Entre a margem e o centro: agroextrativismo, troca e reciprocidade em um seringal acreano (Dissertação de Mestrado em Sociologia e Antropologia, PPGSA/UFRJ).

August 4, 2017 | Autor: Karine Narahara | Categoria: Rural Sociology, Anthropology, Peasant Studies, Amazonia, Extractive reserves, Seringueiros
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

ENTRE A MARGEM E O CENTRO: AGROEXTRATIVISMO, TROCA E RECIPROCIDADE EM UM SERINGAL ACREANO

KARINE LOPES NARAHARA

Rio de Janeiro 2011

KARINE LOPES NARAHARA

ENTRE A MARGEM E O CENTRO: AGROEXTRATIVISMO, TROCA E RECIPROCIDADE EM UM SERINGAL ACREANO

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Sociologia (com concentração em Antropologia).

Orientadora: Profª Drª. Neide Esterci Co-orientadora: Profª Drª. Mariana Pantoja

Rio de Janeiro 2011

N218

Narahara, Karine Lopes. Entre a margem e o centro: agroextrativismo, troca e reciprocidade em um seringal acreano / Karine Lopes Narahara. – 2011. 173 f. : Dissertação (Mestrado em Sociologia) – Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais , Rio de Janeiro, 2011. Orientador: Neide Esterci Mariana Pantoja 1. Seringueiros – Aspectos sociais - Acre . 2. Acre – Condições rurais. 3. Amazônia. 4. Troca. 5. Sociologia – Teses. 6. Antropologia – Teses. I.Esterci Neide (Orient.). II. Pantoja, Mariana (Orient). III. Universidade Federal do Rio de Janeiro.Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia. IV. Título. CDD: 307.72

Aos meus pais, pelo esforço em demonstrar a importância da humildade.

Aos habitantes dos seringais Porongaba e Novo Destino que, com sua incrível simplicidade, transformaram-me por completo.

AGRADECIMENTOS “Tu não repartindo tu tem?...” (João Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas, 1956)

Aos meus pais, por todo amor, carinho e dedicação que proporcionaram minha chegada até aqui. Vocês são parte fundamental das minhas descobertas antropológicas. A base de toda essa busca por novos olhares. As páginas seguintes estão completamente mergulhadas na vida que vocês transmitiram. A Marcelo Bichara, pelo amor e a incrível parceria que nasceram em meio a estas incursões antropológicas. Por compartilhar momentos de crise e descobertas, e por apresentarme o universo do cinema filosófico. Também pela revisão do texto e pela confecção do curtametragem. Você também está aqui entre essas linhas. À querida profª Neide Esterci, que me acolheu de forma muito generosa desde nossas primeiras conversas, antes mesmo do ingresso no mestrado. Pela sua paciência nos momentos mais críticos, e pela tranquilidade de seu apoio nos tensos momentos finais. O convívio nos últimos dois anos foi muito mais que uma “orientação acadêmica”: proporcionou a percepção de que uma antropologia crítica, comprometida com as lutas por um mundo menos injusto, é possível. À querida profª Mariana Pantoja, por ter sido minha guia pelos caminhos antropológicos desde os primeiros momentos, quando ainda estávamos sentadas no Café do Teatro e eu mal sabia o que estava procurando. A humildade com a qual fui recebida por você no mundo “acadêmico” é admirável e rara. À Superintendência do IBAMA no Acre, na figura do ex-superintendente Anselmo Forneck, pela licença para realizar o mestrado. Ao PPGSA/IFCS por proporcionar o ambiente acadêmico para realização da pesquisa, e pelo apoio financeiro aos trabalhos de campo. Aos moradores dos seringais Porongaba e Novo Destino, por terem permitido adentrar em suas vidas e seus cotidianos, pelo carinho e pela hospitalidade com que fui recebida, e pela paciência com tantas dúvidas, questionamentos e perguntas tolas. O convívio com vocês, mais do que uma experiência acadêmica, foi uma experiência de vida. Em

especial às famílias de Moça e Biita, Dna. Raimunda (em Sena Madureira), Léo e Jorge, Jesus e Socorro, Lusa e Juraci, Maria e Biel, Sr. Chico e Dna. Lusia, Pelado e Isa, Dna. Cléo e Sr. Nicolau, Sr. Antônio Maciel e Dna. Zilma, Manoel Preto e Fiona, Dna. Chica e Sr. Pelé, Oscar e Raimunda, Gené e Pinosa, Pedrão e Estelina, Sr. Barrica e Dna. Eta, Dna. Antônia, Bolão e Chico, Adelino e Nova, Sr. Bastos e Dna. Maria, Fátima e Preto, Ana e Tonhão, pela acolhida em suas casas, por períodos longos ou em curtas passagens, ou pelo apoio a minha permanência de outras formas. Aos jovens que serviram de guias pelos varadouros do Porongaba e Novo Destino: Pitó, Paula, Neca, Gleice, Tia, Carlinhos, Bel, Charles da Maria, João, Fio, Leila, Juci, Felipe, Charles do Oscar, Mauriete, Andréa, Preta, Érica, Jaquislane, Raquely e Mila. A Oscar pelo apoio com o comboio, e a Moça por proporcionar minha entrada no seringal Porongaba e por todo cuidado e carinho. Ao Padre Paolino Baldassari pelo incentivo à realização da pesquisa, e ao Sr. Zé Lima e Dna. Lila e o restante da equipe da COOPERIACO pela gentil recepção. Aos colegas e amigos do IBAMA e do ICMBio no Acre e em Brasília por todo o aprendizado nesses anos de convivência e parceria. Em especial ao José Alberto “Pepe”, por apresentar o rio Iaco e os seringais Porongaba e Novo Destino, a Elaine de Oliveira, pela amizade e o apoio para que eu ingressasse no mestrado, e a Adalberto Iannuzzi, pelo apoio à obtenção da licença. E também a Nenzinho, Edson e os demais colegas do IBAMA e do ICMBio em Sena Madureira, pelo apoio fundamental durante minhas estadias em Sena Madureira e na realização dos trabalhos de campo. E a Jerônimo, em terras da fronteira Brasil-Bolívia, pela amizade e incentivo. Aos professores Eliane O´Dwyer e Fernando Rabossi, que de forma bastante generosa teceram críticas e sugestões que trouxeram novos olhares. A Juliana Marsico, sempre com suas risadas e seu colo amigo, acompanhando e compartilhando toda a transformação de olhares dos últimos anos. A Elisa Herkenhoff, sempre presente, pela amizade desde os tempos de Bloco A e pela sua risada inconfundível. E por ter aberto sua casa no momento de chegada inicial ao Rio de Janeiro. A Ísis Campos, pela amizade de sempre e por ter levado-me para o Acre. Sem você minhas andanças pelos seringais nunca teriam sido possíveis. As minhas queridas vizinhas: Bibi, Maíra Jansen, Paulinha Garrido e Julia Naidin. Definitivamente a vida teria sido muito menos divertida nesses dois anos sem vocês por perto.

Ao irmão de tempos enebianos, Igor Carvalho, pela amizade cuidadosa e o incentivo acadêmico. Aos queridos amigos André Vitor, Ana Carolina, Bárbara Tadzia, Marininha e Priscila Franco por acompanharem, com entusiasmo, o desenrolar da pesquisa. Ao amigo Gilberto Schittini, pela amizade e parceria desde os tempos ministeriais até as rodas de “estudo” libertário. E a Ana Elisa “Zuca” Schittini pela alegre amizade, e pela confecção do mapa. A Bárbara Fontes e Maíra Mansur, as amigas-flores que ganhei do curso de mestrado, por sempre estarem próximas, compartilhando dores e delícias das empreitadas acadêmicas e da vida. Aos colegas do grupo de pesquisa liderado pela profª. Neide Esterci: Ana Paula Perrota, Horácio Antunes, Annelise Fernandez, Kátia Schweickardt, Thais Danton, Arinaldo de Souza, Mariana Porto e Élio de Jesus Pantoja pelo intercâmbio de idéias e pelas sugestões e críticas ao longo do desenvolvimento da pesquisa. Aos professores José Ricardo Ramalho, Bila Sorj e Mirian Goldenberg pelas críticas e sugestões ao pré-projeto de pesquisa. Aos demais professores do PPGSA e do PPGAS/MN que conduziram disciplinas as quais cursei pelo constante estímulo ao aprendizado. Aos colegas da minha turma de mestrado, com quem muito aprendi nos momentos de convívio acadêmico. Em especial Maria, Luciana, Cleiderman e Diego que puderam estar um pouco mais perto. E também aos outros colegas do PPGSA e do PPGAS/MN que proporcionaram bons momentos de reflexão nas disciplinas cursadas. À equipe da secretaria do PPGSA: Claudinha, Ângela, Verônica e Denise pela cuidadosa atenção com a qual fui atendida ao longo do curso. E a Sandra Mello, da biblioteca do IFCS, pela confecção da ficha catalográfica. Aos amigos eco-libertários Thiago Txai Cardoso e Marilena Campos, Juanito Negret, Téo Bueno, Ju Spínola, Bel Froes e Rô Rizzi, pela amizade e parceria de tantos anos, e por compartilharem idéias e reflexões que foram fundamentais no desenho inicial do projeto de pesquisa. Nossos aprendizados coletivos também estão aqui nestas páginas. Aos amigos acreanos Gui Noronha e Mariama Morena, Cris, Jairo, Sarinha e Cirdan, Rodrigo, Aline e Iaco, Daniel Pena, Joana Dias, Ju Fortes e Rafa, Luís Felipe, Marina Guimarães e Fred Lobo, pela amizade sincera e por acompanharem de perto a árdua preparação para a seleção do mestrado.

Aos amigos beradeiros Diego Gimenez e André Silva, por apresentarem outra(s) amazônia(s). Vocês também são meu porto seguro. Aos parceiros e amigos com os quais convivi nos diversos coletivos estudantis de Biologia, em especial o da UFRJ. A opção pela antropologia tem muito haver com tudo que aprendemos juntos.

“Não é que eu não me interesse pela evolução e problemas correlatos. Estou interessado neles e, imagino, sempre estarei […] acredito que a antropologia é quase a única alternativa que acho que forneceria a inspiração pessoal que acredito necessitar e de fato espero sempre necessitar […]. Eu precisava de algum tipo de ruptura com a ciência impessoal corriqueira […].” (Gregory Bateson, em carta aos pais, 1925).

RESUMO NARAHARA, Karine Lopes. Entre a margem e o centro: agroextrativismo, troca e reciprocidade em um seringal acreano. Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. Em grande parte do sudoeste amazônico, no contexto do descenso econômico da borracha, observou-se um esvaziamento dos seringais, especialmente dos centros, com a migração dos moradores para a margem ou para as cidades. Entretanto, no seringal Porongaba no Médio Iaco, leste do Acre, área que faz parte de uma proposta de criação de uma Reserva Extrativista, praticamente todos os grupos domésticos residem no centro. Enfocando a análise dos circuitos de troca (intercâmbio mercantil) e de reciprocidade, relacionadas ao agroextrativismo, entre os grupos domésticos do seringal Porongaba a pesquisa busca compreender as motivações que levam os moradores a permanecerem no seringal. A vida no centro e na margem são conectadas por diversos planos sociais, assim como a vida no seringal e na rua, demonstrando que existem outras delimitações sociais além daquela que estabelece o Porongaba enquanto propriedade privada. O quebrar castanha é a principal atividade em termos de geração de recursos financeiros, enquanto a criação de gado funciona como importante forma de patrimônio e de herança intergeracional. Inserido numa matriz de bens-significados própria do seringal o criar gado proporciona aos grupos domésticos uma certa autonomia política e econômica. O extrativismo de castanha, de borracha, a agricultura e a criação de animais estabelecem circuitos de troca e de reciprocidade que (re)criam laços entre os grupos domésticos, especialmente o dar – receber – retribuir dádivas. A caça de animais da mata também engendra relações de reciprocidade (vizinhança), atualizando vínculos entre os grupos domésticos. Nesses circuitos, ganham relevo as relações estabelecidas entre grupos domésticos aparentados, especialmente aquelas marcadas pela reciprocidade. Se o parentesco (marcadamente performativo) é, por um lado, a principal base sobre a qual os mecanismos de reciprocidade são estabelecidos, por outro lado, estes mecanismos (re)criam os laços de parentesco, viabilizando a vida entre a margem e o centro. Palavras-chaves: Antropologia Rural; Amazônia; seringal; dádivas; reciprocidade; troca.

ABSTRACT NARAHARA, Karine Lopes. Entre a margem e o centro: agroextrativismo, troca e reciprocidade em um seringal acreano. Rio de Janeiro. 2011. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011. In great part of Amazonia southwest, in the context of the economic decline of rubber, there was an emptying of the rubber states, especially the centers, with the migration of the residents to the margin and the cities. However, in Porongaba rubber state, in Middle Iaco, east of Acre state, an area that is included in a proposal of implantation of an Extractive Reserve, almost all domestic groups live in the center. Focusing the analyses of circuits of exchange and reciprocity related to agroextractivism between domestic groups, the research intend to understand the motivations that lead the residents to remain living in the rubber state. The life in the center and the margin are connected by social plans, as the live in the rubber state and in the street, showing that others social delimitations, beyond the one that establishes Porongaba as a private property, exists. Extraction of Brazilian nut is the main activity in generating financial resources, while raising cattle works like an important way to build a patrimony and as a form of inheritance. Embedded in a matrix of goods-meanings particular to rubber state, raising cattle provides a kind of political and economical autonomy to the domestic groups. Extraction of Brazilian nut and rubber, agriculture and raising animals establishes circuits of exchange and reciprocity that (re)create ties between domestic groups, especially the give – receive – retribute gifts. Hunting animals also create relations of reciprocity (neighboring), updating ties between domestic groups. In all these circuits, gain prominence the relations established between kindred domestic groups. If the kinship (highly performative) is, on one hand, the main basis over one the reciprocity is established, on the other hand, the reciprocity (re)create kinship ties, making possible the life between the margin and the center. Key words: Rural Anthropology; Amazonia; rubber state; gifts; reciprocity; exchange.

LISTA DE FOTOGRAFIAS

Fotografia 1: visão geral de um batelão (p. 6). Fotografia 2: visão geral de uma toyota (p. 8). Fotografia 3: volta de uma manhã de trabalho no roçado (p. 9). Fotografia 4: visão geral da sepultura da freira (p. 13). Fotografia 5: visão geral da lápide da sepultura da freira (p. 14). Fotografia 6: uma barraca de paxiúba e palha (p. 41). Fotografia 7: uma barraca de madeira serrada e telha (p. 41). Fotografia 8: moradores do seringal Porongaba quebrando ouriços de castanha (p. 66). Fotografia 9: castanha armazenada em um paiol em meio a floresta, coberta com folhas de palmeira (p. 67). Fotografia 10: paiol de paxiúba e palha para armazenamento da castanha (p. 67). Fotografia 11: grupo doméstico da colocação Balança em um dia de trabalho na castanha (p. 68). Fotografia 12: comboio do seringal Porongaba (p. 77). Fotografia 13: medição de castanha (p. 85). Fotografia 14: comprador de castanha informando preço a ser pago pela produção (p. 86). Fotografia 15: irmãos indo para a escola montados um um boi (p. 92). Fotografia 16: mulher junto da única cabeça de gado de seu grupo doméstico (p. 96). Fotografia 17: jovem montada em seu burro (p. 103). Fotografia 18: jovem montada em seu boi (p. 103). Fotografia 19: meninos da colocação Cachoeira montados em bezerros (p. 104). Fotografia 20: momento do pagamento pela produção de castanha (p. 120).

LISTA DE ESQUEMAS Esquema 1: compartimentos da sepultura da freira no cemitério da sede do Santa Luzia, no seringal Porongaba (p. 15).

LISTA DE QUADROS Quadro 1: calendário anual sumário de atividades laborais (p. 43). Quadro 2: equivalência entre bens envolvidos no caso da vaca (p. 97). Quadro 3: entrada de recursos financeiros a partir de atividades laborais ou benefícios sociais (p. 119). LISTA DE DESENHOS Desenho 1: barracas da casa ampliada da colocação Balança (p. 32). Desenho 2: uma seringueira e uma castanheira (p. 63). Desenho 3: homem quebrando castanha (p. 64).

LISTA DE APÊNDICES

Apêndice 1 Croqui do seringal Porongaba (p. 135). Apêndice 2 Mapa de parentesco de Dna. Raimunda (p. 136). Apêndice 3 Mapa de Parentesco de Dna. Chica e Sr. Pelé (p. 137). Apêndice 4 Mapa de Parentesco de Dna. Cléo e Sr. Nicolau (p. 138). Apêndice 5 Mapa de parentesco de Dna. Lusia e Sr. Chico Feijão (p. 139). Apêndice 6 Mapa de Parentesco de Sr. Antônio Maciel e Dna. Zilma (p. 140). Apêndice 7 Mapa de Parentesco de Pedrão e Estelina (p. 141). Apêndice 8 Mapa de Parentesco de Isa e Pelado (p. 142). Apêndice 9 Mapa de parentesco de Oscar e Raimunda (p. 143). Apêndice 10 Mapa de parentesco de Manoel Preto e Fiona (p. 144). Apêndice 11 Esquema sobre limites das colocações próximas à rodagem (p. 145). Apêndice 12 Diagrama representando o caso da vaca (p. 146). Apêndice 13 Diagrama representando um adjunto (p. 147).

LISTA DE ANEXOS

Anexo 1: mapa com localização regional do seringal Porongaba (p. 148). Anexo 2: mapa com localização dos seringais que compõem o processo de criação da RESEX do Médio Iaco (p. 149). Anexo 3: mapa com a localização das colocações dos seringais Porongaba e Novo Destino (p. 150). Anexo 4: mapa com as linhas do seringal Porongaba entre o rio Iaco e o Riozinho, indicando a localização das colocações (p. 151). Anexo 5: mapa com as linhas do seringal Porongaba entre o Riozinho e o rio Espalha, indicando a localização das colocações (p. 152). Anexo 6: mapa da colocação Porto Artur, seringal Porongaba (p. 153). Anexo 7: mapa com a localização de um pique de castanha e de uma estrada de seringa da colocação Cachoeira, seringal Porongaba (p. 154). Anexo 8: mapa com a localização de alguns piques de castanha e de duas estradas de seringa da colocação Pedrinha, seringal Porongaba (p. 155). Anexo 9: adesivo utilizado na campanha de Salim para deputado estadual do Acre, nas eleições de 2010 (p. 156).

LISTA DE SIGLAS

BASA – Banco da Amazônia CONAB – Companhia Nacional de Abastecimento COOPERACRE – Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre COOPERIACO – Cooperativa dos Produtores Rurais do Vale do Rio laco CPR Alimento – Compra Antecipada FLONA – Floresta Nacional FNO – Fundo Constitucional de Financiamento do Norte IBAMA – Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária MAPA – Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento MMA – Ministério do Meio Ambiente PA – Projeto de Assentamento PAA – Programa de Aquisição de Alimentos PGPM – Política de Garantia de Preços Mínimos PMFS – Plano de Manejo Florestal Sustentável PRODEX – Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Agroextrativismo RESEX – Reserva Extrativista SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação WWF Brasil – World Wild Foundation Brasil

SUMÁRIO INTRODUÇÃO.…....................................................................................................................1 I. Subindo o rio Iaco pela primeira vez.…..................................................................................2 II. Voltando ao campo.…............................................................................................................5 III. Estrutura da dissertação......................................................................................................10 CAPÍTULO 1 – O seringal Porongaba: memórias de um passado construído ................11 1.1 O túmulo da freira..............................................................................................................11 1.2 Memórias do Santa Luzia..................................................................................................16 1.3 O tempo da seringa no Porongaba.....................................................................................17 1.4 E a borracha caiu de preço.................................................................................................23 1.5 Considerações finais..........................................................................................................27 CAPÍTULO 2 – O seringal Porongaba: a vida no centro – margem...................................30 2.1 Entre casas e colocações....................................................................................................30 2.2 Vivendo no seringal...........................................................................................................39 2.3 A Reserva: proprietário, madeira e conflito.......................................................................47 2.4 Viver no centro, viver na margem......................................................................................51 2.5 Viver no seringal, viver na rua..........................................................................................54 2.6 Considerações finais: entre limites formais e outras delimitações sociais.........................59 CAPÍTULO 3 – Reciprocidade e troca no seringal..............................................................62 3.1 Quebrar castanha..............................................................................................................62 3.1.1 Os patrões em tempos de castanha.................................................................................72 3.1.2 A venda: medindo as latas e transportando a castanha...................................................84 3.2 “Eu achava que eu não tinha esse poder”: a criação de gado no seringal........................91 3.2.1 O caso da vaca.................................................................................................................93 3.2.2 O gado e o mundo dos santos..........................................................................................98 3.2.3 Da queda da seringa ao gado como sinal de status.......................................................100 3.3 Os roçados e as diferentes formas de trabalho e cooperação...........................................105 3.4 Alimentos nos circuitos de reciprocidade: a vizinhança .................................................111 3.5 Entrada e circulação de dinheiro no seringal...................................................................117 3.6 Considerações finais........................................................................................................120 CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................124 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................129 APÊNDICES ….....................................................................................................................135 ANEXOS…............................................................................................................................148

INTRODUÇÃO

As práticas de troca e de reciprocidade, centrais na (re)produção de vínculos sociais em tantas sociedades, marcam o cotidiano em seringais no sudoeste da Amazônia brasileira, estabelecendo vinculações diversas entre os grupos domésticos e inserindo-os em redes e circuitos mais amplos. Analisar as relações de troca e de reciprocidade ajuda a compreender importantes formas de sociabilidade da vida no seringal. Esta pesquisa trata dos circuitos de troca e de reciprocidade, ligados ao agroextrativismo, entre as “casas”1 de um seringal localizado no Médio Rio Iaco2, no leste do estado do Acre (vide anexo 1). Como veremos, minha vivência de campo concentrou-se na área inserida dentro dos limites formais3 do seringal denominado Porongaba, mas não se restringiu a esta delimitação legal, indicando, como sugere Geertz (1967), que em uma mesma localidade podemos encontrar diversas formas de delimitações e agrupamentos sociais. Troca (como intercâmbio mercantil) e reciprocidade (como dar-receber-retribuir dádivas), uma separação apontada por Mauss (2003) e Malinowski (1976), são princípios distintos apenas do ponto de vista ideal, conforme indicou Sabourin (2003), de maneira que ambos podem operar em uma mesma relação. Assim, irei analisar a circulação de bens materiais e simbólicos nas relações sociais num seringal, procurando identificar e distinguir os princípios de troca e de reciprocidade presentes. Tomando cada circuito como um “fato social total” (MAUSS, 2003) será possível tecer considerações mais amplas sobre as dinâmicas sociais presentes no seringal, bem como compreender quais relações de troca e reciprocidade constituem-se num fator fundamental para a manutenção de um modo de vida específico: o do seringal, dinâmico e em constante mudança. A primeira parte do título da dissertação, "Entre a margem e o centro"4, é uma referência à distribuição espacial dos grupos domésticos no seringal, que se organizam a partir da distinção entre a margem (beira do rio Iaco) e o centro (áreas florestadas). Porém, os termos centro e margem sugerem também outra leitura: a de que as interações entre o centro e 1 Conceito elaborado por Almeida (1993) a partir de seringais do Alto Juruá. No capítulo 2, irei tratar especificamente deste conceito. Por ora basta saber que cada grupo doméstico do seringal corresponde a uma “casa”. 2 O rio Iaco tem suas nascentes no Peru, e desemboca no rio Purus, nas proximidades da cidade de Sena Madureira (AC). 3 Entendo como limites formais aqueles que remetem aos limites do Porongaba enquanto uma propriedade privada: os limites que incluem as colocações que do ponto de vista legal fazem parte do seringal. 4 Todas as palavras e categorias utilizadas pelos meus interlocutores de pesquisa serão grafadas em itálico. 1

a margem de um sistema econômico e político são complexas, de forma que as forças provenientes dos centros (que comandam o sistema econômico mundial), por mais que imponham uma tensão sobre as periferias (os seringais), são atualizadas de formas diversas nos diferentes contextos5.

I. Subindo o rio Iaco pela primeira vez Minha aproximação com o campo começou bem antes de iniciar o curso de mestrado, em 2009. Desde 2005, trabalho como analista ambiental da superintendência acreana do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e de Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, atuando em processos de “gestão participativa” em unidades de conservação federais, especialmente em Reservas Extrativistas – RESEX localizadas no estado do Acre e no sul do estado do Amazonas. As RESEX são um modelo de área protegida, criadas formalmente pelo poder público, que visam compatibilizar a “presença humana” com a “conservação da biodiversidade” por meio de mecanismos de “gestão compartilhada” (ou “participativa”) entre Estado e sociedade6. Em 2004, a partir de solicitações de moradores das localidades, foi iniciado o processo de criação de uma RESEX que incluiria alguns seringais localizados na região do Médio Iaco7 (vide anexo 2). A solicitação se fez graças à atuação do padre Paolino Baldassari 8, responsável pela prelazia de Sena Madureira (AC), e refletia a preocupação manifestada pelos moradores face à insegurança fundiária em relação a suas posses e ao interesse do proprietário do seringal Porongaba em extrair madeira na área. Foi no contexto do processo de criação desta RESEX que subi pela primeira vez o rio Iaco. Em março de 2008, participei de uma reunião no centro do seringal Porongaba9 cujo objetivo era esclarecer os moradores sobre aspectos relacionados à criação e implementação de RESEX. Naquele momento também foi iniciado o levantamento sócioeconômico 10. Este 5 Cf. Sahlins (2007). 6 Cf. Brasil (2000). 7 Um dos principais afluentes do rio Purus em suas porções mais altas. 8 Liderança religiosa e política do estado do Acre que atua junto aos “povos da floresta” nos rios Iaco e Purus há mais de cinco décadas. 9 Que faz parte do processo de criação da RESEX (vide anexo 2). 10 Uma das peças técnicas que compõem o processo formal de criação de uma RESEX. 2

levantamento baseou-se principalmente em questionários11 realizados por alguns moradores dos seringais incluídos na proposta de criação da RESEX, sob coordenação de técnicos da superintendência do IBAMA no Acre. Nesta viagem, tive a oportunidade de passar dois dias no seringal Porongaba, além de visitar rapidamente alguns outros seringais que ficavam mais acima no rio Iaco, em uma área que faz parte da RESEX Chico Mendes, criada em 1990. Na época preparava-me para tentar o ingresso em algum programa de pós-graduação em Ciências Sociais, e já buscava um local para realizar o trabalho de campo. Quando baixava pelo rio, voltando para o trabalho de escritório, tive certeza de que aquele era o local onde iria desenvolver uma possível pesquisa de mestrado. A escolha do seringal Porongaba, dentre tantas outras opções mais tentadoras – do ponto de vista da facilidade logística, pelo interesse e consequente apoio que eu teria da minha instituição – ocorreu por um motivo: dentre os seringais que eu já havia visitado no sudoeste amazônico, entre Acre, Amazonas e Rondônia, o Porongaba era o único em que a maior parte dos grupos domésticos residia permanentemente não na margem, mas no centro. A disposição espacial das barracas12 (vide apêndice 1) pelas colocações13 inquietoume profundamente. Não apenas pelas minhas vivências anteriores, mas também por que a literatura referente aos seringais acreanos indicava uma tendência ao esvaziamento dos centros. Com os primeiros empreendimentos de exploração de borracha 14 no sudoeste amazônico os seringais foram organizados em dois principais espaços: a margem e o centro. Enquanto a margem dispõe-se ao longo do principal curso d´água da micro-região, o centro de um seringal refere-se às áreas florestadas distantes da beira deste curso d´água. Com as sucessivas “crises” no mercado mundial da borracha, desde os primórdios do séc. XX, 11 Que continham as seguintes informações: 1) Sobre o casal líder do grupo doméstico: nomes, apelidos, locais de nascimento, datas de nascimento; 2) Sobre a unidade doméstica: nome da colocação, tempo de moradia na colocação, composição do grupo doméstico (incluindo idade e escolaridade); 3) Acesso a políticas públicas: educação, saúde, assistência técnica, financiamentos para produção; 4) Infra-estrutura: energia, meio de transporte; 5) Produção agrícola: produção total, consumo, comercialização, local de venda, preço, área de produção; 6) Criação de animais domésticos: nº de cabeças, compra, venda, valor total de comercialização; 7) Extrativismo vegetal: cipós, madeira, óleos vegetais; 8) Caça: preferências de consumo; 9) Extrativismo de borracha: nº de estradas, produção, consumo, valor total de comercialização; 10) Extrativismo de castanha: nº de piques, produção, consumo, valor total de comercialização; 11) Outras fontes de renda. Os itens 5, 6, 7, 9, 10 e 11 referem-se a um período de um ano.Ver ICMBio (2008). 12 Casas de moradia. 13 As colocações são as unidades básicas que formam um seringal, destinando-se à residência e também às atividades produtivas. Para outras definições ver Almeida (1990), Almeida et. al. (2002), Luna (2003), Martini (1998), Wawzyniak (2003), Pantoja (2008) e Zanoti (1979). 14 Hevea brasiliense. 3

observou-se a migração dos grupos domésticos, que então residiam em colocações de centro15, para a margem e para as cidades – como ocorreu no Alto Juruá e no Alto Tarauacá, no oeste do Acre16. Numa

primeira

aproximação

poderíamos

pensar:

os

grupos

domésticos

permaneceram ali motivados pela presença de castanha17. Considerando que no Alto Juruá não há ocorrência de castanheiras, e que, atualmente, no estado do Acre, este é um dos principais produtos florestais (em termos de movimentação monetária 18) essa seria uma explicação plausível para os economistas. Porém, uma análise econômica strictu sensu não bastava para que pudéssemos compreender as formas de sociabilidade que baseavam a permanência dos moradores no seringal, residindo no centro. Era preciso adotar uma outra postura investigativa, o que significou olhar atentamente para a vida dos moradores do seringal em seu dia a dia, as relações que estabeleciam entre si, e os significados que atribuíam a estas ações. Na linha do que nos propõe Sahlins (2007), a atualização das relações do sistema mundial nos esquemas culturais locais faz com que a vida não se resuma a um mero reflexo da economia. Em fevereiro de 2009, retornei ao seringal, como funcionária do IBAMA, também com a tarefa institucional de esclarecer os moradores sobre questões relacionadas à criação e implementação de RESEX. Porém, neste momento, ao invés de uma única reunião percorri, durante quatro dias, grande parte das colocações do seringal, conversando com os chefes de cada grupo doméstico. A alguns mencionei minha intenção de realizar um projeto de pesquisa sobre a vida no seringal Porongaba. A maior parte dos moradores com os quais conversei demonstrou-se receptiva com a proposta, sendo que alguns grupos domésticos prontificaramse, já nesta primeira conversa, a hospedar-me em suas barracas. Ao falar brevemente da trajetória pela qual cheguei ao seringal Porongaba deixo claro não apenas a motivação para selecionar esta área como foco da pesquisa, mas também minha própria inserção no campo. Faço assim, como propõe Fabian (2001), uma certa “autobiografia”, o que para o autor é uma condição da “objetividade etnográfica”, na medida 15 Vale mencionar que no caso dos seringais do sudoeste amazônico em que os grupos domésticos residem todos na margem, o termo colocação geralmente refere-se às áreas no centro destinadas ao extrativismo de castanha – como ocorre, por exemplo, na RESEX Arapixi, cortada pelo rio Purus, no sul do Amazonas. 16 Ver Zanoti (1979) e Iglesias (1998) para o Alto Tarauacá, e Almeida (1991) apud. Almeida (1993) e Almeida et. al. (2002) para o Alto Juruá. Martini (1998) e Pantoja et al. (2009) discutem motivações em tempos mais recentes para a migração centro-margem. 17 Conhecida como castanha-do-Pará, castanha-da-Amazônia ou castanha-do-Brasil, é denominada pela taxonomia (hegemônica) Bertholletia excelsa. 18 Cf. IBGE (2009). 4

que permite considerar criticamente a inserção do antropólogo no campo. Por mais que tenha havido um esforço para desconstruir minha identidade enquanto “funcionária do IBAMA” perante os moradores do seringal, buscando construir uma nova identidade – a de “pesquisadora” – sei que foi impossível desvencilhar-me completamente da primeira. Até porque, em que pese um esforço de objetificação na observação por parte da “pesquisadora”, essas duas identidades nunca poderão ser completamente separadas. Afinal o meu olhar estará sempre marcado pelas experiências que vivenciei enquanto representante do IBAMA. Acredito que esse exercício de reflexão permite transformar as dificuldades – do ponto de vista de uma análise mais objetiva – geradas pelo meu posicionamento no campo em algo propício ao fazer antropológico. Pois, conforme as teses propostas por Fabian (2001), a subjetividade, ao invés de oposta à objetividade, é condição desta última, já que, segundo o autor, a objetividade antropológica baseia-se na intersubjetividade, na interação entre o pesquisador e seus interlocutores (FABIAN, 2006). Nesse sentido, acredito que os próprios grupos domésticos com os quais interagi na pesquisa percebem que, sendo formados por pessoas, os órgãos estatais não são algo uno e homogêneo19. Por ocasião dos dois trabalhos de campo no seringal Porongaba, na condição de “pesquisadora” e não de “funcionária do IBAMA”, foi possível perceber como essas relações podem construir-se com certa independência das relações institucionais formais.

II. Voltando ao campo Para realizar o trabalho de campo que foi a base para a elaboração da presente dissertação retornei ao seringal Porongaba em dois momentos distintos: no inverno (estação chuvosa, que na região concentra-se de outubro a abril.) e no verão (estação seca) de 2010. No inverno, passei quarenta e cinco dias em campo (entre os meses de fevereiro e março), enquanto no verão permaneci os trinta dias do mês de setembro. Quando ainda estava na fase de delineamento inicial do projeto de pesquisa, elaborando as questões que norteariam o primeiro trabalho de campo, no inverno de 2010, entendia que minha vivência etnográfica concentrar-se-ia nas colocações inseridas nos limites 19 Cf. Schweickardt (2010). 5

formais de um único seringal: o Porongaba. Porém, os primeiros dias no campo – ao observar as relações de troca e de reciprocidade entre as casas – foram indicando que a definição de uma unidade de pesquisa adequada às questões propostas ainda estava em curso. Da capital do Acre, acessamos Sena Madureira por uma estrada federal que, apesar das precárias condições de manutenção, é asfaltada. No inverno de 2001, fiz esta viagem em um ônibus, que realiza o trajeto diariamente, levando cerca de três horas. Depois de dois dias aguardando passagem, um batelão20 (fotografia 1) saiu em direção ao seringal Boa Esperança, à montante do Porongaba, no rio Iaco (vide anexo 2). Depois de uma viagem de quatro dias desembarquei na margem do seringal Novo Destino. Localizado na margem oposta do rio Iaco, este seringal também faz parte da proposta de criação da RESEX (vide anexo 2). Nele reside uma importante liderança deste processo, a Moça, que se tornou minha principal mediadora junto aos moradores do seringal Porongaba.

Fotografia 1: visão geral do batelão no qual fiz a viagem de subida pelo rio Iaco, no inverno de 2010.

Os cinco dias que permaneci no Novo Destino já clareavam que o estudo iria incluir uma rede de sociabilidades para além do que se considerava formalmente como seringal Porongaba. Não apenas colocações do seringal Novo Destino foram integradas à análise, mas também colocações de um seringal limítrofe, denominado Curitiba (vide anexo 2). Foi no centro do Novo Destino, onde se encontram duas colocações (Boa Vista e Veneza) ocupadas 20 Esses barcos privados de maior porte transportam passageiros entre a sede urbana de Sena Madureira e os seringais do rio Iaco. 6

por dois grupos domésticos afins, que comecei a conhecer um pouco mais a história do Porongaba; e que comecei a perceber que seria impossível limitar as questões que pretendia abordar às delimitações burocráticas dos seringais. Durante os cinco dias na margem do Novo Destino também visitei a sede do Porongaba. A permanência inicial na margem do Novo Destino está relacionada ao fato da Moça residir nesse local, e de ter sido através dela que entrei para o centro do Porongaba. Não só minha pesquisa acabou incluindo áreas fora dos limites formais do seringal Porongaba, como minha própria vivência de campo não incluiu toda a área do seringal: ela concentrou-se nas linhas mais à montante (vide apêndice 1), pois foi com os grupos domésticos aí residentes que tive maior contato nas duas primeiras viagens, antes do desenvolvimento da pesquisa de mestrado. As linhas são os eixos dos varadouros principais de um seringal. No caso do Porongaba são três, sendo que uma delas recebe o nome de Santa Luzia. As outras duas, mais à montante, não costumam receber um nome específico; mas ouvi um morador com mais de trinta anos, que vive no seringal desde muito jovem, referindo-se a elas como linha do Pau Forte e linha do Piauí (nomes de colocações do centro do Porongaba), de maneira que utilizarei esta nomenclatura. A maior interação com os moradores destas linhas reflete não apenas a atuação profissional de minha mediadora (que é agente de saúde, e atende as casas dessas linhas), mas também os vínculos de parentesco e de afinidade que ela possui com esses grupos domésticos. No verão de 2010, chegando a Sena Madureira, imaginava que automaticamente conseguiria passagem em uma toyota (fotografia 2) até o seringal Porongaba (na estação seca é possível acessar o seringal por uma estrada não-asfaltada). Porém, acabei permanecendo quatro dias em Sena Madureira. Mesmo hospedada em um hotel da cidade, diariamente ia almoçar na casa de Dna. Raimunda, mãe de Moça (vide apêndice 2). Moça, seu marido, Biita, e seu filho mais novo, William, haviam chegado do seringal há alguns dias. Os momentos de convivência com o grupo doméstico de Dna. Raimunda foram importantes para compreender as dinâmicas de interação entre moradores do seringal e seus parentes e afins que vivem na rua21. Foi também durante esses dias que tive a oportunidade de conhecer a sede da Cooperativa dos Produtores Rurais do Vale do Rio laco – COOPERIACO, uma das principais compradoras de castanha da região do rio Iaco.

21 Como acontece em vários casos já estudados na Amazônia (ver, por exemplo, ESTERCI, 1987) rua aparece aqui como referência à área urbana. 7

Fotografia 2: visão geral da toyota na qual realizei a viagem de volta do seringal Porongaba, no verão de 2010. À esquerda, vemos os demais passageiros, moradores do seringal Porongaba, em uma parada para o almoço.

Nas minhas estadias no seringal procurei envolver-me ao máximo na dinâmica cotidiana dos grupos domésticos, acompanhando-os em suas diferentes atividades, hospedando-me em suas barracas e alimentando-me com eles (fotografia 3). No inverno, convivi a maior do tempo com grupos domésticos residentes nas colocações Cachoeira, Balança e Pedrinha, todas no centro, entremeado por pernoites nas e visitas curtas às colocações Pau Forte, Solidade, Cachimbo, Piauí e Bacaba, também no centro, e Baixa Alegre, na margem. No verão, passei a maior parte do tempo residindo com grupos domésticos das colocações Pedrinha, Cachoeira e Centro do Carro, todas no centro, além de pernoites em casas das colocações Riozinho do Porongaba e Balança (centro), Baixa Alegre, Sede e Porto Artur (todas na margem), além de visitas às colocações Solidade, Piauí e São Raimundo (todas no centro) e Santa Luzia (margem).

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Fotografia 3: eu, com um jerimum na mão, voltando de uma manhã de trabalho no roçado com Isa, esposa de Pelado (vide apêndice 8), e seus filhos Gleice e Clédi.

Além de utilizar a observação participante como principal método de pesquisa, realizei entrevistas com alguns moradores dos seringais, principalmente os chefes dos grupos domésticos. Nas entrevistas busquei elucidar algumas questões22 que haviam sido levantadas antes ou durante minha permanência em campo. Também realizei entrevistas menos sistemáticas com alguns interlocutores residentes na cidade de Sena Madureira, que mantinham alguma vinculação com o seringal Porongaba23. Foram também utilizadas informações sobre os grupos domésticos do seringal Porongaba presentes no levantamento sócioeconômico do processo de criação da RESEX do Médio Iaco (ICMBio, 2008). Levei em consideração principalmente as informações referentes à produção agrícola, à criação de animais domésticos e outras fontes de renda. Alguns dados oficiais sobre a produção de castanha na Amazônia brasileira, especialmente no Acre, também foram levantados. O registro fotográfico também é um importante elemento da etnografia do seringal presente nesta dissertação, de maneira que os enquadramentos traduzem certos olhares sobre cenas do cotidiano dos moradores. Além de ferramenta na etnografia, as máquinas 22 Sendo elas: elementos da história do seringal; significados associados à categoria patrão; características de uma boa colocação; diferenças entre a vida no centro e na margem; diferenças entre a vida no seringal e a vida na rua; aspectos ligados à criação de animais domésticos, em especial o gado; características dos circuitos de troca e reciprocidade envolvendo a castanha; características dos circuitos de troca e reciprocidade envolvendo a força de trabalho; aspectos ligados à circulação de dádivas de carne de animais da mata. 23 Que incluíram o padre Paolino, membros da COOPERIACO e o filho de um antigo patrão do Porongaba. 9

fotográficas transformaram-se num importante elemento de aproximação com os moradores, que constantemente me solicitavam o registro de fotografias.

