Entre Lisboa e Pisa: alguns exemplos de viagens comerciais no terceiro quartel do século XV

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Entre Lisboa e Pisa: alguns exemplos de viagens comerciais no terceiro quartel do século XV

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Joana Sequeira

Resumo Com base nos registos contabilísticos de uma companhia comercial toscana instalada em Lisboa no terceiro quartel do século XV, são analisados quatro casos de viagens comerciais entre Portugal e Itália. O objetivo é conhecer os percursos, os custos de transporte e os pormenores logísticos associados às transações de dois dos produtos mais importantes na atividade da companhia: os couros e os tecidos.

Joana Sequeira nasceu no Porto, em 1985. Doutorou-se em História, em 2012, na Universidade do Porto e na École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris, em regime de cotutela, com uma tese sobre a Produção Têxtil em Portugal nos finais da Idade Média. Atualmente, desenvolve o seu projeto de pós-doutoramento sobre a presença da companhia mercantil-bancária Salviati-Da Colle em Lisboa no século XV, integrado num projeto internacional (EnPRESa) financiado pela Agence Nationale de la Recherche, que visa estudar a ação das companhias do grupo Salviati nas praças europeias nos séculos XV e XVI (sob direção de Mathieu Arnoux). É bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia e investigadora do CHAM (FCSH, Universidade NOVA de Lisboa, Universidade dos Açores) e do CITCEM (Universidade do Porto). 173

Neste estudo, serão apresentados exemplos de quatro viagens comerciais entre Portugal e Itália, decorridas entre 1461 e 1464, com pormenores que colocam em evidência a complexidade logística que o transporte de mercadorias por via marítima implicava. As informações foram recolhidas na documentação pertencente a uma companhia mercantil pisana (Da Colle), que desenvolveu intensas relações comerciais com Portugal entre as décadas de 50 e 70 do século XV. Nem sempre é fácil juntar dados suficientes que permitam elaborar o traçado completo e exato de uma determinada viagem. Tal é devido à natureza dos registos que, na maior parte das vezes, nos fornecem informações parciais, dispersas e sintéticas. O teor das fontes aqui compulsadas em nada se assemelha àquele que podemos encontrar nos livros de viagens, nos registos alfandegários ou mesmo nos diários de comandantes de embarcações. O fundo documental do qual foram extraídos os registos em análise é composto por livros de contabilidade mercantil, que apresentam uma linguagem e organização muito específicas e por vezes difíceis de descodificar. Quando se encontram informações detalhadas sobre o percurso das mercadorias no meio das contas de uma companhia comercial, temos de pensar que estas só foram anotadas na medida em que interessavam à contabilidade da empresa porque ajudavam a clarificar os custos dos produtos ou porque identificavam os agentes que deveriam ser creditados ou debitados na sequência das operações. Por estes motivos, as despesas associadas a determinada mercadoria são apresentadas de forma diferente consoante se registem no porto de partida ou no porto de chegada. Por outro lado, muitas vezes só temos conhecimento da realização de uma determinada viagem através do registo das despesas relativas apenas a uma parte da mercadoria que seguia na embarcação. A título de exemplo, a primeira viagem que aqui será apresentada diz respeito à nave de Vicente Martins. Sabemos que nessa viagem em concreto a nave transportou quatro lotes de couros, mas o mais provável é que tenha transportado outras mercadorias, por sua vez pertencentes a outros atores comerciais, das quais os livros dos Da Colle não nos dão conhecimento pelo simples facto de dizerem respeito a negócios alheios à companhia. Serve esta breve reflexão apenas para alertar para o facto de estarmos perante testemunhos que nos dão somente uma visão parcial do fenómeno das viagens comerciais entre Portugal e Itália, deixando em aberto muitas das perguntas que gostaríamos de ver respondidas. Um dos pormenores que nos escapa sempre é o do tempo de duração das viagens, que poucas vezes surge mencionado – pelo menos diretamente – nos registos de despesas. Antes de passar à apresentação dos exemplos, torna-se pertinente traçar um breve perfil da atividade da companhia1. O fundo documental que per1 Para o efeito, seguiremos o estudo de Marcello Berti: BERTI, Marcello, “Le aziende Da Colle: una finestra sulle relazioni commerciali tra la Toscana ed il Portogallo 174

