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ISABELA FERREIRA LAIA THAÍS FERREIRA DE SOUZA APARECIDA LUZIA ALZIRA ZUIN (Organizadoras)

CADERNO II SEMANA ACADÊMICA DE DIREITO DIREITOS HUMANOS – PRA QUEM?

São Paulo 1ª Edição - 2015

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ENTRE AS SÚMULAS E A LEI: O PAPEL DO MAGISTRADO NO PANORAMA NEOCONSTITUCIONAL

Shase Costa de Azevedo e Valéria Pereira da Silva Graduandas do Curso de Direito da Universidade Federal de Rondônia

Palavras-chave: Judiciário; hermenêutica; neoconstitucionalismo. Introdução Com a aprovação do Novo Código de Processo Civil Brasileiro (NCPC), vem sendo frequente na doutrina o questionamento a respeito do papel dos juízes de primeira instância frente à ampliação do poder vinculativo das decisões dos tribunais superiores. Há, pois, o temor de que o novo diploma legal reconduza os magistrados à condição similar à por eles ocupada à época do positivismo exegético francês. Neste contexto, traçaremos um breve percurso histórico acerca do papel do Poder Judiciário nos últimos séculos, na expectativa de demonstrar que a progressão alcançada não poderia admitir a supressão da função hermenêutica do juiz no cenário atual. Discussão Durante muito tempo, o Poder Judiciário e, consequentemente, os magistrados, foram vistos como meros aplicadores mecânicos da lei. Foi no século XVIII – em meio aos conflitos revolucionários franceses e o temor pela ligação entre a magistratura e o ancien régime –, que ao Judiciário foi reservada essa condição de simples executor da técnica subsuntiva, às sombras do protagonismo da lei: O racionalismo iluminista dos séculos XVIII e XIX, que deu origem ao movimento codificador, culminou por reservar ao juiz um papel meramente mecânico na aplicação das leis, executor estrito da técnica subsuntiva. Os postulados liberais de absolutas segurança e certeza no ordenamento jurídico, garantias contra o arbítrio estatal, impunham um sistema jurídico positivo absolutamente claro, completo e coeso, resultante da onipotência do legislador, a partir do

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que deveria o juiz ser apenas “a boca que profere as palavras da lei”, na célebre expressão de Montesquieu. (ABBUD 2006: p. 32)

Justa era a preocupação dos intelectuais iluministas da época, que viam na jurisprudência uma ameaça ao Estado liberal, sobretudo em razão da desconfiança em uma magistratura que, até então, se revelava tendenciosa aos interesses das classes dominantes e à conservação do antigo regime monárquico. Assim, em um contexto no qual a soberania popular era celebrada como um dos pilares da república francesa, nada parecia mais natural que relegar aos juízes a condição de retraídos servos da lei – então entendida como reflexo legítimo da vontade do povo. Aplicadas ao âmbito do direito criminal, tais ideias encontram-se claramente refletidas na célebre obra Dos delitos e das penas, do italiano Cessare Beccaria: [...] a autoridade para aplicar as leis penais só pode residir no legislador, que representa toda a sociedade, unida por um pacto social. Nenhum magistrado (que é parte da sociedade) pode, com justiça, infligir a qualquer outro membro da mesma sociedade penas não estabelecidas por lei. Mas uma pena, além dos limites fixados pela lei, é a pena justa mais uma pena adicional; portanto, não pode um magistrado, sob qualquer pretexto de zelo ou de bem público, aumentar a pena estabelecida a um cidadão delinquente (BECCARIA 2012: p. 15).

Destarte, em um terreno onde acreditava-se possível a concepção de um corpo normativo simples, uniforme e desprovido de falhas ou lacunas, não se concebia ao juiz a possibilidade de atuar como intérprete da lei, como também registrado por Beccaria: Os juízes, em caso de crimes, não têm direito de interpretar as leis penais, pois não são legisladores. Eles não receberam as leis de seus ancestrais como tradição doméstica nem como um testamento, cujos herdeiros e executores devem obedecer, mas recebeu as (sic) de uma sociedade viva ou do soberano, seu representante. [...] Quando os códigos de lei são fixados, devem ser observados no sentido literal, para que nada mais seja deixado ao juiz que determinar se uma ação está ou não em conformidade com a lei. (BECCARIA 2012: p. 17-9)