III. Estrutura da dissertação

No primeiro capítulo, o leitor irá viajar um pouco pela história do seringal Porongaba, contada não a partir da perspectiva da historiografia oficial, mas das narrativas de seus próprios moradores. Um passado construído que aponta para a perda da centralidade do cortar seringa no cotidiano das colocações, com a saída de cena dos patrões de antigamente e a desestruturação dos seringais empresa. Neste contexto, muitos grupos domésticos abandonaram o seringal, transferindo-se para a rua ou para outras áreas rurais. O segundo capítulo ajuda a compreender por que, apesar da desestruturação do mercado mundial de borracha, alguns grupos domésticos permaneceram residindo no seringal, tanto no centro quanto na margem. Nele, será feita uma caracterização geral do seringal Porongaba (e, até certo ponto, também do seringal Novo Destino), considerando a organização dos grupos domésticos pelas colocações, as redes de parentesco (incluindo o ritual), o sistema de direitos sobre as colocações, o acesso desde a rua, as redes de comunicação, a presença de “instituições centralizadas”, o trabalho desenvolvido pelos grupos domésticos, a sazonalidade inverno – verão, as distinções centro – margem e seringal – rua, além do processo de criação da RESEX do Médio Iaco. A partir desta caracterização as diferentes delimitações sociais do seringal (para além da formalidade de uma propriedade privada) podem ser vislumbradas. O terceiro e último capítulo destina-se à descrição e análise dos circuitos de troca e de reciprocidade relacionados ao extrativismo vegetal, à caça, à agricultura e a criação de animais domésticos. Serão enfocadas as relações entre as casas do seringal, por mais que circulações envolvendo a rua também sejam consideradas, afim de complexificar a análise. Como fatos sociais totais esses circuitos irão apresentar novos elementos sobre a vida social entre a margem e o centro.

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CAPÍTULO 1 – O seringal Porongaba: memórias de um passado construído No presente capítulo, narro alguns elementos da história do seringal Porongaba. Porém, não se trata de um ensaio sobre os registros e referências históricas oficiais da região dos rios Purus e Iaco e de Sena Madureira, tão bem construídos por autores como Cunha (2005), Melo (1994) e Tocantins (1979). Parto principalmente das memórias dos moradores do próprio seringal. Ao tomar por base essas lembranças, mais do que situar o seringal dentro da história da região, acesso elementos de um passado construído pelos moradores que podem ajudar a compreender o cotidiano vivido no presente. De fato, acatando a sugestão de Sahlins (2003), pretendo explorar a idéia de que a história é organizada a partir dos esquemas de significação de um grupo social, assim como estes esquemas culturais são ordenados a partir das construções históricas. ____________

1.1 O túmulo da freira Foi somente na segunda estada em campo, no verão de 2010, que ouvi falar do que seria o túmulo da freira – aquela que seria, segundo o padre Paolino, a proprietária do seringal Porongaba, cujas terras a ela pertenceriam por herança de família24. Eu passava uns dias com Dna. Chica e seus dois filhos mais novos, enquanto seu marido, Sr. Pelé, estava na rua resolvendo alguns problemas (vide apêndice 3). Eles viviam na colocação Centro do Carro, situada no centro do seringal (vide apêndice 1). Dna. Chica havia convidado-me para ir até a casa de sua filha, que vive com o marido e os dois filhos na colocação Água Boa, também no centro (vide apêndice 1). Indo até a Água Boa poderíamos chegar até o Santa Luzia. Santa Luzia é o nome dado a uma das linhas do seringal Porongaba, e também refere-se a segunda sede do seringal25. Poucos moradores consideram o Santa Luzia como um outro seringal. Para a grande maioria a linha do Santa Luzia, com sua sede, faz parte do 24 Retomarei essa questão no capítulo 2, quando tratar dos conflitos que levaram ao início do processo de criação de uma RESEX na área. 25 A outra sede, a principal, é conhecida como sede do Porongaba. 11

Porongaba. Na época do seringal empresa26, o termo sede demarcava o local onde se localizava o barracão27 e a parte administrativa do empreendimento (ALMEIDA, 1993; ZANOTI, 1979). Como apontou Teixeira (1980), por uma questão logística (já que a borracha era escoada pelos rios), a sede sempre se localizava na margem. Em muitos seringais acreanos, mesmo aqueles que foram abandonados pelo antigos patrões da borracha, o termo ainda é de uso corrente. Hoje, o que é referido como sede de um seringal é, quase sempre, o local onde se localizam as escolas da margem. Na sede do Santa Luzia há um cemitério onde estão enterrados adultos e anjos. Dna. Chica e Sr. Pelé haviam perdido um filho, que já em idade adulta foi vítima da queda de um pau, e está enterrado neste cemitério. No mesmo cemitério, segundo Dna. Chica, estaria enterrada a freira. Segundo Dna. Chica, nesse túmulo, que deveria ser bastante antigo, havia uma lápide em pedra, com algumas palavras escritas. No momento, fiquei bastante curiosa, afinal todos os túmulos que já havia visto em seringais eram sinalizados apenas com uma cruz de madeira ou uma capela28. Nunca havia visto em um seringal uma sepultura como a que estava sendo descrita. Dna. Cléo – casada com Sr. Nicolau, residentes com filhos e filha na colocação Baixa Alegre, na margem do seringal Porongaba (vide apêndices 1 e 4) – conta como tomou conhecimento do túmulo da freira. Na época que eu cheguei aqui eu vi ali aquela catacumba. A gente via bem, só que a gente nunca pára para prestar atenção, e tal. Não achei também que fosse de tanta importância. Depois que eu vi o padre, quando começaram a falar aí que iam explorar tudo, aí o padre se meteu e disse que é de uma freira. Essa freira não tinha parente, não tinha filho para herança. Aí, ela doou, é da Igreja isso. O que o padre fala é isso. É o que a gente sabe falar. Não sei mais dessa freira. Até porque era do Ceará, talvez esteve por aqui, aí morreu. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010).

No fim de semana seguinte, fui passear29 com o grupo doméstico do casal Léo e Jorge (vide apêndices 3 e 4) na margem do Porongaba, na colocação onde residem os pais dela. Na colocação Baixa Alegre, além da barraca onde moram os pais de Léo, Dna. Cléo e Sr. Nicolau, há a barraca onde vive uma irmã de Léo, Jóia, com seu marido Naci e filhos do 26 Empreendimento econômico, conduzido por um gerente sob as ordens de um patrão, centrado na extração de borracha para comercialização, que tinha como base uma área de seringal nativo na região amazônica. Os primeiros seringais empresa formaram-se no final do séc. XIX. 27 De acordo com Pantoja (2008) o barracão era o entreposto comercial do seringal empresa. O local onde ficavam as mercadorias. Ver Teixeira (1980) para uma análise do barracão enquanto instituição fundamental do seringal empresa. 28 Sepulturas cobertas por uma estrutura de madeira e telhas de zinco. 29 Nos finais de semana, especialmente nos domingos, é muito comum os moradores visitarem parentes e amigos em colocações no mesmo seringal ou em seringais vizinhos. 12

casal (vide apêndice 4). Não tive tempo de conhecer a colocação Água Boa, mas aproveitei para conhecer a sede do Santa Luzia, guiada por Léo e por um de seus irmãos mais novos, que mora com Dna. Cléo e Sr. Nicolau, Cássio. Foi Sr. Antônio Tonó – depois do almoço oferecido nesta mesma ocasião por ele e sua esposa, Dna Alzena – quem nos levou até o cemitério, localizado próximo a uma das barracas da sede do Santa Luzia. No local, a maior parte das sepulturas estava marcada com cruzes feitas de madeira, todas pintadas de branco. Dois túmulos tinham capelas, feitas de madeira: num deles estava sepultado o filho de Dna. Chica, e noutro estava um cunhado dela, irmão de Sr. Antônio Tonó. A sepultura era cercada por uma grade de ferro (fotografia 4). Parte desta estrutura estava bastante retorcida e já havia caído no chão. A parte caída no chão provavelmente compunha uma estrutura semelhante a uma cobertura. Havia uma lápide, em formato retangular, feita de mármore (fotografia 5). Sinal de que ali havia sido enterrada uma pessoa de grande prestígio, já que este tipo de mineral inexiste no sub-solo da região, a lápide devendo pois ter sido importada, com seu uso devendo ser bastante restrito na época.

Fotografia 4: visão geral da sepultura da freira. No compartimento superior encontra-se a lápide.

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Fotografia 5: visão geral da lápide de mármore da sepultura da freira, sendo o lado direito a parte superior.

A pedra tinha bastante limo, e sua parte superior estava rachada pelo crescimento de uma planta. Havia inscrições na lápide, em uma grafia de português antigo, bastante difícil de ler em virtude do limo e pelo desgaste da pedra com o tempo. Tentamos decifrar o que estava escrito. AQUI JAZ OS RESTOS MORTAES D. IZABEL MARIA (?) DE ALMEIDA NATURAL DO CEARÁ NASCIDA EM CANINDÉ A 6 DE FEVEREIRO DE 1844 FALECIDA NO SACCADO (RIO IACO, AMAZONAS) A 30 DE SETEMBRO DE 1899 14

De acordo com as informações da lápide, a mulher, nascida na cidade de Canindé (CE), teria falecido com cinquenta e cinco anos de idade. Assim como ela, a maior parte dos migrantes vindos para os seringais acreanos tanto no séc. XIX quanto em meados do séc. XX, já na retomada do comércio mundial de borracha, eram oriundos do Nordeste do Brasil, em especial do Ceará30. A força da colonização cearense transparece para qualquer visitante de um seringal da região que indague sobre a origem dos antepassados dos moradores. O interessante é que a maioria dos moradores adultos do seringal Porongaba, aos quais eu perguntava onde haviam nascido seus pais, mencionavam que os pais nasceram em seringais da bacia do Purus. Poucos eram os casos de moradores na faixa dos quarenta, cinquenta anos, cujos pais não tivessem nascido na região dos rios Iaco e Purus. Um sinal de que a maior parte dos antepassados nordestinos dos moradores do Porongaba vieram para a região na época dos primeiros empreendimentos de seringa. O falecimento dessa mulher, em 1899, ocorreu num local chamado “Saccado”, no rio Iaco; uma provável referência ao seringal Sacado, limítrofe do Porongaba, a jusante deste último, também na margem direita do Iaco. Além do compartimento onde estava a lápide, havia dois compartimentos menores, divididos também por um gradeado de ferro, de acordo com o esquema 1.

Lápide

Esquema 1: compartimentos da sepultura da freira no cemitério da sede do Santa Luzia, no seringal Porongaba.

Falando sobre a sepultura da freira com Moça e Biita, casal que mora na sede do seringal Novo Destino (vide apêndices 2 e 4), Moça comentou que a freira a qual padre Paolino refere-se teria morrido em tempos bem mais recentes. Não cheguei a conversar com o 30 Cf. Benchimol (1992), Melo (1979) e Pantoja (2008). 15

padre sobre esta sepultura, pois ele não estava em Sena Madureira quando retornei dessa viagem. Nenhum morador do Porongaba disse ter conhecido a freira. Alguns apenas admitiam já ter ouvido o padre comentar sobre esta suposta dona do seringal. Não posso afirmar se a sepultura em questão era ou não da freira que o padre indica ser a proprietária do seringal Porongaba. Ouvi até um comentário de que a freira enterrada no seringal seria a dona31 do Santa Luzia. Além do caso indicar que, pela antiguidade da sepultura, a ocupação do Porongaba remete a formação dos primeiros seringais empresa no rio Iaco ainda no séc. XIX, veremos, no capítulo 2, que a figura da freira é mobilizada pelo padre Paolino como elemento de um conflito que envolve o seringal Porongaba. Numa publicação de um roteiro do rio Purus e de seus afluentes (FERREIRA, 1910) há a indicação da existência de um local, no rio Iaco, denominado “Purangaba” (uma provável referência ao seringal Porongaba), logo abaixo de outro local denominado “Curitiba” (há um seringal de nome Curitiba, limítrofe a montante do Porongaba – vide anexo 2). Abaixo desses locais havia outros denominados “Novo Destino” (o seringal Novo Destino localiza-se em frente ao Porongaba, na outra margem – vide anexo 2), “S. Luzia” (provavelmente uma referência ao Santa Luzia) e “Saccado” (provavelmente o mesmo local onde teria vindo a falecer a mulher enterrada na sepultura da lápide).

1.2 Memórias do Santa Luzia Como mencionado anteriormente, para a maioria dos moradores do Porongaba Santa Luzia faz parte deste seringal. Porém, alguns moradores entendem que Santa Luzia e Porongaba são dois seringais diferentes. Para Dna. Cléo, que reconhece uma origem comum do Santa Luzia e do Porongaba, a existência de duas sedes teria marcado a divisão em dois seringais distintos. Esse seringal aí, que agora é repartido e chama Santa Luzia e Porongaba, era um só. Porque a Santa Luzia era a colocação. Aí, foi feita uma sede lá. Aí que repartiram, eles fizeram assim, com dois seringais. […] Até que no meu documento é tudo Santa Luzia. Porque eu tirei com Santa Luzia, não é? E tudo que eu faço é Santa Luzia, porque nos meus documentos tudo é Santa Luzia. Mas agora não, agora ficaram alinhados os dois, assim, tanto faz. Mas eu mesmo, na real, meus documentos é tudo Santa Luzia. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010). 31 No capítulo 2 discutirei a categoria dono. 16

Esta falta de consenso sobre a definição dos limites do seringal Porongaba, e sobre a idéia de que o Santa Luzia é outro seringal, aponta para a flexibilidade dos limites dos seringais para os moradores, desde que se entenda esses limites não como fronteiras físicas ou formais, mas como delimitações sociais – discussão que será explorada no capítulo 2. A linha do Santa Luzia ficou fechada, sem nenhum morador ocupando suas colocações, por um tempo. Foi o pai de Sr. Antônio Tonó, o finado Tonó (vide apêndice 3), quem reabriu a linha, há mais de trinta anos atrás. Sr. Antônio Tonó também me contou que o finado Hermes, antigo patrão do seringal Porongaba, havia pedido que seu pai reabrisse a linha, e que a cedeu então para o finado Tonó. Juraci – que chegou ao seringal Porongaba com um ano de idade, há trinta e cinco anos atrás, e hoje mora com sua esposa, Lusa, e filhos na colocação Cachoeira, no centro do Porongaba (vide apêndices 1 e 5) – explicou posteriormente que a linha do Santa Luzia era aviada32 desde a sua própria sede33. Havia então um comboio34 que circulava exclusivamente nesta linha, levando mercadorias35 da sede do Santa Luzia, na margem36, para as colocações no centro; e trazendo a produção de borracha para esta sede. O finado Tonó seria o gerente do patrão Hermes responsável por aviar os moradores desta linha. Conforme explicou Juraci, quando o finado Hermes saiu do seringal Porongaba foi o finado Tonó quem continuou aviando, agora por conta própria, a linha do Santa Luzia. Porém, logo depois Tonó veio a falecer.

1.3 O tempo da seringa no Porongaba Sr. Antônio Maciel (vide apêndice 6), um dos moradores mais antigos do Porongaba, hoje com cinquenta e sete anos, chegou ao seringal ainda criança, com cerca de quatro, cinco anos. Nasceu no seringal Guanabara, localizado mais acima no rio Iaco, hoje parte da RESEX 32 Elemento fundamental do monopólio comercial dos patrões, tratava-se da venda de mercadorias pelo patrão para os grupos domésticos à prazo, pagas com borracha. Também pode significar o simples fornecimento de mercadorias, quando se trata do aviamento dos patrões por casas comerciais em áreas urbanas. Sobre sistema de aviamento ver Almeida (1993), O´Dwyer (1998), Pantoja (2008), Teixeira (1980) e Zanoti (1979). 33 As outras duas linhas do seringal Porongaba eram aviadas desde a sede do Porongaba. 34 Conjunto de bois de carga, sob responsabilidade do comboieiro, fazendo parte das benfeitorias pertencentes ao patrão/seringal empresa. 35 Produtos industrializados produzidos fora dos seringais. 36 No passado, a borracha era escoada para os centros urbanos exclusivamente por meio fluvial. Hoje, parte da produção do seringal Porongaba pode ser escoada por via terrestre (cf. capítulo 3). 17

Chico Mendes. Seu pai, o finado Raimundo Maciel, nasceu no Ceará e veio direto para o seringal Guanabara, na época da II Guerra Mundial. Antes de seu pai, um tio de Sr. Antônio já havia vindo do Ceará para trabalhar cortando borracha no Acre. Dizia ele [o finado Sr. Raimundo] que lá só sabia notícia de que aqui no Acre era muito fácil de ganhar dinheiro. Aí ele disse: ah, eu vou pro Acre. [...] Diz ele que chegou em Manaus soube notícia que o irmão dele tava em Guanabara. Que os patrões de primeira eram aviados de Manaus. Não era em Sena Madureira, era de Manaus. Finado Alfredo Vieira que era o coronel do Guanabara, o dono de lá. [...] E lá ele conversando topou-se com Alfredo Vieira, e soube que o irmão dele trabalhava com ele e foi com ele, e já trouxe ele diretamente pra lá. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

O pequeno trecho acima indica como eram as formas de circulação das informações (notícias) sobre os seringais. Também indica como recrutavam-se trabalhadores e escolhiamse patrões com base em relações de parentesco – o coronel recruta alguém cujo irmão ele já conhece, e o chegante aceita trabalhar com quem já é patrão do irmão. Foi no seringal Guanabara que Sr. Raimundo casou e onde começou a trabalhar como comboieiro. Sr. Antônio conta como seu pai acabou mudando-se para o seringal Porongaba. Um bom comboieiro era um bom seringueiro. Corria a notícia dele de longe. Os patrões eram doidos por um bom comboieiro, que tratava bem dos animais, tinha cuidado e não faltava ao trabalho dele. Meu pai começou a receber recado e carta do patrão daqui [do seringal Porongaba], que era o finado Vivi. Aí foi pra cidade, por lá sei que ele animou-se e viemos embora pra cá. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

O finado Vivi era o patrão do seringal Porongaba na época em que o finado Raimundo Maciel veio com esposa e filhos do seringal Guanabara, há cerca de cinquenta anos atrás. Sr. Antônio támbém contou que havia uma disputa entre os patrões pelo bom seringueiro, aquele que “comprava e pagava, quando era fim de ano ele tinha o saldo” (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010). Assim como um bom seringueiro, um bom comboieiro também era disputado pelos patrões. No final do mês de dezembro, findo o período de corte de borracha, os seringueiros iam todos para a margem pesar a borracha produzida. Se retirado algum saldo37 baixavam (pelo rio) para a rua. Na cidade é que os seringueiros recebiam propostas dos patrões para irem trabalhar em outro seringal; os patrões tentavam convencê-los oferecendo um maior 37 Diferença positiva entre a quantidade de borracha produzida e as mercadorias consumidas por um grupo doméstico. 18

adiantamento em dinheiro. Assim como na peonagem, por mais que a dívida estivesse inserida numa estrutura bastante distinta (ESTERCI, 1987), o saldo de um seringueiro significava a possibilidade de escolher um outro local para viver e trabalhar. Segundo Sr. Antônio, muitos seringueiros acabavam mudando-se para um seringal daquele patrão que adiantava mais dinheiro. Mas alguns acabavam optando por serem colocados38 em um seringal que já conheciam. Quando o finado Vivi saiu do seringal Porongaba, vendeu o movimento do seringal para um outro patrão: o Mamede Assem. Conforme Sr. Antônio, e outros moradores, o que se vendia e comprava entre os patrões não era a terra, mas o movimento, que significa a venda das benfeitorias; neste caso: o armazém, o barracão, a casa de morada, os animais de carga. Zezinho, filho do finado Hermes – patrão que comprou de Mamede Assem o movimento do Porongaba –, dizia que seu pai não era o proprietário das terras do seringal. Os filhos do finado Hermes, dentre eles Zezinho, residem na área urbana de Sena Madureira. Era muito comum os patrões residirem na rua, de onde acompanhavam seus seringais empresas, que ficavam sob a direção direta de um gerente. Nos seus relatos de memória, os moradores mencionaram os nomes de dois gerentes que se sucederam na época em que o finado Hermes era patrão: os finados Zé Guilherme e Chico Nunes. Dna. Estelina, casada com Pedrão (vide apêndice 7), veio, em 1987, com o marido de outro seringal para uma colocação de centro do Porongaba, localizada na beira do Riozinho39 (vide apêndice 1). Ela chegou a mencionar que Chico Nunes também foi patrão, pois teria comprado o movimento do finado Hermes. Sr. Antônio Maciel narrou também que era comum o próprio gerente do seringal tornar-se patrão40. Um patrão fazia o outro. E o patrão botava um gerente para gerenciar o seringal dele. Ele vivia, por acaso, lá na cidade, na rua. Ele botava um gerente aqui no seringal. E aquele gerente ia dando conta do seringal legal, toda a vida, toda a vida. No próprio instante em que ele deixasse de ser patrão, ele já passava o movimento para aquela pessoa. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

38 Na época em que os seringais eram comandados por patrões, para um seringueiro – sozinho ou com seu grupo doméstico – morar e trabalhar em um seringal ele precisava ser colocado pelo patrão na colocação. Ou seja, ter licença de morar e trabalhar numa colocação. 39 Como veremos no capítulo 2, a beira do Riozinho é considerada centro, já que o principal curso d´água é o rio Iaco. 40 Almeida (1993) também menciona casos semelhantes em seringais do Alto Juruá. Pantoja (comunicação pessoal) menciona que no Alto Juruá é comum que os moradores refiram-se aos antigos gerentes dos seringais como patrões, de forma que ser patrão, nestes casos, estava relacionado ao gerencimento do seringal e das mercadorias. 19

Na época em que o finado Hermes era o patrão do Porongaba “o seringal era todo aberto, todas as colocações tinham seringueiros” (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010), inclusive as colocações localizadas entre o Riozinho e o Espalha. O seringal Porongaba estende-se do rio Iaco até o rio Espalha, cruzando o Riozinho; este último desemboca no rio Espalha, e é referido por alguns moradores como Riozinho do Rola. Passando o Espalha é possível chegar a Xapuri – nome de um município localizado no Vale do rio Acre e de um rio deste mesmo vale. Como veremos no capítulo 2, os grupos domésticos concentram-se nas colocações localizadas entre o rio Iaco e o Riozinho. Pelo relato de Juraci, todo final de mês um comboio aviava as colocações pela linha do Pau Forte, e outro pela linha do Piauí. Ambos voltavam para a sede do Porongaba e juntos aviavam a linha do Riozinho. Retornavam para a sede do Porongaba, carregavam os animais e ambos aviavam a linha do Espalha (vide anexos 4 e 5). De acordo com Sr. Antônio Maciel, as colocações do Espalha eram arrendadas pelos Diniz – família de proprietários do seringal Sacado – para o finado Hermes. Juraci enumerou as sete colocações existentes no Espalha, hoje todas desocupadas: Espalha, Florestinha, Simpatia, Alto Alegre, Primeiro de Março, Bom Jardim e Cafezal (vide anexo 5). Enquanto alguns moradores consideravam as colocações do Espalha como parte do seringal Sacado, Sr. Antônio Maciel as considerava como um pequeno seringal a parte. Lá havia inclusive, no passado, um pequeno depósito41. Sr. Antônio Maciel – que trabalhou com seu pai em comboio, por cerca de cinco anos, quando Sr. Raimundo já estava em idade mais avançada – relatou que eles passavam de doze a vinte dias comboiando no centro. As mercadorias que abasteciam o seringal eram trazidas nas mesmas embarcações que transportavam a produção de borracha: as baleeiras42. Sr. Antônio Maciel rememora como funcionava este esquema de abastecimento dos seringais. O patrão fazia o pedido, baixava, fazia o financiamento no banco, o banco soltava aquele dinheiro, o patrão comprava a mercadoria pro seringal pra passar o ano. Só vinha de ano em ano, época de inverno. Mês de janeiro e fevereiro era tempo de vir os pedidos. Tempo que o rio tinha água, aí vinham as baleeiras grandes. Aí eles metiam aquela mercadoria ali, o pedido deles, pra tirar o ano. Aquilo ali só vinha no outro ano de novo. [...] era baleeira de trinta toneladas, quarenta toneladas. Trazia mercadoria de quatro, cinco seringais aqui. Cada qual, chegava aqui em Porangaba, deixava o pedido do finado Hermes, chegava na Curitiba deixava a do outro patrão de lá, ia pra Boa Esperança deixava pra outro. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010). 41 Segundo Pantoja (2008), depósito era um ponto de comércio ligado a um barracão. 42 Embarcações de maior porte que circulavam pelo rio Iaco no passado. 20

Entre as mercadorias “vinha de tudo, açúcar, óleo, vinha de tudo, de tudo mesmo. Terminava no vestido, calçado, sandália, fazenda, medicamento”. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010). Quando baixavam para a cidade, as embarcações levavam a produção de borracha, como conta Sr. Antônio. […] aí na descida pegava a borracha dos patrões. Que de primeiro levava em balsa essas borrachas defumadinhas. Fazia umas balsonas redondas assim. Descia aquele pessoal em cima daquelas balsas, as baleeiras atrás. Depois da balsa inventaram o puxado com umas cordas. Metia na água, fazia aquelas fileironas de borracha, aí saía puxando na baleeira. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Estas baleeiras pertenciam, segundo Sr. Antônio, a donos de estabelecimentos comerciais localizados na área urbana de Sena Madureira: Zé Dias, Antônio Canizo (que controlava o seringal Petrópolis, também localizado no rio Iaco, a montante do Porongaba) e Zé Nézinho. Como relatou Almeida (1993) para o Alto Juruá, existia uma cadeia comercial que envolvia: os patrões e a infra-estrutura existente nos seringais para abastecimento de mercadorias e escoamento da borracha, casas comerciais localizadas em cidades da microregião e mesmo estabelecimentos localizados em outros estados. No tempo da seringa, poucos eram os grupos domésticos que botavam roçados. O patrão vendia os gêneros alimentícios básicos, dentre eles a farinha (de mandioca), que com a caça formavam os principais elementos da alimentação. Considerando os valores da borracha e da farinha, por exemplo, compensava, em termos de investimento de trabalho, cortar seringa, ou seja, produzir borracha ao invés de botar roçado, como narra Sr. Antônio Maciel. AM: Seringueiro de primeiro, antigamente, não ligava pra roçado não. Porque o patrão tinha de tudo: a farinha, feijão, tudo tinha ele. E o patrão não achava bom seringueiro brocar roçado, ele queria era a borracha, seringueiro ia pro centro era pra fazer borracha. Quem ia brocar roçado ia se empalhar. Invés de brocar ele ia era cortar, e com dinheiro de um dia de corte ele comprava um paneiro [de farinha]43. K: Acabava que, de repente, nem compensava? AM: Não, não compensava você tirar um dia e fazer um roçado. Mais fácil era cortar seringa que fazia mais vantagem. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Mas como o próprio Sr. Antônio indica o patrão também não gostava que o seringueiro gastasse seu tempo de trabalho em atividades do roçado. Pelado – que veio para o seringal Porongaba ainda solteiro, por volta de meados dos anos 1980, e hoje reside com sua 43 Cerca de quarenta quilos. 21

esposa, Isa, e filhos (vide apêndice 8) na colocação Balança, no centro do seringal Porongaba (vide apêndice 1) – conta que podia acontecer do patrão até empatar de botar roçado44. No tempo da seringa eram poucos, eram poucos que colocavam roçado. Porque os patrões só queriam saber de borracha. Aí o seringueiro só queria saber de fazer muita borracha, e aí era um tempo perdido, que eles só trabalhavam para o patrão. O patrão não subia e eles ficavam no piseiro velho. Porque ele comprava farinha. Se ele pudesse comprar arroz, feijão, era de tudo comprado, ele não plantava nada. Já outros não, outros plantavam o arroz, plantavam a farinha, que é a roça, o milho, feijão, cana. Quer dizer que esses tinham mais o que comer. E: Mas o patrão chegava a empatar de plantar? R: Tinha muitas vezes que empatava, não queria. Porque o seringueiro se empalhava. (Pelado, Seringal Porongaba, 01/03/2010).

A possibilidade de proibição pelo patrão de que os grupos domésticos tivessem seus roçados, ou simplesmente o fato de que o patrão não gostava que o seringueiro perdesse tempo de trabalho nos plantios, não significava a inexistência de roçados. Como apontou Almeida (1993), o controle absoluto sobre o processo de trabalho desenvolvido pelos grupos domésticos por parte dos patrões nunca fez parte da estrutura do seringal empresa, nem mesmo na época de surgimento dos primeiros empreendimentos seringalistas. De acordo com o mesmo autor, o controle por parte dos patrões sempre se caracterizou pela pela ênfase na tentativa de imposição do monopólio comercial, estruturado através de um sistema de débitos envolvendo a troca de borracha por mercadorias. Em um seringal do rio Tarauacá, no final dos anos 1970, Zanoti (1979) observou que a presença ou não de roçados estava, em parte, relacionada a fase do ciclo de desenvolvimento em que se encontrava um grupo doméstico: um grupo com vários filhos maiores podia organizar-se de forma que as ações ligadas à extração de borracha não ficassem prejudicadas. Assim, “somente quando o seringueiro tem garantido o acesso às mercadorias do barracão, através da borracha, é que pode se dedicar a outras atividades” (ZANOTI, 1979, p. 96). Teixeira (1980) – em um estudo, também do final dos anos 1970, em seringais localizados em Humaitá, sul do Amazonas – indica que a liberdade para que o seringueiro se engajasse em outras atividades (dentre elas a agricultura) existia na medida em que não atrapalhasse a jornada de trabalho voltada à produção de borracha. Pode ser que no tempo da seringa também a disponibilidade de mão-de-obra do grupo doméstico fosse um fator determinante no desenvolvimento da agricultura no seringal Porongaba. 44 Schweickardt (2010) relata o mesmo tipo de proibição em seringais do Médio Juruá (AM) no passado. O´Dwyer (1998) registra o mesmo em um seringal do Alto Juruá no final dos anos 1980. 22

1.4 E a borracha caiu de preço O finado Hermes vendeu o movimento do seringal Porongaba para Jonas Pinoza, entre o fim dos anos 1980 e meados dos anos 1990. Conforme narrou Juraci, Jonas morava anteriormente no seringal Bonfim – localizado em frente ao Porongaba, na margem oposta do rio Iaco (vide anexo 2) – e quando comprou o movimento do seringal Porongaba mudou-se para a sede do Porongaba. Antes, Jonas era freteiro no rio Iaco: trabalhava transportando passageiros. Durante cerca de três a cinco anos, Jonas conseguiu tocar o seringal. Chegou a aviar durante três ou quatro anos as linhas do Riozinho e do Espalha. Como mencionado anteriormente, na linha do Santa Luzia, depois que o finado Hermes saiu do seringal, o finado Tonó permaneceu aviando até o seu falecimento. Jonas teria tentando aviar a linha do Santa Luzia depois do falecimento de Tonó, mas logo parou. Ele [Jonas] tocou [o seringal Porongaba] uns 3 anos, mas ele não soube trabalhar. E, sabe, quando a pessoa não sabe administrar uma coisa, aí não vai. Começou a vender fiado, e não recebia. Aí o cara vai quebrando, não é? E ele ficou sem nada mesmo, não tinha nem um quilo de açúcar em casa. Acabou com tudo. […] Também a borracha caiu de preço, aí acabou com tudo mesmo, cada qual já foi desgostando dele, já foi comprando fora, foi comprando de outro. Aí ficou, acabou-se. K: E ele não empatava [de vender para outro], não tinha como empatar? AM: Não tinha como mais, não tinha mais. Nessa época ele não era financiado no banco, entendeu? Só empatava quem era financiado no banco, e ele não era. Começou a faltar as coisas. O seringueiro ia atrás de uma coisa e não tem. Com a borracha, não tô devendo a ele, então vou comprar onde tem. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010, grifo nosso).

Como também narrou Juraci, Jonas começou a ficar sem condições: sem ter como comprar mercadorias para vender para o freguês45. Segundo Sr. Antônio, esta perda de condições refletia não só uma má administração por parte de Jonas, mas também um descenso no sistema mercantil da borracha. A fala de Sr. Antônio transcrita acima aponta ainda para outra questão: a tensão entre os patrões e os comerciantes que circulavam pelos seringais: os marreteiros46. Conforme Jonas ficava sem condições, os seringueiros começavam a comprar produtos com estes 45 O seringueiro que vivia em uma colocação de um seringal de um certo patrão era considerado seu freguês. 46 Também referidos como regatões. Não percebi se há uma diferença entre marreteiro e regatão, como observou Almeida (1993), nos anos 1980, em seringais do Alto Juruá. Ainda hoje, no seringal Porongaba, eventuais comerciantes que circulam pelo rio Iaco ou pelos varadouros vendendo roupas, objetos pessoais e utensílios domésticos são chamados de marreteiros. 23

comerciantes. Como já mencionado, o controle sobre os seringais operava através do monopólio comercial exercido pelos patrões. De acordo com Almeida (1993) no Alto Juruá dos anos 1980, se o patrão falhava em prover mercadorias (bens considerados fundamentais para a vida dos grupos domésticos no interior dos seringais) havia uma justificativa para que fossem estabelecidas outras vinculações comerciais – com comerciantes itinerantes ou mesmo com patrões de outros seringais. Sr. Antônio também ressalta que Jonas “não era financiado no banco”. Na década de 1980, os patrões de seringais acreanos podiam obter financiamentos em bancos públicos para investir na empresa extrativa. Os empréstimos eram voltados, oficialmente, à aquisição de bens de consumo e instrumentos de trabalho (ALMEIDA, 1993). De acordo com este mesmo autor, conforme observado no Alto Juruá, esses financiamentos eram mobilizados pelos patrões como argumento para manutenção do monopólio comercial, já que a produção de borracha futura era dada como garantia ao banco. Além de ter ficado sem condições, Jonas, por não ter financiamento no banco, não tinha como garantir monopólio sobre as relações comerciais envolvendo a produção de borracha no seringal Porongaba. Esses marreteiros vinham de Sena Madureira, pelo rio Iaco, e às vezes de Xapuri, pelos fundos do Espalha. Como narrou Sr. Antônio, os caminhos entre o rio Iaco e Xapuri, em meio a floresta, eram todos abertos. Zelar pelos varadouros, assim como pelas estradas de seringa, mantendo-os limpos47, era, inclusive, responsabilidade dos patrões48. Era tudo aberto, isso aqui, os caras que tavam ali batiam em Xapuri. Tudo aberto, tudo aberto, o mesmo que a gente andar daqui pro Riozinho ali, pra beira da rodagem, era mesma coisa. Ainda era melhor, porque os caminhos eram roçados, agora não é. Que os patrões mandavam roçar, os varadouros, tudo direitinho. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Nunca existiu um monopólio comercial absoluto no seringal empresa (ALMEIDA, 1993). Como ressaltaram este autor e Teixeira (1980), comerciantes itinerantes, como marreteiros e regatões, sempre fizeram parte da vida nos seringais49. O uso de varadouros clandestinos pelos grupos domésticos para venda de borracha era comum no Alto Juruá, nos anos 1980 (ALMEIDA, 1993). Conforme a fala de Sr. Antônio acima transcrita, os seringais da margem direita do médio rio Iaco eram conectados por uma densa rede de varadouros que ligava as bacias hidrográficas do Acre e Purus, o que abria a possibilidade de estabelecimento 47 Abertos. 48 Cf. O´Dwyer (1998). 49 Cf. Monteiro (1958) e seu clássico trabalho sobre a atuação de regatões na região amazônica. 24

de relações comerciais entre os grupos domésticos e marreteiros, à revelia dos patrões. Além disso, não podemos desconsiderar as diferentes formas de resistência construídas pelos seringueiros, uma identidade também política (ESTERCI, 2002; O´DWYER, 2003), ao longo do tempo50. Em meio a esta tensão – mas também à complementaridade, conforme indicou Almeida (1993) – entre comerciantes itinerantes e os patrões que comandavam os seringais, o crime contra o monopólio dos patrões era uma das principais infrações às regras costumeiras do seringal empresa (ALMEIDA, 1993). Vejamos o que narra Sr. Antônio Maciel. Porque o caso do patrão de antigamente era esse. O patrão era quem mandava no seringal todo. Todo. Vamos dizer, um patrão da Porongaba aqui. Então, ele mandava nesse seringal de Porongaba todo. Todas as colocações era o patrão quem mandava. […] Todo seringueiro era humilhado do patrão. Não tinha seringueiro liberto. A não ser que ele arrendasse a colocação, não é? Um seringueiro não podia vender um quilo de borracha fora para outra pessoa. Não podia vender um quilo de sernambi. Nessa época existia sernambi 51, não é? Da borracha, do leite. Aí, o seringueiro, tudo ali era sujeito ao patrão. Se um seringueiro vendesse e os patrões soubessem “o seringueiro fulano de tal vendeu cinqüenta quilos de borracha para um marreteiro fulano de tal”, o patrão ia lá, metia o comboio no varador, ia lá, chegava, tirava a conta dele e mandava ele embora. Ele tinha que ser sujeito ao patrão. Isso aí era o que devesse, o que tivesse saldo, seja ele quem fosse. O patrão era quem mandava. Eram os reis do seringal, não é? (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010, grifo nosso).

Um crime contra o monopólio comercial do patrão, conforme relata Sr. Antônio, era motivo para expulsão do seringal. À relação com os patrões, baseada neste monopólio, era comum a associação das categorias humilhado e sujeito. Pelado fala de um passado em que era humilhado, quando ainda vivia na colocação São Paulo – localizada no centro do Porongaba, no Riozinho (vide anexo 5) – e de um presente em que está liberto, pois pode vender seus produtos (no passado a borracha, no presente a castanha) e comprar mercadorias sem estar sujeito à ninguém52. Aqui era melhor porque no [na colocação] São Paulo eu era humilhado. Você sabe o que é humilhado? Humilhado é outro homem assim a sujeito. E aqui não, aqui eu não sou... Eu comprava de quem queria, e vendia meu produto pra quem queria […] E aí eu fiquei liberto, não fiquei sujeito a ninguém, e hoje vivo assim. (Pelado, Seringal Porongaba, 01/03/2010). 50 Ver também estudo de Leal (2007) sobre as estratégias de resistência de seringueiros entre o fim do séc. XIX e início do séc. XX. Ver. também Almeida (1993), O´Dwyer (1998) e Zanoti (1979) para tempos mais recentes. 51 Borracha de menor qualidade que não passava pelo processo de defumação. 52 O´Dwyer (1998) também registrou a distinção entre liberto e sujeito em seringais do Alto Juruá, como referências à, respectivamente, autonomia e falta de autonomia de um grupo doméstico em relação ao patrão. 25

Se o pagamento de renda pelo seringueiro ao patrão do seringal para usufruto das estradas de seringa pode motivar a organização de movimentos de resistência que questionam a legitimidade deste monopólio – como aconteceu em seringais do Alto Juruá nos anos 1980, levando à criação da primeira RESEX federal em 1990 (ALMEIDA, 1993; O´DWYER, 1998) –, o arrendamento de estradas de seringa de certa forma pode significar uma maior autonomia dos grupos domésticos, que passam a ter liberdade para estabelecer relações comerciais, como relata Sr. Antônio Maciel. Antigamente eles arrendavam, os patrões para os seringueiros. Os seringueiros, no caso, não queriam se aviar com eles. Eles arrendavam as estradas para os seringueiros. Os seringueiros ficavam libertos, só pagavam a renda das estradas. Por acaso, de três estradas eles pagavam noventa quilos de borracha por ano. O patrão pegava aquela renda e o seringueiro ficava com as estradas. Aí ele [seringueiro] comprava e vendia para quem queria. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010, grifo nosso).

