Entre ditos e não-ditos: a imagem da mulher brasileira no discurso do turismo. Texto publicado nos anais do Fazendo gênero 10 (2013)

September 3, 2017 | Autor: Glória França | Categoria: Gender Studies, Análise do Discurso, Análise do discurso de imagens
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ENTRE DITOS E NÃO-DITOS. A IMAGEM DA MULHER BRASILEIRA NO DISCURSO DO TURISMO Glória da Ressurreição Abreu França1 Resumo: Fundamentando-se na teoria de Análise de Discurso materialista, estudamos o processos discursivos de identificação/subjetivação da mulher e, nesse sentido, trazemos os resultados de nossa análise baseada em diferentes formas de nomear a mulher, encontradas em dois espaços de enunciação a partir dos quais constituímos o corpus: um guia de turismo (Petit Futé) e um fórum de discussão na internet. Esse cruzamento de dados foi de extrema importância, pois nos permitiu perceber, a partir da categorização da mulher nos fóruns enquanto, “belas mulheres”, “prostituta”, “mulher fácil”, o sutil jogo de presença/ausência desses nomes nos guias de turismo. Buscamos assim contribuir com as reflexões que se preocupam com a construção social da “realidade” (/da mulher) através da linguagem (discurso), pois nos colocamos na mesma corrente de pensamento que acredita que dar um “nome”, enquanto ato do discurso, não pode ser separado de suas consequências políticas e sociais. Palavras-chave: Análise do discurso, mulher brasileira, identificação/subjetivação, turismo.

Introdução Buscamos compreender no funcionamento do discurso do turismo as diferentes formas de circulação de um imaginário sobre a mulher brasileira, na perspectiva da Análise do discurso de vertente materialista. Acreditamos haver muito o que dizer discursivamente sobre essas mulheres, o que implica não pensar o corpo empírico ou uma categoria “gênero” fechada e já delimitada que viríamos a incluir ou adaptar ao nosso quadro de pesquisa. Implica de fato tomar a “mulher” enquanto corpo/categoria com espessura material e a existência de uma memória de sentidos já circulando sobre essas mulheres. Os discursos analisados se situam no espaço de atualização do turismo do espaço de enunciação francês (GUIMARÃES, 2002). Trata-se de uma escolha teórico-metodológica de analisar imagens nos guias a partir do que é dito no fórum, abordando discursivamente a aproximação entre o icônico e o verbal, sustentado pela analise dos não-ditos existentes. Baseando-nos em trabalhos de diferentes autores que incluíram os enunciados icônico-verbais, enquanto forma-material e, portanto, enquanto da ordem do discurso, acontecimento da língua na história, propomos um exercício de analise de imagens e enunciados, numa tentativa de descrever “os processos de significação em sua relação com a falha” (PÊCHEUX, 1975, ORLANDI, 1992) do corpo-mulher-brasileira.

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Doutoranda do PPGL do Instituto de Estudos da Linguagem - IEL/UNICAMP, Campinas, Brasil.