mite conhecer a história dos Da Colle é composto por dez livros de contabilidade e encontra-se integrado no Arquivo Salviati, tutelado pela Scuola Normale Superiore de Pisa2. Os primeiros dados relativos à existência da companhia em Pisa datam de 1445. Inicialmente, era dirigida pelos irmãos Iacopo e Giovanni da Colle e a sua atividade era centrada sobretudo no comércio internacional de papel produzido na região toscana de Colle di Val d’Elsa. Cinco anos mais tarde, os irmãos dividiram os seus bens e Iacopo passou a comandar sozinho a casa comercial. Os primeiros contactos com Portugal tiveram início logo em 1450, mas, à medida que os anos passaram, a companhia foi-se especializando nas trocas com o mercado ibérico e aumentando o leque de produtos transacionados. Resumidamente, no sentido Itália-Portugal seguiam sobretudo tecidos de seda, papel, fio de ouro e, em menor escala, livros, vidros e lâminas de espada. No sentido inverso, eram enviadas remessas de couros, de grã (kermes vermilio) de Sintra e de Sesimbra3 e, pontualmente, de sal de Setúbal, de sebo e de mostarda. Até 1462, todo o comércio era feito com recurso a correspondentes italianos estantes em Lisboa, mas, nesse ano, o filho de Iacopo, Michele da Colle, instalou-se em Lisboa e fundou uma filial da companhia, passando assim a usufruir das vantagens do comércio direto. A transferência de Michele para Lisboa não foi, no entanto, direta. O jovem mercador estanciou uma larga temporada em Valência e, quando iniciou o seu percurso até Portugal, passou ainda por Cádis, Sevilha e Tavira. À medida que se deslocava, Michele aproveitava para estabelecer e solidificar contactos comerciais. Curiosamente, a trajetória da sua própria viagem tornar-se-ia a rota base dos seus negócios nos anos seguintes4. Em 1465, Iacopo juntou-se ao filho Michele e ambos passaram a comandar as operações em Portugal, enquanto o outro filho de Iacopo, Girolamo da Colle, assumiu a direção da agência pisana. Iacopo acabaria por falecer em Portugal, mas o seu filho Michele regressou a Itália em 1475, colocando fim à atividade da companhia. Ele e o irmão tornar-se-iam, mais tarde, funcionários do grande Banco Salviati de Pisa5. a metà del quattrocento”, in Toscana e Portogallo: miscellanea storica nel 650º anniversario dello Studio Generale di Pisa. Pisa: Edizioni ETS, 1994, pp. 57-106. 2 Archivio Salviati (AS), Serie I – Libri di Commercio, Da Colle e Salviati. Giovanni Da Colle e Averardo di Alamanno Salviati, di Banco in Lisbona, regs. 3-12. 3 O kermes era um tinto vermelho usado na indústria têxtil. Sobre este produto, veja-se: CARDON, Dominique, Le Monde des teintures naturelles. Nouvelle édition revue et augmentée. Paris: Belin, 2014, pp. 593-616. 4 SEQUEIRA, Joana, “Michele da Colle: um mercador pisano em Lisboa no século XV”, in Alessandrini, Nunziatella et al. (eds.) – Con gran mare e fortuna: Circulação de mercadorias, pessoas e ideias entre Portugal e Itália na Época Moderna. Lisboa: Cátedra A. Benveniste da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade de Lisboa, 2015, pp. 21-34 (p. 26). 5 CARLOMAGNO, Antonio, Il banco Salviati di Pisa: commercio e finanza di una compagnia fiorentina tra il 1438 e il 1489, vol. 1. Dissertação de Doutoramento apresentada à Università degli Studi di Pisa, 2010, pp. 16, 31, 167. 175

