundos com o ferro em brasa e o açoite. Apesar disso as práticas implementadas nas casas de correção farão com que a punição se torne cada vez mais aquela do tipo detentivo, absorvendo pouco a pouco as antigas prisões de custódia182. É igualmente imperioso ressaltar os acontecimentos que sucederam-se após a Revolução Industrial, encetando uma série de mudanças, principalmente no que 180

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 64. 181 COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 195-200. 182 MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 63.

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tange à questão da soberania. As transformações do séc. XIX que permearam a Revolução Francesa e as ideias que foram advogadas pelo movimento Iluminista influenciaram de maneira fulcral os âmbitos político e jurídico. Nesse período é possível verificar a paulatina consolidação da classe burguesa através do sistema político representativo. Para que isso fosse possível, foi necessário que o monarca fosse substituído por outro alguém legítimo, que pudesse representar um poder soberano forte, justo e inconteste. O grande celeuma político da iniciativa revolucionária francesa foi precisamente este. A nobreza, e tampouco o clero, dois dos estamentos de maior prestígio, não possuíam a mínima legitimidade para pleitear para si a soberania naquele momento, já que mantinham-se ligados a privilégios que suprimiam o povo humilde e limitavam a liberdade econômica da burguesia. Restava, portanto, ao terceiro estamento (le Tiers État), formado por todos aqueles excluídos do clero e da nobreza, a reinvidicação da soberania. O Tiers État integrava oficialmente a sociedade francesa e era caracterizado por um aglomerado social dessemelhante constituído, de um lado, pela burguesia (comerciantes, profissionais liberais, proprietários urbanos, etc), e de outro, pelo amplo e heterogêneo grupo social de não-proprietários restante, comumente designado povo (artesãos, operários, camponeses, etc)183. Mas nos momentos iniciais da Revolução era impossível a atribuição da soberania política ao povo, que só veio a ocorrer – simbólicamente – pouco mais tarde, quando os deputados do Tiers État, após conseguirem com que seu número de representantes fosse duplicado, exigiram em assembleia que as votações deixassem de ser feitas pelo voto coletivo de cada estamento e passassem a ser feitas por cada representante individual. Em protesto, os nobres e clérigos, excetuando-se um ou outro, deixaram a assembleia, que ficou totalmente nas mãos do terceiro estamento. Mas e agora, como intitular corretamente o conjunto de deputados que continuaram em suas funções e que não podiam mais ser denominados apropriadamente como representantes dos États Générau du Royaume184?:

A solução do problema veio de Sieyés, com base nas ideias políticas publicadas pouco antes, na obra que o tornou célebre: Qu‟est-ce que 183

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 110. 184 Ibidem, p. 109-110.

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le Tiers État? Os deputados passariam a reunir-se em uma assembleia nacional. A classe burguesa resolvia assim, elegantemente, a delicadíssima questão da transferência da soberania política. Em lugar do monarca, que deixava o palco, entrava em cena uma entidade global, dotada de conotações quase sagradas, que não podiam ser contestadas abertamente pela nobreza e o clero, sob pena de sofrerem a acusação do antipatriotismo; entidade essa que, de qualquer forma, pairava acima do povo, onde predominava a força numéria dos não proprietários185.

Estava resolvido, portanto, o problema da soberania. O poder soberano não pertencia mais à um senhor da nobreza, e tampouco poderia ser exercido diretamente pelo povo como o era na democracia dos tempos atenienses. A soberania estava acima deles, sob o exercício dos representantes da vontade nacional, nas mãos da burguesia do Tiers État. O novo soberano, por força de sua própria natureza, não é capaz de exercer o poder político pessoalmente; a nação pode existir no âmbito político, mas apenas como figura simbólica, somente atuando por meio da representação. Com o poder político em mãos, era agora possível dar continuidade a todas as mudanças necessárias para que a ideologia capitalista pudesse imperar. Ao longo da Revolução Francesa, e antes mesmo que tomassem o poder, a burguesia já tomavas precauções para garantir sua própria sobrevivência. A preocupação principal era de limitar o poder do Estado para punir, através da criação de leis e da submissão das autoridades judiciais a um rígido controle legal. Nesse sentido, a reforma do sistema penal advogada por Beccaria, Montesquieu, Marat e outros importantes pensadores teve crucial importância, mas o triunfo das bandeiras hasteadas em favor da observação de princípios humanitários na aplicação das penas somente foi perseguido na medida de sua coincidência com as necessidades econômicas e os interesses da burguesia. A realização da Revolução Francesa e da Revolução Industrial desenham assim os novos contornos da totalidade capitalistas:

A organização da indústria foi revolucionada pela nova condição do mercado de trabalho. Primeiramente, apenas as empresas que recebiam assistência governamental poderiam sustentar-se, mas agora qualquer uma com um pequeno capital poderia estabelecer algum tipo de negócio. A burguesia estava se afirmando, e sentia-se 185

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 111.

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seriamente ameaçada pelos grupos privilegiados que usavam seus monopólios e outras vantagens para afastá-la dos negócios. Clamava por liberdade para a manufatura e o comércio. Espalhava os ideias do otimismo liberal; a livre concorrência deveria ser garantia de harmonia entre interesses conflitantes [...]. “Laisser-faire, laisserpasser, le monde va de lui-même” era a nova palavra de ordem, e tanto empregadores quanto empregados viam a chave do milênio neste princípio de puro individualismo186.

A priori, seria possível vislumbrar nessas novas condições meios do trabalhador se libertar de suas amarras, pois munido dessa nova liberdade poderia aumentar o preço de sua mão de obra. Entretanto, é necessário ressaltar que o mercado encontrava-se saturado: os salários baixaram significativamente e os trabalhadores encontraram-se mais oprimidos que nunca. Foi um dos períodos mais assustadores da história do proletariado187. Todas essas mudanças repercutiram intensamente no sistema penal da época. O trabalho institucional pouco a pouco deixa de ser produtivo e até mesmo necessário. A introdução da tecnologia de máquinas, além de ampliar a quantidade de mão de obra de reserva, acaba tornando obsoleto o trabalho das casas de correção. Ademais:

Enquanto a indústria, no período do mercantilismo, necessitou do sistema de privilégios e dos monopólios para desenvolver-se, as autoridades puderam facilmente levar a melhor diante dos protestos e queixas dos concorrentes da instituição [...]. Porém, na medida em que a nova doutrina do laissez-faire se desenvolve e se impõe, começa a hostilizar com sucesso aquelas empresas que sobrevivem fora da lei do livre mercado, utilizando, por exemplo, o trabalho forçado. O trabalho no cárcere tende, assim, a desaparecer ou a se tornar um trabalho completamente improdutivo, com finalidades puramente disciplinares e terroristas. Além disso, pode cobrir tais ataques com belas motivações de cunho social, pois na grave situação de desemprego da qual se aproveita e na qual prospera, pode-se facilmente acusar o trabalho no cárcere de estar prejudicando os trabalhadores livres desempregados. E, de fato, as primeiras organizações do movimento operário integrarão esta hostilidade ao seu patrimônio188.

186

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 127. 187 Ibidem, p. 127. 188 MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 83.

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Nesse

sentido,

materializa-se

cada

vez

mais

a

tendência

de

desaparecimento das casas de correção, que vão tornando-se ultrapassadas. O aumento do exército industrial de reserva impulsionado pelo ampliação da produtividade das grandes indústrias em detrimento da necessidade de mão de obra provocam um aumento da criminalidade e do pauperismo:

Depois da revolução e da experiência jacobina, num momento em que a organização da classe operária ensaia seus primeiros passos, é privilegiado o terreno da criminalidade, da solução pessoal violenta, é nele que tem lugar o confronto de classe. O grande número de desempregados, a desorganização das massas e a miséria extrema fazem deste período aquele no qual o salário real desceu aos níveis mais baixos, desde o ínicio do desenvolvimento capitalista. Na realidade, tudo induz à mendicância, ao roubo, e em alguns casos à violência e ao banditismo, a forma primitiva de luta de classe, como os incêncios nos campos, a revolta contra as máquinas e assim por diante189.

Perante esses fenômenos que eles mesmos criaram, o Capital e suas forças políticas representativas não mais precisam corresponder com a imposição de um trabalho forçado que diminua os salários da mão de obra livre e que discipline e recupere os desempregados e vagabundos para o trabalho na fábrica. A partir da metade do séc. XIX, ao menos na Europa, a instituição carcerária torna-se uma aquisição definitiva, caracterizada por uma nova função de punição das tendências terrorristas e de controle social, ocupando cada vez mais espaço na prática punitiva burguesa190. Assim, entre o final do séc. XVIII e o início do séc. XIX o que se evidencia é o assentamento de uma penalidade essencialmente detentiva. É axiomático que sua elaboração não foi algo subitamente inovador, pois já era conspícuo uma transição das práticas punitivas que introduzia à justiça penal certa “humanidade”. A prisão, de fato, surgiu como uma nova forma de humanização das penas, mas sua composição apenas evidenciou a abertura da penalidade a dispositivos coercitivos que já haviam sido implementados em outras instituições. A prisão caracterizou-se sobretudo por uma série de mecanismos e tecnologias disciplinares que podiam garantir não só a docilização do prisioneiro 189

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 92. 190 Ibidem, p. 93.

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dentro da prisão, mas que permitiam assegurar que ele fosse transformado em uma força-trabalho adequada para o modo de produção capitalista:

A prisão deve ser um aparelho disciplinar exaustivo. Em vários sentidos deve tomar a seu cargo todos os aspectos do indivíduo, seu treinamento físico, sua aptidão para o trabalho, seu comportamento cotidiano, sua atitude moral, suas disposições; a prisão, muito mais que a escola, a oficina ou o exército, que implicam sempre numa certa especialização, é “onidisciplinar” [...]. Ela dá um poder quase total sobre os detentos; tem seus mecanismos internos de repressão e de castigo: disciplina despótica191.

Mas antes é necessário compreender que ao passo que a Revolução Industrial começa a repercutir por toda a Europa, o trabalho carcerário vai tornandose cada vez mais inútil e obsoleto, na medida que não possui as condições de competitividade necessária para fazer frente às grandes fábricas e indústrias. As casas de trabalho como experiência rentável dissipam-se:

Ao invés de uma classe dominante ávida para obter força de trabalho de qualquer jeito, encontramos uma classe trabalhadora montando barricadas para assegurar o reconhecimento oficial de seu direito ao trabalho. A fábrica substituiu a casa de correção, que requeria altos investimentos em administração e disciplina. O trabalho livre podia produzir muito mais e evitava a drenagem de capital envolvido com as casas de correção. Em outras palavras, a casa de correção caiu em decadência porque outras fontes melhores de lucro foram encontradas, e porque, com o desaparecimento da casa de correção como meio de exploração lucrativo, a possível influência reformadora do trabalho seguro também desapareceu192.

No preciso momento em que as bases econômicas das casas de correção são desmanteladas pelas inovações industriais, o cárcere torna-se a método predominante de punição, adquirindo várias formas e gradações conforme a posição social do infrator e a gravidade do delito. De forma geral, as prisões de custódia, antes utilizadas apenas para deter aqueles que aguardavam julgamento, agora passam a ser usados para a efetiva execução da pena de prisão. O crescente número de condenações encetou uma explosão da população carcéraria, e os

191

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. 38. ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2010, p. 222. 192 KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 136.

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poucos investimentos na manutenção dos prisioneiros resultaram na degradação das condições do cárcere193. Ao mesmo tempo, é necessário perceber que o início do séc. XIX é marcado por um momento de desemprego e penúria crescentes; a possibilidade de encontrar trabalho era extremamente difícil; aos desocupados, a única forma de sobreviver era a mendicância ou a vida criminosa. Considerando que o que está em jogo para eles é a própria sobrevivência de si ou da família, o efeito intimidador que o cárcere poderia gerar nesses casos tornava-se inútil194. Os reformadores europeus buscariam a solução para estes problemas nos modelos penintenciários que começavam a despontar nos Estados Unidos como substitutos das workhouses:

A estrutura desta forma de execução penitenciária se baseava no isolamento celular dos internos, na obrigação ao silêncio, na meditação e na oração. Esse sistema garantia, em primeiro lugar, uma drástica redução com as despesas de vigilância; em segundo lugar, este rígido estado de segregação individual negava, a priori, a possibilidade de introduzir um tipo de organização industrial nas prisões [...]. O preocupante problema dos altos custos administrativos foi, assim, resolvido em parte, e essa foi uma das razões da rápida difusão deste modelo de reclusão em diversos estados americanos195.

Nesse contexto, o trabalho carcerário até existia, mas não possuía em si nenhum potencial econômico. Marcadamente artesanal, era totalmente antieconômico e possuía função eminentemente terapêutica. No entanto, as mudanças no mercado de trabalho que permearam o início do século XIX iriam modificar a conjuntura penal americana determinando uma nova abordagem sobre as camadas mais pobres da sociedade. O confinamento solitário privava o mercado de trabalho de uma força de trabalho em potencial. O sistema filadelfiano é rapidamente substituído pelo sistema auburniano, marcado pelo confinamento solitário noturno e o trabalho em grupo durante o dia:

193

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 147, 148. 194 Ibidem, p. 92. 195 MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 188.

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[...] A originalidade do novo sistema consistia na introdução de um tipo de trabalho de estrutura análoga àquela então dominante na fábrica. Chega-se a esse resultado gradativamente. Num primeiro momento [...] permitiu-se ao capitalista privado assumir, sob a forma de concessão, a própria instituição carcerária, com a possibilidade de transformá-la, às suas expensas, em fábrica. Num segundo momento, aderiu-se a um esquema do tipo contratual, no qual a organização institucional era gerida pela autoridade administrativa, permanecendo sob o controle do empresário tanto a direção do trabalho quanto a venda da produção. Na seqüência dessa fase, chega-se ao sistema no qual a empresa limitava-se a orientar a colocação da produção no mercado. Essa última etapa assinalou o momento da completa industrialização carcerária196.

A introdução do trabalho carcerário produtivo encetou os mesmos efeitos reproduzidos no mercantilismo europeu. Por meio dele, foi possível reduzir os custos de produção de determinados setores da indústria e exercer influência direta na contenção dos aumentos salariais por meio da concorrência. No entanto, o trabalho penitenciário diminuiu intensamente nas últimas décadas do séc. XIX, e em alguns estados americanos enfrentou até mesmo sua abolição, fruto da luta operária empreendida pelos trabalhadores livres. Na Europa verificou-se uma massiva implementação do sistema de confinamento solitário. A ideia dos reformadores era de que a sociedade européia precisava de uma espécie de punição que recuperasse os delinquentes e que incutisse o medo no âmago dos miseráveis. De certa forma, isso funcionou: o sistema filadelfiano era visto como o pior tormento que alguém poderia enfrentar, pois gerava um intenso sentimento de inutilidade em meio ao absoluto ócio e solidão. De fato, ele realmente tinha vantagens que garantiam a manutenção da disciplina, tornando a gestão prisional mais fácil, já que as autoridades podiam lidar com cada interno isoladamente, mas isso acabou por repercutir de modo extremamente negativo. A privação de contato com outros prisioneiros só fazia com que eles tentassem cada vez mais se comunicar uns com os outros; a saúde mental e física dos detentos eram profundamente abalados. No final das contas, a confinamento celular mostrou-se um fiasco, e concluiu-se que esse tipo de sistema era absolutamente inadequado para a reabilitação dos prisioneiros197. 196

MASSIMO, Pavarini e MELOSSI, Dario. Cárcere e fábrica – As origens do sistema penitenciário (séculos XVI-XIX). Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 191. 197 KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 186-192.

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Na segunda metade do séc. XIX a Europa adentra num momento de prosperidade econômica que duraria até 1914, suspenso apenas por pequenas crises. A classes subalternas gozam de pequenas melhorias, conseguindo participar do consumo de bens antes inacessíveis e gozar de um aumento dos níveis salariais graças à intesificação da produção em massa, a redução das taxas de natalidade e o consecutivo decrescimento da oferta de mão de obra. No âmbito penal, isso resultou no equilíbrio e até mesmo na redução dos delitos e das condenações198. A melhora das condições de vida engatilhou um avanço nas condições do cárcere, mas sem desfazer a linha que separava a degradante condição do cárcere da vida fora da prisão. O empreendimento de novas reformas no âmbito penal a partir do início do séc. XX mudou a abordagem das práticas punitivas, adotando-se um olhar a partir do prisma da criminologia sociológica. Era possível agora enxegar que a criminalidade estava ligada muitas vezes às flutuações econômicas: o crime é, portanto, um fenômeno social, e o criminoso deveria ser tratado levando em consideração suas perspectivas de futuro e de reabilitação. O trabalho carcerário continuava a ser uma questão não resolvida, já que com o desenvolvimento altamente industrial da maioria dos países europeus ele havia perdido seu sentido econômico. A resistência do mundo dos negócios foi tão forte que, a princípio, o ofício ficou limitado apenas à confecção de bens manufaturados para uso na prisão ou em repartição públicas, possuindo, portanto, um objetivo essencialmente pedagógico. Mas esse aspecto mostrou-se falho na medida em que não havia qualquer instrução profissional ou uma eficiente divisão do trabalho; não havia possibilidade de especialização, de modo que se verificava um verdadeiro recrudescimento da capacidade profissional do detento. Assim, ao ser solto, o condenado se deparava com a grande dificuldade de encontrar um nicho de trabalho, em uma sociedade caracterizada por um mercado extremamente competitivo199. No que tange ao pagamento de salários ao trabalhador encarceirado, também houve forte imposição, já que o receio era de que a retribuição salarial poderia colocar esse tipo de trabalho próximo ao nível do trabalho livre. No entanto, concluiu-se que alguma espécie de remuneração era necessária como forma de

198

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 193-194. 199 Ibidem, p. 193-194.

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incentivar os presos à produzir o máximo possível, introduzindo-se um sistema de pagamento. A partir daí, surgiram, v.g., nos Estados Unidos, vários sistemas de emprego da força de trabalho carcerário: em alguns deles, o trabalho era organizado e gerido totalmente pela administração carcerária, em outros, os internos eram utilizados diretamente pela iniciativa privada por meio de uma espécie de contrato coletivo. Nesse sentido, é imprescindível apontar as alterações encetadas neste momento pela Primeira Guerra Mundial:

As próprias prisões tornaram-se importantes empresas do governo, usando ao máximo a força de trabalho disponível. Os comissários de prisão ingleses, no relatório anual que fechava em 31 de Março de 1919, informaram que “a fabricação de material bélico continuou a empregar todo interno disponível, e o resultado tem sido satisfatório, apesar das dificuldades experimentadas em obter matérias-primas, a remessa da produção sob encomenda foi feita em quase todos os casos dentro do prazo limite requerido pelas diversas repartições governamentais”200.