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Buscamos traçar possíveis linhas de reflexão a partir do seguinte questionamento: quais os sentidos produzidos para o corpo feminino em um espaço de atualização veiculado como discurso do turismo? Numa tentativa de chegarmos a analisar a circulação de efeitos de sentido que sustentem discursos sobre as mulheres brasileiras enquanto fáceis, putas ou passíveis de aliciamento. Corpus2 Trabalharemos com 6 imagens (algumas legendadas) de mulheres encontradas no guia de turismo Petit Futé 2012 e com algumas sequências de enunciados retirados de um fórum de discussão na internet, o routard.com. Propormos aqui um recorte em torno das “mulheres”, a partir de nosso interesse nas imagens analisadas, que surgiu de um prévio trabalho comparativo entre guias e fórum, em que percebemos uma certa “brecha” entre o que era dito no fórum e que não é presente na materialidade verbal dos guias. Recorte possível ao se perceber a escassa presença de designações direcionadas às mulheres no guia analisado e a massiva presença, no fórum de discussão, de enunciados referentes às brasileiras enquanto “prostitutas” “putas” “pobres cinderelas” “mulheres fáceis” “que vivem de seu charme”. Interdiscurso/memória, imaginário, efeito metafórico Segundo Eni Orlandi (2o05), apoiando em Pêcheux (1990) e em Courtine (1982) a análise do discurso trabalha com a “textualização do político”, é desse ponto de vista discursivo que visamos compreender em nosso trabalho o funcionamento pelo simbólico de um determinado imaginário e as relações de poder que o sustentam. Para se descrever/analisar tal funcionamento é necessário se pensar no sentido enquanto regulado no tempo (PÊCHEUX, 1975), donde a necessidade de se recorrer à noção de memória. Interessando-nos pelo discurso enquanto “efeito de sentidos entre locutores” (PÊCHEUX, 1983), efeitos que são produzidos sócio-históricamente, perguntamo-nos, dessa forma, qual a memória que sustenta o imaginário sobre as mulheres brasileiras e que permite, assim, uma determinada produção de sentidos sobre as mesmas. Considerando que o discurso é estrutura e acontecimento, forma material e exterioridade (interdiscurso), tentaremos compreender de que forma o interdiscurso (memória discursiva) intervém nos discursos analisados, de que forma os já-ditos tornam possível todo o dizer, dando-lhe

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Guardamos a ortografia na forma como esta se apresenta no fórum de discussão.

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sentido. Partindo assim da análise do que é dado sob o efeito da evidência, ter-se-ia, por exemplo, o discurso do turismo que visa promover o país, de forma positiva, de forma legal. Sustentado em efeitos de evidência dessa natureza, seria possível que uma rede de sentidos sempre-já existentes torne possível dizeres que vão no sentido contrário do discurso da promoção do país. Tentaremos dar um nome pra essa memória e para esses já-ditos. Se algo significa antes, em outro lugar e independentemente, visamos apreender, no discurso sobre as mulheres, o que é esse algo, tentando assim descrever o funcionamento do discurso do turismo sobre as mulheres brasileiras. Em seu trabalho de dissertação, Ilka Mota (2004), investigando o que seria o corpo no imaginário nacional, interessa-se por esse “modo peculiar de o brasileiro (se) significar o seu país” e que estaria relacionado com uma memória construída historicamente, uma identidade histórica, da ordem do já-dito, que nos permitiria, assim, dizer que o Brasil é “país tropical, país em se plantando tudo dá, país exuberante, terra das mulheres sensuais”. Baseando-se na noção de discurso fundador, de Orlandi, Mota identifica, nos textos analisados, um gesto de interpretação muito específico: “um quadro do Brasil pintado tipicamente aos moldes do olhar europeu: terra com uma vasta e selvagem natureza, abundante em alimentos (frutas, remédios, ouro, etc), em animais e gente selvagens, climas optimus, índias sensuais.” É desse imaginário que partimos e que, como verificaremos em nossa análise, se limitará a dois aspectos: o Brasil-praia (natureza) e o Brasilcorpo (dança), em tornos dos quais tentaremos compreender os sentidos que daí partem e chegam à mulher brasileira. Partindo da ideia de que o sentido é sempre uma palavra por outra, e considerando o que se pode dizer em determinada conjuntura e o que é dito em outro lugar, tentaremos descrever os efeitos de sentido evocados nas imagens das mulheres em comparação com os processos de identificação dessas mulheres no fórum de discussão. Situando-nos nesta disciplina de interpretação, que é a AD, poremos em jogo na descrição/análise “o discurso-outro como espaço virtual de interpretação” (ORLANDI, 2005). No caso analisado aqui, veremos que esse discursooutro é aquele que aparece nas falhas, nas brechas, é igualmente aquele que aparece em outro lugar. Compreendendo, dessa forma, o que se diz em relação a outros dizeres, e, sobretudo, em relação ao que não se diz. De forma esquemática, nos interessamos pelos efeitos de sentidos, que se sustentam numa região do interdiscurso/memória, nos quais um determinado imaginário se institui (e se move) pelo trabalho do efeito metafórico. Na introdução de O papel da memória, José Horta Nunes pergunta-se de que modo a memória é regulada, conservada ou deslocada e de que modo os acontecimentos se inscrevem ou

