“Entre a vontade de saber e o exercício de ensinar”: Narrativas de estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas sobre sexualidades

October 11, 2017 | Autor: Eduardo Barreto | Categoria: Curriculum Studies, Gender and Sexuality, SCIENCE TEACHING
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Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014

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“ENTRE A VONTADE DE SABER E O EXERCÍCIO DE ENSINAR”: NARRATIVAS DE ESTUDANTES DE LICENCIATURA EM CIÊNCIAS BIOLÓGICAS SOBRE SEXUALIDADES Eduardo Barreto da Silva (Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS) Marco Antônio Leandro Barzano (Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS)

Resumo: Investigar a sexualidade, bem como a educação sexual, é antes de tudo mergulhar sobre nossas próprias percepções e disposições acerca da nossa própria sexualidade. Assim, buscamos empreender neste estudo nossos olhares sob o (des)conhecido “currículo vivo” da Universidade Estadual de Feira de Santana construindo leituras, caminhos e ideações sobre o tema da formação de professores/as em Educação Sexual. Através do método do grupo focal, investigamos como os/as estudantes de licenciatura em Ciências Biológicas produzem diversas percepções acerca da formação de professores/as em educação sexual, em meio às mais diversas subjetividades e pedagogias próprias ao curso. Assim, percebemos a importância de dar voz ao/à outro/a, enunciando os sentidos do “ser docente” em suas múltiplas identidades. Palavras-chave: Educação Sexual; Formação de Professores; Grupo Focal

Visitando a própria casa Visitar a própria casa. Este foi o sentido que permeou as várias etapas deste estudo como uma constante reflexão sobre a formação de professores em uma universidade no interior baiano. Por cenários antes triviais e sujeitos íntimos de nossa experiência cotidiana, este estudo oportunizou a imersão dos pesquisadores sobre a casa, que aqui se faz menção, na condição de residentes-investigadores, apresentando como meta: procurar os possíveis caminhos estudantis sob o horizonte da educação sexual em um curso de licenciatura em Ciências Biológicas. Sem qualquer prerrogativa de neutralidade possível, destacamos que esta análise vai à busca da percepção de outros, mas concomitantemente segue as nossas também, logo, a casa, que aqui se faz referência, é habitada por nós. Durante esta visita, à medida que exercitávamos nosso olhar, tentamos ir ao encontro dos muitos cômodos dessa residência, escarafunchando cantos desconhecidos até por nós mesmos. Assim, declaramos que o interesse em investigar a temática da sexualidade é produto destas experiências como aprendizes e formadores em meio aos diversos espaços formais e não formais oportunizados pela universidade. 1685

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Como primeiras reflexões sobre o tema, este trabalho busca expressar de maneira breve nossos estudos sobre a sexualidade em sua historicidade, problematizando-a como uma produção social e discursiva, que atua cotidianamente sobre os sujeitos. Por conseguinte, esta mesma concepção nos fará impelir o olhar sobre aqueles também específicos à educação sexual, em meio à complexa estrutura discursiva da sexualidade realizada nas mais diversas instâncias sociais. Assim, movidos por essas leituras, relatamos finalmente à visitação de “nossa própria casa”: o curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Feira de Santana. Por esse encontro, nos foi possibilitado encontrar através do método do grupo focal, com estudantes do curso, alguns dos cenários e atores que envolvem as mais diversas interfaces entre a formação e as pedagogias próprias a este local. Buscando apresentar os resultados deste interessante encontro, utilizamos como categorias centrais à análise das falas dos estudantes os seguintes temas: a polissemia e as discursividades acerca da sexualidade, a sexualidade na escola e formação/atuação em Educação sexual.