Com o advento da guerra, os interesses militares foram determinantes, na medida em que se enfrentava a necessidade de recrutar o maior número de pessoas possíveis para atividades militares e auxiliares. Muitos condenados eram enviados ao fronte de batalha. A carência de homens fez com que urgisse a premente necessidade de reforçar a esfera produtiva. A população carcerária sofreu um declínio considerável, tornando-se comuns os indultos e as liberdades condicionais. E, mais uma vez, o desfecho da Primeira Guerra Mundial e o desvelar do período pós-guerra ocasionaria uma série de mudanças no panorama político e econômico. Para os Estados Unidos, a guerra foi um empreendimento extremamente lucrativo. Suas reservas de ouro foram quadruplicadas: em 1921, elas equivaliam a dois quintos de todo ouro das reservas mundias. A renda nacional do país quase dobrou ao final da guerra; a produção industrial cresceu exponencialmente; os investimentos no exterior quase duplicaram. Ao final Primeira Guerra Mundial, a nação norte-americana transformava-se na primeira potência econômica do globo201.

200

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 222. 201 COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 234.

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O mesmo não pode ser dito das potências européias, que tiveram de se endividar consideravelmente para que pudessem custear as despesas militares. Ao fim da Grande Guerra, a dívida pública dos países do continente europeu que antes era de 20 bilhões de dólares, passou para 225 bilhões; ou seja, de 1914 à 1920 o valor dessa dívida mais que decuplicou. Em 1921, a comissão de reparações da guerra ainda decretou à Alemanha o pagamento de uma dívida de 33 bilhões de doláres. Além disso, a França e o Reino Unido ainda tiveram de realizar empréstimos dos Estados Unidos, nos valores respectivos de 3 e 4 bilhoes de dólares202. Um cenário completamente diferente do período anterior à guerra agora despontava. Os resultados da Guerra dizimaram a supremacia européia. O epílogo do século XX coroava agora uma nova potência hegemônica. A Europa adentrava num cenário de crise política e econômica e o período pós-guerra teve de encarar a redivisão dos países europeus para preencher os espaços deixados vazios e enfraquecer a Alemanha. Sem falar da preocupação dos países em impedir outra guerra mundial através do Tratado de Versalhes. No entanto, Hobsbawn aponta:

Não é necessário entrar em detalhes da história entreguerras para ver que o acordo de Versalhes não podia ser a base de uma paz estável. Estava condenado desde o início, e portanto outra guerra era praticamente certa. Como já observamos, os EUA quase imediatamente se retiraram, e num mundo não mais eurocentrado e eurodeterminado, nenhum acordo endossado pelo que era agora uma grande potência mundial podia se sustentar [...]. Duas grandes potências européias, na verdade mundiais, estavam temporariamente não apenas eliminadas do jogo internacional, mas tidas como não existindo como jogadores independentes – a Alemanha e a Rússia soviética. Assim que uma ou as duas reentrassem na cena, um acordo de paz baseado apenas na GrãBretanha ou na França – pois a Itália também continuava insatisfeita – não poderia durar203.

É clamorosa, portanto, a instabilidade que permeia o período entreguerras, e isso não apenas no âmbito político global, mas também nos setores econômicos da Europa. Após a Primeira Guerra, os países europeus, sobretudo aqueles que participaram da guerra, sentiriam os impactos de seus empreendimentos bélicos. 202

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 234. 203 HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 42.

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O periódo pós-guerra foi caracterizado fundamentalmente pelo declínio dos salários, crescimento da pobreza – afetando até mesmo a classe média – e intenso aumento do desemprego, repercutindo diretamente no aumento das taxas de criminalidade. A Escandinávia e os países da Europa ocidental não sentiram tanto os desdobramentos, conservando as mesmas taxas de criminalidade do período préguerra ou até mesmo demonstrando queda. Todavia, de um modo geral, a sistemática penal se manteve a mesma, surtindo mudanças apenas na Alemanha, onde se implementou uma nova legislação estabelecendo fianças e suspensão das sentenças com o intuito de diminuir a população carcerária o máximo possível 204. De forma geral, guardadas as peculiaridades históricas de cada país, a conjuntura penal e econômica das nações será pouco afetada até a Grande Depressão de 1930 e o despontamento do fordismo. A partir daí, a penalidade passa a ser exercida sob novas funções especificamente delimitadas. Os valores capitalistas já estão incutidos na sociedade e a ordem burguesa idealizada dentro dos cárceres e das fábricas inunda as cidades.

2.3.2 Revolução Burguesa no Brasil – Ascensão do Capitalismo e Penalidade

A história do capitalismo no Brasil não pode reduzir-se à uma mera equiparação subsuntiva dos acontecimentos que se sucederam para a formação do capitalismo na Europa, mas ao mesmo tempo é necessário estabelecer preliminarmente que ainda que existam diversas e significativas diferenças na origem do capitalismo em ambos esses lugares, isto não significa que não houve capitalismo nos períodos que antecederam a formação do Estado nacional brasileiro. Isto porquê as particularidades do real não devem ser apreendidas como elementos desconexos da totalidade do universal singular, mas sim por meio de uma relação dialética entre as particularidades e o universal. Assim, as particulares encetam as grandes

204

linhas

da

universalidade;

enquanto

determinação

específica,

a

KIRCHHEIMER, Otto; RUSCHE, Georg. Punição e Estrutura Social. Tradução de Gizlene Neder. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2004, p. 223-225.

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particularidade se apresenta como real mediação do real com o universal 205. Nesse sentido, Mazzeo afirma:

Ao estudarmos uma realidade social, o fundamental é situá-la no âmbito da relação universal-particular, quer dizer, a partir do modo de produção que a conforma. No caso do modo de produção capitalista – que se estrutura como universalidade -, as formações sociais constituem-se enquanto particularidades, que materializam e contêm essa universalidade modo de produção capitalista. De fato, são as particularidades que dão os nexos à universalidade, que, por sua vez, dá o próprio “sentido” real à singularidade, remontando-a à universalidade, enquanto concreção mesma206.

Estabelecida essa premissa, deve-se partir de uma análise historiográfica da formação do Estado brasileiro para que possamos compreender a ascensão da autocracia burguesa e do capitalismo em terrae brasilis. A descoberta do Brasil nos primórdios do séc. XVI ocorreu no momento em que o capitalismo começava a nascer na Europa sob sua forma mercantilista e sua descoberta possibilitou à Portugal empreender uma verdadeira expansão do capitalismo fundando um dos primeiros impérios comerciais da modernidade. Mas é historicamente cristalino que a ampliação dos alcances da empreitada mercantilista não se realizou com gentileza alguma. As colonizações realizadas nos países das Américas tinham como escopo básico a obtenção de matéria-prima – como especiarias e metais precisos – e de produtos exportáveis que não podiam ser encontrados nas terras européias – exploração principalmente de açucar e posteriormente de café – e os nativos indígenas que ocupavam essas terras, e que eram, portanto, seus legítimos “proprietários” – apesar de não existir um conceito definido de propriedade privada na cultura indígena – tiveram de enfrentar dois destinos nas mãos dos colonizadores europeus. Na maioria das terras americanas, as populações indígenas foram simples e puramente obliteradas, originando um dos primeiros genocídios que a história mais moderna conheceria. Em outros lugares, onde era impossível a remoção da população agrária, os invasores simplesmente introduziram a

205

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 24. 206 Ibidem, p. 24, 25.

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propriedade privada – reproduzindo algo similar ao senhorio presente na derrocada do Império Romano – submetendo os produtores rurais locais à servidão207. A pré-formação do Brasil foi caracterizada por um colonialismo sustentado por um poder político privatizado na medida em que os colonizadores se preocupavam unicamente com suas predileções. A tomada das terras não foi realizada sob o escopo de expansão territorial e de assentamento populacional, mas sim com o objetivo de pura exploração econômica, diferentemente do que ocorreu em invasões de momentos anteriores da história. Dessa feita, não havia qualquer preocupação de preservação do espaço territorial, dos povos locais e de sua cultura:

O empreendimento colonial nas Américas, desde o início, apresentou uma característica marcante da civilização capitalista [...], qual seja, o predomínio do interesse privado sobre o bem público. Ela fez sentirse não somente nas metrópoles, mas também nas colônias. Em Portugal, onde o soberano assumiu, como assinalado, o papel de Comerciante-mor do reino, o interesse particular da Coroa sobrepôsse em vários ocasiões ao bem comum dos súditos. Quanto às colônias, os administradores e militares enviados pelas metrópoles envolveram-se pessoalmente em operações mercantis ou entregaram-se à busca desenfreada, para si próprios, de ouro, prata e metais preciosos. Engendrou-se com isso a privatização do poder político, objetivo sempre perseguido pelo capitalismo, e que fundou na América Latina a longeva tradição do patrimonialismo de Estado208.

Por essa razão, não é possível nem de perto comparar a conjuntura legal que vigia nos países europeus da época com a conjuntura do Brasil colonial. O direito oficial dos países, nunca expressamente suspenso nas colônias, na verdade não possuía validade alguma. À sombra dele, o que existia era na verdade outro direito – ou talvez um direito instituído sobre a possibilidade de sua própria negação – regulamentado e praticado exclusivamente em nome dos benefícios e interesses dos donos do poder. Esse fato pode ser percebido ao observar-se as primeiras disposições territoriais do Brasil colonial. Após o assentamento dos portugueses, o Brasil fora dividido em quinze capitânias hereditárias, as quais eram administradas cada uma por um beneficiário, todos membros da pequena nobreza de Portugal, que deviam

207

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 164. 208 Ibidem, p. 164,165.

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ocupar o Brasil para que o empreendimento colonial pudesse ser protegido de seus competidores. Os titulares dessa permissões concedidas pela realeza portuguesa passaram a exercer plenos poderes sobre as populações indígenas das glebas que haviam lhe sido atribuídas, garantindo o livre aproveitamento sobre elas em favor de seu enriquescimento patrimonial pessoal. A única obrigação que esses donatários tinham era de seguir as orientações advindas da Coroa Portuguesa. Todavia, os ônus impostos eram sempre mal supervisionados em razão da grande longinquidade que separava a colônia da metrópole209. Por isso, a organização da estrutura judicial do Brasil nos primórdios do período colonial era basicamente determinada pelos próprios donatários e as penas previstas não continham nenhum viés reformador, já que não existia a necessidade de controlar e transformar os trabalhadores e outras castas mais baixas em razão da própria consolidação da produtividade colonial sobre bases essencialmente escravocratas:

A estrutura judicial começara no Brasil, portanto, nas mãos dos capitães-donatários, com poderes para estabelecer atividades econômicas e organizar a vida civil na terra. O Regimento de Martim Afonso de Souza (1530) previa a competência, como capitão e governador de sua capitania, para aplicar pena de morte, sem recurso, exceto se o réu fosse fidalgo [...]. Para garantir a autonomia, o privilégio e o poder dos capitães-donatários, às autoridades reais foi proibida a entrada nas capitanias sem sua autorização210.

A Igreja, por sua vez, exerceu um papel fundamental na instalação dos portugueses e de sua cultura nas terras sul-americanas – papel que posteriormente também seria desempenhado em favor do regime de escravidão. Com a destruição dos fundamentos da cultura indígena, muitos deles simplesmente resolveram conformar-se com o seu destino e deixar-se morrer em suas redes. Morriam de melancolia, certos de que o futuro guardado para aquelas terras jamais teria espaço para uma vida digna. Para estes, o que lhes aguardava na verdade era a pregação das missões religiosas, que caiu-lhes feito um açoite. Por meio dela fez-se os índios pensarem que a culpa de toda a destruição era deles mesmos por terem vivido uma vida de pecado, de iniquidade, e que a desgraça que lhes era impingida era a fúria 209

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 166. 210 LOPES, José R. de L. O direito na história: lições introdutórias. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 249.

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de Deus que purgava suas perversidades. Tornou-se vísivel aos olhos dos nativos a cristandade, revelando um mundo, antes de bravura gratuita, criatividade e solidariedade, agora apodrecido, de pecado, dolorosas enfermidades e covardia. Aqueles que conseguiram escapar desse lúgubre destino, estarrecidos com o porvir que lhes eram oferecidos, fugiram mata dentro, carregando as enfermidades que, transmitidas pelo convívio com os brancos, iriam mais tarde contribuir para a sua parcial destruição211. Após o estabelecimento dos portugueses nas terras brasileiras, logo iniciouse a exploração da cana de açucar por meio de engenho e o abastecimento da demanda do mercado europeu:

Em pouco tempo, [o açucar da cana] tornou-se produto indispensável no consumo diário em toda a Europa. Sua origem remonta às experiências agrícolas feitas pelos portugueses em suas ilhas atlânticas, desde meados do século XV. Com a abertura do empreendimento colonial europeu no Novo Mundo, o modelo foi implantado sucessivamente no Brasil, no Caribe e na América do Norte. Nas Américas, o açucar da cana foi produzido, desde o íncio, em grandes estabelecimentos agrícolas – plantations, segundo a consagrada denominação norte-americana –, constituindo a primeira agroindústria dos tempos modernos. O êxito extraordinário dessa empresa capitalista [...] deveu-se à rigida disciplina industrial nela aplicada. Organizada racionalmente, com a constante aferição de despesas e receitas, a sua produtividade revelou-se, de fato, superior à das primeiras fábricas industriais na Inglaterra, alguns séculos depois212.

Não se deve esquecer, porém, sobre quais fundamentos os métodos de produção do engenho se assentaram. A princípio, o que se intentou foi a introdução da mão de obra indígena nos engenhos, mas referida tentativa demonstrou se falha; o choque entre os índios e os homens brancos, que chegaram eliminando tudo o que os aborígenes conheciam, se mostrou extremamente persistente; o próprio atraso da população indígena dificultou sua submissão e eles logo desiludiram-se com as aparentes maravilhas trazidas pelos portugueses ao perceberem que o seu subjulgo ao homem europeu lhes condenariam à tornarem-se burros de carga da empresa colonial. Os resquícios dessa batalha secular retumbariam por longos anos, legando sombrios resquícios até mesmo para o Brasil contemporâneo. 211

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 43. COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 167. 212

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A solução dos portugueses foi buscar uma mão de obra produtiva que pudesse ser mais facilmente submetida e que fosse dotada de tremendo vigor físico: as colônias instaladas na África serviriam como fonte abundante da mão de obra escrava negra. E assim o que viria a ser o Brasil começa a ganhar o seus primeiros contornos:

Em poucas décadas desapareceram as povoações indígenas que as caravelas do descobrimento encontraram por toda a costa brasileira e os primeiros cronistas contemplaram maravilhados. Em seu lugar haviam se instalado três tipos novos de povoações. O primeiro e principal, formado pelas concentrações de escravos africanos dos engenhos e portos. Outro, diperso pelos vilarejos e sítios da costa ou pelos campos de criação de gado, formado principalmente por mamelucos e brancos pobres. O terceiro esteve constituído pelos índios incorporados à empresa colonial como escravos de outros núcleos ou concentrados nas aldeias, algumas das quais conservavam sua autonomia, enquanto outras eram regidas por missionários213.

O número de engenhos logo cresceu e o consumo do açúcar na Europa intensificou-se exponencialmente enquanto paralelamente iniciava-se um intenso processo exploratório de extração de metais preciosos. O engenho torna-se rapidamente uma empresa extremamente lucrativa e sua importância econômica era tamanha que os holandeses, descontentes com o mero papel de intermediador das exportações de açucar no comércio internacional, invadiriam Salvador e depois Pernambuco, por duas vezes, na tentativa de garantir para si uma fatia do bolo, retomando algumas usinas lá instaladas e criando novas, introduzindo significativas mudanças no que tange ao modo de financiamento das operações comerciais colonial. À medida que a empresa açucareira repercute nessa rápida expansão, abrem-se espaços para novas formas de investimento. O engenho, cujo lucro era praticamente acumulado apenas nas fortunas da Coroa, gradualmente abre suas portas para novas participações. Nesse sentido Comparato aponta:

Deve-se assinalar que, já no início do século XVII, a exploração das colônias passou a ser feita por intermédio de uma nova instituição jurídica, dotada de grande eficácia operacional: a sociedade por ações. Ela veio permitir, pela primeira vez na História, que investimentos de qualquer montante fossem feitos em empresas 213

RIBEIRO, Darcy. O Povo Brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 53.

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mercantis por pessoas pertencentes a todos os estratos sociais, mesmo os nobres, tradicionalmente impedidos em certos países de negociar214.

Mas note-se que, a princípio, ainda que seja possível constatar a presença de investidores, latifundiários e pequenos comerciantes, não havia nesse período a presença bem delineada de uma burguesia enquanto classe social em razão do próprio dinamismo afeto à economia colonial. O exórdio definitivo dela só seria detectível a partir da Independência, de maneira que ela se manteve suprimida enquanto estiveram conjugados no mesmo cenário a escravidão, a grande lavoura de exportação e a estruturação colonial215. Em tautócrono, é preciso destacar o quão necessária é a compreensão destes acontecimentos para que se possa entender a importância e a influência do mercantilismo colonial para o desenvolvimento da burguesia e a ascensão do capitalismo no Brasil e no mundo:

Na verdade, toda essa fase do capitalismo comercial, entre os séculos XVI e XVIII, foi denominada pelo mercantilismo, doutrina segundo a qual o poder e a prosperidade dos Estados dependiam fundalmentalmente do acúmulo de metais preciosos, sobretudo ouro e prata, nos cofres públicos. Se um Estado não tivesse acesso às minas desses metais, era obrigado a manter um constante superávit de exportações sobre as importações, a fim de adquiri-los. Na aplicação desse princípio foram tomadas, desde o início, várias medidas: o monopólio comercial das metrópoles com as colônias; a criação de uma rede de entrepostos comerciais da metrópole; a proibição do transporte de mercadorias em navios estrangeiros; o subsídios à exportação; as barreiras alfandegárias à importação. A política mercantilista instaurou, portanto, pela primeira vez na História, o chamado capitalismo de Estado, ao estabelecer a associação oficial do empresariado com os Poderes Públicos, de modo a alcançar o duplo objetivo de reforçar o poder político e aumentar a riqueza privada216.

No que tange à penalidade do período colonial, após a superação da morfologia geográfica inicial, caracterizada pela divisão das terras brasileiras em capitanias hereditárias, gradualmente surgem algumas instituições penais, mas

214

COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 169. 215 FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 34. 216 COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 171, 172.