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não nessa memória. No caso que analisamos diríamos que, mais do que romper, o acontecimento discursivo é absorvido pela memória. Trazendo para nosso trabalho o que este autor diz, tentamos pensar na eficácia simbólica do uso de imagens de mulheres, imagens em sua maioria da mulhercorpo, ou do corpo-mulher. Haveriam nessas imagens sentidos considerados como evidentes, que se apresentam como não necessariamente ditos, a partir disso tentaremos apreender em que momento a memória intervém, dando sentido, justamente pela falta. Para perceber em que momento há falta utilizamos o que Achard (2007, p. 16) chama de dialética da repetição e da regularização, esta se apoiaria “necessariamente sobre o reconhecimento do que é repetido”, instituindo os sentidos dentro de séries. Segundo este autor “é preciso admitir esse jogo de força simbólico que se exerce no reconhecimento do mesmo e de sua repetição”, esse efeito de repetição e de reconhecimento, é o que Pêcheux (2007, p. 49), falando da imagem, chama de “passagem do visível ao nomeado”. Como veremos essa reconstituição do semelhante, do mesmo, se dá pelas operações de paráfrases, retomadas e deslocamentos, nesse caso se dando a reconstrução da memória, que vem restabelecer aquilo que não está explicitado, os preconstruídos. A questão é saber onde residem esses pré-construídos, presentes por sua ausência, estariam estes disponíveis na memória discursiva? Ainda segundo Pêcheux (idem, p. 53), “sob o „mesmo‟ da materialidade da palavra abre-se então o jogo da metáfora, como outra possibilidade de articulação discursiva”, uma espécie de “repetição vertical, em que a própria memória esburaca-se, perfura-se antes de desdobrar-se em paráfrase.” Seriam esses pontos de opacidade, de divisão do mesmo e da metáfora, que gostaríamos de compreender, nesta análise do imaginário sobre a mulher brasileira, dirigindo nosso olhar sobre os gestos de designação (verbal e não-verbal), sobre as imagens opacas e mudas do corpo da mulher inscrito na discursividade do turismo. Efeitos metafóricos: praias, carnaval, mulher, prostitutas Considerando que os sentidos se constituem nas relações de metáfora (transferência) e no vínculo constitutivo do dizer com a sua exterioridade, e que, apesar de não se poder parafrasear uma imagem, há a possibilidade de buscar o que é dito em outro lugar, sabendo-se que tanto o mostrado (não formulado) quanto o dito, são efeitos de sentidos, e que uma sequência de enunciados é uma série de pontos de deriva possíveis, oferecendo lugar à interpretação. No que diz respeito à imagem, segundo Souza (2012), a possibilidade de sua leitura sustenta-se a partir de propriedades como a representatividade (garantida pela referencialidade) que constituem o não-verbal em texto, em discurso. Pode-se assim falar de seus modos de significação e interpretação, e dessa forma entender