Com a queda na economia da borracha no início do séc. XX, os patrões do Alto Juruá começaram a estabelecer contratos de arrendamento das estradas de seringa para os seringueiros, sem cláusulas de monopólio comercial (ALMEIDA, 1993). Conforme aponta este autor, o arrendamento baseia-se em uma concepção do seringal enquanto um conjunto de seringueiras que pertencem a alguém. Sr. Antônio menciona que ao pagar a renda para o patrão, o “seringueiro ficava com as estradas”, possuindo assim direitos especiais sobre seu uso – por mais que elas ainda pertencessem ao patrão –, de forma que era liberto para estabelecer vínculos comerciais com quem tivesse interesse. No caso do Médio Juruá, como demonstraram O´Dwyer (1998) e Schweickardt (2010), o pagamento de renda não significava ser liberto, já que a renda dava aos grupos domésticos o direito de acessar as estradas de seringa, permanecendo a obrigação de venda de toda produção de borracha para o patrão que o arrendava. Talvez a liberdade comercial mencionada por Sr. Antônio Maciel no caso de arrendamento de estradas de seringa seja uma situação contemporânea à queda na economia da borracha, com a respectiva crise no abastecimento de mercadorias por parte dos patrões. A borracha caía de preço, o patrão ficava sem condições, e o seringal Porongaba passava por um processo de esvaziamento, que se iniciou por volta de meados dos anos 1980. Juraci – que no final dos anos 1980 vivia com sua mãe na colocação Piauí, no centro do Porongaba (vide apêndice 1) – mencionou que logo no início dos anos 1990 a maior parte das colocações do Riozinho estavam vazias. Vejamos o que conta Pelado e Dna. Cléo sobre essa 26

época. É, muita gente foi embora. A borracha desvalorizou, a castanha não tinha valor. O pessoal vão saindo pra rua, né, vão saindo pra rua, porque vão fazer o que aqui? Vão comer o que? Aí vão saindo, vão saindo. (Pelado, Seringal Porongaba, 01/03/2010). Na época em que a borracha caiu de preço não tinha de que viverem. Porque nessa época castanha era só besteirinha, só era da seringa, da seringa. Aí, eles foram saindo para a rua, foram saindo para a rua. Também não sei nem em que eles arrumaram trabalho lá, que está tudo lá e bem. Não querem nem passear para cá mais... Querem não. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010).

A borracha tinha perdido valor no mercado, e a castanha tinha um baixo valor de comercialização. Segundo Juraci, a comercialização de castanha no seringal Porongaba por alguns grupos domésticos iniciou-se na segunda metade dos anos 1980. Mas foi apenas nos anos 1990 que o seu comércio ganhou maior fôlego, com um maior número de grupos domésticos do seringal extraindo castanha para a venda. Ainda assim, o preço de venda, segundo os moradores, era muito baixo nesta época. No capítulo 3 retomarei este tema, quando tratar do sistema de extração e comercialização da castanha no presente.

1.5 Considerações finais Foi acontecendo que os patrões foram saindo. Foram saindo, foram saindo, aí foram invadindo de marreteiro. […] Entravam pro centro. Aí os patrões foram se desgostando, desgostando, e foram abandonando. Ela [borracha] foí caindo de preço já, eles [patrões] foram largando mais por causa de preço. [...] No começo, o seringueiro pensava que tava melhorando pra eles. É por que, vamos dizer, o patrão aqui pagava o preço, a borracha de um preço, no fim de ano, aí os marreteiros chegavam lá e já seduziam, botava outro preço, eu te pago logo. Foi comprando, comprando, os patrões já foram se desgostando. A borracha já foi também diminuindo de preço, eles viram que não ia dar mais pra eles, abandonaram de uma vez. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010, grifo nosso).

As memórias dos moradores do Porongaba apontam para um passado em que a borracha era o elemento central da vida no seringal. Também apontam para um passado um pouco diferente daquele descrito pela historiografia oficial, indicando que havia espaço para uma certa liberdade, conforme já haviam demonstrado outros autores (ALMEIDA, 1993;

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LEAL, 2007; PANTOJA, 2008). A borracha foi caindo de preço, os marreteiros foram invadindo, e os patrões começaram a ficar sem condições, já que o monopólio comercial exercido por eles estava sendo perdido em função da sinergia entre a queda na economia gomífera e a atuação dos comerciantes itinerantes. Com a saída de cena dos patrões muitos grupos domésticos abandonaram suas colocações, pois um elemento fundamental da vida no seringal estava sendo perdido: a garantia do abastecimento de mercadorias. As mercadorias eram adquiridas a partir da venda da borracha; com a queda no preço de comercialização deste produto extrativo os grupos domésticos tinham maiores dificuldades para conseguí-las. Muitos dos moradores que saíram do seringal Porongaba foram viver na rua; outros devem ter ido tentar a vida em outros seringais ou em outras áreas rurais (alguns deles até retornaram posteriormente para a região do Médio Iaco). Porém, muitos de seus vizinhos, compadres e parentes permanecem até hoje vivendo no seringal Porongaba. A borracha perdeu espaço no cotidiano das colocações, e a castanha, antes vendida a preços irrisórios, passou a ser, como veremos nos capítulos seguintes, o principal produto comercializado pelos grupos domésticos. Vimos, pelas falas dos moradores, que se a castanha tivesse valor talvez ao menos parte dos grupos domésticos não tivesse abandonado o seringal. Quem sabe até mesmo os patrões não tivessem abandonados seus empreendimentos. Mas, deixando o exercício contrafatual de lado, o fato foi que quando a borracha perdeu seu posto de principal produto do seringal a castanha ainda não era um produto de valor, e muitos deixaram a vida no Porongaba para trás. Houve uma tendência de esvaziamento dos seringais em todo o sudoeste amazônico, especialmente dos centros, com as diversas crises no mercado de borracha nativa 53. Vimos que as colocações mais ao centro do Porongaba, no Riozinho, permanecem desocupadas desde a última grande queda de preço da borracha. Porém, por mais que as colocações mais distantes da margem tenham sido abandonadas, veremos que colocações do centro do Porongaba continuaram habitadas por grupos domésticos, que chegam a viver a um dia de viagem desde a beira do rio Iaco, a principal via de acesso de pessoas e mercadorias. Afinal, por que parte dos grupos domésticos do seringal Porongaba, apesar da falta de um produto de valor que pudesse proporcionar condições para a compra de mercadorias, 53 Cf. Zanoti (1979) e Iglesias (1998) para o Alto Tarauacá, e Almeida (1991) apud. Almeida (1993) e Almeida et. al. (2002) para o Alto Juruá. 28

não foi embora, como fizeram tantos outros? Seguindo a linha argumentativa de Sahlins (2007), a atualização das forças e relações do sistema capitalista mundial nos esquemas culturais locais faz com que a vida nos seringais não seja simples reflexo da economia. Não se trata de uma simples “física de relações proporcionais entre 'impactos' econômicos e 'reações' culturais” (SAHLINS, 2007, p. 446). Apesar dos grupos seringueiros não escaparem dessas forças, acredito que se constroem estruturas e sistemas de significação que não os fornecidos pelo contexto hegemônico. Como indicou Sahlins (2007), esta apropriação cultural que fazem dessas forças externas constitui a base de sua ação histórica. Assim, a decisão pela permanência ou saída do seringal não refletiu apenas uma avaliação de oportunidades econômicas. Cada grupo doméstico deve ter levado em conta outros fatores, como, por exemplo, a fase do ciclo de desenvolvimento em que se encontrava o grupo, o surgimento de oportunidades em outros locais, as preferências de moradia, as estratégias de grupos de parentesco e o acesso ao ensino formal. Já que “destino não é história” (SAHLINS, 2007, p. 448), os moradores do seringal Porongaba puderam traçar um caminho distinto daquele ditado pela correlação de forças no sistema de comercialização de produtos extrativistas. No próximo capítulo, quando tratarmos da vida no seringal em oposição a vida na rua, e também da oposição entre viver no centro e viver na margem, serão analisados alguns dos elementos que ajudam a compreender por que alguns grupos domésticos optaram por permanecer no seringal.

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CAPÍTULO 2 – O seringal Porongaba: a vida no centro – margem

Neste capítulo pretendo caracterizar o seringal no qual se concentra a pesquisa, considerando: a forma e organização dos grupos domésticos – e a rede de parentesco e compadrio na qual se inserem; o sistema de direitos sobre as colocações; o acesso às cidades; as redes de comunicação; a sazonalidade; a presença de “instituições centralizadas”; as atividades laborais desenvolvidas pelos grupos domésticos; o processo de criação de uma RESEX na área; a distinção centro – margem; e a distinção seringal – rua. O croqui do apêndice 1 permite visualizar alguns aspectos espaciais do seringal, demarcando a localização relativa das colocações e o número de “casas” presente em cada uma delas, complementando assim a caracterização. ____________

2.1 Entre casas e colocações Até setembro de 2010, havia trinta e oito grupos domésticos no seringal Porongaba, sendo vinte e oito no centro e o restante na margem. A margem refere-se ao rio Iaco, sendo as colocações entre o Iaco e o Riozinho e entre o Riozinho e o rio Espalha consideradas como de centro54. Como mencionado no capítulo 1, praticamente apenas as colocações entre o rio Iaco e o Riozinho possuem grupos domésticos residindo, estando quase todas as colocações entre o Riozinho e o rio Espalha vazias (apesar de algumas, como veremos, estarem sendo utilizadas para extração de castanha). Um grupo doméstico reside na beira do Riozinho e outros dois próximos à beira do Riozinho. Cada um dos grupos domésticos do seringal corresponde a uma “casa”, no sentido proposto por Almeida (1993): uma unidade de “ação técnica” que compreende um grupo de pessoas co-residentes, um território, objetos materiais, procedimentos técnicos e formas. De acordo com o mesmo autor, uma casa, apesar de quase sempre composta por membros ligados pelo parentesco pode também ser habitada por um grupo de irmãos, de amigos, e por um homem e sua mão-de-obra contratada55. Dois grupos domésticos podem temporariamente residir numa mesma casa quando um novo laço conjugal é formado. Um jovem casal do 54 Como visto no capítulo 1, o seringal Porongaba estende-se do rio Iaco ao rio Espalha, cruzando o Riozinho. 55 Ver também Martini (1998) a partir de seringais do Alto Juruá. 30

seringal Porongaba, Gusto e Sandra (vide apêndices 3 e 8), havia residido por cerca de cinco meses na casa dos pais do marido até terem construído sua própria barraca, na mesma colocação (Balança). No verão de 2010, o mais jovem casal do seringal, Charles e Mauriete, residia na barraca dos pais do marido, Oscar e Raimunda (vide apêndices 4 e 9) se engajando nas atividades cotidianas da casa. Os trinta e oito grupos domésticos do seringal Porongaba distribuem-se em vinte e três colocações, de maneira que em nove dessas colocações agrupam-se mais de uma casa. Uma dessas colocações (Cachimbo), do ponto de vista dos limites formais 56, faz parte do seringal Curitiba, limítrofe ao Porongaba (ver anexo 2). Porém, apesar de reconhecer este limite formal, o patriarca que lidera esta colocação, Sr. Bastos, a considera parte do seringal Porongaba. Em pelo menos seis destas colocações57 encontramos relações entre as casas que as caracterizam como “casas ampliadas”, com o chefe de uma das casas assumindo a liderança geral das atividades na colocação (ALMEIDA, 1993; ALMEIDA et. al., 2002), definindo como ocorre o uso de piques de castanha58 e de estradas de seringa pelas casas (quais casas acessam quais recursos). Um chefe de uma casa ampliada, Sr. Chico Feijão (vide apêndice 5), residente na colocação Cachoeira, proibia alguns de seus netos jovens, que viviam em uma casa distinta da sua, de cortar seringa, alegando que eles não sabiam cortar e que poderiam maltratar a seringueira. Como alertou Almeida (1993), uma casa ampliada pode envolver casas de colocações distintas e mesmo uma casa localizada fisicamente fora do seringal. Encontrei duas casas (as do casal Pedrão e Estelina e da filha Bastiana, casada com Chico – vide apêndice 7) localizadas em diferentes colocações (Riozinho da Porongaba e Suvaco, respectivamente) que funcionavam como uma casa ampliada. No caso da colocação Cachimbo, as três casas localizadas em seu interior formam uma casa ampliada com uma casa localizada na área urbana de Sena Madureira. Nesta casa da rua reside o casal mais maduro que lidera a colocação, Sr. Bastos e Dna Maria59. Todas as casas ampliadas do seringal estão ligadas por relações de parentesco.

56 Limites espaciais que delimitam o seringal enquanto uma propriedade privada (ver considerações finais no presente capítulo). 57 São elas: Cachoeira, Centro do Carro, Balança, Baixa Alegre, Sede e Cachimbo. 58 Caminhos abertos em meio a floresta que reúnem várias castanheiras num único traçado. Uma colocação pode ter um ou mais piques, de tamanhos diversos e com número variado de castanheiras. 59 Que são benzedores. 31

Desenho 1: à direita, as duas barracas da casa ampliada da colocação Balança, no centro do seringal Porongaba, e à esquerda, a escola Manoel Rufino, localizada na colocação Cachoeira. Elaborado por Gleice.

O comando, tanto das casas quanto das casas ampliadas, é geralmente exercido por um homem; mas uma das casas ampliadas era comandada pela matriarca, cujo marido, em idade avançada, tinha problemas de saúde e não conseguia mais desempenhar certas funções laborais60. Entre as casas que compõem uma casa ampliada há a possibilidade de alianças e conflitos de diversos tipos, incluindo aqueles sobre o uso e acesso a recursos da colocação. Em uma casa ampliada do seringal era nítido que duas das casas mantinham laços mais estreitos que as demais, por mais que entre todas as casas da colocação houvessem certas relações que podemos considerar como formadoras de uma casa ampliada. Nas casas ampliadas do seringal observei relações que envolviam: cooperação em atividades (como trabalhos conjuntos nos roçados, na fabricação de farinha, cuidado de crianças pelas avós para que os pais pudessem trabalhar, limpezas de caminhos, caçadas conjuntas); trabalho de meia61 (quebrar castanha e apanhar arroz); fornecimento de alimentos provenientes da colocação, como carne de caça (vizinhança)62 e farinha, especialmente para casas compostas por membros mais idosos; fornecimento de mercadorias por casas formadas por membro(s) aposentado(s); uso de uma mesma pastagem por diferentes casas para criação de gado63; cuidado de animais do terreiro (galinhas e outras aves) quando o grupo doméstico ausenta-se (para ir para a rua, por exemplo); empréstimo de ferramentas de trabalho (como, por exemplo, objeto para plantar grãos). Muitas das relações descritas anteriormente também foram observadas, como veremos no capítulo 3, entre casas que não formam uma casa ampliada. Porém, no caso das atividades de cooperação laboral, era possível perceber, em alguns casos, uma diferença crucial entre casas que não formam uma casa ampliada e casas de uma mesma casa ampliada. Como observou Almeida (1993) no Alto Juruá, nos casos de cooperação laboral dentro de casa ampliada o trabalho não era medido de forma precisa e retribuído de maneira específica, como em uma relação de troca de dias 64. O que ocorria, e observei isto de forma clara no caso de atividades relacionadas aos roçados (preparo para o plantio – brocar65 e derrubar66; plantio; colheita de produção), era que membros de diferentes casas engajavam-se numa mesma atividade, por mais que o trabalho estivesse voltado para uma única casa, em função 60 Almeida (1993) também menciona a existência de casas chefiadas por mulheres no Alto Juruá. 61 Cf. capítulo 3. 62 No capítulo 3, irei tratar especificamente das relações de vizinhança. Por ora é importante mencionar que a vizinhança pode ocorrer entre casas que não formam uma casa ampliada. 63 Sobre a criação de gado, ver capítulo 3. 64 Cf. capítulo 3. 65 Retirar, com terçado (facão), o mato fino. 66 Retirar, fazendo uso de machado ou moto-serra, o mato grosso. 33

da demanda de trabalho. Não havendo uma retribuição direta e específica em dias trabalhados, essa cooperação no trabalho estava inserida num contexto mais amplo de reciprocidades entre as casas. Importante ressaltar que cada casa tinha seu(s) próprio(s) roçado(s), com exceção de casas formadas por membros mais idosos, que podiam possuir apenas um roçadinho, usufruindo de produtos provenientes dos roçados das outras casas. No capítulo 3, ao tratar das relações de troca e reciprocidade inter-casas, irei discutir as formas de cooperação em atividades laborais. No caso das colocações do seringal Porongaba onde vivem grupos domésticos, todos residem de forma permanente. A única exceção são os donos67 da colocação denominada Bacaba, Sr. Artur e Dna. Jamile, que residem em Rio Branco, capital do estado68. Funcionários públicos aposentados, eles compraram a colocação de um morador anterior. Nela extraem castanha e criam gado, e os demais moradores do seringal os reconhecem como legítimos donos. O casal mantém residindo na colocação um grupo doméstico responsável pelo gerenciamento da área. No inverno de 2010, este grupo era o do casal Chico e Loura, que possui uma colocação também no Porongaba, denominada Campo Grande (vide anexo 4), onde residiam anteriormente69. O grupo doméstico de Chico e Loura também se insere na rede de parentesco local (vide apêndice 3). Ao sair da Bacaba, Chico e Loura passaram a residir e trabalhar em uma fazenda próximo à rodovia Transacreana (AC-090). No verão de 2010, um outro casal, proveniente do Alto Purus, Sr. Donilto e Dna. Isabel, que residia no local sem filhos ou agregados, assumiu a gerência da colocação Bacaba. É importante ressaltar que os grupos domésticos que ocupavam essa função de gerência e o casal Sr. Artur e Dna. Jamile não formam uma casa ampliada. Com exceção das casas de Sr. Artur e Dna. Jamile, e de Sr. Donilto e Dna. Isabel, todas as demais se inserem na rede de parentesco que transpassa os seringais da região do Médio Iaco. Além de conectadas por relações de parentesco (baseado na filiação e no casamento), as casas do seringal também se conectam por relações de um tipo de parentesco ritual: o compadrio70. Além de compadres e comadres ligados pelo batismo de um filho (um compadre/comadre ao batizar esse filho transforma-se em seu padrinho/madrinha de 67 Dono é aquele que possui direitos sobre uma colocação: de extrair produtos dela, criar animais, plantar, e também de residir. 68 Não estou considerando este casal na contabilidade dos grupos domésticos do seringal feita anteriormente. 69 Não estou contabilizando esta última colocação, pois durante minha permanência no campo nenhum grupo doméstico mantinha residência nela. 70 Sobre a importância do compadrio e outras formas de parentesco ritual nos seringais do Alto Juruá, ver Almeida (1993), Martini (1998) e Pantoja (2008). 34

batismo), observei relações de compadrio fundadas no parto realizado pela comadre: aquela que pega uma criança torna-se comadre dos pais deste bebê (por mais que eu não tenha observado ninguém se dirigir àquela que fez seu parto como “madrinha”). Também é possível estabelecer o parentesco ritual através da fogueira, na festa de São João: aquele com quem você pula fogueira ou passa fogo transforma-se em seu padrinho/madrinha de fogueira ou primo de fogueira. O parentesco ritual também é estabelecido entre afilhados e seu padrinho/madrinha de crisma. Não só entre o Riozinho e o Espalha (vide anexo 5) existem colocações desocupadas. Também entre o rio Iaco e o Riozinho encontramos colocações onde não residem grupos domésticos (vide anexo 4). Em algumas destas, por mais que não haja nenhum grupo doméstico residindo, existe um dono, que pode ser o chefe de um grupo doméstico que reside no próprio seringal ou alguém que não resida no Porongaba. A colocação Cachoeira, entre as colocações Centro Grande e outra colocação também denominada Cachoeira (vide anexo 4) pertence ao casal Jorge e Léo (vide apêndices 3 e 4), que reside hoje na colocação Pedrinha. Antes, o casal e filhos residiam nessa colocação Cachoeira; os pais de Jorge, Dna. Chica e Sr. Pelé, a haviam comprado no passado, onde residiram até mudarem-se para a colocação Centro do Carro. Quando saíram de lá deram ela para seu filho Jorge. O grupo doméstico de Léo e Jorge além de acessar os piques de castanha da colocação Pedrinha acessam os piques da colocação Cachoeira. O caso demonstra que a posse das colocações pode ter como base mecanismos de herança que operam de acordo com o idioma do parentesco. O irmão de Jorge, Chico, como mencionado, apesar de residir fora do seringal desde o verão de 2010, é dono da colocação Campo Grande, que faz parte da linha do Santa Luzia (vide anexo 4). No Campo Grande já residiram Sr. Pelé e Dna. Chica, pais de Chico; acredito que Chico a tenha herdado de seus pais. Mesmo não residindo nesta colocação, parece que Chico sempre extrai castanha no local, talvez utilizando a mão-de-obra de outras casas. Sr. Pelé e Dna.Chica possuem ainda outra pequena colocação denominada Lajinha, localizada na linha do meio do seringal – ou linha do Pau Forte – (vide anexo 4). Esta colocação possui apenas três madeiras (árvores) de castanha. Além de serem donos da colocação Bacaba, Sr. Artur e Dna. Jamile também compraram uma segunda colocação, denominada Papoco, localizada na linha do Santa Luzia. Há ainda outra colocação, denominada Cumaru, também na linha do Santa Luzia, cujo dono é

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Salim, residente em Rio Branco e um dos principais compradores de castanha do rio Iaco. No capítulo seguinte, irei tratar desta estratégia de Salim (compra de colocações) para garantir a compra de castanha. No caso destas colocações não operaram mecanismos de herança, mas sim relações de compra e venda. Ambas as colocações foram compradas de moradores do seringal que nelas haviam residido. Algumas colocações entre o Riozinho e o rio Espalha (vide anexo 5) são consideradas como pertencentes ao casal Pedrão e Estelina (vide apêndice 7), que residem na colocação Riozinho do Porongaba, localizada na beira do Riozinho. Conforme o seringal foi esvaziando, com os grupos domésticos abandonando as colocações com o descenso econômico da borracha71, apenas o casal permaneceu residindo entre Riozinho e o Espalha. Posteriormente, a filha mais velha do casal, Bastiana, casou e foi residir na colocação Suvaco. E, há cerca de um ano, um casal vindo de Rio Branco passou a residir na colocação São Paulo após convite de Pedrão. No total a casa ampliada liderada por Pedrão e Estelina utiliza de sete a oito colocações, de onde extraem castanha. Para o casal, o fato deles terem aberto72 essas colocações (que estavam todas no bruto73, já abandonadas pelos grupos domésticos que nelas residiam), tendo inclusive contratado mão-de-obra para isso, legitima o direito de posse sobre as áreas. A colocação Samaúma (vide anexo 4) depois de abandonada pelo seu último morador, provavelmente o finado Manoel Rufino, famoso curador que viveu no seringal, acabou tendo seu uso partilhado por grupos domésticos residentes em colocações próximas. A colocação possui oito estradas de seringa; Biel, que vive na colocação Cachoeira (vide apêndice 5), puxou duas estradas para cortar (além das seis estradas da própria Cachoeira que seu sogro, Sr. Chico Feijão, cedeu para ele utilizar). Arie, que vive na colocação Espire, no seringal Curitiba, puxou uma estrada; Pelado, que vive com seu grupo doméstico na colocação Balança (vide apêndice 8), puxou duas estradas. Pajé, residente com sua esposa Déti (irmã de Biel) e filhos na colocação Mamoeiro, também puxou algumas estradas. Não existem piques de castanha na Samaúma; por mais que, segundo Biel, o finado Raimundo Maciel mencionasse a existência de um grande castanhal na colocação no passado. Com o tempo e o abandono da colocação este castanhal teria se acabado. Essa redistribuição dos recursos da colocação Samaúma foi possível porque não 71 Cf. capítulo 1. 72 Retirar a floresta para construção de alguma infra-estrutura, ou limpeza de caminhos, estradas de seringa ou piques de castanha. 73 Com a floresta tendo fechado os caminhos, estradas de seringa e piques de castanha. 36

havia ninguém residindo no local. Com o abandono da colocação as estradas ficaram no bruto. O fato dos moradores das colocações próximas terem limpado essas estradas justifica o uso das mesmas pelos seus grupos domésticos. A compra e venda de colocações é comum em muitos seringais da região. Porém, assim como no tempo da seringa, conforme vimos no capítulo 1, trata-se não de compra e venda de terras. O que se compra são as benfeitorias, e o que se adquire é o direito sobre o uso da colocação: o direito de extrair produtos florestais, botar roçados, criar animais e de residir nela. Veremos no capítulo 3 que a categoria compra de movimento (assim como no passado falava-se em compra do movimento de um seringal74) é utilizada apenas para algumas transações específicas envolvendo a compra e venda de colocações. Como podemos observar é o trabalho investido em uma colocação que legitima a posse sobre a mesma, e que possibilita que se estabeleçam mecanismos de compra e venda de colocações, assim como de herança entre gerações (como o caso da colocação Cachoeira, dada por Dna. Chica e Sr. Pelé para o filho Jorge) 75. Porém, diferente do passado, hoje um mesmo grupo doméstico pode possuir mais de uma colocação. Alguns moradores do seringal mencionavam um descontentamento com esta situação, alegando que antes o grupo doméstico quando deixava de residir na colocação perdia o direito sobre seu uso. Se um grupo doméstico desejasse mudar para outra colocação bastava (quando já não havia mais patrões que controlassem todo o seringal) abrir esta colocação, caso ela estivesse no bruto. Este descontentamento parte da mesma idéia que Esterci (1987) observou entre camponeses do nordeste do Mato Grosso, nos anos de 1970: a de que não só o trabalho investido na terra, mas também o morar é que legitima o direito de posse sobre a mesma. No Alto Juruá, o ciclo de desenvolvimento das colocações – com a expansão, fissão e abandono – estava associado à presença dos patrões, de maneira que a localização física das casas não tornava aquela terra propriedade do morador (ALMEIDA, 1993). Este mesmo autor indica que, de maneira distinta, em seringais de Xapuri sem a presença de patrões havia uma noção de propriedade de colocações associada a uma casa ou casa ampliada. Podemos supor que a saída dos antigos patrões, que controlavam todo o seringal, levou a essas mudanças de critérios de posse. Os moradores que manifestavam certa discordância com o fato de alguns grupos domésticos manterem direitos de uso sobre mais de uma colocação possuíam certa limitação 74 Cf. capítulo 1. 75 Em seringais do oeste de Rondônia, Wawzyniak (2003) demonstrou que também é o trabalho que legitima a posse. Almeida e colaboradores (2002), Almeida e Pantoja (2004), Luna (2003) e Martini (1998) indicaram o mesmo para o Alto Juruá. 37

no acesso a piques de castanha, por compartilharem uma mesma colocação com outras casas. A principal razão alegada por esses moradores para que tivesse ocorrido esta drástica mudança no sistema de direitos sobre as colocações é a ambição relacionada à castanha. Vemos que o aumento de demanda de castanha no mercado gerou dois grandes efeitos sobre o seringal: a substituição da borracha por outro produto extrativista; e a um processo de alteração das regras de posse e direitos sobre as colocações, com a saída de cena dos antigos patrões. O interessante é que no caso de Salim, comprador de castanha da região, a legitimidade de seu direito sobre a colocação Cumaru parecia ser mais aceita do que o fato de grupos domésticos residentes no seringal possuírem mais de uma colocação, já que não ouvi questionamentos a respeito. Veremos no capítulo 3 que Salim possui outras colocações no seringal Curitiba. Não compreendi ao certo o porquê desta diferença de julgamento entre o fato de Salim ser dono de mais de uma colocação (apesar de não residir em nenhuma delas) e grupos domésticos do próprio seringal terem mais de uma colocação. Seria preciso investigar de forma mais acurada em que momento e de que forma certos grupos domésticos passaram a ter direitos sobre mais de uma colocação, já que em alguns casos esses direitos baseiam-se, não em transações de compra e venda, mas no trabalho investido na reabertura da colocação. Talvez um dos fatores que ajude a compreender a diferença de julgamento seja o fato de Salim ocupar uma posição de status diferenciado: veremos, no capítulo 3, que além de ter uma casa comercial na rua ele também é político76. O seringal Novo Destino, localizado na margem oposta ao seringal Porongaba (vide anexo 2), também tem colocações de centro que não estão ocupadas. Até o verão de 2010, doze casas se distribuíam-se em cinco colocações, com a formação de quatro casas ampliadas77, cada qual localizada em uma colocação distinta. Cada colocação recebe um nome, que segundo os moradores do seringal foi definido em um tempo no passado que remete à própria formação dos primeiros seringais empresa. Porém, é possível que uma parte específica da colocação receba um nome distinto quando um grupo doméstico estabelece sua residência no local, no caso de colocações que possuem mais de uma casa. O local de uma das barracas da colocação Cachoeira, ocupada por Maria e Biel (vide apêndice 5), recebe o nome de Fazendinha. O jovem casal Charles e Mauriete pretendia abrir um local na colocação dos pais do rapaz para residirem, que recebia o nome de Cairara. 76 Ocupante ou aspirante a algum cargo parlamentar. 77 São elas: Sede, Rancho Verde, Baixa Verde e Veneza. 38

O território que compõe uma colocação sempre foi definido de acordo com a distribuição das estradas de seringa que partem da clareira que é ou era considerada a sede da colocação78 (vide anexo 6). Nesta sede é que se encontram as barracas; no caso de colocações com mais de uma casa é possível que cada casa ocupe uma clareira diferente. Como a borracha perdeu importância na economia dos grupos domésticos, acredito que em muitas colocações este padrão de organização com uma clareira central, onde se localizava(m) a(s) barraca(s) e de onde partiam todas as estradas de seringa, possa ter sofrido alterações. O desenho das estradas pode variar ao longo do tempo, seja pelo ciclo de vida das árvores, seja pelos arranjos construídos socialmente, como a divisão de estradas entre descendentes (ALMEIDA et al., 2002; LUNA, 2003), de forma que não há um espaço físico fixo que represente a colocação. Assim, não encontramos cercas nem quaisquer outras marcações físicas (como piques ou picadas abertas em meio a floresta) delimitando as colocações.

2.2 Vivendo no seringal O principal acesso aos seringais Porongaba e Novo Destino é feito pela cidade de Sena Madureira (AC), sendo esta a principal rua à qual os moradores dirigem-se e com a qual se relacionam. Durante o inverno, a viagem de subida pelo rio Iaco leva de três a quatro dias, em barco do tipo batelão. Também é possível fazer o trajeto de canoa, com um motor do tipo rabeta, que leva um tempo menor (cerca de dois a três dias) por ser uma embarcação mais leve. Grande parte dos grupos domésticos residentes na margem do rio Iaco possuem este tipo de embarcação. No inverno, também é possível acessar o seringal desde Rio Branco através do Riozinho; a casa ampliada liderada por Pedrão e Estelina (vide apêndice 7) costuma utilizar esta via para comercializar castanha na capital Rio Branco. Porém, nenhum outro grupo doméstico mencionou utilizar esta forma de acesso. No verão, durante cerca de dois meses, é possível chegar das áreas urbanas de Sena Madureira e de Rio Branco ao centro do Porongaba por ramal (estrada não-asfaltada); o acesso fluvial fica bastante prejudicado, já que o rio Iaco perde muito volume d´água. O ramal, referido como rodagem, dá acesso à rodovia Transacreana (AC-90), também ligada à 78 Almeida (1993) descreve um padrão semelhante para seringais do Alto Juruá. 39

capital acreana. Os moradores costumam deslocar-se pelo ramal nas toyotas que fazem o trajeto entre a área urbana de Sena Madureira e os seringais do rio Iaco a cada semana ou dez dias. Não há transportes regulares entre os seringais e a cidade de Rio Branco. A rodagem, segundo relatos dos moradores, foi aberta entre os anos de 1984 e 1988, pelos proprietários do seringal Nova Olinda, localizado à montante no rio Iaco na mesma margem que o Porongaba. O custo de transporte por via terrestre é muito superior ao custo de transporte por via fluvial, chegando a duas ou três vezes mais. No interior do seringal Porongaba existem alguns igarapés79 que deságuam tanto no rio Iaco quanto no Riozinho. Porém nenhum deles é navegável. Observei uma casa em que se retirava água para parte do consumo (lavagem de roupas e louças) de um igarapé, enquanto todas as outras casas consumiam água (inclusive para beber) de vertentes: olhos d´água cercados por uma estrutura de madeira, formando um pequeno poço. Da margem ao centro do Porongaba leva-se de duas a dez horas de caminhada pelos varadouros e varações, dependendo do ponto em que se encontra a colocação. Varadouros e varações são caminhos em meio à floresta que conectam colocações de centro entre si, e colocações à margem do seringal. Enquanto nos varadouros circulam pessoas e animais de carga, nas varações, caminhos mais estreitos, circulam apenas pessoas. Da colocação mais ao centro do Novo Destino leva-se cerca de uma hora e meia até a margem. Durante o inverno, os varadouros são tomados por bastante lama devido às chuvas e ao trânsito de animais de carga puxando castanha. Os moradores mencionam as dificuldades de acesso ao seringal, devido principalmente às condições dos varadouros durante a estação chuvosa, e algumas mulheres declaram permanecer longos períodos sem ir até a margem ou até a rua por causa dessas dificuldades. A maioria dos grupos domésticos reside em barracas (fotografia 6) feitas de tronco de paxiúba (uma palmeira bastante comum no sudoeste amazônico) e cobertas com palhas (quase sempre de jarina, também uma palmeira). Seis grupos domésticos residem em construções feitas de madeira serrada e cobertas com telhas (fotografia 7). Este último tipo de moradia é considerado pelos moradores como uma boa casa, operando como um sinal de sucesso do desenvolvimento do grupo doméstico.

79 Cursos d´água de menor porte. 40

Fotografia 6: uma barraca de paxiúba e palha.

Fotografia 7: uma barraca de madeira serrada coberta com telha. No primeiro plano, vemos o que sobrou da antiga barraca de paxiúba e palha onde residia o grupo doméstico, utilizada atualmente como um pequeno depósito e local para as galinhas chocarem seus ovos. À direta, a parte da casa onde se localizam os quartos e a sala, e à esquerda a cozinha.

A maior parte das casas possui rádio, através dos quais os moradores ouvem diariamente, no horário do almoço, o programa de recados da Rádio Difusora Acreana de Sena Madureira. Os recados trazem notícias de parentes e afins que residem ou estão de passagem pela rua, avisos de órgãos públicos, e também anúncios de casas comerciais localizadas na cidade de Sena Madureira. Aos domingos todos costumam ouvir o programa

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Domingo Alegre no Seringal, que toca músicas e também veicula as cartinhas e os alôs enviados por moradores da cidade e dos seringais, com recados para seus parentes e afins. Alguns grupos domésticos costumam ainda ouvir noticiários, jogos de torneios de futebol nacionais e programas de entretenimento. Mesmo os grupos domésticos que não possuem rádio funcionando recebem as notícias e recados através de outras casas, já que pelos varadouros e varações opera uma densa rede de comunicação. Veremos, no capítulo 3, que o rádio é também um importante veículo de informação dos preços de comercialização da castanha. Três grupos domésticos, residentes nas colocações Balança, Piauí e na sede do Porongaba, possuem televisões alimentadas por placas solares. Na cidade de Sena Madureira, o aparelho de televisão pode ser adquirido com a antena parabólica e a placa solar em um mesmo estabelecimento comercial, que envia um funcionário para instalar o conjunto no próprio seringal. Os aparelhos são ligados diariamente, durante a noite, quando se assistem novelas e às vezes jornais de abrangência nacional e outros programas de entretenimento. Eventualmente a televisão é ligada durante o dia, especialmente quando há transmissão de partidas de futebol. O trabalho familiar, tanto na margem quanto no centro do Porongaba, está voltado ao extrativismo de castanha, à agricultura, à produção de borracha e à criação de animais (como gado, aves, porcos, animais de montaria e caprinos). No seringal Novo Destino, todas essas atividades também são realizadas, com exceção da coleta de castanha, já que não existem castanheiras neste seringal (moradores do Novo Destino engajam-se no quebrar castanha, durante o inverno, em outros seringais). A vida no seringal é marcada pela alternância entre o inverno (que no sudoeste amazônico estende-se de outubro a abril) e o verão. Como já foi dito, o acesso ao seringal a partir da rua varia muito conforme a estação do ano: no verão, é mais fácil chegar ao seringal por via terrestre, enquanto o transporte por via fluvial fica bastante prejudicado. Além disso, a circulação de pessoas pelos varadouros e varações também aumenta bastante no verão, com a maior frequência de visitas às casas de parentes e afins, já que os caminhos estão secos e a caminhada torna-se mais fácil. A aquisição de mercadorias – que, como veremos no capítulo 3, pode ser feita nas casas comerciais localizadas na área urbana de Sena Madureira – também varia drasticamente com a sazonalidade. A maior parte dos grupos domésticos quando adquire mercadorias na rua

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o faze preferencialmente durante o inverno. É na estação das chuvas, como veremos no capítulo 3, que os grupos domésticos dispõem de mais recursos monetários, pois o tempo do inverno é o tempo de quebrar castanha. E, durante esses tempos, os moradores dos seringais Porongaba e Novo Destino, quando vão para rua, baixam pelo rio Iaco. O menor custo do frete fluvial (comparado com o terrestre) também ajuda a explicar esta preferência. No verão de 2010, quando embarquei na toyota em Sena Madureira com moradores do Porongaba e de outros seringais próximos, vi muitos passageiros deixarem alguns produtos que haviam comprado na cidade para trás, pois o veículo estava abarrotado e não podia transportar mais peso. O trabalho também sofre influência direta da variação sazonal: se o inverno é o tempo da castanha, o verão é o tempo de botar roçados. Abaixo podemos observar o calendário sumário de atividades laborais (quadro 1). Jan Fev Mar Abr Mai Jun Jul

Ago Set Out Nov Dez

Castanha Limpar piques

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Juntar e quebrar

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Roçado Limpar

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Apanhar arroz

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Bater palha do arroz

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Plantar (feijão, roça80)

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Plantar (tabaco)

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Brocar (mato fino)

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Derrubar (mato grosso)

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Plantar (arroz, milho, banana, cana, roça, capim) Quebrar milho81, colher x roça e banana

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Borracha Limpar estradas Cortar Caça

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Quadro 1: calendário anual sumário de atividades laborais construído a partir de informações fornecidas 80 Mandioca. 81 Colher milho. 43

por Juraci e Dna. Chica, residentes no centro do seringal Porongaba, e de observações gerais. Este calendário obviamente varia de acordo com a casa, em função de suas prioridades. Para maiores informações, referentes a seringais do Alto Juruá, ver Costa (2002) e Franco et. al. (2002).