Quando, em meados do século XV, os agentes Da Colle encetaram os primeiros contactos com o mercado português, encontraram uma comunidade de italianos já perfeitamente instalada no reino6. Mas o que torna o exemplo desta companhia único na história da presença italiana em Portugal é precisamente o facto de parte dos seus livros de contabilidade ter sobrevivido e de alguns deles pertencerem à filial portuguesa, tendo sido redigidos em Lisboa. Dispomos assim de uma perspetiva direta sobre as transações comerciais, realizadas em moeda local (real), com a anotação detalhada de fornecedores e clientes portugueses e informações sobre os trajetos e as despesas de transporte das mercadorias. Muitos destes dados não seriam conhecidos se apenas tivessem sobrevivido os registos das transações da companhia sediada em Pisa. Os exemplos de viagens que a seguir serão descritos, por ordem cronológica, são relativos a dois dos produtos mais comercializados pela companhia (couros e sedas) e são baseados nos registos de despesas insertos em três dos seus livros de contabilidade. 1461: QUATRO LOTES DE COUROS IRLANDESES E PORTUGUESES (IRLANDA-LISBOA-LIVORNO-PISA)7 Esta viagem de 1461 é um exemplo perfeito da articulação dos mercados atlântico e mediterrânico potenciada pelo dinamismo da praça de Lisboa. A cidade tornou-se, durante o século XV, num grande empório redistribuidor de couros. Já em 1399, Bartolomeo Manni escrevia à companhia Datini, de Pisa, destacando as peles entre os produtos que se podiam encontrar no mercado lisboeta: “di qui si tragono grande quantitá di chuoia e sono grandi e buone”8. Segundo Federigo Melis, a maior parte desta mercadoria seguia a via do Mediterrâneo e cerca de 90% era desembarcada em Livorno9. De facto, a região da Toscana conheceu um grande desenvolvimento da indústria dos curtumes a partir do século XIII, e a crescente demanda de matéria-prima obrigou ao alargamento progressivo dos mercados de importação10. Lisboa 6 Sobre a comunidade mercantil italiana em Lisboa durante a Idade Média, veja-se, por todos: D’ARIENZO, Luisa, La presenza degli italiani in Portogallo al tempo di Colombo. Roma: Istituto Poligrafico e Zecca dello Stato, 2003, pp. 509-590. 7 AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 6, fls. 262-63. 8 “Daqui trazem-se grandes quantidades de couros e são grandes e bons” (tradução livre). A carta acha-se publicada em RAU, Virgínia, “Cartas de Lisboa no Arquivo Datini de Prato”, Estudos Italianos em Portugal. nr. 21-22 (1962-63), pp. 3-13 (p. 8). 9 MELIS, Federigo, “Di alcune figure di operatori economici fiorentini attivi nel Portogallo nel XV secolo”, in I mercanti italiani nell’Europa medievale e rinascimentale. Florença: Le Monnier, 1990, p. 10. 10 TANGHERONI, Marco, “Commercio e lavorazione del cuoio in Toscana”, in La conceria in Italia dal Medioevo ad oggi. Milão: La Conceria, 1994, pp. 173-192 (p. 185); ANTONI, Tito, “I costi industriali di una azienda conciaria della fine del Trecento (1384-1388)”, Bollettino storico pisano, 42 (1973), pp. 9-52. 176

funcionava como porta de acesso não apenas aos couros portugueses, mas também aos galegos e sobretudo aos irlandeses. Alguns estudos têm demonstrado que os italianos adquiriam couro da Irlanda através das redes estabelecidas com Portugal e que o seu transporte até Itália era também assegurado em grande parte por embarcações lusitanas11. Está ainda por esclarecer a importância da participação dos mercadores portugueses neste negócio. Para reconstituir os contornos da viagem aqui enunciada foi necessário cruzar os dados de quatro listas de despesas relativas a diferentes lotes de couros. O que permite deduzir que esses quatro lotes viajaram em conjunto é o facto de todos eles terem chegado a Pisa a bordo da nave de Vicente Martins e de o registo das respetivas despesas ter sido feito quase em simultâneo (a 4 e a 6 de fevereiro)12. O primeiro lote, fornecido por Lopo Afonso13 e constituído por 2007 couros irlandeses, terá feito o trajeto de Lisboa até Livorno, de acordo com a lista de despesas de transporte que lhe são associadas. O segundo e o terceiro lotes, compostos por 184 e 208 couros da Irlanda, pertenciam, respetivamente, a Cosimo Boni e a Lourenço Caldeira14 e fizeram o percurso da Irlanda até Livorno sempre a bordo da nave de Vicente Martins. Por fim, o quarto lote era fornecido por Lopo Afonso e incluía 434 couros “di Lisbona”. Cruzando os dados destes quatro registos, deduz-se que a embarcação comandada por Vicente Martins terá saído de um porto irlandês com dois lotes de couro a bordo (184 + 208) em direção a Lisboa, onde terá aportado para fazer embarcar os 434 couros portugueses e ainda o lote de 2007 couros irlandeses de Lopo Afonso, seguindo, por fim, até Livorno. Tudo leva a crer que os 2007 couros irlandeses de Lopo Afonso teriam feito a viagem da Irlanda até Portugal num momento anterior e que estariam depositados em algum armazém na cidade de Lisboa. A título de exemplo, transcreve-se aqui a lista detalhada das despesas (Tabela 1) associadas ao segundo lote (208 couros irlandeses), que nos dá uma noção aproximada das implicações logísticas do transporte desta mercadoria. Assim, para além dos fretes Irlanda-Livorno e Livorno-Pisa, foi necessário reservar verbas para o pagamento da avaria, que constituía uma espécie de seguro que permitia cobrir os custos de uma eventual danificação do barco. 11 BERTI, “Le aziende Da Colle…”, passim; TOGNETTI, Sergio, “Aspetti del commercio internazionale del cuoio nel XV secolo: il mercato pisano nella documentazione del banco Cambini”, in Gensini, Sergio (ed.), Il cuoio e le pelli in Toscana: produzione e mercato nel tardo Medioevo e nell’Etá Moderna. Pisa: Pacini, 1999, pp. 17-50; BRUSCOLI, Francesco Guidi, Bartolomeo Marchionni, “Homem de Grossa Fazenda” (ca. 1450-1530). Un mercante fiorentino a Lisbona e l’impero portoghese. Florença: Leo S. Olschki, 2014, pp. 88-89. 12 Esta viagem é referida por M. Berti, embora o autor apenas considere três lotes de couros (BERTI, “Le aziende Da Colle…”, pp. 79-80). 13 Sobre Lopo Afonso, veja-se SEQUEIRA, Michele da Colle…”, pp. 31-32. 14 No caso do lote de Lourenço Caldeira trata-se de um negócio realizado em comum com Iacopo Da Colle. 177