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pouco significantes. A exceção soberana naquela época era muito menos camuflada que a de hoje em dia. De forma geral, as penas comuns eram essencialmente aquelas corporais, similares ao súplicios, caracterizadas geralmente por execuções públicas, aplicadas fundamentalmente sob o escopo de intimidar a totalidade da população – mas, por uma óbvia razão, seus alvos principais eram escravos e índios. Até existiam cadeias coloniais, mas que sequer mantinham registros organizados de entrada e saída, e que assim como as prisões-custódias da Europa – as gaols –, tinham a mera função de manter o infrator encarceirado enquanto aguardava a execução de sua pena. Além das cadeias, várias outras instituições de confinamento ou punitivas constituíam um conjunto amorfo de diversos tipos de centros de detenção: postos militares ou policiais, fábricas e padarias (onde delinquentes e escravos eram enfiados sob um regime de trabalho obrigatório), casas religiosas para mulheres abandonadas e cárceres privados construídos nas fazendas e plantações onde se castigavam os trabalhadores indisciplinados217. O direito que sistematizou as primeiras formas de penalidade do Brasil colonial teve toda sua produção legislativa concentrada em várias espécies de “Ordenações” que surgiram subsequentemente ao longos dos anos e aos poucos construíram um ordenamento jurídico esparso que desapareceria paulatinamente a partir da Independência. Esses compêndios legais tinham como conteúdo determinações sobre a disposição das estruturas judiciais, privilégios do rei, tipificação de crimes e suas respectivas penas e organização das fontes de Direito. A conjuntura do contexto pré-Brasil permaneceria assim, com poucas alterações aqui e acolá, até a proclamação da Indepência. A colônia brasileira tornase parte axial da economia da metrópole portuguesa, enfraquecida pela exiguidade do sistema colonial, obsoleto e submisso aos interesses ingleses. O descobrimento do ouro germinaria o desenvolvimento de centros urbanos e a origem de uma classe média, de diáfano índole urbana, ainda que em pequena quantidade. No entanto, é a ancestral burguesia agroexportadora, latifundiária e escravista, que se estabelece no exercício do poder, em meio aos contrastes que começam a nascer no cêrne da sociedade colonial brasileira Grandes cidades como Bahia, Rio de Janeiro começam a tomar seus contornos servindo como postos de defesa no litoral do continente. Mais tarde, a 217

AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940 in: História das prisões no Brasil, volume 1. Org. de Clarissa Nunes Maia, et. al. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 37, 38.

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urbanização se embrenharia no interior, concebendo São Paulo e Minas Gerais. Não demoraria muito até que a Independência fosse declarada e o Brasil se tornasse um Estado-Nação autonômo. À essa altura deve-se ressaltar que as circunstâncias que encetaram a Independência do Brasil colonial não podem ser colocadas como consequência de um espírito efetivamente emancipador. A crescente perspectiva de liberdade comercial levará a burguesia “anômala” do Brasil colonial a se opor a que a maior parte dos lucros da produção colonial conflua para a metrópole. Dessa feita a Independência será impulsionada muito mais em razão de uma crise do sistema colonial e suas consequências do que por uma vontade real de ruptura com a estrutura colonial e de desenvolvimento das relações de produção burguesas. Por essa razão o modo de produção manteve-se inicialmente intacto; a pequena burguesia urbana, constituída pelas “camadas médias”, não logrou modificar as possibilidades econômico-sociais da burguesia brasileira218. Sob esse ângulo, Mazzeo afirma:

A inexistência de condições históricas que direcionassem a uma ruptura concreta, de cunho revolucionário, com a estrutura socioeconômica colonial, possibilita à burguesia latifundiária que assuma o processo de Independência e, posteriormente, crie um Estado, dentro de suas diretrizes ideológicas, com o cuidado permanente de afastar quaisquer iniciativas que apontassem para o perigo das transformações mais radicais. [...] D. Pedro apareceu como instrumento político que propiciaria a emancipação em relação a Portugual, sem a participação popular e sem a temida democratização da sociedade. Essa “articulação pelo alto”, que levou à ruptura com Portugal, à unidade das frações de classes em luta e à entronização de D. Pedro sem os traumas de uma convulsão social – com a inevitável participação das massas populares -, proporcionou um momento de rearticulação dos grupos em disputa e refletiu a homogeneidade, na maioria dos líderes da independência, da postura de alijar as massas de qualquer processo político-social, confirmando a não existência de divergências fundamentais, no que se refere à visão antipopular e da manutenção de uma economia de vezo colonial, por parte das frações burguesas em disputa219.

Por essas razões fica demonstrado como uma nova ideologia dominante começa a tomar forma e enviezar-se nos aparatos do Estado. O fortalecimento dessa nova burguesia, ainda em processo de formação, agora ligada por uma 218

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 82, 83. 219 Ibidem, p. 83.

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espécie de aliança parasitária à realeza portuguesa, pôde garantir o estabelecimento de novas diretrizes políticas e econômicas na superestrutura estatal brasileira, conformando novas determinações ideológicas que direcionariam o Brasil ao desenvolvimento de um capitalismo com bases liberais ao mesmo tempo mantendo alguns pilares da extração colonial latifundiária. Nessa ótica, Mazzeo estabelece algumas ponderações básicas que devem ser levadas em conta para uma compreensão sóbria e razoável da consolidação do Estado brasileiro pósIndependência:

Desde a sua formação, o Estado Nacional brasileiro trará em seu âmago dois aspectos que comporão sua superestrutura: de um lado, elementos ideológicos comuns às formações sociais que vivenciaram situações tardias de desenvolvimento capitalista (em que se insere Portugal); de outro, aspectos específicos inerentes à situação de particularidade escravista e latifundiária. Portanto, não podemos reduzir a postura das elites brasileiras à de meros manipuladores de ideias liberais; esse é apenas um dos aspectos e se configura como simples epifenômeno determinado pela anatomia social brasileira, uma vez que a “absorção colonial” do liberalismo é, concretamente, engendrada pela organização produtiva agroexportadora e escravista. Além disso, é parte integrante de um Império cuja metrópole, decadente e tardia em relação ao desenvolvimento do capitalismo na Europa, possui uma estrutura econômica e social estagnizante e subsumida aos interesses ingleses. A formação social brasileira não ficará imune a essas influências [...] fundamentais na conformação de sua superestrutura220.

Em suma, a Independência do Brasil em 1822 foi viabilizada por uma pequena burguesia pátria em conjunto com a família real que, por outro lado, foi obrigada a deixar Portugal em razão da investida francesa empreendida por Napoleão que nesse momento travava uma guerra contra os ingleses. Assim, a Coroa portuguesa aportou no Brasil para que pudesse fugir dos conflitos que afligiam a Europa e continuar o seu reinado, empreitada que duraria por cerca de mais oitenta anos. Tal fato histórico, seguido da abolição da escravatura em 1888, enceta dois momentos de crucial importância para o surgimento do capitalismo e da classe burguesa no Brasil:

A Independência, rompendo o com estatuto colonial, criou condições de expansão da “burguesia” e, em particular, de valorização social 220

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 83, 84.

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crescente do “alto comércio”. Enquanto o agente artesanal autonômo submergia, em consequência da absorção de suas funções econômicas pelas “casas comerciais importadores”, ou se convertia em assalariado e desaparecia na “plebe urbana”, aumentavam o volume e a diferenciação interna do núcleo burguês da típica cidade brasileira do século XIX. Ambos os fenômenos pretendem-se ao crescimento do comércio e, de modo característico, à formação de uma rede de serviços inicialmente ligada à organização de um Estado nacional mas, em seguida, fortemente condicionada pelo desenvolvimento urbano221.

O

desenvolvimento

urbano

e

comercial

do

Brasil,

sincrônico

à

Independência, deflagrou um processo de fortalecimento do Estado nacional e de consequente formação de um estamento social com crescente prestígio econômico. Ao mesmo tempo o regime escravocrata inserido no contexto pós-colonial aos poucos começa a se enfraquecer. Nesta senda, é preciso desviar-se do engodo ideológico de que a abolição da escravatura em 1888 remeteu-se apenas a uma grande conquista dos direitos humanos sobre a perversidade humana. Na verdade, a abolição somente foi possível na medida em que deixou de representar um quadro favorável ao contexto econômico:

[...] o Parlamento Britânico aprovou em 1807 o Slave Trade Act, que obrigada o governo de Sua Majestade a opor-se, em quaisquer circunstâncias, ao tráfico negreiro transatlântico. Os parceiros comerciais e protegidos políticos da Grã-Bretanha, a começar por Portugal, e a partir da Independência do Brasil, tiveram que dobrarse, pelo menos exteriormente, às injunções britânicas nesse campo. Mas por trás dessas decisões políticas havia a realidade econômica do tráfico negreiro britânico, que desde a segunda metade do século XVIII tornara-se um mau negócio. Entre 1772 e 1778, os prejuízos dos negociantes de Liverpool, o grande centro comercial negreiro da Inglaterra, montaram a 700 mil libras. Acontece que a Inglaterra aboliu o tráfico de escravos em 1807 e a escravidão em colônias americanas em 1833; mas ela persistiu na Índia até 1857222.

Essas circunstâncias começaram a tornar o tráfico negreiro algo pouco compensador. A tamanha demora do Brasil para abolir o uso da mão de obra escrava negra – que o fez apenas em 1888 -, quando comparado com outros países, encontra-se na grande dependência da produção agrária sob a qual ele se

221

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 34, 35. 222 COMPARATO, Fábio Konder. A civilização capitalista: para compreender o mundo em que vivemos. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 191.

114

encontrava. Nesse ínterim, inovações tomam conta do Brasil, das quais vale destacar o “enburguesamento” dos senhores rurais: À medida que se intensifica a expansão da grande lavoura sob as condições econômicas, sociais e políticas possibilitades pela organização de um Estado nacional, gradualmente uma parcela em aumento crescente de “senhores rurais” é extraída do isolamento do engenho ou da fazenda e é projetada no cenário econômico das cidades e o ambiente político da Corte ou dos governos provinciais. Por aí se deu o solapamento progressivo do tradicionalismo vinculado à dominação patrimonialista e começou a verdadeira desagregação econômica, social e política do sistema colonial. Em uma palavra, ela “aburguesou-se”, desempenhando uma função análoga à de certos segmentos da nobreza européia na expansão do capitalismo223.

É necessário juntar à isso um grande processo de urbanização e de desenvolvimento econômico que irrompe no Brasil na metade do século XIX. Nesse período, o Banco do Brasil assume o monopólio e a unidade das emissões; cria-se a primeira linha telegráfica no Rio de Janeiro; surgem as primeiras linhas de estrada de ferro; expande-se o crédito bancário; estimula-se a iniciativa particular; estabelecem-se meios de transportes modernos entre os espaços rurais e os centros urbanos. Todas essas mudanças possibilitariam a ruptura com o legado colonialista da produção agrária articulada pelo de trabalho escravo. Portanto, não é mera coincidência que todas essas transformações no âmbito econômico e social puderam proporcionar uma vitalidade nos negócios que tornariam convenientes os primeiros passos para a abolição do trabalho escravo. Até mesmo porque os lucros que provinham do tráfico negreiro geralmente não pingavam nos bolsos dos brasileiros, mas eram amontoados nas fortunas portuguesas. Mas as atividades de repressão britânicas e a aprovação da Lei Eusébio de Queiroz diminuiriam fatalmente o lucro do tráfico negreiro; a eficiência desses atos logo se demonstrariam: em 1852 apenas setecentos negros haviam sido introduzidos no país. A lei de abolição em 1888 apenas sacramentaria o fim do regime escravagista224.

223

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 45. 224 HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. 16. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 74, 75.

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Também exige consideração o afã de enriquecimento que começa a tomar conta do Brasil nesse momento. A prosperidade dos negócios foi marcada principalmente pela facilidade de aquisição de crédito que agora era disponibilizada pelos bancos. O comércio exterior do Império se intensifica consideravelmente e as importações reproduzem um grande salto quantitativo, mantendo uma tendência progressiva de aumento de valores e quantidade225. O Brasil aos poucos vai superando o paradigma mercantilista para ingressar em um novo contexto políticoeconômico:

A liberação de capitais resultante do fim da importação de escravos deu origem a uma intensa atividade de negócios e de especulação. Surgiram bancos, indústrias, empresas de navegação a vapor, etc. Graças a um aumento nas tarifas dos produtos importados, decretado em meados da década anterior (1844), as rendas governamentais cresceram. Em 1852-1853, elas representavam o dobro do que tinham sido em 1842-1843226.

A mudanças repercutidas pela Independência agora implicam em um novo arranjo da ordem social. O estatuto colonial determinava um controle de poder que era exercido do externo para o interno; a atuação das elites nativas estava limitada pelos interesses da Coroa e dos que a representavam. O rompimento com essa conjuntura nasce de uma necessidade histórica, onde se transparece mais a debilidade da ex-Metrópole do que qualquer passividade vocacional da antiga Colônia. As elites não se ergueram contra o estatuto colonial em si, mas contra as implicações políticas e econômicas que ele sustentava e que eliminavam todas as possibilidades de exercer sua dominação em todos os âmbitos da ordem social. Por essa razão, como já exposto, a Independência não consagrou nenhum movimento revolucionário grandioso, caracterizado por levantes populares e uso organizado da violência na persecução da transformação da estrutura social. O aspecto sociopolítico mais relevante da Independência é que ela somente foi possível pela força obstinada e eficaz das elites que se esforçaram na persecução de dois objetivos políticos interdependentes: internalizar, de forma definitiva, o controle do poder e nativizar os estamentos sociais que controlavam os centros de poder. Dessa maneira, sem rejeitar a ordem social predominante na contexto colonial, mas ao 225

HOLANDA, Sérgio B. Raízes do Brasil. 16. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 77. FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995, p. 197. 226

116

contrário, fortalecendo-a, as elites operaram revolucionariamente em meio às próprias estruturas do poder político, que foram de forma plenamente consciente e deliberada readaptadas às novas condições de funcionamento da ordem social227. Tal enlace com as elites – grandes comerciantes e fazendeiros – era fundamental para que o governo imperial pudesse ganhar um maior apoio da base social, já que eram comum as revoltas populares, insatisfeitas de forma geral com a modo como Coroa governava o país. O método para conquistar essas elites se pautou em uma tentativa de aproximá-las do jogo político. Nesse sentido, a Constituição Imperial de 1824 restaurou o Conselho de Estado e o Poder Moderador na esperança de desenhar as primeiras regras do jogo político. O intuito era de que o governo funcionasse como uma espécie de parlamentarismo, mas até a primeira metade do séc. XIX não houve nenhuma prática política nesse sentido. Somente no Segundo Reinado, em 1847, é possível tratar de um regime parlamentarista no Brasil, ainda que limitado, principalmente em razão das irrestritas atribuições do Poder Moderador, quando cria-se o cargo de Presidente do Conselho dos Ministros. Para que a função pudesse ser mantida, pressupunha-se que essa personagem política possuísse a confiança tanto do Imperador quanto da Câmara. Mas justamente por causa das prerrogativas do Poder Moderador, o Imperador constantemente substituía o ocupante do cargo, de forma que foram diversas as sucessões ao longo dos anos. Apesar disso, ele era sempre prenchido quase que alternadamente apenas pelos membros dos dois partidos políticos que existiam à epoca, o Partido Conservador e o Partido Liberal228. Estes aspectos demonstram a importância da vinda da Coroa ao Brasil, já que a parca burguesia nativa não possuía força política suficiente para romper com a metrópole e redirecionar as políticas econômicas ao seus interesses. Ao mesmo tempo a família real encontrava-se extremamente enfraquecida e desprovida de apoio popular e para melhorar sua imagem teve de se aliar às elites para que pudesse garantir uma melhor visibilidade e aquietar os ânimos de uma população insatisfeita e clamorosa. Inobstante a família real portuguesa logo caminharia para o seu devanescimento, pois seus interesses eram inconciliáveis com os da elite

227

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 50. 228 FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995, p. 179, 180.

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colonial. Ainda sim, a vinda da Coroa Portuguesa ao Brasil foi essencial para a consolidação da burguesia e da ascensão de um capitalismo com bases liberais:

No século XIX, a vinda da Corte ao Brasil irá reforçar a unidade político-territorial da colônia, que estará mais desenvolvida em nível do quantum produtivo, elevada à condição de pilar da economia do reino. Assim, as contradições que permaneciam latentes (com eclosões ocasionais) começariam a se manifestar, na medida em que a colônia do Brasil inicia a tornar-se um conjunto territorial unificado, não mais pelos vínculos com a metrópole – como até então se dera –, mas movido por interesses específicos e historicamente possíveis de sua burguesia, os quais passam a ser materializados a partir de um liberalismo fundamentalmente econômico, que põe em xeque o monopólio e o absolutismo metropolitanos. O liberalismo, assimilado por este prisma, era dessa forma “justificador” ideológico da liberdade pretendida, uma liberdade que não ia além da autonomia de comerciar sem os entraves do “exclusivo colonial” metropolitano. Esse liberalismo pouco ideológico, assumido pragmaticamente para justificar a diminuição da interferência metropolitana nos negócios internos dos ricos fazendeiros, evidenciava a necessidade de uma nova estruturação do poder político, sempre tendo em conta o cuidado em excluir os outros segmentos componentes da estrutura social brasileira229.

Essa transição do regime mercantilista, assentado sobre a mão de obra escrava, para um novo capitalismo liberal, gradualmente assentado sobre a mão de obra livre, produz, como não poderia ser diferente, novas mudanças no poder de punir. Ainda no início do século XIX era possível constatar a aplicação de penas corporais como o açoite, os grilhões e execuções ilegais, mas ao mesmo tempo erigem-se os primeiros estabelecimentos penitenciários modernos que buscavam expandir a possibilidade de exercer o controle do Estado sobre o corpo social; eliminar os castigos infames; oferecer às elites das cidades uma sensação de maior segurança e possibilitar a transformação dos infratores em cidadãos observadores da lei230. Não obstante, é notável a tendência que se desvela dentro dos estabelecimentos penais, similar àquela notada na Europa, de utilização do trabalho forçado:

Um elemento central no funcionamento destas penitenciárias foi a implementação de regimes de trabalho que, seguindo o modelo 229

MAZZEO, Antonio Carlos. Estado e burguesia no Brasil: origens da autocracia burguesa. 3. ed. São Paulo: Boitempo, 2015, p. 92, 93. 230 AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940 in: História das prisões no Brasil, volume 1. Org. de Clarissa Nunes Maia, et. al. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 42.