A caça, realizada durante todo o ano, é mais difícil no verão. O verão, por outro lado, é o tempo de comer paca, já que este roedor está mais disponível na estação seca. As cobras, por outro lado, sempre encontradas nos caminhos, castanhais e roçados durante o inverno, quase desaparecem no verão. O verão é tempo de mais peixe. Não só para os que vivem na margem, mas mesmo para os que moram no centro e costumam visitar seus parentes e afins na beira do rio para pescarem nos lagos formados com a alteração do curso do Iaco ao longo dos anos. No seringal Porongaba, encontramos, além do cemitério do Santa Luzia, pelo menos outros seis cemitérios. Em dois desses cemitérios, nas colocações Solidade e Cachimbo, estão enterrados apenas anjos. Dois cemitérios estão na sede do Porongaba e na colocação Pau Forte. Na colocação Cachoeira, onde se localiza a escola do centro, está enterrado em uma capela o finado Manoel Rufino, um curador, além de outras pessoas. Na colocação Ipiranga, localizada entre o Riozinho e o Espalha (vide anexo 5) está enterrado o Mestre Jorge. Mestre Jorge viveu e faleceu na colocação Ipiranga por causa de uma ferrada de tucandeira (um tipo de formiga), tendo sido considerado um grande curador. Quando Sr. Antônio Maciel chegou ao seringal Porongaba, ainda criança, há mais de cinquenta anos, Mestre Jorge já havia falecido, mas muito ainda se ouvia falar sobre suas curas. Nós não conhecemos ele pessoalmente não, só via contarem as coisas, os milagres que ele fazia, as curas. Dizem que ele era um bom curador, mestre Jorge, curava para todo mundo... Sabia das coisas tudo... Quando nós chegamos aqui ele já era falecido. Nos só ouvíamos falar das obras do mestre Jorge. Ainda hoje em dia... (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Por seus milagres e curas é muito comum que moradores do seringal façam promessas para Mestre Jorge quando têm alguma doença, ou quando algum parente ou afim está doente. Durante o verão em que estive no seringal, Sr. Nicolau (vide apêndice 4) foi sozinho até a colocação Ipiranga pagar uma promessa para Mestre Jorge pela cura de uma doença que havia tido no ano anterior. No caminho soltava fogos, e lá iria acender velas e rezar o terço. Há promessas feitas também para Manoel Rufino, considerado uma alma milagrosa, por mais que não tenha sido relatada nenhuma promessa específica. Sr. Antônio 44

Maciel fala desses curadores de antigamente: “esses curadores de antigamente, tinham aquelas orações velhas, aqueles livros que ensinam a reza, o velho Manoel Rufino tinha muito” (Sr. Antônio Maciel, seringal Porongaba, 09/03/2010). Parece que atualmente poucos idosos são enterrados no seringal, já que é comum, como discutiremos adiante, que em uma idade avançada os moradores mudem para a rua. O finado Raimundo Maciel (vide apêndice 6) quando faleceu, em 2008, vivia na sede do Porongaba com seu filho, Sr. Antônio Maciel, e sua nora, Dna. Zilma. Pela vontade dos filhos que viviam na cidade o finado Raimundo acabou sendo enterrado na rua, em Sena Madureira, contra a vontade de Sr. Antônio (e parece que contra a vontade do próprio finado, que queria ser enterrado no Porongaba). Sr. Antônio também relatou que quando Manoel Rufino começou a ficar doente o antigo patrão Hermes queria buscar o curador (acredito que para levá-lo para a rua, ou talvez para a margem) para tratá-lo. Mas ele não aceitou, vindo a falecer na colocação Cachoeira, onde está enterrado. As histórias do finado Raimundo Maciel e Manoel Rufino indicam que ser enterrado no próprio seringal, no seu lugar, tem um significado importante, ao menos para os mais antigos. Há três escolas no seringal Porongaba, duas localizadas na margem, nas duas sedes (sede do Santa Luzia e sede do Porongaba), e outra no centro, junto à rodagem, na colocação Cachoeira. Os moradores reclamam das precárias condições infra-estruturais da escola da sede do Porongaba, denominada Iolanda Pereira Nunes, em homenagem a uma filha do finado Hermes (esta escola foi construída por este antigo patrão). Frequentam esta escola alunos que residem tanto na margem quanto no centro do Porongaba, e também alunos da margem do seringal Curitiba; sua professora, Lidiane (vide apêndice 6), reside na colocação Pantanal, na margem. A escola do centro, mantida pelo Governo do Estado do Acre82, recebeu o nome do finado Manoel Rufino, e todos seus alunos residem em colocações no centro do Porongaba. Sua professora, Celinha, irmã de Moça (vide apêndice 2), cresceu na sede do Novo Destino e reside na própria escola. A professora da Escola Santa Luzia, localizada na sede do Santa Luzia, reside no seringal Sacado, e leciona para alunos que vivem na sede do Santa Luzia e no centro do Porongaba. Na sede do Novo Destino há uma escola, mantida pela Prefeitura Municipal de Sena Madureira83 e pelo governo do estado, denominada José Maria (uma homenagem ao finado Zé 82 Doravante denominado governo do estado. 83 Doravante denominada prefeitura. 45

Maria, pai da Moça), que atende alunos que moram na margem do Porongaba. Com exceção desta última escola que, até o verão de 2010, atendia a todas as séries do nível fundamental, as demais escolas atendem apenas até a quarta série. Na escola da sede do Novo Destino, teria início em 2010 a primeira turma de segundo grau, após uma articulação dos moradores capitaneada pela Moça e seu irmão, professor da escola, Toinho; porém, o novo professor que assumiria desistiu de lecionar no local. Além das escolas não há no seringal Porongaba nenhum outro tipo de, nos termos de Redfield (1965), “instituição centralizada”, como igrejas ou postos de saúde, localizada formalmente no seu interior. As questões de saúde eram tratadas por um casal de benzedores, Sr. Bastos e Dna. Maria – sendo ele filho do curador Manoel Rufino. Eles residiram no local até o inverno de 2010, tendo mudado-se para a rua, como mencionado. E também pela líder do processo de criação da RESEX, Moça, que é agente de saúde contratada pela prefeitura, atendendo casas das linhas do Piauí e do Pau Forte, no seringal Porongaba, e também casas do seringal Curitiba. Há uma outra agente de saúde, Bolão, residente na colocação Rancho Alegre, na margem do seringal Novo Destino, que atende casas da linha do Santa Luzia e da linha do Pau Forte. Muitas vezes, porém, os moradores do seringal tratam questões de saúde com médicos da área urbana. No seringal Novo Destino, são realizados, com uma periodicidade flutuante, encontros religiosos católicos, sempre aos domingos (um dia santo, em que não se trabalha). Elas são conduzidas por Moça, que está vinculada à Paróquia Nossa Senhora da Conceição, liderada por padre Paolino e sediada na área urbana de Sena Madureira. Os encontros reúnem moradores do próprio seringal e também da margem do Porongaba. Se, aparentemente, não há uma instituição centralizada religiosa, em termos formais, no interior do seringal Porongaba, há uma forte ligação dos moradores desse seringal com o mundo católico e com o padre Paolino Baldassari. O padre Paolino é uma importante liderança política da região dos rios Purus e Iaco, e é o responsável pela paróquia de Sena Madureira. Ele é, como veremos, o principal incentivador do processo de criação de uma RESEX na área. Os moradores do seringal participam de cursos bíblicos organizadas pela igreja e das desobrigas: visitas realizadas anualmente pelo padre ao longo do rio Iaco e ocasião de realização de batizados, casamentos, comunhões e crismas; ouvem o programa da igreja no rádio aos domingos, e realizam festas ligadas ao calendário católico (soube de festas para São Sebastião, São Francisco das Chagas, São João, e também na Semana Santa).

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E o mais importante: para alguns moradores o padre é uma segurança face às incertezas com relação às questões fundiárias e à possibilidade de extração comercial de madeira. Motivos que levaram ao início do processo de criação de uma RESEX, no qual me deterei na próxima seção. É, o padre promete que enquanto ele for vivo, que a Porongaba é da igreja, é a floresta... Uma vez o padre Paolino falou nessa Porongaba que isso é dele porque isso aqui era de uma freira. […] Eu sei que ele disse que Porongaba não podia madeireiro entrar, que ela é da igreja. Porongaba é dele, ele fala que é dele, Porongaba é dele. Por isso que eu digo, eu sempre rezo e imagino o padre, enquanto o padre for vivo talvez tá difícil pros homens entrarem, pros madeireiros entrarem. (Manoel Preto, Seringal Porongaba, em 11/03/2010).

2.3 A Reserva: proprietário, madeira e conflito Em 2004, por incentivo do padre Paolino Baldassari, foi aberto junto à superintendência do IBAMA no Acre um processo visando à criação de uma RESEX englobando seringais localizados no Médio Iaco. Todos os processos que visam à criação de uma RESEX só podem ser iniciados a partir de um pedido encaminhado por moradores de um determinado local, geralmente através de atas assinadas de forma coletiva, solicitando a criação deste tipo de unidade de conservação (BRASIL, 2000). Além deste pedido formal encaminhado pelos moradores, o processo deve contar com o que os técnicos do IBAMA e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade – ICMBio84 chamam de peças técnicas: levantamentos rápidos referentes à fauna e flora locais, e também à socioeconomia, além de um levantamento sobre a cadeia dominial (levantamento fundiário) das terras nas quais se pretende implementar a RESEX. Os processos de criação de RESEX referem-se, quase sempre, a locais que passam por conflitos de ordem fundiária, envolvendo contendas quanto ao acesso a recursos e espaços. No caso do processo de criação da RESEX do Médio Iaco a principal motivação foi a ameaça de extração comercial de madeira do seringal Porongaba, que oficialmente pertenceria a um empresário do ramo de extração madeireira, conhecido na região como Crosseta. O padre Paolino, contudo, alega que o seringal pertence a uma freira já falecida: 84 A partir de 2007, o ICMBio passou a assumir, do ponto de vista formal, todas as ações relacionadas à criação e implementação de unidades de conservação, antes sob responsabilidade do IBAMA. 47

Coronel Pessoa era dono de vários seringais e só tinha uma filha. Ela estudava aqui no Colégio Santa Juliana, e decidiu ser freira. De fato, foi uma freira e foi trabalhar em Rio de Janeiro. O pai morreu e deixou como herança para a filha o Porongaba e o Santa Luzia. […] Então, a irmã morreu. À superiora, ela mandou dizer “nós temos essa propriedade lá, é longe, nós não conhecemos nada. Então, você fica com essa propriedade e usa para a pobreza”. Então foi que eu disse aos seringueiros “vocês são donos dos seringais”. Entreguei para os seringueiros, não por escrito, nem nada. Não tem dono o seringal Porongaba […] Disse ela que queria ter entregado para os pobres, para os seringueiros. (Padre Paolino Baldassari, Sena Madureira, 01/02/2010).

Para o padre Paolino o seringal não tem dono, no sentido de um proprietário formal de suas terras. Os próprios seringueiros que vivem no Porongaba (e no Santa Luzia) seriam os verdadeiros donos do seringal. Legitimados não só pela doação da freira antes de seu falecimento, mas também pelo histórico de ocupação do lugar. É importante ressaltar que segundo o levantamento fundiário, ao qual não tive acesso, o seringal Porongaba teria um proprietário com títulos válidos. Porém, o padre Paolino já questionou publicamente a validade deste título de propriedade. É importante deixar claro que não pretendo aqui validar ou invalidar a titularidade sobre as terras do seringal Porongaba. Apenas quero indicar os conflitos que estão em jogo. Além disso, as informações que utilizo representam a visão daqueles que são meus principais interlocutores de pesquisa. Os moradores do Porongaba nunca tiveram contato com o suposto proprietário do seringal, mencionando apenas que achavam que ele morava em São Paulo. Para os moradores a existência deste proprietário teria objetivado-se por volta de 2004, quando um grupo de trabalhadores contratados por ele, todos vindos de fora do seringal, realizou um levantamento florístico para elaboração de um Plano de Manejo Florestal Sustentável – PMFS, visando à extração de madeira. Até março de 2010, no entanto, este processo estava parado. Manoel Preto, que vive com sua esposa, Fiona, e filhos na colocação Pau Forte (vide apêndice 10), comenta sobre essa época. Os posseiros dessa terra aqui [estavam] tudo nervoso. Teve deles aí que andou até ameaçando uns chumbos. E a turma, mais ou menos uns trinta peões na mata, que não estavam nervosos. Por que podia juntar o pessoal aí pra expulsar eles que eles não combatiam eles não, já que eles estavam armados na mata. […] só estavam esperando [os peões] […] chegar o verão e resistir, é só o que eles [os peões] falavam. [Falavam] que o projeto de manejo era deles e eles eram mandados, e eles não iam sair dessa mata, iam empicando mesmo e ficaram aí bem três meses [...]. Espantando caça com motor […]. (Manoel Preto, Seringal Porongaba, em 11/03/2010, grifo nosso). 48

Manoel relata a tensão entre os moradores (posseiros) do seringal e os peões que estavam realizando o levantamento florístico do PMFS, com a possibilidade de um conflito entre as partes. Segundo ele, um morador do seringal chegou até a soltar uma canoa, utilizada pelos peões, que estava ancorada na beira do Riozinho. O plano de manejo foi protocolado junto à superintendência acreana do IBAMA, em 2004, por Julio Galvane Batista, oficialmente o proprietário do seringal, de acordo com este processo. O documento incluía vinte e sete mil dos trinta mil hectares que formalmente compõem o seringal Porongaba. Após o episódio de 2004, não houve mais nenhuma movimentação no seringal Porongaba relacionada à implementação deste PMFS. Manoel Preto também relatou sua preocupação com a possibilidade de exploração madeireira comercial no seringal. Não sei não, eu imagino muito que os caras vivem aqui, que nem eu vivo aqui há onze anos, produzo criação, tenho minhas estradinhas, tiro um pouco de castanha quando chega o tempo. Nisso que eu vou vivendo, não sabe? Fica difícil pra gente se acontecer uma coisa dessas [extração de madeira]. […] eu peço a Deus que esse negócio não aconteça. Que jeito é que esses posseiros vão viver, quem mora nessas colocaçãozinha aqui? […] Como é que vai viver se chegar, invadir e tirar todas as madeiras? Deixar só os algodoeiros... Só pau que não presta mesmo, só pau de capoeira... Como é que o cara vai viver cortando alguma seringa? Porque fica só a capoeira, vai ficar só a terra. Vai ficar uma coisa triste. […] é uma coisa que, Ave maria, Ave maria, meu Deus do céu. Eu sempre peço a Deus de isso não acontecer aqui não, desse pessoal invadir aqui, de entrar com esse projeto de mentira, de manejo aí, invadir a terra […]. (Manoel Preto, Seringal Porongaba, em 11/03/2010, grifo nosso).

Os moradores do seringal, quando mencionavam sua preocupação com a possibilidade de que um projeto de corte seletivo de madeira, receavam que seu modo de vida nas colocações ficasse sob ameaça. Manoel Preto demonstra essa mesma preocupação em sua fala, ao mencionar que sua criação, suas estradas de seringa e a extração de castanha correm riscos com o empobrecimento de árvores na floresta. No final da seção anterior, a fala de Manoel Preto ressalta a importância da figura do padre Paolino para a garantia dos direitos dos posseiros sobre o seringal. Esta idéia está diretamente associada à idéia de uma proteção divina, presente na fala de Manoel (“sempre peço a Deus de isso não acontecer aqui”). E também à idéia, relatada por outros moradores, de que ninguém é dono da terra: se “Deus criou tudo, e “deixou a terra” para todos, como uma única pessoa pode ser dona? De quem essa pessoa comprou a terra? A idéia de que ninguém é dono da terra é coerente com o sistema de compra e venda de colocações 49

mencionado anteriormente, no qual o que se vende são as benfeitorias, o trabalho investido no lugar, e não a terra em si. A própria idéia de que uma freira seria a dona do seringal foi questionada certa vez por um dos moradores; o que parece estar de acordo com a idéia de que ninguém pode ser dono da terra. Em 2008, foram realizados os estudos que compõem as peças técnicas do processo de criação da RESEX do Médio Iaco. Como funcionária do IBAMA estive envolvida em parte do levantamento sócioeconômico, quando fiz minha primeira viagem pelo rio Iaco. Nesta mesma época, realizamos uma reunião no centro do Porongaba envolvendo os grupos domésticos residentes, que tinha como objetivo esclarecer dúvidas e questões relacionadas à implementação de RESEX. Anteriormente, não sei em que ano, já havia sido realizada ao menos uma reunião na margem (provavelmente no seringal Novo Destino) que deve ter envolvido moradores tanto deste seringal quanto do Porongaba; encontro este conduzido, ao que parece, pela Moça e seu irmão professor, Toinho. No inverno de 2009, retornei ao centro do seringal Porongaba, ainda como funcionária do IBAMA. O objetivo da viagem era retomar os contatos com os moradores, já que desde a finalização dos estudos técnicos, ao menos seis meses antes, não havia sido feito por parte do IBAMA nenhuma outra atividade no local. Na viagem, conversei com os chefes dos grupos domésticos sobre o processo de implementação de RESEX, buscando sanar dúvidas. Este trabalho de mobilização iria funcionar como uma preparação para as Consultas Públicas que estavam previstas para cerca de dois, três meses depois. As Consultas Públicas são a última etapa do processo de criação de uma RESEX. Previstas na lei do Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC (BRASIL, 2000), essas oitivas visam fornecer à população local e demais interessados informações sobre o processo de criação e implementação da unidade de conservação. Nas Consultas Públicas, por exemplo, são apresentados os resultados dos levantamentos técnicos que compõem o processo de criação da unidade. As Consultas Públicas para criação da RESEX do Médio Iaco ainda não foram realizadas até o momento. Tal atraso, em um certo momento, ocorreu pela existência de interesses distintos quanto à destinação da área85.

85 Entretanto, durante o processo de revisão final desta dissertação foi realizada, no final do mês de Maio de 2011, técnicos do ICMBio do Acre e de Brasília fizeram uma viagem para o Médio Rio Iaco com o intuito de realizar duas reuniões (uma na sede do Novo Destino e outra no seringal Campo Ozório) para retomar processo de criação da RESEX. 50

2.4 Viver no centro, viver na margem A divisão entre margem e centro é central na organização do seringal Porongaba. Zanoti (1979), num estudo de caso sobre um seringal no Alto Tarauacá, demonstrou que o centro constituía-se no espaço do seringueiro por excelência, em oposição à margem, associada ao patrão. Esta oposição faz sentido se considerarmos que, como vimos no capítulo 1, nunca existiu um controle total dos patrões sobre o processo de trabalho nas colocações, nem mesmo um monopólio comercial absoluto. Se o centro pode significar autonomia, por outro lado, a margem também pode constituir este espaço de menor sujeição. O´Dwyer (2003), a partir de um estudo numa área que faz parte da RESEX do Médio Juruá, demonstrou que a vida na margem, em “comunidade”, opõe-se à vida menos liberta das “colocações isoladas”, em meio à floresta. No Alto Juruá, a migração do interior da floresta para a margem implicou na diversificação das atividades, com o desenvolvimento da agricultura, resultando no aumento da autonomia das economias domésticas em meio à “crise” do mercado mundial da borracha no início do século XX (ALMEIDA et. al., 2002). Assim, apesar da organização margem – centro refletir, como mencionado na introdução, a implementação dos primeiros empreendimentos de exploração de borracha, não se trata de simples continuidade. Conforme salientou Wawnyziak (2003), a organização sócioespacial nos seringais nativos reflete a ocupação inicial pelos empreendimentos seringalistas ainda no século XIX, assim como as diversas mudanças pelas quais passou essa organização desde o estabelecimento inicial. As colocações boas de leite (de seringa) costumam estar localizadas no centro, além de serem boas de rancho (caça) e de terem menos pragas (insetos hematófagos). Em geral também são as colocações de centro as mais “sadias” (melhor disponibilidade de água potável) (IGLESIAS, 1998; PANTOJA; 2008). Já na margem o rio e seus lagos fornecem peixe o ano todo. Porém, estas não são simples características “ecológicas”, afinal não podemos resumir a dicotomia margem – centro à mera “ecologia da paisagem”. Os aspectos ditos “ecológicos” dessa oposição devem ser compreendidos não como determinismos geográficos, mas como realidades mediadas pelos “múltiplos estados sociais” (MAUSS, 2003a). Assim, o acesso desde a rua, por mais que possível por via terrestre, não é acessível

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aos grupos domésticos que não dispõem de recursos financeiros suficientes. Morar na margem passa a significar melhores condições de acesso, da perspectiva de quem vai ou vem da rua. Dna. Chica (vide apêndice 3), que viveu na margem do seringal Boa Esperança (localizado à montante no rio Iaco – vide anexo 2) antes de se mudar para o Porongaba, há cerca de trinta anos atrás, relata como foi difícil acostumar-se a vida no centro. K – E como é que foi sair da margem para ir para o centro? DC – Foi difícil. Sendo acostumada já na beira do rio. Nós saímos da margem porque era pouca estrada. Só eram três estradas, aí cansou. Nós saímos e fomos para o centro. K – Por que era difícil no centro? DC – Os transportes, tudo era difícil. De todo jeito era ruim sobre a doença, ainda era pior sobre a doença... Quando adoecia era muito difícil para vir para a margem, pra ir para a rua. (Dna. Chica, Seringal Porongaba, 08/09/2010, grifo nosso).

Como fica claro, para Dna. Chica a maior dificuldade de viver no centro, ao menos no início de sua saída da margem, era a questão do acesso à rua, especialmente no caso de algum problema de saúde. Hoje, o seringal Boa Esperança tem acesso terrestre através da mesma rodagem que cruza o seringal Porongaba. Porém, na época em que Dna. Chica lá vivia a rodagem ainda não havia sido aberta. A fala de Dna. Chica também lembra outro fator que no passado, no tempo da seringa, levava à mudança de um grupo doméstico para outra colocação: o cansaço86 das estradas de seringa. Como as estradas da colocação em que vivia seu grupo doméstico na margem do seringal Boa Esperança cansaram, eles se mudaram para o centro. Alguns autores indicam que a presença e distribuição de outros recursos além das seringueiras (como a disponibilidade de caça, áreas para agricultura, água potável), também são fatores que levam um grupo doméstico a buscar uma nova colocação (ALMEIDA, 1993; EMPERAIRE & ALMEIDA, 2002 e PANTOJA, 2008 para seringais do Alto Juruá; IGLESIAS, 1998 e ZANOTI, 1979 para seringais do Alto Tarauacá). Redes de parentesco e afinidade, fundamentais na reprodução dos grupos domésticos, acesso a redes comerciais (para escoamento da produção e aquisição de mercadorias), acesso ao ensino formal também são fatores levados em conta na escolha de um novo local de residência87. Disponibilidade de recursos na colocação, acesso a redes de parentes e afins, e acesso a redes de comercialização são fatores que caracterizam, portanto, uma boa colocação. Alguns desses fatores (basicamente os ligados às condições dos recursos existentes na 86 Diminuição da produção de borracha pelas seringueiras. 87 Cf. Iglesias (1998) e Pantoja (2008). 52

colocação), como vimos, remetem ao centro; enquanto o acesso a redes comerciais, no caso de muitos seringais e também do seringal Porongaba, remetem à margem. Já as redes de parentesco e afinidade são tecidas conforme as oportunidades e escolhas dos grupos domésticos – seja no centro, na margem, ou, como veremos na próxima seção, na rua. É preciso considerar as características de uma boa colocação como passíveis de mudanças no tempo. Vejamos o que respondeu Dna. Chica quando perguntei o que há em uma boa colocação: DC – Muita produção, não é? A gente chega, tem as coisas. Sobre a castanha, uma colocação sem castanha hoje não tem vantagem. Porque agora o lucro mais é a castanha. Todo mundo mexe mais com castanha. K – E antigamente uma colocação boa era o que? DC – A borracha. (Dna. Chica, Seringal Porongaba, 08/09/2010).

No tempo da seringa uma boa colocação era aquela boa de leite, afinal a extração de borracha era uma das principais atividades laborais desenvolvidas pelos grupos domésticos nos seringais. Hoje, a produção de castanha é, como diz Dna. Chica, o que dá mais lucro, de forma que uma boa colocação, no presente, é aquela que tem piques de castanha. Viver na margem não significa, necessariamente, uma recusa total à vida no centro, como explicita a fala de Dna. Cléo (vide apêndice 4). K – E onde é melhor morar, Dna. Cléo, no centro ou na margem? DCl – Olha, filha, eu para mim, com a idade que eu já tenho, eu acho melhor na margem. K – É? Por quê? DCl – É, eu acho melhor na margem. Porque, para mim, uma viagem daqui para o centro eu já acho difícil. Eu tenho uma dificuldade, já acho mais difícil. Aqui na margem, quando a gente, por exemplo, chega da rua, chega cansado, chega enfadado, ir para centro ainda, carregar coisa, eu acho muito difícil. E aqui não, a gente chegou já está em casa. Mas eu gosto do centro. K – É? Por quê? DCl – Porque eu acho animado. Eu acho animado, assim, a cantiga dos pássaros. Eu acho bonito, eu gosto do centro. Agora, eu não quero morar mais no centro por causa disso. Mas eu gosto do centro, eu acho legal lá. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010).

Dna. Cléo, hoje com cinquenta e sete anos, viveu grande parte da sua vida no centro do seringal Baturité (vide anexo 2), antes de se mudar para a margem do seringal Porongaba. Mesmo preferindo morar na margem, devido ao acesso à rua e à sua idade mais avançada (que torna uma viagem para o centro mais difícil), Dna. Cléo ressalta que gosta da vida no centro, que seria, segundo ela, mais animada (numa outra entrevista ela mencionou que 53

gostava de estar próximo da mata quando está no centro). O acesso ao centro pelos caminhos é mais difícil para aqueles em idade mais avançada, de maneira que, no Alto Juruá, era comum que os mais maduros mudassem do centro para colocações da margem (EMPERAIRE & ALMEIDA, 2002; PANTOJA, 2008). Dna. Cléo também havia mencionado que preferia viver na margem por causa do acesso ao ensino formal: seus filhos tinham terminado o ensino fundamental, em 2009, na escola do Novo Destino; a escola do centro do Porongaba atendia apenas até a quarta série. Entretanto, por mais que a vida no centro e a vida na margem construam-se enquanto uma dicotomia no discurso dos moradores, esses dois espaços estão estritamente interligados através de uma densa rede social. São também complementares. Os que moram na margem têm parentes e afins no centro, cujas colocações são visitadas aos domingos, ou em dias de festa, ou para realizar algum trabalho. O contrário, do centro para a margem, também é comum. Além disso, durante o inverno, baixar para a rua significa passar pela margem, onde muitas vezes se permanece dias esperando o próximo batelão rumo à cidade. Ou, durante o verão, ir para a rua significa ir para o centro, até a beira da rodagem. Há então um constante vaivém de pessoas, objetos e informações na margem – centro. Nota-se que, numa primeira vista, o que seria uma oposição, margem e centro, reorganiza-se no todo margem – centro, uma síntese, que corresponde ao viver nos seringais. Num contexto mais amplo, de seringais formados no sudoeste amazônico e da possibilidade de tanto a margem quanto o centro estabelecerem espaços de uma maior autonomia para os moradores, também podemos repensar os termos enquanto complementares e indissociáveis.

2.5 Viver no seringal, viver na rua Se o viver no centro e o viver na margem, por mais que interligados, possuem suas distinções, a vida no seringal pode ser pensada em oposição à vida no meio urbano: o viver na rua. Durante minhas estadias no seringal Porongaba era muito comum ouvir os moradores, até mesmo jovens, comentarem que preferiam viver no seringal a viver na rua. Falavam, por exemplo, do costume de viver na mata. Alguns chegando a ter tido alguma experiência no passado de viver por alguns meses ou anos na cidade, e acabando por voltar 54

para o seringal, à vida na mata. A violência na cidade era uma razão constantemente indicada. Outra alegação era que na cidade tudo era pago: no seringal há pelo menos a farinha (e, muitas vezes, arroz, feijão e legumes, todos produzidos pelas casas e destinados principalmente ao auto-consumo) e, quase sempre, o rancho, quando a caçada é exitosa. Já na rua até mesmo a farinha, componente fundamental da alimentação, tem que ser comprada. Como tudo o que se consome na rua é adquirido através da compra, uma das dificuldades apontadas pelos moradores era viver na cidade sem ter um salário, um emprego. Sr. Barrica e Dna. Eta há onze anos vivem com seus filhos na colocação Veneza, no centro do Novo Destino. Antes eles haviam passado cinco anos morando na rua: o pai de Sr. Barrica tinha mudado do seringal para a cidade de Sena Madureira, e chamou o casal para acompanhá-lo. Dna. Eta falava da dificuldade de viver na rua sem um trabalho assalariado, o que os levou a trabalhar em colônias88 próximas à cidade de Sena Madureira. O pai dele tinha ido, aí chamou ele pra ir também. Mas a gente na rua que não tem um salário fica difícil. [...] Aqui e acolá trabalhava fora, assim, nas colônias dos outros. Mas não era bom também não, cuidar só do que é dos outros. No final você saía e não levava nada, só mesmo o que você levou. (Dna. Eta, Seringal Novo Destino, 08/02/2010).

A partir da fala de Dna. Eta percebe-se um fator que torna a vida no seringal melhor: a possibilidade de construir um patrimônio próprio. Trabalhando nas colônias dos outros o grupo doméstico do Sr. Barrica e Dna. Eta não levava nada quando saía, não construía um patrimônio, o que estão fazendo na colocação onde residem atualmente. Quando chegaram na colocação Veneza, há onze anos atrás, “não tinha uma galinha, não tinha nada, nada. Hoje em dia já tem vinte cabeças de gado” (Sr. Barrica, Seringal Novo Destino, 08/02/2010). Ouvi comentários de alguns pais criticando os filhos por trabalharem de peão ou gerente em colocações de outros ou em fazendas, ao invés de investirem seu trabalho em uma colocação própria. Os jovens que declararam preferir o seringal comentavam a falta de liberdade na cidade: no seringal, tanto adultos, quanto jovens e crianças podem divertir-se nas festas; todo o grupo doméstico pode, caso deseje, ir para uma festa. Enquanto na rua as festas são espaços proibidos aos menores de idade. Uma jovem mãe que vive na rua, por exemplo, não teria a liberdade que ela tem no seringal de participar de uma festa. Vimos na seção anterior que quando um grupo doméstico decide mudar, um dos 88 Propriedades rurais de pequeno e médio porte, distintas das fazendas. 55

fatores levados em conta para escolha de uma nova colocação é a rede de parentesco na qual se insere. Segundo Dna. Eta, a mudança de seu grupo doméstico para a rua acompanhou a mudança de seu sogro, indicando que a rede de parentesco também é um importante fator no processo de mudança entre rua e seringal. O casal Lusa e Juraci (vide apêndice 5), por exemplo, residente na colocação Cachoeira, no centro do Porongaba, já havia passado alguns anos na rua, e cogitava a possibilidade de retornar para a cidade de Sena Madureira por incentivo da mãe de Juraci, que saiu do Porongaba para a rua há mais de dez anos. Uma situação comum de migração do seringal para a cidade é a de casais em idade avançada89, especialmente depois de terem aposentado-se. Este é o caso já mencionado do casal Sr. Bastos e Dna. Maria, benzedores que viviam na colocação Cachimbo. Os filhos, nesta situação, costumam providenciar a construção de uma casa de moradia na rua para seus pais. É nessa moradia que os filhos e netos que vivem no seringal irão provavelmente se hospedar quando forem para a rua. Estes grupos domésticos costumam residir em dois principais bairros da cidade de Sena Madureira: o Cristo e o Segundo Distrito; onde também residem muitos parentes e afins que saíram dos seringais do Médio Iaco no passado. No verão de 2010, o casal Dna. Cléo e Sr. Nicolau (vide apêndice 4) estavam preparando sua mudança para a rua, por mais que Dna. Cléo não goste da cidade. K – E por que vocês estão querendo ir para a rua? DCl – Por causa da escola dos meninos, não é? Que eles estão parados. K – O que a senhora está pensando disso, de morar na rua? Porque a senhora nunca morou... DCl – Não. Eu estou pensando que se acontecer, que vai ser lá e vai ser cá. Porque eu acho que, sei lá, acho que não me acostumo bem, não. Eu não gosto daquela zoada, não é? Eu não durmo despreocupada, eu tenho medo de noite, que Deus me livre, um ataque assim na casa da gente, uma coisa. Aí, eu não durmo tranqüila. E assim mesmo eu imagino se eu ia agüentar. […] É o jeito? É o jeito, mas não que eu tenha vontade. Não tenho vontade de jeito nenhum de morar na rua. […] Aí, eu penso, Karine, é a única coisa que eu tenho para dar para os meus filhos, a única herança que eu posso deixar para eles é o estudo. Não tem outra coisa que deixe para eles. Se Deus ajudar, que dê certo, que eu viva mais, e eles também, é a única coisa que eu posso deixar de valor para eles é o estudo. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010, grifo nosso).

A fala de Dna. Cléo aponta outra situação de migração comum do seringal para a rua: para que os jovens dêem continuidade aos seus estudos. As escolas do seringal, como vimos, só atendem ao ensino fundamental. Além disso, muitos pais consideram que a 89 Almeida et al. (2002) mostram que essas migrações por idade também são comuns nos seringais do Alto Juruá. 56

qualidade das escolas urbanas é superior a das escolas dos seringais. A mudança do jovem para a rua pode ocorrer junto de seu grupo doméstico ou de forma isolada. Neste último caso, a mudança do jovem se dá com apoio do grupo doméstico, que em muitos casos envia recursos financeiros para que o mesmo possa permanecer na cidade. O jovem irá residir em alguma casa ligada a rede de parentesco de seu grupo doméstico. A fala de Dna. Cléo aponta ainda que o apoio dos pais à educação dos jovens opera como uma forma de herança intergeracional, assim como observaram Pantoja et. al. (2009) em seringais do Alto Juruá. Como podemos observar, migrar para rua não significa, necessariamente, uma perda dos vínculos com o seringal de onde vieram. Esses vínculos podem manter-se de diversas formas, como as descritas acima, operando principalmente através do parentesco. Os jovens que vão estudar na cidade, além de receberem o apoio do grupo doméstico, costumam passar as férias escolares no seringal, quando se envolvem com o trabalho na colocação. No caso dos casais mais velhos, mesmo morando na rua, vimos que o patriarca pode continuar comandando a colocação, onde os filhos permanecem residindo com seus grupos domésticos, formando uma casa ampliada para além do seringal. Também é bastante comum pais idosos que vivem na rua visitarem os filhos que continuam morando no seringal. Dna. Cléo mencionava que, por achar que não iria acostumar-se à vida na cidade, iria ficar lá e cá, nas indas e vindas entre rua e seringal. Os filhos solteiros que se mudam para a cidade, e acabam por constituir sua própria casa na rua, podem continuar mantendo vínculos de trabalho com os seringais90. A migração do seringal para a rua só pode ser compreendida se, como nos propôs Sayad (1975), o local de origem e o local ao qual se destina forem entendidos enquanto uma totalidade. Emigração e imigração são caminhos de um mesmo processo. Até porque viver na rua sempre abre a possibilidade de retornar para o seringal, e vice-versa. Vimos que a área urbana de Sena Madureira é o principal, nos termos de Queiroz (1973), “centro de atração” para os moradores dos seringais Porongaba e Novo Destino, por mais que a rodagem possa conectar o seringal à cidade de Rio Branco no verão. Alguns moradores apontaram duas razões para isso: o fato deles não “conhecerem ninguém” em Rio Branco, e a maior disponibilidade de recursos monetários no inverno. Quando se desloca para a rua o morador quase sempre se hospeda na moradia de um parente ou afim. Não é na moradia de qualquer parente que é possível hospedar-se: os circuitos de reciprocidade que comportam a hospedagem não incluem todos os parentes. E a 90 Cf. capítulo 3. 57

hospedagem é uma relação crucial nos circuitos de dom e contradom no cotidiano de muitas cidades – seringais do sudoeste amazônico. Sabourin (2009) identifica a hospitalidade como uma das formas recorrentes de reciprocidade entre grupos domésticos rurais no Nordeste e Norte do Brasil, e Pantoja (2008) nos indica a importância da hospitalidade, que inclui não só a hospedagem, na construção e manutenção de vínculos sociais entre ou com grupos domésticos nos seringais do Alto Juruá. Além das redes de parentesco e afinidade que comportam a hospedagem, a sinergia entre a sazonalidade e as possibilidades de deslocamento para a rua ajudam a compreender por que é Sena Madureira, e não Rio Branco, o principal centro de atração. É no inverno, como veremos no próximo capítulo, que os grupos domésticos dispõem de mais recursos monetários, pois é o tempo de quebrar castanha. E, como mencionado, no inverno o deslocamento para a rua é possível apenas por via fluvial, não sendo factível acessar Rio Branco pela rodagem. Além disso, mesmo no verão, como citado, não existe transporte regular entre o seringal e Rio Branco. A castanha também é um elemento chave na complementariedade entre rua e seringal. Como veremos no capítulo 3, a castanha extraída é vendida, dentro dos seringais, aos intermediários de redes de comercialização que se organizam a partir da área urbana de Sena Madureira, em estreita relação com a cidade de Rio Branco. Assim, os preços de compra e venda da castanha no seringal são determinados a partir da rua. Outros produtos agroextrativistas e animais de criação também são comercializados pelos grupos domésticos dos seringais do Médio Iaco, em certos casos na cidade de Sena Madureira. No caso do Porongaba, produtos do roçado, borracha e o gado podem ser vendidos para marreteiros ou diretamente para os comércios localizados na cidade. Sendo na rua que os produtos podem ser vendidos, ou para onde os produtos vendidos são levados pelos marreteiros e demais intermediários, também é lá que grande parte dos grupos domésticos do seringal Porongaba compram as mercadorias que consomem. É comum os moradores reclamarem dos altos preços das mercadorias vendidas pelos intermediários, de maneira que a grande maioria usa os recursos gerados pela venda de produtos da colocação – especialmente a castanha – para comprar mercadorias quando baixam para a rua. As questões ligadas à saúde dos moradores dos seringais Porongaba e Novo Destino também estão estritamente ligadas à rua. Certos problemas de saúde são tratados não pelos

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benzedores, mas pelos médicos, em atendimentos na rua ou em barcos da Secretaria de Saúde da prefeitura, que uma vez ao ano sobem o rio Iaco através do projeto Saúde Itinerante, do governo estadual. Não podemos esquecer também das agentes de saúde que atuam no seringal, contratadas pela prefeitura. As mulheres, quando vão ganhar bebê, dirigem-se para a cidade, e já não se ouve falar em parteiras que ainda atuem nos seringais. Ao considerar a instituição religiosa, seringal e rua, como examinamos, combinamse de outra forma, já que é em estreita conexão com a rua – sede da paróquia sob comando do padre Paolino –, que se estabelece a comunidade católica. Quanto ao ensino formal, vimos também que rua e seringal estão em estreita relação, já que as escolas presentes no seringal são mantidas pela prefeitura e pelo governo estadual. Os moradores também mantêm relações estreitas com a rua por serem beneficiários de políticas da assistência e previdência sociais, como veremos em maior detalhe no capítulo 3. Muitas vezes um parente ou um afim que mora na rua é responsável por sacar mensalmente o recurso, utilizando o cartão do beneficiado, evitando o deslocamento mensal para a cidade (uma viagem que, além de custosa financeiramente, pode tornar-se difícil devido às dificuldades de trânsito, especialmente na transição entre inverno e verão). No vai-e-vem constante de pessoas entre a rua e o seringal, parentes e afins sempre levam e trazem notícias sobre os que estão em um lugar ou em outro, sejam recados orais ou mesmo cartas e bilhetes. Além das mensagens e alôs veiculados pela rádio. Nessa indas e vindas muitas vezes são enviadas dádivas para aqueles que vivem na rua: alimentos como castanha, produtos dos roçados, pequenos animais de criação, etc.

2.6 Considerações finais: entre limites formais e outras delimitações sociais Neste capítulo, verificamos a distribuição dos grupos domésticos e examinamos diversos aspectos da vida no seringal. O viver no seringal foi diferenciado entre viver no centro e viver na margem, por mais que centro – margem sejam partes de um mesmo todo. Vimos que no cotidiano no seringal os tempos e os espaços “ecológicos” são, como diria Mauss (2003a), transpassados pelas relações tecidas socialmente. O viver no seringal foi contraposto ao viver na rua. A partir das razões mobilizadas pelos moradores do seringal para explicar a preferência pela vida na colocação à vida na 59

cidade podemos compreender, em parte, por que tantos grupos domésticos decidiram continuar no seringal, mesmo com o descenso econômico da borracha91. Porém, também neste caso, rua – seringal são distinções de uma mesma totalidade. Partes que se conectam, como vimos, em diversos planos: pelas redes de parentesco e afinidade, incluindo as casas ampliadas que englobam grupos domésticos da rua e do seringal; pelas redes de comercialização (de produtos do seringal e de mercadorias da cidade); pelo acesso ao ensino formal; pela religião; pelas atividades laborais; pelo acesso ao sistema de saúde oficial; e pelo acesso a políticas estatais de previdência e assistência sociais. Os limites formais dos seringais resultam de processos de delimitação social que estabelecem aquela unidade enquanto uma propriedade privada, na acepção jurídica hegemônica do termo; remetem aos limites que incluem aquelas colocações que do ponto de vista burocrático fazem parte do seringal. Porém, esta unidade não nos permite compreender uma série de dinâmicas sociais nessas áreas, já que, ao longo deste capítulo, vimos que existem muitos outros limites traçados socialmente para além daqueles de caráter fundiário. Na minha própria chegada ao campo, como relatado na Introdução, percebi que a definição de uma unidade de pesquisa adequada às questões propostas não se limitaria aos limites de uma propriedade, já que não apenas o Porongaba, mas também os seringais Curitiba e Novo Destino fariam parte da pesquisa. Podemos então concluir que os limites formais dos seringais são transpassados por densas redes de relações e vinculações sociais, que em alguns casos chegam a ultrapassar uma micro-região ou micro-bacia, incluindo até mesmo a rua92. As redes de parentesco (incluindo o parentesco ritual) mobilizadas pelos grupos domésticos destacam-se nessa interação com outros limites sociais e com os diversos tempos e espaços “ecológicos”. Um parentesco que como ressaltou Pantoja (2008) é performativo, de maneira que os vínculos entre parentes constroem-se não necessariamente pela cosanguinidade, mas pela via do afeto. Geertz (1967 e 1980), em seus trabalhos sobre as aldeias balinesas, partindo de uma crítica ao reducionismo de análises tipológicas, demonstra a possibilidade de uma abordagem metodológica que considera as diferentes formas de agrupamentos presentes em uma determinada localidade. Através dos diferentes planos que constituem a sociedade balinesa, o autor analisa a estrutura e a variação de suas aldeias. Para Bailey (1971), a “vida comunitária” 91 Cf. capítulo 1. 92 Zanoti (1979) para seringais do Alto Tarauacá, e Almeida (1990 e 1993), Martini (1998), O´Dwyer (1998) e Pantoja (2008) para seringais do Alto Juruá também ressaltam a existência de extensas redes como essas. 60

pode ser encontrada em qualquer tipo de associação (formal ou informal), de maneira que um indivíduo interage com outro de diversas formas, assumindo diferentes papéis, estabelecendo o que o autor denomina “vínculos múltiplos”. A partir destes dois autores, percebe-se que os agrupamentos sociais não estão relacionados necessariamente à vizinhança espacial, como foi possível depreender da caracterização dos seringais Porongaba e Novo Destino, incluindo sua conexão com outros seringais e com a rua. Afinal, um seringal não é simplesmente um seringal. O seringal (enquanto uma propriedade privada, com limites a priori fixos e bem demarcados, reconhecidos pela burocracia estatal), quando compreendido a partir das relações sociais nele engendradas, passa a ser muito mais que um conjunto de linhas fixas e demarcadas em um mapa. Pois, além destes critérios fundiários, ele possui outros critérios de referência, como o do antigo barracão, identificado com a sua sede; e o das colocações vizinhas e aparentadas, com seus múltiplos nichos e recursos naturais, conectadas por diversas redes e sistemas sociais. Assim, o espaço ganha outros contornos e compreensões, e os sinais que demarcam os mapas podem ser re-significados pela vida que tece as diversas redes sociais.