Uma vez em Livorno, foi ainda preciso suportar os custos de descarregamento da mercadoria e de aluguer de um armazém. Como se tratava de mercadoria pertencente a terceiros (Cosimo Boni), os Da Colle imputaram uma comissão pelo trabalho que tiveram no agenciamento da operação de transporte. Tabela 1 Despesas de transporte de um lote de 208 couros irlandeses (1461) Operação

Preço (florins)

Frete de Irlanda a Livorno

9.12.4

“Avaria” (espécie de seguro da embarcação) Hospedagem em Livorno

1.19.10 1.11.2

Frete de Livorno a Pisa

4.11.6

Descarregamento da embarcação até ao armazém

2.12.0

Aluguer de armazém

1.2.0

Comissão dos Da Colle

0.12.1

Total

14.10.6 Fonte: Archivio Salviati, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 6, fl. 262v.

1462: UMA CAIXA DE BROCADOS (PORTO PISANO-CÁDIS-TAVIRA-COINA-LISBOA)15 O segundo exemplo que se apresenta é relativo ao transporte conjunto de uma caixa de brocados e damascos e de seis caixas com livros, que, em 1462, fizeram o trajeto de Itália até Portugal, com várias paragens pelo meio. Os registos encontram-se num dos livros do fundo que cobrem o primeiro ano de atividade de Michele da Colle em Portugal. Os tecidos eram fornecidos pela companhia Neroni de Pisa, e os Da Colle estavam encarregados de os fazer chegar até Lisboa e de os entregar ao mercador Francesco Giuntini. Já a história das caixas de livros era outra: pertenciam a D. João Galvão, que à data era bispo de Coimbra. O prelado fez parte, em 1451, da embaixada que acompanhou a Infanta D. Leonor até Itália para o casamento desta com o imperador Frederico III. Em Siena, tornou-se próximo de Sílvio Eneias Piccolomini, que viria mais tarde a ser Papa (Pio II) e com quem trocou correspondência16. Finda a sua estadia em Itália, o bispo terá então recorrido aos serviços de Michelle da Colle para fazer chegar a Portugal os bens que adquirira em Siena. Embora tecidos e livros tenham viajado juntamente, as despesas relativas aos mesmos