Sexualidades e Pedagogias: A Sexualidade a partir de Foucault Guardando-se apenas alguns instantes à tarefa de procurar o que se diz atualmente acerca do sexo, indubitavelmente conseguiremos perceber a intensa produção discursa sob os nossos corpos, prazeres, fantasias e comportamentos marcados por ares de normatização e padronização. Acerca destes, (re)produzidos cotidianamente por sujeitos, mídias e instituições, empreenderemos o exercício realizado por teóricos, como Foucault, pondo-os em suspenso para fins de suspeita e análise acerca de suas origens, expansões, encadeamentos e efeitos de poder. Apesar de alguns nos levarem a pensar o contrário, de que a sexualidade essencialmente pode ser determinada ou até mesmo prevista e, portanto, uma coisa simplesmente natural, ela é mesmo isto: uma elaborada construção humana, repleta de signos e significados em torno do sexo ao longo da história. Mas a sexualidade não era até então algo natural? Que implicação há em dizermos que a sexualidade é natural, parte da essência do ser humano, algo imutável e constante em nossos corpos? A extinção de uma série de questionamentos feitos sobre a sexualidade a partir de olhares históricos, sociais e políticos que venham a concebê-la como uma construção humana. Logo, defendemos a percepção de sexualidade como abertura em si, que apesar de contingente historicamente não está posta em nós, nem mesmo cristalizada em uma só forma ou uma só função. Segundo Louro (1999, p. 11), a concepção da sexualidade como algo

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“natural” advém da noção de relação entre corpo e sexualidade: assim, o corpo, suposta matriz de nossos prazeres, torna-se princípio fundador de uma só sexualidade. Para avançarmos mais à compreensão do que vem a ser a sexualidade, passaremos a analisar esta sob o olhar daqueles que por muito tempo erigiram o saber sobre o sexo através de inúmeras precauções meticulosas e observações infindáveis: o olhar dos cientistas e teóricos sobre o sexo - scientia sexualis. De acordo com Foucault (1988), percebemos que o discurso sobre o sexo sofre importantes transformações, até a chegada de um massivo discurso científico sobre este, ao qual ele denomina de scientia sexualis. Em síntese, percebemos em sua obra que a colocação do sexo em sua forma discursiva torna-se atividade cada vez mais intensa e refinada a partir do século XVII, primeiramente, vinculada aos religiosos cristãos, em sua inabalável busca de combater o pecado da carne entre os fieis, através das rigorosas confissões e, por outras vezes, por escritores libertinos que produziam suas obras em busca de fantasias eróticas. De acordo com Foucault (1988), a passagem do século XVIII para o século XIX envolverá o cenário de quando percebemos que de fato, o sexo e a produção dos discursos em torno dele, se tornam integrados aos mecanismos próprios da scientia sexualis e, mais especificamente, da instituição médica. Para exemplificar melhor esse período, percebemos importantes registros na história da sexualidade, como: a inauguração do domínio das “perversões” sexuais e a teoria da “degenerescência”. É neste período então que a regulação do sexo, a produção de saberes, verdades e diretrizes através de um discurso institucional irá compor em nossa sociedade os principais meios autorizados de se falar sobre o sexo. A scientia sexualis, através do método científico, se torna então o caminho pelo qual chegamos ao conhecimento da sexualidade humana? Este talvez tenha sido o principal argumento de profissionais sexólogos e doutores que advogavam em prol de uma ciência do sexo, de que essa poderia apenas ser desenvolvida pela razão e pelo método científico e que nela encontraríamos a verdade de nós mesmos. No entanto, o que percebemos de toda a produção de discursos sobre o sexo, realizados em sua maioria por médicos e psiquiatras, constituindo-o como objeto de verdade, foi uma imperiosa declaração da normatização do sexo, catalogando-o em todos os seus desvios, patologias e tratamentos (FOUCAULT, 1988). A partir destes pontos, partiremos a seguir a uma sistematização da análise feita por Foucault, destacando os principais traços ontológicos da sexualidade apresentada até o momento.