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CAPÍTULO 3 – Reciprocidade e troca no seringal

Irei, neste último capítulo, enfocar os circuitos de troca e reciprocidade relacionados às atividades agroextrativistas desenvolvidas nas casas do seringal. As observações concentramse na minha vivência junto aos moradores do seringal Porongaba, por mais que os circuitos aqui descritos envolvam moradores de outros seringais e mesmo da rua. A inserção de cooperativas de comercialização, e também da Igreja Católica, em alguns desses circuitos também serão analisadas. Por fim vou considerar os circuitos de entrada de dinheiro no seringal relacionados às políticas públicas, afim de complementar a caracterização dos demais circuitos de troca. ____________

3.1 Quebrar castanha Os castanhais presentes no seringal dispõem-se em piques de castanha: caminhos abertos em meio à floresta, que partem de varadouros e varações ou da clareira onde se localiza(m) a(s) barraca(s). Os piques variam de forma, tamanho e número de madeiras (castanheiras). Vimos no capítulo 2 que o território de uma colocação é delimitado pela distribuição espacial das estradas de seringa. Consequentemente, os piques pertencentes a uma colocação são aqueles inseridos dentro do território considerado como parte desta colocação (vide anexos 7 e 8). Quase todas as colocações do seringal Porongaba possuem ao menos um ou dois piques de castanha. Pelos menos duas colocações da margem (Porto Artur e Sede) e uma colocação do centro (Mamoeiro) não têm nenhum pique de castanha.

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Desenho 2: uma seringueira e uma castanheira. Elaborado por Tia.

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Desenho 3: homem quebrando castanha. Elaborado por Felipe.

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Diferente das estradas de seringa, que eram referidas por nomes específicos no passado (tempo da seringa)93, os piques de castanha não costumam receber nomes. No entanto, notei que, em alguns casos, há piques que começavam a receber nomes. Como um, localizado na colocação Cachoeira, onde reside o grupo doméstico de Léo e Jorge, que era referido como Jiquitaia (nome de uma pequena formiga, cuja ferrada causa um grande incômodo). Os nomes atribuídos a estradas e piques são sempre relacionados a algum elemento de espacialidade da colocação, ou à presença de alguma característica peculiar (como, no caso deste pique, um formigueiro). Considerando que a atividade comercial de extração de castanha teve início no seringal em tempos mais recentes acredito que a ocorrência de nomeação de piques possa vir a aumentar. As atividades relacionadas ao extrativismo de castanha ocorrem no inverno, com a coleta sendo realizada nos meses de fevereiro e março, depois dos ouriços caírem. A limpeza dos piques de castanha ocorre nos meses anteriores, especialmente em janeiro (vide quadro 1, p. 44). Na floresta, o trabalho envolve duas etapas básicas: o juntar castanha e o quebrar castanha. O juntar castanha consiste em reunir os ouriços que caem das árvores em uma pilha, ou ruma, embaixo da castanheira. É feita uma varredura, procurando os ouriços entre as pequenas plantas que crescem no sub-bosque embaixo da castanheira, usando como referência o limite de projeção da copa da árvore no chão. Para auxiliar, utiliza-se um terçado para roçar, para ir limpando a área, retirando as plantas, facilitando assim não só a procura dos ouriços, mas evitando também a surpresa da aparição de cobras. O terçado também é utilizado para pegar o ouriço, fincando sua ponta no mesmo. Utiliza-se um saco de fibra (industrializado) para carregar os ouriços para a ruma, que quase sempre fica próxima ao tronco da castanheira ou próximo ao caminho do pique. Quando duas castanheiras estão próximas os ouriços podem ser reunidos em uma única ruma. Depois de reunidos os ouriços na ruma é o momento de quebrar: aqueles envolvidos no trabalho reúnem-se envolta da ruma e, com seus terçados, vão quebrando os ouriços para abri-los (apoiando-os no chão, num pequeno pedaço de madeira, ou na mão) e colocando as castanhas, com casca, dentro de um saco de fibra (fotografia 8).

93 Caretona, Caretinha, Mata Fresca, São Raimundo, Ramal, Brutinha, Dois Oito, Estrada do Campo, Igapó e São Raimundo, por exemplo, são nomes de estradas de seringa da sede do Porongaba. 65

Fotografia 8: o casal Lusa e Juraci (vide apêndice 5), acompanhado do filho Juci, quebrando os ouriços de castanha. Ao lado de cada um dos três, um saco de fibra onde são colocadas as castanhas com casca.

Essas duas etapas podem ser combinadas de diferentes formas: 1) juntam-se todos os ouriços de todos os piques de uma colocação e posteriormente quebram-se os ouriços de todos os piques; 2) juntam-se os ouriços de um único pique, e em seguida quebram-se os ouriços, repetindo essa sequência em cada pique; 3) juntam-se e quebram-se os ouriços de uma única castanheira, percorrendo todas as castanheiras de um pique. A opção por um ou outro método de trabalho está relacionada, em parte, à quantidade, tamanho e distribuição espacial dos piques de castanha. Uma casa que utiliza poucos piques pode optar, por exemplo, pelo primeiro método. Uma casa com um maior número de piques, distribuídos em diferentes partes da colocação, pode optar pelo segundo ou terceiro método. Após o ouriço ter sido quebrado, a castanha, com casca, deve ser armazenada. A primeira fase do armazenamento ocorre ainda na floresta – as castanhas são amontoadas em um paiol no meio da mata: forra-se o chão com algumas folhas de palmeira, e por cima desse forro as castanhas são colocadas, cobertas com outras folhas de palmeira (fotografia 9). Há ainda um segundo tipo de paiol em meio à floresta: as castanhas são acondicionadas em sacos de fibra, fechados com enviras94, e deixadas em cima do tronco de alguma árvore caída, ou de uma estrutura de madeira acima do chão. Em algumas casas há ainda um paiol na clareira central da colocação, feito de paxiúba, com o teto coberto de palha, para armazenar a castanha (fotografia 10). 94 Cordas feitas de cipó e fibras vegetais diversas. 66

Fotografia 9: castanha (depois de quebrada) armazenada em um paiol em meio a floresta, sobre folhas de palmeira. É comum cobrir as castanhas com outras folhas de palmeira.

Fotografia 10: paiol de paxiúba e palha, no centro do Porongaba, para armazenamento da castanha (depois de quebrada). No primeiro plano, Oscar (à direta) e seu filho Charles (à esquerda) estão descarregando a castanha trazida de um paiol em meio a floresta.

Estes serviços raramente são feitos individualmente: deles participam diversos membros da casa, dentre homens, mulheres e jovens (fotografia 11). Algumas mulheres envolvem-se tanto na tarefa de juntar quanto de quebrar castanha, enquanto outras dedicamse apenas à tarefa de juntar, devido ao grande esforço físico requerido para quebrar o ouriço. Por mais que haja participação das mulheres o trabalho quase sempre é comandado por um 67

homem, geralmente o chefe da casa. Crianças mais novas podem acompanhar a atividade, e eventualmente podem auxiliar juntando castanha. Os jovens, em muitos casos, recebem de seus pais (ou mesmo de tios) certa quantia de dinheiro como retribuição pelo trabalho realizado, sendo esses recursos destinados a gastos pessoais (geralmente a compra de roupas e outros objetos pessoais).

Fotografia 11: Pelado (à esquerda – vide apêndice 8), com seus filhos (da esquerda para direta) Neca, Pitó e Gusto em um dia de trabalho na castanha.

Geralmente, cada grupo doméstico dedica-se ao extrativismo de castanha nos piques da colocação onde vive. Como vimos no capítulo 2, também é possível que alguns grupos domésticos utilizem piques de castanha localizados em colocações, onde não há residentes. No caso de casas ampliadas dois arranjos são possíveis: 1) a coleta de castanha é realizada por membros das casas, sob o comando da liderança da casa ampliada; 2) ou faz-se uma divisão dos piques de castanha entre as diversas casas, de forma que cada grupo doméstico coleta os frutos em um ou mais piques de forma exclusiva e autônoma. No primeiro caso insere-se a casa ampliada da colocação Balança, liderada pelo grupo doméstico de Pelado e Isa (vide apêndice 8). No inverno de 2010, Gusto trabalhou com seus irmãos solteiros e com Pelado, seu pai, coletando castanha em todos os piques do Balança. No final do trabalho, o pai pretendia dar cem latas95 de castanha como pagamento pelo trabalho de Gusto. 95 Medida padrão para medição de castanha na região, correspondendo a cerca de dez quilos, quando úmida. 68

No segundo caso, temos a casa ampliada da colocação Cachoeira, liderada por Sr. Chico Feijão (vide apêndice 5). Sr. Chico dividiu os piques da colocação entre as cinco casas da seguinte forma: um pique para a casa de Maria e Biel; um pique para a casa de Jorge e Fia; um pique para a casa de Celmo e Toinha. Este último pique teria sido cedido por Celmo, no inverno de 2010, para seu cunhado Juraci, podendo ser retomado futuramente. Outros dois piques são utilizados pela casa de Sr. Chico e Dna. Luzia, sendo que um pique pertence ao Sr. Chico e outro à Dna. Luzia. Além de administrarem o dinheiro proveniente das duas aposentadorias de forma separada, o casal também utiliza os recursos financeiros provenientes de cada pique de forma independente. Os grupos domésticos de Maria e Biel e de Lusa e Juraci, no inverno de 2010, quebraram de meia nos piques de Dna. Luzia e Sr. Chico, respectivamente. Quando se quebra de meia, a venda da castanha é responsabilidade do dono da castanha, de maneira que é ele quem escolhe para quem a castanha será vendida, repassando metade do dinheiro para aqueles que trabalharam para ele. Era comum jovens e crianças coletarem a castanha que sobrava nos piques após a coleta principal realizada sob liderança do chefe da casa. Isabel e Charles, filhos de Maria e Biel (vide apêndice 5), juntaram os ouriços que haviam sido deixados para trás em algumas das castanheiras onde os membros de sua casa haviam coletado. As poucas latas que eles reuniram foram vendidas em separado, e o dinheiro recebido como pagamento dividido entre os dois. Todos os moradores sabem qual o território abarcado pela colocação na qual residem ou utilizam. Por mais que esta forma de definição de limites seja “mais vaga e imprecisa do que a noção de limites necessária à definição de uma propriedade tal como reconhecida pelo código oficial […]” (ESTERCI, 1987), ela é, de forma geral, suficiente para definir os direitos de uso sobre os recursos. Assim, cada morador sabe quais são os piques e quais são as respectivas castanheiras que fazem parte de sua casa, de maneira que a proibição de coleta em piques fora de sua própria colocação é uma regra fundamental, que se transgredida pode gerar sérios conflitos. No entanto, é importante ressaltar que tal sistema de posse e direitos não é perfeito, havendo casos em que uma casa levanta dúvidas em relação ao direito sobre uma ou mais castanheiras. Vimos no capítulo 2 que o desenho das estradas de seringa pode variar com o tempo, seja por arranjos sociais ou por mudanças na distribuição das árvores, o que também

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ocorre com os piques de castanha. Potencialmente, questionamentos sobre direitos de propriedade sobre castanheiras poderiam refletir mudanças no desenho dos piques. Inicialmente, parecia que as mudanças na importância relativa do extrativismo de castanha e de borracha para os grupos domésticos do seringal Porongaba também podiam ter reflexos nessas contendas. Por mais que o extrativismo de borracha tenha perdido importância no seringal, o território de uma colocação permanece até hoje sendo definido a partir das estradas de seringa. Esta referência reflete, por um lado, a maior importância sócioeconômica atribuída à extração de seringa no passado: remete a um tempo em que as seringueiras podiam transformar-se em motivos de disputas. Com o aumento da importância da castanha, os territórios das colocações, apesar de ainda referenciados à distribuição espacial das seringueiras, ganharam uma nova referência do ponto de vista do trabalho e da economia: as castanheiras. As contestações sobre a pertença de uma castanheira a esta ou aquela colocação poderiam então refletir tais mudanças de referenciais dos territórios abarcados pelas casas. Porém, a situação é mais complexa. Os questionamentos com relação aos direitos sobre o uso de castanheiras dos quais tomei conhecimento ocorriam em colocações na beira da rodagem. Como vimos no capítulo 2, a estrada que cruza o seringal Porongaba foi aberta na década de 1980. O território de uma colocação pode ter sido, de alguma forma, repartido pela passagem da rodagem. Assim, alguns chefes de casas tomam como base para definição dos limites da colocação a divisão gerada pela rodagem: as castanheiras localizadas de um lado da rodagem são consideradas como sendo da colocação cuja sede localiza-se neste mesmo lado – por mais que estejam inseridas, de acordo com as estradas de seringa, nos limites de uma colocação cuja sede está do outro lado da rodagem. O esquema apresentado no apêndice 11 ajuda a compreender esta mudança de referencial. Ao surgimento da rodagem sobrepõe-se a mudança da importância relativa entre borracha e castanha para a economia doméstica. A ambição sobre as castanheiras, mencionada no capítulo 2, teria sido fundamental para que houvesse esta mudança de referencial ao ser aberta a rodagem. Buscando evitar que fossem criadas questões96, tais questionamentos não eram explicitados de maneira pública. Já que esses questionamentos permaneciam em uma esfera não-pública, podemos considerar que a rodagem, ao menos com relação aos piques de castanha, estabeleceu-se como um novo referencial para definição dos territórios das colocações próximas a ela. 96 Conflitos de maior duração. 70

Apesar de grande parte das colocações terem seu(s) próprios pique(s) de castanha, há situações em que membros de uma casa do seringal Porongaba trabalham de meia, ou, em poucos casos, de diária, em outra colocação, no próprio Porongaba ou nos seringais Curitiba e Sacado (limítrofe ao Porongaba, à jusante). No caso do seringal Novo Destino, como não existem castanheiras os moradores podem trabalhar de meia ou de diária na extração de castanha em outros seringais. O trabalho de meia ou de diária na castanha envolve aquelas casas que não possuem nenhum pique, ou possuem um número de piques insuficientes para atender suas necessidades. É o caso, por exemplo, do grupo doméstico de Lusa e Juraci (apêndice 5), que até o inverno de 2009 não quebrava castanha de forma autônoma em nenhum dos piques da colocação onde reside. Nos invernos anteriores, este grupo doméstico passava uma temporada no seringal Sacado quebrando de meia para Bidó, um dos membros da família Diniz, dona deste seringal, e professor de uma escola no local. É também o caso de Biita (vide apêndices 2 e 4), residente no seringal Novo Destino, que no inverno costuma quebrar de meia com seus irmãos (moradores do Porongaba), também para Bidó, no seringal Sacado. Até mesmo um de seus irmãos que vive em Sena Madureira, Dico, costuma agregar-se ao grupo. As colocações do Porongaba onde o trabalho de meia ou de diária na castanha ocorre podem pertencer: 1) a outros grupos domésticos do próprio seringal; 2) aos donos da colocação Bacaba, Sr. Artur e Dna. Jamile (que vivem em Rio Branco). O trabalho feito para Salim, um dos compradores de castanha do rio Iaco, não recebe nome de trabalho de meia, apesar de apresentar elementos semelhantes ao deste, como veremos adiante. Quase toda a castanha extraída por uma casa é destinada à comercialização. Entretanto, uma pequena parte é sempre destinada ao consumo doméstico. Não há uma definição a priori da quantidade a ser vendida e da quantidade a ser consumida. Conforme a demanda de consumo e da disponibilidade nos paióis, a castanha com casca vai sendo levada para a barraca. O consumo restringe-se basicamente ao inverno, e ocorre principalmente na forma do leite da castanha: as castanhas são descascadas, raladas, e o leite obtido é utilizado para cozinhar carne de caça ou de algum animal de criação (como galinha e pato). No tempo da castanha, praticamente todas as refeições são preparadas com o leite. Se um visitante chega à casa e “não há nada de comida” para oferecer (o que significa ter alguma carne de caça, ou de algum animal doméstico), a esposa (ou o marido) oferece café com leite de castanha (cru), ou leite de castanha (também cru) com farinha. Quando vão para a cidade, os moradores

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costumam levar um pouco de castanha para seus parentes e afins.

3.1.1 Os patrões em tempos de castanha Salim, como vimos no capítulo 2, comprou o movimento de algumas colocações de ex-moradores dos seringais Porongaba e Curitiba. Para extrair castanha dessas áreas Salim mobiliza moradores dos seringais, como os filhos de Sr. Bastos, residentes na colocação Cachimbo, que estavam, no inverno de 2010, quebrando em uma de suas colocações no seringal Curitiba. Salim paga, nesses casos, metade do preço de compra da castanha proveniente de colocações que não pertencem a ele. Por exemplo, se ele está pagando dez reais por lata, a castanha adquirida por ele de alguém que trabalhe em uma de suas colocações vai ser paga ao preço de cinco reais a lata. Assim, por mais que não se utilize a categoria quebrar de meia no caso daqueles que quebram castanha nas colocações de Salim, do ponto de vista da transação monetária tais situações são equivalentes. Toda a organização das atividades fica a cargo dos trabalhadores envolvidos, havendo a obrigatoriedade de que vendam toda a produção de castanha para Salim. Sendo o dono da colocação ele também é o dono da castanha nela coletada. Salim reside em Rio Branco e mantém uma casa comercial na cidade de Sena Madureira. É possível vender castanha e também comprar mercadorias diretamente neste estabelecimento. Ele possui ainda um armazém no seringal Curitiba, localizado numa colocação na beira da rodagem, cujo movimento ele também comprou. Este armazém era gerenciado, no inverno de 2010, por um morador do próprio seringal Curitiba, e no verão do mesmo ano por Gusto, que passou a residir no local com sua esposa Sandra (vide apêndices 3 e 8). O armazém destina-se ao depósito de castanha a ser escoada no verão, de forma que é possível vender diretamente a castanha neste local, sendo o preço, neste caso, inferior ao pago na cidade97. É importante notar que a compra do movimento de uma colocação é um tipo especial de compra/venda de colocações. Sr. Antônio Maciel explicou por que no caso da colocação do seringal Curitiba onde fica o armazém de Salim, comprada de Conceição (um ex97 Todos os compradores e intermediários quando compram a castanha no seringal pagam um valor menor que aquele praticado na cidade, referente, em tese, aos custos de transporte. 72

morador), utiliza-se a categoria movimento. Esse movimento que eles falam do Salim é, no caso, o seguinte. Por que o Conceição ali estava tipo um patrão. […] O Conceição entrou ali como seringueiro. Ele pôs ali uma marreta, ficou como marreteiro, não é? Quer dizer, que o marreteiro hoje em dia é quase assim tipo o patrão, não é? É quem tem umas coisinhas para vender para o seringueiro [...] Então, ele estava ali tipo um patrão. Esse caso de dizer que o Salim comprou esse movimento é por que era do Conceição e ele estava quase tipo um patrãozinho do pessoal ali. Que ali é uma colocação, não é seringal aquilo ali. Seringal da Curitiba, não é? Eles dizem assim “o Salim comprou o movimento do Conceição”. Por que ele tinha uns burros, ele tinha o campo dele, a casa boa dele, ele tinha o movimento dele. Quer dizer, então ele estava assim tipo um patrão lá, o Conceição. Por isso que ele [Salim] comprou o movimento. [...] K – E se o Conceição tivesse vendido para outra família? AM – Aí, eles não iam dizer “a família comprou o movimento do Conceição”. Eles dizem do Salim porque o Salim tem dinheiro, é metido a patrão de castanha, aí eles dizem isso. Mas se fosse outro seringueiro que tivesse comprado lá para ir cortar seringa, eles não iam dizer isso: “Ah, seringueiro Fulano de Tal comprou o movimento do Conceição”. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

O uso da categoria movimento no caso de transações de compra e venda envolvendo colocações remete a elementos semelhantes àqueles mobilizados no caso da venda do movimento de um seringal98: a venda de benfeitorias, que poderiam incluir construções (a casa boa), investimentos de trabalho (o campo) e também os animais de carga (burros) que transportavam produção e mercadorias. Porém, a categoria movimento remete, como já indicado no capítulo 1, a mais do que um conjunto de benfeitorias: refere-se também a um tipo de relações de troca que envolve, por um lado, produtos provenientes do seringal (basicamente borracha e castanha) e, por outro lado, mercadorias vindas da rua. Segundo Sr. Antônio, Conceição antes era um seringueiro, e ao colocar uma marreta (ter um estoque de mercadorias para vender para outros grupos domésticos) tornou-se um marreteiro99. Ao tornar-se marreteiro, Conceição passa a ser um patrãozinho. Não um grande patrão mas um pequeno patrão, pois, como ressalta Sr. Antônio Conceição não controlava todo o seringal como o patrão de antigamente, mas apenas a sua casa. Conceição é um patrão distinto mesmo de alguns patrões de hoje, como Salim, que tem dinheiro. E, como aponta Sr. Antônio, a relação de compra e venda do movimento de uma 98 Cf. capítulo 1. 99 Almeida (1993) e Pantoja (2008) descrevem situações semelhantes no Alto Juruá, nas quais alguns grupos domésticos passam a vender mercadorias para outros. 73

colocação (assim como a compra/venda do movimento de um seringal) só pode ser estabelecida entre duas pessoas que desempenham o papel de patrão: entre duas pessoas que oferecem mercadorias em troca de castanha e borracha. Por isso, se outro grupo doméstico tivesse comprado a colocação de Conceição para nela morar e trabalhar (botando roçado, quebrando castanha, criando animais, dentre outras atividades) a categoria movimento não se aplicaria. É o papel de fornecedor de mercadorias que torna alguém um patrão, e o respectivo escoamento de produtos provenientes da colocação, principalmente castanha (mas também a borracha), como relata Dna. Chica. Patrão é a pessoa que avia a gente, sabe? A mercadoria, aquela mercadoria. A gente faz o produto, aí leva para ele, aí ele vende aquela mercadoria. Às vezes a pessoa [chefe do grupo doméstico] não tem, mas ele tem confiança de vender. É assim o patrão. (Dna. Chica, Seringal Porongaba, 08/09/2010, grifo nosso).

O patrão é aquele que avia os grupos domésticos: compra a produção de castanha e borracha, trocando-as por mercadorias ou dinheiro100. Muitas vezes o grupo doméstico não tem o produto para vender, e mesmo assim o patrão vende a mercadoria adiantada. É a existência de uma relação de confiança, como ressalta Dna. Chica, entre o patrão e o chefe da casa que possibilita a venda das mercadorias a prazo. Vemos então que a relação de troca entre o chefe da casa e o patrão é permeada também pela reciprocidade, de forma que o ato da troca em si não encerra a relação entre as partes envolvidas. ______________ Troca e reciprocidade: uma aproximação teórica Antes de prosseguir é preciso expor alguns referenciais teóricos que embasam a análise dos circuitos de troca e de reciprocidade, foco do presente capítulo. As relações marcadas pela reciprocidade envolvem não apenas bens que são materialmente úteis, mas também “bens sociais” (MAUSS, 2003). Nessas formas de interação pressupõe-se que os parceiros relativizem seu ponto de vista, com a possibilidade do surgimento de valores partilhados pelos envolvidos; não prevaleceriam valores de um nem de outro, mas sim aqueles que possam ser compartilhados por ambos (TEMPLE, 2003). Nas 100 Mesmo comerciantes da cidade que costumam vender à prazo mercadorias podem ser referidos como patrões. 74

palavras de Malinowski (1976, p. 77), a reciprocidade pressupõe um “alto grau de confiança mútua”. Como Mauss (2003) já nos mostrava em seu clássico ensaio, o dar-receber-retribuir dádivas envolve interesse e desinteresse, liberdade e obrigação. O dom não deve ser pensado sem interesse, mas sem o interesse do tipo instrumental: ele subordina os interesses instrumentais como, por exemplo, a posse (de objetos materiais e econômicos) a outros interesses (imateriais), como, por exemplo, a glória, o prestígio, o ser (CAILLÉ, 2002). Mauss também chamava atenção para o fato de que existe um intervalo temporal entre a prestação e a contra-prestação, de forma que noções como a de “termo” e “crédito” estariam presentes nessas relações (2003, p. 236). As polaridades encerradas no dom estão relacionadas a este intervalo temporal, pois, como entende Bourdieu (1996), é o espaço de tempo entre o dom e o contra-dom que permite ocultar a ambiguidade e a “dupla verdade” intrínsecas a essas relações. Relações baseadas na reciprocidade distinguem-se assim daquelas baseadas na troca (termo empregado aqui no sentido de troca mercantil, baseada na valoração monetária). O clássico ensaio maussiano já apontava esta distinção, baseado, em parte, no estudo de Malinowski sobre o “Kula” na Nova Guiné: paralelo às “trocas rituais” do “Kula”, realizavase um “comércio comum” (MALINOWSKI, 1976, p. 75). Para Temple (2003) a reciprocidade promove vínculos sociais entre sujeitos baseados em valores que não podem ser avaliados em termos materiais, o que livraria a reciprocidade de possíveis confusões com as relações de troca. Outra forma de considerar essa distinção é ver a troca como parte do mercado (um sistema bipartido), baseada na equivalência (darpagar), enquanto no sistema triangular da dádiva (dar-receber-retribuir) o bem devolvido não tem o mesmo valor do bem inicialmente dado, por se basear em uma assimetria que garante a continuidade da relação (MARTINS, 2005). Porém, a distinção entre troca e reciprocidade opera apenas enquanto uma tipificação ideal. Antes de iniciar o trabalho de campo, quando ainda me deparava com as questões iniciais do pré-projeto de pesquisa, parecia que o enfoque estaria centrado nos circuitos de reciprocidade, e os circuitos de troca operariam como um simples contraponto secundário. Na véspera de minha saída para o campo, no entanto, já percebia que reciprocidade e troca não poderiam operar como planos analíticos de importância diferenciada. Como ressalta Sabourin (2003),

a

separação

ocorre

apenas

enquanto

modelos

ideais,

podendo

gerar

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complementariedades e tensões. ______________ A partir destas considerações teóricas, vemos uma relação que, numa primeira aproximação, parecia ser marcada apenas pela troca (a venda do produto pelo patrão e a compra de mercadorias pelo chefe da casa) apresenta aspectos da reciprocidade (a confiança que de que o produto será entregue ao patrão possibilita a venda da mercadoria a prazo; e também a confiança de que o patrão terá mercadoria para fornecer). Esta venda a prazo pode envolver o adiantamento não só em mercadorias, mas também em dinheiro, numa situação de precisão101. Uma forma de reciprocidade que, no caso de Salim, envolve marcadamente uma assimetria de poder político e/ou econômico. Além de possuir uma casa comercial na rua, Salim também tem tentado eleger-se, sem sucesso, a um cargo legislativo. Nas últimas eleições municipais ele concorreu a uma vaga da Câmara de Vereadores de Sena Madureira. E, nas eleições de 2010, a uma vaga na Assembléia Legislativa do Acre (vide anexo 9). Isto lembra as situações que observaram Laraia e Da Matta (1978) no Médio Tocantins, e Teixeira (1980) no estado do Amazonas, onde o comércio da castanha também apresentava vinculações com o sistema político oficial. Além de Salim, outros dois patrões atuaram no seringal Porongaba no inverno de 2010: Oscar (vide apêndice 9) e Denis (vide apêndice 6). Vamos primeiro conhecer Oscar. Oscar nasceu no seringal Nova Olinda, localizado à montante no rio Iaco (vide anexo 2). Veio para o seringal Porongaba, trabalhar como agregado de um grupo doméstico cortando seringa, no início dos anos 1970, tendo passado, posteriormente, alguns anos em um seringal do rio Caeté102. Viveu em colocações do centro do Porongaba, tendo vindo morar na margem, na colocação Porto Artur, onde vive atualmente, há dezoito anos. Oscar conta como começou a comboiar no seringal Porongaba. Eu comecei no ano 2000. Veio aquele projeto do cara fazer financiamento, que se chamava Prodex. A gente fazia o financiamento e recebia o valor de três mil reais na época. A gente pegava uma parte em dinheiro, outra parte de mercadoria, outra parte de utensílios, motor, forno. Vinha também uma parte para o cara comprar um animal de carga, ou que fosse um burro, ou que fosse um boi. […] A COOPERIACO surgiu também nesse mesmo ano […]. Daqui pra cá, hoje nós estamos em 2010, então está com dez anos que eu trabalho de comboio. De vender, comprar. Comprando borracha, 101 Especialmente nos casos de problemas de saúde que demandam tratamento na rua. 102 Tributário do rio Iaco. 76

comprando castanha, e às vezes vendendo mercadoria. (Oscar, Seringal Porongaba, 13/09/2010, grifo nosso).

Há onze anos Oscar trabalha como comboieiro no seringal, o que implica comprar os produtos fornecidos pelos grupos domésticos (no caso a castanha, e também, em menor escala, borracha) e vender esses mesmos produtos para outro elemento das cadeias produtivas (no seu caso a COOPERIACO). O vender também se refere à venda de mercadorias para as casas, que segundo Oscar, seria eventual. Ouvi alguns comentários de que, em 2009, Oscar não tinha mercadorias para vender. No inverno e no verão de 2010, contudo, observei alguns chefes de grupos domésticos comprando mercadorias103 com Oscar, pagas com a produção de castanha ou de borracha. Atualmente o filho mais velho de Oscar, Charles (vide apêndice 9), também trabalha com ele comboiando pelo seringal (fotografia 12). No verão de 2010, Oscar e Charles contavam também com o apoio de um jovem, filho de Pajé, residente na colocação Mamoeiro, que trabalhou de diária no comboio. Além de comprar castanha do seringal Porongaba, Oscar também compra a produção de casas dos seringais Curitiba, Boa Esperança e Nova Olinda, todos à montante do Porongaba (vide anexo 2).

Fotografia 12: Oscar (à esquerda) e seu filhos Charles (montado em um animal, ao fundo) junto de seu comboio. Os animais estão carregando pranchas de borracha.

Os primeiros bois de carga que formaram o comboio de Oscar foram adquiridos com 103 Especificamente sabão em barra, óleo de cozinha, café, sal, açúcar e água sanitária. 77

recursos do Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Agroextrativismo – PRODEX. Esta política de crédito foi criada na década de 1990 e contou com recursos provenientes do Fundo Constitucional de Financiamento do Norte – FNO. Segundo Allegretti (2002), o programa era operacionalizado pelo Banco da Amazônia – BASA e fazia parte do Programa Amazônia Solidária, ligado ao Ministério do Meio Ambiente – MMA. Outros grupos domésticos do seringal Porongaba também acessaram este crédito. Oscar é um dos intermediários da COOPERIACO, referida pelos moradores do seringal Porongaba como Cooperativa. A Cooperativa foi fundada em 1999, a partir da associação de grupos domésticos agroextrativistas. Iniciou suas atividades em 2000, atendendo aos moradores dos rios Iaco, Purus, Caeté e Macauã (este último também um tributário do Iaco), tendo sua sede localizada na área urbana de Sena Madureira. Há um comércio na sede da Cooperativa, onde são vendidas mercadorias, que atende não apenas seus sócios. Como membro da Cooperativa Central de Comercialização Extrativista do Acre – COOPERACRE, a Cooperativa está inserida nas cadeias de produção de castanha, borracha e de produtos agrícolas. Através de uma parceria com a organização não-governamental World Wild Foundation Brasil – WWF Brasil está tentando inserir-se também no mercado de óleo de copaíba. A COOPERACRE, uma central de cooperativas agroextrativistas, por sua vez, é uma das principais comercializadoras de castanha no Acre, exportando o produto beneficiado para outros estados brasileiros e também pelo mercado internacional 104. Fundada em 2001, também atua nas cadeias de borracha, óleo de copaíba e polpa de frutas. Possui duas usinas de beneficiamento de castanha em funcionamento, sendo uma localizada em Rio Branco, e outra em Brasiléia (AC), município do vale do rio Acre. Além de receber apoio do governo estadual (ator fundamental no processo de criação desta central de cooperativas) participa do Programa de Aquisição de Alimentos – PAA da Companhia Nacional de Abastecimento – CONAB 105. O PAA, uma das ações do Fome Zero, envolve um instrumento denominado Compra Antecipada – CPR Alimento, que permite a antecipação do pagamento para produtores familiares pela produção, e contempla a castanha. Os preços de compra da COOPERACRE (repassados a todas as cooperativas afiliadas), que aderiu ao CPR Alimento, seguem a Política de Garantia 104 O Acre foi um dos principais produtores brasileiro de castanha em 2009, sendo responsável por 27,5% do total, e o município de Sena Madureira foi o quarto principal produtor a nível nacional (IBGE, 2009). 105 A CONAB, empresa pública vinculada ao Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento – MAPA, estabeleceu o PAA em 2003, visando a “estruturação do desenvolvimento da agricultura familiar, acionado após a etapa final do processo produtivo, no momento da comercialização” (CONAB, 2010). 78

de Preços Mínimos – PGPM, uma iniciativa federal que desde 2009 inclui a borracha e a castanha. O surgimento, nos anos 1980, e a subsequente proliferação, nos anos 1990, de cooperativas de comercialização formadas por produtores agroextrativistas no Acre estão relacionados às mobilizações sociais que levaram à criação das primeiras RESEX106. Essas cooperativas criam um cenário diferenciado daquele em que atuavam os patrões de antigamente para os grupos domésticos dos seringais. O´Dwyer (1998) demonstra como a criação de uma cooperativa no Alto Juruá, em meio aos conflitos que levaram à criação da RESEX do Alto Juruá, proporcionou aos moradores dos seringais um espaço de autonomia fundamental para a venda da borracha e a compra de mercadorias. O grande incentivador e articulador da criação da cooperativa foi o padre Paolino, juntamente com outros membros da paróquia de Sena Madureira, como o padre Heitor. A estreita relação da Cooperativa com a Igreja Católica fica clara ao visitar sua sede: no escritório da gerência há uma foto do padre Paolino. Sr. Zé Lima, presidente da Cooperativa, fala da sua fundação e sua relação com a Igreja. Naquela época, há dez anos, o produtor rural, ou seja, o próprio seringueiro, o castanheiro, naquela época, o produto dele ia para o atravessador por um preço mínimo. [...] O intermediador é que ia ganhar o dinheiro às custas do produtor. Então a gente começou a visualizar essas coisas através do incentivo da Igreja Católica, que aqui em Sena Madureira toda a vida trabalhou vendo muito essa parte do interior, vendo as necessidades tanto do agricultor quanto do seringueiro. Eu fui uma pessoa que viajei muito nos rios mais o padre Paolino. E ele me dizia: “Zé Lima, nós vamos fazer de tudo para fundar uma cooperativa para dar apoio ao seringueiro, para que o seringueiro amanhã ou depois ele seja uma pessoa reconhecida e venda o seu produto dignamente com as necessidades que for preciso, não passar pela intermediação de marreteiro, porque ele vai morrer e não vai ganhar nada, o marreteiro é quem vai sobreviver do suor que ele tem”. (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

Desde a criação da Cooperativa, Zé Lima ocupa a sua presidência. Nasceu e criou-se em um seringal do rio Macauã, tendo atuado como marreteiro quando foi morar na cidade de Sena Madureira e envolvendo-se no trabalho desenvolvido pela paróquia de Sena Madureira. A Cooperativa surgiu como uma forma dos seringueiros venderem seus produtos por melhores preços, livrando-se assim dos marreteiros, os quais, segundo Sr. Zé Lima, ganhavam dinheiro às custas do produtor. Neste sentido, Sr. Zé Lima diferencia os intermediários da Cooperativa107 dos marreteiros. 106 Cf. Allegretti (2002), Almeida et al. (2002), O´Dwyer (1998) e Pantoja (2008). 107 Além de Oscar, quatro outros intermediários atuam pela Cooperativa no rio Iaco, nos seringais Itamarati, 79

Porque o marreteiro, ele visualiza o lucro dele. E o intermediário não, ele é pago, a Cooperativa paga pela porcentagem dele, que é o quanto ele merece pela produção. É diferente, o marreteiro, se ele comprar uma lata de castanha, se ele puder comprar por dez reais para vender por vinte, ele não dispensa. E nós somos diferente, nós vemos o nosso preço lá em Rio Branco, nós botamos os nossos custos aqui. Daqui nós chegamos até lá [em um seringal] e dizemos “olha, Fulano [intermediário], nós só podemos pagar castanha desse preço aqui, aí tu paga desse preço que nós te pagamos uma porcentagem”. Essa porcentagem nós tiramos do lucro, do pequeno lucro que a Cooperativa pode ter por aquilo, está entendendo? [...] A Cooperativa aqui é diferente, aqui a gente divide as tarefas, entendeu? O que nós ganhamos por aqui, nós dividimos com o produtor e outras pessoas que trabalham com a gente. (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

Enquanto o marreteiro visa apenas o lucro, a Cooperativa avalia os custos para então definir o preço a ser pago aos produtores, como esclarece Sr. Zé Lima. A Cooperativa não visa lucro, a gente visualiza a questão de não ter perda nos preços anteriores. A gente pega, a gente viu o que foi que a gente fez, o preço que a gente pagou, o quanto gastou e tudo mais, aí a gente bota os transportes, quanto é que paga de funcionário, quanto é que paga de diária, quanto que paga de lata para subir e descer no rio, quanto é que paga para fazer embarque […]. Por exemplo, digamos que hoje a Cooperacre diga para a Cooperiaco“vocês podem pagar a castanha vinte reais” […]. A gente vai pegar esses vinte reais, botar todos os custos que ela vai ter até chegar aqui para poder a gente fazer um preço médio para o produtor. (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

Descontado os custos defini-se o preço a ser pago por lata de castanha aos produtores, a partir da orientação da COOPERACRE. Não se trata de obter lucro, como ressalta Sr. Zé Lima, mas de não ter perda nos preços anteriores, de garantir que a Cooperativa funcione sem prejuízos. De um certo tipo de lucro que a Cooperativa pode ter – distinto daquele lucro dos marreteiros, por ser um pequeno lucro – é retirada uma porcentagem paga aos intermediários da cooperativa que trabalham nos seringais, como Oscar. Vejamos um relato de Sr. Zé Lima sobre esses que fazem a ligação entre a Cooperativa e os produtores. Eles são pessoas que já moram lá, pessoas que são acostumadas também a trabalhar com a castanha, conhecem o produto, sabem do que que se trata, de compra e venda. A gente bota o dinheiro na mão dele, e ele faz lá o negócio, e a gente paga com uma porcentagem para ele. Porque também ele não ia trabalhar de graça, não é interessante. […] Todo ser humano precisa sobreviver. E isso é a meta da cooperativa, é dar a sobrevivência para todo mundo, não é? (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

A porcentagem é a forma pela qual a Cooperativa paga o serviço prestado pelos seus Oriente, Recife e Campo Ozório (vide anexo 2), todos a jusante do seringal Porongaba. 80

intermediários, de forma que cada um recebe um valor proporcional à produção de castanha (e também de borracha) que encaminhou para a Cooperativa. Neste processo, a Cooperativa diferencia-se dos demais compradores de castanha: sua missão é “dar sobrevivência para todo mundo”. Tanto os intermediários, quanto os próprios produtores. Pois, como disse Dna. Lila, gerente da Cooperativa, o “produtor é a razão da existência da COOPERIACO” (Dna Lila, Sena Madureira, 26/08/2010). Um aspecto interessante é como as categorias patrão e Cooperativa, de certa forma, misturam-se. Pois, mesmo sendo um representante da Cooperativa, alguns grupos domésticos que vendiam castanha e borracha para Oscar eventualmente se referiam a ele como patrão. O próprio Oscar esclarece por que ocorre o uso dessa categoria para referir-se a ele. Eu trabalho aqui, eu vendo a mercadoria, aí o produtor vende a borracha para mim, vende a castanha. Então assim eles costumam chamar o patrão. Então, eu sou o patrão deles. O produtor chama o patrão,“eu tenho o meu patrão”, que é aquele que o produtor vende o produto para ele e compra a mercadoria dele. Então, a gente costuma chamar patrão. (Oscar, Seringal Porongaba, 13/09/2010).