15 AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 8, cc. 76-77. 16 GOMES, Saúl António, D. Afonso V: o Africano. Mem Martins: Círculo de Leitores, 2006, p. 129. 178

são apresentadas em separado17. Para efeitos de análise, iremos deter-nos apenas na extensa lista de despesas do transporte da caixa de panos de seda (Tabela 2). Brocados e damascos foram embarcados, em Porto Pisano, numa das galés florentinas de Bongianno Gianfigliazzi18, que os levaria até Cádis. Aí, o mercador Marino Crivelli encarregou-se de receber a mercadoria e de a reexpedir até Tavira, a bordo da barca armada de Pedro Rodrigues. Uma vez chegada a Tavira, a caixa foi desalfandegada por dois mercadores genoveses aí residentes (Girolamo e Cristofano Marabotto19). Para a conseguir fazer chegar até à capital do reino, Michele teve de enviar um agente, Antonio de Siena, que fez o caminho de Lisboa até Tavira a cavalo durante seis dias. Dispomos também da despesa pormenorizada de Antonio de Siena20. Na viagem de ida, gastou 160 reais para se manter a si e ao seu cavalo. Estanciou sete dias em Tavira, onde despendeu mais 107 reais. Na viagem de volta, que demorou dez dias, para além do cavalo, recorreu à ajuda de mais dois homens para o ajudarem a transportar a caixa dos tecidos e as caixas de livros do bispo, e com isso gastou quase o dobro do que tinha gasto na viagem de ida (310 reais). Teve ainda gastos com portagens (40 reais) e aproveitou também para imputar duas cestas de figos secos na rubrica das despesas (82 reais). Mesmo com todo este esforço logístico, o agente conduziu a mercadoria apenas até ao porto de Coina, em Setúbal, fazendo-a depois seguir de barca até Lisboa. O aspeto curioso do registo das despesas de António de Siena é que nos oferece dados precisos sobre os tempos de viagem em circuitos terrestres. Este é um tipo de informação que escasseia na documentação portuguesa21. Dos 24 871 reais despendidos, 58% corresponderam a serviços de transporte. A restante percentagem foi gasta com impostos, serviços de carga, descarga e armazenamento, salários, gratificações e a comissão de cerca de 20% cobrada por Michele da Colle a Francesco Giuntini por todo o trabalho que teve na organização do transporte e entrega dos tecidos. 17 As despesas relativas às caixas do bispo D. João Galvão encontram-se em AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 8, c. 76. Está neste momento em curso (2015-2016) uma tese de mestrado, da autoria de Ana Clarinda Cardoso (Faculdade de Letras da Universidade do Porto), sobre os livros de Michele da Colle (registos 7 e 8), que abordará com maior detalhe as relações comerciais e financeiras estabelecidas entre a companhia e o bispo conimbricense. 18 As galés de Bongianno Gianfigliazzi tanto podiam fazer a rota do Norte de África (com paragens em Cádis e Tunes), como a da Flandres (MALLET, Michael, The Florentine Galleys in the fifteenth century. Oxford: Clarendon Press, 1967, pp. 163-65). 19 Sobre estes dois mercadores veja-se SEQUEIRA, “Michele da Colle…”, pp. 29-30. 20 AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 8, c. 73. 21 Sobre os tempos de viagem em território português, vejam-se os estudos de Iria Gonçalves: GONÇALVES, Iria, “Viajar na Idade Média: através da Península em meados do século XV”, in Imagens do Mundo Medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988, pp. 157-176; GONÇALVES, Iria, “Viajar na Idade Média: de e para Alcobaça na primeira metade do século XV”, in Imagens do Mundo Medieval. Lisboa: Livros Horizonte, 1988, pp. 177-200. 179

Tabela 2 Despesas de transporte de uma caixa de brocados (1462) Operação

Preço (reais)

Frete Porto Pisano-Cádis

10 800

“Lelda” da Catalunha (imposto)

600

Bebidas para a companhia da galé

100

Descarregamento da galé e transporte até à cidade

20

Direito de entrada em Cádis

60

Comissão do recetor Marino Crivelli (em Cádis)

690

Armazenamento

26

Transporte até à marina e recarregamento

30

Direito de Cádis para extrair a mercadoria

150

Frete Cádis-Tavira (metade*)

3450

Descarregamento em Tavira e transporte até à alfândega

25

Armazenamento de duas noites na alfândega

60

Documento enviado a Cádis para confirmar a entrada das mercadorias em Portugal (“fede”)

20

Transporte da alfândega até à casa dos irmãos Marabotti

10

Armazenamento na casa dos Marabotti

460

Despesas com pessoal que esteve a guardar as mercadorias

850

Despesas feitas por Antonio de Siena

1320

Portagem e passagem em vários lugares

80

Alvará régio e despesas de chancelaria

40

Transporte de Tavira a Coina

300

Transporte de Coina a Lisboa

20

Descarregamento da barca e transporte até à alfândega

10

Salário e bebida do homem do rei (“uomo del Re”) Comissão de Michelle Da Colle

690 5060

Total

24 871

Fonte: Archivio Salviati, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 8, cc. 76-77. * A outra metade do frete foi imputada nas despesas de transporte das caixas dos livros de D. João Galvão.