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como ela, enquanto discurso, “vem sendo utilizada para sustentar discursos produzidos como textos verbais”, devendo assim ser posta em relação com a cultura, com o social, com o histórico. Buscamos interpretar imagem e enunciados em sua historicidade, a partir da memória discursiva, que segundo Pêcheux (2007, p. 52) “seria aquilo que, face a um texto que surge como acontecimento a ler, vem restabelecer os „implícitos‟ (préconstruídos, discursos-transversos). Trataremos inicialmente das imagens, e em seguida desenvolveremos algumas possíveis interpretações, baseando-nos nos enunciados do fórum. As imagens no Petit Futé. Em A imagem, uma arte de memória? (2010), Davallon afirma que as imagens funcionariam antes de tudo sob o modo semântico (opondo este ao semiótico, segundo a distinção feita por Benveniste), impressionando a memória que, por sua vez, só retém o que é ainda capaz de viver na consciência do grupo que a mantém. Interessamo-nos, dessa forma, por essa eficácia simbólica que a imagem contém, e no que em nossa análise aparece com a forca de evocação de discursos outros, discursos que ali não se encontram formulados. Em seu texto, Davallon utiliza a imagem em complementaridade com o enunciado, em nosso caso a nossa atenção estaria deslocada para outro lugar, estaria mais na relação com o não-enunciado sobre essas imagens. O que se ressalta é a “eficácia da imagem em poder se inscrever em uma problemática da memória societal” (idem, p. 28), que em nosso trabalho é analisado sob a forma de efeitos do interdiscurso, nos ajudando a compreender as possibilidades de leituras dos discursos constituídos nas/pelas imagens. Numa tentativa de descrever seu funcionamento discursivo, veremos como se relacionam os não-ditos das imagens com os ditos em outro lugar, em outras materialidades. Souza (2013, p.59) nos indica um modo de analisar as imagens ao afirmar que “quando se recorta pelo olhar um dos elementos constitutivos de uma imagem produz-se outra imagem, outro texto, sucessivamente e de forma plenamente infinita”, a isto associamos o modo como, no enquadramento das imagens, é dispost(o)a (o corpo d)a mulher. Para ajudar a pensar esses diferentes modos de significação, tomamos a noção de policromia de Souza (2001, b2013) que nos ajuda a pensar os elementos constitutivos de uma análise do discurso não-verbal. Tais elementos remeteriam a diferentes perspectivas favorecendo “a apreensão de diferentes sentidos no plano discursivo-ideológico”, por exemplo, quando se tem a possibilidade de se interpretar uma imagem pela outra, e, como tentamos fazer aqui, uma imagem pelo que não se diz sobre ela. Conforme mostraremos a seguir, vemos uma relação de dissenso (SOUZA, 2001) decorrente do jogo entre

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legenda e imagem o que faz com que um segundo texto (enunciados outros, de outros lugares) se institua num plano discursivo implícito. As mulheres retratadas encontram-se associadas a um cenário que se apoia no que poderia ser chamado uma memória da identidade nacional. Vale ressaltar que se trata de um recorte, uma escolha de análise, um gesto de interpretação nosso, nos propondo, assim, a pensar no(s) modo(s) de constituição de uma “identidade” da mulher brasileira apoiado(s) em uma discursividade que buscamos aqui interpretar e explicitar. Pretendemos de fato chegar aos efeitos de sentidos que só se tornam possíveis na medida em que uma certa região do interdiscurso ali os sustenta. Esse nosso gesto de interpretação reside no fato de percebermos (ou suspeitarmos) que há algo que atravessa essas imagens justificando suas presenças naquele guia, algo que não é dito nas legendas que lhes acompanham. Seria o que lhes daria sentido, um sentido orientando para uma interpretação, que seria o mesmo que se encontra explicitado em enunciados no fórum de discussão. Eis a forma que decidimos tomar esse material de análise. Nas imagens que analisamos temos duas “paisagens”. Primeiramente: a praia. Como podemos ver na imagem abaixo (1), o que se descreve é a praia: Ipanema, praia emblemática do Rio e do Brasil inteiro!, numa página intitulada O Brasil em 30 palavras-chave. A legenda fala da praia, tem-se, no entanto, ao meio da imagem, que de certa forma Imagem 1

impede uma visão inteira dessa praia, um casal (um homem e uma mulher), centremos nossa atenção ao corpo feminino. Este retratado de costas, com o famoso biquíni. Como se pergunta Davallon: o que retém o olhar nessa imagem? Seria somente “praia” a palavra-chave a reter? Suspeitamos que não. Há ai nãoditos, a única forma de tentar encontrar nomes para esses sentidos

que aí se apresentam seria ouvir o que é dito em outro lugar. A segunda “paisagem” presente nas imagens analisadas é a