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Primeiro, a reflexão sobre o que chamamos hoje de sexualidade, do ponto de vista de uma análise histórica, política e social, feita sobre a trajetória da sociedade ocidental em relação ao sexo a partir de Foucault, nos direciona a pensá-la, não mais como essência do ser ou uma importante qualidade biológica, mas sim como o resultado de uma antiga, e ainda presente, produção discursiva em torno do sexo feito por instituições, enunciados, mídias e até mesmo leis e organizações arquitetônicas. Caso ainda haja alguma evocação sobre uma hipótese de censura neste período, Foucault (1988, p. 29) nos diz: “Censura sobre o sexo? Pelo contrário, constitui-se uma aparelhagem para produzir discursos sobre o sexo, cada vez mais discursos, susceptíveis de funcionar e de serem efeito de sua própria economia”. Segundo: A rede discursiva, a que chamamos de sexualidade, produziu saberes que podemos categorizar em quatro blocos estratégicos. De acordo com Foucault (1988), eles são: Histerização do corpo da mulher – corpo carregado de sexualidade à medida que esta é incumbida de manter sua fecundidade, ser elemento essencial à família e produzir/cuidar de sua prole; Pedagogização do sexo da criança – iminência de uma sempre presente atividade sexual nas crianças que deve ser vista como perigosa; Socialização das condutas de procriação – controle e regulação à fecundidade dos casais e Psiquiatrização do prazer perverso – normatização de um instinto sexual bio-psicológico regular, bem como suas anomalias. Terceiro: Toda esta produção discursiva em torno do sexo é atrelada ao funcionamento do poder; não aquele que postulam certos autores em uma só unidade ou conjunto, que de modo soberano exerceria sua dominação sobre certo grupo de indivíduos, como na figura do Estado ou de um grupo de instituições. O poder, segundo Foucault (1988, p. 102) deve ser percebido como: “a multiplicidade de correlações de força imanentes ao domínio onde se exercem e constitutivas de sua organização”. Assim, percebemos de imediato que o poder é múltiplo, inconstante e móvel, como assim o é as correlações de força que permeiam toda a trama social. Todas, como pontos de uma rede, constituem, através de efeitos combinados, encadeados, invocados ou, por outro lado, resistidos, opostos, refletidos no cenário estratégico de uma sociedade. Assim, através destes posicionamentos teóricos, debruçamo-nos diante de toda a produção discursiva em torno do sexo na análise das relações de poder que acaba por produzir verdades, saberes e controles, de modo a investigar quais seus interesses, suas relações e funções na complexa rede de saber-poder. Investigar tanto os contextos locais em relação às grandes estratégias, como também o contrário, para compreendermos como estes se condicionam reciprocamente. 1688

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Na procura de datar os primeiros vestígios do processo de educação sexual em nossa sociedade, compreendemos que primeiramente este não pode ser identificado unicamente como aquele realizado em espaços escolares, através de discursos próprios à educação. Diante disto, acreditamos que quando pensamos sobre educação sexual, devemos ir também ao encontro das práticas discursivas, rituais simbólicos e os inúmeros mecanismos de socialização da cultura existentes em nossa sociedade, que versam sobre o corpo e seus prazeres (ALFERES, 1996). De maneira concomitante, muitas instituições também exerceram a função de falar sobre o sexo através de discursos específicos, assim como também administrá-lo. Dentre estas, destacamos a atuação das instituições escolares, que não menos do que outras, tiveram papel importante sobre uma rede de saber-poder referente à sexualidade, em especial sobre aquela da criança e do adolescente. De fato, a educação sexual praticada cotidianamente nos moldes atuais se caracteriza por formar uma unidade discursiva híbrida, voltada de maneira intensiva ao corpo, prazer e comportamento dos sujeitos. No entanto, não exclusivamente, em meio às instituições escolares, autores afirmam que a educação sexual praticada nas escolas é notavelmente herdeira de um insidioso discurso médico-biológico sobre a sexualidade (COSTA e SOUZA, 2003). O resultado desta herança não apenas provocou a supressão dos inúmeros condicionantes sociais e culturais que envolvem a compreensão sob a construção de sexualidade, como também é o motivador de um viés hegemônico de explanação anátomofisiológico dos aparelhos reprodutores humanos, aliado à identificação dos principais métodos contraceptivos e preventivos das doenças sexualmente transmissíveis (DST). Como era de se esperar, a educação sexual adquirindo não só uma linguagem específica requereu também a presença de seus atores específicos: professores/as de ciências e biologia “autorizados” a falar sobre educação sexual. Desde o encaixotamento da educação sexual nos dizeres médicos-biológicos, reconhecemos a permanente campanha de naturalização do papel do professor/a de ciências/biologia para este encargo. Negando inicialmente uma simples afinidade como resposta entre os dois elementos em questão, buscamos direcionar nossa reflexão à respeito do próprio dispositivo da sexualidade: aquele que em seu próprio funcionamento é constitutivo de relações de poder para com o saber sobre o sexo. Assim, a escola, não isenta desta rede de poder, produz de maneira semelhante seus saberes e atores autorizados, como podemos perceber nas considerações de Cruz (2008):