Como indica Oscar, é a relação de aviamento (compra de produtos extrativistas, e venda de mercadorias, que pode ser a prazo) estabelecida com os grupos domésticos do seringal que o caracteriza patrão. Quando questionava aqueles que vendiam seus produtos para Oscar em nenhum momento era mencionado que o comprador da castanha ou da borracha era a Cooperativa, por mais que todos soubessem que Oscar trabalhava para a Cooperativa, e que os recursos financeiros e as mercadorias que dispunha eram fornecidos pela mesma. Oscar trabalha para a Cooperativa e esta é, em tese, de uma coletividade. Oscar trabalharia, então, para todos os grupos domésticos, ou ao menos para os associados da Cooperativa. E, são necessários certos atributos para ocupar o posto de intermediário da cooperativa: o domínio mínimo da escrita; a confiança para o manuseio de uma grande quantidade de dinheiro em espécie. Oscar registra a compra e a venda de produtos (castanha e borracha) e mercadorias, controla as contas dos grupos domésticos, além de utilizar o posto que ocupa para prestar algum favor, como aparece na fala abaixo. AM – Muitos deles assim hoje em dia dizem: “o meu patrão, meu patrão, Fulano é meu patrão”. Eles dizem isso por quê? Porque é onde às vezes aqui ou acolá eles vão atrás de uma coisinha e aquela pessoa tem para arrumar para eles. DZ – Você lembra lá do Oscar? Pois é, o Oscar tem coisa para vender. AM – É o mesmo caso. 81

DZ – Aí eles ficam dizendo “o Oscar é meu patrão”... Tem um burrinho para carregar produto. AM – É nesse caso que eles ficam dizendo: “ah, Fulano é meu patrão, Fulano é meu patrão”. É nesse caso aí. KN – E se tem uma precisão? AM – É, se tem uma precisão, aí ele tem um dinheirinho até para arrumar para uma pessoa assim. (Sr. Antônio Maciel e Dna. Zilma, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

Pelos relatos de Sr. Antônio Maciel e de sua esposa, Dna. Zilma, não é só a simples compra de produtos por Oscar e a venda de mercadorias que justifica o uso da categoria patrão. A possibilidade de Oscar vender a prazo, ou fiado, as mercadorias é um elemento chave desta relação. E também a possibilidade de Oscar adiantar dinheiro em espécie em uma situação de precisão (por mais que eu não tenha observado um caso como esse envolvendo Oscar). O fato de Oscar possuir um comboio próprio também é um elemento chave. É importante, no entanto, frisar que o uso da categoria patrão pelos grupos domésticos do seringal com relação a Oscar estava relacionado a certos contextos discursivos, nos quais o assunto em pauta remetia ao processo de comercialização de castanha ou borracha. Em outras situações, Oscar era tratado como qualquer outro morador do seringal. O mesmo ocorria com Salim e o terceiro comprador de castanha108 que atuava no seringal: o uso da categoria patrão estava associado a contextos relacionados à compra e venda de castanha e borracha. Também era comum Oscar referir-se ao presidente da Cooperativa, Sr. Zé Lima, como o seu patrão. Outros moradores do seringal também consideravam Sr. Zé Lima patrão de Oscar. Afinal, era Sr. Zé Lima quem encaminhava a Oscar o dinheiro para o pagamento da produção de castanha e borracha, e também as mercadorias vendidas no seringal. Vemos que, mesmo inserido numa estrutura cooperativada, Oscar e Sr. Zé Lima faziam parte de uma cadeia de patrões109. Porém, os patrões do presente, além de distinguirem-se entre si, distinguem-se daqueles patrões de antigamente. O – Na época que era o patrão mesmo, o freguês era sujeito. Se eu era patrão aqui, se eu tivesse dez fregueses aqui, toda a produção eles só podiam vender para mim, que não podiam vender para outro. Então, eles eram sujeitos a mim. Hoje não, hoje eles são libertos, vendem para quem eles querem. K – E cada um escolhe o seu patrão? 108 Falarei dele adiante. 109 Como ocorria no passado, conforme indicaram Almeida (1993), O´Dwyer (1998) e Pantoja (2008). 82

O – É, cada um escolhe o seu patrão, vende para quem quer. E antes, não, era sujeito. Tipo assim, que aquele escravo que tinha antigamente. Não tinha uns escravos? Pois é, tinha isso assim, o produtor era tipo escravo. Que se ele morasse aqui, e eu fosse o patrão, eles eram sujeitos a mim. E aí eles não podiam vender produto para outro, só para mim. E hoje não, hoje eles estão libertos, vendem para quem eles querem. Mesmo que eles comprem de mim aqui e vendam; mas se aparecer outro, se eles quiserem eles podem vender para o outro, não tem problema. (Oscar, Seringal Porongaba, 13/09/2010).

Como vimos no capítulo 1, os patrões do tempo da seringa “mandavam em todo o seringal”, com base na legitimidade do monopólio comercial. De maneira que, no passado, os fregueses viviam em uma situação de sujeição ao patrão. Hoje, todos são libertos: não há um patrão que seja dono de todo o seringal, havendo a liberdade de vender seus produtos e comprar mercadorias para/de quem quiserem. Não há também por parte dos patrões de hoje qualquer obrigatoriedade de manutenção dos caminhos do seringal, ou das estradas de seringa, como ocorria no tempo da seringa110. O uso da categoria patrão permanece, entretanto associada a novos significados. Além de Oscar e Salim, havia outro patrão, no inverno de 2010, no seringal Porongaba: Denis (vide apêndice 6). Tendo vivido no seringal Porongaba, Denis é filho do finado Raimundo Maciel, antigo comboieiro do seringal Porongaba, tendo trabalhado junto de seu pai e irmãos nesta atividade. Atualmente, mora na cidade de Sena Madureira. No inverno de 2010, Denis possuía um batelão que transportava passageiros, castanha e mercadorias entre a área urbana de Sena Madureira e os seringais do rio Iaco, além de alguns animais de carga com os quais puxava castanha do centro para a margem. Alguns grupos domésticos, no inverno de 2010, deviam algumas latas de castanha para Denis pelo adiantamento de dinheiro e também de mercadorias. Ele é intermediário de Mazinho, um dos principais comerciantes da área urbana de Sena Madureira, e proprietário de uma fábrica de beneficiamento de castanha nesta cidade, a qual, durante o inverno de 2010, não estava funcionando111. Mazinho era deputado estadual do Acre, cujo mandato teve fim em 2010. Nas últimas eleições, sua irmã foi eleita, com seu apoio, deputada estadual do Acre.

110 Cf. capítulo 1. 111 Havia rumores de que a fábrica iria voltar a funcionar em breve, e também de que a COOPERACRE iria comprá-la. 83

3.1.2 A venda: medindo as latas e transportando a castanha Praticamente todas as casas vendem a castanha durante o inverno, entre os meses de fevereiro e abril. Nesses tempos de liberdade de comercialização o produto é pago em dinheiro, e, caso alguma mercadoria ou algum dinheiro em espécie tenha sido adiantado pelo patrão, o valor é descontado do montante de castanha produzido naquela safra. É possível, inclusive, que um grupo doméstico separe parte da castanha produzida para pagar alguma dívida com um determinado comprador e venda o restante da produção para outro comprador, que ofereça melhores condições de comercialização (que envolve não só um melhor preço, como veremos). A primeira etapa do processo de comercialização da castanha envolve o acerto da transação entre o comprador e o dono da castanha. Este acerto pode ocorrer durante a safra da castanha, nas suas diferentes fases (quando ela está sendo juntada, ou quebrada, ou mesmo depois que ela já foi completamente quebrada), ou mesmo na entressafra. Oscar, por exemplo, no verão de 2010, comentava que já estava comprando castanha do inverno seguinte, pagando adiantado pela mesma112. O acerto da venda envolve apenas um compromisso de que uma determinada quantia de castanha irá ser vendida para aquele comprador, não havendo qualquer definição do preço a ser pago de forma antecipada. Até por que o preço da castanha apresenta uma variação ao longo da safra, que reflete a disponibilidade do produto no mercado. Com exceção dos casos em que houve um adiantamento de mercadorias ou de dinheiro, este compromisso pode ser rompido antes da realização da venda de fato. Porém, tal rompimento é visto de forma negativa, já que representa a quebra de um certo comprometimento. A princípio, não ocorre negociação de preços entre o comprador da castanha e o produtor. O preço a ser pago por lata de castanha, geralmente, é informado pelo comprador no momento em que se mede a castanha, mesmo nos casos em que a castanha já estava vendida previamente. A medição é realizada apenas quando toda a castanha a ser vendida pelo grupo doméstico ou pelo membro do grupo doméstico foi quebrada (fotografia 13). .

112 Acredito que tratava-se de alguma situação de adiantamento de mercadorias ou de dinheiro em espécie. 84

Fotografia 13: em primeiro plano, Oscar, intermediário da Cooperativa (à esquerda), e Biel, dono da castanha, após medição da produção. À frente de Biel esta a lata utilizada como padrão. No segundo plano, filhos e sobrinhos de Biel que acompanharam e auxiliaram no processo.

Antes de medir a castanha, o comprador é o responsável por transportá-la, com seu comboio, desde os paióis na floresta para um local central da colocação (que pode ser o próprio paiol da casa), onde a castanha será medida. No caso de Salim, a castanha pode ser medida em seu armazém, localizado na beira da rodagem, no seringal Curitiba. A castanha é quase sempre medida na própria colocação onde foi coletada, tendo como unidade de medida a lata, sempre sob a presença de um membro masculino da casa (quase sempre seu chefe). No caso de Dna. Lusia (vide apêndice 5), que possuía seu próprio pique, vendendo sua castanha separadamente, foi seu genro, Biel, na ausência de seu marido, Sr. Chico, quem mediu sua castanha junto do comprador (Oscar). Eventualmente a esposa pode acompanhar o processo de medição, caso o chefe da casa esteja ausente. Porém, o comprador da castanha sempre buscará realizar a medição quando o chefe estiver presente, podendo, inclusive, combinar previamente o dia e o período em que irá até a colocação para realizá-la, evitando desencontros e possíveis desentendimentos quanto à quantidade de castanha a ser paga. Após a medição da castanha o comprador informa o valor a ser recebido pelo produtor (fotografia 14), em função da quantidade total de castanha produzida, e, sempre que possível, já realiza o pagamento em dinheiro (descontados eventuais adiantamentos de mercadorias ou de dinheiro em espécie). 85

Fotografia 14: Oscar (intermediário da Cooperativa) informando a Biel o valor a ser pago por sua produção de castanha.

Neste momento, também é possível que o chefe da casa adquira algumas mercadorias diretamente com o comprador de castanha; por mais que os moradores sempre reclamem dos altos preços das mercadorias vendidas pelos intermediários e dêem preferência para comprar as mercadorias na rua. Depois de medida, a castanha é então armazenada em algum paiol ou armazém, de onde pode ser transportada em batelões pelo rio Iaco para a rua. Das colocações até a margem a castanha é transportada pelo comboio do intermediário que comprou a castanha. No caso da Cooperativa, parte da produção de castanha de 2010 foi armazenada em três paióis na beira da rodagem, pertencentes a diferentes casas ou casas ampliadas do seringal Porongaba, para ser escoada durante o verão pelos caminhões da COOPERACRE diretamente para sua sede em Rio Branco. No verão, Salim também transporta ao menos parte da produção de castanha, guardada em seu armazém no seringal Curitiba. Para otimizar o processo de comercialização da castanha a Cooperativa pretendia construir um armazém no seringal Porongaba, na beira da rodagem. Com isso, deixaria de transportar por via fluvial a produção de castanha comprada por Oscar, passando a escoá-la toda no verão, pela rodagem, diminuindo custos. A castanha é o principal produto em termos de geração de recursos financeiros para as casas no seringal Porongaba. Dos trinta e dois grupos domésticos que obtive informação por observação direta ou pelo levantamento sócioeconômico do processo de criação da

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RESEX do Médio Iaco (ICMBio, 2008)113, pelo menos vinte e três tinham no quebrar castanha uma das principais fontes de recursos monetários. Destes vinte e três grupos domésticos ao menos onze tinham a produção de castanha como praticamente a única forma de geração de recursos monetários. Assim, é com os recursos gerados pela castanha que a maior parte das mercadorias consumidas pelas casas ao longo do ano é comprada. É comum que membros do grupo doméstico baixem para a cidade, no inverno, feita a venda da produção de castanha, para comprar mercadorias, fazer alguma consulta médica, ou resolver outros assuntos. No primeiro capítulo, vimos, a partir das narrativas dos moradores do seringal Porongaba, que, no tempo da seringa, a castanha não tinha valor comercial, ou o seu valor de comercialização era muito inferior ao da borracha. Segundo relato dos moradores foi por volta da segunda metade dos anos 1980 que alguns grupos domésticos começaram a vender castanha, com sua comercialização ganhando maior força no início dos anos 1990. Mas, segundo Sr. Zé Lima, presidente da Cooperativa, e os próprios moradores do seringal, foi apenas em 2004 que o preço da castanha começou a melhorar. Esta melhora, de acordo com Sr. Zé Lima, refletiu a melhoria na qualidade da produção. Manoel Preto e Fiona (vide apêndice 10) guardam algumas notas114 antigas que apontam os preços pagos por lata de castanha e por quilo de borracha. Em 2002, o preço pago por lata de castanha foi de R$ 2,00 (dois reais). Já em 2004, o preço pago por lata foi de R$ 13,00 (treze reais), e de R$ 2,00 (dois reais) por quilo de borracha. Nestes dois anos, toda a castanha e a borracha produzida por Manoel Preto e Fiona foi vendida para Bidó, que vive no seringal Sacado. Pelo relato dos moradores, Bidó teria sido o primeiro a comprar castanha no seringal Porongaba. A nota de 2004 inclui também mercadorias compradas pelo casal: bota (de borracha sintética), leite em pó, sabão em pó, óleo de cozinha, pasta de dente, sal, açúcar, tubo de pólvora, espoleta, pilha, lima, isqueiro, napa, chinelo, tubo de pólvora e balde. Alguns destes itens são utilizados na caça, enquanto outros no corte de seringa e nos roçados, além daqueles destinados ao consumo na barraca. Foi no início dos anos 2000, conforme relatado, que a Cooperativa começou a atuar no rio Iaco, e também no seringal Porongaba, e que a COOPERACRE foi fundada. Também foi nessa mesma época que o PAA foi criado, como política da CONAB, sendo que em 2004 a 113 Não estou considerando o casal Sr. Artur e Dna. Jamile, donos da colocação Bacaba, residentes em Rio Branco (vide capítulo 2). 114 Listas que indicam as mercadorias compradas e também os produtos vendidos por um grupo doméstico. O termo também é associado a listas de mercadorias a serem compradas na rua. 87

COOPERACRE acessou pela primeira vez os recursos do PAA (BRASIL, s/d) 115. Este contexto de uma estrutura de cooperativas, aliado a uma política estatal de fornecimento de recursos financeiros para a compra antecipada da produção, refletiu na melhoria do preço. Outros fatores, como o próprio aumento da demanda de mercado, também deviam estar em jogo. A castanha não só ganhou um papel central na economia das casas do seringal Porongaba, como há, inclusive, uma disputa entre os intermediários pela sua produção. Esta concorrência, que se estabelece desde a rua, tem como base os preços pagos por cada comprador, como demonstra o relato de Sr. Zé Lima. Aquilo ali é concorrência de preço. […] É um produto que ele está concorrido, digamos, eu chego aqui, você tem a castanha, eu digo “eu te pago tanto na sua castanha”, o outro chega e diz:“rapaz, eu te pago um real a mais, é tanto”. Para que a gente possa pegar, pedir preferência dessa produção, aí o que que a gente faz? Concorre o preço. Eu cheguei lá no Oscar, eu mandei ele pagar de doze reais a castanha, e ele disse: “seu Zé Lima, a castanha eu estou pagando de doze reais, e teve uma pessoa aqui que chegou aqui mandado pelo Mazinho, e aí mandou que ele chegasse lá e pagasse treze”. Por isso que eu passei a mensagem avisando para o Oscar que podia concorrer o preço que estivesse lá, para que ele não pudesse perder o produto, que era para ele chegar e pagar, e receber o produto. Ficar com o produto para nós, para não deixar que o outro comprasse. Isso aí é o sentimento de produção, entendeu? Chama-se concorrência de preço. Quando você vê isso aí, isso é porque significa que o produto está bom de mercado, está concorrido, com os preços concorridos, e todo mundo procurando o produto. Tem uma aceita de produto no mercado. (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

Mensagens via rádio, transmitidas pela Difusora Acreana de Sena Madureira, divulgavam os preços pagos tanto por comerciantes locais quanto por intermediários que circulavam pelo rio. No seringal Porongaba, durante o inverno de 2010, ouviam-se constantemente rumores entre moradores sobre os preços que seriam pagos tanto por Denis quanto por Oscar. Como relata Sr. Zé Lima, durante o inverno de 2010, ele enviava mensagens pela rádio para Oscar e outros intermediários da Cooperativa, orientando-os a acompanhar os preços pagos pelos outros compradores, acrescentando R$ 1,00 (um real) por lata de castanha. Um sinal, como ressalta o próprio Sr. Zé Lima, de que o produto tem uma boa demanda de mercado. O rádio desempenha um importante papel na comercialização da castanha. O chefe da casa, quando chega do trabalho nos piques de castanha, costuma sempre perguntar à 115 Segundo dados oficiais, o preço pago ao produtor por lata de castanha no Acre teria mais que dobrado entre os anos de 2001 e 2004 (BRASIL, s/d). 88

esposa ou a algum filho se foi veiculada alguma mensagem com o preço pago por lata. Diariamente, no tempo da castanha, o preço pago é acompanhado através do rádio. Segundo Pelado (vide apêndice 8) logo que ele chegou no seringal Porongaba, em meados dos anos 1980, a castanha era vendida a cerca de R$ 0,70 (setenta centavos) a lata. E que como os grupos domésticos não possuíam rádio não sabiam a que preço a castanha estava sendo comercializada na cidade – segundo ele a R$ 2,20 (dois reais e vinte centavos). Almeida (1993) e Zanoti (1979) demonstraram a importância do rádio na disseminação de informações sobre o preço pago pela borracha em seringais do Alto Juruá e Alto Tarauacá, respectivamente. No início de fevereiro de 2010, a lata entregue na rua chegou a valer R$ 12,00 (doze reais); e R$ 10,00 (dez reais) quando vendida no centro dos seringais Porongaba e Curitiba. No final de março do mesmo ano valia R$ 15,00 (quinze) na cidade, e R$ 13,00 (treze) no centro, sendo estes valores os melhores preços pagos nesta safra. Durante o período do inverno de 2010 em que permaneci no Porongaba, Oscar e Denis circulavam pelos varadouros negociando com os chefes das casas a compra da castanha. Havia, nitidamente, uma disputa pela produção entre os dois intermediários. E nesta disputa não só o preço a ser pago determinava o maior sucesso na aquisição da produção, até por que a diferença era geralmente de R$ 1,00 (um real). Dois outros aspectos eram centrais: a presença física do comprador no centro, e também a posse de dinheiro para o pagamento imediato, no ato da compra da castanha. Nestes dois últimos quesitos Oscar saiu-se melhor. Denis permanecia a maior parte do tempo nas viagens entre a rua e o seringal, conduzindo seu batelão. E, o mais importante: a partir de um determinado momento Oscar passou a circular pelo seringal com dinheiro em mãos, graças aos recursos obtidos pela COOPERACRE através da CONAB. E ter dinheiro em espécie para o pagamento no momento de fechar negócio, como relatou Sr. Zé Lima, é fundamental. Castanha é produto que tem que ter dinheiro. Não adianta dizer que eu vou comprar castanha se não tem dinheiro. Tem que ter dinheiro, ele é um produto que ele chega assim, na safra... Ele só tem uma safra por ano, quando ele chega na safra todo mundo corre atrás. (Sr. Zé Lima, Sena Madureira, 26/08/2010).

Os rumores eram de que Mazinho (a quem Denis estava ligado) não havia conseguido dinheiro para adiantar aos seus intermediários, e que quem vendesse a castanha

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para Denis teria que baixar com ele até Sena Madureira para receber o pagamento direto de Mazinho. O mais interessante é que Mazinho, e não a cooperativa, foi quem ditou o preço da castanha, puxando para cima o preço pago pela cooperativa116. Já no final da safra de 2010, Oscar declarava que havia comprado mais de duas mil latas de castanha, e estimava que Denis houvesse comprado cerca de duzentas latas. Se os compradores de castanha possuem suas estratégias para conseguir uma maior quantidade do produto, os produtores por sua vez demonstram certa preocupação com o momento no qual a castanha será vendida. Como há uma variação do preço pago por lata ao longo da safra, com uma tendência inicial de subida e uma queda brusca ao final, o momento em que o produtor vende a sua produção é chave na definição do preço que consegue obter por ela. Esse momento está diretamente relacionado às etapas de extração na floresta descritas anteriormente, e alguns produtores chegam a vender sua castanha quando ela nem foi quebrada ainda, estando apenas os ouriços agrupados em meio aos piques. O monitoramento do preço pago pela lata de castanha através do rádio tem um papel crucial nesse processo. O relato de Pelado (vide apêndice 8) ilustra esta dinâmica. Eu nunca vendi castanha bem vendida. Ela já chegou até dezoito reais em Sena, mas eu não peguei esse aumento. O maior preço nesse ano de dezoito reais, eu vendi de oito reais, que eu não estava com a castanha quebrada, e não queria pegar dinheiro adiantado. Eu me arrependi depois de não ter pegado dinheiro adiantado, porque o cara comprava, dava o dinheiro todinho da castanha adiantado, dezesseis reais. (Pelado, Seringal Porongaba, em 01/03/2010).

Falando do receio de que o preço pago pela lata descesse abruptamente no inverno de 2010, Pelado continuou: “eu tenho medo de ela descer assim, a gente perder todo o aumento. É por isso que eu tô juntando meio ligeiro, que eu juntando ela todinha eu me baseio”. Sua estratégia era a de juntar toda a castanha antes de começar a quebrar, pois se o preço começasse a descer ele já poderia vender antes mesmo de terminar de quebrar em todos os piques. Havia casos em que o chefe da casa, mesmo durante a safra, vendia sua castanha antes de terminar de quebrar, o que lhe possibilitava adiantar algum dinheiro ou mercadoria com o comprador da castanha.

116 Salim não divulgava o preço pago por ele via rádio, de maneira que não sei se este variou. Apenas veiculava mensagens sobre um suposto prêmio que aquele que vendesse acima de trinta latas em seu comércio na cidade receberia. 90

3.2 “Eu achava que eu não tinha esse poder”: a criação de gado no seringal Dentre as trinta e oito casas do seringal Porongaba, pelo menos vinte e oito possuem alguma cabeça de gado, com rebanhos que variavam, segundo o levantamento sócioeconômico (ICMBio, 2008), de uma a noventa e cinco cabeças. Não estou levando em conta, nesta contabilização, o grupo doméstico de Sr. Artur e Dna. Jamile, residentes em Rio Branco. O casal chegou a possuir, segundo o levantamento sócioeconômico (ICMBio, 2008), cerca de duzentas cabeças de gado, sendo a criação de bovinos e o extrativismo de castanha as principais atividades econômicas desenvolvidas nas suas colocações. Os animais são criados em pastos em volta do terreiro onde se localiza a barraca. Para formação da pastagem é bastante comum a aquisição de sementes de capim de planta em casas comerciais na cidade de Sena Madureira. Nos pastos é comum não haver nenhum tipo de árvore ou arbusto, ou, quando presentes, estes apresentam-se de forma bastante esparsa. No entanto, é comum não derrubar as castanheiras que se encontram na pastagem. A formação do pasto ocorre muitas vezes a partir de um antigo roçado: derrubada uma capoeira grossa, planta-se arroz e junto o capim; ou depois de brocar uma área de capoeira fina planta-se milho e junto o capim; ou ainda, em uma área onde era mantido um roçado, planta-se o capim depois de colhida a roça (mandioca), e/ou milho e arroz. No local onde foi plantado capim, enquanto o mesmo for manejado pelo grupo doméstico, a floresta não irá recompor-se. Os animais são criados soltos pelo pasto, e em alguns casos o grupo doméstico possui um curral grande, feito de madeira, utilizado para vacinação 117 dos animais. É comum também a construção de pequenos currais de madeira para prender, durante a noite, os filhotes em fase de amamentação: logo cedo pela manhã, um jovem da casa ordenha o leite da vaca que está amamentando, soltando o bezerro ou novilha118 logo em seguida. O leite de gado representa, segundo os próprios moradores, uma importante fonte alimentar. Vale ressaltar que, assim como observaram Pantoja et. al. (2009) em seringais do Alto Juruá, é incomum os grupos domésticos abaterem alguma cabeça de gado para alimentação (tratarei desta questão do abate de bovinos para alimentação mais adiante). O gado também é comumente utilizado como animal de carga, para transportar produtos agroextrativistas, e até mesmo para transportar pessoas (fotografia 15). 117 Que inclui vitaminas, antivirais e antibióticos. 118 Bovinos jovens. 91

Fotografia 15: os irmãos Tia e Pim (vide apêndice 3), montados um um boi, indo para a escola Manoel Rufino, no centro do Porongaba.

As cercas, feitas com madeira e arame 119, são dispostas apenas em alguns locais do pasto para impedir que os animais adentrem pelos roçados, pelas fontes de água que abastecem a barraca, ou que transitem pelos caminhos. Assim como observou Esterci (1987) entre camponeses do nordeste do Mato Grosso, este é o único tipo de cerca utilizada no seringal, já que, como vimos no capítulo 2, não existe qualquer tipo de cerca dividindo colocações. Quando o grupo doméstico não possui pasto em volta de sua própria barraca as cabeças de gado são criadas no pasto de outra casa dentro da mesma colocação. O dono dos animais é responsável apenas por entregar ao dono do pasto uma quantidade de sal, que é utilizado na complementação da alimentação dos animais. Não é preciso nenhum pagamento pelo uso da pastagem, já que a mesma é considerada como pertencente à casa ampliada. Também é possível ocorrer o aluguel de pasto, com o pagamento de uma taxa mensal pelo dono da cabeça de gado ou do animal de montaria, entre casas que não formam uma casa ampliada. Na região existem dois fazendeiros que tem o criar gado como a principal atividade econômica de suas propriedades, e com eles os moradores do seringal costumam fazer negócios envolvendo gado. Um deles é Bidó120, do seringal Sacado; o outro é Valmirá, que 119 O arame, comprado nos comércios da rua, costuma ser o material que mais encarece a atividade. 120 O mesmo que no passado comprava borracha e castanha de alguns grupos domésticos do seringal Porongaba. 92

possui uma fazenda próxima à rodovia Transacreana121. Além da possibilidade de comprar e vender cabeças para estes fazendeiros, em alguns casos os grupos domésticos criam – ao menos com Bidó – algumas vacas de meia. Neste sistema, o total de crias (bezerros ou novilhas nascidos) é repartido ao meio entre o fazendeiro e o chefe da casa. Entre os grupos domésticos do seringal ocorrem relações de compra – venda de cabeças de gado, e também a troca de animais. Podem ser trocados bezerros, evitando assim cruzamentos endogâmicos (de uma vaca com sua própria cria); ou mesmo a simples troca entre indivíduos de sexo distintos: uma fêmea por um macho, para fazer touro (macho reprodutor).

3.2.1 O caso da vaca Paula, uma jovem moradora do seringal Porongaba, vendeu uma vaca por R$ 300,00 (trezentos reais) para dois chefes de duas casas do mesmo seringal: Celmo e Chico. Como precisava ir para a cidade fazer um tratamento médico naquele inverno de 2010, a venda da vaca foi feita para levantar parte do dinheiro que custeou sua viagem (vide apêndice 12). Paula é a mais velha dos filhos de Pelado e Isa, e vive na casa de seus pais com sua filha, Rafaela (vide apêndice 8). A menina é fruto da primeira de suas duas uniões conjugais: após o término da segunda, Paula voltou a residir com seus pais. Ela recebeu a vaca, dentre outras cabeças de gado, como um dom de seu pai. Na mesma colocação reside, numa outra barraca, um filho recém-casado de Pelado e Isa, Gusto. Esta casa ampliada chegou a ter um rebanho de setenta cabeças de gado. Celmo e Chico (vide apêndices 5 e 3) residem em colocações distintas, sendo que Chico, na época, residia com seu grupo doméstico na colocação Bacaba, onde trabalhava como gerente. Como mencionado no capítulo 2, o grupo doméstico de Chico possui sua própria colocação (Campo Grande), localizada também no seringal Porongaba. Celmo e Chico parecem manter uma relação de amizade: seus grupos domésticos estavam juntos num churrasco num dia de domingo, e soube de uma saída conjunta deles para caçar. A vaca, que vivia no pasto junto à barraca de Celmo, quando morta foi repartida em duas bandas: uma ficou na casa de Celmo, enquanto a outra foi levada para a casa de Chico. 121 Era na fazenda de Valmirá que Chico e Loura (vide apêndice 3) estavam trabalhando no verão de 2010 (vide capítulo 2). 93

As respectivas esposas foram as responsáveis por retalhar cada banda. A mãe de Paula, Isa, sabendo que a vaca havia sido morta, pediu que Paula fosse até a casa de Celmo para comprar dez quilos de carne, vendida por R$ 3,00 (três reais) o quilo. Chegando lá, Toinha, esposa de Celmo, estava sozinha retalhando a vaca, e pediu que Paula a ajudasse. Além dos trinta quilos de carne que Isa havia pedido para Paula comprar, Toinha deu mais uma quantidade de carne para Paula levar. Mais de duas semanas depois, num domingo, dois filhos de Isa e Pelado – Cleiton e Pitó – iam passar pela barraca de Celmo e Toinha, e sua mãe pediu que eles perguntassem a Celmo se ele aceitava três galinhas vivas como pagamento pelos dez quilos de carne. Quando retornei ao seringal no verão, soube que Celmo aceitou o pagamento em galinhas. ______________ O caso relatado tem como elemento central uma vaca dada – recebida como um dom – herança. A Paula era mais velha, ela saiu de casa, ela casou, juntou-se com um cara, aí eu fui e dei a semente pra ela, eu dei pra ela fazer a vida dela. Eu dei uma vaca com uma bezerra, ela levou. Pra lá não se deu, aí quando ela trouxe, já trouxe parece que bem duas vacas e dois novilhos. Cinco cabeças. Se o casamento dela tivesse dado certo, ah, ela ia embora, não é? Por que eu quando me casei eu não tinha nada. E aí ela voltou pra casa de novo, trouxe o gado, e tá aí o gado dela. Na hora que ela, se algum dia, ela ainda casar ela leva pra onde ela for. (Pelado, Seringal Porongaba, em 05/03/2010, grifo nosso).

A fala de Pelado, pai de Paula, indica que, ao ser transmitido através das gerações, o gado constitui uma importante forma de patrimônio no seringal. A cabeça de gado que o pai dá para a sua filha é uma semente, é o início da criação da própria filha122, constituindo assim um importante elemento de herança, mediado quase sempre pelo idioma do parentesco 123. É muito comum que os pais que criam gado dêem alguma(s) cabeça(s) para seus filhos, tanto homens quanto mulheres. Isso pode ocorrer quando os filhos já possuem ou estão começando a formar seu próprio grupo doméstico, e mesmo quando os filhos ainda são muito jovens. Pim e Créci (vide apêndice 3), com, respectivamente, sete e oito anos, já possuíam ao menos uma 122 Esterci (1987) também registrou o uso da categoria semente como referência à matriz para o início da criação de gado. 123 Pantoja et al. (2009), a partir de seringais do Alto Juruá, também ressaltam a importância do gado enquanto herança e formação de patrimônio. 94

cabeça de gado cada um, dada pelos seus pais, Léo e Jorge. Interessante notar que, apesar do grupo doméstico de Isa e Pelado possuir uma das maiores criações do seringal, ao invés de abaterem uma cabeça de gado de seu próprio rebanho preferiram comprar carne de outro grupo doméstico para atender seu consumo. Isto demonstra que quem possui recursos para comprar carne de gado utiliza esta estratégia para conservar seu patrimônio. Além da herança, a primeira cabeça de gado também pode ser adquirida com recursos oriundos da extração de borracha, especialmente no passado, ou de castanha, em tempos mais recentes. O saldo obtido com a venda desses produtos é investido no início da criação. Assim como observaram Pantoja e colaboradores (2009) em seringais do Alto Juruá, a destinação do saldo da produção extrativista para formação do rebanho de gado demonstra a importância deste tipo de criação na formação de um patrimônio da casa. O investimento dos recursos obtidos com a borracha e a castanha é convertido em um patrimônio bovino, que pode então ser utilizado para realizar uma melhoria na casa, como a aquisição de um motor para a casa de farinha, operando como um mecanismo de “investimento em patrimônios duráveis, materiais ou não, considerados vitais para a reprodução do grupo no tempo” (PANTOJA et. al., 2009). O caso também explicita outro fator relacionado à criação de gado: quando é preciso ir para a rua para algum atendimento ou tratamento médico, o custeio de toda ou parte da viagem muitas vezes conta com o dinheiro adquirido com a venda de alguma cabeça. Quando há uma precisão como esta, o gado é, quando possível, o patrimônio acessado. Se o grupo doméstico não possui este tipo de patrimônio, o comum é que peça algum adiantamento em dinheiro para um patrão, como vimos neste mesmo capítulo. No tempo da seringa, a situação de precisão era resolvida de outra forma, como relata Sr. Antônio Maciel. É tanto que adoecia de primeiro menino, seringueiro não ia pra cidade, adoecia saía para a margem, aqui o patrão que tratava mesmo. Aplicava o medicamento e tudo. Só ia pra cidade quando era o último recurso mesmo. Hoje em dia tá tudo mais difícil, que se adoecer o cara já corre pra cidade. De primeiro do centro vinha pra margem, o patrão dava condições de buscar. “Seringueiro fulano tá doente”, colocava só o fulano. O cara pegava um burro, metia uma cela e ia diretamente. Se ele não aguentasse mais andar montado, ajuntava aquele pessoal, atirava numa rede, traziam para margem, aqui o patrão tomava de conta. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Se hoje o gado é o bem acionado no momento de precisão, no passado era o patrão 95

quem garantia o atendimento ao grupo doméstico nesses casos. Na própria sede do seringal estavam disponíveis medicamentos para atender algum morador doente. Como ressaltou Sr. Antônio, a viagem para a cidade ocorria apenas como última opção. No presente, como o atendimento realizado por agentes de saúde é voltado à prevenção, os mesmos não podem, legalmente, portar nem distribuir medicamentos aos moradores. A partir da venda da vaca por Paula, também podemos pensar as relações de gênero no seringal. As mulheres no seringal, em geral, parecem ocupar um espaço de certa submissão no interior dos grupos domésticos, já que a chefia da casa, na maioria dos casos, está a cargo do marido. Ressalto, porém, que não se trata de um domínio masculino absoluto. Pude presenciar situações que demonstram nuances das relações entre homens e mulheres no interior dos grupos domésticos (como a do marido que retornando para a barraca, vindo da medição de castanha foi prontamente questionado pela sua esposa sobre o preço pago por lata). O cuidado com as galinhas e outros animais de criação do terreiro (como patos e porcos) são responsabilidade da esposa. Os recursos obtidos com a venda de galinhas costumam ser administrados pela mulher. As galinhas e os patos também se inserem num circuito de herança intergeracional, já que as filhas costumam levar alguns desses animais consigo quando formam um laço conjugal e passam a ter sua própria casa. A posse do gado, assim como de animais de criação do terreiro, possibilitam uma forma de autonomia feminina (fotografia 16).

Fotografia 16: Lusa (vide apêndice 5) junto da única cabeça de gado (uma vaca) de seu grupo doméstico, recebida como herança de seu pai. Ela havia solicitado que eu registrasse a fotografia, num domingo, dia de passeio. 96

Observei em dois grupos domésticos (que possuíam algumas cabeças de gado) que os animais pertencentes à esposa eram mantidos em separado, de forma que esta posse representava a possibilidade da mulher vender suas cabeças de forma independente. Na semana das eleições do primeiro turno de 2010, uma dessas esposas comentava a possibilidade de vender uma cabeça para baixar para a rua: além de votar (que seria, segundo ela, um quesito para conseguir acesso ao benefício estatal do Bolsa Família), ela pretendia buscar atendimento médico. Seu marido estava aguardando o recebimento de um pagamento pela venda de borracha, e ela o pressionava para que ele fosse pegar o pagamento com o comprador. No final, seu marido acabou conseguindo o pagamento, e repassou uma parte para ela custear a viagem. O caso da vaca também aponta as fusões e sobreposições possíveis entre os circuitos de troca e de reciprocidade. Analisando o caso a partir do diagrama do apêndice 12, e do quadro 2, é possível analisar mais claramente a interação troca – reciprocidade.

Gado

Valor em dinheiro

Uma vaca

R$ 300,00 (trezentos reais)

Dez quilos de carne de vaca

R$ 30,00 (trinta reais)

Valor em galinhas

Volume de trabalho

Três galinhas vivas

X quilos de carne de vaca

Força de trabalho X

Quadro 2: equivalências entre bens envolvidos no caso da vaca.

A vaca (e a carne proveniente dela) além de valorada em dinheiro, também pode equivaler a outros animais de criação (no caso galinhas), assim como à força de trabalho. Ressalto o fato de que as galinhas, neste conjunto de equivalências, estavam vivas, tendo assim a possibilidade de constituírem matrizes para reprodução de novos indivíduos. Os dez quilos de carne de vaca são valorados em dinheiro apenas como forma de referência, já que o pagamento acabou sendo feito com galinhas. Gado e galinha, como indicado também no relato de Sr. Barrica no capítulo 2 (vide p. 55), são parte de um mesmo universo criatório. A partir das equivalências apontadas no quadro 2, começamos a perceber como a troca desdobra-se em outras possibilidades as quais não envolvem dinheiro em espécie. 97

Entre os grupos domésticos de Pelado e Isa e de Chico e Loura o dar – pagar característico da troca é claro124. Quando Paula vendeu a vaca para Chico e Celmo recebeu de Chico R$ 150,00 (cento e cinquenta reais) como metade do pagamento. Porém, quando nos voltamos para a interação entre os grupos domésticos de Pelado e Isa e Celmo e Toinha vemos que as interações são mais complexas. É certo que há uma clara distinção entre a carne de vaca comprada por Paula e a carne de vaca que a jovem recebeu em retribuição a sua ajuda para retalhar a carne. Porém em ambos os eixos há um grau de indefinição. No caso da ajuda prestada por Paula há alguma indeterminação em como ela seria retribuída por Toinha: sabia-se que a última daria uma parte da carne como pagamento ou retribuição da ajuda de Paula, mas não se sabia ao certo qual seria essa quantidade de carne. Diferente da vaca (uma unidade) comprada por Chico e Celmo, trocada por dinheiro. E também, de uma certa perspectiva, da quantidade de carne que Isa queria comprar: precisos dez quilos. Porém, mesmo a relação envolvendo a carne de vaca comprada pelo grupo doméstico de Pelado e Isa apresenta aspectos que não se encaixam de maneira tão perfeita no dar – pagar do modelo da troca. Pois, como vimos, os dez quilos de carne comprados, no valor de R$ 30,00 (trinta reais), não foram pagos no momento da compra. E nenhum acerto foi explicitamente feito acerca de como nem quando o pagamento seria feito, com a possibilidade de troca por três galinhas sendo negociada posteriormente. Este intervalo de tempo e a incerteza associada – não apenas pela distância temporal, mas pela própria indefinição da forma de pagamento – parecem características relacionadas aos mecanismos de reciprocidade.

