Entre a pecuária e a caça: dados preliminares da fauna de vertebrados da villa romana da Horta da Torre (Fronteira) Encontro “O mundo animal na romanização da Península Ibérica”, Lisboa. 26-27 Junho 2015
Maria João Valente
André Carneiro
Universidade do Algarve – FCHS / CEAACP
[email protected]
Universidade de Évora / CHAIA
[email protected]
A HORTA DA TORRE: O SÍTIO E OS SEUS CONTEXTOS Situada no concelho de Fronteira, tem sido objecto de escavações em extensão realizadas anualmente desde 2012. A intervenção centra-se em dois sectores, estando o Sector 1 articulado em torno de uma estrutura absidada designada Torre, que constitui o topo da grande sala de representação do dominus. A dupla ábside emoldura um stibadium sobre-elevado em relação à sala, que periodicamente poderia ser preenchida de água, que entrava na sala por tubagens discretamente inseridas na parede. Por este motivo o pavimento está em opus signinum e o programa decorativo estaria no plano superior das paredes, onde painéis de mosaico criariam complexos jogos de luzes com a água. No Sector 2 a intervenção decorre em ambiente distinto, em torno de um peristilo colunado com um impluvium em posição central, para o qual correria a água de uma fonte, ficando patente a importância da água enquanto elemento decorativo e criador de atmosferas propícias. As unidades agora em estudo pertencem a estes ambientes distintos e apresentam dados cronológicos relativamente sólidos: – A UE22 está no Sector 1, sendo a camada sob o derrube que sela a sala, sobre o pavimento de opus signinum. Pode ser datada no século IV e constitui o momento entre o abandono do edifício e o colapso estrutural, com uma presença de tipo squatter, dadas as perfurações no pavimento para buracos de poste aproveitando o espaço do ambiente áulico.
DADOS ZOOARQUEOLÓGICOS
– A UE16 testemunha também um momento de ocupação pós-abandono. Trata-se de uma unidade sobre o derrube do telhado que cobria o peristilo no Sector 2, e foi sobre essa cerâmica de cobertura que se encontrou um nível que remete para o século V, eventualmente simultâneo do Sector 1.
A colecção agora apresentada provém somente dos mais significativos contextos exumados na Horta da Torre. Foram apenas quantificados os restos de mamíferos, mas existem ainda espécimes de aves (nomeadamente galinha [Gallus g.]) e alguma, rara, malacofauna.
QUANTIFICAÇÃO GERAL UE16 SECTOR 1
SECTOR 2
UE22 TOTAL
Nº Total Restos
845
269
1114
Nº R. Determin.
134
36
170
Não Determin.
711
233
944
MODIFICAÇÕES ÓSSEAS UE16
UE22 TOTAL
Carbonizados
10
1
11
Marcas de corte
13
1
14
Roídos
8
1
9
ABUNDÂNCIAS (NRD)
Os mamíferos exibem alguma variabilidade taxonómica, não indiciando especialização na pecuária: abundam os caprinos (cabra e ovelha; c. 40% NRD) e os suínos (animais de tamanho bastante pequeno que deverão ser exclusivamente porco; c. 25%) e, em menor numero, os bovinos (c. 17%). De assinalar também a presença do cavalo e de duas espécies de cervídeos, o veado e o gamo. Foram ainda identificados restos de coelho e de cão. Os recursos animais utilizados entre os sécs. IV e V nesta villa romana seriam assim eminentemente domésticos, com reduzido número de espécies cinegéticas. A grande maioria dos restos pertence a animais adultos, existindo apenas sete espécimes atribuíveis a animais jovens (caprinos=4; suínos=3). De notar, por fim, a raridade de restos com modificações ósseas por acção humana, nomeadamente vestígios de carbonização ou marcas de corte. Estas apresentam-se quase exclusivamente em forma de estria (apenas uma marca por cutelo) e estão presentes em várias espécies: boi, porco, caprinos e coelho.
