ENTRE DORES, MORTES E RESISTÊNCIAS: REFLEXÕES SOBRE O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO 1

June 8, 2017 | Autor: Felipe Freitas | Categoria: Racismo, Criminologia, Direito Penal
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ENTRE DORES, MORTES E RESISTÊNCIAS: REFLEXÕES SOBRE O SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO1 Felipe da Silva Freitas2 Um sistema de distribuição intencional da dor, um sistema de docilização dos corpos, um sistema de sofrimento, perversidade e inutilização de mulheres e homens. Estas são ideias já arroladas na tradição do pensamento social para caracterizar o que são as prisões e o que é o sistema penal em todo o mundo. Neste sentido, tomo como ponto de partida desta reflexão sobre as narrativas produzidas para o cárcere a constatação de que dor, sofrimento e repressão são as palavras que podemos acionar para tentar definir o indefinível: o aniquilamento de trajetórias processado no interior dos sistemas de privação de liberdade. Certamente, ao falar de aniquilamento não pretendo afastar da análise as possibilidades de subversão, as resistências, as centelhas a partir das quais construímos possibilidades e vamos trilhando caminhos de liberdade diante do arbítrio. O que pretendo destacar neste preâmbulo é que o sistema penal se faz a partir da interdição da palavra e este é, por inúmeros motivos, o maior desafio para superação da violência que estrutura as prisões em todo o mundo. Não há prisão sem dor! Ninguém se envolve no sistema punitivo sem significativas doses de violência contra si e contra os outros. Não há possibilidades de falar de prisão afastando deste debate o sofrimento. Assim, reconhecendo que a dor é a base dos sistemas punitivos contemporâneos, gostaria de propor algumas questões sobre as narrativas para o cárcere articulando dois pontos de vista. De um lado, gostaria de trazer alguns elementos da minha experiência de pesquisa sobre políticas de segurança pública destacando como os modelos de políticas públicas e políticas criminais estão encharcados de punitivismo e vigilantismo (a necessidade de redução do sistema punitivo); e, de outro, destacar os entraves de uma política criminal que contribua para reduzir as violências do sistema (a necessidade de reformas internas no sistema considerando as necessárias mudanças humanistas no âmbito do direito penal e processual penal). Neste ponto, é importante destacar que não é possível falar em promover direitos ou

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Texto apresentado no Seminário Narrativas do Cárcere: políticas de resistência no socioeducativo e no sistema penitenciário promovido pelo Programa de Educação Tutorial em Direito da Universidade de Brasília e do Departamento Penitenciário Nacional do Ministério da Justiça durante o painel Poder Judiciário: narrativas para o cárcere, 06 de novembro de 2015. 2 Felipe da Silva Freitas mestre em Direito pela Universidade de Brasília e membro do grupo de pesquisa em criminologia da Universidade Estadual de Feira de Santana.

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assegurar igualdade dentro do sistema prisional. No nosso entendimento, é impossível falar efetivamente em direitos num espaço de aniquilamento de pessoas. Como nos adverte Ângela Davis, importante ativista negra norte-americana, no ocidente as prisões funcionam como continuum das experiências da escravidão3 e fundam-se como instituições vocacionadas à discriminação racial e à colaboração com complexos processos de desumanização dos grupos sociais historicamente excluídos: “a prisão torna-se um meio de desaparecer com as pessoas e com os problemas sociais associados a elas.”4 Desde o ferro de quente na transição do regime escravista para o trabalho livre até às formas de criminalização contemporâneas a tortura, o aprisionamento e as mortes acompanham a experiência negra em todas as instâncias do sistema de justiça criminal. Trata-se de um sofisticado processo de formação de conceitos e valores sociais que, com ampla legitimação por parte de inúmeros atores e grupos, aderem à frase de que “bandido bom é bandido morto” como nos revelou pesquisa recente realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública que traz a constatação do forte apoio social a este discurso5. Destaquemos neste aspecto alguns pontos deste controvertido funcionamento do sistema punitivo ressaltando quais as narrativas produzidas pelo Poder Judiciário e pelo Poder Executivo na relação com as pessoas acusadas da prática de ilícitos penais e/ou condenadas por violações à lei penal. Um primeiro ponto deste debate diz respeito a esfera processual e às sucessivas violações ao direito à razoável duração do processo, bem como às violações às garantias constitucionais do processo de investigação, conhecimento e de execução penal. Como comprovam os dados oficiais acerca do tema há no Brasil um absurdo índice de presos provisórios, muitos deles sem assistência de advogados, custodiados em cadeias totalmente insalubres e expostos a toda sorte de assédio. Mesmo nos casos mais positivos, em que magistrados comprometidos esmeram-se para cumprirem as suas obrigações acerca do processo penal, os direitos são rapidamente confundidos com benefícios e as obrigações do estado cumpridas como ato de heroísmo ou ainda como favor realizado por um “salvador da pátria”. Tal cenário tem retardado a discussão 3