Imagem 2

do carnaval, da dança. Uma delas permite essa passagem entre o calor da praia e o calor da dança. Na mesma seção da imagem anterior, tem-se a respeito da palavra-chave “dança”, a imagem (2) com a respectiva legenda A dança. Uma arte de viver brasileira. Nesta imagem, não se tem um homem, crianças, um grupo de pessoas, um casal: tem-se novamente uma mulher. Praia, sorriso, dança: “é natural” a pouca vestimenta. Os sentidos dados como

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evidentes seriam então que, num guia de turismo francês, “é natural” que se retrate uma pessoa dançando, na praia, pouco vestida, e que esta pessoa seja uma mulher? Ainda aqui, questionamos: quais sentidos ainda neste caso sustentam a presença dessa imagem? O que a legenda não diz? Assim como na imagem anterior, porque não cita a pessoa retratada? Porque em nenhum dos casos que analisamos as mulheres, postas no centro das imagens, não são nomeadas, referenciadas? Como se pode ver nas imagens (3) e (4) tem-se mais “dança”, “alegria de viver”, “beleza”. Tem-se mulheres encarnando esse imaginário, com fantasias de carnaval, na seção Festividades do guia. Na imagem (4) a legenda diz É no bairro da Lapa que vocês assistirão aos mais lindos shows. Imagem 3

Essa legenda acompanha uma

Imagem 4

imagem de uma mulher ao centro, também com fantasia de Carnaval. Como dissemos é apenas nesses dois cenários que as

mulheres

são

retratadas.

Contudo, pensamos que não é apenas o imaginário do “Brasil, país do carnaval” que é retratado. Devemos, portanto, problematizar a presença quase exclusivamente de mulheres associadas a esses dois imaginários (carnaval, praia), que retratadas nesses contextos levam “obrigatoriamente” a imagens de mulheres com pouca roupa. Mostra-se, exibe-se o corpo dessas mulheres, em nome de uma fala que nomeia a festa, a praia, a dança. As mulheres aí tampouco são designadas. Vejamos as duas ultimas imagens que tomamos para análise. Na imagem (5) a legenda diz O carnaval, uma instituição nacional, a imagem mostra 4 mulheres, de costas, em fantasias de carnaval. Elas estão ao centro da imagem, resumida pela legenda ao “Carnaval”. Não haveria aí Imagem 5

talvez uma comprovação da presença daquele imaginário em que estaria resumido o “Brasil” ao “carnaval”, e, por efeito de transferência, as mulheres ao cenário desse carnaval? Por fim, vejamos a imagem (6) que retrata igualmente um desfile de carnaval, nela tem-se o público, uma ala com os dançarinos ao chão, e ao centro da imagem, em um carro alegórico, 3 mulheres, duas com os

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seios à mostra. A legenda nos diz O desfile das escolas é um dos momentos fortes do carnaval. Visando perceber qual o sentido dessas imagens, questionamos: o que justifica sua presença? O que as legendas não dizem? Qual o efeito de evidência que aí