180

1464: SEDAS DE FLORENÇA (FLORENÇA-PISA-CÁDIS-CEUTA-SETÚBAL-LISBOA)22 Num dos livros de cópias de contas pertencentes ao fundo em análise encontra-se o registo de uma extensa operação de venda de panos de seda florentinos23. Para além de informações sobre o negócio, encontram-se também listadas todas as despesas de transporte desde Florença até Lisboa, o que nos permite reconstituir o seu percurso (Tabela 3). Os tecidos foram vendidos em Lisboa por Iacopo e Michele Da Colle entre dezembro de 1464 e agosto de 1465. O investimento era feito em conjunto: 1/3 pertencia aos Da Colle, 1/3 à companhia de Giuliano Gondi24 e o outro 1/3 a Nerozzo del Nero, um oficial florentino. Os 670 metros de pano (entre veludos, brocados, damascos e cetins) foram conduzidos, por via terrestre, de Florença até Pisa. Daí seguiram até ao porto de Livorno, onde foram embarcados numa das galés da Flandres. Chegados a Cádis, foram desembarcados não se sabe por intermédio de quem, mas provavelmente pelo mesmo agente que surge noutras transações análogas da companhia (Marino Crivelli). A partir daqui, as informações tornam-se confusas. Percebe-se que a mercadoria foi embarcada numa outra “nave” e que foi pago o imposto que lhe permitia fazer o percurso na costa do Norte de África. Depois, regista-se apenas o frete Cádis-Ceuta e Ceuta-Lisboa, sem que mais pormenores nos sejam adiantados. Várias hipóteses afiguram-se possíveis: as sedas podem ter sido carregadas numa galé que fazia a rota do Norte de África, numa embarcação da frota portuguesa ou mesmo nas duas em momentos distintos25. Fica por perceber se a passagem por Ceuta é pontual ou se implicou um processo de mudança de embarcação. Pela enunciação das despesas, deduz-se que uma parte dos 22 AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 10, fls. 41-42v. 23 Tive oportunidade de dedicar um estudo específico a esta extensa operação de venda (SEQUEIRA, Joana, “A companhia Salviati-Da Colle e o comércio de panos de seda florentinos em Lisboa no século XV”, De Medio Aevo, 7 (2015), pp. 47-62. Disponível em: http://capire.es/ eikonimago/index.php/demedioaevo/article/view/140/249. ) 24 A família Gondi, de Florença, construiu a sua fortuna com base no mestiere dell’oro, isto é, na fabricação de fio de seda revestido a ouro (GOLDTHWAITE, Richard, Private Wealth in Renaissance Florence: A Study of Four Families. New Jersey: Princeton University Press, 1968, pp. 157-186). 25 Embora houvesse várias galés florentinas que percorressem a costa mediterrânica do Norte de África, não consta que Ceuta fosse um porto de paragem habitual (MALLET, The Florentine Galleys…, pp. 72-82). Por outro lado, a frota portuguesa era constantemente canalizada para Ceuta para o abastecimento de trigo, e é possível que se articulasse com as rotas dirigidas a Itália. Veja-se, a este título, o exemplo do fidalgo Leonel de Lima, que assegurava o transporte de trigo para Ceuta nos seus navios e que tinha igualmente embarcações suas ao serviço da companhia Da Colle (DUARTE, Luís Miguel, “Leonel de Lima: o bando e o barco”, Revista Portuguesa de História, t. 31, vol. I (1996), pp. 390-391; BARROS, Amândio, “Barcos e gentes do mar do Porto (séculos XIV-XVI)”, Revista da Faculdade de Letras-História, II série, vol. XIV (1997), pp. 167-230; SEQUEIRA, “A companhia…”, p. 56; AS, Serie I, Da Colle e Salviati… reg. 10, fl. 48). 181