DAVIS, Ângela. Democracia da Abolição: para além do império, das prisões e da tortura. São Paulo: Ed. Record, 2010. 4 DAVIS, Ângela. Política e Prisões: uma entrevista com Ângela Davis. Impulso, Piracicaba, 17(43), 2006, 127138. Entrevista concedida a Eduardo Mendieta, em maio de 2004. 5 Segundo pesquisa nacional realizada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2015 cerca de 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase “Bandido bom é Bandido Morto”. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 9º Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2015. Ano 9, São Paulo: FBSP, 2015, p. 8.

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sobre a qualidade das decisões no âmbito penal, bem como calibrado reações virulentas a medidas simples como a realização obrigatória das audiências de custódia ou a criação de mecanismos que impeçam que se extrapole os prazos para o acesso a direitos de progressão de regime etc. Estes são exemplos que revelam como a ideia de democracia é totalmente descompassada do que se faz na esfera penal. Trata-se de um tipo de abordagem que se institui a partir da violação de direitos. Neste sentido nem mesmo o STF tem sido um bom guardião dos direitos fundamentais... A velha confusão nacional entre direitos e privilégios parece governar as representações de magistrados, representantes dos Ministérios Públicos, das Defensorias Públicas, policiais, agentes prisionais e população em geral. Um segundo aspecto decisivo diz respeito ao papel do poder executivo e do não cumprimento das suas obrigações atinentes às condições para o cumprimento da pena nos estabelecimentos prisionais. A superlotação, as violências praticadas por agentes do estado, a conivência com a tortura e com demais formas de violações de direitos são pontos reiterados na realidade prisional brasileira como já vimos amplamente denunciado por este mesmo seminário. A omissão do poder executivo ante aos ditames constitucionais referentes à custódia dos presos no Brasil tem ensejado inúmeras admoestações internacionais, e, mais recentemente foi reconhecido pelo próprio Supremo Tribunal Federal como a caracterização de um “estado de coisa inconstitucional” que inspira cuidados e exige ação rápida e efetiva de União, Estados e Municípios. Trata-se de uma articulação complexa de violências cuja desconstrução depende decisivamente da pactuação política efetiva e corajosa por parte de diferentes atores e instituições. São medidas simples e reflexões coletivas que não terão força de mudar em caráter definitivo a realidade, mas que, pelo menos, contribuirão para conter violências e controlar arbitrariedades o que já é, em si mesmo, altamente desejável. Nesta seara é importante advertir quanto aos riscos do sequestro da palavra e frisar que muitas vezes, mesmo nas experiências de caráter mais garantistas, a palavra segue subtraída dos sujeitos envolvidos com a execução penal. A fala dos agentes penitenciários, dos policiais, e, sobretudo, dos próprios apenados são desigualmente consideradas num jogo de poderes costurado por fortes marcadores de raça-classe-gênero-geração e orientação sexual. Trata-se de um desigual processo de validação dos discursos e práticas sempre marcado pela ideia de que aos presos nada pode ser garantido que não a mera sobrevivência com fortes