3.2.2 O gado e o mundo dos santos O gado interpõe-se entre os moradores e os santos: para São Sebastião e para São Francisco das Chagas são feitas promessas pelos que criam gado para que seus rebanhos prosperem. E essas promessas são pagas com a realização de festejos de responsabilidade dos promesseiros, sempre envolvendo o sacrifício de uma cabeça de gado, oferecida aos participantes, moradores do próprio seringal e também de seringais mais distantes, em um 124 Vale mencionar que existe um mercado de gado na região do Médio Iaco que envolve preços distintos para novilhas (R$ 200, 00 – duzentos reais), garrotes (R$ 400,00 – quatrocentos reais), vacas (R$ 300,00 – trezentos reais) e touros (R$ 800,00 – oitocentos reais). 98

almoço ou jantar. Em janeiro de 2010, três grupos domésticos do seringal pagaram promessas para São Sebastião: dois realizaram uma novena acompanhada de almoço, e o outro realizou uma festa. Em cada caso foi sacrificada uma cabeça de gado para ser oferecida como refeição aos convidados. Duas casas, as de Pelado e Isa (vide apêndice 8), e de Manoel Preto e Fiona (vide apêndice 10) retribuíam promessas feitas para que a criação de gado prosperasse; e a terceira, de Tonhão e Ana (vide apêndice 8), pela cura da esposa, que havia tido um problema de saúde. No final de minha segunda ida ao campo, no verão, o casal Toinho e Dinha (vide apêndices 2 e 6), devoto de São Francisco das Chagas, iria realizar uma festa para o santo, que incluiria novena, campeonato de futebol e almoço. No passado, era famosa uma festa para São Sebastião realizada anualmente pelo grupo doméstico do finado Raimundo Maciel (vide apêndice 6), antigo comboieiro do seringal, com a qual muitos moradores contribuíam enviando esmolas (que incluíam animais de caça e galinhas). A esposa do finado Raimundo era uma grande devota do santo, conforme relata Dna. Zilma, sua nora. Quando aparecia uma doença assim muito grave, contagiosa, a febre amarela que deu por aí que matou muitas pessoas. E aqueles que escaparam... Que pegaram ela, ficavam mudos, ficavam surdos, ficavam tudo assim. Todos. Aí, ela [sua sogra] foi nesse tempo, se pegou com São Sebastião. Se esse santo livrasse a família dela, assim, a comunidade, ela ficava festejando. Todos os anos ela dava um almoço, convidava a vizinhança e rezava aquele terço. […] Aí, graças a Deus, acabou, a febre afastou das pessoas. E, eles, assim, graças a Deus, a gente nunca pega certas doenças que tem por aí. Aí, a gente ficou... Ela morreu, e a gente ficou com aquela festa. (Dna. Zilma, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

A sogra de Dna. Zilma, mãe de Sr. Antônio Maciel, realizava um almoço como forma de retribuir a promessa feita ao santo pela saúde não só de seu grupo doméstico, mas dos demais moradores do seringal. Como narra Dna. Zilma, o casal ainda oferece, anualmente, um almoço no dia de São Sebastião. Porém, já não são enviadas esmolas pelos outros moradores do seringal. Este universo de festas para os santos faz parte da comunidade religiosa liderada pelo padre Paolino125, como podemos concluir a partir do relato de Pelado. Fiz uma devoção pra São Sebastião. Primeiramente eu fui pra margem, no tempo o padre Paolino tava na margem, aí eu falei pra ele: “padre, por que é que o meu gado não aumenta? […] Eu fiz promessa com São Francisco, pra chegar em onze cabeças eu matar uma, mas não aumenta”. Aí o padre 125 Cf. capítulo 2. 99

foi e disse: “eu vou benzer uma água e vou lhe dar, e você chega lá, vai despejar nos quatro cantos do campo, e na cocheira onde eles comem sal, e você troque de touro” – porque eu já tinha touro. Aí eu fiz isso. […] Graças a Deus, daí pra cá desembaraçou mesmo, foi só aumentando, aumentando […]. Já chegou até a setenta cabeças […] Mas, graças a Deus, daí pra cá não teve mais embaraço não. […] Todos os anos eu mato um boi. Às vezes, passa de dois em dois anos eu mato, aí eu faço almoço e dou pra todo mundo almoçar […]. Aí eu fui e abandonei São Francisco, por que o padre disse que o São Francisco não era protetor do gado, e que são Sebastião era. (Pelado, Seringal Porongaba, em 01/03/2010, grifo nosso).

Mesmo com a promessa para São Francisco das Chagas, o rebanho de Pelado e Isa não prosperava. Sob orientação do padre Paolino, e, munido da água benzida pelo mesmo, Pelado trocou seu touro, e passou a direcionar sua promessa para São Sebastião. Seu rebanho começou a prosperar, e, como forma de pagamento da promessa, o grupo doméstico anualmente oferece para os demais moradores do seringal um almoço com a carne do gado sacrificado. Esses festejos operam não apenas como uma forma de reciprocidade com os santos, mas também como um tipo de reciprocidade partilhada com todos os demais grupos domésticos do seringal. A partilha-banquete que, como no “potlatch” 126, opera como um certo diferenciador de status, conforme veremos a seguir.

3.2.3 Da queda da seringa ao gado como sinal de status Com a desestruturação do sistema que sustentava os seringais empresa, reflexo do descenso econômico da borracha, o gado teria surgido como uma nova opção, conforme relata Sr. Antônio Maciel. O que desanimou os seringueiros foi o preço da borracha. Viram que não dava mais nada, aí inventaram o negócio do gado, não é? Criar gado. E a borracha não dava mais nada, aí tinha que partir pra outra coisa. Aí o bezerro, bezerro agora dá dinheiro. Aí o cara foi deixando, brocando os matinho, plantando um capinzinho, comprando uma vaca, e a borracha até hoje ela está num bom dinheiro, mas não pro seringueiro. (Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 09/03/2010).

Por mais que haja uma relação entre a desestruturação dos seringais empresa e a ampliação do desenvolvimento de atividades agropecuárias pelos grupos domésticos, o aumento da presença do gado nessas áreas não pode ser resumido a perda de importância da 126 Cf. Mauss (2003). 100

borracha para as economias domésticas (PANTOJA et. al., 2009). Vários outros elementos estão, como vimos nesta seção, associados ao criar gado. A capitalização por parte dos grupos domésticos nos seringais foi materializada sob a forma de um patrimônio em cabeças de gado, com boa liquidez (já que existe um consolidado mercado de bovinos na região) e passível de ser transmitido entre gerações. Tal capitalização, suponho, foi possível, em primeiro lugar, graças a autonomia econômica e política com o fim da sujeição vivida no tempo da seringa127. Porém, a maior disponibilidade de recursos monetários nas mãos dos grupos domésticos pode refletir também a maior presença de políticas estatais na região (PANTOJA et. al., 2009). Dentre essas políticas refiro-me não apenas ao acesso a aposentadorias e benefícios como o Bolsa Família, mas também à melhoria do preço da castanha com a criação de um sistema de cooperativas (sob apoio governamental), e sua inclusão na PGPM e no mecanismo de compra antecipada da produção (CPR Alimento) implantada pela CONAB. Com o aumento do capital possuído pelos grupos domésticos era necessária alguma forma de investimento, e o gado apresentou-se como a única alternativa disponível dentro da matriz econômica das casas (PANTOJA et. al., 2009). Esta perspectiva nos leva ao polêmico debate sobre a presença de gado em seringais que hoje fazem parte de RESEX florestais 128. Como parte do SNUC (BRASIL, 2000) as RESEX devem cumprir seu papel de “conservação ambiental”, e a pecuária estaria na contramão do papel “ecológico” desta categoria de unidade de conservação. Sem contar que o surgimento do modelo das RESEX está estritamente relacionado à oposição que o movimento seringueiro, em uma aliança com o movimento ambientalista, fez à expansão da pecuária como agronegócio no leste acreano (ALLEGRETTI, 2002). Para além da discussão sobre a conformidade ou não da presença de gado em RESEX, o fato é que o gado representa, hoje, praticamente a única forma de transformação de capital em patrimônio disponível para os grupos domésticos nos seringais acreanos. E, por tratar-se de um tipo de investimento, o gado acaba operando como sinal de prosperidade do desenvolvimento do grupo doméstico. Pelado, ao mencionar a vaca dada como uma dádiva – herança, em uma entrevista citada anteriormente, opõe a situação da filha à sua própria situação, pois quando se casou “não tinha nada”. Sr. Barrica, em entrevista citada no capítulo 2 (p. 55), contrapunha a situação em que chegou na colocação Veneza, em que “não tinha 127 Cf. capítulo 1. 128 Cf. Pantoja et al. (op. cit.). 101

uma galinha, não tinha nada”, a um presente em que já possui “vinte cabeças de gado”. Se o gado opera como sinal de prosperidade dos grupos domésticos, o criar gado transforma-se em um sinal de status no seringal129. O relato de Pelado aponta claramente para esta distinção gerada pelo gado. K – Por que essa vontade de criar gado? P – Ah, eu achava que eu não tinha nem esse poder de chegar assim e criar uma vaca, duas vacas, eu achava que eu não tinha esse poder, de criar. Mas tudo é ilusão da gente, a gente cria e, a gente trabalhando com fé em Deus, a gente ganha as coisas. Só que é sofrido, mas ganha. (Pelado, Seringal Porongaba, em 01/03/2010, grifo nosso).

Uma diferenciação de status que está legitimada pela vontade divina, já que à ventura dos rebanhos associa-se a devoção católica. Se a posse do gado é um sinal de prosperidade do grupo doméstico a partilha com os demais grupos domésticos pode também ser visto como sinal deste poder. Conforme nos demonstraram Malinowski (1976) e Mauss (2003), a generosidade é um sinal de riqueza, já que o dar dádivas só é possível àquele que as possui. Neste contexto do gado como sinal de prosperidade e status, Pantoja e colaboradores (2009) ressaltam o valor estético atribuído por moradores de seringais do Alto Juruá aos campos abertos, em estreita ligação com a referência regional de sucesso econômico e político: as fazendas. Também percebi esta valoração estética do pasto pelos moradores do seringal Porongaba, que comentavam como era bonito um grande campo aberto. A esta preferência algumas mulheres também associavam a segurança do campo em oposição à floresta, pois, segundo elas, uma barraca próxima à mata deixaria esposa e crianças vulneráveis ao ataque de uma onça, por exemplo. Há ainda outro aspecto estético relacionado ao gado. Durante minhas estadias no seringal costumava tirar muitas fotografias dos moradores (e os presenteava com algumas delas na viagem seguinte), de forma que muitas vezes eles pediam para que eu registrasse algumas cenas. Pelos jovens era recorrente o pedido para que tirasse uma fotografia dos meninos e rapazes e das meninas e moças montados em um animal. Alguns grupos domésticos do seringal Porongaba possuem animais de montaria (cavalos e burros), e a foto era tirada com um desses animais (fotografia 17). Porém, se o grupo doméstico não possuía um animal de montaria a foto era tirada em um boi de carga (fotografias 18 e 19).

129 Pantoja et al. (op. cit.) apontavam esta mesma distinção nos seringais do Alto Juruá. 102

Fotografia 17: Paula (vide apêndice 8) montada em seu burro. Ela havia vestido uma roupa de passeio para que a fotografia fosse registrada.

Fotografia 18: Neca (vide apêndice 8) montada em seu boi.

103

Fotografia 19: meninos da colocação Cachoeira montados em bezerros. É comum os meninos montarem em bovinos jovens para amansá-los, acostumando-os a carregarem pessoas e produtos.

Não sei se essa apreciação de uma estética fotográfica relacionada à montaria inserese num modelo cultural estruturado a partir da figura do “cowboy”. Mas, ao menos quanto à música consumida pelos jovens do seringal, a “sertaneja” (com sua estética visual baseada no “cowboy”) é certamente uma das mais ouvidas no rádio e nas festas. Porém, ao menos a partir do discurso dos adultos, fica claro que o fato do gado operar como sinal de status, e mesmo a valoração estética associada a esta atividade, não significa que o ideal de desenvolvimento dos grupos domésticos do seringal seja transformarse em fazendeiros. Os moradores costumavam diferenciar a pecuária desenvolvida pelos grupos domésticos do seringal daquela dos fazendeiros, como podemos depreender a partir do relato de Pelado. Broca para ali um ano, já no outro ano não broca ali, já muda o roçado, muda pra acolá. Aí quando tira daqui, se acaba lá, a mata sobe de novo. Quando tira de lá já broca noutro canto, e é assim, não tem canto certo assim. Hoje a gente broca sempre um campozinho assim, um pedacinho, mas é pouco. Nós aqui não destruímos a mata, quem destrói a mata são os fazendeiros. […] Agora se fosse um cara que pudesse... Um fazendeiro, brocar cem alqueires num ano, agora aí acaba com a terra. Eu estou com vinte anos aqui, não matei nenhuma estrada [de seringa], eu broco só onde não tem castanheira, onde não tem madeira [castanheira ou seringueira]. Por que eu não vou prejudicar as castanheiras, que é de que a gente vive. O meio de vida da gente. (Pelado, Seringal Porongaba, 01/03/2010).

Pelado relata, no início da citação, o sistema de agricultura de pousio: em um 104

determinado ano o roçado é plantado em uma área; no ano seguinte esta área pode ser deixada sob descanso, com a floresta recompondo-se, enquanto o novo roçado é plantado em outro local. As áreas transformadas em campo pelos grupos domésticos do seringal, segundo Pelado, são pequenas, de maneira que a mata não seria destruída. Neste ponto estaria a diferença fundamental com relação aos fazendeiros: enquanto a pecuária desenvolvida por estes últimos destrói a mata, por desmatar grandes extensões de terra, a criação de bovinos praticada pelos grupos domésticos do seringal não representaria uma ameaça à floresta. Uma outra distinção também é feita: como a casas do seringal tem na castanha (e não no gado) o principal meio de vida, há um cuidado para que não se derrube as castanheiras. Mesmo as seringueiras, que no presente não constituem um meio de vida como no passado, não são derrubadas, por representarem um recurso em potencial ou mesmo por que ainda são utilizadas por alguns grupos domésticos130.

3.3 Os roçados e as diferentes formas de trabalho e cooperação Foram mencionadas as relações de trabalho presentes no extrativismo de castanha, envolvendo o trabalho de meia e mesmo de diária. Formas de cooperação no trabalho no interior de casas ampliadas foram tratadas no capítulo 2. Na presente seção, pretendo explorar as relações de trabalho e cooperação envolvendo as casas do seringal Porongaba (especialmente entre estas casas) destinadas à agricultura que não foram abordadas até o momento. Algumas formas de trabalho voltadas à criação de gado também serão mencionadas. ____________ Entre as casas dos seringais é bastante comum a troca de dia em trabalhos ligados aos roçados. No inverno, a troca de dia é muito utilizada para apanhar arroz. Soube deste tipo de relação entre casas do próprio seringal Porongaba, entre casas do seringal Novo Destino e entre uma casa do Novo Destino e uma casa do Porongaba. Estas relações geralmente ocorrem entre casas ligadas pelo parentesco. No verão, a troca de dia está voltada à abertura 130 De trinta e oito grupos domésticos do seringal Porongaba, ao menos dezessete comercializaram borracha em 2008 (IMCBio, 2008). 105

de áreas para o plantio de roçados, especialmente a broca. A troca de dia pode ocorrer ainda na abertura de estradas de seringa131, e também na construção de moradias. Os dias de trabalho trocados podem estar relacionados a atividades distintas: um dia de trabalho no roçado pode ser trocado por um dia de trabalho de limpeza de estrada de seringa. No verão também é comum o trabalho de diária entre as casas para a derrubada de roçados. Algumas casas do seringal Porongaba possuem moto-serra, e seus chefes costumam trabalhar de diária para outros grupos domésticos do próprio seringal, e também de outros seringais, derrubando para o plantio de roçados. Enquanto a diária de foice custava, em 2010, de R$ 18,00 (dezoito reais) a R$ 20,00 (vinte reais), a diária de moto-serra custava entre R$ 70,00 (setenta reais) e R$ 80,00 (oitenta reais). O pagamento, em ambos os casos, costuma ser feito com dinheiro em espécie. Além do trabalho de diária em atividades ligadas ao roçado, também é comum o trabalho de empeleita: trabalhadores de um mesmo grupo doméstico (geralmente homens, mas podem participar também mulheres) executam uma tarefa (quase sempre a broca de uma determinada área) e recebem um valor monetário fixo pela execução da mesma. Diferente do trabalho de diária, que fixa um valor a ser pago por dia de trabalho, no trabalho de empeleita não há um prazo temporal fixado para realização da tarefa, conforme relata Oscar. É diferente da diária, porque na diária ele vai ganhar vinte reais por dia. Se ele trabalha trinta dias, então ele ganhou trinta diárias. E na empeleita é só aquele tanto, se for trezentos contos, é trezentos contos. Aí ele pode gastar o tanto de tempo que gastar, ele só ganha os trezentos contos. (Oscar, Seringal Porongaba, 13/09/2010).

O preço pago na empeleita costuma ser de R$ 300,00 (trezentos reais) por alqueire, e o trabalho pode ser realizado para outras casas do seringal Porongaba, ou em outro seringal. É comum o chefe do grupo doméstico repassar uma parte do pagamento para os jovens, que costuma ser utilizado para aquisição de roupas e outros objetos pessoais. A esposa, quando participa da empeleita, também pode receber parte do dinheiro, que é gasto com artigos pessoais para ela e os filhos, enquanto a compra de mercadorias é de responsabilidade do chefe da casa. Tanto o trabalho de diária para broca ou derrubada quanto o de empeleita são realizados por alguns grupos domésticos no seringal Sacado para Bidó, que tem a pecuária como uma de suas principais atividades econômicas. 131 Emperaire e Almeida (2002) mencionam a ocorrência de troca de dias de trabalho para abertura de estradas de seringa no Alto Juruá. 106

Em algumas casas e casas ampliadas os homens, incluindo jovens, podem trabalhar como peão em fazendas: uma forma de trabalho, com pagamento em diária, que costuma ter um caráter mais prolongado132. O trabalho de peão é um trabalho braçal, assim como os trabalhos de diária e de empeleita. Porém, o trabalho de peão é um tipo de trabalho braçal que se diferencia dos demais justamente por estabelecer-se em uma fazenda, ou mesmo em uma colocação, na qual a pecuária é uma das principais atividades. Assim, o trabalho de peão é voltado principalmente à criação de gado. Parece que, na maior parte das vezes, o trabalho de peão, assim como os trabalhos braçais estabelecidos entre as casas do seringal, é parte da ou complementar à dinâmica de organização do trabalho familiar, já que há um esforço em compatibilizar essas forma de trabalho com as atividades desenvolvidas na casa. Uma estratégia para esta compatibilização é a seguinte: nos meses de junho e julho (início do verão) é que os homens da casa costumam trabalhar fora, para nos meses de agosto e setembro trabalharem na casa. Os meses de agosto e setembro representam o limite para o preparo das áreas para botar roçado, pois logo em seguida costumam cair as primeiras chuvas. Conforme indicou Woortmann (1988), o trabalho remunerado fora da unidade doméstica e o trabalho no interior da unidade doméstica não são necessariamente antinômicos. Pois, como observaram Garcia Jr. e Heredia (1971) entre camponeses nordestinos, o trabalho remunerado fora da unidade doméstica pode ser empregado de forma secundária. Uma forma de cooperação comum entre casas de uma mesma casa ampliada é na fabricação de farinha. Uma mesma casa ampliada costuma ter uma única casa de farinha (por mais que em uma casa ampliada, na colocação Cachoeira, houvesse mais de uma). Em certos casos, membros de mais de uma casa participam do processo de feitura da farinha; no final, o chefe da casa que comandou o processo costuma dar uma parte da farinha produzida para as casas envolvidas. O combustível utilizado no motor da casa de farinha costuma ser fornecido pelo grupo doméstico que lidera a farinhada. A roça utilizada costuma vir de uma área comum de roçados, de uso de toda a casa ampliada; uma determinada casa pode retirar roça para fazer farinha de um roçado que não tenha sido plantado pelos seus membros. O mesmo não ocorre de forma tão livre com outras plantas cultivadas presentes no roçado, como o arroz e feijão. É possível que a doação de roça para o fábrico de farinha se estabeleça também entre duas casas que não formam uma casa ampliada, geralmente ligadas por relações de parentesco. A farinha é o principal componente da alimentação no seringal: mesmo não havendo 132 Não soube de remunerações mensais. 107

caça pode ser consumida acompanhada por algum animal do terreiro, ou até mesmo, em último caso, em uma farofa de ovos de galinha. Assim, é compreensível que a matéria-prima básica (a roça) para a fabricação deste alimento (a farinha) seja abundante e disponível para todas as casas da casa ampliada, independente do esforço de trabalho empreendido por cada uma no plantio. Já o combustível, fundamental para a farinhada hoje em dia (já que as casas de farinha são movidas por motores), é uma matéria-prima menos abundante no seringal, devido ao seu alto valor monetário (graças aos custos de transporte desde a rua). É comum o empréstimo de pequenas quantidades de combustível entre as casas para a fabricação de farinha, devolvido assim que a casa que tomou emprestado recomponha seu pequeno estoque doméstico. Nos roçados encontramos diferentes variedades dos alimentos plantados. Todos os roçados incluem diferentes tipos de roça ou mandioca: manteiguinha ou pãozinho, pirarucu, olho roxo, chapéu de sol e cabloquinha. Com exceção do primeiro tipo, consumido sempre cozida, as demais são utilizadas no fábrico da farinha. O milho também é plantado por praticamente todas as casas, sendo utilizado principalmente na alimentação dos animais do terreiro. Algumas casas plantavam milho do tipo pipoca para consumo na barraca. Diversas casas também costumam plantar arroz, feijão e cana (cana-de-açúcar). Além do arroz agulhinha, o tipo mais comum, havia também um arroz denominado açaí. Outros legumes, como abóbora ou jerimum, diversos tipos de pimentas doces (pequenos pimentões) e de pimentas ardosas também podem ser encontrados nos roçados. Algumas frutas, principalmente os diversos tipos de banana (como comprida, prata, maçã, najá e roxa), além de mamão e melancia também são plantados nos roçados. O tabaco também é plantado por algumas casas. As variedades plantadas circulam entre as casas do seringal, basicamente sob a forma de dádivas, formando um diversificado banco coletivo de sementes e manivas133. Os adjuntos, ou mutirões, são outra forma de trabalho recorrente entre as casas do seringal Porongaba134, em atividades relacionadas principalmente à agricultura. Também podem ocorrer no caso de construção de infra-estrutura de uso coletivo (como escolas). No verão de 2009, foi realizado um adjunto na sede do seringal Novo Destino135. Neste mutirão, promovido por Moça e Biita (vide apêndices 2 e 4) uma área foi 133 Ver Seixas (2008) para uma análise da circulação de plantas cultivadas entre grupos domésticos de um seringal do Alto Juruá. 134 Outros autores também mencionam a ocorrência deste tipo de trabalho em seringais do Alto Juruá (FRANCO et. al., 2002; PANTOJA, 2008). 135 Não presenciei este mutirão, sendo as informações aqui descritas fornecidas pelo casal que promoveu o mesmo. 108

brocada para botar roçado, tendo terminado com uma festa, que reuniu moradores de vários seringais do Médio Iaco. É comum também nestas ocasiões a realização de uma partida de futebol entre times de seringais diferentes136. Para alimentar os que participaram do adjunto e da festa foi morta uma vaca. Enquanto os rapazes são convidados para brocar, as moças são convidadas para dançar na festa. Por isso, os adjuntos devem ser promovidos por quem tem filhas moças. Quem não tem filha moça em casa, como era o caso de Moça e Biita, convida as jovens de outros grupos domésticos. Os rapazes que só participam da festa e não trabalham devem contribuir com uma cota (quantia de dinheiro equivalente ao valor da diária de trabalho), ou devem levar um irmã moça para a festa. Segundo alguns moradores, os homens casados não precisam envolver-se no trabalho, e podem mesmo assim participar da festa; caso trabalhem devem receber uma diária. Oscar relata como costumam funcionar os adjuntos: “o cara mata um boi, ou que seja um porco, aí chama aquele pessoal para vir brocar. O povo broca, aí a noite tem uma festa. O cara broca de dia e dança a noite. Quer dizer, já está pago o dia .” (Oscar, Seringal Porongaba, 13/09/2010). Conforme indica Oscar, a força de trabalho empenhada no mutirão é retribuída pelos donos da casa com a festa. Voltemos ao adjunto promovido por Moça e Biita, a partir do diagrama do apêndice 13. O casal fornece alimentos e lazer tanto para os trabalhadores envolvidos no adjunto, quanto para os demais participantes da festa. Os grupos domésticos aparentados ou afins de Moça e Biita inserem-se no sistema retribuindo com as filhas/irmãs moças levadas para a festa. Os rapazes engajados no mutirão retribuem a presença das moças, a festa e os alimentos com sua força de trabalho. As moças, por sua vez, usufruem da festa e do jantar, retribuindo com sua própria presença e com as danças concedidas aos rapazes. Partindo de Lévi-Strauss (1982), podemos compreender o adjunto como um sistema de reciprocidade que combina “trocas matrimoniais” (o encontro de moças e rapazes na festa) e “trocas econômicas” (envolvendo a força de trabalho empenhada no mutirão). No verão de 2010, foram realizados adjuntos, segundo relatos dos moradores, na colocação Rancho Alegre, na margem do seringal Novo Destino, no qual participaram quarenta e dois terçados; na colocação Piauí, no centro do Porongaba, com treze terçados; na colocação Balança, também no centro do Porongaba, com treze terçados; e em uma colocação do seringal Curitiba, com quatorze terçados. Os três primeiros adjuntos foram realizados no início do verão (junho). 136 De forma geral, as festas sempre envolvem futebol. 109

O termo adjunto também pode ser utilizado como referência a uma forma de trocar dias de trabalho envolvendo diferentes grupos domésticos, quase sempre voltado ao preparo de áreas para agricultura: um grupo de pessoas vai brocar uma determinada área para um grupo doméstico; posteriormente, membros deste grupo doméstico que sediou o trabalho deve devolver o(s) dia(s) de trabalho. Estes adjuntos costumam envolver casas que não formam uma casa ampliada, e, apesar de não envolverem a realização de uma festa, a casa que sedia o adjunto é responsável por fornecer o almoço (com carne de caça ou de algum animal de criação) para os trabalhadores. De forma geral, os moradores do seringal Porongaba comentam que no passado eram realizados muito mais adjuntos que no presente. Vejamos o que narra Sr. Antônio Maciel. Antigamente só era no adjunto. Ninguém fazia nada, tipo broca, roçado... Essas coisas tudo era no adjunto. Hoje não tem mais adjunto. É difícil ter um adjunto. […] Porque o pessoal já se acostumou a trabalhar só, não é mesmo? Agora, outro caso do adjunto: antigamente, o seringueiro, o negócio dele era cortar seringa. E hoje em dia ninguém corta, é trabalhar no roçado. Só é isso. Antigamente, o seringueiro fazia um adjunto, uma festa, para não se empalhar. O que ele queria era cortar. Ele só ia trabalhar aquele dia no adjunto. Terminava o roçado dele, ele não ia mais brocar nada, ia era cortar a seringa dele no outro dia. E agora, quem não corta broca um dia, dois, três, quatro, cinco, seis, até terminar o roçado dele. Aí, não faz adjunto. (Sr. Antônio Maciel, 05/09/2010).

Opondo um presente de poucos mutirões a um passado em que os adjuntos eram a principal forma de trabalho nos roçados, Sr. Antônio explica tal mudança pela queda na importância da borracha no trabalho desenvolvido pelos grupos domésticos. Como o corte de seringa era realizado a maior parte do ano, o tempo disponível para as atividades ligadas ao roçado era bem menor. No presente, como o trabalho na castanha concentra-se no inverno, tempo em que o trabalho no roçado é menor, há uma maior disponibilidade da mão-de-obra doméstica para dedicar-se à agricultura. Para Sabourin (2003) as relações de troca de dias de trabalho são distintas das relações de ajuda mútua (mutirão ou adjunto), marcadas pela reciprocidade. Esta distinção ocorre a partir de um contexto camponês nordestino de concorrência entre, de um lado, relações de ajuda mútua, compartilhamento e redistribuição, e de outro o surgimento de novas relações de troca (como o assalariamento). Para o autor (SABOURIN, 2009) a troca de dias de trabalho pode ser monetarizada e não garante concretamente as funções sociais garantidas pelo mutirão, pois qualquer diarista poderia substituir o chefe ou membro do grupo doméstico; os trabalhos comunitários permanecem, mas sem conferir prestígio ao grupo 110

doméstico e sem garantir a mesma “coesão social”. Se entendemos, como apontado anteriormente, que o trabalho fora da casa e o trabalho doméstico são complementares, a concorrência entre troca e reciprocidade perde sentido, ao menos no que diz respeito à posição relativa entre troca de dia e adjunto. Além disso, a troca de dia no seringal, ao meu ver, não pode ser entendida como simples troca, pois envolve aspectos da reciprocidade. A troca de dia implica uma certa incerteza: por mais que se saiba que haverá retribuição pelo dia de trabalho doado, o esforço do trabalho empreendido não é necessariamente o mesmo por aqueles que trocam os dias trabalhados e nem é certo. Parece que o risco, não passível de cálculo, característico das relações de reciprocidade, permanece. A troca de dia também não se dá de forma livre entre quaisquer casas, tendo como base uma vinculação preferencial. Na linha da argumentação de Zelizer (2005), as relações de troca podem estabelecer-se em meio a vínculos íntimos (que comportam informações de cunho mais restrito). Assim, uma casa não troca dias de trabalho com qualquer outra casa, e a ocorrência dessa prática também não é determinada simplesmente pela vizinhança espacial: há a presença de vínculos entre os grupos domésticos que trocam diárias, ou o interesse em criá-los. Assim, não se pode falar simplesmente em uma relação monetarizável, e esse dia de trabalho dado-recebido-retribuído não seria completamente alienável como numa relação de troca mercantil.

3.4 Alimentos nos circuitos de reciprocidade: a vizinhança Dentre os circuitos de reciprocidade nos seringais do sudoeste amazônico, aqueles que envolvem a caça são proeminentes 137. Conforme analisado por Dias e Almeida (2004), a vizinhança, através da qual a carne de caça é compartilhada entre casas, pode ser considerada como um tipo de “reciprocidade generalizada”. Permite uma “redistribuição do rendimento” e a regulação da atividade, garantindo o acesso à caça, inclusive por aqueles que não têm caçador em casa (como viúvas e velhos), com os quais se vizinharia sem expectativa de reciprocidade direta (ALMEIDA et. al., 2002a). A carne de caça vizinhada é enviada, quase 137 Sobre vizinhança em seringais acreanos ver Almeida (1993), Almeida et al. (op. cit.), Dias (2004), Dias e Almeida (op. cit.), Iglesias (1998), Martini (1998), Pantoja (2008) e Postigo (2010). 111

sempre, através de uma criança, podendo também ser entregue a um adulto em visita à casa que envia a carne. E nunca envolve agradecimento por parte de quem recebe138. A quebra das regras correlatas, que se aplicam a todos sem distinção, mesmo àqueles que caçam com pouca frequência ou que não são tão bem-sucedidos, é considerada grave (ALMEIDA et. al., 2002a). Existe uma ética relativa ao vizinhar, inserida numa ordem moral mais ampla, que diz respeito à relação entre seres humanos e animais da mata 139. Afinal, como indicou Postigo (2010), o que circula no circuito da vizinhança não é somente a carne, mas o próprio vínculo de confiança. O chefe de uma casa do centro do Porongaba comentava que costumava mandar carne para outra casa, de uma colocação vizinha à sua, e que eles não queriam vizinhar, que falhavam, que não mandavam, e por isso seu grupo doméstico parou de mandar carne. A partir do relato de Sr. Antônio Maciel, que vive na sede do Porongaba, podemos depreender como funciona a vizinhança. A vizinhança de carne é dois vizinhos bons. A vizinhança da carne é essa. Se a senhora é minha vizinha, no dia que a senhora matar uma paca, se nós começarmos a vizinhar de banda, a senhora vem e deixa uma banda para mim. Se eu matar uma, eu vou deixar outra para a senhora. Aí, nós somos vizinhos de carne. É só isso. No dia em que eu matar um bicho, eu vou na sua casa: “está aqui a sua bandinha de carne”. Se nós começarmos de um quarto, é de quarto. Se a senhora matar vem deixar na minha, e se eu matar vou deixar na sua. Chama-se a vizinhança. Se eu começar a vizinhar de banda, de uma banda de uma paca com a senhora, se eu matar um veado é uma banda, se eu matar uma anta é uma banda, se eu matar uma galinha é uma banda. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010, grifo nosso).

Além da necessidade de retribuir a dádiva de uma vizinhança, Sr. Antônio indica que a parte do animal caçado a ser enviada como retribuição deve corresponder a parte doada anteriormente: se é um quarto deve ser retribuído com outro quarto, se é uma banda (metade) deve ser retribuída com outra banda. O relato de Sr. Antônio demonstra ainda que a vizinhança não é uma simples vizinhança espacial (por mais que as relações de vizinhança sejam estabelecidas, principalmente, entre casas próximas espacialmente). A vizinhança de carne é uma relação construída com um tipo de vizinho: o vizinho bom. Sr. Antônio esclarece quem é o bom vizinho. AM – Bom vizinho é aquele correto. No próprio instante que eu falhar, vamos dizer, uma comparação, que eu falhar com a senhora na minha vizinhança, eu já não sou mais bom vizinho para você. Eu matei, comi 138 Almeida et al. (op. cit.) também observaram o mesmo em seringais do Alto Juruá. 139 Cf. Dias (2004). 112

sozinho, eu sei que você está com fome lá, eu não lhe dei carne. Eu não sou bom vizinho. O bom vizinho é aquele que não falha na vizinhança. K – E o que acontece quando falha? AM – Quando falha ninguém vai discutir, ninguém vai brigar por causa disso. Só que corta a vizinhança, não é? Nós não vamos ser mais vizinhos. No dia que a senhora matar, a senhora come. No dia que eu matar, eu como só na minha casa. Nós não vamos brigar, nem discutir, nem nada. Corta a vizinhança. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

O bom vizinho é aquele que não falha em retribuir a carne sempre que tem caça. De acordo com Sr. Antônio, quando um vizinho falha não há briga nem discussão, mas a relação de vizinhança é rompida. Sr. Antônio, na sequência da mesma entrevista, menciona um passado em que haviam outras seis casas na sede do Porongaba. Por mais que todos morassem próximos fisicamente, o grupo doméstico de Sr. Antônio não vizinhava com todos, pois “as pessoas nunca eram iguais”. As pessoas nunca eram iguais, não é? Porque, uma comparação, a senhora é minha vizinha, a senhora vizinha comigo direto, aí da próxima vez que eu matar uma caça, eu não vizinho com a senhora. A senhora já fica o que? “Eu não vou mandar mais carne para ele, porque ele matou e não mandou para mim”. Chama-se o mau-vizinho já, não é? É a consideração de que às vezes não eram todos vizinhos por causa disso. (Sr. Antônio Maciel, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

Ser vizinho é uma relação que se constrói a partir da proximidade espacial entre as casas, mas não se encerra nesta espacialidade. Por isso, mesmo que todos fossem vizinhos (espaciais), nem todos eram vizinhos (de carne). A vizinhança é uma relação construída socialmente, e que deve ser reafirmada constantemente, através das dádivas de carne de caça. Outra regra relacionada às caçadas no seringal Porongaba determina que um animal caçado em uma colocação que a não a do caçador deve ser vizinhado com o grupo doméstico que nela reside, no caso uma banda de cada animal caçado. Para Sr. Antônio Maciel nem toda doação envolvendo carne de caça é considerada vizinhança, conforme seu relato e o de sua esposa, Dna. Zilma. AM – A gente não vizinhava com todos, mas aqui e acolá, a gente passava... Não era vizinhança, botava um pedacinho de carne em um prato e “leva para tu almoçar, ou jantar, e coisa”. Aquilo não era vizinhança, a gente dava. K – Isso não era vizinhança? AM – Não, a gente dava. Porque sabia que aquela pessoa não tinha nada para comer. A gente tinha, e a gente dava. K – Mas por que não era vizinhança? 113

DZ – Porque era pouquinho, não era de um quarto, banda. [...] K – Por exemplo, esse que você mandou só um pedaço de anta, você não espera receber? DZ – Não. Não é um vizinho certo. (Sr. Antônio Maciel e Dna. Zilma, Seringal Porongaba, 05/09/2010).

Sr. Antônio e Dna. Zilma diferenciam o dar carne da vizinhança pela quantidade de carne envolvida: o dar carne implicava uma pequena quantidade, enquanto a vizinhança era sempre de pelos menos um quarto do animal. Na sequência da entrevista, Sr. Antônio narrou o trecho citado anteriormente, ressaltando que nem todos eram iguais. Havia aqueles com os quais se vizinhava: com os quais se estabelecia uma relação de reciprocidade na qual a carne de caça é dada-recebida-retribuída, numa via de mão-dupla. E havia aqueles vizinhos espaciais com os quais apenas se estabeleciam uma relação de dar carne, sem expectativa de retribuição direta, pois “não é um vizinho certo”. Parece que esta percepção de que a vizinhança só se estabelece entre aqueles com os quais ocorre uma reciprocidade direta não é compartilhada por todas as casas do seringal. O relato de Dna. Cléo nos ajuda a complexificar a questão. DC – Reparte a banda, aí da minha [banda] eu tiro assim uns pedacinhos para Fulana, outro para outra. Agora, não é obrigado matar ir lá e repartir aqueles pedaços, não, entende? Quando nós matamos, vizinhamos nós aqui [casas vizinhas de carne], é obrigado, nós vizinhamos mesmo. Agora, quando vamos para Jesus [sua filha], só se for naquele dia ou no outro, a gente leva aquela boinha para ela, entende? K – Entendo. Mas não tem a obrigação? DC – Não, não tem a obrigação de ir lá. K – Mas é vizinhança também? DC – É. […] Quando eles matam, eles fazem sempre o mesmo também. Quando vem para a banda de cá, traz. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010).

