Entre caranguejos e beira-mar: cinema experimental nos trópicos (2015)

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Cartografia tropical: Entre caranguejos e beira-mar: cinema experimental nos trópicos Curadoria: Sebastian Wiedemann

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que pode o cinema quando se diz experimental e se pensa desde os trópicos? Desconfiamos que sua potência esteja na defesa de uma nacionalidade, de uma identidade. Acreditamos muito mais em singularidades que alimentam suas forças de espaços sempre móveis, mas que nem por isso deixam de ser meridionais. Estes solos se afirmam ao mesmo tempo férteis e precários, uma instabilidade fervilhante fala neles. Caminhar nestas terras traz, a cada passo, um estar de improviso, uma gambiarra, uma ginga… Uma experimentação constante que compõe nas transversalidades, nos entre-mundos… São os caranguejos, os que entendem de entre-mundos nestas latitudes. Eles moram na beira, no fim e no começo de dois mundos, no manguezal. Espaço de passagem, de umbral; espaço intensivo, onde os caranguejos em seu ser-multidão e em seu caminhar transversal estão sempre entre a água e a superfície, entre a lama e as raízes, entre o mar aberto e o rio… Sempre nesse entre-lugar, desconhecendo identidade alguma, eles fluem e se confundem com o meio que experimentam. São caranguejos-manguezal. São uma borda, uma margem-aliança, com a qual o cinema pode devir potente e singular em terras de palmeiras. Portanto convocamos aqui caranguejos cinematográficos, que entendem o meio fílmico como um manguezal. Levar a percepção a um estado de beira-mar, exacerbar os sentidos e no risco de ser levado pela maré, abrir a imagem a novos ritmos, a novas vibrações. Sentimos que um dispor-se corpo-meio-imagem prolifera nesta aliança. Fazer corpo com a matéria de expressão, com os fluxos cinemáticos e sônicos em relações táteis. Um procedimento que o caranguejo conhece bem se impõe. Com seu tato, ele esburaca na terra, na areia, mas quando se diz caranguejo-cinematográfico, ele esburaca no tempo, na superfície frágil do filme-manguezal.

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Superfícies aquosas, úmidas onde a imagem se afirma como pura alteridade, modo de existência, que aparece nos gradientes da expressão. Isto é, avançar na duração da imagem como processo construtivo e devorativo constante. No manguezal não há dejetos, só matéria expressiva que se transmuta na devoração dos caranguejos como a possibilidade de uma ecologia de excrescências diferenciais na percepção. A imagem não pode se prevalecer, sua de-composição-putrefação é sua força, é sua instabilidade necessária para durar, para poder continuar... Canta-se um fim do mundo no cinema, mas a aparente extinção do celuloide não é mais do que uma provocação para levá-lo a estado de manguezal em vertigem de de-composição-putrefação. Um chamado aos cineastascaranguejos que na sua devoração abrem um novo mundo. Um mundo à beira-mar. É este mundo à beira-mar que queremos apresentar em três movimentos: “De memórias e buracos no tempo”, “Esburacar a matéria” e “Paraíso”. Em “De memórias e buracos no tempo”, o esburacar como procedimento cria hiatos, interstícios, que antes que apelar a lembranças ou a passados atrelados no tempo, procuram ser memórias de memórias (Memória da memória de Paula Gaitan), lacunas que rebentam durações outras (Time gap de Duo Stragloscope), umbrais de luz vermelha (Vermelha é a luz do freio de Cristiana Miranda), ou solos que entendem o mundo como uma grande jam de improvisação tropical (Habana solo de Juan Carlos Alom). “Esburacar a matéria” traz o gesto literal de fender a superfície. “Cinema sem câmera”,

como riscar, arranhar, pintar com a pinça-mão-crustácea que devora o celuloide abrindo, afundando-se em tempos lamacentos. Variações cromáticas e rítmicas (Breathe de Leonardo Zito). Precipitações, quedas (Blood, sea, film de Andres Garcia Franco) que abraçam o vaivém da maré que recria uma e outra vez a superfície. O esburacar, o furar (“Abecedario/B” de Los Ingravidos), como uma interferência constante no plano-meio-manguezal por onde a maré que emaranha o rio e o mar, a cor e o som, pode vazar. À beira-mar, arranhar, devorar, escrever (On the Road by Jack Kerouac de Jorge Lorenzo) até na lama se esgotar. Eclodir um campo experimental háptico na percepção, que na chegada da ressaca terá nos doado não só destroços alegres, mas também novos olhos por mais que estes estejam arrebentados. Finalmente Paraíso (de Felipe Guerrero) evoca a complexidade de uma ecologia de excrecências diferenciais na percepção. A pergunta pelo manguezal arrasta imagens e sons livres na procura por compor nas ruínas. Um país em guerra, que nos deixa em estado de catástrofe constante é o estímulo para filmar na fragilidade do Super8, esse entre-mundos necessário para resistir e ver um paraíso onde ninguém o vê. Alguém pode ver só lama, mas os caranguejos-cinematográficos veem pura potência de composição. Pensar o cinema experimental nos trópicos é deixar-se afetar pelas atmosferas e ritmos que borbulham e polinizam estas latitudes. Deixar-se envolver, envelopar, ganhando ou perdendo peles, mas sempre devorando as superfícies. Um cinema que entre ventos meridionais esculpe olhares e escutas impossíveis com o caminhar transversal dos caranguejos. Um cinema que leva a percepção à beira-mar. (S.W.)

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