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Apesar dos documentos oficiais [...], deixarem claro que essas discussões devem estar presentes na escola como um todo, de maneira transversal, nas práticas cotidianas as crianças e adolescente ainda vêem as aulas de ciências (com todas as suas limitações) como um espaço no qual as questões sobre sexo/sexualidade podem aflorar (CRUZ, 2008, p. 1). O que fazer diante este cenário preocupante, onde simultaneamente percebemos documentos oficiais estabelecendo a transversalidade da Educação Sexual e grande parte das escolas, de forma naturalizada, elegendo “eleitos” no tratamento desta temática? Certamente críticas poderiam ser feitas em ambas as direções, procurando justificativas e indícios de como viemos nos deparar com tal paradoxo, porém este estudo nos leva a percorrer um terceiro caminho: A educação sexual na formação inicial de professores/as, em especial, professore/as de ciências biológicas.

A incitação ao discurso através do método A partir da busca por encontros e desencontros que perfazem a relação do tema Sexualidade e Educação Sexual e devido à grande proximidade e afinidade dos pesquisadores, escolhemos como lócus de investigação da pesquisa o curso de Ciências Biológicas da Universidade Estadual de Feira de Santana, na sua modalidade da Licenciatura. Percorrendo nosso caminho metodológico, partimos de um viés qualitativo de pesquisa utilizando-se do método do grupo focal como meio de produção e análise das falas dos estudantes. Buscando remeter-se a uma aproximação do que viria a ser um grupo focal, utilizamos aquele feito por Barbour (2009, p. 21), como: “Qualquer discussão de grupo pode ser chamada de um grupo focal, contanto que o pesquisador esteja ativamente atento e encorajando às interações do grupo”. De fato, o método do grupo focal nos é bem quisto devido à sua potencialidade de provocar entre os participantes em interação, a elaboração de conjecturas sobre seus próprios conceitos, a enumeração de critérios para validação de seus posicionamentos e finalmente a formulação de críticas sobre as representações que os cercam. Assim, a fim de colocarmos esses/as participantes em maior interação, realizamos questionamentos pontuais durante o grupo focal para percebermos o desenho do que pode ser designado neste estudo como “jogo de discursos”: o emergir de posicionamentos, críticas, ideais e valores construídos nos participantes, a partir das diferentes conceituações sobre Sexualidade e Educação Sexual.

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Deste modo, os dados aqui apresentados são oriundos da realização de um grupo focal, com estudantes de licenciatura já em processo de conclusão de curso (que tivessem ou não proximidade com o tema proposto). Inicialmente, o grupo focal foi idealmente estruturado como: um grupo pequeno, de no máximo seis pessoas, que tivesse sua heterogeneidade originada sobre a composição de gênero, grau de experiência em espaços educativos e o interesse, ou não, com os temas da Sexualidade e Educação Sexual. A partir desse plano, o grupo focal realizado neste estudo se efetivou na participação de três pessoas, exclusivamente do gênero feminino; quanto ao restante dos participantes, os mesmos justificaram sua ausência devido ao surgimento inesperado de compromissos profissionais ou pessoais concomitantes à data do grupo focal; duas participantes já contavam com experiências em sala de aula (escolas da rede pública de ensino), enquanto a outra, não; o interesse com o tema da Sexualidade e Educação Sexual foi exposto quando algumas participantes declararam já terem trabalhado com os temas em seus respectivos trabalhos de conclusão de curso (TCC). A partir do consentimento prévio dos participantes, registramos todo o grupo focal através da utilização de equipamento áudio-visual, auxiliado por anotações feitas por um dos pesquisadores no decorrer do encontro. Sobre o plano de percurso durante o grupo focal, utilizamos de um breve roteiro elaborado por nós contendo: acordos comuns feitos aos participantes para o desenvolvimento de um grupo focal (“Todos têm o direito de dizer o que pensam” e “Ninguém pode “dominar” a discussão”, por exemplo) e tópicos-guias de discussão que mesclassem questões recorrentes à literatura do tema investigado (“Onde acontece a Educação Sexual?” e “A educação sexual deveria ser obrigatória na escola?”, por exemplo), não obstante aberto à introdução de novos elementos pelos próprios participantes.