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aparece? Afinal o que não é necessário, ou não pode, ser dito? O que é que “todo mundo sabe” sobre a mulher brasileira?. Toda descrição “está exposta ao equívoco da língua: todo enunciado é intrinsecamente suscetível de tornar-se outro, diferente de si mesmo, se deslocar discursivamente de seu sentido para derivar para um outro” (PÊCHEUX, 1983, p. 53), buscando saber o que seria esse outro, ou ainda, buscando verificar o discurso-outro aí ausente (relembrado, evocado), recorremos a alguns enunciados no fórum de discussão em que se discute sobre as mulheres brasileiras. Os enunciados do fórum Routard.com, Segundo, Davallon (2010, p. 31) a imagem, assim como o sentido e o sujeito, tem em si a representação de ser a origem de si mesma, com esse apagamento da gênese começa um trabalho de (re) construção dessa origem, e dos sentidos atribuídos. Ele diz: “Então, começa a deriva indefinida (e não infinita) que caracteriza toda interpretação de imagem; não obstante, se nos volvemos para essa deriva, percebemos que essa busca, essa “reprodução” da significação do dispositivo, se faz segundo o próprio programa trazido pelo dispositivo”. Talvez aí se tenha uma possível explicação do fato de não necessariamente se nomear o que está nas imagens, pois os efeitos de sentidos já seriam então partilhados. Retraçando o que se pôde perceber nas imagens, entre legendas e objetos retratados, cenários e efeitos de evidências, temos que os sentidos (já dados) são retomados, e ao serem retomados, deslocam-se. Dessa forma, do que o cenário/paisagem (praia, sol, carnaval) traz de informação, tem-se o sentido “naturalizado” de referência ao corpo pela dança, de pouca (ou nenhuma) vestimenta pela dança e pela praia, e a isso associado, tem-se igualmente, a presença de mulheres que encarnam esses sentidos “naturalizados”, como se pôde ver anteriormente, sobre o imaginário nacional. Vemos aí, nesse deslocamento pela repetição e pela falha, o efeito de retomadas metafóricas, que só são possíveis pelo que se opera para alem dessas imagens, o que corresponde

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aquilo que Davallon chama de “acordo entre os olhares”. Como dissemos anteriormente, o efeito de repetição, é de que o diferente, o ausente faça-se presente pelo mesmo, pelo formulado. Todas as sequências foram tomadas de dentro de uma discussão que começa com a seguinte pergunta: [Enunciado 1]: Bonjour je pense partir a fortaleza et j aimerais savoir si c’est du genre thailande ou a des prostitutes en tous les coins? Et on peut malgrer ca passer un bon sejour?

Percebe-se nesse enunciado que algo já vem dado, no que nos interessa o que é dado como inquestionável é a existência de prostitutas, a primeira parte da pergunta reside sobre a presença em todo canto dessas prostitutas. A segunda parte da pergunta, é que nos informa ainda mais diretamente do efeito desse elemento que se apoiaria sob um ‘processo de sustentação’: articula-se a essa segunda pergunta através do seu “e” inicial, o discurso da resposta afirmativa dizendo “sim, é igual à Thailandia onde há prostitutas em todos os cantos”. Essa asserção retorna na segunda pergunta, como um saber já-lá, o que se pode perceber no: apesar disso pode-se ter uma boa estadia? Apesar disso. Isso, a prostituição, tida como pré-existente, evocada lateralmente, se assim podemos dizer, seria aquilo que se sabe a partir de outro lugar. Diversas páginas discorrem respostas a essa pergunta, dentre as quais retivemos as seguintes sequências: [Enunciado 2]: ces filles (parfois etudiantes ?) , parfois vivotant de job par ailleurs (R 10, Q2) [Enunciado 3]: "passer à la caisse" pour des moças ; [..] mais aussi pour mon plus grand bonheur, des filles correctes, non vénales