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doses de sofrimento e dor. Mais uma vez recorrendo as formulações de Ângela Davis a prisão é um espaço de negação dos direitos e liberdades democráticas o que nos desafia a pensar sobre que tipo de democracia em que vivemos.6 As noções de alteridade, autonomia, acolhimento, escuta e participação sequer chegam às enunciações retóricas do sistema. O puro castigo, desprovido de qualquer possibilidade narrativa autorizada pelo sistema, segue guiando toda a arquitetura do sistema punitivo em práticas como as revistas vexatórias aos familiares dos presos, o corte de cabelo padrão, a proibição de unhas pintadas e outros adereços, a vedação de determinados tipos de comida, a proibição de determinadas expressões da sexualidade, e, sobretudo, a interdição da associação e da auto-organização dos detentos. Tal realidade possui uma evidente conotação racial, amplamente negada pelos atores institucionais do sistema, mas, facilmente percebida tanto pela evidente maioria negra na composição da população carcerária nacional quanto pelo caráter racializado das representações acerca da figura do suspeito, do criminoso e do perigoso. São as hierarquizações produzidas pela raça que constroem os sentidos da prisão na sociedade brasileira e que influencia nas formas pelas quais os diversos atores relacionam-se entre si. “Não sobrevive um coletivo impedido de compartilhar sua própria experiência” afirma Edson Cardoso, importante intelectual e ativista do movimento negro brasileiro e exprofessor da Universidade de Brasília7. Parafraseando, ouso dizer que não sobrevivem as pessoas que, na experiência de privação de liberdade, são impedidas de compartilharem suas próprias experiências. É a possibilidade de outras construções narrativas acerca da privação de liberdade que permitirá, ou não, a reflexão política sobre os sentidos da prisão em nossa sociedade. Mais do que denunciar o caráter seletivo do sistema e as ciladas do punitivismo somos chamados e chamadas a irmos mais fundo na reflexão acerca de outras epistemologias que ancorem a sua produção na busca de saídas para a desigual distribuição de dor realizada pelos cárceres no Brasil e no mundo. Trata-se do desafio de reconhecer – de modo autocrítico – o caráter elitista com que as aproximações relacionadas ao tema do cárcere vêm se processando e assumir coletivamente o necessário engajamento com a construção de respostas, que, além de levarem 6

DAVIS, Ângela. Política e Prisões: uma entrevista com Ângela Davis. Impulso, Piracicaba, 17(43), 2006, 127138. Entrevista concedida a Eduardo Mendieta, em maio de 2004. 7

CARDOSO, Edson Lopes. O lenço. Disponível em: http://bradonegro.com/produtos.asp?TipoID=4 acesso em 22 de novembro de 2015.

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em conta as considerações dos excluídos, sejam efetivamente produzidas a partir destes excluídos num criativo re-descobrimento das possibilidades encetadas pelo Outro. Mais do que narrativas para o cárcere, amoldadas às velhas formas, modernas ou não, é preciso reafirmarmos narrativas contra o cárcere. É preciso abrir espaço para que outras formas de mediação e de resolução de conflito sejam experimentadas em nossas sociedades, ao mesmo tempo, é preciso continuar investindo nas saídas de curto e médio prazo que reduzam o sofrimento atualmente vivenciado nas prisões. Traduzindo a partir dos versos do sambista Paulinho da Viola “A toda hora rola uma história, Que é preciso estar atento, A todo instante rola um movimento, Que muda o rumo dos ventos, Quem sabe remar não estranha, Vem chegando a luz de um novo dia, O jeito é criar um outro samba, Sem rasgar a velha fantasia”8 Que saibamos remar e que os sonhos de liberdade, justiça, igualdade, autonomia e autodeterminação sigam nos inspirando para subversões em favor da vida e da felicidade. Muito obrigado.

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Letra da música Rumo dos Ventos, Paulinho da Viola. Disponível em: https://letras.mus.br/paulinho-daviola/278741/

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