Uma casa e muitas histórias pra contar... Ao procurar aproximar-se no grupo focal sobre os possíveis elementos que constituíam a representação de sexualidade para o grupo, percebeu-se que cada estudante emitiu em sua fala, de maneira personalizada, a produção de diferentes sentidos e posturas em relação ao termo. Segundo a análise das falas, percebemos que as palavras emitidas manifestavam uma ampla extensão de posições acerca da sexualidade: como algo produzido através da dimensão individual e subjetiva do sujeito, podendo, por exemplo, ser evidenciada através de uma relação afetivo-amorosa com outrem: “afinidade, sexo, prazer, escolhas”; como prática cotidiana, “Prazer, ouvir música, comer, namorar, ver filmes”, imersa, segundo a própria participante, em uma fundamentação de sexualidade encontrada na literatura que 1691

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remete a “tudo que nos dê prazer”; a eleição de elementos simbólicos que irão denotar questionamentos essencialmente socioculturais acerca da sexualidade, como “Prazer, educação sexual... repressão e liberdade”. Esses conjuntos de diferentes sentidos, de maneira geral, representam os constituintes que compõem a polissemia sobre o conceito de sexualidade. Diante disto, argumentamos neste estudo quais os efeitos desta complexa condição à formação e atuação destes/as futuros/as professores/as de ciências e biologia. Observando que, mesmo cursando a mesma disciplina (BIO 605 - Sexualidade e Educação) sobre sexualidade e educação sexual, o grupo mostrou-se ainda bastante heterogêneo acerca do termo, vinculamos este resultado ao efeito das diferentes trajetórias pessoais das estudantes, como catalisadores centrais na produção de sentidos dados à sexualidade. De acordo com Louro (1999, pág. 12): “somos sujeitos de muitas identidades”. Desta forma, percebemos que a imbricada relação entre as trajetórias singulares e as múltiplas identidades coabita e dá sentido ao lugar de onde falamos, e por este aspecto acabe por influenciar as mais diversas questões de sexualidade de docentes, desde sua formação até a sua atuação. Sobre os efeitos acerca da prática pedagógica destes/as estudantes, ponderamos que estas representações poderão ser grandes norteadoras do trabalho docente destes/as futuros/as professores/as, produzindo desta forma uma pluralidade de abordagens (FURLANI, 2011) sobre o tema. Passando agora às questões sobre a produção e regulação da sexualidade em nossa sociedade ocidental, obtivemos junto ao grupo focal uma dupla análise sobre este tema na qual a sexualidade, e conjuntamente o gênero, se tornaram elementos primordiais em nossas reflexões. O conceito de gênero, segundo os estudos feministas, é advindo do enfrentamento à “determinação natural-biológica” do comportamento de homens e mulheres na sociedade. Logo, atribuímos a utilização do termo na ênfase sobre a produção social e cultural sobre os corpos, que através de múltiplas aprendizagens individualizam modos de se viver o gênero (FAGUNDES, 2005). Composto exclusivamente por mulheres, a exceção do pesquisador, o grupo focal evidenciou os mais diversos efeitos discursivos sobre a produção de um “corpo feminino”. Segundo uma das participantes, “a mulher [...] era muito reprimida, ainda é né, mas era pior. Então, isso [a sexualidade] significava pra ela uma coisa que era um assunto que ela não poderia tocar, entendeu? Porque isso faria que com ela fosse recriminada diante da sociedade... até mesmo os homens ficariam sem jeito de discutir isso com mulher”. 1692

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Segundo a fala, percebemos que a colocação da repressão sobre a mulher é bastante evidente, tanto de uma forma subjetiva, quando o próprio corpo se torna autodisciplinado através da interdição, quanto nas relações sociais, através de uma permanente vigilância sobre esse. Além disso, mesmo categorizando “o passado” como um período de maior repressão sobre a mulher, percebeu-se em um momento a ênfase sobre sua marcante continuidade ainda no presente: “Aí [depois de declarar que fez sexo no dia do orgasmo] todo mundo fez aquela cara assim, como se fosse uma coisa de outro mundo uma mulher falar que tem orgasmo!”. Mesmo buscando neste estudo enfatizar os mecanismos produtivos sobre o gênero e a sexualidade, nós pesquisadores não pretendemos incorrer no erro de declarar que a repressão inexiste e tão pouco que sua discussão em cursos de educação sexual seja abandonada. Como elucida o próprio Foucault (1988, p. 17): “É necessário deixar bem claro: não pretendo afirmar que o sexo não tenha sido proibido, bloqueado, mascarado ou desconhecido desde a época clássica; nem mesmo afirmo que a partir daí ele o tenha sido menos do que antes. Não digo que a interdição do sexo é uma ilusão”. Conforme desenhávamos ideias e conjecturas sobre as questões de sexualidade, passamos, pouco a pouco, a buscar aproximações com contexto(s) que nos são mais íntimos, neste caso, os ambientes educativos. Durante a discussão, onde instituições sociais eram vinculadas à produção discursiva sobre a sexualidade, uma das participantes menciona a escola: “é na escola que a maioria das pessoas fazem [discursos sobre a sexualidade] em momentos informais... não em sala de aula, aula de ciências, mas nas conversas assim... a escola é o espaço que mais se discute sexualidade, e discute assim sem pudores”. Inicialmente,