Dna. Cléo diferencia a vizinhança de caça, envolvendo uma banda do animal, daquela vizinhança menor, que envolve a dádiva de alguns pedaços da caça. Enquanto o primeiro tipo de vizinhança envolve uma obrigatoriedade de dar carne para a casa parceira sempre que a caçada foi exitosa, o segundo tipo não envolveria uma obrigatoriedade. Dna. Cléo dá o exemplo da vizinhança eventual estabelecida com sua filha, Léo (vide apêndice 4), que vive na colocação Pedrinha, acerca de uma hora e meia de caminhada. A vizinhança com a casa de Léo só ocorre quando algum animal foi caçado, e algum membro da casa de Dna. Cléo irá até a casa de sua filha. Mesmo não havendo a obrigatoriedade de compartilhar a caça

114

com essa vizinha eventual, há uma certa expectativa de que, quando possível, haja uma retribuição (“Quando eles matam, eles fazem sempre o mesmo também. Quando vem para a banda de cá, traz”). Esta vizinhança eventual descrita por Dna. Cléo pode ser aproximada do dar carne mencionado por Sr. Antônio Maciel e Dna. Zilma, por envolver não uma banda ou um quarto do animal, mas apenas alguns pedaços de carne. Além disso, ambas as relações não envolveriam a obrigatoriedade de retribuição direta. Porém, enquanto o dar carne não envolve uma expectativa de retribuição direta, a vizinhança eventual descrita por Dna. Cléo envolve esta expectativa. Além das proximidades e distinções entre o dar carne e a vizinhança eventual, a dádiva de carne de caça para pessoas idosas, que não caçam, é aparentemente considerada como uma forma de vizinhança. Mas, talvez este tipo de vizinhança (com maduros) seja a única em que a reciprocidade direta não é esperada. Seriam necessários mais elementos para analisar a distinção entre dar carne e vizinhar, e se ela é vista (e como é vista) pelas demais casas do seringal como de fato uma distinção. A partir de vivências em seringais do Alto Juruá, Dias e Almeida (2004) indicam que o vizinhar não envolve animais domésticos ou de criação: os animais caçados e os animais domésticos pertenceriam a esferas de troca distintas. Entretanto, o relato de Sr. Antônio Maciel, citado anteriormente, indica que animais de criação (galinhas) também podem estar inseridos em circuitos de vizinhança. No seringal Porongaba as relações de reciprocidade que envolvem a circulação de carne de gado e de porco também são consideradas por alguns moradores como de vizinhança. Outros moradores, como Dna. Cléo, não consideram dádivas de carne de animais domésticos como uma forma de vizinhança. KN – E bicho de criação vizinha? DC – Não. Quando ela [Jóia, sua filha] mata, que eu não tenho nada, ela manda uns pedacinhos cozidos para mim. Quando eu mato, que toca de sorte, que às vezes a gente mata, e na casa da gente não dá de vizinhar, porque tu sabe que é pequena, não é? Mas quando está só a gente, que eu mato, mando também para ela. Mas se ela tiver alguma coisa eu já não mando, que ela tem. Agora, quando não tem, nós vizinhamos. Assim, um pedacinho de galinha. Já ontem ela trouxe uns pedacinhos de galinha. (Dna. Cléo, Seringal Porongaba, 11/09/2010, grifo nosso).

Dna. Cléo diferencia a dádiva de carne de animais de criação da vizinhança. A carne dos animais domésticos é enviada em pedaços para Jóia, sua filha (vide apêndice 4), cuja casa forma uma casa ampliada com a casa de Dna. Cléo. Esta carne é enviada cozida, uma 115

diferença fundamental do compartilhamento de carne de caça (sempre crua). Além disso, Dna. Cléo ressalta que a carne de um animal de criação só é enviada caso não haja nenhum outro tipo de carne na casa de sua filha, enquanto na vizinhança de carne de caça a retribuição é feita mesmo que na outra casa haja algum tipo de carne. Porém, vizinhança de carne de caça e a vizinhança de animais domésticos engendram relações distintas. Enquanto a criação de animais domésticos (ao menos os do terreiro) é responsabilidade das mulheres, a caça é uma atividade praticamente restrita ao universo masculino140. O próprio consumo de carne de caça é, de maneira geral, mais apreciado pelos grupos domésticos comparado ao consumo de carne de animais de criação. Podemos considerar então que entre esses dois tipos de vizinhança há um status diferenciado, com a vizinhança de caça cumprindo um papel de maior relevância na construção de relações entre as casas. Interessante que na mesma citação Dna. Cléo chega a utilizar a categoria vizinhar para se referir à relação estabelecida com sua filha, Jóia, demonstrando que o uso desta categoria como referência às relações de reciprocidade envolvendo alimentos é flexível. Alguns moradores consideram ainda que dádivas de peixe e mesmo de açaí também são uma forma de vizinhança, na qual a retribuição direta é esperada141. A maior parte das relações de vizinhança que observei envolvem casas ligadas pelo parentesco. Grande parte dessa vizinhança entre parentes ocorreu entre casas que formam uma casa ampliada. No caso da caça de animais da floresta, vizinha-se carne de animais de maior porte, como queixada e porquinho142, veado e anta, sendo mais incomum a vizinhança de embiaras143. Presenciei uma vizinhança de embiara entre as casas de irmãos, porém a carne da cutia havia sido enviada escondida em meio a carne de vaca. A irmã enviou dessa forma argumentando que se o irmão soubesse que havia carne de cutia não aceitaria (a carne de cutia em geral não é apreciada pelos grupos domésticos). Sobre o grupo doméstico de onde saiu a carne de embiara é comum ouvir por parte de outros moradores, de maneira pejorativa, que consomem animais da mata que não fazem parte da dieta das demais casas, apontando assim a importância da alimentação no estabelecimento de diferenças de status no seringal. 140 Um bom caçador, como lembrou Pantoja (comunicação pessoal), costuma ser cobiçado como marido, pois tem como abastecer sua a casa e a dos vizinhos. 141 De acordo com Almeida (1993), a vizinhança pode incluir produtos florestais (como os frutos de açaí, patoá, buriti e bacaba) em seringais do Alto Juruá. 142 Ambos porcos do mato. 143 Animais da mata de menor porte, como macacos, jabutis, aves e mesmo a paca (um roedor). Outros autores indicam esta distinção entre animais de grande porte e embiaras em seringais da região (ALMEIDA, 1993; IGLESIAS, 1998; ALMEIDA et. al., 2002a). Martini (1998) relata a vizinhança de embiaras no Alto Juruá. 116

3.5 Entrada e circulação de dinheiro no seringal Como vimos até então, os grupos domésticos do seringal Porongaba comercializam castanha, gado e outros animais de criação (animais de montaria, porcos, aves, caprinos), borracha e produtos provenientes dos roçados, incluindo os plantios de praias nas casas da margem. É importante ressaltar que quase toda a produção proveniente dos roçados é destinada ao consumo das casas, por mais que uma pequena parte da produção possa ser comercializada. Segundo o levantamento sócioeconômico (ICMBio, 2008), os produtos da agrícolas comercializados por algumas das casas do seringal Porongaba, entre os anos de 2007 e 2008, foram arroz (duas dentre vinte e oito casas), milho (uma dentre vinte e oito casas) e feijão (cinco dentre vinte e oito casas). O milho foi vendido para outra casa, o arroz foi comercializado na cidade, enquanto das cinco casas que venderam feijão três o fizeram na rua, uma para um “atravessador” e outra para alguma casa do seringal. Outra casa localizada na margem comercializou farinha para uma casa do seringal (ICMBio, 2008). A comercialização de farinha entre as casas é incomum, já que este é o principal componente da alimentação: cada casa costuma ter sua própria produção de farinha144. Quando ocorre, costuma ser vendida para uma casa cujo casal está em idade avançada e não possui seu próprio roçado, nem fabrica farinha. Um morador que vive sozinho em uma colocação também comprava farinha. Um casal novato no seringal, que vive na colocação São Paulo, no Riozinho, comprou farinha de outra casa no primeiro ano de residência (2010), pois ainda não tinha seu próprio roçado. Talvez o fato deste casal não possuir vinculação de parentesco com nenhuma outra casa explique esta compra de farinha. Interessante é que todas as casas, citadas anteriormente, que comercializaram produtos da agricultura entre 2007/2008, estão localizadas em colocações da margem (apenas o grupo doméstico que vendeu milho vive no centro). A comercialização de produtos agrícolas entre as casas do seringal é, de forma geral, incomum, já que cada casa bota seus próprios roçados, voltados ao consumo doméstico. Com isso, a venda de produtos agrícolas, inexpressiva em termos numéricos, ocorre principalmente para fora do seringal, para a rua. Tais produtos devem ser transportados durante o inverno, época em que os custos de escoamento são menos elevados145. Como o transporte de uma elevada quantidade de produtos 144 Um paneiro de farinha (cerca de quarenta quilos) custa R$ 20,00 (vinte reais). 145 Cf. capítulo 2. 117

agrícolas146 do centro para a margem é complexa (o deslocamento pelos varadouros no inverno é difícil, e muitas casas não possuem animais de carga), a comercialização destes produtos por casas do centro torna-se desvantajosa. Além disso, a disponibilidade de praias para cultivo na margem pode resultar em uma maior produção, a qual, somada ao melhor acesso ao transporte fluvial, pode explicar o fato da venda de produtos agrícolas ter sido feita principalmente pelas casas da margem. A castanha, como visto, é a principal fonte de renda monetária para as casas do seringal Porongaba. Por mais que o pagamento em dinheiro, no ato da compra, seja importante na concorrência entre compradores de castanha, a comercialização de castanha pode não envolver dinheiro em espécie, como vimos. O dinheiro adiantado pelos intermediários da castanha cumpre ainda, como mencionado, o papel do gado nas situações de precisão. Além da comercialização de produtos agroextrativistas e da remuneração por serviços (trabalho de diária, de empeleita e de peão), a entrada de dinheiro nas casas também ocorre de outras formas: 1) pelo pagamento de salário de professor; 2) pelas aposentadorias; 3) pelo Bolsa Família; 4) por outros benefícios da previdência social. Entretanto, nem os benefícios sociais estatais, nem o pagamento pela prestação de serviços constituem a parte mais relevante da renda anual das casas; a não ser para duas delas, nas quais as aposentadorias representavam a maior parte da renda anual (ICMBio, 2008). Os dados gerais podem ser visualizados no quadro 3.

146 Segundo o levantamento sócioeconômico (ICMBio, 2008), as casas venderam entre cem e mil quilos de cada produto. 118

Atividade laboral ou benefício social

Nº de grupos domésticos

Importância monetária do quebrar castanha

23

Prestação de “serviços braçais” ou de peão

8

Professor

1

Aposentadoria

4

Bolsa Família*

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Outros benefícios sociais**

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Quadro 3: Importância ou ocorrência de entrada de recursos financeiros a partir de algumas atividades laborais ou benefícios sociais. Foram considerados trinta e dois grupos domésticos do seringal Porongaba, em função da disponibilidade de informações. (ICMBIO, 2008; e observação pessoal). * Outros nove grupos domésticos já fizeram cadastro e aguardam serem contemplados. Os valores do Bolsa Família no seringal Porongaba variam entre R$ 112,00 (cento e doze reais) e R$ 152,00 (cento e cinquenta e dois reais), segundo o levantamento sócio econômico (ICMBio, 2008) e declarações de moradores. ** Salário-família, destinado ao auxílio “no sustento dos filhos de até quatorze anos de idade ou inválidos de qualquer idade” (BRASIL, 2011).

A inexpressividade das aposentadorias faz sentido se considerarmos que os pais, quando atingem uma idade mais avançada, costumam mudar-se para a rua147. Outro benefício social que as casas costumam acessar é o salário-maternidade, não

abordado pelos questionários do levantamento sócioeconômico (ICMBio, 2008). Este benefício parece desempenhar um importante papel nas economias domésticas, podendo servir como capital de investimento na casa. Duas casas do seringal Porongaba haviam investido na aquisição de alguns bens para a barraca (redes, cobertores e fogão) e na construção de uma nova moradia em um caso, e ampliação da moradia no outro, com recursos deste tipo de benefício. Sendo um benefício acessado pelas mulheres, acredito que sua aplicação na casa seja capitaneada pela esposa. Durante minha vivência no seringal, chamou atenção como é comum entre os moradores falar publicamente sobre dinheiro. Quantias de dinheiro pagas em mercadorias e outros bens provenientes da rua, e quantias de dinheiro recebidas pela comercialização de produtos, ou acesso a benefícios sociais, são assuntos correntes nas conversas cotidianas. Praticamente todos sabem qual a produção de castanha vendida por uma casa em uma determinada safra, e a que preço foi vendida. O próprio processo de medição da produção da castanha pode ser acompanhado por moradores de outras casas, e mesmo de outros seringais, com o pagamento sendo feito também de forma pública (fotografia 20). 147 Cf. capítulo 2. 119

Fotografia 20: Oscar realizando pagamento pela castanha vendida pelo grupo doméstico de Biel e Maria (vide apêndice 5). Na imagem, Bel, filha do casal, recebe o pagamento pela castanha que vendeu em parceria com o irmão, Charles. Outros jovens parentes do grupo doméstico, que residem na mesma colocação e em outro seringal, acompanharam o pagamento.

Entre as casas do seringal circula pouco dinheiro em espécie. O caso da vaca, descrito anteriormente, é bastante ilustrativo: apesar da valoração monetária da carne de vaca comercializada, o pagamento foi realizado com animais do terreiro. A circulação de dinheiro entre as casas está relacionada, quase sempre, à remuneração pela prestação de um serviço. Porém, transações comerciais envolvendo gado entre as casas, apesar de ocorrerem com pouca frequência, envolvem dinheiro em espécie.

3.6 Considerações finais Os circuitos de troca e de reciprocidade transpassam as atividades agroextrativistas desenvolvidas nas casas do seringal Porongaba de diversas maneiras. E apontam para uma miríade de aspectos sobre a vida nas colocações. É através do circuito de comercialização da castanha que grande parte dos recursos monetários entra no seringal Porongaba. Com estes recursos os grupos domésticos podem adquirir os artigos de consumo cotidiano (mercadorias) como também se capitalizar. O gado, como ficou claro, é a principal forma de transformar este capital em um patrimônio, que pode 120

então ser convertido em investimentos na casa. Trata-se de um patrimônio com boa liquidez e passível de transmissão entre gerações. Pela sua boa liquidez, o gado é um bem utilizado também nas situações de precisão. Mas, se o grupo doméstico não possui alguma cabeça de gado que possa ser vendida para custear os gastos de uma viagem de emergência, por exemplo, o vínculo de confiança estabelecido com o patrão, por meio da castanha, é mobilizado. O adiantamento de dinheiro pelo comprador de castanha, e a reciprocidade assimétrica estabelecida com o mesmo, operam como um substituto da posse de gado. Entretanto, castanha e gado não devem parecer simples soluções econômicas. A partir do extrativismo de castanha e da criação de gado vínculos entre parentes e afins são constantemente recriados. A castanha estabelece relações laborais (de meia e de diária) entre as casas (que compõem ou não uma casa ampliada), podendo reunir parentes em turmas de trabalho fora de suas colocações. Estas relações, mais do que atender à demanda de trabalho ou de recursos financeiros das casas, atualizam laços entre os grupos domésticos. A castanha, como um item de consumo das casas, pode ser oferecida aos visitantes, ou mesmo enviada para parentes e afins na cidade. O patrão também foi reinventado com os novos tempos da castanha. Entre os grupos domésticos, cabeças de gado são intercambiadas, ou mesmo comercializadas. Dádivas de carne bovina também circulam entre as casas, na forma de pequenas doações, como um tipo de reciprocidade bilateral (especialmente entre casas ligadas pelo parentesco), ou em banquetes oferecidos nas festas (abertas a todos os moradores do próprio seringal e de outros seringais). A congregação religiosa, da qual os moradores do seringal Porongaba fazem parte, também é atualizada a partir das celebrações de santos ligadas à criação de gado. Os laços entre parentes e afins, em especial nas circulações marcadas pela reciprocidade, são construídos ou reforçados. A posse do gado funciona ainda como uma forma de sinalização de status no seringal. Tendo como referência as fazendas da região, a criação de gado estabelece uma forma de diferenciação entre os grupos domésticos. Porém, não se trata, necessariamente, de uma busca por transformar-se em fazendeiro. Para os moradores entrevistados no seringal Porongaba há uma diferença central entre a sua forma de criar gado e a forma que os fazendeiros o fazem. Os bens não encerram significados em si: seus significados existem a partir das interações com outros bens (DOUGLAS & ISHERWOOD, 2009). Assim, para

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compreender os significados associados ao gado, não podemos considerá-lo como um bem isolado. No contexto de uma fazenda, o gado está associado a diversos outros bens, os quais compõem uma matriz de significados própria deste ambiente social. No contexto da vida nas colocações, o gado insere-se em um conjunto particular de significados, onde a castanha é, como vimos, um dos bens que formam esta matriz. Por ser o extrativismo de castanha o principal meio de vida dos grupos domésticos, a criação de gado, uma atividade complementar, não deve por em risco o quebrar castanha. É claro que entre dois conjuntos distintos de bens-significados existem empréstimos e sobreposições. Isto é claro na transposição do referencial de sucesso a partir do qual o gado opera como um sinal de status. No entanto, não podemos simplesmente transpor o gado de um contexto (fazenda) à outro (seringal) sem considerar que estamos tratando de ambientes distintos. Assim, qualquer posicionamento crítico sobre a presença da criação de gado nos seringais deve, necessariamente, levar em conta as complexas relações sociais engendradas a partir da atividade neste contexto. A partir da agricultura, diversos vínculos entre os grupos domésticos também são criados. Formas de trabalho (de diária, de empeleita, troca de dia e adjuntos) são estabelecidas entre os grupos domésticos, especialmente no verão, quando a broca e a derrubada demandam uma maior mão-de-obra. No adjunto, diferentes relações de reciprocidade são estabelecidas entre os envolvidos, desde o trabalho durante o dia até a festa pela noite. O fábrico de farinha também estabelece vínculos de reciprocidade, quase sempre entre casas aparentadas. Os roçados não suprem apenas as necessidades de consumo dos grupos domésticos: são a base para a (re)criação de vinculações entre as casas. A vizinhança estabelece circuitos de reciprocidade entre as casas, baseado em um conjunto de regras, que marca a vida no seringal. A carne de caça (por mais que outros alimentos possam circular na forma de vizinhança) não é só um importante componente da alimentação cotidiana: por meio dela, relações de confiança são estabelecidas e laços de parentesco atualizados. O dinheiro em espécie, que entra no seringal principalmente pelos circuitos de comercialização da castanha, circula pouco entre as casas. Esta circulação, quando ocorre, se dá basicamente através de relações laborais. Podemos concluir então que entre os grupos domésticos predominam relações marcadas pela troca que não envolvem dinheiro em espécie, além das relações marcadas pela reciprocidade.

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Considerando a circulação de bens entre as casas do seringal a partir das ações ligadas à extração de castanha, à criação de animais, à agricultura e à caça, aqueles circuitos que envolvem relações marcadas pela reciprocidade destacam-se como uma importante forma de engendrar e recriar relações entre grupos domésticos aparentados. Pelo caráter performativo do parentesco no seringal (PANTOJA, 2008), estes circuitos de reciprocidades operam como meios para que as ações realizadas pelos parentes atualizem seus vínculos. Se o parentesco, é, por um lado, a principal base sobre a qual os mecanismos de reciprocidade são estabelecidos, por outro lado, estas formas de reciprocidade viabilizam a recriação dos laços de parentesco.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS “Começo a ver no escuro um novo tom de escuro.” (Carlos Drummond de Andrade, Ciência, In: A Vida Passada a Limpo, 1958)

Por que os grupos domésticos do Porongaba permanecem no seringal, residindo no centro? Foi partindo desta inquietação que a pesquisa que deu origem a esta dissertação foi sendo construída. O caminho escolhido para responder essa pergunta foi o enfoque dos circuitos de troca e reciprocidade entre as casas do seringal, em especial aquelas relações conectadas às práticas agroextrativistas (incluindo a caça de animais da mata e a criação de animais domésticos). Observando esses circuitos, conforme sugeriu Mauss (2003), como fatos sociais totais foi possível depreender aspectos fundamentais da vida social no seringal Porongaba. A opção pelo estudo das relações de troca e de reciprocidade foi a mais apropriada para compreender as motivações da permanência no centro por incluir a análise daqueles circuitos que envolvem a entrada de recursos financeiros no seringal. Se, como mencionado na Introdução, era preciso ir além da economia strictu sensu para responder à motivação inicial da pesquisa, nada mais adequado do que a escolha de um percurso analítico que considerou aquelas relações de caráter mercantil mais explícito. O processo de descenso econômico da borracha no sudoeste amazônico envolveu a emigração dos grupos domésticos do centro dos seringais para a margem, e dos seringais para a rua. Com o abandono dos seringais pelos patrões de antigamente, e a desestruturação do sistema de aviamento existente até então, muitos grupos domésticos mudaram-se para colocações na margem, buscando maiores facilidades de escoamento da produção para a rua (e, por consequência, de acesso a mercadorias). Em muitos casos, os grupos domésticos acompanharam a saída dos patrões, também abandonando os seringais, mudando-se para a rua ou outras áreas rurais. Porém, este processo de esvaziamento dos seringais da região não significou um completo esvaziamento do seringal Porongaba, e nem mesmo do seu centro. O quebrar castanha, no entanto, não substituiu, em termos do papel que esta atividade veio a assumir nas economias domésticas, a extração de seringa de forma imediata. Apesar do lapso temporal 124

entre o tempo da seringa e o tempo no qual a castanha ganhou importância na geração de recursos financeiros, grupos domésticos permaneceram vivendo no seringal, mesmo em colocações de centro. Como nos alertou Sahlins (2007), aqueles que estão nas margens do sistema econômico mundial não podem ser vistos como meros “objetos passivos de sua própria história” (p. 444). Mesmo tendo suas vidas sob o impacto das forças provenientes da economia global, os “povos periféricos” também são “seres históricos” (SAHLINS, 2007), constantemente buscando soluções, às vezes exitosas e às vezes trágicas, a partir de seus próprios esquemas culturais para os desafios impostos pelo contexto hegemônico. Ao considerar as mudanças ocorridas nos seringais acreanos, em decorrência das crises no mercado mundial de borracha, sob a perspectiva analítica das “cosmologias do capitalismo” (uma expressão de Sahlins) compreendemos por que mesmo sem uma fonte de recursos como a borracha os grupos domésticos permaneceram no seringal. As vidas construídas na interação entre o centro e a margem, e entre o seringal e a rua, não se resumem a resultados de avaliações econômicas. Outros aspectos do viver no seringal, para além daqueles de caráter marcadamente econômico, estão em jogo durante o processo de decisão entre permanecer ou ir embora. As relações construídas entre as casas do seringal conectam as colocações do centro e da margem como partes de uma mesma totalidade. O ritmo da vida social entre o centro e a margem varia entre o inverno e verão. Esta variação não é um simples reflexo dos tempos e espaços “ecológicos”: resulta da sinergia entre a sazonalidade do regime de chuvas e as diversas dinâmicas sociais; um exemplo da generalidade que Mauss (2003a) demonstrou a partir do estudo das “sociedades esquimós”. Foram apontados diversos elementos que caracterizam os grupos domésticos do seringal Porongaba como um “campesinato florestal”148, como: a organização em casas e casas ampliadas nas colocações; a diversidade das economias domésticas (voltadas para o extrativismo, a agricultura, a caça e a criação de animais domésticos); a produção agroextrativista voltada tanto para o consumo do grupo quanto para o mercado; a predominância do uso da mão-de-obra da prória casa/casa ampliada no trabalho na colocação; e a importância da manutenção de diferentes vínculos de parentesco e afinidade entre os grupos domésticos. 148 Conceito elaborado por Almeida (1993) a partir do processo de desestruturação do mercado mundial de borracha, no período entre guerras, e seus reflexos sobre seringais do Alto Juruá. 125

A existência de um processo de criação de uma RESEX englobando o seringal Porongaba aponta para o conflito entre, de um lado, um certo modo de viver no centro – margem, e, de outro lado, uma outra forma de conceber o território (a do proprietário). De acordo com esta outra forma, certas árvores seriam os únicos recursos passíveis de uso, sendo este necessariamente comercial. O corte seletivo de madeira, para alguns moradores do seringal, representa uma ameaça ao extrativismo florestal (de castanha e de seringa) e à caça de animais silvestres. E, de maneira mais ampla, uma ameaça a um certo modo de vida que levam em suas colocações. Um modo de vida necessariamente dinâmico, já que a “cultura” está em constante (re)fazer, em constante inovação: o que parece um padrão cultural longevo é um produto momentâneo e localizado da agência humana (FOX, 1985). É nesse contexto de conflito entre o modo de vida que os grupos domésticos levam no seringal e a possibilidade de extração madeireira pelo proprietário do Porongaba que surge a proposta de criação de uma RESEX, mobilizada principalmente pelo padre Paolino Baldassari, a principal referência religiosa dos moradores dos seringais do rio Iaco. É a existência de um modo de viver próprio desses grupos domésticos no seringal Porongaba que torna factível o encontro com o projeto socioambientalista das RESEX. Com efeito, a possibilidade de criação de uma RESEX no Médio Iaco está inserida no cenário mais amplo de revindicações de direitos territoriais que tem levado à criação de outras unidades de conservação deste tipo no sudoeste amazônico, desde os anos 1990. A vida no seringal foi contraposta à vida na rua de algumas formas. Porém, se por um lado, o viver no seringal se opõe ao viver na rua, por outro lado, seringal – rua formam um mesmo todo, já que diferentes planos de interação conectam estas partes. As indas e vindas de pessoas, coisas e idéias entre a rua e o seringal são constantes, interagindo com a variação sazonal inverno – verão. Ao considerar os planos sociais construídos na relação com a rua, e mesmo com outros seringais, foi possível complexificar a análise, demonstrando que os limites formais do seringal são ultrapassados por outras delimitações sociais. Uma determinada localidade, como demonstrou Geertz (1967 e 1980), é entrecruzada por diferentes planos ou formas de agrupamentos sociais. A entrada de recursos monetários no seringal ocorre principalmente através dos circuitos de comercialização da castanha, sendo estes recursos destinados, em grande parte, à compra de mercadorias pelos grupos domésticos. Entre as casas circula pouco dinheiro em espécie, prevalecendo as relações marcadas pela troca que são apenas valoradas em termos

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monetários (sem envolver a moeda em si), e as relações marcadas pelas reciprocidade. O trabalho ligado aos roçados opera como um meio de (re)criação de laços entre as casas, seja através de relações marcadas pela troca ou pela reciprocidade. A vizinhança, especialmente de carne de animais da mata, atualiza vínculos entre os grupos domésticos através da doação de dádivas. A análise dos circuitos de troca e de reciprocidade construídos a partir das atividades agroextrativistas

desenvolvidas

no

seringal

Porongaba

apontou

para

uma

certa

complementariedade entre o quebrar castanha e a criação de gado nas economias domésticas. Enquanto a extração de castanha é a principal forma de obtenção de recursos monetários, o gado é a principal forma disponível na matriz econômica dos grupos domésticos para a constituição de um patrimônio (de boa liquidez), e opera como um importante modo de transmissão de herança entre gerações. Entretanto, castanha e gado, mais do que soluções econômicas, são bens sociais, que funcionam como mediadores na (re)produção de vínculos sociais (DOUGLAS e ISHERWOOD, 2009). O quebrar castanha estabelece relações de trabalho, recriando laços entre as casas; a castanha como alimento atualiza laços com parentes e afins que vivem na rua ou em visita à casa. O gado, por sua vez, (re)cria vínculos entre os grupos domésticos por meio de pequenas dádivas de carne bovina, e também de festas (principalmente de santos), com banquetes oferecidos a todos os moradores do seringal. Mesmo operando como um meio de diferenciação de status entre as casas do seringal, atrelado a uma referência regional de sucesso econômico e político associada às fazendas, o gado está inserido em uma matriz de bens-significados própria da vida no seringal (que inclui, por exemplo, a castanha e a caça de animais da mata). Por isso, o criar gado no seringal não significa, necessariamente, que os grupos domésticos visem um modo de vida centrado na pecuária. Por outro lado, como ressaltado, não existem modos de vida estáticos e a expansão, no sudoeste amazônico, do agronegócio centrado no gado, a partir dos anos 1970, tem gerado um aumento da pecuária nos seringais da região, inclusive no interior de RESEX149. E é em função das preocupações com esta expansão dos rebanhos bovinos que um polêmico debate sobre a presença do gado nessas unidades de conservação, envolvendo lideranças, moradores de RESEX, gestores públicos e “ambientalistas”, vem sendo travado 149 Ver Ehringhaus (2005) e Gomes (2004) sobre o caso da RESEX Chico Mendes, e Pantoja et. al. (2009) sobre a RESEX do Alto Juruá. 127

em diversos espaços. As inquietações sobre o processo de “pecuarização” que estaria em curso em algumas RESEX alertam, a meu ver, para a necessidade de repensar todo um conjunto de ações empenhadas pelo poder público nessas áreas. E ainda, como ressaltaram Pantoja e colaboradores (2009), a presença do gado não representa, necessariamente, uma desarticulação de um modo de vida no qual o criar gado é um elemento complementar a outras formas de uso dos recursos e espaços, mas sim “um conflito entre este modo de vida e os novos padrões de atividade e ocupação do território” (p. 118). Ao trazer elementos de uma etnografia do criar gado no seringal Porongaba foi possível compreender, para além de economicismos, porque esta atividade faz-se presente. Sob um certo olhar é o gado, ao menos em alguns seringais, que possibilita uma certa autonomia econômica e política para os grupos domésticos (PANTOJA et. al., 2009). E este parece ser o caso do seringal Porongaba. Se o gado permanecerá sendo uma forma de garantir autonomia, permitindo a continuidade (dinâmica) de um modo de vida no qual a pecuária faz parte de uma complexa matriz agroextrativista, ou se outro(s) elemento(s) substituirá o gado nesta matriz, só a história dirá. A circulação de bens ligados às diferentes atividades agroextrativistas operam como meios de criação e fortalecimento de vínculos entre as casas do seringal. Nestes circuitos, o parentesco ganha relevo, especialmente quando nos voltamos àqueles marcados pela reciprocidade. Se a existência do vínculo social é a base para uma determinada ação, e também a ação – como apontou Sahlins (2003) – (re)cria o vínculo, o parentesco no seringal é, em um só tempo, referência para o estabelecimento de mecanismos de reciprocidade, e também resultado da operação destes mecanismos. Sendo as redes de parentesco um dos elementos que ajuda a explicar as preferências de moradia de um grupo doméstico, as relações tecidas entre as casas aparentadas são o reflexo e também uma das bases da permanência dos moradores no seringal. No interior desse conjunto de relações, os circuitos do agroextrativismo marcados pela reciprocidade operam como uma importante forma de viabilizar a vida dos grupos domésticos entre a margem e o centro.

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134

São Paulo

APÊNDICE 1 – CROQUI DOS SERINGAIS PORONGABA E NOVO DESTINO

Riozinho

Legenda Sena Madureira

Rio

Colocação de margem

Riozinho do Porongaba

Varadouros e varações Estrada

Colocação de centro Casa ampliada (em uma mesma colocação)

Pau Forte Solidade

Bacaba

Escola

Seringal Porongaba

Nome de colocação Obs.: Apenas as colocações dos seringais Porongaba e Novo Destino onde residiam grupos domésticos no presente da pesquisa estão sendo representadas. Três colocações (Cachimbo, Centro Médio e Espire) pertencem formalmente ao seringal Curitiba. Croqui construído com base em mapa elaborado por Moça (anexo 2), e em informações fornecidas por Juraci e Biel.

Piauí

Cachoeira

Cachimbo

Forquilha Balança

Água Boa

Rio Iaco

Santa Luzia

o a d z ia h Lin ta Lu n Sa

Centro do Carro

Vista Alegre Baixa Alegre

(o

2 rte) a h Fo Li n P a u o ud

Espire São Raimundo

Sena Madureira Porto Artur Rancho Alegre

Pantanal

Sede

Seringal Novo Destino

Mamoeiro

Seringal Curitiba

Sede do Porongaba Sede

Veneza Boa Vista

Centro Médio

Pedrinha

(ou Linh do a 3 Pia uí)

Sede do Santa Luzia

Suvaco

Baixa Verde 135

APÊNDICE 2 – MAPA DE PARENTESCO DE DNA. RAIMUNDA

2

1

Socorro Jesus

Nazaré

4

?

Raimunda

?

Zé Maria

Batista

2 Fábia

Moça

5

Toinho Lidiane

3

Simone

Margarida Marli Nelo

Biita

Pelé

6

7 Nene

Fábio

8 Celinha

4 Clara Clariano

1

1 Casa 1 em Sena Madureira 2 Casa 2 em Sena Madureira 3 Colocação Pantanal 4 Sede do seringal Novo Destino

5 Casa 3 em Sena Madureira 6 Casa 4 em Sena Madureira 7 Casa 5 em Sena Madureira 8 Centro do Porongaba

1

Casa

Casa ampliada 136

APÊNDICE 3 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL DNA. CHICA E SR. PELÉ

Finado Tonó

Josefa

Antônia

Alzena

1

2

Antônio Tonó

6

5

3

Jorge

Léo

7 Chico

3

Chica

Pelé

Déo

7 Loura

Pixata

João

2

4

4

Ita

4

4

Fio

4

4

4

Sandra

9 Gusto

Celma

8

Tia Carlinhos

4

Gerson

Pim

Créci

1 Vive em Sena Madureira 2 Vive em outro seringal no Rio Iaco 3 Vive na sede do Santa Luzia 4 Vive em Rio Branco 5 Colocação Centro do Carro 6 Colocação Pedrinha

7 Vive em uma fazenda na Transacreana 8 Colocação Água Boa 9 Colocação Balança até o inverno de 2010, e uma colocação no seringal Curitiba a partir do verão do mesmo ano

Casa

Casa ampliada 137

APÊNDICE 4 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL DNA. CLÉO E SR. NICOLAU

?

Cléo

Nicolau

1

Jóia

2

Moça

Léo

Jorge

?

Jesus

Maria Delion

Naci Novo Tiele Vinha CássioAngelisAngélica Biita

Socorro

6

5 3 1 Colocação Baixa Alegre 2 Colocação Pedrinha 3 Colocação Porto Artur 4 Vive em Sena Madureira 5 Sede do seringal Novo Destino 6 Sede do Porongaba

Casa

4

4

Dico

4

Casa ampliada 138

APÊNDICE 5 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL DNA. LUSIA E SR. CHICO FEIJÃO

?

2

Lusia

Biel

Chico Feijão

Celmo

Lusa

Maria

1

Toinha

Juraci

3

4

1 Colocação Cachoeira 2 Vive em Rio Branco 3 Vive no seringal Sacado 4 Vive na Sede do Santa Luzia 5 Vive em outro seringal do Rio Iaco

2

?

Fia

Luci Jorge

2

Casa

Casa ampliada 139

APÊNDICE 6 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL DNA. ZILMA E S. ANTÔNIO MACIEL Finado Raimundo Maciel

?

? Denis Maciel

2

Toinho

3

Antônio Maciel

Zilma

Lidiane

1

Delion

Maria

Tonis

Douglas Daniele

1 Sede do Porongaba 2 Vive em Sena Madureira 3 Colocação Pantanal

Casa

Casa ampliada

Obs.: S. Antônio Maciel possui outros irmãos, porém não registrei essas informações. Dna. Zilma possuía uma irmã, residente na rua, que faleceu em 2009; não sei se ela possui/possuía outros irmãos.

140

APÊNDICE 7 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL PEDRÃO E ESTELINA

2

5

Pelado

?

?

Isa Tonhão

Pedrão

Ana

7

Estelina

1 Chico Eudo Euzimar Gilvânia

Bastiana

3

4

5

Raimunda

1 Colocação Riozinho da Porongaba 2 Vive em Sena Madureira 3 Colocação Suvaco 4 Mora em outro seringal da região 5 Mora em outro seringal do Rio Iaco 6 Colocação Balança 7 Colocação Piauí

Casa

Casa ampliada 141

APÊNDICE 8 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL PELADO E ISA

2

?

2 ?

Tonhão

Ana

Pedrão

3

Pelado

1

Estelina

Isa

4 Paula

Leandro Eliane Elissandra Pitéo

Clédi

Neca Gleici

5

6

Pitó Cleiton

Gusto

Sandra

Rafa

7

1 Colocação Balança 2 Vive em Sena Madureira 3 Colocação Piauí 4 Colocação Riozinho da Porongaba 5 Colocação Suvaco 6 Mora em outro seringal da região 7 Mora em outro seringal do Rio Iaco

Casa

Casa ampliada

Obs.: a partir do verão de 2010, Gusto e Sandra foram gerenciar uma colocação de Salim no seringal Curitiba. 142

APÊNDICE 9 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL OSCAR E RAIMUNDA

?

?

?

?

? 1

Oscar

Manoel Preto

Raimunda

Fiona

3 Charles

2

Mauriete

Vanessa Andressa Andréa Vaneima Karina Antônio Charles

Mauriele

1 Colocação Porto Artur 2 Vive em um seringal no rio Macauã 3 Colocação Pau Forte

Obs.: a menina Mauriele no verão de 2010 estava morando com sua avó, Jóia (ver apêndice 3). Charles e Mauriete haviam se casado recentemente (ver capítulo 2). É comum filhos de outros relacionamentos viverem com os avós até que o novo casal construa sua própria barraca. Não sei informar se Raimunda e Manoel Preto possuem outros irmãos.

Casa 143

APÊNDICE 10 – MAPA DE PARENTESCO DO CASAL MANOEL PRETO E FIONA

?

?

?

2

? Oscar

Manoel Preto

Raimunda

Fiona

1

3

? 2

2

Markiso Marcildo Marcelo Marcone Mateus Miga

1 Colocação Pau Forte 2 Vive em um seringal no rio Iaco 3 Colocação Porto Artur

Casa 144

APÊNDICE 11 – ESQUEMA DEMONSTRANDO LIMITES DE COLOCAÇÕES PRÓXIMAS À RODAGEM

Legenda Sede da colocação Piques de castanha Estradas de seringa Limites da colocação Varadouro Rodagem (estrada)

145

APÊNDICE 12 – DIAGRAMA REPRESENTADO O CASO DA VACA. Pelado

Carne de vaca

Isa

Galinhas

Legenda GustoSandra

Paula

Casa ampliada Cleiton Pitó

Dinheiro

Casa

Vaca

Vaca Dinheiro

Chico

Loura Celmo

Toinha

Trabalho Carne de vaca 146

APÊNDICE 13 – DIAGRAMA DO CASO DO ADJUNTO

Moça e Biita

Jovens rapazes

Legenda

Jovens moças

Reciprocidade – Moças Reciprocidade – Festa e alimento Reciprocidade – Trabalho 147

ANEXO 1

Mapa com a localização regional do seringal Porongaba. A marcação indica a localização da sede do Porongaba. O mapa indica ainda as áreas 148 protegidas presentes na região, assim como as sedes urbanas de Rio Branco e Sena Madureira. Elaborado por Ana Elisa Bacellar Schittini.

ANEXO 2

Mapa indicando os limites legais dos seringais que fazem parte da proposta de criação da RESEX do Médio Iaco. O mapa também mostra a localização de unidades de conservação da micro-região criadas (RESEX Chico Mendes, RESEX Cazumbá-Iracema, Florestas Nacionais – FLONA do Macauã e São Francisco) e em processo de criação (RESEX Riozinho do Rola), e um Projeto de Assentamento do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA (P A Oriente). Fornecido pelo Laboratório de Geoprocessamento do IBAMA/ICMBio do Acre. 149

ANEXO 3

Mapa com a localização das colocações dos seringais Porongaba e Novo Destino que se encontram ocupadas por grupos domésticos elaborado pela Moça. Acrescentei as indicações textuais em branco para facilitar a localização. 150

ANEXO 4

Mapa elaborado por Juraci demonstrando as três linhas do seringal Porongaba localizadas entre o Rio Iaco e o Riozinho: linha do Santa Luzia (à esquerda), linha do Pau Forte (no meio) e linha do Piauí (à direita). Nesta última localiza-se a sede do Porongaba. Os pontos indicam a localização das colocações, com seus respectivos nomes. Nem todas estavam ocupadas na época da pesquisa (vide apêndice 1). 151

ANEXO 5

Mapa elaborado por Juraci demonstrando a linha do Riozinho que dava acesso às colocações localizadas entre o Riozinho e o Espalha. No presente da pesquisa apenas a colocação localizada na beira do Riozinho encontrava-se ocupada (vide capítulo 2). Os pontos indicam a localização das colocações, com seus respectivos nomes. O desenho indica ainda, na parte superior, em tamanho menor, a linha do Espalha, que iniciava-se na beira de um rio de mesmo nome. 152

ANEXO 6

Mapa elaborado por Oscar demonstrando a colocação Porto Artur, no seringal Porongaba (vide apêndice 1), com suas três estradas de seringa, e o local no interior da unidade denominado Cairara. O mapa indica ainda a localização do rio Iaco e dos igarapés Benjamin e Colônia. 153

ANEXO 7

Mapa elaborado por Lusa demonstrando a localização de um pique de castanha (em verde) e de uma estrada de seringa (em laranja) da colocação Cachoeira, no seringal Porongaba (vide apêndice 1), e também da barraca onde reside seu grupo doméstico, na mesma colocação (vide apêndice 4). 154

ANEXO 8

Mapa elaborado por Jorge demonstrando a localização de alguns piques de castanha (com os traços pretos) e de duas estradas de seringa (em verde) da colocação Pedrinha, no seringal Porongaba (vide apêndice 1). O mapa também aponta, ao centro, a localização do varadouro que cruza a colocação. 155

ANEXO 9

Adesivo distribuído por ocasião da candidatura de Salim, comprador de castanha da região do rio Iaco, ao cargo de deputado estadual, nas eleições acreanas de 2010.

156

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