A vedação a quaisquer formas de interpretação na atividade judiciária buscava, pois, garantir a segurança jurídica do sistema, evitando-se, assim, eventual 32

desvio ou subversão da vontade do legislador. Estes ideais de culto ao texto legal e concepção exclusivamente estatal do direito perpetuaram-se com o tempo, marcando o surgimento da Escola da Exegese na França do século XIX e do hoje denominado Estado legicêntrico. Não obstante o rol de boas intenções por trás do positivismo exegético, com a chegada do século XX e a superveniência da Segunda Guerra Mundial, a atuação passiva do Judiciário e o império da lei (a qual foi considerada, por alguns, como um dos pilares das diversas atrocidades cometidas durante a guerra) passaram a ser duramente criticados. Ao que parecia, as leis positivadas, ironicamente, não correspondiam a um método absolutamente seguro e eficaz de se obter a segurança jurídica almejada pelos iluministas. A percepção das fragilidades do pensamento positivista vigente logo trouxe uma mudança de paradigma, cedendo espaço a uma nova cultura jurídica, pautada na proteção aos direitos fundamentais, no reconhecimento da importância dos princípios jurídicos e no fortalecimento das constituições enquanto fontes normativas do Direito. A esse respeito, esclarece Daniel Sarmento: Até a Segunda Guerra Mundial, prevalecia no velho continente uma cultura jurídica essencialmente legicêntrica, que tratava a lei editada pelo parlamento como a fonte principal – quase como a fonte exclusiva – do Direito [...] Os direitos fundamentais valiam apenas na medida em que fossem protegidos pelas leis, e não envolviam, em geral, garantias contra o arbítrio ou descaso das maiorias políticas instaladas nos parlamentos. [...] Depois da Segunda Guerra, na Alemanha e na Itália, e algumas décadas mais tarde, após o fim de ditaduras de direita, na Espanha e em Portugal, assistiu-se a uma mudança significativa deste quadro. A percepção de que as maiorias políticas podem perpetrar ou acumpliciar-se com a barbárie, como ocorrera no nazismo alemão, levou as novas constituições a criarem ou fortalecerem a jurisdição constitucional, instituindo mecanismos potentes de proteção dos direitos fundamentais mesmo em face do legislador (SARMENTO 2009: p. 36).

Com a ascensão dos princípios e das constituições, esse novo modelo jurídico, convencionalmente chamado de neoconstitucionalismo (CARBONELL 2007), gerou também uma significativa revalorização do Judiciário. Isso porque, ao contrário do que se disseminara nos séculos anteriores, passava agora a ser de 33

fundamental importância o exercício da hermenêutica pelos magistrados, dado o caráter aberto e semanticamente indeterminado de grande parte das normas constitucionais. Assim, “De poder quase ‘nulo’, mera ‘boca que pronuncia as palavras da lei’, como lhe chamara Montesquieu, o Poder Judiciário se viu alçado a uma posição muito mais importante no desenho institucional do Estado contemporâneo” (SARMENTO 2009: p. 37). Ao Brasil, o neoconstitucionalismo foi formalmente incorporado no final do século XX, com a Constituição Federal de 1988, que trouxe consigo um extenso rol de princípios e direitos fundamentais a serem observados. E a necessidade de efetivação de tais princípios e direitos, frente à inércia dos outros dois poderes, foi um fator que reforçou ainda mais o papel do Judiciário, que passou a se apresentar não mais como um poder distanciado da sociedade, mas como um efetivo partícipe da vida social e política do país. Celso Fernandes Capilongo explica: Além de suas funções usuais, cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade e o caráter democrático das regulações sociais. Mais ainda: o juiz passa a integrar o círculo de negociação política. Garantir as políticas públicas, impedir o desvirtuamento privatista das ações estatais, enfrentar o processo de desinstitucionalização dos conflitos – apenas para arrolar algumas hipóteses de trabalho – significa atribuir ao magistrado uma função ativa no processo de afirmação da cidadania e da justiça substantiva. Aplicar o direito tende a configurar-se, assim, apenas num resíduo de atividade judiciária, agora também combinada com a escolha de valores e aplicação de modelos de justiça. Assim o juiz não aparece mais como o responsável pela tutela dos direitos e das situações subjetivas, mas também como um dos titulares da distribuição de recursos e da construção de equilíbrios entre interesses supraindividuais. (CAPILONGO, 1998: p. 38-39)