[Enunciado 4]: a ete colonise pas des prostitués mais y trouve egalement des gens « normaux » (R 38, Q2) Nas três sequências acima, o que nos interessa em particular é a presença disso que é, segundo Pêcheux (1975), o retorno do saber no pensamento, percebemos assim essa articulação de asserções, nesse discurso que, como podemos ver, insiste na existência de pessoas normais, de moças corretas, não venais, e até mesmo às vezes, estudantes. É nesse discurso que insiste em afirmar que nem todas as moças são putas, que podemos entrever a existência daquele discurso que estaria afirmando o que este tenta negar. Nas três sequências anteriores, opõe-se, por exemplo, essas moças a estudantes [2], moças (utilizado em português) a moças corretas, não venais [3]; e prostitutas a pessoas ‘normais’ [4]. Não se trata necessariamente de observar aqui os modos de designação das mulheres, tampouco trata-se de analisar os efeitos de sentido para mulheres nesse discurso, o que nos interessa neste caso é simplesmente observar sob quais filiações de sentido esses discursos se sustentam. O que se pode perceber é a existência de um imaginário sobre a “prostituição fácil”, como na Thailândia. Podemos avançar um pensamento: haveria um certo interesse não somente pela prostituição, que se encontraria em todos os cantos, mas também poderse-ia perceber um interesse em se encontrar (como vemos no enunciado 3) também mulheres

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corretas. Por fim, vejamos o que as duas últimas sequências podem nos ajudar a elucidar sobre este aspecto: [Enunciado 5]: Le bresil est rempli de pirhanas, ces filles qui vivent de leur corps sans l'annoncer directment (R7, Q2)

[Enunciado 6]: (R8, Q2) une offre des bresiliennes qui ne voulaient pas s’avouer putes, mais vivaient quand meme de leur charmes... (R9, Q2)

Tem-se duas designações piranhas e brasileiras seguidas de reformulações que trazem o que vemos como um efeito de sustentação que é o que estamos buscando analisar: qual seria o pensamento contido ou evocado nelas? Na sequência 5, piranhas é reformulado por essas mulheres que vivem dos seus corpos sem o anunciar diretamente. Na sequência 6, tem-se brasileiras seguido da reformulação que para nós sintetiza habilmente aquilo que gostaríamos de mostrar como discurso evocado pelas imagens nos guias: que não queriam se assumir putas, mas que viviam mesmo assim de seus charmes. “Charmes” corresponderia àqueles atributos que analisamos como fazendo parte da “memória nacional”, identificando os brasileiros e as brasileiras, com a beleza, com a sensualidade, com o calor, com a praia, com a dança, e funcionando sob a modalidade do pré-existente. Seguindo o que nos diz Achard (2007, p. 14) poderíamos, a partir do aparecimento de diferentes posições “fazer um inventário delas e estabelecer suas regularidades, e (...) em seguida designar, lá onde elas não são explicitamente instanciadas, os tipos de implícito por que elas chamam”. Segundo Courtine (1999, p. 20), uma formulação anterior, já-dita, vem se encaixar como préconstruído numa formulação posterior, produzindo um efeito de cadeia na série. Tratam-se de fato de efeitos de preconstruídos e de sustentação percebidos pela repetição do imaginário do que seria a “identidade nacional”, que permitem, pela repetição, um deslocamento: vivendo de seus charmes, são putas, mas não assumem. Parafraseando, poderíamos questionar: não se dizem putas, mas são putas. Não se dizem putas, mas vivem de seus charmes. São charmosas, são putas. Eis um processo de identificação das mulheres brasileiras que a nosso ver se dá tanto pelas imagens (estas evocando o corpo, o nu, o charme) quanto pelos ditos no fórum. O que problematizamos aqui são os sentidos possíveis que circulam entre as imagens que não nomeiam as mulheres e os dizeres de outro lugar que as nomeiam, de putas ou que vivem de seu corpo sem o anunciar. Tais efeitos de sentidos fazem parte de um mundo de sentidos possíveis, não se pode, dessa forma, deixar de perguntar quais são as consequências da circulação de tais sentidos. Quais são as consequências da circulação de imagens de mulheres tal como descrevemos? Quais sentidos são evocados ao se associar imagens de mulheres com pouca vestimenta, na praia, de