Equídeos Cervídeos Bovinos
RESTOS DETERMINADOS TAXA
Caprinos
UE16
Equus caballus Suínos
Pélvis Oryctolagus cuniculus UE16 Marcas de corte
0.7%
Equídeo ND
Canídeos Falange 2 Dama dama UE22 Típica “emarginação” da faceta anterior do gamo (GL:31.3 SD:12.0 Bp:15.6 Bd:13.5mm)
1
Leporídeos 0%
13%
25%
38%
50%
A PECUÁRIA E A CAÇA NAS VILLAE TARDO-ROMANAS DO ALTO ALENTEJO A região do Alto Alentejo, onde se localiza a Horta da Torre, inclui outros sítios tardo-romanos (v. mapa) para os quais conhecemos já o espectro faunístico. Neles, abundam os caprinos, suínos e bovinos (num regime de pecuária não especializada), sendo mais variável a quantidade de restos de animais considerados selvagens, como os cervídeos e os leporídeos. (Na variabilidade do números destes últimos não se pode descartar alguma influência dos métodos de recolha utilizados.) Em Torre de Palma, MacKinnon (1999/2000) identificou uma colecção semelhante à da Horta da Torre onde abundam os caprinos e suínos e, depois, os bovinos. Os restos de cervídeos (veado e gamo) são, todavia, mais numerosos que na Horta da Torre, bem como os de coelho. Existem também alguns restos de javali. Trata-se, portanto, de um conjunto em que as espécies cinegéticas apresentam maior importância (c. 30%). Identificaram-se ainda alguns restos de galinha doméstica. Na Quinta das Longas, Cardoso e Detry (2006) estudaram uma colecção onde, mais uma vez, abundam os caprinos e os suínos. Os bovinos estão contudo menos representados (c. 7%) e os coelhos são muito mais numerosos (c. 29%). Mais uma vez foram identificados cervídeos (c. 9%), onde se incluem alguns restos de gamo. A fauna estudada em São Pedro (Davis 2005) é mais reduzida em quantidade e caracteriza-se por uma maioria de caprinos e bovinos, seguidos dos suínos (porco e javali) e cervídeos (veado e gamo, com c. 14%). No que se refere à presença do gamo nestes sítios: trata-se uma espécie rara e que, durante o período tardo-romano no território português, parece confinada a esta região. Em Portugal, desconhece-se a sua existência em contextos de cronologia anterior, com excepção do período Plistocénico. Assim sendo, a proposta de Davis e MacKinnon (2009) em que, após extinção, esta espécie terá sido reintroduzida pelos romanos em Portugal, parece-nos bem sustentada. Talvez estejamos na presença de animais semi-cativos, em regime de “tapada”, para usufruto dos habitantes mais abastados da região. Esperamos que as análises isotópicas actualmente em realização no Laboratório HERCULES da Universidade de Évora para caracterização da dieta dos animais na Horta da Torre venha a contribuir para esta questão.
UE22
TOTAL
6
16.7%
7
4.2%
2
5.6%
2
1.2%
Cervus elaphus
1
0.7%
4
11.1%
5
3.0%
Dama dama
3
2.2%
1
2.8%
4
2.4%
Cervídeo ND
1
0.7%
1
0.6%
Bos taurus
22 16.4%
Capra hircus
6
4.5%
6
3.5%
Ovis aries
3
2.2%
3
1.8%
Capra/Ovis
55 41.0%
5
13.9%
61 35.2%
Sus domesticus
35 26.1%
7
19.4%
42 24.7%
Canis familiaris
1
0.7%
Oryctolagus cuniculus
5
3.7%
1
Leporídeos ND
1
0.7% —
TOTAL 134
6
16.7%
28 16.5%
1
0.6%
2.8%
6
3.5%
4
11.1%
5
3.0%
36
—
172
—
BIBLIOGRAFIA Cardoso, J.L.; Detry, C. 2005. A lixeira baixo-imperial da villa da Quinta das Longas (Elvas): análise arqueozoológica e significado económico-social. Revista Portuguesa de Arqueologia, 8 (1), pp. 369– 86. Davis, S. 2005. Animal Bones from Roman São Pedro, Fronteira, Alentejo (Trabalhos do CIPA 88). Lisboa: Instituto Português de Arqueologia. Davis, S.; MacKinnon, M. 2009. Did the Romans bring fallow deer to Portugal? Environmental Archaeology, 14 (1), pp. 15-26. MacKinnon, M. 1999/2000. O papel dos animais na economia rural da Lusitânia romana: zooarqueologia de Torre de Palma. A Cidade. Revista Cultural de Portalegre, 13/14, pp. 129–40.