118

original, eram vistos como veículos para a regeneração dos delinquentes e como fonte de receita que ajudaria a financiar os altos custos de manutenção destas instituições. O trabalho dos presos não estava ausente nas prisões que não haviam sido reformadas, mas era usualmente realizado de maneira informal e esporádica. As penintenciárias incluíam explicitamente em seu projeto o trabalho dos presos como um elemento central da terapia punitiva. [...] O trabalho, de fato, se converteu em um dos elementos mais distintivos da vida cotidiana dentro destas prisões, e muitos detentos viam com bons olhos a oportunidade de ganhar algum dinheiro, enquanto as autoridades e os empresários privadas se beneficiavam da mão de obra barata que eles representavam231.

Na medida em que o país empreende um processo de expansão capitalista e, consequentemente, de rompimento com o trabalho escravo, a mão de obra livre vai tornando-se cada vez mais premente no mercado de trabalho. E nesse contexto, foi necessário que se fizesse como no Velho Mundo: encerrar os inadequados; prender os vagabundos; reformar os delinquentes; transformá-los em força laboral producente, utilizar como mão de obra barata. O Rio de Janeiro inaugura já na metade do séc. XIX sua Casa de Correção, inspirada nos modelos americanos, originando uma das instituições penais mais avançadas da América Latina. Sua concepção foi idealizada com a finalidade de acomodar nessa instituição disciplinar aqueles detentos que haviam sido sentenciados à prisão com trabalho sob um regime similar ao auburniano. Em 1856, em parte do andar térreo, foi construída a Casa de Detenção, local de instalação provisória, mas que ironicamente foi progressivamente tornando-se definitivo232:

A Casa de Detenção misturava não somente prisioneiros acusados de uma enorme variedade de crimes e infrações, mas também escravos e homens livres, o que a transformava numa instituição penal peculiar e a predispunha à extralegalidade e à ambiguidade de procedimentos que a caracterizariam no período pós-abolição. Pouco mais da metade da população da Casa de Detenção, durante as últimas décadas do século XIX, era constituída por réus não escravos. A considerável quantidade de escravos forros que povoou intermitentemente a Casa de Detenção revela, com veemência, os caprichos da legislação criminal (e civil) num regime escravista. Eles permaneciam em custódia do Estado mesmo que não tivessem sido indiciados por crime nenhum e eram compelidos a trabalhar para o

231

AGUIRRE, Carlos. Cárcere e sociedade na América Latina, 1800-1940 in: História das prisões no Brasil, volume 1. Org. de Clarissa Nunes Maia, et. al. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 43. 232 CHAZKEL, Amy. Uma perigosíssima lição: a Casa de Detenção do Rio de Janeiro na Primeira República in: História das prisões no Brasil, volume 2. Org. de Clarissa Nunes Maia, et. al. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 10.

119

gverno, principalmente nos serviços e projetos de infraestrutura pública233.

Como a Workhouse inglesa e a Raps-huis holandesa, a penintenciária brasileira devia reproduzir dentro do cárcere a ordem social burguesa ideal. Por isso não foi por mero capricho ou por força de uma vontade reformadora humanitária que nesse período o Brasil também investiu esse modelo nas suas casas de correção e de detenção. A inspiração tem nas suas subjacências o seu real propósito. Tudo, novamente, pelo progresso do capitalismo. Em 15 de Novembro de 1889 o Império lusobrasileiro enfrentava sua derrocada. A queda da monarquia agora dava espaço para a ascensão do republicanismo. As razões dessa queda – que não serão minuciosamente esplanadas aqui – envolveram sobretudo os atritos entre a Igreja e o governo imperial, a oposição do exército ao regime monárquico e de um repressivo setor da burguesia cafeeira paulista que pôde garantir que a República contaria com uma base social estável. Esses acontecimentos iriam inaugurar a Primeira República – que perduraria até 1930 –, tendo sua concepção jurídica em 1891 com a primeira Constituição republicana, inspirada no modelo norte-americano de republicanismo federativo liberal sob o sistema presidencialista. Mas com a instauração da primeira República, o país mergulha na sua primeira crise financeira. Com a expansão dos créditos, o aumento da oferta de moeda e a facilitação da criação de empresas pelo Ministério da Fazenda do governo provisório, a idéia era de que a República fosse vista como um lugar precípuo a novos empreendimentos. As especulações nas bolsas de valores cresceram e o custo de vida aumentou significativamente. Em 1891 o tiro saiu pela culatra: várias empresas e estabelecimentos bancários faliram por causa da derrubada dos preços das ações e o valor da moeda brasileira caiu 234. Apesar disso, é importante ressaltar que desde a segunda métade do séc. XVIII o país já passava por um processo de modernização que aos poucos começa a dar espaços para novas indústrias e sistemas de produção inovadores. Coincidentemente, nesse mesmo momento os mecanismos da penalidade recebem algumas alterações. As penas corporais finalmente são abolidas através de 233

Ibidem, p. 11. FAUSTO, Bóris. História do Brasil. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Fundação do Desenvolvimento da Educação, 1995, p. 252. 234

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reformas penais e o cumprimento de penas privativas de liberdade dentro de estabelecimentos carcerários passa a constituir o método essencial das novas estratégias do poder de punir. Em meio à crise econômica e a necessidade de readaptação à uma nova conjuntura pós-escravidão, o trabalho e a produtividade dentro do cárcere constituiam uma boa solução para o restabelecimento da economia e da efetiva consolidação de uma nova ordem social fundada no trabalho e na expansão econômica:

Juristas, políticos e burocratas criaram planos para aplicar uma filosofia penal eclética e reformista na punição e correção de criminosos no alvorecer do Brasil republicano. Eles combinaram as escolas da Filadélfia (isolamento) e de Auburn (trabalho grupal durante o dia e isolamento durante a noite) com alguns elementos da escola irlandesa, a prisão temporária” e a liberdade condicional. Do mesmo modo, o governo republicano adotou vários estabelecimentos penais parcialmente abertos, especialmente colônias penais agrícolas. Novas medidas orçamentárias e formas de trabalho prisional para a produção de bens e realização de pequenos reparos dentro das prisões trouxeram uma solução criativa segundo o qual o próprio sistema penal geraria o antídoto para a penúria pública235.

O Brasil, seguindo os passos da Europa e da América do Norte, reproduziu políticas penais de reação muito similares a desses países, onde os momentos de crise de produtividade e de mão de obra sempre implicavam na adoção de novas medidas punitivas assentadas sobre o trabalho forçado e a utilização de uma mão de obra barata que pudesse desafogar a míngua do sistema produtivo. A respeito das inovações sociais e políticas que foram reproduzidas no contexto social dos primeiros governos da República, é possível afirmar, ainda que com certa cautela, o nascimento daquilo que mais tarde viria a se tornar a classe burguesa em um sentido estrito. As primeiras presidências caracterizam-se pela manutenção de uma república eminentemente oligárquica, comandada através de um poder político forte, centralizado e autoritário exercido alternadamente pela oligarquia paulista cafeeira e a oligarquia mineira. Todavia, esse revezamento no poder seria rompido a partir de uma forte cisão entre as elites dos grandes estados. Os democráticos de São Paulo acabaram por apoiar Getúlio Vargas; contra ele, concorria Julio Prestes, apoiado por parte de 235

CHAZKEL, Am. Uma perigosíssima lição: a Casa de Detenção do Rio de Janeiro na Primeira República in: História das prisões no Brasil, volume 2. Org. de Clarissa Nunes Maia, et. al. Rio de Janeiro: Rocco, 2009, p. 11.

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Minas Gerais e indicado pelo então presidente Washington Luís. Julio Prestes, candidato da situação, venceria as eleições, mas seria assassinado por um de seus adversários políticos logo que assumisse o cargo. Nesse mesmo ano, com a Revolução de 1930 apoiada pela burguesia industrial e encabeçada pela Aliança Liberal, Getúlio Vargas assumiria o governo e posteriormente, em 1937, por meio de um golpe descortinaria o “Estado Novo” . Já se torna possível, a partir desses acontecimentos, desenhar os primeiros contornos do que poderia ser chamado de Révolution Bourgeois em terras brasileiras. Não se pretende esquadrinhar aqui toda trajetória que permitiu essa sublevação da burguesia, mas sob um prisma geral do enredo histórico já explorado, sucede-se perceptível que o fim do império, a proclamação da República e a abolição da escravatura já concionavam o advento de uma nova organização da ordem social, sobretudo político-econômica, ao emergir as primeiras partículas de um poder de entalhaduras burguesas. Nesse sentido, a debilidade da oligarquia deve ser vista menos como uma crise política interna e mais como um momento de transição

de

fortalecimento

do

capitalismo

que

inaugura

uma

definitiva

reorganização das estruturas de poder, consagrando a configuração da dominação e do poderio burguês e uma partição histórica entre a “era senhorial” e a “era burguesa”236. Ainda, uma análise histórica honesta deve reconhecer que não houve uma dissolução da oligarquia, mas um forçoso reenquadramento da classe aos moldes burgueses e da renovação das velhas estruturas de poder em virtude da falta de base material e política que pudesse lhes garantir a manutenção da posição hegemônica e da necessidade de preservar as condições favoráveis à acumulação originária, herdadas dos períodos colonial e neocolonial. Nesse momento, o modo de produção torna-se efetivamente capitalista; se amalgamam o velho e o novo, as novas elites imigrantes do mundo dos negócios e a antiga aristocracia comercial. E nesse novo e velho, redefinem-se os inimigos da luta de classe237: antes o escravo, agora o proletário, ambos paradoxalmente motor e obstáculo do progresso econômico.

236

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 239. 237 Ibidem, p. 247.

122

Este

conjunto de

incidentes históricos, envoltos por um inovador

desenvolvimento industrial, permitiu o gradual florescimento da Revolução Burguesa no Brasil e de um verdadeiro capitalismo de bases competitivas:

A transição para o século XX e todo o processo de industrialização que se desenrola até a década de 1930 fazem parte da evolução interna do capitalismo competitivo. O eixo dessa evolução, como se sabe, estava no esquema da exportação e importação, montado sob o égide da economia neocolonial. A influência modernizadora externa se ampliara e se aprofundara; mas ela morria dentro das fronteiras de difusão de valores, técnicas e instituições instrumentais para a criação de uma economia capitalista competitiva satélite [...]. A convergência de interesses burgueses internos e externos fazia da dominação burguesa uma fonte de estabilidade econômica e política, sendo esta vista como um componente essencial para o tipo de crescimento econômico, que ambos pretendiam, e para o estilo de vida política posto em prática pelas elites (e que servia de suporte ao padrão vigente de estabilidade econômica e política)238.

Seguidamente, o ímpeto de desenvolvimento industrial e econômico que acaba por despontar na “Era Vargas” exsurge, contrastado por uma face oculta do poderio da classe dominante, antes oligarca, agora sob as novas roupagens de uma burguesia industrializada que ocupa os bastidores do político e o direciona ao horizonte de seus interesses. O fortalecimento do Estado e a criação de legislações laborais garantistas serviriam perfeitamente para encampar o operário no domínio de um Estado sempre de olhos fixos no horizonte do progresso. Esse período sacramenta, enfim, a ascensão do capitalismo e a consolidação definitiva da burguesia no Brasil. Nos anos seguintes o país encetaria um processo cada vez mais intenso de industrialização e de abertura das divisas ao capital estrangeiro:

É na década de 1950 que se pode localizar a segunda tendência de irrupção do capitalismo monopolista como realidade histórica propriamente irreversível. Nessa fase, a economia brasileira já não concorre, apenas, para intensificar o crescimento monopolista no exterior: ela se incorpora a esse crescimento, aparecendo, daí em diante, como um de seus pólos dinâmicos na periferia. Essa transformação não se dá de modo súbito mas graças a uma evolução gradual, em que têm importância específica três fatores distintos. De um lado, a “decisão externa” de converter o Brasil numa economia monopolista dependente repousa em dois fatores diversos: a disposição das economias centrais e da comunidade internacional de negócios de alocar no Brasil um volume de recursos suficientes 238

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 242, 243.

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para deslocar os rumos da revolução econômica em processo; e no deslocamento empresarial envolvido por essa disposição, que iria implantar dentro do país o esquema de organização e de crescimento econômicos intrínsecos à grande corporação. De outro lado, a “decisão interna” de levar a cabo a referida transformação capitalista, tão temida por muitos povos da economia competitiva dependente e subdesenvolvida239.

Durante todo esse período, é difícil tratar da penalidade no Brasil dentro de contornos bem definidos. Como apontado anteriormente, o sistema penitenciário pátrio inspirou-se principalmente nos modelos europeu e americano, estruturando um espaço penintenciário operado principalmente sob a diretriz de “restauração” do preso por meio do trabalho forçado. Todavia, a partir do governo getulista é possível aduzir que o sistema penal brasileiro começa a orientar-se por políticas de vigilância e disciplina cada vez mais crescentes enquanto que enredado pelo motriz central do cárcere como estabelecimento de uma ordem social burguesa idealizada. Esses contornos podem ser notados a partir do Código Penal de 1940 – vigente até hoje –, que estabeleceu um direito penal marcadamente autoritário e excludente, possível pela articulação das primeiras correntes criminológicas na ciência jurídica brasileira ainda na segunda metade do séc. XIX. O tratamento da questão penal sob esses contornos pôde ocorrer inicialmente em razão da própria morfologia inicial do espaço carcerário no Brasil, estruturado a partir de uma reforma supostamente humanitária que tencionava melhorar as prisões brasileiras (aqui, a palavra “melhorar” não necessariamente implica a realização de uma reforma sobre bases efetivamente axiológicas, mas é empregada no sentido de que, por trás dos discursos ideológicos, o aprimoramento do espaço carcerário significaria o implemento de condições e estratégias mais favoráveis para a reprodução do ideário burguês). O que se verifica nas subjacências dos postulados reformistas são as primeiras influências das correntes criminológicas – principalmente da criminologia lombrosiana – e, consequentemente, o surgimento da medicina social no Brasil. A medicalização cria condições de implementação de uma ordem disciplinar nas prisões que reproduz uma relação de proximidade entre doença e crime e possibilita uma reestruturação da maioria das penintenciárias da época ao implantar novas formas de tecnologia disciplinar. Essa disciplinarização que se insere no espaço prisional e no espaço social é que 239

FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. 5. ed. São Paulo: Globo, 2006, p. 299, 300.

124

materializa as condições necessárias para a difusão do discurso criminológico no Brasil, reprisando com poucas novidades as teses veiculadas na Europa.240 Perante o prisma jurídico, o detento passar a ser visto, assim, como degenerado, um anormal, um sujeito amoral e perigoso; o crime é uma degenerescência

atávica,

uma

anomalia

biológica.

Esse

legado

teórico

acompanharia as décadas de 1920 e 1930, mas agora entremeado por outro aspecto, a pobreza:

A pobreza é vista como decorrente de características morais ou mentais de um grupo de indivíduos na sociedade. A mais importante destas características refere-se à incapacidade ou indolência para o trabalho, associada a outros vícios morais decorrentes, como a tendência para o alcoolismo, a prostituição etc241.

De um lado, a seletividade penal traça sua primeira linha mestra: encarceiramento justificado das subclasses. Por outro lado, articula um discurso de necessidade de transformação através do trabalho justamente para que o detento seja disciplinado aos contentos da produtividade capitalista. Assim como no cárcere europeu, a penalidade reproduzida nas prisões brasileiras impinge sua função principal: produzir mão de obra útil e disciplinada. O Código Penal de 1940 apresentado no Governo Vargas finamente introduziria essas novidades trazidas pelos discursos criminológicos produzindo tangíveis transformações nas práticas judiciárias, de tal forma que o judiciário passa a reproduzir o discurso criminológico na prática penal. A estruturação da sistemática penal no Brasil se forma, pois, sobre estas bases. Como é possível depreender, não seria razoável aventar que a penalidade pátria pode ser caracterizada por traços únicos e particulares. Não obstante as forças que determinaram os pressupostos subjacentes das políticas penais tenham se originado sob circunstâncias muito diferentes daquelas do cenário norteamericano e europeu, a sistemática penal brasileira acabou por se reduzir à importação de modelos estrangeiros que possuíam seus próprios desígnios – afirmação da ordem burguesa por meio do trabalho e produtividade pela disciplina.

240

RAUTER, Cristina. Criminologia e subjetividade no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 31, 32. 241 Ibidem, p. 62, 63.

125

Por fim, tampouco seria razoável esperar que essa conjuntura sofresse grandes alterações. Mesmo com algumas reformas, o coração do Código Penal de 1940 se manteria: um direito penal pautado sobre bases excludentes e seletivas; uma penalidade fundamentada na implícita função de disciplinar as subclasses e reproduzir o discurso burguês; uma prisão que mimetiza a fábrica. Não fosse a ruptura com os arranjos produtivos do capitalismo tradicional, os mecanismos e as estratégias disciplinares inseridos no cárcere talvez pudessem ser constatados até hoje. Todavia, a parcial superação do capitalismo industrial fordista e o advento de um novo regime de acumulação flexível acabaram por repercutir o irrompimento

de

novas

categorias

de

trabalho

e

formas

de

circulação,

transformações estas que dessignificaram o estratagema disciplinar em razão de sua própria desnecessidade e obsolescência, e que agora tornam premente a elaboração de novos mecanismos de controle social que garantam a ideologia capitalista.

126

3 O CAPITALISMO E A PENALIDADE HOJE – O CONTEXTO BIOPOLÍTICO

As mudanças nos modos de produção ensejam profundas alterações no âmbito político, social e consequencialmente no âmbito penal. Como a história demonstra, a relação dialética que se estabelece entre superestrutura e infraestrutura é imanente em si mesma enquanto elemento natural e permanente do devir histórico. A superestrutura compreende duas instâncias, a jurídico-política e a ideológica, e a infraestrutura constitui-se por uma base econômica, ou seja, pelas relações de produção e a unidade de forças produtivas. Ambas representações devem ser apreendidas metaforicamenta: assim como um edifício não se mantém de pé sem suas bases, a superestrutura não pode sustentar-se sem a infraestrutura. Assim, deve-se compreender que os aspectos da superestrutura são determinantes apenas em última instância, dependendo sempre da eficácia da base infraestrutural; a superestrutura é, portanto, determinada pela infraestrutura e ainda que a superestrutura

reproduza

determinações ao

seu

modo,

elas

apenas

são

determinantes enquanto determinadas pela infraestrutura242. A desconsideração ou negação dessa representação acabaria por reproduzir uma teoria incompleta ou metodologicamente incorreta. Estabelecida esta premissa torna-se imperioso apreender as mudanças que se deram sobre essa relação no contemporâneo, já que o contexto atual pós década de 1970 reconfigurou muitas das categorias tradicionais do capitalismo, exigindo, portanto, uma releitura que torne possível compreender não apenas os novos contornos da superestrutura e da infraestrutura atuais que se determinam pelo modo de produção capitalista, mas assimilar também como estes novos arranjos repercutem na questão penal.