tecidos seguiu diretamente para Lisboa e uma outra parte passou ainda por Setúbal antes de chegar à capital do reino. Uma vez armazenados na casa comercial, os tecidos foram sendo vendidos a talho a cerca de trinta clientes diferentes, o que implicou o seu transporte para vários lugares. Apesar de o negócio ser conjunto, os Da Colle cobraram uma comissão de 2,5% pelo serviço de colocação no mercado. Este registo em particular permite-nos acompanhar a operação até ao fim e perceber qual o peso das despesas no cômputo geral. Desconhecemos o preço de aquisição dos tecidos, mas o total arrecadado com a sua venda foi de 718 948 reais. Desses, 160 211, ou seja, 22,3%, tiveram de ser dispensados para fazer face a transportes, impostos e comissões. Atente-se, contudo, que os custos relativos a impostos superaram largamente os dos transportes. Tabela 3 Despesas de transporte e venda de uma remessa de sedas florentinas (1464) Operação

Preço (reais)

Transporte de Florença até Pisa

293

“Gabella” de Pisa (imposto)

2613

Carregamento em Livorno

375

Frete da galé da Flandres até Cádis

15 600

Descarregamento e carregamento em Cádis e direito (imposto) de Cádis para poderem seguir pelo Norte de África

1500

Frete de Cádis a Ceuta e de Ceuta a Lisboa

2000

Transporte de parte “desses” de Setúbal a Lisboa

1000

Descarregamento no porto e transporte até à alfândega e da alfândega até casa Quantia para dar ao guarda da alfândega

30 500

Transporte para vários lugares para entregar a mercadoria

2600

Comissão (parte)

2000

Alvará para transporte até à alfândega

1200

Imposto alfândegário a 10%

70 000

Sisa a 5% e custos de transporte até outros lugares

43 000

Comissão dos Da Colle a 2,5% e outras despesas

17 500

Total

160 211 Fonte: Archivio Salviati, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 10, fls. 42-42v. 182

1464: COUROS DE COIMBRA (COIMBRA-BUARCOS-PISA)26 O último exemplo não é relativo propriamente a uma viagem entre Portugal e Itália, mas sim à preparação dessa mesma viagem, com todos os esforços logísticos que a angariação e expedição da mercadoria implicava. A descrição é baseada na cópia de uma conta enviada por Iacopo Da Colle ao seu sócio Giuliano Gondi, de Florença. O registo anota detalhadamente uma operação de compra de um total de 1974 couros na região de Coimbra a mais de 30 fornecedores diferentes, nos quais se incluem vários pastores, carniceiros e até o próprio Mosteiro de Santa Cruz. Para cada aquisição, é-nos indicada a quantidade, o nome do fornecedor, o preço por unidade e o preço total e, algumas vezes, é também relevado o local de origem específico. Para além de Coimbra, são referidos os lugares de Tentúgal, Póvoa27, São Martinho do Bispo, Montemor-o-Velho, Vila Nova da Barca, Azambuja e Setúbal. Note-se que na região do Baixo Mondego a criação de gado bovino era particularmente expressiva em tempos medievais28. Logo após o registo da compra, surge-nos a lista de despesas que nos revela pormenores interessantes sobre o processo de reunião e expedição dos couros (Tabela 4). Percebe-se que foi necessário angariar vários transportes para fazer conduzir a mercadoria dos vários locais até Coimbra. Tendo em conta que as aquisições não se realizaram ao mesmo tempo e que o produto em causa ocupava um volume considerável e requeria um correto acondicionamento, foi ainda necessário alugar vários armazéns em Coimbra e Tentúgal para guardar e reunir os couros antes de os carregar na embarcação. É também registada uma rubrica relativa à secagem das peles. Para se conservarem durante os longos tempos das viagens marítimas, as peles tinham de ser submetidas a um processo de enxugamento para não apodrecerem no entretanto. Podiam simplesmente ser salgadas29 ou então defumadas30. Mesmo com estes cuidados, por vezes parte dos couros chegava danificada ao seu destino final31. 26 AS, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 10, fls. 44-44v. 27 Que aqui se pode identificar com Póvoa de Santa Cristina, um concelho que foi extinto no século XIX e integrado no de Tentúgal. 28 COELHO, Maria Helena da Cruz, O Baixo Mondego nos finais da Idade Média (Estudo de História Rural), vol. I. Coimbra: Universidade de Coimbra, 1983, pp. 251-255. 29 CÓRDOBA DE LA LLAVE, Ricardo, La industria medieval de Córdoba. Córdova: Caja Provincial de Ahorros de Cordoba, 1990, p. 153. 30 Veja-se um exemplo em MELIS, Federigo, Documenti per la storia economica dei secoli XIII-XVI. Florença: Leo S. Olschki, 1972, pp. 260-261. 31 Em 1447, num dos livros mastri do Banco Salviati de Pisa, é registada uma conta relativa a couros de Lisboa “danegiate”, isto é, danificados (AS, Serie I, Salviati ed altri Piero e Francesco di Alamanno Salviati ed altri della ragione di Banco in Pisa, reg. 275, c. 211). 183