Justamente neste contexto é que se dá a ideia do chamado ativismo judicial , 2

que, para Luís Roberto Barroso (2011: p. 306-307), “está associada a uma participação mais ampla e intensa do Judiciário na concretização dos valores e fins constitucionais, com maior interferência no espaço de atuação dos outros dois Poderes”. Em outras palavras, percebe-se que, no cenário pós-positivista, a atuação do juiz passa a envolver não apenas a função de julgar e interpretar leis, como 34

também o papel de agente eminentemente político, responsável por fazer valer as disposições da Constituição e do Direito quando ausente a efetividade das prestações estatais. A atuação ativista do Judiciário, certamente, configura um mecanismo de grande relevância na proteção aos princípios e direitos fundamentais tutelados pela Carta Magna, uma vez capaz de repreender e até mesmo suprir as falhas e omissões dos poderes Executivo e Legislativo no Brasil. Contudo, não demorou muito esta situação gerasse um certo desconforto político e doutrinário. Questões como a legitimidade das decisões do Judiciário – frente ao princípio da separação dos poderes e à própria democracia – e o temor por decisões judiciais baseadas exclusivamente na consciência individual dos magistrados vêm se tornando cada vez mais frequentes nos últimos anos, dado o “aumento da força política do Judiciário” e a “constatação de que o intérprete cria norma jurídica” (GOUVEIA, BREITENBACH 2015: p. 504). Pelas mesmas razões, volta à tona também a questão acerca da segurança jurídica, em meio aos rumores sobre a discricionariedade das decisões judiciais. Em 2004, com a Emenda Constitucional n. 45, foram introduzidas no ordenamento jurídico brasileiro as súmulas vinculantes, concedendo ainda mais força ao Judiciário, cujas decisões, a partir de então, passaram a vincular não só a atuação de juízes e tribunais, como também a da Administração Pública. Apesar das polêmicas acerca desta ampliação do poder judicial, eram os primeiros passos da adoção de um sistema de precedentes no Brasil, uma aposta de autocontrole do Judiciário, uniformidade das decisões judiciais e promoção da segurança jurídica. Onze anos mais tarde, com a aprovação do Novo Código de Processo Civil Brasileiro, o desenvolvimento desse sistema de precedentes, neste país, chega ao seu auge, através do enrijecimento do efeito vinculativo não só das súmulas vinculantes do Supremo Tribunal Federal, como também das demais decisões dos tribunais superiores. 35

Neste cenário, passa-se a questionar, novamente, o espaço reservado ao juiz (sobretudo, desta vez, ao de primeira instância, o mais afetado pela obrigatoriedade de observância dos precedentes) na atmosfera jurídica. Ecos do passado positivista fomentam na doutrina o receio de um retrocesso aos moldes da velha Escola da Exegese, a partir do qual somente se estaria transferindo às decisões dos colendos tribunais superiores o espaço que antes ocupava a lei. Assim, nas palavras de Lenio Streck e Georges Abboud, [...] se no passado se acreditava que a lei conteria a infinidade de solução dos casos, atualmente esta mística tem sido depositada nas decisões dos tribunais superiores. Nesse sentido, a aposta é de que o STJ e o STF poderiam criar superdecisões que, por si só, trariam a solução pronta (norma) para deslindar uma multiplicidade de casos. [...] O que outrora era creditado à lei, agora está nas decisões dos Tribunais Superiores. O antigo juiz boca-fria-da-lei é substituído por um juiz-boca-fria-da-súmula ou ainda juiz-boca-fria-de-qualquerprovimento-vinculante-dos-tribunais-superiores (STRECK, ABBOUD 2015: p. 182)

Aliás, tal é a similitude vislumbrada entre o local ocupado pela lei no velho positivismo exegético e a nova condição a que vêm sendo alçadas as decisões dos tribunais, que antes mesmo da aprovação do NCPC, já se ousava falar em uma “Nova Escola da Exegese” (BAHIA, 2012). Contudo, há de se observar que, conforme aponta Alexandre Bahia, tanto a lei quanto as súmulas “padecem do mesmo mal: a condição hermenêutica” (BAHIA 2012: p. 359). Em outras palavras, ainda que se queira buscar nas súmulas e decisões dos tribunais uma resposta pronta e definitiva para os problemas do dia a dia, estas não poderão afastar a interpretação judicial, já que sempre ocuparão uma condição abstrata frente a um caso concreto a ser individualmente analisado. A questão parece simples, mas a constatação da inafastabilidade da interpretação judicial sob a égide do Novo Código de Processo Civil é importante, pois reafirma o papel relevante do juiz de direito no novo contexto processual. Afinal, é preciso que se compreenda que ainda que sua atuação se apresente de forma mais limitada – em benefício da isonomia e da segurança jurídica –, é ao magistrado que caberá verificar com atenção a aplicabilidade dos precedentes aos conflitos que 36