242

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado: nota sobre os aparelhos ideológicos do Estado. 2. ed. Tradução de Walter José Evangelista e Maria Laura Viveiros de Castro. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985, p. 60, 61.

127

3.1 O MUNDO COM FORD E DEPOIS DE FORD – TRABALHO IMATERIAL E MULTIDÃO

A partir do século XX o mundo todo depara-se com a encetadura do fordismo. Essa nova forma de organização do contexto da produção surge logo no início do século e caracteriza-se essencialmente pela produção em massa, seriada e organizada por uma logística de rigorosa divisão de tarefas no processo produtivo. Gradualmente já vinha estabelecendo-se a desagregação entre a concepção, a gerência, o controle e a execução dentro do espaço fabril, sendo que em algumas indústrias essa tendência de decomposição do processo produtivo já encontrava-se bastante avançada. No entanto, Ford inseriu a perspectiva de que a produção em massa exigiria também consumo em massa; a organização tradicional do processo industrial precisava uma nova política de controle e de gerenciamento do trabalho, uma nova estética e uma nova psicologia. Irrompe a consciência da necessidade de criação de um novo tipo de homem e um novo tipo de trabalhador; o trabalho e o próprio modo de viver, pensar e sentir a vida tornam-se impartíveis243. A racionalidade produtiva do fordismo, no entanto, não se consolidaria tão rapidamente. Para que fosse possível estabelecer o fordismo não apenas como como um método de racionalização dos processos de produção das indústrias, mas transformá-lo em um modo de vida, seria necessário incutí-lo nos próprios arranjos sociais e culturais; o indivíduo deve produzir e consumir; a sociedade deve se tornar um fluxo constante de produção, troca e consumo. Assim, foi imprescindível que uma gama de fatores sucedessem para que ele pudesse se consolidar:

O modo como o sistema fordista se estabeleceu constitui, com efeito, uma longa e complicada história que se estende por quase meio século. Isso dependeu de uma miríade de decisões individuais, corporativas, institucionais e estatais, muitas delas escolhas políticas feitas ao acaso ou respostas improvisadas às tendências de crise do capitalismo, particularmente em sua manifestação na Grande Depressão dos anos 30244.

243

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 121, 122. 244 Ibidem, p.122,123.

128

O modo de produção fordista marcou assim profundas mudanças sociais, afetando a economia, a política e principalmente a cultura. Surge agora um novo homem, um proletário adequado às inovações da linha de produção e do trabalho, comprometido com a vida familiar, dotado de um certo tipo de probidade moral e de capacidade para a prática de um consumo prudente e racional que correspondesse às expectativas e necessidades dos novos rearranjos corporativos, amparado por um Estado direcionado à políticas de “bem-estar social”, o Welfare state. Não obstante, nos anos entre-guerras o fordismo se depara com dois principais impedimentos a sua disseminação. Destarte, com os indícios de colapso do capitalismo verificados na década de 1930, sobreveio a necessidade de se adotar novas concepções da forma e do uso dos poderes estatais e de seus mecanismos de intervenção. Era premente a reorganização de novas formas de regulamentação que atendessem aos requisitos da produção fordista após o choque da Grande Depressão americana. O que se manifestou foi uma crise visceralmente vinculada à ausência de demanda efetiva por produtos, que só veio a ser resolvida após 1945, decorrente do esforço para a preparação da Segunda Guerra, levando o fordismo à se cimentar como regime de acumulação integralmente completo e dessemelhante no período pós-guerra. Além disso, também houve certa resistência em assimilar um sistema de produção que tinha como base operacional a inserção do operariado em jornadas de trabalho absolutamente rotinizadas com longas horas de duração e que não exigia dos trabalhadores nada além do minímo de suas habilidades manuais tradicionais, de maneira que o operário tinha pouco ou nenhum controle sobre o projeto, o ritmo ou a ordenação do processo de produção245. O fordismo se manteria como base da expansão econômica pós-guerra até 1973. Nesse período verifica-se o crescimento econômico estável de alguns países capitalistas: os padrões de vida elevam-se consideravelmente, encerram-se as potenciais tendências à uma crise e gradualmente constitui-se um alcance global ao capitalismo através do irrompimento de expansões internacionalistas. O fordismo passa de um simples modo de produção em massa para um modo de vida holístico. Mas se esse sistema de produção parecia absolutamente sólido, essa impressão não passava de uma quimera. As economia de mercado desenvolvidas

245

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 123, 125.

129

logo viriam a entrar em crise; a hegemonia americana entra em declínio; verifica-se uma escassez de mão de obra com o desenvolvimento de tecnologias industriais de automação; os preços enfrentam momentos de queda e inconstância; a inflação torna-se incontrolável; despendem-se bilhões em guerras, que acabam por repercutir crises internas em países como Inglaterra, França e Estados Unidos. E em meio a tudo isso surge o movimento de uma nova geração de trabalhadores que, nascida fora do contexto pós-guerra, pôde empreender uma nova tentativa de luta por direitos:

Após vinte anos, tornara-se adulta uma nova geração, para a qual a experiência do entreguerras – desemprego em massa, insegurança, preços instáveis ou em queda – era história, e não parte de sua experiência. Eles haviam ajustado suas expectativas à única experiência de seu grupo etário, de pleno emprego e inflação contínua. Qualquer que tenha sido a situação responsável pela “explosão mundial de salários” no fim da década de 1960 – escassez de mão-de-obra, crescentes esforços dos patrões para conter os salários reais, ou, como na França e na Itália, a grandes rebeliões estudantis –, tudo se assentava na descoberta, feita por uma geração de trabalhadores acostumados a ter ou conseguir emprego, de que os regulares e bem-vindos aumentos há tanto negociados por seu sindicados eram na vedade muito menos do que se podia arrancar do mercado246.

A repercussão transformativa desses acontecimentos é profunda. A pressão exercida pelos operários na busca de melhorias salariais que decorreram dos processos inflacionários da década de 1970, ocasionados principalmente pela grande crise do petróleo entre 1971 e 1973, impossibilitaram aos Estados-nação, através das lutas, o exercicío do controle direto dentro do espaço nacional, de forma a impedir a recomposição do panorama socio-econômico em função do desenvolvimento.

Nesse

momento,

despontam

estruturas

de

comando

supranacional que já vinham se desenvolvendo desde o período da Guerra Fria, como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Nacional, e que mais tarde se tornarão responsáveis pelo equilíbrio econômico supranacional e pela regulação do desenvolvimento mundial247.

246

HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. Tradução de Marcos Santarrita. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 279, 280. 247 NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Coleção Política das Multidões. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 50, 51.

130

O controle sobre a organização do modo de produção capitalista gradualmente transmuta-se em um projeto globalizado; concomitantemente o fordismo vai se enfraquecendo vagarosamente, dando exórdio a um modo de acumulação flexível. A passagem do fordismo para o pós-fordismo caracteriza-se por mudanças tanto nos próprios arranjos da produção industrial e das relações de trabalho, quanto por um enfraquecimento da soberania dos Estados-nação, que resultariam em uma série de mudanças no panorama político-econômico global a partir da decada de 1980:

A profunda recessão de 1973, exacerbada pelo choque do petróleo, evidentemente retirou o mundo capitalista do sufocante turpor da “estagflação” (estagnação da produção de bens e alta inflação de preços) e pôs em movimento um conjunto de processos que solaparam o compromisso fordista. Em consequência, as décadas de 70 e 80 foram um conturbado período de reestruturação econômica e de reajustamento social e político [...]. No espaço social criado por todas essas oscilações e incertezas, uma série de novas experiências nos domínios da organização industrial e da vida social e política começou a tomar forma. Essas experiências podem representar os primeiros ímpetos da passagem para um regime de acumulação inteiramente novo, associado com um sistema de regulamentação política e social bem distinta248.

No que tange às modificações políticas, é principalmente sobre a soberania que se verificarão profundas mudanças. Se a soberania se constitui também como forma de organização da reprodução do Capital, controlando a proporção entre as presenças das forças produtivas que o constituem (patrões e operários, burguesia e proletariado, monarquia imperial e multidões), esse aspecto da soberania deixa de ser exercido pelos Estados-nação e passa a residir em outra localidade, o Império. Os países não operam mais no âmbito global de forma isolada e soberana; aos poucos vão formando-se blocos orientados por afinidades ideológicas e políticas entre países que afiliam-se, como ocorreu com a formação da União Européia. É no Império, uma espécie de “não-lugar”, onde residirá a concentração de uma soberania imperial – agora caracterizada por uma supranacionalidade – capaz de controlar e garantir o desenvolvimento capitalista em âmbito global249: 248

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 140. 249 NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Coleção Política das Multidões. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 50, 52.

131

Dois blocos de poder foram sobrepostos por quase meio século ao dividido mundo dos Estados soberanos. Cada um dos blocos promoveu uma crescente coordenação entre as ordens administradas pelo Estado no reino da sua respectiva “metassoberania”, baseada na suposição da insuficiência militar, econômica e cultural de cada Estado. Gradual mas inexoravelmente, promoveu-se um novo princípio de integração supraestatal – mais rápido na prática política do que na teoria. O “cenário global” era visto cada vez mais como o teatro da coexistência e da competição entre grupos de Estado e não entre os próprios Estados250.

Quanto às modificações do processo produtivo, notam-se mudanças que repercutirão de forma essencial na estrutura das relações de produção. O acúmulo de capital é flexibilizado; os modos de produção, a estruturação dos mercados de trabalho, a valorização dos preços, a formatação do consumo; todos esses processos são reorganizados e reconstruídos:

A acumulação flexível [...] é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela se apóia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnólogica e organizacional. [Mas] a acumulação flexível parece implicar níveis relativamente altos de desemprego “estrutural” (em oposição a “friccional”), rápida destruição e reconstrução de habilidades, ganhos modestos (quando há) de salários reais [...] e o retrocesso do poder sindical – uma das colunas políticas do regime fordista251.

As novas mudanças estruturais que se inserem no mercado repercutem principalmente na transformação das organizações industriais, alterando a estruturas do trabalho e do emprego. O domínio absoluto dos modos de produção que antes concentrava-se apenas nas mãos do grande capitalista abre espaço para o aparecimento de pequenos produtores e negócios domésticos:

A transformação da estrutura do mercado de trabalho teve como paralelo mudanças de igual importância na organização do trabalho. Por exemplo, a subcontratação organizada abre oportunidades para a formação de pequenos negócios e, em alguns casos, permite que 250

HARVEY, David. A condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Edições Loyola, 1992, p. 140. 251 Ibidem, p. 140, 141.

132

sistemas mais antigos de trabalho doméstico, artesanal, familiar (patriarcal) e paternalista (“padrinhos, “patronos” e até estruturas semelhantes à máfia) revivam e floresçam, mas agora como peças centrais, e não como apêndices do sistema produtivo252.

Ademais, o pós-fordismo marca-se agora pela presença de um trabalho imaterial e socializado, nesse momento possível devido aos avanços tecnológicos verificados no enfraquecimento do tradicional modo de produção fordista. Esse novo momento do processo produtivo caracteriza-se pela socialização do trabalho, informatização do social e inserção de tecnologias de automação fabris. O trabalho material, paupável e imediatamente produtivo é retirado da centralidade do processo laboral e dá espaço para um trabalho incorpóreo produzido por uma força-trabalho intelectual253. Esse trabalho imaterial deve ser entendido como o complexo de atividades intelectuais, afetuosas e comunicativas exprimidas pelos movimentos sociais e pelos sujeitos. No pós-fordismo a produtividade passa a depender fundamentalmente das energias científicas e culturais que o formam; essa reorganização vem a destruir as condições

efetivas

nas

quais

a

acumulação

de

capital

previamente

se

fundamentava254:

Na produção pós-fordista, a linguagem tornou-se, ela mesma, uma força produtiva. Todo aparato de signos foi confiado à criatividade do trabalho vivo: isto é o que constitui a forma criadora dominante em nossa sociedade. Trabalha-se com linguagem e constrói-se com signos. Neste ponto, controle dos sentidos e significado dos signos, linguagens e sistema produtivos são algo que excede qualquer nexo linear possível e, portanto, qualquer controle absoluto ou unilateral. [...] O campo criativo do significado corrói a possibilidade de um controle absoluto sobre as linguagens255.

É possível afirmar que agora a produtividade não se restringe apenas ao espaço fabril, pois a produção de valor não exige mais a imersão da força-trabalho dentro do espaço delimitado do emprego; nas circunscrições do “não-emprego” há agora também um processo produtivo de valor, já que a criação de capital não se restringe mais apenas à esfera da criação material, estendendo-se também como 252

BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 71. 253 NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Coleção Política das Multidões. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 66. 254 Ibidem, p. 92. 255 Ibidem, p. 81.

133

produto de uma intelectualidade resultante das redes relacionais cooperativas e produtoras de uma imaterialidade linguística:

O trabalho se torna lingüístico na medida em que a comunicação se torna mercadoria (sob a forma da mercadoria-informação) e o intelecto, entendido como conjunto de faculdades comunicativas, expressivas e inventivas, torna-se o novo utensílio da produção pósfordista. Assim, os tempos e lugares que na sociedade-fábrica separavam o universo da produção da esfera da reprodução são desestruturados: o trabalho progressivamente retira-se do perímetro da instituição fechada. Nesse sentido, torna-se cada vez mais problemática uma real separação entre tempo de trabalho e tempo de não-trabalho. De um lado, na realidade, o tempo de reprodução da força de trabalho imaterial torna-se tempo diretamente produtivo, uma vez que a empresa pós-fordista confere valor a competências, habilidades, atitudes que se desenvolvem (ou melhor, que se constituem) sobretudo durante o tempo de “não trabalho”. Por outro lado, o trabalho imaterial se caracteriza exatamente como processo de produção daquelas relações lingüísticas e comunicativas nas quais se desenvolvem competências, habilidades e atitudes a serem valorizadas256.

O trabalho é, portanto, resultado da própria atividade humana; na verdade, são as subjetividades humanas que irão constituir uma nova espécie de trabalho que valoriza-se pela própria produção daquilo que é reproduzido no meio social. As capacidades humanas de criação, de linguagem, de comunicação e expressão criam valor, ao mesmo tempo que o reproduzem nas relações humanas. Se antes a produção de valor por meio do trabalho era somente possível através da criação material dentro de um processo produtivo industrial, agora ela é possível também fora dele. Um dos exemplos desse fenômeno pode ser representado pelo logo comercial. Nos novos rearranjos produtivos do pós fordismo marcados pelos signos, o logo não se reduz a uma mera marca que possibilita a distinção de um produto por outro de origem diversa. O logo, de fato, enceta em si o valor imaterial e lingüístico do próprio produto, fazendo dele um meio de comunicação social enquanto parte de um estilo de vida; o logo encerra em si uma experiência de relações, nas quais veicula e produz subjetividades; mas ele mesmo é concomitantemente resultado de uma valorização de subjetividades, que são reproduzidas nas próprias relações que se compõem entre os sujeitos e nas redes de comunicação, e esse fluxo de 256

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 72, 73.

134

linguagens e símbolos que são veículados na comunicação são transformados em mercadoria enquanto elementos constitutivos de valor257. Nesse ínterim, considerando os novos aspectos da imaterialidade do trabalho e da produtividade dentro dos espaços de não-emprego, há portanto um novo problema a ser enfrentado pelas instituições penais. Se no fordismo o regime de produção era caracterizado pela carência de mão de obra adequada, e portanto, orientavam-se estratégias no sentido de disciplinamento da carência, com o despontar do pós-fordismo, o regime produtivo é de excesso, de forma que não há interesse nesse disciplinamento, essencialmente por questões lógicas de mercado. O que se verifica é a presença de dois aspectos diversos desse excesso, que implicarão na modificação dos mecanismos de controle social. A quantidade de mão de obra disponível enseja assim a formação de um excesso negativo ou fordista e um excesso positivo ou pós-fordista. O trabalho imaterial deflagra a deslocalização produtiva, a descentralização da produção e a terciarização do trabalho, que desestruturam a força-trabalho operária, decompondo-a em uma multiplicidade de trabalhadores atípicos; o trabalho – como processo de produção de valor – agora insere-se tanto no espaço do emprego quanto do não-emprego, entendendo-se aquele como medida de cidadania e inclusão social. Há, portanto, uma modificação semântica do conceito de desemprego, condição estrutural de um pós-fordismo marcado pelo excesso de produtividade:

O desemprego deixa, de fato, de ser associável à ideia de “inatividade” para se tornar uma medida oficial da fratura entre as inumeráveis “atividades” produtivas – isto é, aquelas que remetem à noção de trabalho no sentido próprio do termo –, nas quais os indivíduos estão continuamente envolvidos, e o limite imposto pelo sistema capitalista, a fim de de que seja reconhecido a essas atividades o valor social de “trabalho”. Em outros termos, o desemprego se configura como margem de excesso da produtividade social em relação à separação artificial entre trabalho e emprego imposta pelo domínio capitalista à sociedade contemporânea. [...] O trabalho, entendido como um conjunto de ações, performances e prestações produtivas estende-se cada vez mais até integrar toda a existência social. Aquilo que experimentamos, efetivamente, é uma radical separação do trabalho,

257

NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Coleção Política das Multidões. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 73, 74.

135

assim concebido, de um sistema de governo dos direitos e da cidadania profundamente ligado ao conceito fordista de emprego258.

Ora, se o trabalho imaterial está pautado em uma produtividade linguística que produz mercadoria e, consequentemente, valor, por meio do intelecto e do devir comunicativo, essa produtividade já não se restringe mais às delimitações espaciais das grandes indústrias e do emprego, sendo reproduzida também nas condições do não-emprego. Não há carência de produtividade, e por essa razão tampouco há carência de uma mão de obra adequada, pois agora a própria vida submete-se ao trabalho. Mas se o trabalho impõe-se como pressuposto para a manuntenção do status de cidadão, prefigura-se uma nova categoria de indivíduos que estão completamente excluídos da esfera do trabalho conforme compreendido no contexto fordista. O desemprego, a marginalidade e a exclusão social constituem aspectos desse excesso negativo na medida em que se observa que as condições de inclusão social são quantificadas pelo trabalho enquanto emprego, entendendo-se este como ocupação em tempo integral, garantida, estável e contínua, de tal forma que a condição de cidadão está intimamente subordinada à capacidade de ser trabalhador. Ao mesmo tempo a reestruturação das relações de produção pósfordista fundam-se exatamente na redução e na precarização do trabalho259. Sincronicamente, forma-se também um excesso positivo, já que o pósfordismo tipifica-se essencialmente pela inclusão e centralização do trabalho imaterial como produção e reprodução de valor. O excesso pós fordista:

Configura-se aqui como como excesso constante de potencialidades produtivas, de laços de cooperação, de formas da comunicação com respeito às geografias da produção impostas por uma racionalidade capitalista reduzida ao domínio. O capital – não mais em condições de governar ativamente, a partir de dentro, a produtividade social, visto que esta excede as formas capitalistas de racionalização do real – limita-se a exercer um controle, a expressar-se como puro limite externo em relação a uma cooperação produtiva que prefigura sua obsolescência260.