devemos

enfatizar

nossa

descrença

à

noção

de

função

“dessexualizadora” da escola (SACADURA, 1996), defendida com base na análise dos princípios morais burgueses que supostamente influenciaram inúmeras instituições, como a escola. Assim sendo, partimos a um posicionamento diferente que vai de encontro à fala das participantes ao perceber que a escola se institui como um espaço privilegiado sobre a construção da pedagogização do sexo da criança. Construção esta que se faz por meio de inúmeros mecanismos discursivos, que de acordo com Foucault (1988) não podem ser percebidos de forma isolada, como elementos independentes, mas sim imersos em uma complexa teia de saberes sobre o sexo da criança. Assim, entender estes aspectos em suas implicações curriculares torna a discussão sobre a formação de professores em educação sexual re-significada: professores tornam-se mais do que simples transmissores do conhecimento estabelecido e assumem a posição de 1693

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atores, que em meio às relações de poder, são responsáveis por perceber e produzir discursos às margens daqueles institucionais, discursos sobre sexualidades, discursos “sem pudores”. Re-afirmando esse novo horizonte de ação, uma das participantes destaca o papel transformador da escola, quando diz: “Eu acho que a escola tem um potencial muito grande de talvez, tirar os preconceitos que ainda existem, e tabus, só que eu acho que ela ainda não usa isso.” Através de todas essas reflexões, seguiremos nosso relato destacando ainda mais o contexto da Universidade Estadual de Feira de Santana a fim de cumprirmos o objeto proposto por esse estudo. Inicialmente, para as estudantes, as falas produzidas durante o grupo focal caracterizaram a universidade como um lugar privilegiado, assim como aqueles que lá se encontram cotidianamente: “Dentro da universidade, querendo ou não, há um grupo um pouco favorecido, não só pelas condições que temos aqui, mas pelas discussões feitas aqui”. Evidentemente, destacamos a importância das universidades em relação às atividades em educação sexual, através de sua potencialidade de amplo debate sobre questões de difícil acesso ou aceitação em instituições mais tradicionais. Ainda de acordo com Melo e Santana (2005, pág. 156), em pesquisa sobre sexualidade com estudantes universitários da própria UEFS, a universidade, segundo os estudantes, oferece: “diferentes visões de mundo, de sexo, de sexualidade, por ser um espaço que concentra pessoas de culturas diversas”. Deparando-se com este amplo panorama de encontro de saberes, questionamos às participantes quais os lugares em que estas percebiam espaços de formação em sexualidade e educação sexual fazendo uso do fluxograma de disciplinas do curso de Ciências Biológicas entregue durante o grupo focal. Como já era esperada, a disciplina “Sexualidade e Educação”, foi eleita a disciplina mais “direcionada” à temática da sexualidade e educação sexual pelas participantes. De acordo com a ementa da mesma, essa se dirige de maneira geral à: “sexualidade humana em seus aspectos bio-psico-sociais” e a “educação sexual para crianças, adolescente e adulto”. Durante as falas, as participantes destacavam que a formação sobre as questões de sexualidade poderia ser mais eficaz caso houvesse um trabalho contínuo sobre a temática durante o curso, através da distribuição de temas relacionados à sexualidade em semestres diferentes. Além disso, percebemos que as participantes acabaram significando a disciplina de Sexualidade e Educação como uma verdadeira “titulação” acadêmica: algo que viesse a legitimar sua atuação sobre o trabalho de educação sexual nas escolas: “Tipo, agora você vai ser “professor de educação sexual”... você está pronto agora (ironia)!”.