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costas, de seios nus? Segundo Pêcheux (2011, p. 160) a “metáfora aparece fundamentalmente como uma perturbação que pode tomar forma do lapso, do ato falho”. Poderíamos ver aí aquele trabalho da abertura do simbólico, da falha, da deriva, vendo aí um deslizamento entre o imaginário que associa brasilidade com beleza, sensualidade e dança, passando de alguma forma pelo imaginário do corpo; a mostração dessas mulheres encarnando esse imaginário e o discurso que associa Brasil enquanto rota sexual ou as mulheres brasileiras enquanto vivendo de seu corpo e de seus charmes. Caso tal interpretação seja possível, poderíamos ver neste caso, o trabalho do efeito metafórico: o não dito pelas imagens, exatamente por ser não-dito, não-formulável que se mostra, como falha. Courtine (1999) nos diz que a noção do enunciado está ligada à noção de repetição, havendo assim inúmeras reformulações, repetições nos fios das quais apagam-se determinadas marcas de um (não tão) distante que estaria aí relatado, esse não citado diretamente vemos nas imagens dos guias. Haveria assim remissões de discurso a discurso constituindo um espaço do repetível, entre o imaginário praia-carnaval, imagens de mulheres e brasileiras-putas. Vemos que de alguma forma, em relação ao guia, o nao tão distante de que fala Courtine pode estar ali, nos dizeres do fórum. Reflexões conclusivas: Brasileiras e putas? Percebemos que, ao ser reivindicado o sítio de significância da “beleza” e da “simpatia” para a mulher brasileira, por um movimento no interdiscurso/filiação na memória de sentidos já-dados, há um certo apelo sexual, por ser a beleza brasileira, a simpatia brasileira. Ocorrendo um deslize nesses sentidos, por efeito metafórico, chegando-se a sentidos tais o que aqui vimos, “mulheres que vivem de seu charme”, que só fazem gênero. Isso deixa, a nosso ver, a porta aberta para a complexa questão do aliciamento sexual e da prostituição no Brasil. Nos dizeres descritivos das imagens e nos enunciados referentes especificamente às mulheres brasileiras, ou mesmo naqueles designando os brasileiros, percebemos algo que falha. E através dessa falha, desse não dizer tudo, desse mostrar sem dizer, que tais sentidos circulam. Como afirma Pêcheux (1975) esse mesmo discurso deixa brechas, tem fissuras, assim vemos que há por um lado os não-ditos, que são ditos em outro lugar, e por outro se há esse discurso dominante, há igualmente o(s) discurso(s) dominado(s). Como seriam, onde e como estariam funcionando os discursos da resistência a esse discurso que identifica a mulher brasileira a mulher fácil? Tencionamos com este exercício de análise problematizar esse imaginário e a não sem consequência utilização de imagens de mulheres de seios à mostra e que vivem de seu corpo e de seu charme. Simbólico e político se encontrariam aí, nessa circulação de sentidos que procedem a uma identificação do ser mulher brasileira nesse imaginário.

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Between ‘said’ and ‘not said’. The brazilian woman’s image in Tourism discourse. Abstract: This paper aims to analyze the different ways Brazilian women identities are constituted discursively. This identification/subjectification process is analyzed founding on the materialistic Discourse Analysis. In this sense, the results found are based on the different ways of ''naming'' employed to designate/describe women, found in those two French enunciation spaces, from which the analytical corpus is constituted: tourism guide books and discussion forums on the internet. This data crossing was extremely important, because it permitted to realize, in the categorization of

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women in the forums, such as ''beautiful women'', ''prostitutes'', ''sluts'', the subtle play on presence/absence of those names in the Tourism guides. This analysis aims to contribute with the studies interested in social construction of the “reality” (of the women) through the language (discourse), considering it is placed in the same current of thoughts that believes that giving a “name”, as a discourse act, might not be separated from its political and social consequences. Keywords: Discourse Analysis. Brazilian women. Identification/Subjetivation process. Tourism.

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