258

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 72, 73. 259 Ibidem, p. 90. 260 Ibidem, p. 76.

136

Deslindam-se, portanto, dois aspectos do regime de excesso introduzido pelo pós-fordismo. Por um lado, verifica-se a representação do excesso negativo como conjunto de subjetividades que extrapolam a razão governamental, uma vez que ressaltam a contradição entre uma esfera produtiva cada vez menos carente de trabalho vivo e uma cidadania social ainda assentada sobre o trabalho, ao passo que o excesso positivo é marcado por um complexo de subjetividades que transpõe a racionalidade capitalista na medida em que afiam uma contradição estabelecida entre uma potencialidade produtiva absoluta e cooperativa e uma ordenação das relações de produção que contitui um embaraço à soberania do comando capitalista, obrigando às relações de produção uma acumulação de valor baseada na competição261. O que se verifica então é a formação de uma multiplicidade abstrusa de subjetividades singulares que constantemente produzem e reproduzem valor em meio às conjunturas cooperativas das relações sociais e que ao mesmo tempo escapam das redes de dominação do capital. Esse complexo de individualidades forma uma Multidão que, consoante guardem em si um potencial revolucionário por escaparem à regulamentação do capital, também encetam a necessidade de novos mecanismos de controle pós-disciplinar, já que constituem uma estrutura múltiplice não-representável alocada fora dos terrenos do trabalho-emprego, instância pressuposto de cidadania. Para compreender o conceito de Multidão proposto por Antonio Negri é preciso salientar que a Multidão deve ser compreendida sob quatro aspectos: 1) a Multidão deve ser entendida como um conjunto de individualidades, ou seja, como multiplicidade de subjetividades ou singularidades; 2) a Multidão também deve ser encarada como classe social não-operária, levando-se em consideração a passagem do fordismo ao pós-fordismo e da presença hegemônica do trabalho imaterial em detrimento do trabalho material; 3) a Multidão não é uma multiplicidade reduzível ao conceito de massa por ser capaz de desenvolver-se intelectualmente de forma autônoma e independente; 4) a Multidão é um universal concreto sem representação, estabelendo-se em contraste com o conceito de povo, unidade

261

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 90.

137

representativa e constituinte do corpo social262. O que notavelmente se constitui como característica desse novo personagem do processo produtivo é que:

Multidão indica, sobretudo, a impossibilidade de uma reductio ad unum das diversas subjetividades produtivas comparáveis àquela que pemitiria individualizar, na classe operária, a forma de subjetividade hegemônica durante a época do capitalismo fordista263.

Com o surgimento dessa Multidão, como será possível a manutenção da ideologia hegemônica capitalista em face dessa nova figura multifacetada e não representativa? A lógica de dominação capitalista já não pode mais ser imprimida na domestição e adequação dos corpos; o poder disciplinar inserido dentro da prisão enceta em si sua própria obsolescência. A Multidão e o regime desses excessos irão exigir novos mecanismos de controle pós-disciplinar nesse corrente cenário marcado pela abundância de produtividade e de uma mão de obra destituída dos pressupostos necessários à cidadania:

[Agora] é o capital que se mostra carente em relação a uma força de trabalho tornada flexível, nômade, móvel: multidão. A multidão produtiva excede as relações de produção capitalistas no momento em que vive diretamente a inadequação do conceito de trabalhoemprego e experimenta em si mesma a violenta negação dos direitos de cidadania provocada por esta inadequação. Nesse sentido, podemos falar aqui de um excesso negativo, evidenciando, por um lado, os efeitos da exclusão, da violência do poder e do controle que este excesso determina sobre a força de trabalho e, por outro lado, o fato de que, neste processo, o domínio do capital resulta potencialmente negado264.

A sociedade disciplinar observa assim o seu desfecho. A disciplinaridade somente pôde ser compreendida enquanto parte da gênese do capitalismo até o modelo fordista. Os mecanismos de tecnologia disciplinar devem agora dar espaço para uma nova estruturação de controle: a biopolítica.

262

NEGRI, Antonio. Cinco lições sobre Império. Tradução de Alba Olmi. Coleção Política das Multidões. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 2003, p. 145, 146, 166. 263 GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 31. 264 Ibidem, p. 70, 71.

138

3.2 O NOVO CONTEXTO PÓS-DISCIPLINAR – BEM VINDO AO DESERTO DA BIOPOLÍTICA

Cabe agora compreender, sob a luz dos conceitos de Giorgio Agamben, de quais formas atuam a biopolítica e o biopoder; em que espaços operam, sobre quem, como e quais efeitos produzem. O entendimento desses mecanismos cristalizará de que maneira nasce a possibilidade de um controle sobre a nova ordem social estabelecida e quais são as consequências que esse novo arranjo repercute em âmbito penal. A princípio, impõe-se verificar que é através do dispositivo que se revela possível o exercício do poder biopolítico. O dispositivo é o mecanismo que possibilita operar sobre a totalidade da vida dos indivíduos processos de vigilância e controle social, reestruturando novas formas de pensar, agir e viver. Para Agamben, o dispositivo é:

Qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o Panóptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas e etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem que talvez é o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares e milhares de anos um primata – provavelmente sem se dar conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar265.

O que caracteriza o dispositivo é que ele realiza um processo de produção de subjetividades. O dispositivo produz, portanto, saberes, que são absorvidos pelo sujeito, empreendendo a construção de uma identidade subjetiva que encontra em meio a estes saberes sua própria “verdade”. Ele é criador de saberes, na medida em que produz subjetividades; ao mesmo tempo, é mecanismo de controle, pois ao produzir saberes específicos, incute sutilmente peculiaridades, formando identidades pré-determinadas. Na sociedade disciplinar – aquela que se conheceu ao longo do processo de acumulação primitiva de capital e da gênese e posterior declínio do modo de 265

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 40, 41.

139

produção fordista – Foucault demonstra que os dispositivos objetivam a criação de corpos dóceis e produtivos que, mesmo submetidos à uma série de discursos, exercícios e saberes, assumem sua identidade e sua liberdade subjetiva dentro do próprio processo de assujeitamento. Mas Agamben preconiza que na atual fase do capitalismo os dispositivos:

Não agem tanto mais pela produção de um sujeito quanto por meio de processos que podemos chamar de dessubjetivação. Um momento dessubjetivante estava certamente implícito em todo processo de subjetivação, e o Eu penitencial se constituía, havíamos visto, somente por meio da própria negação; mas o que acontece agora é que os processos de subjetivação e processos de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito a não ser de forma larvar, e por assim dizer, espectral. Na não-verdade do sujeito não há mais de modo algum a sua verdade266.

Não obstante, faz-se necessário perceber para quem exatamente se direcionam os dispositivos do biopoder. Para Foucault, a soberania – aqui sob diferente concepção daquela utilizada por Negri - evidencia-se pela fórmula “fazer morrer e deixar viver”. No entanto, a partir do século XVII, quando o zelo pela vida e saúde dos súbitos passam a ser cada vez mais importantes nos mecanismos e cálculos estatais, o poder disciplinar imprimido pelo soberano transmuta-se paulatinamente naquilo que Foucault intitularia de biopoder. A antiga prerrogativa de fazer morrer e deixar viver dá espaço para uma fórmula inversa onde “fazer viver e deixar morrer” passa a caracterizar a biopolítica moderna.267 Sob a ótica agambeana, o que caracteriza essencialmente o poder soberano, partindo das proposições de Carl Schmitt, é que a soberania enuncia-se por meio de um paradoxo: o soberano está sincronicamente dentro e fora do ordenamento jurídico. Dessa forma, ele permanece fora do mundo jurídico ao mesmo tempo em que pertence à ele, já que cabe ao soberano decidir pela vigência ou não das normas. Ao colocar-se fora da lei ele determina o limite do ordenamento

266

AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2009, p. 47. 267 AGAMBEN, Giorgio. O que resta de Auschwitz: o arquivo e a testemunha (Homo Sacer III). Tradução de Selvino J. Assmann. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 88.

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jurídico, sob o sentido dúplice de início e fim de seu alcance; esse limite é onde se constitui a exceção268. A respeito do exposto supra, é de suma importância diferenciar a soberania imperial conceituada por Negri da semântica schmittiana de soberania. Não seria razoável advogar que os Estados-nação agora encontram-se demasiadamente enfraquecidos em sua soberania autonôma a ponto de terem deixado de exercê-la em sua completude. É premente, portanto, estabelecer aqui um paralelo dialógico e ao mesmo tempo excludente deste aspecto dúplice e paraxodal da soberania. Enquanto talvez não seja mais possível aos Estados-nação, de forma autônoma e por meio do exercício de uma soberania absoluta e ilimitada, regulamentar e coordenar as forças sociais sobrepostas na relação do Capital, essencialmente em seu prisma econômico-político, também não seria assertivo aduzir que as nações encontram-se esvaziadas de seu conteúdo soberano, pois à medida que, ainda que situem-se limitadas nesse âmbito, gozam de certa dimensão soberana ainda relevante, principalmente quando imprimem-se olhares mais atentos aos efeitos do biopoder e da prerrogativa de produção da decisão soberana. Apesar de que, nesse ínterim, também não se pode negar que por meio das práticas biopolíticas e da realização da decisão soberana é factível a presença de certos discursos e dispositivos que, mesmo que apenas em suas subjacências, acabam por reproduzir a ordem “instituída” pelo grande “Outro” lacaniano – o Capital. O poder disciplinar, até o declínio do modo de produção fordista em 1970, manteve-se restrito ao interior das instituições estatais, atuando sobre o domínio do corpo. Agora essa nova tecnologia disciplinar, ainda que sob estratégias e técnicas diversas, é ampliada para o vasto domínio da vida, operando um novo poder direcionado à gestão de condutas e de governo sobre todos os processos da vida. Transforma-se o poder soberano de “deixar viver e fazer morrer” em um poder de “deixar morrer e fazer viver”. Nesse sentido, Agamben postula: Pode-se dizer, aliás, que a produção de um corpo biopolítico seja a contribuição original do poder soberano. A biopolítica é, nesse sentido, pelo menos tão antiga quanto a exceção soberana. Colocando a vida biológica no centro de seus cálculos, o Estado moderno não faz mais, portanto, do que reconduzir à luz o vínculo secreto que une o poder à vida nua, reatando assim (segundo uma 268

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Minas Gerais: Editora UFMG, 2014, p. 22.

141

tenaz correspondência entre moderno e arcaico que nos é dado verificar nos âmbitos mas diversos) com o mais imemorial dos arcana imperii269.

Dessa forma, considerando a constituição paradoxal do poder soberano, é premente delinear que os contornos dessa biopolítica partem da gestão da vida orientando-se essencialmente pelo binômio inclusão/exclusão. A escolha do poder soberano sobre fazer viver e deixar morrer implica no poder sobre a vida nua; uma vida que é incluída para ser excluída. Legitima-se assim ao Estado contemporâneo a defesa de direitos fundamentais através de uma lógica defensivista de exclusão do outro enquanto considerado como uma ameaça ou risco em potencial. Para Agamben a vida nua encontra-se vinculada essencialmente ao conceito de homo sacer:

Uma obscura figura do direito romano arcaico, na qual a vida humana é incluída no ordenamento unicamente sob a forma de sua exclusão (ou seja, de sua absoluta matabilidade). [....] O espaço da vida nua, situado originariamente à margem do ordenamento, vem progressivamente a coincidir com o espaço político, e exclusão e inclusão, externo e interno, bíos e zoé, direito e fato entram em uma zona de irredutível distinção270.

A etimologia do homo sacer origina-se do direito romano arcaico, onde alguns historiadores quiseram enxergar nela uma espécie de pena do direito criminal romano desse período, onde a lei expulsava um sujeito da jurisdição humana, obrigando-o que fosse sagrado à determinada divindidade. Não obstante essa abordagem incompleta – ou talvez até mesmo equivocada - conceituar a figura do homem sacro com precisão exigiria ir muito além dessa definição, vertendo uma profícua mas extensa digressão histórica que não cabe aqui. Apesar do processo de sacralização mencionado, não era ilícito matar o homem sacro; a violação da coisa sacra era vedada, mas a profanação da sacralidade do homem não. O homo sacer não é sacrificável na medida em que não é possível oferecer aos deuses algo que já está sob sua posse; ao mesmo tempo, o assassínio do homem sacro é também impunível por estar alocado além dos limites da jurisdição terrenal: 269

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Minas Gerais: Editora UFMG, 2014, p. 14. 270 Ibidem, p. 16.

142

A sacratio configura uma dupla exceção, tanto do ius humanum quanto do ius divinum, tanto do âmbito religioso quanto do profano. A estrutura topológica, que esta dupla exceção desenha, é aquela de uma dúplica exclusão e de uma dúplice captura, que apresenta mais do que uma simples analogia com a estrutura da exceção soberana271.

A condição de homo sacer é portanto definida não apenas pela hipotética ambivalência oriunda da sacralidade que lhe é imanente, mas sobretudo pelo caráter peculiar da exclusão dupla na qual se encontra aprisionado e da violência à qual está exposto. A impunidade pela violência que pode ser exercida em relação à ele não é classificável nem como homicídio e nem como sacrifício, nem como execução de uma pena e nem como sacrilégio. Ao excepcionar-se das formas de sanção presentes nos direitos humano e divino, abre-se um âmbito do agir humano que não é da profanação e nem do tornar sagrado. Esse espaço é onde impera apenas a decisão soberana, ato que, por meio da exceção, suspende a lei e nele implica a vida nua272. O estado de exceção é, dessarte, o espaço de gestão da vida nua. É sobre a vida nua que se impõe o fenômeno da suspensão da norma; o estado de exceção permite ao ordenamento jurídico manter-se em íntima relação com aquilo que excluiu, mantendo a vida nua em sempiterna relação com o poder que a baniu:

A exceção é uma espécie de exclusão. Ela é um caso singular, que é excluído da norma geral. Mas o que caracteriza propriamente a exceção é que aquilo que é excluído não está, por causa disto, absolutamente fora da relação com a norma; ao contrário, esta se mantém em relação com aquela na forma da suspensão. A norma se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. O estado de exceção não é, portanto, o caos que precede a ordem, mas a situação que resulta da sua suspensão. Nesse sentido, a exceção é verdadeiramente, segundo o étimo, capturada fora (ex-capere) e não simplesmente excluída273.

O que acontece no estado de exceção é a criação de uma situação que não pode ser delineada nem como uma situação de fato, já que não é criada pela simples suspensão da norma, e nem como uma situação de direito, ainda que seja 271

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Minas Gerais: Editora UFMG, 2014, p. 84. 272 Ibidem, p. 84. 273 Ibidem, p. 24.

143

possível sobre ela a vigência de lei. Portanto, entre elas é estabelecido um limiar – o estado de exceção – entre fato e direito, natural e jurídico, e neste limiar o soberano transita livremente:

O corpo biopolítico, que constitui o novo sujeito político fundamental, não é uma quaestio facti (como, por exemplo, a identificação de um certo corpo biológico) nem uma quaestio iuris (a identificação de uma certa norma a ser aplicada), mas a aposta de uma decisão política soberana, que opera na absoluta indiferenciação entre fato e direito274.

Erigido sobre o fundamento de proteção da vida e garantia de direitos, o poder soberano enceta assim a prerrogativa de valer-se da exceção; aplica a norma sobre a exceção, desaplicando-a; insere a vida nua no âmbito do ordenamento jurídico para que ela possa ser efetivamente excluída. O que se verifica, pois, é a faculdade absoluta atribuída ao poder soberano de suprimir direitos e garantias por meio da exceção e de colocar-se legalmente fora da lei. Nesse espaço de suspensão de direitos não há resistência para a perpetração de violências. A vida nua é um deserto: desertação de direitos, desertação de garantias, desertação da humanidade. E o estado de exceção transpõe esse deserto, vai além, extrapola e delimita suas fronteiras, estabelecendo-se como estrutura jurídico-política padrão. O que há, assim é o estabelecimento de um poder biopolítico construído sob o regime da exceção: exceção de garantias, exceção de direitos, exceção da legalidade. Nesse sentido, Žižek aventa a seguinte indagação: Estaremos então assistindo ao renascimento da verdadeira distinção entre direitos humanos e direitos do cidadão? Existem os direitos de todos os membros da humanidade (a serem respeitados mesmo no caso do Homo sacer) e os direitos mais estreitos dos cidadãos (cuja condição é legalmente regulada)? Mas, e se chegarmos a uma conclusão mais radical? E se o problema não for a condição frágil dos excluídos, mas, pelo contrário, o fato de, no nível mais elementar, sermos todos “excluídos” no sentido de nossa posição “zero” mais elementar ser a de um objeto da biopolítica, e de alguns possíves direitos políticos e de cidadania nos serem dados como um gesto secundário, de acordo com considerações biopolíticas estratégicas?275

274

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 2. ed. Minas Gerais: Editora UFMG, 2014, p. 167. 275 ŽIŽEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real!: cinco ensaios sobre o 11 de Setembro e datas relacionadas. Tradução de Paulo Cezar Castanheira. São Paulo: Boitempo Editoral, 2003, p. 115.

144

Resta no espaço da vida nua a livre disposição de vontade do poder soberano. É ele quem determina sobre quem e como serão exercidas as formas de controle, vigilância e repressão penal, já que a medida da cidadania somente pode ser apreciada pela soberania. Mais uma vez o que se verifica é o enrobustecimento de uma ideologia de dominação, agora instrumentalizada pela exceção. Partindo da reflexão de Žižek, se há de fato uma separação entre direitos humanos e direitos do cidadão – garantidos (ou não) pela soberania – e se toda a sociedade está à mercê das estratégias do biopoder, isso implica em denotar que a Multidão é um dos objetos – talvez um dos mais importantes – da biopolítica, e assim ela enceta em si o pleno potencial de vir a ser homini sacri. Se os dispositivos agora operam um processo de dessubjetivação, de descontrução de identidade, é justamente na tentativa de desmantelar o potencial revolucionário que é a Multidão enquanto conjunto abstruso e múltiplo de subjetividades variadas. A ausência de representação unitária dessa figura é justamente o que dificulta a administração de estratégias e técnicas de controle disciplinares diretas e os controles que agora se exercem sobre essa construção negriana tencionam a formação de um regime de contenção preventiva e supervisão de classes inteiras de sujeitos de forma a abdicar de qualquer saber sobre os indivíduos. A penalidade contemporânea marca-se assim justamente pela inserção de parte dessa Multidão nos aparatos penais do Estado como forma de separá-los do âmbito social, colocando-os cada vez mais próximos à condição de homo sacer, introduzindo-os gradativamente no espaço da vida nua, lugar onde suspendem-se direitos e garantias, local onde não há proteção e nem empecilhos à violência, circunscrição de abandono da vida. Campos de refugiados, campos de concentração, guetos, periferias, prisões; são estes os lugares da vida nua.