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Em contraposição ao olhar lançado a disciplina de Sexualidade e Educação, o grupo pareceu unânime ao destacar a importância do contato com o tema da sexualidade e educação sexual durante o período do trabalho monográfico de conclusão de curso (TCC) para sua formação: “Eu acho que a contribuição maior foi pra mim mesma... eu tive vários conhecimentos de coisas que eu não sabia mesmo, coisas que eu só fui aprender quando eu fui pesquisar mesmo”. Buscando superar a dicotomia construída pelo grupo focal ao analisar as contribuições da disciplina e da pesquisa, defendemos o ponto de vista de autores, como Mariuzzo (2003), que constroem uma profícua interdependência entre os dois elementos ao colocar que cursos de formação de professores devem fomentar a pesquisa sobre educação sexual incluindo disciplinas específicas sobre sexualidade, conjuntamente àquelas voltadas a metodologia científica.

Qual a tua ação? Leituras e ideações sobre questões de Sexualidade Primeiramente, reconhecemos que a polissemia sobre o conceito de sexualidade, foi bastante positiva ao caráter desse estudo. Logo, não queremos construir uma suposta fragilidade sobre estas representações, mas sim admiti-las aqui como domínios mutáveis, que quando postos à prova são passíveis de novas conformações. Adentrando à multiplicidade de discursos acerca da sexualidade, a inteira constituição feminina do grupo entrelaçou muitas das falas às questões de gênero evidenciando diversas posturas críticas em relação a grande produção discursiva aos quais instituições educacionais, familiares e religiosas estão inseridas. Chegando à escola, as participantes esquadrinharam aspectos relativos à educação sexual e o papel dos professores em meio a esta atividade reconhecendo a importância de significar a educação sexual perante os diversos espaços possíveis à escola, que para além das salas de aula, compõem grande parte da educação sexual dos estudantes. Finalmente, lançamos nossas considerações à experiência de se perceber as questões de sexualidade em meio à formação, marcada por grandes oportunidades a aqueles que buscam aprender sobre si e sobre o próximo. Deste modo, é perceptível que o curso de ciências biológicas da UEFS já aponta avanços em relação à problematização da sexualidade aos/às licenciados/as, através de suas disciplinas e espaços destinados à pesquisa desta temática.

Referências

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ALFERES, V. R.. A pedagogização do sexo. Revista Portuguesa de Pedagogia, v. 30, n. 1, p. 91-96, 1996. BARBOUR, R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed. Tradução Marcelo Figueiredo Duarte. 2009. CRUZ, I. S. Percepções de professoras de ciências sobre gênero e sexualidade e suas implicações no ensino de ciências e nas práticas de educação sexual. In: Fazendo Gênero 8 Corpo, Violência e Poder, Florianópolis, 2008. COSTA, P. R. R.; SOUZA, D. O. Falando com professoras das séries iniciais do ensino fundamental sobre sexualidade na sala de aula: a presença do discurso biológico. Enseñanza de las Ciências, Barcelona, v.21, n.1, Volume Extra, p. 67-75, 2003. FAGUNDES, T. C. P. C. Sexualidade e gênero – Uma abordagem conceitual. In: FAGUNDES, T. C. P. C.. (Org.). Ensaios sobre Educação, Sexualidade e Gênero. Salvador: Helvécia, v. 01, p. 9-20, 2005 FOUCAULT, M. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988. FURLANI, J. Educação sexual na sala de aula: relações de gênero, orientação sexual e igualdade étnico-racial numa proposta de respeito às diferenças. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 190, 2011 LOURO, G. L. Pedagogias da sexualidade. O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, p. 9-34, 1999. MARIUZZO, T. Formação de professores em orientação sexual: a sexualidade que está sendo ensinada nas nossas escolas. 2003. 229 f. Dissertação (Mestrado em Educação para a Ciência) – Faculdade de Ciências, Universidade Estadual Paulista, Bauru, 2003. MELO, A. S. A. F.; SANTANA, J. S. S. Sexualidade: concepções, valores e condutas entre universitários de biologia da UEFS. Revista Baiana de Saúde Pública, v. 29 n.2, p.149-159 jul./dez., 2005. SACADURA, S. P. Orientação sexual. E agora professor. Revista Brasileira de Sexualidade Humana, v. 7, p. 169-180, 1996.

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