chegarem ao seu conhecimento, como já vinha ocorrendo em relação às súmulas vinculantes e às próprias leis até então. Ademais, a obrigatoriedade de respeito aos precedentes não implica na impossibilidade de eventual reconhecimento da sua inaplicabilidade em casos que não se amoldem completamente à ratio decidendi das decisões vinculantes. Para isso, existirão mecanismos como o distinguishing e o overruling, por exemplo. Daí advém também a importância da adoção de uma teoria dos precedentes no Brasil, conforme defendem Dierle Nunes e Alexandre Bahia (2015), para que os magistrados não desrespeitem a jurisprudência dominante de forma injustificada, nem tampouco se omitam em face dela, em uma busca desenfreada pela solução ágil dos processos. Enfim, há de se lembrar que, dentro do panorama neoconstitucional/póspositivista, o Judiciário, assim como seus magistrados, continuará a exercer o importante papel de intérprete da lei e, agora com mais destaque, da jurisprudência, reforçando – ou, no mínimo, mantendo –, por conseguinte, o prestígio da hermenêutica no contexto jurídico. Assim, retomando as palavras de Alexandre Bahia, “As Súmulas podem ser uma boa ferramenta na resolução de litígios, mas jamais conseguirão evitar a necessidade de interpretação e, logo, de variabilidade hermenêutica” (BAHIA 2012: p. 377). Conclusão Vimos que, nos últimos anos, os magistrados vêm passando por certas inconstâncias no que tange à sua importância e poder hermenêutico: ora submetendo-se ao imperialismo da lei, ora protagonizando o cenário político nacional. Neste contexto, com a aprovação do Novo Código de Processo Civil Brasileiro, o papel do juiz de direito volta a ser questionado, mediante a ampliação do poder vinculativo das decisões dos tribunais superiores. O uso, por juristas, de expressões como “Nova Escola da Exegese” e “juiz-boca-fria-da-súmula” reflete a preocupação doutrinária com um retrocesso aos moldes do velho positivismo

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exegético, dado o temor de que as súmulas e provimentos colegiados passem a ocupar o espaço antes destinado à lei no estado legicêntrico. No entanto, dentro do panorama neoconstitucional em que nos encontramos desde o fim da Segunda Guerra Mundial, não há como se negar que a importância das primeiras instâncias do Judiciário deve se perpetuar através do desempenho da atividade hermenêutica do julgador. Isso porque a aplicação dos precedentes configura-se como um ato hermenêutico e não mecânico, não podendo a interpretação jurisdicional ser afastada por qualquer provimento vinculante. Referências Bibliográficas ABBUD, André de Albuquerque Cavalcanti. O problema da vinculação à lei na interpretação jurídica. Revista Direito GV 4, v. 2, n. 2, p.31-44, jul-dez 2004. BAHIA, Alexandre Gustavo Melo Franco. As Súmulas Vinculantes e a nova Escola da Exegese. Revista de Processo, São Paulo, ano 37, n. 206, p. 359-379. BARROSO, Luís Roberto. Curso de Direito Constitucional Contemporâneo: os conceitos fundamentais e a construção do novo modelo. São Paulo: Saraiva, 2011. BECCARIA, Cessare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Hunter Books, 2012. CAPILONGO, Celso Fernandes. Os Desafios do Judiciário: um enquadramento teórico. In: FARIA, José Eduardo (org.). Direitos Humanos, Direitos Sociais e Justiça. São Paulo: Malheiros, 1998. CARBONELL, Miguel. El neoconstitucionalismo en su laberinto, in: Teoria del neoconstitucionalismo. Madrid: Trotta, 2007. GOUVEIA, Lúcio Grassi. BREITENBACH, Fábio G. Sistema de precedentes no novo Código de Processo Civil Brasileiro: um passo para o enfraquecimento da jurisprudência lotérica dos tribunais. In: DIDIER JR, Fredie. Grandes Temas do Novo CPC: Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015.

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NUNES, Dierle. BAHIA, Alexandre Melo Franco. Precedentes no CPC-2015: por uma compreensão constitucionalmente adequada do seu uso no Brasil. In: FREIRE, Alexandre. BARROS, Lucas Buril de Macedo. PEIXOTO, Ravi. Coletânea Novo CPC: Doutrina Selecionada. Salvador: Juspodivm, 2015. SARMENTO, Daniel. O Neoconstitucionalismo no Brasil: riscos e possibilidades. In: QUARESMA, R.; OLIVEIRA, M. L.; OLIVEIRA, F. (Org.). Neoconstitucionalismo. Rio de Janeiro: Forense, 2009 STRECK, Lenio. ABBOUD, Georges. O NCPC e os precedentes – afinal, do que estamos falando? In: DIDIER JR, Fredie. Grandes Temas do Novo CPC: Precedentes. Salvador: Juspodivm, 2015. TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

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