3.3

SISTEMA

PENAL

DESLEGITIMADO



EXCESSO

NEGATIVO

E

ATUARIALISMO

A penalidade disciplinar encontrou seu fim a partir das transformações ocorridas na passagem ao pós-fordismo. O cárcere deixa, assim, de exercer sua

145

função primacial de docilização dos corpos e normalização do indivíduo; não há mais necessidade de reproduzir dentro das instituições de sequestro a ordem social burguesa ideal, já que, além da desnecessidade de mão de obra industrial de reserva – em razão da crescente relevância do trabalho imaterial e do desenvolvimento tecnológico –, o discurso ideológico do Capital já não encontra significativa resistência, restando-se consolidado na consciência universal como instância ontológica natural. Um breve relance da história deixa esse aspecto claro na medida em que é possível notar no cenário político global atual a inexistência de governos de esquerda que apresentem alguma efetiva oposição global ao capitalismo; a resistência ao Império do Capital foi eliminada juntamente com o último governo de esquerda, a URSS. A mais radical das práticas políticas de hoje acaba por se reduzir às diretrizes de uma social-democracia. Para alguns, a partir do fim da Guerra Fria, não restaria nada à humanidade a não ser encarar o estagnacionismo da democracia liberal ocidental como solução final do mundo humano. Trata-se do que Francis Fukuyama chamou de “fim da história” ao retomar uma teoria antes proposta por Georg Hegel. “Fim da história” ou não, a oposição é necessária. As problematizações devem ser delimitadas para que a crítica – ou metacrítica – possa ter lugar e assim consiga ser adequadamente desenvolvida para que então propostas resolutórias possam ser feitas. Nesse sentido é que esse trabalho se ocupará agora da concreticidade particular que se apresenta na dogmática penal contemporânea. O caminho traçado até aqui serviu de base teórica para que se tornasse possível significar adequadamente as circunstâncias que engendram a dogmática penal e a forma como ela se reproduz hoje. Agora é preciso deitar os olhos sobre a situação atual do discurso jurídico-penal e da penalidade tangenciando-se pelas delimitações teóricas apresentadas ao longo deste trabalho para que a crítica possa ser direcionada, e a partir daí, torne-se possível a apropriação da crítica para a futura construção de novos caminhos de superação. Como exposto anteriormente, o cárcere, a partir da modernidade e da consolidação do capitalismo, passa a realizar uma função repressivo-ideológica de contenção e segregação seletiva de determinados estamentos sociais. Destaca-se, portanto, que o fenômeno da seletividade penal não é apenas um fenômeno

146

contemporâneo, mas constitui-se como aspecto inerente às própria sistemática penal moderna. Portanto, a função real do sistema penal sempre teve como objeto a administração das subclasses – inicialmente como forma de docilização dos corpos e normalização dos indivíduos – reproduzindo dentro do cárcere a ordem ideal visada pela estruturas de poder. Zaffaroni assevera:

A realidade operacional de nossos sistemas penais jamais poderá adequar-se à planificação do discurso jurídico-penal, [...] todos os sistemas penais apresentam características estruturais próprias de seu exercício de poder que cancelam o discurso jurídico-penal e que, por constituírem marcas de sua essência, não podem ser eliminadas, sem a supressão dos próprios sistemas penais. A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais.276

Os aspectos deficitários do sistema penal são, portanto, aspectos que lhe são natos. Por essa razão, é preciso arguir se algum dia existiu no sistema penal moderno bases precisas que o legitimassem. É necessário, destarte, que seja descartada qualquer legitimação deontológica; a reles tentativa de legitimação moral do sistema penal escapa à realidade, pois como constatou-se, a determinação dos parâmetros e limites que circundam a dogmática penal nunca incluiu qualquer dimensão moral, a não ser sob um véu ideológico. Há, portanto, uma crise de legitimidade do sistema penal? Ou a crise é uma imanência própria, constante e permanente do discurso jurídico-penal? Se essas características, que demonstram deficiências fatais do sistema penal, são estruturais, não é plausível falar de crise do sistema jurídico-penal. Crise é um conceito que envolve mudança, uma inflexão fenômenica que desvela uma contradição entre o discurso jurídico penal e sua operacionalidade real; trata-se, portanto, de uma situação transitória, de maneira que seria incoerente tratar da corrente situação do sistema penal como crise. Assim, o termo crise não deve ser visto aqui sob sua acepção usual, mas como o estado da situação onde a incoerência, a falsidade e a descredibilidade do dever-ser do discurso jurídico-penal ganha magnetude tal que sua sustentação revela-se impossível. A crise não foi, não 276

ZAFFARONI, Eugenio Rául. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 15.

147

é e nem nunca será um aspecto conjuntural da dogmática penal; o discurso jurídico penal é crise. Não obstante, o sistema penal não poderia ter se mantido até aqui se não pudesse legitimar-se ao menos por meio de malabarismos ideológicos. Essa legitimação se dá por meio de um planejamento racional do exercício de poder; trata-se, portanto, de uma legitimação diferida ou postergada, pois coloca-se como uma construção teórico-discursiva; mas sua efetiva legitimação só poderia se concretizar

caso

a

racionalidade

do

discurso

ideológico

jurídico-penal

correspondesse à efetiva prática do sistema penal. O conceito de racionalidade deve ser entendido por meio de dois aspectos que conglobam sua totalidade: a) a racionalidade corresponde à coerência interna do discurso jurídico-penal; e b) a racionalidade corresponde à uma significação verdadeira da operatividade social277. Para Zaffaroni, ambos esses aspectos são o que compõem a legitimidade útopica do sistema penal; utópica, pois sua real legitimidade é inalcançável. A coerência deve ser entendida não apenas como a ausência de contradições lógicas internas, mas requer, segundo o autor, uma fundamentação antropológica lacônica, já que, se o direito deve servir ao homem, a legitimação e o exercício do poder ramificado nas confluxos do sistema penal deve conjecturar-se a partir de uma real ontologia do homem278. É preciso, porém, ponderar esta proposta com certa cautela, haja vista a “flexibilidade” do termo “ontológico”. Na verdade, as relações do ser com si, para si e para com outros seres levanta um outro problema, na medida em que a constante reprodução de discursos ideológicos, principalmente pelos dispositivos contemporâneos, acabam por embaralhar e retorcer o que poderia ser uma ontologia real do indivíduo moderno ao replicar os saberes e não-saberes determinados pela lógica estabelecida. A própria busca por uma verdadeira ontologia estaria limitada e orientada pelo plano ontológico já dado pela lógica corrente; a concepção de uma nova ontologia seria apenas possível mediante a ruptura com o paradigma da totalidade singular atual.

277

ZAFFARONI, Eugenio Rául. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 16. 278 Ibidem, p. 16, 17.

148

O discurso jurídico-penal, por consequência, não pode ser recuperado dentro das circunstâncias atuais. Zaffaroni, portanto, conclui: O discurso jurídico-penal não pode desentender-se do “ser” e refugiar-se ou isolar-se no “dever ser” porque para que esse “dever ser” seja um “ser que ainda não é” deve considerar o vir-a-ser possível do ser, pois, do contrário, converte-a em um ser que jamais será, isto é, num embuste. Portanto, o discurso jurídico penal socialmente falso também é perverso: torce-se, retorce-se, tornando alucinado um exercício de poder que oculta ou perturba a percepção do verdadeiro exercicio de poder. A quebra de racionalidade do discurso jurídico-penal arrasta consigo – como sombra inseparável – a pretendida legitimidade do exercício de poder dos órgãos de nossos sistemas penais. Atualmente, é incontestável que a racionalidade do discurso juridicopenal tradicional e a conseqüente legitimidade do sistema penal tornaram-se “utópicas” e “atemporais”: não se realizarão em lugar algum e em tempo algum279.

Se o discurso jurídico-penal carece de racionalidade, se ele não corresponde ao devido ser-é, mas coloca-se como um dever-ser que deve vir-a-ser – mas que, como apontado, jamais será – ele deve munir-se de instrumentos que possam garantir ainda que minimamente a concretização desse movimento, e por essa razão é que a transgressão das normas postas correspondem diretamente à uma sanção. É claro que sua racionalidade não corresponde às necessidades reais do meio social, mas condiciona o próprio meio através da ideologia jurídica, impondo-se como uma verdade discursiva que se auto-legitima através do seu próprio discurso e de outros saberes que são produzidos em dispositivos correlatos. O fim último do sistema penal, logo, não é uma intervenção legitimada e justa, mas uma forma de manter a ordem social determinada pelo modo de produção estabelecido. Por essa razão, o direito penal estabelece a obrigatoriedade de condutas que devem ser conformes e consentâneas com o modo de produzir de uma sociedade. Essa garantia se dá pelo estabelecimento de sanções, que protegem

ou

censuram

determinadas

condutas

que

desviam-se

dos

comportamentos exigidos280. Dessa maneira a ideologia do direito pode impor-se, realizando a manutenção do modo de produção em interesse daqueles que

279

ZAFFARONI, Eugenio Rául. Em busca das penas perdidas: a perda da legitimidade do sistema penal. Tradução de Vania Romano Pedrosa e Amir Lopez da Conceição. Rio de Janeiro: Revan, 1991, p. 19. 280 AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 98.

149

compõem as classes dominantes e garantindo a consolidação de uma ordem social “perfeita”: Se de um lado a sanção garante a eficácia normativa, de outro, ela garante a sobrevivência do grupo ou grupos que ocupam o poder. Essa afirmação é feita a partir do pressuposto evidente de que o poder não legisla contra si mesmo, isto é, os grupos que detêm o controle do aparelho legiferante não vão engendrar normas que criem fissuras essenciais na ideologia que funda o ordenamento jurídico. Simplificando, os grupos do poder não normatizam contra seus próprios interesses, o que configuraria um suicídio econômicopolítico. Eles podem conceder no jogo pela sobrevivência, eles podem “abrir” o ordenamento dentro dos parâmetros de seus interesses, mas nunca eles legislarão contra o “espírito da lei”, isto é, contra a ideologia traduzida pelo ordenamento281.

Há algumas décadas atrás, esses interesses investidos no sistema penal, principalmente no cárcere, eram vertidos através um mecanismo estratégico disciplinador,

constituindo-se

como

um

dispositivo

formador

de

processos

subjetivantes – ainda que haja subjacentemente em seus movimentos internos um momento dessubjetivante – que reproduzia dentro do estabelecimento carcerário uma ideologia dominante no intuito de reformar seus internos, reforma essa que nada tinha a ver com ressocialização social, como propunham suas teorias justificadoras, mas que era absolutamente direcionada à reconstrução do indivíduo enquanto força-trabalho produtiva e docilizada. Como em todos os discursos jurídicos-penais que precederam a dogmática penal moderna, a pena funciona como exercício violento de poder. A diferença do cárcere e dos suplícios no que tange aos efeitos não é, pois, tão diferente assim. O que os difere é que com o advento da prisão pôde-se revestir a pena com certo humanitarismo que acabou por ocultar a sua crueldade enquanto mecanismo de controle muito mais eficaz do que aqueles que o precederam. O contraste é que a obscuridade e a perversidade da pena agora não se dão mais sob o espetáculo do suplício, mas conformam-se entre quatro paredes, afastando sua perturbadora realidade dos olhos da sociedade. Mas, a partir da década de 1970, com a decorrência natural-espontânea do pós-fordismo explanada neste capítulo, deflagrou-se o fim dos estratagemas disciplinares que eram impingidos dentro do cárcere. A desnecessidade de continuar 281

AGUIAR, Roberto A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990, p. 91.

150

a reproduzir ativamente dentro do cárcere um ideário disciplinar capitalista acabou por resultar numa espécie de “esvaziamento” do conteúdo da penalidade carcerária. Não que a prisão tenha se tornado completamente inútil e perdido seu propósito; o fato é que agora a instituição penintenciária não guarda nenhuma função específica enquanto dispositivo subjetivante como ocorria antes. Na verdade, a prisão transmuta-se agora em uma estrutura de mera contenção espaço-temporal de indíviduos “indesejados”, de exclusão daqueles – parte da Multidão, os futuros possíveis homini sacri – que não possuem lugar na fluidez desse novo mundo regido sob o império do capitalismo globalizado:

A transição da modernidade à modernidade recente pode ser vista como um movimento que se dá de uma sociedade inclusiva para uma sociedade excludente. Isto é, de uma sociedade cuja tônica estava na assimilação e na incorporação para uma que separa e exclui. Esta erosão do mundo inclusivo do período modernista [...] envolveu processos de desintegração tanto na esfera da comunidade (aumento do individualismo) como naquela do trabalho (transformação do mercado de trabalho). Ambos os processos resultam de forças de mercado e sua transformação pelos atores humanos envolvidos282.

Mas qual é o critério essencial que se estabelece hoje e que orienta o alcance e o limite desta exclusão? Quem são os excluídos, o excesso negativo dessa Multidão, esse refugo humano sem lugar, os homini sacri modernos? Se o capitalismo globalizado reproduz-se basicamente pela produção, circulação e troca de mercadorias e serviços, esses movimentos requerem um uso finalístico. Uma mercadoria ou serviço apenas pode ter seu valor de troca aferido se possuir valor de uso, e esse uso apenas existe quando a mercadoria é de utilidade para alguém. É preciso, portanto, que a mercadoria seja produzida por alguém, mas que seja também desejada por outro alguém; que este alguém tenha interesse em adquirí-la e consumí-la. O consumo ou a possibilidade de consumir é, portanto, o que determina quem está incluído e quem está excluído, pois sem o consumo não há circulação de bens, sem a circulação de bens o trabalho perde sua razão de existir, sem trabalho não há sobre-trabalho, e sem sobre-trabalho não há mais-valor.

282

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 23.

151

O consumo é, sob esse ângulo, um fenômeno axial do modo de produção capitalista, medular para a sua permanência. O que resta fazer àqueles que não podem consumir, ou mesmo não podem ser reinseridos e realocados no mercado de consumo é apenas a exclusão. Esse refugo humano sem lugar deve ser excluído e separado da sociedade para que não contamine a ordem social; devem ser neutralizados; incluídos na ordem social para que então possam ser excluídos, assim como os homini sacri. Nesse sentido, Bauman afirma: O “refugo humano” não pode mais ser removido para depósitos de lixo distantes e fixado firmemente fora dos limites da “vida normal”. Precisa, assim, ser lacrado em contêineres fechados com rigor. O sistema penal fornece esses contêineres. [....] as prisões, que, na era da reciclagem, “funcionavam como extremidade do setor correcional”, hoje são “concebidas de modo muito mais explícito como um mecanismo de exclusão e controle”. São os muros, e não o que acontece dentro deles, que “agora são vistos como o elemento mais importante e valioso da instituição”. Na melhor das hipóteses, a intenção de “reabilitar”, “reformar”, “reeducar” e devolver a ovelha desgarrada ao rebanho é ocasionalmente louvada da boca pra fora – e, quando isso acontece, se contrapõe ao coro raivoso clamando por sangue, com os principais tabloides no papel de maestros e a liderança política fazendo todos os solos. De forma explícita, o principal e talvez único propósito das prisões não é ser apenas um depósito de lixo qualquer, mas o depósito final, definitivo283.

Eis, pois, o papel moderno da prisão. O espaço carcerário deve servir apenas como arquiteturização contencional; a função da prisão é separar aquilo que é “inútil” para a manutenção do modo de produção e da ordem social. Já não importa mais se existe qualquer espécie de trabalho carcerário como forma de recuperação de preso, e tampouco se existem formas efetivas de reestruturação subjetiva do preso. A única função necessária do espaço carcerário é aquela que se revela como meio de sua contenção espaço-temporal. Não há e nem deve haver “salvação”. Os que pouco ou nada tem à contribuir para a solidificação do modo de produção capitalista e a manutenção da dominação de seus maiores interesses são sobras colaterais, indivíduos sobressalentes. Qualquer obstáculo à perpetuação da totalidade singular capitalista deve ser descartada:

283

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 108.

152

Em suma, as prisões, como tantas outras instituições sociais, passaram da tarefa de reciclagem para a de depósito de lixo. Foram realocadas para a linha de frente a fim de resolver a crise que atingiu a indústria da remoção do lixo, em consequência do triunfo global da modernidade e da nova plenitude do planeta. Todo lixo é em potencial venenoso – ou pelo menos, definido como lixo, está destinado a ser contagioso e perturbador da ordem adequada das coisas. Se reciclar não é mais lucrativo, e suas chances (ao menos no ambiente atual) não são mais realistas, a maneira certa de lidar com o lixo é acelerar a “biodegração” e decomposição, ao mesmo tempo isolando-o, do modo mais seguro possível, do hábitat humano comum”284.

O isolamento desse refugo humano se torna, assim, a melhor forma de lidar com esses restos. A separação espacial constitui-se como função essencial desse isolamento, onde torna-se possível comprimir, reduzir e diminuir a visão do outro. As particularidades e

casualidades individuais

que

inclinam-se a

tornarem-se

perceptíveis graças à experimentação reunida pelo convívio diário dificilmente podem ser vistas quando o intercâmbio é proibido ou definha. As categorias legais acabam por subjugar e desconsiderar as diferenças, impedindo o reconhecimento do outro. Dessa forma, a caracterização formal do indivíduo substitui a intimidade pessoal e a singularidade dos casos e das pessoas tornam-se desprezíveis285: O outro – lançado numa condição de forçada estranheza, guardado e cultivado pelas fronteiras espaciais estritamente vigiadas, mantido à distância e impedido de ter um acesso comunicativo regular ou esporádico – é além disso mantido na categoria de estranho, efetivamente despojado da singularidade individual, pessoal, a única coisa que poderia impedir a esterotipagem e assim contrabalançar ou mitigar o impacto subjulgador da lei – também da lei criminal286.

Os “outros” são, assim, aqueles que não foram capazes de alcançar os padrões de consumo exigidos pelo mercado. São consumidores insatisfatórios, que não alcançam as exigências impostas pela produção capitalista, ou por não consumirem nada ou por não consumirem adequadamente, ou seja, de modo insuficiente. São o excesso negativo da Multidão. Os outros são justamente os clientes do sistema penal por essa razão. Se a função essencial do cárcere hoje é de isolamento espacial desses indivíduos, o 284

BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Tradução de Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 109. 285 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Tradução de Marcos Penchel. Rio de Janeiro: Zahar, 1999, p. 114. 286 Ibidem, p. 115.