São ainda registados gastos com comissão, impostos, portagens e com o prémio de seguro de 2,5% válido para a operação realizada no território de Coimbra. Sabemos que os couros seguiram de Coimbra por via fluvial até ao porto de Buarcos (Figueira da Foz), mas não sabemos se a viagem até Itália implicou transbordo em Lisboa ou num outro porto. Tendo conhecimento do preço total de aquisição dos couros e das despesas de expedição, ficamos a saber que estas representaram uma majoração de cerca de 20% no preço final da mercadoria. Tabela 4 Despesas de recolha e embarque de um lote de couros de Coimbra Operação

Preço (reais)

Sisa a 5% por parte dos Da Colle e outra parte pelo vendedor

12 400

Portagem de Coimbra e de outros lugares onde foram comprados a 2,5%

5200

Transporte de vários locais até Coimbra e de barco até Buarcos e outras despesas de embarque

9700

Secagem de couros verdes e secos (várias vezes)

3900

Seguro em Coimbra e no seu território a 2,5%

5200

Aluguer de vários armazéns em Coimbra e Tentúgal

1500

Comissão dos Da Colle a 2,5%

6400

Total

44 300 Fonte: Archivio Salviati, Serie I, Da Colle e Salviati…, reg. 10, fl. 44v.

CONCLUSÕES Apesar de estarmos perante simples episódios pontuais que nos oferecem sobretudo uma dimensão visual e pitoresca do passado histórico, não deixa de ser lícito desenvolver algumas reflexões suscitadas pelos pormenores revelados. No caso dos couros, foram apresentados dois exemplos relativos a momentos distintos de registo das despesas: um referente à expedição de Portugal, e outro à receção em Itália. Fica evidente o significativo esforço logístico que o comércio internacional de couros implicava e que tinha início logo no país de origem, com a angariação de fornecedores, a conservação e o acondicionamento. No caso do lote dos couros de Coimbra, deduz-se que os Da Colle e os seus agentes tenham calcorreado todo o território em busca do produto, o que revela a sua capacidade de penetração nas redes comerciais internas. No próprio documento é referido que a operação se realizara sob alvará régio. A reconstituição da viagem comandada por Vicente Martins é demonstrativa 184

do papel de Lisboa enquanto eixo articulador dos mercados atlântico e mediterrânico, ao mesmo tempo que parece sugerir um protagonismo não negligenciável dos mercadores portugueses no trato internacional dos couros. Em relação ao transporte dos tecidos de seda, os trajetos apresentados contrariam um pouco a ideia da existência de percursos diretos e rígidos que tantas vezes nos é sugerida pelos mapas das rotas comerciais. De facto, a trajetória destes panos é tudo menos direta e, aparentemente, coloca em causa a viabilidade económica do negócio. No entanto, as opções tomadas acabam por se revelar vantajosas se pensarmos que nem sempre o trajeto direto é aquele que oferece mais baixo custo. Vejamos um exemplo dos nossos dias: o envio de uma carta para o estrangeiro por correio normal resulta mais barato porque a carta irá passar por vários pequenos postos intermédios ligados entre si por transportes regulares e frequentes. O mesmo acontecia com o transporte destas mercadorias há quinhentos anos atrás. Apesar de demorar mais tempo, ficava mais barato aproveitar os transportes regulares, mesmo que apenas para uma parte do percurso (como no caso das galés) do que propriamente fretar um navio de propósito para transportar uma pequena quantidade de tecido. Claro que, para fazer chegar a mercadoria ao destino final, era necessário recorrer a contactos de confiança nos postos intermédios, como aqueles de que os Da Colle dispunham em Cádis ou em Tavira. Na verdade, mais do que os recursos materiais, eram os recursos humanos que asseguravam o sucesso do comércio internacional. Uma imensa constelação de mercadores pontilhava o espaço intra e extra europeu, fazendo com que, a cada dia, o longe se tornasse mais perto.

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