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caráter seletivo da legislação penal se torna vítreo. É essa parte da Multidão, esse excesso negativo, que deve ser retirado do meio social para que não possa contaminar a parte restante; sua inutilidade deve ser eliminada e o modo mais eficaz de fazê-lo é por meio da anulação de sua existência no espaço social, já que a partir do momento em que se isola um indivíduo dentro das paredes do cárcere, sua existência torna-se fantasmagórica, imperceptível ao todo social. O preso encontra no cárcere sua supressão identitária, onde deixa de ser indivíduo e passa a ser refugo, transmuta-se de ser social singular e torna-se mero número das estatísticas carcerárias. As subclasses, os pobres, os moradores do gueto. São esses os principais clientes do cárcere, justamente pela impropriedade ou insuficiência de seu consumo. A gestão do sistema penal é, portanto, administração da miséria, não mais com o intento de reformá-la e constituir uma mão de obra aproveitável e capaz de um consumo prudente, mas com o intento de periferizar, de marginalizar, de excluir uma parcela da população que então se tornou inútil para a atual conformação do modo de produção capitalista, prescindível de mão de obra farta em razão de sua acentuada produtividade possibilitada pelo vigoroso desenvolvimento tecnólogico e pela abundância de produção de valor através do trabalho imaterial. A prisão transformou-se assim em forma de governo desse excesso negativo, parcela de indivíduos que deve sofrer determinada medida de controle social por extrapolar os moldes ideais da totalidade:

O excesso negativo é representado como um conjunto de subjetividades que excedem a lógica “governamental”, uma vez que acentuam a contradição entre uma cidadania social baseada no trabalho e uma esfera produtiva que tem cada vez menos necessidade de trabalho vivo287.

A Multidão congloba em sua totalidade abstrusa, pois, esse excesso negativo – o refugo humano – enquanto expressiva parcela populacional que não enquadra-se nas conformidades da medida de cidadania. Um complexo de indivíduos que escapa às redes da governamentalidade capitalista. Isto ocorre porquê na atual sociedade, como apontado anteriormente, as dinâmicas de inclusão social ainda colocam-se como mediação do trabalho entendido como emprego, 287

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 90.

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como atividade desempenhada em tempo pleno, estável, garantida e contínua, onde essa medida determina a titularidade dos direitos de cidadania. Por outro lado, a dinâmicidade do modo de produção contemporâneo acaba por emergir através de uma nova estruturação que funda-se justamente na precarização e na redução do trabalho, o que acaba por multiplicar esse excesso negativo. Em outras palavras, a acessibilidade à condição de cidadão, à renda, à integração social e a própria existência digna do ser subordinam-se ao preenchimento de um requisito que progressivamente torna-se exíguo na materialidade pós-fordista288. Surgem, portanto, novas coordenadas para orientar um novo conjunto de estratégias repressivas e de controle social que paralelamente à transição do fordismo ao pós-fordismo caracterizam uma transição do “Estado Social” ao “Estado Penal”. Nesse sentido, Di Giorgi constata: No fundo, o que examinamos não é outra coisa senão a progressiva centralidade alcançada pelo cárcere, isto é, pelo dispositivo disciplinar par excellence na gestão da nova força de trabalho e dos grupos sociais marginais, grupos que, por sua vez, se ampliam cada vez mais em consequência do aumento do desemprego, da precarização do trabalho e do empobrecimento de massa que se seguiram à reestruturação do welfare289.

O que marca, pois, a nova doxa penal não é a constituição de um dispositivo disciplinar que reproduz em seus confluxos uma relação de saber-poder como processo de individualização pontual e precisa, mas ao contrário, procura esvaziar esse conteúdo. O controle social do excesso negativo não se opera mais por meio de dispositivos que subjetivam, mas que vigiam, limitam e neutralizam:

As determinações concretas da multidão, as suas características constitutivas, os seus possíveis comportamentos, as interações às quais pode dar vida, as formas de cooperação que constantemente alimenta, escapam a qualquer definição rigorosa por parte dos aparelhos de controle. Esta condição de não-saber qualifica os dispositivos de controle e os orienta para uma função de supervisão, de limitação do acesso, de neutralização e de contenção do excesso290.

288

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 90. 289 Ibidem, p. 97. 290 Ibidem, p. 92.

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Por essa razão é que o encarceiramento em massa – facilmente detectável em uma breve análise dos dados estatísticos da população carcerária da maioria dos países capitalistas – não é um fenômeno anômalo ou descontextualizado e muito menos corresponde a um efetivo aumento da criminalidade. Em verdade, não há prova alguma de que o recrudescimento das práticas penais ocorre para combater um suposto aumento de criminalidade. O aumento da população carcerária é uma decorrência natural do aumento da população enquanto força de trabalho excedente; a criminalidade, portanto, não deve ser entendida sob um consequencialismo causal, mas como um sintoma. Essa circunstância faz com que o sistema penal balize-se sob uma nova tendência de contenção e vigilância daqueles que se opõem como um risco para a sociedade, ou seja, que se colocam de alguma forma como óbice para a perenização da ordem social dominante. A prisão, portanto, projeta-se sob uma lógica atuarial. O atuarialismo pauta-se, outrossim, no cálculo e na avaliação probabilística dos riscos. Dessa forma, há uma postura que se preocupa muito mais com a minimização dos problemas atinentes à criminalidade e muito menos com a busca de alguma medida de justiça:

A postura atuarial calcula riscos, é cautelosa e probabilística, e não se preocupa com causas, mas com probabilidades, não com justiça mas com minimização dos danos, não busca livrar o mundo da criminalidade, mas um mundo em que tenham sido postas em prática as melhores rotinas de limitação de perdas; não uma utopia mas uma série de paraísos murados num mundo hostil291.

Essa lógica atuarial acaba por escamotear a existência real de criminalidade, desconsiderando-a como fator relevante para a aplicação do discurso jurídicoideológico. Além disso, ela acaba por retirar o significado moral dos relacionamentos humanos, desembarançando-os de julgamentos morais e destituindo-os de sua significância moral; o atuarialismo é, dessa forma, moralmente neutro 292, possibilitando a realização de um discurso onde o que importa essencialmente é a supressão ou a amenização dos riscos. 291

YOUNG, Jock. A sociedade excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na modernidade recente. Tradução de Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2002, p. 105. 292 Ibidem, p. 106.

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É evidente que a determinação do que vem a ser um risco ou não para a sociedade deriva de um constructo ideológico reproduzido pelos mais variados dispositivos. Seja pela mídia, pela discurso jurídico-penal ou até mesmo pelo ensino escolar, há toda uma propagação de discursos ideológicos que reproduzem uma lógica completamente atrelada à manutenção da totalidade capitalista. Desse modo, os riscos são determinados como tais apenas enquanto circunstâncias que se tornam riscos para a permanência estável dessa totalidade singular. Dessarte, o que conforma a racionalidade do discurso jurídico-penal contemporâneo é o conceito de risco. Para Di Giorgi:

As novas estratégias penais se caracterizam cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão preventiva das populações consideradas portadoras desse risco. Não se trata de aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco individual, mas sim de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não se pode (e, de resto, não se está interessado) em reduzir. A racionalidade que estamos descrevendo não é disciplinar, e sim atuarial293.

Desse modo, o cárcere atuarial projeta-se como forma de administração do risco e de controle social daqueles que poderiam ser considerados vetores desse risco. O termo risco deve ser entendido, por conseguinte, não como efetiva criminalidade ou periculosidade, mas sim como uma conduta que escapa às determinações da lógica governamental que se orientam pela manutenção das constâncias do modo de produção e dos interesses daqueles que que são por ele privilegiados. Nesse sentido, Di Giorgi afirma:

O recrutamento da população carcerária ocorre com base na identificação (mas melhor seria dizer “invenção”) das classes de sujeitos consideradas produtoras de risco, potencialmente desviantes e perigosas para a ordem constituída. Assim, não são mais tanto as características individuais dos sujeitos que constituem o pressuposto (e ao mesmo tempo o objeto) das estratégias de controle, mas sim aqueles indícios de probabilidades que permitem reconduzir determinados sujeitos a classes perigosas específicas. Isso significa, concretamente, que categorias inteiras de indivíduos deixam virtualmente de cometer crimes para se tornarem, elas mesmas, crime. As determinações peculiares dos sujeito, que as tecnologias disciplinares pretendiam misturar, dobrar e transformar, são substituídas por agregados estatísticos que oferecem às agências da 293

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 97.

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repressão a nova linha-guia para a seleção da população carcerária. A atuarialização do controle se materializa assim num conjunto de práticas que desestruturam os indivíduos e os substituem por construções artificiais que, por sua vez, alimentam práticas de contenção preventiva294.

Há, portanto, um esvaziamento do indivíduo, onde as subjetividades identitárias do ser lhe são completamente despojadas e são substituídas por determinações artificiais que desconsideram o indivíduo enquanto sujeito, erigindo novas categorizações de significação que alçam-no à simples identificação entre indivíduo de risco ou de não-risco. Esse processo acaba por dessignificar os sujeitos, definindo uma desconfiança universal que impede o reconhecimento mútuo entre os sujeitos enquanto parte de uma mesma força de trabalho. Essa é outra razão pela qual o sujeito que é inserido dentro do cárcere torna-se refugo humano. Em uma sociedade onde o risco é dado como sinônimo de perigo o indivíduo que se torna um risco social é negado pelo corpo social e deve ser afastado na medida em que interfere na “paz” e na “ordem” estabelecida. O que ocorre efetivamente, porém, é que esse risco geralmente é composto por um conjunto abstruso de subjetividades – a Multidão – que escapa à governamentalidade capitalista, e que por essa razão deve ser supervisionada e contida, na medida em que pode estabelecer-se como entrave à ordem instituída. A essencialidade da crítica ao sistema penal agora encontra seu ponto culminante, e para tanto uma digressão lógica faz-se necessária. O risco constitui-se hoje como centralidade da dogmática penal, ao mesmo tempo estabelecendo-se como objeto mas também como seu elemento legitimador; a diminuição dos riscos, a minimização dos danos e a manutenção da paz ordenada erigem-se como as diretrizes basilares do dicurso jurídico-penal atual. No entanto, essa articulação autolegitimante possui como escopo a contenção do risco, mas apenas enquanto elemento que afronta a própria ordem constituída. Nesse sentido, os elementos que escapam à lógica do capitalismo devem ser isolados espacialmente para que possam ser encampados no seu âmbito de controle – inclusão/exclusão – já que a subjetividades múltiplas e abstrusas da Multidão – no que tange ao seu excesso negativo – não estariam abarcadas dentro do conceito-limite de cidadania, o que 294

GIORGI, Alessandro De. A miséria governada através do sistema penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Editora Revan – Instituto Carioca de Criminologia, 2006, p. 98, 99.

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dificulta ou até mesmo impossibilita um controle gerencial dessa coletividade singular. O que acontece, portanto, ao inserir esses indivíduos – refugo humano, excesso negativo inadequado ao modo de produção capitalista contemporâneo – no cárcere é um movimento duplo, onde o sujeito é incluído, enquanto é encampado dentro da vigência da lei, mas é então excluído do meio social e atirado ao novos depositários de lixo humano da modernidade, as prisões. Nesses espaços, o sujeito é dessubjetivado, tornando-se identitariamente invisível; sua existência é esvaziada e dessignificada. E, dentro dos espaços carcerários, a vigência de significado da norma pode então ser suspensa a qualquer tempo sem embaraços diante desse sujeito sem identidade. Por essa razão é forçoso dizer que há um denso e intrincado paralelo entre o prisioneiro de hoje e o homo sacer agambeano, onde a similitude é mais real do que aparenta e mais inquietante do que a teoria deixa transparecer.

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CONCLUSÃO A construção teórica e historiográfica realizada ao longo deste trabalho representa uma digressão lógico-histórica necessária para que se pudesse contextualizar e separar a totalidade atual. Portanto, ainda que alguns elementos dessa pesquisa pareçam fora de lugar, suas abordagens eram precisas para uma elaboração completa do tema central. A análise da penalidade ao longo da história e das teorias que as justificam serviu para que se pudesse notar as significantes diferenças entre os discursos jurídicos-penais anteriores e a dogmática penal atual. E para que essa aproximação fosse a mais completa possível, foi preciso que elas fossem alocadas dentro de suas circunstâncias histórico-sociais para que as relações entre a penalidade e a realidade socio-econômica de seus momentos históricos fosse revelada. A própria metodologia utilizada nesse trabalho exigiu tal abordagem para que então ela pudesse ser desenvolvida sob sua contextualização atual. Nesse sentido, a partir do estudo dos primeiros indícios de acumulação primitiva do capital, circunstância que conforma inicialmente a problematização do objeto dessa pesquisa, foi possível vislumbrar o próprio nascedouro das questões intrincadas que se apresentam hodiernamente no que tange à questão da dogmática penal. A deflagração de um processo cada vez maior de separação entre uma classe dominante e uma classe de dominados é instaurada por um plano ontólogico que virá a determinar todo o discurso jurídico-penal da modernidade e do contemporâneo. O ponto culminante dessa lógica acaba por solidificar uma segregação social tão densa que os indivíduos excluídos – parte da Multidão – tornam-se apenas um invólucro de carne, sendo despojados de sua própria identidade e de seus direitos, ficando muito próximos de ser tornar uma vida nua, vazia, matável. Tornam-se homo sacri em potencial. A busca incessante pelo estabelecimento e pela consolidação do capital – um devir imanente próprio dessa totalidade singular onde as relações sociais convergem – irá determinar o estabelecimento de estruturas sociais de dominação que irão incessamente procurar a sua perenização. Dentre essas estruturas foi possível então perceber que o sistema penal se estabelece como elemento axial e imprescindível para que o capitalismo possa imortalizar-se, mas sob o impagável

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custo de criar uma preocupante e lúgubre desumanização do sujeito excluído onde torna-se gritante uma crescente subelevação de vidas sem significado. Como foi possível depreender ao longo destas páginas, o sistema penal moderno, desde suas formas mais embrionárias, sempre esteve imerso numa lógica contaminada pelo próprio modo de produção que determina sua totalidade singular. Não se vislumbra ser possível, portanto, operar dentro dessa lógica uma tarefa que tencione extinguir as mazelas que ela gera. A exclusão e o ostracismo social que derivam da realização do discurso jurídico-penal apresentam-se como imanência natural dessa conjuntura e uma propositura séria que planeje eliminar essas questões não pode, portanto, operar-se dentro da própria lógica jurídica assentada sobre estas bases. Por essa razão, assim como por outras já expostas anteriormente, não se vê possível a colocação de novos caminhos que possam suprimir a questão da exclusão. Toda solução que se apresente por meio de qualquer proposta jurídica ou politica está fadada ao seu fracasso enquanto operar dentro destas determinações. O único caminho, portanto, é a ruptura paradigmática com a totalidade singular corrente. Qualquer medida que busque uma saída ao problema da penalidade – não só da penalidade, mas de toda e qualquer forma de exclusão e exploração – topará com os muros intransponíveis das determinações categoriais do capitalismo. A maior conquista possível, e que talvez seja tão utópica quanto a ruptura que se propõe, seria, no máximo, a instauração de um capitalismo de facetas humanitárias, o que não colocaria um ponto final ao celeuma da exploração e da exclusão, partículas indissociáveis da totalidade vigente. Essa postura pode dar a entender que não restaria nada a fazer, a não ser um estagnacionismo pessimista, inerte e contemplativo. No entanto, deve-se deixar de lado o anseio imediatista por resoluções práticas e prontas e voltar-se a uma análise mais sóbria do todo contextual. A imobilidade prática não pode – e nem deve – significar uma conformação derrotista. Se as soluções práticas, ainda que se demonstrem razoáveis e plenamente possíveis, não são capazes de eliminar o problema central, isto não quer dizer que não exista saída alguma a não ser a implementação de medidas paliativas. Se as teorias práticas não estão preparadas para resolver a questão intrincada que é a exclusão social, é preciso que se volte à teoria.

161

Não pretende-se impor que ninguém deva fazer nada, mas apenas demonstrar que o posicionamento dessa pesquisa não tem como intuito, em razão da própria metodologia utilizada, sugerir soluções por meio de uma práxis instantaneamente realizável. O que de fato se propõe é que inicie-se uma investigação além da crítica das teorias sociais práticas; que a solução seja pereguida por meio de uma metacrítica que transcenda a lógica discursiva do Capital. Apesar de aparentemente utópica a realização dessa tarefa já vem sendo feita há décadas por muito teóricos da tradição marxista, v.g., os teóricos da nova crítica do valor como Robert Kurz, Anselm Jappe, Isaak Rubin e Moishe Postone e por outros filósofos como Slavoj Žižek e Alain Badiou que vêm apresentando novas propostas extremamente ricas que podem oferecer novos caminhos para a solução de todas essas questões emblemáticas e tão desconfortáveis, principalmente no que tange ao problema da exploração e da exclusão social. A tarefa desempenhada por alguns desses autores consiste essencialmente na afanosa missão de determinar uma abordagem metodológica específica que possa oferecer respostas mais contenciosas, realizando assim um necessário corte epistemológico horizontal das obras marxianas a fim de que se torne possível uma análise mais densa e realista da totalidade capitalista, de maneira a propiciar uma melhor compreensão do objeto – o capitalismo, suas formas, categorias, consequências e transformações –, e dessa forma, possibilitar uma efetiva ruptura paradigmal. É preciso, portanto, como propõe Anselm Jappe, separar o Marx “exotérico” – o teórico da luta de classes – do Marx “esotérico” – um Marx científico, crítico das categorias de base – e priorizar o estudo deste último, para que se possa, assim, encontrar maneiras de compreender e superar as formas do Capital. Portanto, esse trabalho não possui e em momento algum possuiu a pretensão de dar fim aos obscuros problemas da totalidade real. O objetivo deste trabalho era alocar e delimitar as verdadeiras raízes do problema que é a penalidade moderna e contemporânea, essencialmente no que tange à sua conexão intrínseca com a questão da exploração e da exclusão social, para que se tornasse possível, assim, um tracejamento preciso para o estabelecimento de novos marcos teóricos. Esta conclusão, portanto, nada conclui, mas ao contrário, procura apresentar-se como oportunidade para novas introduções. Busca estabelecer, portanto, novas bases críticas que possam conformar novos marcos teóricos mais

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densos e contenciosos que permitam-se efetivamente apresentar-se como verdadeira e definitiva solução para o problema apresentado.

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